O inusitado e o interesse dos alunos: um relato sobre camisetas substituindo cadernos Pietra Cassol Rigatti (
[email protected]) – UFRGS Rosana Ruas Machado Gomes (
[email protected]) – UFRGS Nosso primeiro estágio de docência de língua inglesa em uma escola pública foi uma experiência muito positiva e especialmente motivadora para nós. Talvez tenhamos tido sorte em encontrarmos uma turma de 7º ano calma e participativa, composta por apenas 13 alunos graças à disponibilidade de duas professoras de inglês naquele horário da semana. Talvez tenhamos acertado na produção do projeto e escolhido temática e atividades que fossem significativas para os alunos. Talvez tenham sido ambas essas possibilidades e também o interesse nosso e deles em aprender e ensinar. O fato é que esse interesse por parte dos estudantes nos surpreendeu muito, e é devido a isso que faremos nosso relato. Depois de termos encontrado a escola onde realizaríamos nosso estágio e de termos conhecido a turma com a qual trabalharíamos, nos surgiu a grande questão: qual projeto levar para aqueles alunos? Sabíamos que precisávamos de algo condizente com sua maturidade, que permitisse que eles realizassem reflexões sobre a realidade dos outros e a sua própria e que desse a eles a oportunidade de intervir criticamente no mundo. Sabíamos também que os estudantes tinham entre doze e quatorze anos, gostavam de escutar música, eram tranquilos em sala de aula e participativos. Após assistir ao vídeo do projeto Panic at school realizado pelo estagiário Valter Henrique Fritsch (UFRGS), nos sentimos motivadas a fazer algo diferente dos exercícios do livro didático e de repetição de diálogos com os quais a turma estava habituada a trabalhar. Queríamos que eles se mexessem, usassem sua criatividade e se divertissem. Em uma viagem de trem, enquanto a música Born this way de Lady Gaga tocava no MP4 e as lembranças do episódio homônimo da série juvenil Glee vinham à mente, surgiu o esboço da ideia: discutir o bullying e as diferenças. O episódio em questão mostra os personagens lidando com características suas que são consideradas diferentes, que causam riso ou preconceito, que os incomodam ou que eles tiveram dificuldade para aceitar. O ápice é no final quando, enquanto cantam e dançam ao som de Born this way, eles tiram seus casacos revelando camisetas cujas estampas contêm a característica em questão expressa em uma palavra ou frase (como can’t dance ou trouty mouth), transmitindo uma mensagem de autoaceitação. Ao consultar os 1
Referenciais Curriculares do Rio Grande do Sul, percebemos que nossa proposta se encaixava dentro da discussão sobre identidades e poderia fazer com que os alunos pensassem sobre diversidade e sobre como lidar com ela. Além disso, essa discussão seria iniciada com música, indo ao encontro da sua faixa etária e interesse. Depois de nos encontrarmos e conversarmos, decidimos que camisetas e um vídeo clipe seriam bons produtos finais para o trabalho. Para nos organizarmos, construímos uma tabela que nos serviu de guia. Ao longo do projeto, alguns ajustes se fizeram necessários e, ao chegarmos ao final do trabalho, ela ficou assim: Semana
Proposta de aula
1ª
Apresentação da proposta do projeto – propagandas da campanha antibullying da Cartoon Network Discussão sobre o tema – clipe de Born this way na versão do seriado
2ª
Glee e vídeo Bully Video Khoi Nguyen Ridge View High School / Discussão sobre o gênero vídeo clipe 3ª
Exercícios de descrição dos personagens de Glee e de si mesmo
4ª
Análise da letra da canção Born this way e de sua relação com o clipe e o episódio de Glee Discussão sobre o gênero estampa de camiseta – análises de estampas /
5ª
análise do vídeo Anti-Bullying Flashmob January 2011, da letra da canção Just the way you are e de sua relação com o vídeo 6ª
Análise da letra e do vídeo clipe da canção Firework (escolhida pela turma como a música a ser utilizada no seu vídeo) / Criação das estampas a serem confeccionadas nas camisetas
7ª
Confecção das estampas das camisetas
8ª
Criação do roteiro do vídeo clipe – primeira filmagem
9ª
Análise da primeira versão do vídeo clipe – filmagem final
10ª
Exibição da versão final do vídeo clipe / Autoavaliação
