O LEGADO DE DARWIN E O \" PROBLEMA \" DO DIREITO (Parte 2)

Share Embed


Descrição do Produto

O LEGADO DE DARWIN E O "PROBLEMA" DO DIREITO (Parte 2)


Atahualpa Fernandez(




"Los genes sujetan a la cultura con una correa.
La correa es muy larga, pero inevitablemente los
valores serán limitados de acuerdo a sus efectos en
el genoma humano. El cerebro es producto de la
evolución. La conducta humana -así como las más
profundas capacidades de respuesta emocional que la
impulsan y guían- es la tortuosa técnica por la que
el material genético humano se ha mantenido y se
mantendrá intacto". E.O. Wilson




Sobra dizer que a maior parte das faculdades de direito parecem estar,
na atualidade, submetidas a uma espécie de aliança ímpia tácita entre a
verborréia relativista pós-moderna e pós-estruturalista (anticientífica e
antirracionalista) e uma retórica de atração autocomplacente,
pretendidamente muito "científica", dominada, sobretudo, por um positivismo
de "normas, regras e princípios", um sociologismo (ou economicismo)
desumanizado e desencarnado, um "jusnaturalismo" com alguma peculiar
ontologia substancialista e/ou um «neoconstitucionalismo» de direitos
humanos ou fundamentais e suas esquizofrênicas ponderações.
Enquanto alguns (os pós-modernos) fogem da realidade social,
científica e política com delirantes imposturas, outros (os "cientistas"
jurídicos, os "puristas" da dogmática, os paladinos da hermenêutica e da
argumentação e os "filósofos" dos direitos humanos) fogem da realidade
social e científica construindo triviais pseudomodelos teóricos que não
passam, com frequência, de grotescas paródias argumentativas sem qualquer
escrutínio empírico minimamente sério e carente da menor autoconsciência
com relação à realidade biológica que nos constitui, dos problemas
filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria da
ação intencional humana e, em particular, da necessidade de uma teoria da
racionalidade reformada (até o momento fundamentada na confiança nos
poderes virtualmente ilimitados da razão). Enfim, por uma completa falta de
precisão relativa à adesão de seus respectivos discursos à natureza humana.
Deificando o mundo do cultural (como sistema de signos e
representações arbitrários que existem independentemente das mentes dos
indivíduos e da condição humana) e hipostasiando em excesso sua
consistência ontológico/metodológica ou suposto fundamental à margem de uma
natureza humana como objeto de investigação empírica[1], o modelo jurídico
atual (em sua máxima expressão) tende a considerar a cultura como a única
natureza humana, caracterizando-se mais como um mosaico de crenças e
teorias de índole quase religiosa, metafísica ou transcendental, e/ou como
um conjunto de idealizações e conjecturas acerca de uma hipotética ordem
natural, antropológica, histórica, hermenêutica, metodológica, normativa,
valorativa ou de faticidade do social na construção/modelação do indivíduo
e da sociedade.
Concepções meramente especulativas que terminam sendo consagradas em
postulados, regras, critérios e métodos filosóficos e jurídicos de toda
índole, em tópicos forenses ou que, simplesmente, pretenderam impor-se
através de fórmulas tão aparentemente vagas e imprecisas como «a natureza
das coisas», «o justo do caso concreto», «o bem comum», «círculo
hermenêutico», «juízo de ponderação» ... É verdade que cada um pode pensar
ou predicar o que quer, mas esas ideas começam a ter diferente valor por
suas consequências práticas, especialmente porque se trata de uma espécie
de «opinologia» sobrevalorada ou um gênero literário completamente
ignorante do domínio de qualquer conhecimento ou técnica científica: uma
província do imaginário que linda com um continente meramente especulativo.
É nessa paisagem dramaticamente errônea e cognitivamente hostil à
realidade por parte da maioria das faculdades de direito que alguns
juristas parecem estar sempre imunes a toda evidência ou argumentação que
não se ajuste ao seus herméticos, imaculados e aprendidos sistemas de
crenças ou visão do mundo. Ao encontrarem-se enfrentados a esses novos,
estranhos e perigosos fatos tendem automaticamente a reforçar suas
arraigadas convicções e a ocultar os dados adversos "debaixo do tapete".
