O Marco Civil da Internet - desafios para a educação

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        Artigo para o EPENN 2014 ­ Trabalho encomendado para o GT 16 ­ Educação e Comunicação   

O Marco Civil da Internet - desafios para a educação Nelson De Luca Pretto ­ [email protected]  Maria Helena Silveira Bonilla ­ [email protected]     

Introdução Em  meados do século  passado, mais precisamente durante o final da década de 1960 e  ao  longo  das  duas  seguintes,  iniciava­se,  basicamente  nos  Estados  Unidos,  a ideia de  articular­se  as  redes  de comunicação  de dados  já  existentes.  Começa  a  configurar­se  a  criação  de  uma  rede das  redes, uma metarrede,  que  veio  a  ser  conhecida, rapidamente  como  Internet,  ainda  escrita,  naquele  tempo,  com  o  I  maiúsculo.  Jovens  programadores  espalhados  pelos  laboratórios  de  universidades  e  centros  de  pesquisa  da  Califórnia,  Massachusstes  e  Utah,  começaram  a  trocar  informações  via  rede  de  dados,  configurando­se,  nos  anos  1970,  a primeira  rede  denominada  ARPANET  (LEVY, 2012).  Nos  anos  1980  essa  rede  se  desdobra,  constituindo  a  MILNET,  exclusiva  dos  militares  americanos,  e  a  ARPNET é expandida para outras  universidades e centros  de  pesquisa  no mundo inteiro, com o nome de Internet. Era uma internet de uso quase que exclusivo da  academia.   Na  final  da  década  de  1980,  Tim  Berners­Lee,  trabalhando  na  Organização  Europeia  para  Investigação  Nuclear  (CERN  ­  Organisation  Européenne  pour  la  Recherche  Nucléaire,  em  frances),   o  Laboratório  Europeu  de  Partículas  Físicas,  propôs a ideia  de  um  Identificador  Universal  de  Documento  (Universal  Document  Identifier)  para  acessar  cada  informação  disponível na rede,  ainda  uma  rede  pequena e interna aos  laboratórios  de  pesquisa  (BERNERS­LEE,  1998).  Mais  adiante,  em  1990  escreveu  um  programa  chamado  "WorldWideWeb",  um  hipertexto  distribuído  ainda  somente  dentro  da  comunidade  científica  e,  no  verão  de  1991,  distribui  mais  amplamente  o  programa, 

transformando  radicalmente a ideia  de  rede. Estava criada, assim, a World Wide Web, a  conhecida  Web  (www),  a   interface  gráfica  para  o  uso  da  rede,  e  que  terminou  configurando­se quase  como  sinômino  da  própria internet. O importante a destacar desta  história  é  que  todo  esse  movimento  liderado  por  Berners­Lee  poderia não ter  dado em  nada  se  ele  tivesse  patenteado  a  criação.  Como  afirma  Howard  Rheingold,  outro  dos  pioneiros  da  internet,  “ele  recusa­se  a  patentar  a  solução. [...] Ele queria  usá­la.  E  sabia  que  seria  mais  útil  para  ele  e  outros  cientistas  se  muito  mais  pessoas  a  usassem”  (RHEINGOLD, 2012, p. 147, tradução nossa).  A partir  de então,  a  web se populariza, chega  a toda a sociedade, com a abertura para o  uso  comercial.  Desta   forma,  em  tese,  qualquer  cidadão  podia  estar  conectado  à  rede,  desde que tivesse uma linha telefônica, um modem e um local (provedor) para poder fazer  a conexão com o primeiro ponto da rede mundial.  Importante  ressaltar  que  a  principal  característica  de  todo  esse  movimento,  exaustivamente  já   descrito  e  analisado  por  diversos  autores  e  inúmeros  trabalhos  (CASTELLS,  2003;  LEVY,  2012,  RHEINGOLD,  2012  e  outros),  foi  conectar  redes  diferentes, sem procurar  transformar cada uma delas em uma única rede. A partilha livre e  aberta  dos  códigos  e o uso cooperativo dos recursos possibilitou a criação de protocolos  para  essa  comunicação,  e  o  protocolo  TCP/IP  (Internet  Transfer  Porotocol/Internet  Protocol)  terminou  se  configurando  como  sendo  o  protocolo  de  comunicação  da  rede,  que  viabilizou   a  troca  de  dados  entre  diversos  computadores  espalhados  pelo  mundo.  Outro  princípio  que  sustentou  o  funcionamento  da  internet  ­  e  que,  em  teoria,  como  veremos  ao longo deste texto, ainda deve sustentá­la ­ é o princípio de que todo dado  que  é  recebido  por  um  nó  na  rede  deve  ser  repassado  adiante,  sem  nenhuma  cobrança  e  sem nenhuma verificação do conteúdo deste dado.  Estes  princípios  são  a  base  da  internet  e  possibilitaram  o  desenvolvimento  da  multiplicidade  de aplicativos  que  permitem a circulação de informações e a comunicação  generalizada,  pois,  uma  vez  que  cada  projeto  é  disponibilizado  na  rede,  conta  com  o  apoio  e  colaboração  de  muitos  desenvolvedores  (hackers),  profissionais  ou  amadores,  do  mundo  inteiro,  para  seu  aperfeiçoamento.  Ainda,  a  circulação  de  informações  e  a 

