O lugar da enunciação calabresa em Porto Alegre

September 29, 2017 | Autor: Rosemary Brum | Categoria: History, Gender Studies, Transnational migration
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O lugar da enunciação calabresa em Porto Alegre ROSEMARY FRITSCH BRUM Esse texto trata de sonhos dos imigrantes de Morano-Calabro, em especial de como fazer, vencer, viver numa cidade que foi e ainda é a projeção desses sonhos. 1 A Merica encerrava todas as possibilidades. Muitos já tinham parentes aqui instalados desde fins do séc.XIX, vindos dos países do Prata ou de outros continentes. Não se tratava mais do grande movimento migratório do período de Unificação da Itália, que precipitara as grandes empresas de colonização que rasgaram o Brasil. Não, esses eram dirigidos para as cidades, seriam seus pequenos comerciantes, artesões mestres na madeira, mármore, queijos. Depois seriam seus médicos, advogados, professores, jornalistas, arquitetos, escritores Orgânicos inclusive, enfim, profissionais liberais. Quando aqui chegaram os primeiros, como poderiam saber que esse período seria conhecido como entre guerras? Portavam as levas dos anos 20, a desesperança com a promessa iluminista de progresso e superioridade da razão humana. Estavam desassossegados com a extensão da crise social e econômica na Itália, dada a guerra européia de 1914-1918. A Merica encerrava todas as possibilidades. Muitos já tinham parentes aqui instalados desde fins do séc.XIX, vindos dos países do Prata ou de outros continentes. Não se tratava do grande movimento migratório do período de Unificação da Itália, que precipitara as grandes empresas de colonização que rasgaram o Brasil. Não, eram dirigidos para as cidades, seriam seus pequenos comerciantes, artesões mestres na madeira, mármore, queijos. Depois seriam seus médicos, advogados, professores, jornalistas, arquitetos, enfim, profissionais liberais. Graças a uma férrea resistência, matizada por muita flexibilidade entre não ofertar tudo à cidade de recepção e assegurar relações simbióticas com a cidademãe, celebram mais uma vez o gemellaggio entre Porto Alegre com a cidade do sonho, agora a mítica Morano. Foi longo o caminho percorrido. Iniciemos por conhecer Angelina. Angelina Sanzi Ferraro2 conta na entrevista que o encantamento por Porto Alegre iniciou pelas cartas do irmão Luis que se encontrava em Porto Alegre desde 1910. Quando da realização da entrevista ela estava com 87 anos, nascida a 19 de setembro de 1915, chegou em Porto Alegre em 1936. Descreve como “a minha cidade até hoje, Morano- Calabro, está lá em cima”. Lá em cima é a foto panorâmica de Morano- Calabro, no Monte Polino. “Mas posso dizer como é que é: muito boa, muito pitoresca, muito ... como é que eu vou dizer ...“A zona montanhosa do Maciço Polino onde Morano foi edificada, destoa de outras “Calábrias”.

Toda residência ou local de trabalho de moranes costuma ostentar, no local de honra, fotos panorâmicas da cidade de Morano-Calabro, no Monte Polino, onde se pode ver que existe uma rua chamada Porto Alegre.O termo “pitoresco”para descrever Morano, freqüentemente utilizado, deve sua forma de ocupação no processo histórico da região, aliada ao acidente geográfico do Monte Polino. Esse obriga a ocupação urbana numa espécie de carretel e sua edificação em pedra remonta ao período pré-moderno, com a área rural colada à urbana. O irmão Luis é o desbravador do clã. Chegou em Porto Alegre com 24 anos. Solteiro. O passaporte e a passagem foram pagas pelo pai e à época não havia necessidade do “Ato de Chamada”, ou de “Lavoro “medida adotada posteriormente para conter a imigração. Luis morou perto do Capitólio, no Seminário, com outros solteiros. E como contava que “o primeiro que chegava colocava a panela no fogo”. Lembra ainda dos comentários sobre a cidade, sem luz na rua, com os bondes puxados por burros. Esses Seminário funcionava junto à Catedral metropolitana , como uma pensão para jovens imigrantes solteiros. Luis é quem chama os demais, agora já era através do “Ato de Chamada ou de Lavoro. Seus argumentos para atrair os parentes iam por conta das maravilhas daqui: ” ele dizia para o meu pai, que trabalhava na chácara: ‘você vai durar 10 anos a mais’. Sabia o que dizia: nesse momento Porto Alegre é um importante mercado de trabalho urbano. Angelina vai morar provisoriamente com o irmão, na Lima e Silva e trabalhar em armazém até casar e ir morar na Santana e após Glória, em 1939, até o presente.

