O jornalismo para a paz como alternativa à cultura de violência

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Salto - SP – 17 a 19/06/2016

O Jornalismo para a Paz como Alternativa à Cultura de Violência1 Jorge SALHANI2 Raquel CABRAL3 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Bauru, São Paulo

RESUMO Vivemos em uma sociedade marcada, em seus mais diversos âmbitos, pela cultura da violência. À medida que os meios de comunicação tradicionais ajudam a disseminá-la, torna-se mais difícil a consolidação da cultura de paz na sociedade. Neste trabalho, discutimos o papel dos processos comunicacionais na difusão dos ideais da cultura de paz. Para tal, discutimos a atuação dos meios de comunicação tradicionais, voltados à violência, e comparamos seus conceitos com os do Peace Journalism, ou jornalismo para a paz. Em linhas gerais, enquanto a mídia tradicional dá destaque às consequências visíveis dos conflitos, o jornalismo para a paz busca apresentar uma cobertura contextualizada e humanizadora, com foco na violência cultural e estrutural em vez da violência direta. PALAVRAS-CHAVE: cultura de paz; jornalismo para a paz; paz; Peace Journalism; violência. Introdução Em pouco mais de três décadas, de 1980 a 2012, o número de mortes por armas de fogo no Brasil cresceu 387%. Este valor continua expressivo mesmo com o grande crescimento populacional brasileiro, já que tivemos uma taxa de mortalidade de 21,9 óbitos para cada 100 mil habitantes no último ano da pesquisa. Em 2012, ocorreram mais de 40 mil casos de homicídio por armas de fogo no Brasil, posicionando o país como o 10º com mais ocorrências desse tipo. Ao mesmo passo, a taxa de homicídios contra mulheres no Brasil aumentou 252% de 1980 a 2013. Mesmo com a vigência da Lei Maria da Penha a partir de 2006, a taxa de homicídios não cessou crescimento em 22 unidades federativas brasileiras. Em nível internacional, o Brasil ocupa a 5ª posição no ranking dos países que mais matam mulheres, atrás somente de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. As duas situações apresentadas anteriormente, presentes nos Mapas da Violência de Trabalho apresentado no IJ01 – Jornalismo do XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste realizado de 17 a 19 de junho de 2016. 2 Estudante do 7º semestre do curso de Comunicação Social: Jornalismo da UNESP. E-mail: [email protected]. 3 Orientadora do trabalho. Professora Doutora do curso de Relações Públicas da UNESP. E-mail: [email protected]. 1

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2015, são exemplos do panorama da violência na sociedade brasileira contemporânea e referem-se a seu nível mais direto e explícito. Apesar dos crescentes números, a presença da violência no país não é um fenômeno atual. Ela remonta a história brasileira, marcada por diversos conflitos internos, marginalização de minorias e repressão às lutas sociais. Oliven (2010) comenta que a submissão das classes dominadas no Brasil levou à criação de “inúmeros mecanismos de intimidação e controle que perduram até hoje” (p. 7). Deste modo, os homicídios, assim como outros aspectos visíveis da violência, como conflitos armados e guerras, constituem apenas uma parte de como a violência se mostra na sociedade. A motivação a atos de violência é, muitas vezes, originada por fatores da estrutura social e cultural na qual uma população está inserida. A violência, nesses contextos, “organiza as relações de poder, de território, de autodefesa, de inclusão e de exclusão e institui-se como único paradigma” (MARCONDES FILHO, 2001, p. 22). Ainda para o autor, assim se gera uma cultura de violência, a qual permeia a sociedade brasileira. De acordo com Valesan (2015), essa situação aprofunda as desigualdades e promove injustiças sociais. A cultura da violência, assim, colabora para a legitimação e normalização da violência direta, e se fortalece à medida que a violência passa, com maior frequência, a ser pensada como a primeira opção na resolução de problemas e conflitos. Como objeto de estudo, a violência é um tema sociológico recente, segundo Marcondes Filho (2001): apesar de presente em sociedades desde a antiguidade, sua problematização tomou força somente no século XIX. Para Waiselfisz (2015), há dificuldade em se definir a violência, mas alguns elementos são consensualmente relacionados a ela, como “a noção de coerção ou força; o dano que se produz em indivíduo ou grupo de indivíduos pertencentes à determinada classe ou categoria social, gênero ou etnia” (p. 8). Neste trabalho, tomamos, a fim de definir a violência e algumas de suas especificidades, conceitos propostos por Galtung (1969). Para o autor, deve-se extinguir a ideia de que a violência se basta a atos físicos, à violência direta. Portanto, tem-se que a violência existe mesmo quando não há atores específicos que a cometam. Neste caso, a violência pode ser estrutural, quando concerne à organização política, social e econômica das populações, o que inclui as injustiças sociais ou a distribuição de poder, ou cultural, quando envolve aspectos relacionados à cultura, como comunicação, arte, língua ou religião.