Como os textos do projeto usavam muitas descrições e características, alguns dos pontos gramaticais oportunamente abordados foram o uso de adjetivos, o verbo to be, o verbo to have e o verbo can. Como os alunos precisavam desses recursos linguísticos para entender quais características incomodavam os personagens do clipe e 2
para realizar uma descrição deles e de si mesmos, seu uso pareceu natural e contextualizado. Além disso, com a construção de várias mensagens de apoio e de respeito ao longo do projeto, bem como com a criação da mensagem da estampa da camiseta, o estudo do modo imperativo e dos pronomes pessoais também se fez necessário. Com relação ao tema norteador do trabalho, os alunos foram frequentemente convidados a expor suas opiniões sobre a diversidade e sobre o bullying. Eles discutiram características que eram alvos comuns de preconceito e realizaram tarefas nas quais opinavam sobre o que uma vítima de bullying poderia fazer para se sentir melhor. Com relação ao gênero, eles inferiram o propósito de camisetas e vídeos em campanhas e relacionaram letras de canções a vídeo clipes, interpretando a mensagem conjunta que ambos criam. Ao inventarem os dizeres e estampas de suas próprias camisetas e bolarem seu próprio clipe, eles usaram de sua autonomia para se posicionar na discussão sobre o respeito à diversidade e para participar ativamente da campanha anti-bullying. Nas primeiras aulas, os alunos se familiarizam com o tema e com um dos gêneros do discurso com o qual trabalharíamos: o vídeo clipe. Através de perguntas que pediam sua opinião e que incentivavam a reflexão sobre o bullying e a diversidade, eles foram se posicionando e formando um discurso próprio. Com o uso recorrente de vocabulário que envolvia adjetivos e de estruturas que utilizavam os verbos to be, to like, to have e can, certas construções foram se tornando cada vez mais naturais para os alunos. Em poucas semanas, notamos que eles compreendiam e construíam frases com os verbos anteriormente mencionados com considerável facilidade. O processo de estudo das canções e dos vídeos pareceu interessante aos alunos. Como as tarefas, ao invés de simplesmente apresentarem as traduções das letras impressas em papel, instigaram os alunos a deduzirem e investigarem o sentido de cada verso ou estrofe, conseguiram prender sua atenção e lançar um desafio que os deixava orgulhosos de conseguirem superar. A relação entre as letras das músicas e o sentido dos vídeos aos quais assistimos era também estabelecida por eles, que assim deduziam os propósitos de tal gênero do discurso e compreendiam maneiras pelas quais uma mensagem podia ser transmitida. O estudo de estampas de camisetas também despertou o interesse da turma. Afinal de contas, é algo que faz parte de sua realidade. Alguns nos perguntaram o que 3
estava escrito em suas roupas, e uma aluna adorou uma das estampas analisadas, que trazia em seus dizeres a frase “keep calm” (ela inclusive viria a usar a construção em sua própria camiseta). Provavelmente as aulas mais interessantes do estágio foram as reservadas à confecção das camisetas a serem usadas no vídeo feito pela turma. Distribuímos uma camiseta em branco para cada um deles e também disponibilizamos canetas para tecido de diversas cores. Com a utilização de materiais tão inusitados, todos os alunos dobraram sua dedicação, interesse e empenho em realizar a atividade. Eles primeiro rascunharam suas frases e decorações a lápis no tecido para só mais tarde utilizarem as canetas especiais. Um dos alunos criou um molde de papel para que as letras ficassem bem alinhadas. A maioria das alunas decorou cada letra minuciosa e individualmente e desenhou por toda a extensão da frente da camiseta. Outro aluno levou a camiseta para casa e utilizou tinta para tecido para desenhar uma placa de trânsito com os dizeres “STOP bullying”. Um dos estudantes optou por estabelecer um diálogo direto com uma das personagens de Glee – Tina – que não gostava de ser asiática e desejava ter olhos azuis, e bolou a seguinte frase: “Accept your eyes as they are”. As palavras foram escritas na camiseta utilizando uma caneta preta, com exceção da palavra “eyes”, que foi escrita na cor marrom por ser a cor dos olhos de Tina. Acima dos dizeres, o minucioso desenho de um olho com uma íris marrom. Outra