Sua mudança de residência acompanha a localização de italianos na cidade, assim como o crescimento dos bairros: em 1920 o Centro cresce 21%, com seus 33.000 moradores; a Azenha 30%, com 46.000 moradores; a Glória 9%, com 15. 000 moradores; a Floresta 23%, com 35.000 moradores; o bairro São João 15% ,com 23.000 moradores. Os primeiros tempos serão os da sub-locação ou de “favor”, e a grande concentração de italianos, em geral, será na Cidade Baixa e no Bonfim.3

Vão encontrar modernidades em Porto Alegre.Em 1920 surge a primeira rádio, a Rádio sociedade Rio-grandense, seguida da Gaúcha em 1927, Difusora em 1934, a Farroupilha em 1935. Mais que os jornais, as rádios vão desempenhar decisivo papel para os italianos que chegam, ainda que colocadas sob suspeita à época da Segunda guerra mundial. Ufanista, em 1928 o jornalista Humberto Gotuzzo, correspondente do jornal Correio do Povo da Companhia Caldas Jr. Sediado no Rio de Janeiro, vibra: “estamos superiores ao Rio. O telefone automático, a grande letra no alto dos bondes e a proibição da descarga livre nos automóveis”!4

É sensato que Angelina compare as situações: “mas lá não estava mal, viemos para cá, não estava mal, para comer, beber, nós estávamos muito bem. Tínhamos uma chácara, nós trabalhávamos, comíamos, não faltava nada. Ao contrário, nós fazíamos e tínhamos azeite para o ano inteiro.”

O “não estava mal não corresponde aos fatos e menos à imagem construída sobre a Calábria. Há esterótipos que povoam a imagem do sul da Itália, da qual ressente-se Morano, tais como a marginalidade social e econômica, a criminalidade organizada e seu isolamento do Estado italiano. O que terá provocado isso ainda está sendo removido pelos historiadores e cientistas sociais. Para Piero Bevilacqua :

Por séculos o mecanismo regulador sobre o qual se regia a vida regional foi constituído por uma dupla economia: aquela da produção próxima ao mar e ligada ao mercado internacional e a realidade territorialmente mais afastada e interna, domínio do auto consumo camponês, agrário. Neste último âmbito e dimensões que tornou-se progressivamente relevante e dominante, a mão de obra, que noutro pólo da vida regional se prendia ou entrava no mais tranqüilos e protegidos circuitos da comercialização nacional.Talvez foi em 1905, o ano no qual os tantos terremotos, funestos e recorrentes na região, golpearam vários centros das três províncias, que a Calábria se impôs definitivamente na percepção da opinião pública nacional com o tratamento e as características que depois tem sido conotada[..]. No início do século XX, na área norte-ocidental da península setores dinâmicos da burguesia empreendedora realizavam a nossa primeira revolução industrial; um novo centro político reformador se erguia para guiar o governo; o processo de urbanização investia e ampliava antigos centros históricos, ou fazia surgir os novos, radicais novidades de costumes e de standart de vida destacavam os ambientes do modo provincial; a emigração para a América, o mais imponente fenômeno de transferência demográfica que menos assistido que agora, esvaziava o campo e a pequena propriedade agrária. Era um novo mundo em transformação, portador de aberturas culturais e mudança de sensibilidade, mais ainda não desligado das preocupações de controle e de conservação social, que começava a estabelecer para a Calábria como uma região diversa, diferente também da realidade que compunha o Mezzogiorno[...]. (A imagem não apresenta, ainda hoje) “a Calábria que se urbaniza, dotada de estradas, de estrutura administrativa, animado por outros grupos sociais e participando dos costumes do mundo contemporâneo, mas aquela que testemunhou a persistência social mais lacerante e 5 dramática”(tradução da autora) .

