O Inventário do Património Baleeiro Imóvel dos Açores (IPBIA) in Argos - Revista do Museu Marítimo de Ílhavo N.º 2 (2014)

August 7, 2017 | Autor: Márcia Dutra | Categoria: Patrimonio Cultural, Patrimonio Industrial, Patrimonio, Whaling history
Share Embed


Descrição do Produto

O Inventário do Património Baleeiro Imóvel Márcia Dutra Pinto*

dos Açores (IPBIA)

*Coordenadora do IPBIA. Núcleo Museológico do OMA – Observatório do Mar dos Açores

A cultura e a economia dos Açores foram, durante mais de um século, marcadas pela atividade baleeira, que deixou sinais indeléveis na identidade cultural dos açorianos, fazendo ainda hoje parte do seu imaginário coletivo. Com a extinção da caça à baleia, nos anos 80 do século XX, um vasto património relacionado com essa atividade permaneceu disperso pela região, continuando visíveis, em todas as ilhas, múltiplos testemunhos que atestam os aspetos tecnológicos, sociais, económicos e históricos dessa atividade. O fim da baleação gerou a preocupação em salvaguardar o património baleeiro relevante e que corria o perigo de se perder. São exemplo disso a constituição do Museu dos Baleeiros, nas Lajes do Pico, a recuperação e museografia da Fábrica de São Roque do Pico, bem como a recuperação de botes baleeiros e de lanchas a motor (Gasolinas). Apesar desse esforço, continua, ainda hoje, a verificar-se uma perda acelerada e progressiva de parte do património baleeiro imóvel remanescente, o qual é fundamental para a compreensão e interpretação histórico-funcional da baleação nos Açores. No sentido de inverter essa tendência de abandono e de erosão patrimonial, o Governo dos Açores tomou medidas relevantes de apoio à manutenção e à fruição do património baleeiro açoriano, sendo o objetivo central dessa estratégia garantir a sua preservação e transmissão às gerações futuras de saberes e tradições ligados à baleação. O Decreto Legislativo Regional n.º13/98/A, de 4 de agosto, veio definir e caracterizar o património baleeiro regional, estabelecendo medidas e apoios destinados à respetiva inventariação, recuperação, preservação e utilização. De acordo com esse diploma, o património baleeiro é constituído não apenas por imóveis e infraestruturas construídos ou adquiridos para a baleação e atividades conexas, mas também quaisquer móveis, maquinaria, veículos, equipamentos e demais acessórios que tenham sido utilizados na indústria baleeira açoriana, bem como as embarcações baleeiras e respetiva palamenta, existentes ao tempo da cessação da atividade baleeira. Integra ainda os dentes de cachalote e peças feitas em marfim ou osso, objetos de arte com representações da atividade baleeira, os acervos documentais, fotográficos e audiovisuais, afetos à atividade baleeira, bem como as regatas de botes baleeiros.