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A violência na mídia tradicional Para Bastos (2003), a violência é um fenômeno que pode ser encontrado nos mais diversos âmbitos sociais, em contexto familiar, escolar ou político, durante guerras ou em seus entremeios. Por sua grande inerência social, ela, inclusive, rege a atuação de grande parte dos meios de comunicação. A mídia mainstream opera primariamente como agente de produção de sentido, transmitindo a seu público os interesses econômicos, políticos, sociais, culturais e militares dominantes (KEEBLE; TULLOCH; ZOLLMANN, 2010). Desse modo, considerando a violência um fenômeno dominante, a mídia pode agir como propagandista da guerra, atribuindo critérios de noticiabilidade a qualquer acontecimento que tenha teor bélico ou de conflito (LYNCH, 2010). Em muitos casos, o sensacionalismo e a busca pela atenção recebem mais destaque que a informação a ser veiculada em si. Isto é, apesar da extensa cobertura realizada pelo veículo de comunicação, o público continua descontextualizado e cria-se um clima de tristeza, ódio ou tensão em relação ao que foi divulgado. Outras consequências são a limitação da liberdade, das relações sociais e das possibilidades de atuação nos espaços públicos (SALINAS, 2014). Este autor afirma que os altos níveis de violência que são notados nos meios de comunicação condizem com suas estratégias de controle social, já que a baixa sensibilidade à dor e ao sofrimento favorece o individualismo e a indiferença – “torna-se frequente a ideia de que tudo está mau e não há nada que possa ser feito” (SALINAS, 2014, p. 58). Segundo Chaparro (2001), o jornalismo pode, muitas vezes, falhar na cobertura critica de conflitos, sendo um desses motivos o fato de as redações serem diariamente bombardeadas com acontecimentos e falas imediatamente noticiáveis e submetidas a limites operacionais impostos pelo negócio.

A cultura da violência é promovida pela mídia como uma resposta ao cotidiano social que busca combater a rotina, proteger-se e livrar-se do perigo, em uma negação que equivaleria a uma pessoa dizer “ainda bem que não aconteceu comigo”. Não importa mais a informação, mas o quanto o elemento violência é capaz de ser mantido a fim de expiar a angústia dos indivíduos (CARVALHO; FREIRE; VILAR, 2012, p. 436).

Em certos casos, em coberturas policiais, como mencionado por Carvalho, Freire e Vilar (2012), criam-se personagens em torno dos envolvidos em crimes: agressores estampam capas de revistas e dão entrevistas como celebridades, e vítimas e suas famílias são exploradas exaustivamente. Assim, a repetição e a normalidade com que os fatos são

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mostrados fazem com que a violência seja apresentada de forma banal e cause horror e escândalo.