Para a imagem no século XXI do Mezzogiorno, a Regione da Calábria, apresenta importante setor agrícola, com o cultivo da oliveira e de cítricos. O setor industrial é ainda muito manufatureiro, cerâmica e tecido. As indústrias estão em Crotone (química e metalurgia), Vibo Valentia, Regio Calábria (mecânica) e Catanzaro. Há universidades, dinamismo, cultura. Crotone e Vibo Valentia são duas províncias recentes e datam de 1991.

Angelina personifica a união desses tempos. É um programa identitário, com certeza. Entre temporalidades e espaços formados por singularidades, os calabreses estão conscientes de que uma história seguiu lá, sem eles, ainda que esporadicamente visitem os familiares- é obrigatória essa visita e onde soam os apelidos de família que só eles conhecem- e há uma história na cidade de adoção.

A história que seguiu sem eles é a modernidade italiana. A que deixaram lá é a mítica. A história de Morano remonta à Antigüidade, revela uma sucessão de imagens pregadas na memória social que é compartilhada entre “os daqui e os de lá”. Talvez o elo que mantém a coesão do grupo, até hoje, resida na história secular que está sendo reconstruída, onde o passado remoto, a sua decadência no século XIX, as guerras e o insucesso da Unificação em alcançar o sul italiano possam alcançar até o seu presente. A situação atual da Calábria pode mudar a imagem congelada e fundir-se na grande narrativa italiana. Os italianos desconhecem a realidade das comunidades de italianos e seus descendentes espalhadas no mundo; esses, por sua vez, desconhecem sua própria história. Mas a globalização está refazendo essa descontinuidade, ao seu modo.

Para os que emigraram ao fim do século XIX, essa história retém o período da decadência de Morano, a imagem desolada das casas de pedra e sua miséria paralizante. Resumida a uma comunidade agrícola que, como outras da Itália, via a partida de seus habitantes aumentar ano a ano, da noite para o dia as casa abandonadas assinalavam o êxodo.Os números são impressionantes: se em 1870 e 1880 partiam em média dois calabreses em mil habitantes, entre 1901 e 1910 salta para 32, principalmente nos distritos de Cosenza, Nicastro e Castrovillari, ao qual Morano pertence.6 O início dessa perda galopante de população gira em torno da Unificação, quando Morano, com seus 5.000 habitantes, era considerado município médio. Partem agricultores, em sua maioria, de Castrovillari, Laino e Cassano, entre outros municípios. As estatísticas das décadas seguintes demonstram a involução demográfica da cidade, com exceção da época da Unificação, quando cresce até um pico, para então iniciar um descenso contínuo. A decadência da Calábria já foi enunciada, embutida na série de problemas que criaram a Questão Meridional.7 Esses tempos ficam pregados nos relatos dos moraneses, a cidade de pedra insiste em fixar tais cenários. O mito de fundação de Morano perde-se nos tempos em que suas terras são férteis, à época que o rio Sibari banha o vale próximo à cidade. Isto, porque as montanhas do Monte Polino protegeram Sibari da população indígena da polis italiota, que nem mesmo os colonos gregos logravam dominar.8 Os historiadores que ajudam a contar a história dizem como, depois da fundação da primeira colônia grega de Reggio, surgiram as outras comunidades