Apesar desse esforço, era ainda desconhecida a real dimensão e a diversidade do património imóvel existente no arquipélago. Alguns museus dos Açores, em particular o Museu do Pico e o Museu das Flores, dedicados à temática baleeira, possuem vastas coleções inventariadas de testemunhos da atividade baleeira. No entanto, esses inventários cobrem apenas o património móvel e documental do acervo destes núcleos museológicos e encontram-se frequentemente relacionados apenas com a área onde se inserem, não contemplando portanto uma visão global da atividade baleeira no arquipélago como um todo. É de salientar ainda o ambicioso projeto que tem vindo a ser desenvolvido pelo Instituto Açoriano de Cultura (IAC), com o apoio da Direção Regional da Cultura (DRaC)1, no âmbito do qual tem sido realizado um vasto e valioso inventário do património imóvel do arquipélago. Esse projeto inclui algumas das infraestruturas ligadas à baleação, mas a sua maioria não tem sido considerada, uma vez que esse projeto possui um âmbito mais geral. Neste âmbito, o Observatório do Mar dos Açores (OMA) considerou que o ponto de partida ideal para promover a preservação desse património seria a elaboração de um inventário sistemático e exaustivo, contendo todo o património baleeiro imóvel ainda existente nos Açores. Nesse sentido, foi elaborado um projeto que visou a realização do Inventário do Património Baleeiro Imóvel dos Açores (IPBIA), tendo esse sido submetido à DRaC com sucesso. Esse projeto, encarado no âmbito do património industrial, teve como objetivo central desenvolver um estudo completo e abrangente que compilasse, de forma exaustiva, todas as vertentes de informação, nomeadamente a histórica, tecnológica e arquitetónica, ilustradas profusamente por fotografia técnica, tendo o trabalho sido assegurado por uma equipa multidisciplinar, que integrou as áreas técnicas da antropologia, da gestão do património, da fotografia e da arquitetura. O desenvolvimento do IPBIA desenrolou-se em três fases distintas. Numa primeira fase, elaborou-se a ficha de inventário, assente numa base de dados construída em MS Office Access (IPBIA), especificamente criada para o efeito. Criou-se uma ficha de inventário, completa e rigorosa,

1 Inventário do Património Imóvel dos Açores. IAC/DRaC

77

Vigia da Ponta dos Rosais, Ilha de S. Jorge Casa dos Botes da Calheta de Nesquim, Ilha do Pico

procurando corresponder às exigências de um levantamento de campo exaustivo, recorrendo-se, para tal, aos guias práticos do IGESPAR/IHRU2 (que estabelecem indicações e regras básicas que orientam a inventariação de património arquitetónico e industrial). Pela especificidade local deste inventário, foram utilizadas designações, expressões e conceitos adotados no levantamento da “Arquitetura Popular dos Açores”3 e no Inventário do Património Imóvel dos Açores, já referido anteriormente.

© Rodrigo Sá da Bandeira

Durante esta primeira fase do projeto, efetuou-se um levantamento exaustivo do património baleeiro imóvel, que serviu de base para o trabalho de campo. Recolheu-se informação histórica sobre as infraestruturas que terão existido durante o período da baleação açoriana (séc. XIX e XX), recorrendo-se para tal a fontes documentais e orais. Fez-se uma análise profunda das fontes documentais disponíveis em arquivos empresariais, relatórios técnicos, imprensa local e literatura temática. Destacamos, nesta fase do trabalho, a pesquisa realizada em acervos fotográficos, que se revelaram determinantes no terreno, possibilitando o reconhecimento das infraestruturas existentes ou, em muitos casos, dos seus vestígios. Nesta fase, foram contactados informantes-chave nas diferentes ilhas (antigos baleeiros, especialistas na temática baleeira, empresários marítimo-turísticos). Concluída a fase preliminar, considerou-se que estavam reunidas as condições para dar início ao levantamento de campo, propriamente dito. Uma vez localizadas as estruturas, tarefa que se revelou, em muitos casos, difícil, procedeu-se ao registo fotográfico dos imóveis e foram elaborados os respetivos levantamentos arquitetónicos. O contacto com informantes-chave mostrou-se determinante para o reconhecimento, no terreno, e para complementar as informações histórico-funcionais recolhidas durante a primeira fase do projeto.

2 KIT01-Património Arquitetónico – Geral. / KIT03 – Património Industrial. Coleção KITS – Património. Coordenação: João Vieira e Manuel Lacerda. Ed. IHRU/IGESPAR (2010). 3 AAVV. 2000, A Arquitetura Popular dos Açores, Ed. Ordem dos Arquitetos, Lisboa.