Programas

jornalísticos

sensacionalistas

são

caracterizados

pela

espetacularização e banalização de atos violentos, postura editorial que vai em direção oposta ao combate da violência (NJAINE; VIVARTA, 2006). A mídia sensacionalista, além de dar ênfase a temas criminais ou “extraordinários”, é marcada pelo maniqueísmo, coloquialidade, apelo emocional e tem caráter manipulador, já que oferece “um jornalismo comercial feito para vender e alienar” (ENNE, 2009, p. 71). Para Marcondes Filho (1986 apud ANGRIMANI, 1995, p. 15), o sensacionalismo é o grau mais radical da mercantilização da informação. De acordo com Enne (2009), as práticas sensacionalistas da imprensa, voltadas usualmente à disseminação da violência, são herdadas de certas matrizes culturais da modernidade, como a literatura de horror, o romance policial e a pornografia, populares há séculos. Angrimani (1995) ressalva que não se deve considerar unicamente o jornalismo sensacionalista como o violento.

Nos jornais não-sensacionalistas, há sempre uma carga intensa de violência que não se revela, que não se escancara com a mesma intensidade encontrada nos jornais a sensação. Essa violência pode ser detectada na crítica ferina, no editorial agressivo, no artigo emocional, na foto marcante, na reportagem denunciadora. Mas é uma violência “disfarçada”, “ilegível” na forma editorial, enquanto que no jornal sensacionalista a violência faz parte da linguagem e da forma de edição (ANGRIMANI, 1995, p. 57).

A luta pela audiência auxilia na presença da violência nos noticiários. Como exemplo, há algumas décadas, o crescente aumento da audiência do programa Aqui Agora levou outros telejornais, como o SPTV e RJTV, tornarem mais frequentes as notícias sobre crime e violência em suas programações (RONDELLI, 1996). Isso resulta em coberturas mais interessadas em buscar fatos isolados de violência direta, quando poderiam apresentar ou buscar compreender as causas estruturais que levam à violência. Além disso, o contraste social frequentemente apresentado na televisão tanto na ficção, como em novelas, propagandas e outros programas de entretenimento, quanto em produções jornalísticas, valorizam o consumo e padrões de vida distantes de uma grande parcela da população (CARVALHO; FREIRE; VILAR, 2012), reforçando a exclusão social e a violência estrutural.

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Comunicação para cultura de paz Como já aqui mencionado, a mídia pauta a agenda social. Os meios de comunicação mainstream, aqueles que detêm um poder maior e, consequentemente, atingem um grande público, influem no que é discutido pelas pessoas. Desse modo, a mídia molda os valores da sociedade, sugerindo – ou impondo – pautas que julgam ter um alto valor-notícia. Enquanto isso, meios de comunicação menores, ou menos expressivos, lutam para causar um impacto em meio à avalanche de notícias que recebemos todos os dias. Em grande parte, a mídia tradicional difunde valores da cultura de violência, porque esta atrai público e funciona como estratégia de controle social. Em meio a isto, configurase pequeno o espaço midiático para os ideais anti-hegemônicos da cultura de paz. De acordo com González (2012), isso se dá pela dificuldade de o discurso da cultura de paz ser adaptado à estrutura das mensagens às quais as pessoas estão habituadas e educadas a consumir. Mesmo que haja certo consenso no comprometimento pela paz, a cultura de paz encontra resistência no âmbito comunicacional contemporâneo, marcado pela legitimação da violência cultural e estrutural (GONZÁLEZ, 2012). Por esta razão, inclusive, o autor comenta que, em algumas ocasiões, mesmo quando grupos minoritários detêm o poder de meios de comunicação, eles reproduzem os valores hegemônicos dos meios de massa tradicionais. De acordo com Boulding (2002), cultura de paz pode ser definida como um mosaico de identidades, atitudes, valores, crenças e padrões que levam as pessoas a viverem construtivamente e respeitosamente umas com as outras e com o ambiente em que estão inseridas, sem diferencial de poder, de modo a lidar com a resolução de problemas criativamente e compartilhar seus recursos. A Organização das Nações Unidas fomenta amplamente a transformação da cultura da violência em cultura de paz, com o propósito de promover a paz entre indivíduos e nações. A predominância da cultura de paz em uma sociedade não exclui a possibilidade de conflitos existirem, mas sim auxilia em uma transformação mais justa e pacífica deles. Além disso, a sua construção demanda esforços continuados e permanentes (GONZÁLES, 2012). A comunicação é apontada como uma alternativa na difusão dos ideais da paz. Segundo Muñoz (2012), este é um meio de empoderamento pacifista, pois possibilita que a paz atinja tanto espaços pessoais, quanto públicos e políticos. Para que isso se concretize, entretanto, Gonzáles (2012) defende que há a necessidade de existir uma comunicação participativa, em que sejam trabalhados, com grupos marginalizados, discursos e reflexões,