da Magna Grécia (a opulenta Sibari, Crotone, Locri) as quais determinaram profundas ligações com o Oriente. Mais helênicos, mais orientais, os meridionais vão construindo sua diferença cultural também na culinária, na sociabilidade do grupo familiar e na peculiaridade lingüística. Placanica descreve estes tempos, antes da chegada dos romanos, quando entre o terceiro e o segundo século A. C. a região é dominada e suas florestas são destruidas para alimentar a urbanística e a frota dos vencedores.9 A adjetivação, “Calábria forte e valorosa”, demonstra-se na sucessão de invasões, incluindo o período bizantino entre 553 e 1060, quando se dá a penetração dos longobardos. Os sarracenos passam pela Calábria mas não se fixam, fazem as suas razias. Morano foi assim ocupada por godos, visigodos, longobardos, gregos-bizantinos e normandos. Em 1000 defende-se a cidade contra os “mouros”, daí a cabeça de um mouro encimando o escudo de armas da cidade, conforme a tradição. À época de Frederico III da Sabóia, Morano é uma Cidade Régia. Nova distinção, uma vez que no restante da Calábria há feudos. Uma situação que se revela excepcional porque, em todo posterior domínio da Casa de Anjou e da Casa de Aragão, o feudalismo dominou. O sul da Itália continental fica em poder da casa de Anjou até 1434, quando Afonso, rei de Aragão, consegue impor seu domínio a partir de Nápoles. A Casa Sanseverino, no território moranes desde 1452, com o estabelecimento de um mosteiro, em 1458, obtém um feudo e estabelece direitos de feudatário. No século XVIII, enfim, o ramo espanhol criou o Reino de Nápoles, na Itália meridional. Constantino escreve sobre a prosperidade da cidade. No século XVI Morano é próspera, destaca-se na manufatura de tecidos e o comércio. No século XIX os laticínios ainda garantem os famosos queijo cacciocavallo e os rebanhos ovinos e caprinos fornecem a matéria-prima para as manufaturas têxteis. Os tecidos de lã agregam prosperidade à Morano em relação às demais cidades da Calábria. Nos meados do século Bixio conta com 7. 000 habitantes, quando dos 400 demais municípios da região apenas dois possuíam até 10. 000 habitantes. 10 Giuseppe Lauria introduz no final do século XIX maquinaria para a cardadura, fiação e tecelagem de lã. Tudo isso está prestes a acabar. Paulatinamente, desaparece a indústria têxtil moranesa, levando ao declínio os trabalhos das fiandeiras e das atividades exercidas na criação e na pecuária caprina e ovina. Fica nítido, pois, como para Angelina foi decisivo o abandono do trabalho na chácara. E de como confere importância ao fato de que não foram como os colonos antigos, que vieram migrar. Ë uma migração urbana, familiar, moderna. O sonho de vir para o Brasil foi um projeto mentado durante um ciclo familiar. Diante de uma foto, na entrevista, ela ordena o processo “primeiro veio meu irmão mais velho (Luis), depois veio o meu pai e depois veio o outro meu irmão.Depois vieram

eu, minha mãe, meu irmão, Viemos em quatro na genealogia: eu sou a filha do meio das mulheres. Primeiro o Luís, depois a Carmela, depois o Salvador, depois eu, e depois minha irmã pequena”.

Ao emigrar, Angelina deixou de acompanhar a sobrevivência da cidade. Enviam dinheiro para lá os que emigraram Aliás, como é próprio da rotina de qualquer processo migratório. Existem comunidades calabresas na Suíça, França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Austrália,Canadá, EUA, Argentina, Uruguai, além do Brasil. Todos certamente quando emigraram depararam-se com a modernidade. Mesmo nos anos 20, a visão comparativa de Angelina foi a de que estava diante de uma metrópole. E seus signos de ascensão social. Para ela, foi logo na chegada, recém- saída do navio, quando seu irmão a presenteia com um importante símbolo de elegância feminina, e apenas reservado à elite italiana, um chapéu.

O ato contido no uso do chapéu, para uma imigrante dos anos 20, traduz um convite à democracia. Ou a introdução aos habitus da sociedade burguesa : signo de pertencimento a uma determinada classe social, não aristocrática, como na Itália. Como também um apresentar-se a uma sociedade mais fluída, emergente, enfim, a brasileira. Novos códigos necessários a assimilar. Como a língua, outros ritos deverão substitutir aqueles deixados em Morano. Ir ao cinema,por exemplo, era mais admissível que freqüentar festas fora do grupo. Em 1927 o moranês José Faillace, seguindo a vocação de construtores e consumidores de cinema, manda construir um cinema à Avenida Borges de Medeiros, pelo arquiteto Domingos Rocco. Um projeto de um salão para duas mil pessoas, uma sala de recepção, sala de espera e bar. Em 1935 Angelina participa do prazer portoalegrense pelo cinema, pois a cidade dispõe de 22 cinemas para uma população de 250 mil pessoas.