78

A terceira fase do trabalho foi dedicada ao tratamento da informação que havia sido recolhida ao longo do trabalho de campo. A informação foi sistematizada e organizada, passando todos os dados a figurar na base de dados IPBIA. De forma a facilitar a interpretação da informação, foi definido um nível superior, onde foram integrados os imóveis, isto é, admitiu-se que as diferentes infraestruturas têm ligações técnico-funcionais entre si, no local onde se integram. Definiram-se, então, três níveis superiores possíveis: os Complexos Baleeiros (onde a atividade era central e era usual encontrarem-se infraestruturas para o processamento do cachalote); os Postos Baleeiros (áreas afastadas dos Complexos, onde as armações baleeiras estacionavam sazonalmente parte das suas frotas, que eram indispensáveis para a atividade na ilha) e os Varadouros Baleeiros (locais com pouca expressão na atividade baleeira, mas que suportaram a atividade de forma temporária). A realização deste inventário foi fundamental para identificar o património baleeiro imóvel que ainda existe nos Açores e avaliar o seu estado de conservação. No IPBIA foram inventariados 186 itens, nas nove ilhas dos Açores, onde foram incluídas todas as infraestruturas e vestígios de infraestruturas que serviram a baleação durante os séculos XIX e XX, e que se traduzem em 144 infraestruturas merecedoras de uma análise mais detalhada. Os resultados espelham a maior ou menor expressividade que a atividade baleeira teve em cada uma das ilhas. Dessa forma, podemos afirmar que é na ilha do Pico que se regista o maior número de itens (n=43). Desde o século XIX que o Pico foi a ilha com maior número de armações (treze no total), de embarcações e, por sua vez, de níveis mais elevados de capturas e de produção (óleo e farinhas). Além disso, é no Pico que a memória baleeira é, ainda hoje, mais intensa, permitindo que muitos dos testemunhos tivessem prevalecido até aos nossos dias. Nas infraestruturas inventariadas, incluem-se as fábricas de processamento integral de cachalote, as casas dos caldeiros, as plataformas de desmancho, entre outras, sendo as que apresentam maior número as vigias (n=43), as rampas de varagem (n=32) e as casas de botes (n=23). As vigias, construídas nas encostas das ilhas, em zo-

nas com grande visibilidade, eram utilizadas para a deteção das baleias a partir de terra. De forma a vigiar toda a superfície de mar ao redor das ilhas, as armações construíram várias estruturas desse género em diferentes pontos das ilhas. As vigias, inicialmente construídas em madeira, foram, na sua maioria, substituídas por estruturas em betão e cimento armado, caiadas de branco, nos anos 40 do séc. XX. Verifica-se que as vigias têm características distintas em cada ilha, ocorrência que se deve ao facto de terem sido construídas sob ordem de diferentes armações, com a exceção da ilha do Pico, onde existe uma elevada variedade de tipos de vigia, decorrente das várias armações que ali coexistiram. Quanto às rampas de varagem (n=32), não identificámos qualquer tipo de característica exclusiva da atividade baleeira nessas estruturas. Esse facto deve-se a que a maioria das rampas inventariadas não tenha sido utilizada unicamente pelas embarcações baleeiras. As casas dos botes (n=23) são infraestruturas com características muito próprias, alongadas (no mínimo, atingem cerca de 13 metros de comprimento) com uma porta larga localizada na sua fachada principal, de forma a facilitar as manobras e a permitir o armazenamento dos compridos botes baleeiros. Era habitual as casas dos botes possuírem um andar superior (aproveitamento da cobertura), dedicado ao resguardo da palamenta e demais utensílios necessários para o desenrolar da atividade. A análise ao estado de conservação do património baleeiro imóvel dos Açores permitiu verificar que 57% das infraestruturas se encontra em bom estado de conservação, 17% em estado razoável, 12% em mau estado e 14% encontra-se em ruína. Um número importante de estruturas continua a ser usado atualmente (62%). Os tipos de utilização deste património podem ser as atividades turísticas (48%), a pesca (33%), sendo que uma pequena percentagem é utilizada em outros ramos, nomeadamente como armazéns comerciais, moradias ou sedes de clubes desportivos/náuticos (19%).