Uma espécie de «desatenção cega», que consiste na incapacidade de ver
também o que não estamos acostumados a ver ou que não temos de antemão na
cabeça, ou um tipo de «prejuízo confirmatório», que consiste na
circunstância de que recordamos, insistimos e notamos somente os fatos que
confirmam nossas crenças e olvidamos aqueles que as desafiam[2].
Parece que o maior obstáculo ao pensamento calmado, razoado e baseado
em evidências sobre a natureza humana é a própria natureza humana (J.
Derbyshire). O problema é que já não parece lícito e nem tão pouco sensato
pretender entender e explicar a cultura humana sem considerar que todo
fenômeno cultural é, antes que qualquer outra coisa, um fenômeno
psicobiológico. Não se pode utilizar a cultura como explicação de qualquer
fenômeno, senão que a cultura é algo que em si mesmo requer explicação.
Pretender "explicar" a cultura (e a variação cultural) com a cultura é, em
última instância, «re-descrever» um fenômeno, não uma explicação: a cultura
não é independente da biologia e a cultura como explicação causal é um
mito.
Natureza e cultura não são duas alternativas para a explicação do
fenômeno jurídico, senão duas caras de um mesmo e único processo. A
reconstrução das claves filogenéticas (e ontogenéticas) de nossos
mecanismos mentais de acordo com os princípios da seleção natural e nos
contextos ambientais em que tiveram lugar é a condição de possibilidade
para uma abordagem empiricamente adequada, coerente e fundamentada da
cultura humana. Descendemos de animais que viveram em comunidade durante
milhões de anos; o mítico "contrato social" já estava inventado muito antes
que a espécie humana aparecesse sobre o planeta, e nenhuma referência à
moral ou ao direito pode silenciar estas raízes.
A mútua relação entre evolução biológica e a emergência de uma conduta
moral e jurídica mais complexa, nos momentos em que a espécie humana estava
desenvolvendo suas capacidades cognitivas e a linguagem articulada, parece
estar além de toda dúvida razoável: o processo evolutivo proporcionou ao
ser humano a habilidade e os requisitos para desenvolver uma moralidade
(que por sua vez deu origem a juridicidade), assim como um conjunto de
necessidades, de emoções e de desejos básicos que, com o passo do tempo,
deram lugar a nossa grande riqueza moral e jurídico-normativa. Com o
direito promovemos em grupos tão complexos como são os humanos aqueles
meios necessários para estabelecer e decidir que ações estão proibidas, são
lícitas ou obrigatórias, para justificar os comportamentos coletivos e, o
que é mais importante, para articular, combinar, controlar e estabelecer
limites aos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os
humanos constroem estilos aprovados de interação e estrutura social.
Não se trata, depois de tudo, de um problema de pouca importância
redutível a um mero exercício acadêmico para os juristas e os filósofos. O
processo de realização do direito (de sua elaboração, interpretação e
aplicação) é um dos mais problemáticos entre todas as empresas jus-
filosóficas. E a eleição da forma de abordar o direito supõe uma grande e
relevante diferença no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie,
estabelece uma medida para a legitimidade e a autoridade do direito e dos
enunciados normativos, e determina o sentido do raciocínio prático ético-
jurídico.
Daí que um naturalismo moderado, comprometido com a consideração da
natureza humana como objeto empírico, me parece exigível e algo que pode
ajudar a superar o "problema" do direito. Quero dizer, admitindo que a
maneira pela qual deveríamos viver é um tema que não pode separar-se
completamente dos fatos, de como são as coisas, toda e qualquer teoria
jurídica, para que suas propostas programáticas e pragmáticas sejam
reputadas "aceitáveis", deveria antes conseguir o "nihil obstat", o
certificado de legitimidade, das investigações naturalistas mais sólidas,
dedicadas a aportar uma explicação científica da natureza humana. É nesse
sentido que o naturalismo pode ensinar muito sobre a nossa forma de ser (o
que somos, como atuamos, o que nos ocupa, o que nos preocupa e o que
podemos ser e fazer), na medida em que o aspecto mais importante de sua