Os ritos sociais para os moraneses envolveram freqüentar clubes, namorar, casar, constituir família, estudar. Falemos de Dalva. Dalva Demartino Cassará (marido sicialiano) chegou em Porto Alegre em 1955, sua casa era no centro, uma quase em frente ao edifício Capitólio, que agora tem o edifício Dalva, cujo terreno o pai dera “para essas companhias construtoras”. Professora de italiano da ACIRS, aprende italiano por hobby, até tornar-se profissão até hoje. Seu pai pode ser definido como um democrata, arredio aos costumes feudais de Morano. Atravessou o Atlântico “de seis a oito vezes, até radicar-se em Porto Alegre, em 1935, no comércio”. Quando preparava-se para buscar a família, é deflagrada a Guerra e foram cinco anos sem receber carta nenhuma, até poderem cruzar definitivamente o Oceano.

Para a elite italiana ao qual seu pai pertencia, desde 1920 havia opções, desde o Clube do comércio, O Clube Caixeral Porto-alegrense, a Sociedade Leopoldina, a Associação dos Empregados do Comércio de Porto Alegre e a Sociedade Italiana. O Clube Jocotó também foi mencionado por Dalva. Esse, sem sede, liderado por Mário Totta, parte do bairro Tristeza até o centro, alugando salões para centralizar no decênio a vida cultural e artística de Porto Alegre. Hoje teria mais uma opção: o Centro Calabrese. Uma sociedade que se perdeu na memória dos moraneses foi a Società italiana Moranesi Uniti, de 1924, ninguém lembra, mas para os comemorativos do cinqüentenário da colonização italiana no Rio Grande do Sul (1875-1925), institui-se a Sociedade, sendo seus iniciadores Angelo Perrone, Domenico Faillace, Leonardo Perrone, Giuseppe faillace, Rocco rosito, Nicola Faillace, Carlo Mainiere, Rocco Gallo, Natale Conte, Attilio Mainiere, Francesco Faillace, Januário Conte, Biaggio Marroni e Pietro Faillace.11 Meu pai e esse tio contavam que eles iam à sociedade porque eram da elite dos italianos porto-alegrenses. Reuniam-se quando era Natal, festa ou Reveillon, todos na confeitaria Rocco (de Nicolau Rocco, moranês como ele) que era famosíssima. Ele é quem construiu o maravilhoso prédio que agora foi tombado. O pai nem ia tanto que ele era reservado, não era muito de festa, mas meu tio sim. Esse tio era barbeiro, dono da Barbearia Roma que ficava na Rua da Praia. Não existe mais. Trabalhou até ter um enfarte. Outro tio, o Leão, irmão da minha mãe, também tinha barbearia, dava banhos, tinham suas banheiras. Essa barbearia era lá no antigo Grande Hotel que era famosíssimo. Tio Leão se dava muito com o dono do Grande Hotel [essa elite animava a vida cultural] O Teatro São Pedro, as óperas vinham sempre, vinha companhia da Argentina que traziam as montagens, então eles tinham uma vida ativa culturalmente. E havia o Instituto Dante Alighieri que era um pouco de tudo: escola, sociedade e instituto. Era aqui na Duque, se não me engano.

Seguiam à risca a territorialidade sexual. Dalva tem uma foto para mostrar, a de família, onde está o tio paterno que praticava bocha e freqüentava o Prado. Prado?, dizia o tio [que não era onde está agora], era lá que os homens se combinavam as turmas. Já o lugar social da sociabilidade das mulheres era em casa mesmo:

Então nos fins de semana quando a gente estava na Demétrio, todos perguntavam se tinha festa. Porque todos os parentes iam visitar a mãe e o pai. E os homens iam jogar carta e a mãe já preparava comidas assim. Isso amenizava um pouco aquela saudade da terra, porquê todo mundo falava em italiano. Nós tínhamos muita amizade e nós íamos dançar na Faculdade de Engenharia, que começava às nove horas e terminava à meia-noite, uma hora. Então quer dizer que aquele círculo de amizade foi se formando cada vez mais.