79

As atividades turísticas que utilizam património baleeiro são a observação de cetáceos, os museus, os trilhos pedestres, os miradouros, as zonas balneares e o turismo de habitação. O caso mais emblemático da reutilização do património baleeiro é, sem dúvida, o da reutilização das vigias quer na atividade de observação de cetáceos, quer inseridas em miradouros e trilhos pedestres, totalizando 47% dos imóveis reutilizados relativamente às atividades turísticas. A reconversão da atividade de exploração de cetáceos, transitando da caça para a sua observação turística (que teve início em 1991, na ilha do Pico), contribuiu para que parte das vigias fosse recuperada e passasse a ser utilizada por empresas marítimo-turísticas, permitindo que, dessa forma, as vigias mantivessem a sua função original. Além disso, as vigias encontram-se em áreas privilegiadas, verdadeiros miradouros turísticos, e, por isso, muitas acabaram por ser recuperadas pelas autoridades locais e inseridas em trilhos pedestres ou circuitos turísticos. Outro caso particular da reconversão de património é o das casas de botes. Essas infraestruturas, juntamente com as fábricas para o processamento integral dos cachalotes, foram reconvertidas em museus ou núcleos museológicos (o exemplo mais emblemático será talvez o do Museu dos Baleeiros, situado na Vila das Lajes do Pico), que albergam coleções materiais que testemunham e mantêm viva a memória coletiva da comunidade onde se inserem. Será ainda importante referir que, das cinco fábricas para processamento integral de cetáceos que existiram nos Açores, quatro foram recuperadas e funcionam atualmente como museus.

O IPBIA é, acima de tudo, encarado como um veículo privilegiado de difusão cultural. Neste sentido, e na sequência deste exaustivo trabalho, foram recentemente editados os “Roteiros Culturais dos Açores: Património Baleeiro”4. Esta coedição entre o OMA e a DRaC conta já com cinco roteiros elaborados, que cobrem as nove ilhas dos Açores, os quais definem percursos pelos múltiplos sítios e infraestruturas ligados à atividade baleeira, possibilitando assim a sua fruição pública.

Bibliografia AAVV. 2000, A Arquitetura Popular dos Açores, Ed. Ordem dos Arquitectos, Lisboa. DECRETO LEGISLATIVO REGIONAL nº13/98/A, de 4 de agosto de 1998, Assembleia Legislativa Regional dos Açores, Publicado em Jornal Oficial dos Açores, I Série, N.º 33, de 13 de agosto de 1998. INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO IMÓVEL DOS AÇORES. Ed.IAC/DRaC. Disponível em: http://www.inventario. iacultura.pt/ VIEIRA, João & LACERDA, Manuel (Coord.). 2010, Património Arquitectónico – Geral. Col. KITS – Património, KIT01, Edição IHRU/IGESPAR. VIEIRA, João & LACERDA, Manuel (Coord.). 2010, Património Industrial. Col. KITS – Património, KIT03,Edição IHRU/IGESPAR.

A nossa análise permitiu-nos concluir que, apesar de muito do património imóvel baleeiro dos Açores se encontrar recuperado e a ser reutilizado, para a compreensão da atividade baleeira açoriana, não devemos descorar as infraestruturas que não foram ainda reconvertidas ou conservadas. Devido à sua escala, localização e perda da sua função original, muito do património baleeiro dos Açores corre o risco de se ir perdendo progressivamente. Este inventário permitiu, para já, verificar quais os casos mais significativos para classificação e onde devem ser dirigidos os esforços de preservação, gestão e valorização dessa importante herança.

80

4 Disponíveis para venda na Loja do OMA: www.oma.pt ou na Livraria Virtual do Centro do Conhecimento dos Açores: http://www.culturacores.azores.gov.pt/lv/

Fábrica da Baleia de Porto Pim, Ilha do Faial Casa dos Caldeiros das Lajes, Ilha das Flores Vigia do Alto das Concheiras, Ilha do Faial

© Rodrigo Sá da Bandeira

81

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.