O LEGADO DE DARWIN E O “PROBLEMA” DO DIREITO (Parte 1)

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O LEGADO DE DARWIN E O "PROBLEMA" DO DIREITO (Parte 1)


Atahualpa Fernandez(

"Quien alcance a comprender al
babuino aportará más a la metafísica que
el propio Locke." Charles Darwin




A teoria de Charles Darwin sobre a origem das espécies (publicada em
1859) integrou ao homem no mundo animal e transformou para sempre o modo
de pensar de todas as pessoas ilustradas do planeta. Uma admirável,
arrebatadora e "perigosa ideia"; "quiçá uma das ideias mais poderosas de
toda a história da humanidade" (R. Dawkins).
A herança que recebemos de Darwin pode ser mensurada, facilmente,
considerando-se a influência atual da teoria da evolução. Que o homem é um
animal, uma parte indistinguível da natureza orgânica, edificado de acordo
com os mesmos princípios genéticos que qualquer outro ser vivo, não é
somente uma evidência científica indiscutível, senão também um lugar comum
na literatura científica (natural, social e humanística). Mas Darwin não
nos ensinou somente o caminho da compreensão da evolução dos seres vivos.
Sua teoria da evolução através da seleção natural serve também para
compreender «por que» nos comportamos de forma moral e o que é a ética. É
ela, de fato, a que pode dar-nos argumentos a favor da existência de
universais éticos, desses que John Rawls considerava princípios essenciais
da justiça[1].
Nada obstante, a introdução do saber acerca de nossa natureza
biológica no discurso das humanidades e das ciências sociais resultou (e
ainda resulta) complexa e incômoda – para não dizer impossível -, na medida
em que sua legitimidade se concebe como limitada aos territórios alheios à
influência da cultura. Natureza e cultura têm convivido como reinos
separados durante séculos, ao amparo dos dualismos legitimadores de suas
origens míticas. Daí que ainda surpreenda a muitos o argumento de que toda
e qualquer ciência social que não tenha em conta o substrato animal da
sociedade humana está ameaçada ou contagiada dos erros produzidos pelo
desconhecimento, quero dizer, de que os homens vivem em sociedade não
porque são homens (ou quase anjos), senão porque são animais.
O certo é que desde uma perspectiva mais científica que humanista,
filosofamos depois de Darwin. Sabemos que descendemos daqueles primeiros
símios que começaram a andar sobre duas patas. Sabemos que existe algo que
denominamos natureza humana[2], com qualidades físicas e uma série de
predisposições genéticas para desenvolver-nos adequadamente em nosso
entorno. Sabemos que algumas propriedades fixas da mente são inatas, que
todos os seres humanos possuem certas destrezas e habilidades das que
carecem outros animais, e que tudo isso conforma a condição humana. Sabemos
que a matéria prima da cultura são representações mentais, pessoais e
compartidas, e que toda representação é, em última instancia, obra de nosso
cérebro, um irrefutável produto da evolução por seleção natural (nada
ocorre, nem nada existe no mundo humano que não tenha sido percebido,
filtrado, elaborado e construído pelo cérebro, o que inclui como pensamos,
interpretamos, sentimos, criamos e modificamos nossas representações ético-
jurídicas).
Por primeira vez os avanços das investigações procedentes das ciências
da vida e da mente oferecem linhas de convergência capazes de situar a
reflexão humanística e social sobre uma concepção da natureza humana como
objeto de investigação empírico-científica e não mais fundada ou construída
a partir da mera especulação metafísica. Hoje, mais que nunca, se impõe a
convicção de que nenhuma filosofia ou teoria social normativa, por pouco