A formação de leitores acontecia como no caso de seu pai, no convívio com o grupo da editora Globo, de Henrique Bertazo. Assim como a fruição artística, o cinema dependia da posição social. É isso aí, meu pai tinha essas idéias, muito inteligente. Era um filósofo [lia] O Correio do Povo era o melhor meio de comunicação [o jornal italiano demorava pra chegar, vinha de Buenos Aires] Adorava rádio, depois que veio a rádio foi a principal coisa para falar português [leitura] Ele lia muito. Acho que eu puxei dele, eu não sei o por quê, eu adoro ler. E ele tinha esse hábito, me deixou essa herança. Dizia: “a leitura abre muitas portas, viajas com a imaginação”. Lia-se de tudo. E o cinema? Quando cheguei era mais aquela curiosidade de saber e aquele interesse em conhecer algo então perguntavam para mim, eram muitos italianos e filhos de italianos. Isso na época daquele realismo e dos filmes italianos, ai meus Deus, aqueles artistas, aquela coisa toda que o pessoal se encantava. Quer dizer, havia aquela curiosidade. E aí começou: “como é a música, o cinema. O Festival de San Remo era transmitido, tinhs aquelas canções bonitas.

Para finalizar, as falas de um intelectual orgânico do grupo calabrês, representante da Regione e, principalmente, arguto observador de seu tempo. Com os leitores, Carmine Motta. Porto Alegre em 1961. Importante perceber a reflexão sobre a trajetória da formação da identidade do grupo, o que sintetizou os desafios dos meridionais no espaço social de Porto Alegre.12 Carmine chega a Porto Alegre em 1961.Sua família aqui já se encontrava. Seu avô ficou indo e vindo, combateu na Primeira guerra mundial, esteve envolvido numa complexa diáspora familiar acentuada pela segunda guerra, mas ao fim reuniu toda a família em Porto Alegre e lê em Morano só restava Carmine. Nos anos 60 a Itália era atraente, oferecia para um jovem de 19 anos. Mas opta pela família toma a direção de Porto Alegre. Alfaiate de formação italiana, vai trabalhar na Indústria Renner, até estabelecer-se por conta própria. Um traço moranes aparece quando lá pelas tantas avisa: “até vou te contar uma historinha”. Quando trabalhava na empresa, é claro que eu não podia cantar. Logo que fui trabalhar na empresa, na Itália o pessoal canta, trabalhando (risos) aí comecei a trabalhar e a cantar. E veio o dono, o chefe da seção: “- italiano, não dá para cantar”. – “Ora, por quê, qual é o problema?” – “Não dá para cantar porque o vizinho não gosta.” Não tinha coragem de dizer porquê não se usava, sei lá por quê. E ele disse que era o vizinho e aqui não dá nem para cantar..

Quando o entrevistei, outros aspectos foram abordados, como a Porto Alegre dos anos 60, o retorno a Morano, a identidade étnica, a brasilidade e assim por diante. O que acrescentou foi o grupo visto pela imagem que a cidade terá feito dele, tal como a Calábria e o peso da sua imagem nos tempos. Fiquemos para encerrar, com Carmine. Eu sou um cara diferente, porque eu me realizei mas não posso esquecer aquilo que me valoriza, aquele passado na Calábria, a minha saída. Eu conto pra meus filhos a minha história: como foi e como não foi. Eu acho isso uma valorização, mas tem pessoas que não, que ocultam. Não constrõem a mesma história só que chegam aqui e não sabem de mais nada, não se lembram de mais nada. Ocultam e por quê? E o filho? Esse é um fato interessante dentro da comunidade dos calabreses de Porto Alegre[...]. Na comunidade calabresa, já na primeira geração, a característica profissional é diferente, os filhos não desempenham a mesma atividade dos pais, necessariamente.[...].A guerra atrapalhou um pouco também. Então não tiveram capacidade de colocar a história real para que ela fosse vista pelos filhos como uma coisa importante vinda do pai, ao contrário. E também porque no meio social o cara levantou vôo muito alto, já de primeira. Então o filho que se forma, o pai dele é pessoa simples, o cara que tem açougue, o cara que trabalha no comércio. De repente, o filho se torna um médico famoso ou um engenheiro que começa a freqüentar a alta sociedade portoalegrense, atrapalha o pai ser açougueiro, a origem do pai. É uma coisa natural. Então se ele consegue ocultar dentro da família, ele é um tipo. Dentro da sociedade é outro, por que ali convive com outros doutores e os outros doutores são filhos de pessoas ilustres. É, são pessoas de certo nível social, então ele se atrapalha um pouco. E nesses últimos anos nós resgatamos, ... dez ou onze anos para cá começamos a resgatar. E começaram a aparecer os intelectuais.