mensagem é o que minimiza as barreiras existentes entre natureza e cultura,
entre espírito e cérebro.
Este é o momento e a oportunidade para voltar a definir o que é o ser
humano, para recuperar e redefinir em que consiste a natureza humana ou
simplesmente para aceitar que o homem não pode ser contemplado somente como
um ser cultural carente de instintos naturais. A consideração adequada da
natureza humana, ainda que muitas perguntas sigam sem resposta, pode ajudar-
nos a compreender cabalmente a natureza de nossa cultura e a iluminar com
novas interpretações os velhos problemas que até agora permanecem no limbo
da filosofia e da ciência do direito.
Por quê? Pois porque o que nos ensinam do mundo jurídico é minúsculo
em comparação com a imensidade do real que ainda somos incapazes de
perceber. Talvez por isso não resulte ser uma tarefa fácil transcender as
fronteiras e as limitações dos "dogmas do momento", aos quais, de uma
maneira ou outra, o grosso dos juristas continuam atados e que os cegam
ante a evidência de que direito não poderá seguir suportando, por muito
mais tempo, seus modelos teóricos elaborados sobre as construções meramente
especulativas, completamente alheias à tarefa de estabelecer vínculos
adequados com as dinâmicas profundamente enraizadas na natureza humana.
Não devemos (o que pressupõe que não podemos) olvidar que a moral e o
direito estão entre os fenômenos culturais mais poderosos já criados pela
humanidade e que precisamos entendê-los melhor se quisermos tomar decisões
jurídicas e/ou éticas bem informadas e justas. Somos antes de tudo animais
e tudo o que seja fazer uma abstração da dimensão natural do ser humano,
sua natureza biológica e sua origem evolutiva, é falso. O objetivo de uma
boa formação jurídica deve ser o de fomentar a virtude de compreender
melhor a natureza humana e, a partir daí, tratar de fomentar a elaboração
de um desenho institucional e normativo que permita a cada um conviver (a
viver) com o outro na busca de uma humanidade comum. O modo como se
cultivem determinados traços de nossa natureza e a forma como se ajustem à
realidade configuram naturalmente o grande segredo do fenômeno jurídico e
da justiça e, consequentemente, para a dimensão essencialmente humana da
tarefa de elaborar, interpretar, justificar e aplicar o direito. Enfim, de
um direito que há de servir à natureza humana e não ao contrário.
Quando Newton reconheceu que havia chegado muito longe na compreensão
de algumas das leis mais importantes da natureza, admitiu que o sucesso se
devia ao fato de ele ter se erguido sobre os ombros de gigantes. Mas Newton
esqueceu um pequeno e fundamental detalhe: o fato de que os gigantes que o
precederam - assim como ele próprio- só (e somente só) conseguiram manter-
se em pé porque uma multidão de mulheres e homens de tamanho comum os
ajudou a crescer e a se desenvolver, graças a seus genes, seus cuidados e
sua inata faculdade/sentimento moral. Poucas filosofias da moral e do
direito poderão ignorar este fato. E tê-lo descoberto é um mérito especial
das ciências da vida que se ergueram sobre os ombros de Darwin.





-----------------------
( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] Uma atitude similar à descrita por Paul Watzlawick: "Un borracho está
buscando afanosamente bajo un farol. Se acerca un policía y le pregunta qué
ha perdido. El hombre responde: «La llave». Los dos hombres buscan la
llave. Al fin, el policía pregunta al hombre se está seguro de haber
perdido la llave precisamente ahí. El hombre responde: «No, aquí no, allí
detrás, pero allí está demasiado oscuro». ¿Le parece absurda esta historia?
Si cree que sí, busque también usted fuera de lugar".
[2] Em um determinado momento do filme "O Show de Truman", um jornalista
pergunta ao produtor: "Como é que Truman nunca chegou a suspeitar sequer
qual era a verdadeira natureza do mundo em que vivia?". Ao que o produtor
responde: "Porque tendemos a aceitar a realidade do mundo que se apresenta
a nossos olhos". Quer dizer: aceitamos a realidade tal e como se nos
aparece e não nos fazemos mais perguntas – no nosso caso, essa fração
pasmosamente pequena do direito que nos ensinam.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.