séria que seja, pode permanecer encerrada ou isolada em uma torre de marfim
fingindo ignorar os resultados dos descobrimentos procedentes dos novos
campos de investigação que trabalham para estender uma «ponte» entre a
biologia e a cultura, o inato e o adquirido[3]. Nenhum filósofo ou teórico
do direito consciente das implicações práticas que sua atividade provoca
deveria desconsiderar a questão última do pensamento moderno: a dimensão
natural, biológica, do ser humano[4].
Já não somos porta-vozes de uma racionalidade (ou divindade) de alguma
forma transcendente que se nos impõe e converte nossas vidas e agrupações
em realização de um fim predeterminado, senão o resultado de um processo
evolutivo que, para bem ou para mal, modelou nossa espécie. Uma espécie que
descobriu que determinados comportamentos e vínculos sociais são
necessários e valiosos para resolver problemas adaptativos relativos à
sobrevivência, ao êxito reprodutivo e à vida em comunidade, e aceitou a
necessidade de assegurá-los e controlá-los mediante um conjunto de normas e
regras de conduta. O sujeito moral deixou seu lugar ao ser humano produto
da evolução por seleção natural.
Este parece ser o ponto fundamental a partir do qual já não mais
parece prudente tentar dissimular ou negar as vantagens de estabelecer um
diálogo interdisciplinar, uma radical interdisciplinaridade que nos permita
sair dos estritos limites de nossas próprias disciplinas para aprender das
ciências vizinhas, ainda que assumindo os riscos e dificuldades teóricas e
metodológicas de qualquer programa de investigação integrador. Uma
integração que, no âmbito do jurídico, implicaria um diálogo entre as
tendências naturalistas da ciência contemporânea e a tradição dos filósofos
e teóricos do direito, convertendo em viável a proposta (e inclusive a
exigência) de novos critérios para que os fundamentos do fenômeno jurídico
sejam revisados à luz dos estudos e investigações dirigidos a dar uma
explicação mais empírica, diligente e robusta acerca da natureza humana;
isto é, sustentado em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana,
que não é uma construção social pós-moderna, senão uma construção natural
muito antiga que recapitula a história filogenética da linhagem humana.
Apesar disso, as tradições jurídico-filosófica e da ciência do direito
ainda predominantes consideram aos humanos baixo uma perspectiva
exclusivamente cultural, um ser "a parte" que representa a superação
qualitativa dos instintos naturais da espécie ou detentor de uma "segunda
natureza" responsável da suposta singularidade humana. A
"paleonaturalização" que supôs liberar-se da transcendência divina se
transladou, de forma paradoxa, ao rechaço de qualquer outra relação de
dependência, incluída a biológico-genética. Não é necessário recorrer à
"falácia naturalista" que enunciou o pensamento analítico dentro da
filosofia moral – solucionada de maneira convincente por R. Hare – para
reconhecer que há uma forma dominante de pensar que se resiste, inclusive
com certa fobia, a aceitar o fato de que os humanos são uma espécie
biológica.
Na verdade, é comum o relegar a um segundo plano – ou simplesmente
deixar de lado – a consideração da natureza humana evolutivamente fixada
como elemento significativo, nomeadamente no que se refere à evidência de
que somos o resultado direto do modo como o conjunto mente-cérebro gera
nossa identidade e os processos cognitivos e emocionais que nos levam a
atuar, condiciona e limita nossa conduta, nossos valores, juízos morais e
os vínculos sociais que estabelecemos. Nosso pensamento e nosso
comportamento são o produto de processos físicos no cérebro (S. Pinker).