menina, por sua vez, perguntou se tínhamos camisetas sobrando para que ela levasse para casa e confeccionasse a estampa em diferentes cores. Os relatos acima revelam a animação e a dedicação que os alunos demonstraram ao fazerem suas próprias camisetas. Eles se empenharam muito, usaram cores diferentes, fizeram desenhos e foram, em geral, minuciosos e perfeccionistas. Sua criatividade também nos surpreendeu de uma maneira muito positiva. As frases e ilustrações criadas nos deixaram bastante admiradas. Acreditamos que a exigência e perfeccionismo com que os alunos produziram as roupas tenha a vez com o fato de que elas viriam a ser usadas por eles no vídeo e quando mais desejassem. Não seriam apenas mensagens em um caderno guardado na escrivaninha: seriam objetos em circulação real com interlocutores reais. Isso parece ter feito toda a diferença, pois embora eles tivessem demonstrado interesse pelo projeto e participado das atividades propostas desde o início, sua reação perante o uso das camisetas foi inigualável. Também pode ser que parte do sucesso da experiência se deva a sua novidade e a oportunidade para que os alunos fossem criativos e usassem suas habilidades artísticas. 4
Então chegou o momento de pensar em como seria o vídeo. Os alunos escolheram montar uma história e criaram um enredo em que um dos meninos da turma seria alvo de bullying por parte de um pequeno grupo, enquanto que o resto da turma o defenderia. Com o nosso auxílio, os alunos construíram aos poucos um roteiro que foi sendo melhorado durante as duas aulas reservadas para as filmagens. Foi necessário organizar o cenário (uma sala de aula), ajeitar o figurino (todos vestiriam suas camisetas, mas os bullies usariam casacos por cima delas), organizar a ordem das ações e trabalhar duro para expressar os sentimentos mais apropriados convincentemente. O processo de filmagem exigiu um pouco de negociação, porque, enquanto alguns alunos estavam muito empolgados e cheios de ideias, outros eram mais tímidos e preferiam não aparecer muito. Nas primeiras filmagens, o riso predominava. Explicamos então que eles precisavam ser convincentes em seus papéis e demos sugestões de expressões e gestos que poderiam ajudar a passar a ideia desejada. A partir daí, algumas atuações e sugestões dos próprios alunos nos surpreenderam e nos impressionaram. Fizemos as edições e, na semana seguinte, levamos o vídeo para a turma. Eles ficaram satisfeitos e nos repassaram as autorizações dos pais para que o colocássemos no Youtube, entrando assim na rede real de campanha anti-bullying. Foram realizadas também a autoavaliação e a avaliação do projeto, e a partir delas tivemos a confirmação de que os alunos gostaram do projeto, aprenderam com ele e o consideraram útil e divertido. Nossa primeira experiência de estágio foi muito satisfatória e enriquecedora. Percebemos que projetos com um propósito relevante e uma interlocução real despertam o interesse dos alunos e que alunos interessados e dispostos são capazes de produzir materiais incríveis e cheios de criatividade. Tendo a chance de se expressar e de usar a própria voz da maneira que desejarem, os estudantes certamente nos surpreendem. Quando oportunizamos o uso da criatividade vinculado ao uso da língua inglesa em um contexto significativo e com objetivos claros e até palpáveis, não só o rendimento dos alunos aumentou, mas também a qualidade do seu trabalho e seu interesse pelo projeto e pelo aprendizado como um todo. Eles foram capazes de ver seu crescimento como cidadãos, tanto com relação a conhecimentos quanto a modos de se relacionar na sociedade respeitando as diferenças, que estão sempre presentes. Como uma das alunas constatou em uma das nossas discussões em sala, as pessoas são todas diferentes porque não há padrões entre elas. O inusitado está por todos os lados, devemos tirar as melhores experiências dele. 5
Para citações: RIGATTI, P. C., GOMES, R. R. M. O inusitado e o interesse dos alunos: um relato sobre camisetas substituindo cadernos. Revista Bem Legal, v. 4, n. 2, 2014. Disponível em: http://www.ufrgs.br/revistabemlegal/edicao-atual/o-inusitado-e-o-interesse-dosalunos-um-relato-sobre-camisetas-substituindo-cadernos
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