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a fim de propiciar uma comunicação horizontal em que pessoas e coletivos se evoluam a partir do próprio processo comunicacional. Na mesma linha de pensamento, Nos Aldás, Seguí-Cosme e Machota (2008) comentam que o papel da comunicação voltada para a paz é, além de promover discursos de paz, cultivar relações pacíficas entre os seres humanos e favorecer ações sociais responsáveis. O processo comunicacional, dotado de construção de conhecimentos e representações sociais, abriga uma pluralidade de discursos geradores de embates, por isto há a necessidade de se dar voz aos grupos mais diversos e propiciar o diálogo (FERNÁNDEZ; MIGUEL; SANTOLINO, 2011). Assim, a busca pela paz via comunicação não se basta nas investigações feitas pelas instituições macro das sociedades: é fora delas que se dão as expressões interpessoais que podem gerar ações de resistência à ordem social estabelecida (VICENTE, 2015). O pluralismo é essencial para a existência de uma comunicação democrática que visa à cultura de paz (BECERRA, 2012).

A falta de pluralismo acaba com a diversidade de vozes presentes na sociedade e marginaliza os posicionamentos minoritários, uma vez que cessa a conciliação de interesses de distintos agentes cidadãos, socioculturais, econômicos e políticos, maximizando a perda da qualidade democrática (BECERRA, 2012, p. 75, tradução nossa).

Salinas (2014, p. 63) lista uma série de características pertencentes à comunicação voltada para a paz: 1. compreensão e reflexão acerca dos problemas estruturais; 2. debate sobre as alternativas de mudança social com o intuito de transformar os problemas estruturais; 3. reconhecimento das diversas opiniões, crenças, percepções ou culturas, favorecendo o diálogo e o entendimento mútuo; 4. fomento de uma cidadania ativa e ciente das injustiças, como a exclusão, e de que a mudança será bem-sucedida somente com a participação do coletivo. A consolidação da cultura de paz nas abordagens comunicacionais demanda que se considere a paz ativa em vez da paz negativa, definida como a ausência de guerras (VICENTE, 2015). Desta maneira, os profissionais de comunicação levariam em conta as particularidades de cada conflito e teriam como objetivo buscar maneiras de apresentá-los ao público de forma contextualizada, visando uma transformação, dinâmica, em vez de uma resolução estática.