Ao que parece está superada também a ausência na literatura da perspectiva do olhar da alteridade. Estrangeiros e seus descendentes são absorvidos como aqueles que entram na cidade pelo caminho do sonho dos que os antecederam. Como fantasma, devem decifrar o estranho, embaralhar as referências. Sabem que precisam abrir a guarda dos donos da memória e marcar seu lugar. Os calabreses conseguiram.

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BRUM, Fritsch Rosemary. Uma cidade se conta: Imigrantes italianos e narrativas no espaço social da cidade de Porto Alegre (1920-1937). Doutorado. PPG em História, PUCRS, Porto Alegre, 2003. Recortei os anos entre 1920 e 1937, período entre-guerras, pouco examinado pela historiografia, embora chegue até o presente, através das entrevistas. 2 Entrevista concedida a autora em 29/011/2002. Porto Alegre. Ainda Conceição Ferraro Marranghello e Delmar Caetano Marranghello. 3 FERRETTI, Rosemary Brum. Uma casa nas costas: análise do movimento social urbano de Porto Alegre 1975-1985. Mestrado. PPG de Antropologia, Política e Sociologia. UFRGS, 1985. 4 Vários. Correio do Povo, Porto Alegre, ano XXXIV,n.71,p.3,24 mar.1928

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BEVILACQUA, Piero. E um terremoto fissò l’immagine. In: GRISOLINA, Rosanna. Almanacco della Calabria. Rassegna Annuale di vita e cultura. Cultura Calabrese.n.13, Catanzaro, 1992. p.32; 6 BALLETTA, Francesco.Emigrazione e struttura demográfica in Calábria nei primi cinquanta anni di unità nazionale. In: BORZOMATI, Pietro (Org.). L’emigrazione calabrese dell’Únita ad oggi.Roma: Centro studi Emigrazione, 1982. p.11. Para se ter outra noção, ver que para o Brasil, entre 1876 e 1925,chegaram:Calábria:113.155;Vêneto:365.710;Campânia:166.080; Lombardia:105.973; Abruzzi/Molise:93.020; Toscana:81.056; Emilia Romagna:59.877; Basilicata:52.888; Sicília: 44.390; Piemonte:40.336; Apúlia: 34.833; Marche:25.074; Lazio:15.9818; Úmbria:11.818; Ligúria: 9.328; Sardenha: 6.113. In: Annuario statistico dell’emigrazione italiana da 1876 al 1925, citado por ALVIM, Zuleica.O Brasil italiano.(1880-1920) In: FAUSTO, Boris (Org.) Fazer a América, a imigração em massa para a América Latina.USP, São Paulo, 2000.p387. 7 CINCARI, Gaetano. Storia della Calabria all”Unità a oggi. Roma-Bari, Laterza, 1982,p.104. 8 CONSTANTINO, Núncia Santoro de. O italiano da esquina: imigrantes na sociedade portoalegrense.Porto Alegre:EST,1991.pp.81-86. 9 PLANICA, Augusto. I caractteri originali.In:BEVILACQUA, Piero; PLANICA, Augusto (Orgs.). Storia d’Italia–le Regioni dall’Unità ad oggi: La Calábria. Turin: Einaudi, 1985.p 216. 10 CONSTANTINO,op.cit.pp.86-87. 11 CROCETTA, B. Le associazioni. In: CINQUANTENARIO DELL COLONIZZAZIONE ITALIANA NELLO STATO DEL RIO GRANDE DEL SUD. “1885-1925”.Porto Alegre: Globo; Roma:Ministero degli Affari Esteri, 1925.p372.; 12 Entrevista concedida a autora em 16/07/2001. Porto Alegre.

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