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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] E não olvidemos que a teoria da evolução de Darwin não somente resta
argumentos para crer em Deus, senão que aporta também argumentos para não
crer. Um deles pode ser, por exemplo, todas as provas existentes de um
desenho nada inteligente; mas um argumento mais importante é o problema do
mal: "Se Deus existe, e se Deus é bom, por que há tanto mal (sofrimento) no
mundo?". Claro que esta questão é anterior a Darwin, é um "clássico" da
teologia e filosofia, mas Darwin multiplica por mil o problema. Como
explica Steve Stewart-Williams: "La selección natural desactiva muchas de
las razones para creer en Dios y repasa los posibles papeles que le quedan
a Dios (intervenir en el mundo o simplemente poner en marcha la evolución y
mirar, etc…) después de Darwin. Es decir, que si el asunto del mal era un
problema antes de Darwin lo es mucho más después. El problema es
reconciliar la existencia del mal con la de un creador que supuestamente es
omnisciente, omnipotente y bueno. Si lo sabe todo sabe que hay sufrimiento
en el mundo (bueno, él creó el mundo así que tiene que saberlo). Si es
bueno se supone que desearía eliminarlo y si es omnipotente tiene el poder
para hacerlo. Pero el sufrimiento ahí sigue. ¿Por qué no interviene Dios?
El problema no es sólo que no intervenga para ayudar; si pudo haber creado
cualquier universo ¿Por qué creó uno con sufrimiento? o ¿Por qué
creo cualquier universo? […] Además, si Dios no es omnipotente, ¿de qué
sirve que le pida que ayude a los míos? Si Dios no lo sabe todo no podemos
aceptar sus pronunciamientos sin escrutinio, o tener fe en lo que dice, ya
que podría estar equivocado. Por último, si Dios no es bueno, ¿por qué
debemos adorarlo y obedecerle?". Não vou abordar esse debate, até porque
seria inútil e infame discutir a evidência de que a quantidade total de
sofrimento no mundo está mais além de toda consideração decente. E isso
toca o coração da crença (ou da fé) em Deus.
[2] Nota bene: dizer que existe uma natureza humana é algo que não está
admitido por todo mundo (filósofos e cientistas). Muita gente
(especialmente das ciências sociais) segue pensando que o ser humano é uma
«tabula rasa» na qual que se pode escrever qualquer coisa, que sua
maleabilidade é infinita e que é somente produto da cultura. Mas para os
que não compartem dessa ideia, dizer que existe a natureza humana significa
dizer que existem uma série de disposições de conduta e psicológicas que
foram modeladas e refinadas pela seleção natural e que são evocadas pelo
ambiente em que se vive. O comportamento moral e o sentido da justiça não
são criados a partir de zero em cada indivíduo unicamente pelas forças da
cultura, a educação ou as boas e más experiências vitais, senão que formam
parte de nossa herança como espécie. Existe uma anatomia humana universal
(com variações) e existe uma psicologia humana universal (também com
variações).
[3] Assim, por exemplo, "las ciencias modernas de la conducta: la genética
conductual, al mostrar que todo rasgo de conducta humano es heredable; la
neurociencia, al mostrar que eventos cerebrales no conscientes anteceden a
la voluntad consciente; la psicología cognitiva, al mostrar la enorme
variedad de sesgos y errores sistemáticos que plagan el pensamiento
corriente; la psicología evolucionista, al mostrar que el cerebro está
moldeado por la evolución, así como las diferencias entre sexos; etc.".
[4] Deveríamos estar agradecidos a todas áreas do conhecimento científico
que deixaram definitivamente claro que somos criaturas biológicas, em
grande medida pré-programadas, e que a natureza conta tanto como a
educação. As disposições e os padrões de conduta dos seres humanos,
incluídos o caráter, a personalidade e as atitudes, refletem os complexos
efeitos de nossos genes (normalmente múltiplos genes), cujas expressões são
modeladas "a lo largo de la vida por múltiples determinantes ambientales.
Lo que somos y lo que llegamos a ser emerge y refleja la interacción, un
estrecho entrelazamiento, de influencias genéticas y ambientales en una
coreografía enormemente compleja, que sensillamente no cabe reducir a una
parte o a la otra: lo que los genes hacen (y qué partes de nuestro ADN se
expresarán y qué otras quedarán ignoradas) depende de los entornos en que
funcionan. La naturaleza y la educación son inseparables y se determinan
mutuamente"(W. Mischel). Como assinalou em certa ocasião Pasco Rakic: "Los
genes nos dan las oportunidades y el entorno nos permite hacerlas
realidad".
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