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O jornalismo para a paz Não se atinge a paz com ações isoladas. Sua consolidação é um processo, que demanda esforços continuados e integração social. E notícias cobrem eventos, e não processos: a consequência disso é que o público passa a ter uma noção extremamente estreita e simplista do que está acontecendo, o que dificulta a promoção de políticas anticonflito (HATTOTUWA, 2002). O jornalismo tradicional traça caminhos opostos aos da transformação de conflitos: ele pede pela imediatez e simplicidade das notícias e pela presença de drama e emotividade em suas coberturas (GIRÓ, 2012). Além disso, trata-se de um jornalismo vertical, marcado pelo distanciamento dos grupos sociais e, consequentemente, da cidadania (BECERRA, 2012). A fim de reivindicar a necessidade de novas práticas e rotinas profissionais que substituam os atuais parâmetros comunicacionais, despontam vertentes jornalísticas específicas, voltadas ao comprometimento com a cultura de paz e o desenvolvimento social, como a comunicação participativa, o jornalismo preventivo e o jornalismo intercultural (SALINAS, 2014). Neste trabalho, tomamos como objeto o jornalismo para a paz, explorando suas peculiaridades e âmbitos de atuação. O termo e o conceito do jornalismo para a paz – ou Peace Journalism – são desenvolvidos por Johan Galtung durante os anos 1960 (SALINAS, 2014), mas seu estudo se amplia e populariza entre profissionais da mídia e universidades nos anos 1990, principalmente (LYNCH; McGOLDRICK, 2007). Como sabemos, as coberturas jornalísticas consistem em escolhas feitas pelos profissionais de acordo com o veículo de comunicação para o qual trabalham: o quê reportar, como reportar e quem entrevistar são decisões que variam para se ajustar à linha editorial de cada veículo. Dessa maneira, os ideais do jornalismo para a paz emergem para contrastar o jornalismo tradicional, direcionado à violência e à guerra, buscando colaborar com processos de construção de paz e mudança social. Para Annabel McGoldrick e Jake Lynch (2000), importantes investigadores da área, o jornalismo para a paz traça novas linhas de conexão entre jornalistas, fontes e as consequências das abordagens, utilizando a análise e transformação de conflitos para alcançar equilíbrio, igualdade e rigor em coberturas jornalísticas, isto é, ele não reporta somente assuntos relacionados à paz, mas aplica elementos dos estudos da paz e de conflitos ao cotidiano da profissão. Para Shinar e Kempf (2007 apud KEEBLE; TULLOCH; ZOLLMANN, 2010, p. 3),

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o objetivo do jornalismo para a paz

[...] não é reportar apenas 'boas notícias', mas sim conceber um modo mais justo de cobrir conflitos quando comparado às coberturas usuais, além de sugerir possibilidades de aprimorar a performance profissional, fortalecer valores humanos, morais e éticos na mídia, ampliar seus horizontes profissionais e acadêmicos e, também, fornecer melhor serviço público por meio da mídia (Tradução nossa).

O Peace Journalism se opõe ao jornalismo de guerra, amplamente disseminado, o qual integra o modelo comunicacional tradicional. No último, apenas os conflitos em si e suas consequências visíveis, como o número de feridos ou mortos, as armas utilizadas ou os danos materiais causados, são considerados. Nota-se uma forte dualidade entre grupos sociais, na qual tudo o que não é relacionado à parte aliada torna-se inimigo. Assim, desumaniza-se a parte adversária (“inimiga”) através da exposição de inverdades sobre ela e do acobertamento dos erros dos aliados. Este modelo jornalístico tem como foco a elite e considera a vitória e o cessar-fogo como sinônimo de paz. Enquanto isso, sob a ótica do jornalismo para a paz, a paz consiste na transformação de problemas de forma criativa, utilizando a não-violência. Esse modelo, de caráter plural e humanizador, busca dar atenção aos aspectos culturais e estruturais que levaram ao conflito. Essas e outras comparações entre o modelo de cobertura do jornalismo para a paz e do jornalismo de guerra estão sistematizadas na tabela 1, formulada por Johan Galtung.

Tabela 1: Comparações entre o jornalismo para a paz e o jornalismo de guerra.

Jornalismo para a paz I. Orientado para a paz/conflito  Explora a formação de conflitos; há partes, objetivos e problemas múltiplos  Todas as partes ganham

Jornalismo de guerra I. Orientado para a guerra/violência  Foca na arena de conflito; há duas partes e um objetivo (vencer)  Uma parte ganha, outra perde

 Espaço e tempo abertos: causas e consequências em qualquer lugar, inclusive na história e cultura

 Espaço e tempo fechados: causas e consequências se restringem à arena, focando em quem atirou a primeira pedra

 Apresenta os conflitos com transparência

 Apresenta a guerra de forma obscura/secreta

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 Dá voz a todas as partes, com empatia e entendimento

 “Nós contra eles”; voz somente para “nós”

 Vê conflito e guerra como problemas e foca na criatividade

 Vê “eles” como o problema e foca em quem prevalece na guerra

 Humaniza todos as partes, ainda mais quando há armamentos

 Desumaniza “eles”, ainda mais quando há armamentos

 Proativo: busca a prevenção antes que a violência e guerra ocorram

 Reativo: espera atos violentos para reportar

 Foca nos efeitos invisíveis da violência: traumas, danos à estrutura e à cultura

 Foca nos efeitos visíveis da violência: número de mortos, feridos e danos materiais

II. Orientado para a verdade  Expõe as inverdades de todas as partes III. Orientado para as pessoas  Foca no sofrimento de todos e dá voz a mulheres, crianças, idosos IV. Orientado para soluções

II. Orientado para a propaganda  Expõe inverdades sobre “eles” e ajuda a encobrir as “nossas” mentiras III. Orientado para as elites  Foca no “nosso” sofrimento; tem homens da elite como porta-vozes IV. Orientado para a vitória

 Paz = não-violência + criatividade

 Paz = vitória + cessar-fogo

 Destaca iniciativas voltadas para a paz, a fim de, também, prevenir outras guerras

 Oculta as iniciativas de paz até que a vitória já tenha sido conquistada

 Foca na estrutura, na cultura e em uma sociedade pacífica  Resultado: resolução, reconstrução, reconciliação

 Foca em tratados, instituições e em uma sociedade controlada  Parte para outras guerras e retorna à mesma caso hajam questões pendentes

Fonte: Extraída de Lynch e McGoldrick (2007). Tradução nossa.

Assim, Lynch e McGoldrick (2007) colocam o jornalismo de guerra como um tipo de enquadramento que, apesar de não deixar explícito que jornalistas, em muitos casos, direcionam-se a influenciar o público a apoiar guerras e conflitos, leva-o a supervalorizar respostas violentas e menosprezar as não-violentas. Por outro lado, Hanitzsch (2004 apud HANITZSCH, 2007, p. 2) coloca o enquadramento do jornalismo para a paz como

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socialmente responsável, capaz de contribuir no processo de peacemaking e manutenção da paz. O jornalismo para a paz em uma estrutura democrática pode “incrementar a eficácia de programas de desenvolvimento, reduzir o desnível socio-econômico, a corrupção e a exploração, e, também, aumentar o respeito social e o autorrespeito pelos elementos mais frágeis da sociedade” (SHINAR, 2008, p. 40).

Considerações finais A abordagem delicada e idealista proposta pelo Peace Journalism pode soar utópica, principalmente por não ser frequente na mídia mainstream, o que põe em questão a sua possibilidade de exercício. De acordo com Lynch (s.d.), o Peace Journalism existe, de fato, mas sua prática precisa ser incorporada mais frequentemente pelos meios de comunicação de massa. Sua difusão se dá por meio da proliferação de mídias independentes, radicadas, principalmente, em plataformas on-line, em jornais alternativos e em rádios comunitárias. O jornalismo para a paz, desde o surgimento e avanço de seus conceitos, recebeu – e ainda recebe – críticas por parte de diversos estudiosos, muitas vezes em relação à objetividade em suas coberturas e possibilidade de execução. Partindo do pressuposto de que, como já discutido neste trabalho, as coberturas jornalísticas consistem em escolhas (em relação a seu enquadramento, às fontes, à linguagem, às fotografias a serem utilizadas etc.), notamos que as escolhas feitas pelo jornalismo para a paz buscam a humanização e o entendimento, uma vez que se propõe a dar voz a múltiplas partes, é orientado para as pessoas e para a cultura de paz em vez de somente reportar a violência direta. Assim, observa-se que, tratando-se de escolhas, é preferível que se dê prioridade a uma cobertura equilibrada e humanizadora, na qual a empatia e transformação de conflitos superem interesses econômicos. O atingimento da paz é um objetivo de longo prazo, que demanda passos lentos e contínuos. Iniciativas de transformação da cultura de violência devem partir de meios de comunicação alternativos e estratégias de comunicação comunitária, com o intuito de causar impactos que chamem a atenção de veículos de comunicação tradicionais para a mudança social.

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