comunicação ampla permitem que cada sujeito, em qualquer ponto do planeta, desde que  conectado,  possa  constituir­se  num  ponto  “emissor"1 ,  compartilhando  suas  ideias,  sua  cultura,  seus  referenciais  e,  assim, contribuir  para  uma  visão mais ampla  e  complexa da  própria  sociedade.  Portanto,  esses princípios  devem  ser defendidos  a todo  o custo, sob  pena de  não  termos,  caso  eles sejam  afetados, mais a possibilidade de usar a rede com  a liberdade que  caracterizou o  seu  nascimento e o uso que dela estamos fazendo, desde  os primeiros anos até os dias de hoje.   Mas  nem  tudo  se  desenvolveu,  ao  longo  deste  tempo,  da  maneira  como  se  previa  nos  primeiros anos. As grandes corporações de telecomunicações começaram a perceber na  internet,  de  um  lado,  um  bom  negócio  que  precisa  ser  “melhor  administrado”,  e  alguns  governos,  de  outro  lado,  um  negócio   que  demandaria  ser  controlado.  Inicia­se  uma  verdadeira  guerra  pelo  controle  do  funcionamento  da  internet,  com  os   modelos  de  negócios  das  grandes  corporações  de   telecomunicações  assumindo  um  papel  protagonista  neste  embate.  Mais  uma  vez  trazendo  Howard  Rheingold,  ao   discutir  os  movimentos  das  grandes  corporações  que  ambicionam  cercar/controlar  a  rede  (enclosure), é importante considerar que  o  conflito  sobre  quem  tem  o  direito  de  usar  a  mídia  digital  para  criar  e  disseminar   a  propriedade  intelectual  é  uma  guerra  pelo  controle  político  do  poder  de  informar,  persuadir,  educar,  debater   e  inovar.  Argumentos  sobre   a  'neutralidade  da  rede'  ou   o  licenciamento  do  espectro  eletromagnético  pode  exigir  que  você  seja  tanto  nerd de tecnologia como  um  expert  da política para compreendê­los, mas você  pode ter certeza de  que  as  decisões  legislativas  e  judiciais  que  forem   tomadas  agora  determinarão  que  no  futuro  inovadores  terão  que  pedir  permissão antes  de  inventar  a  World Wide  Web ou  uma empresa caseira de um motor de  busca (RHEINGOLD, 2012, p. 213/4, tradução nossa). 

  É  neste  contexto  que,  no  Brasil,  ganham   força  os  debates  sobre  a  criação  de  uma  legislação  própria  para  a  rede,  uma  espécie de  Constituição  para  o  seu  funcionamento,  que  ficou  conhecido  como  Marco  Civil  da  Internet,  que  garanta o direito  à  comunicação 

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  utilizamos  o  termo  “emissor”  entre  aspas,  por  entendermos  que  ele  é  próprio  das mídias  de  massa e,  no  contexto  das  redes  horizontais,  precisa  ser  ressignificado,  indicando  que   todo  participante  dessas  redes  passa  a  ser  um  interagente,  aquele  que,  ao   mesmo  tempo,  recebe,  emite,  participa,  dialoga,  interage,   ou  seja, usa, plenamente, os processos comunicacionais horizontalizados. 

horizontalizada,  sem  discriminação  de  qualquer  ordem,  a  todos  os  cidadãos.  Analisar  esse movimento,  bem como as potencialidades do Marco Civil da Internet, especialmente  para  a  educação,  é  o  objetivo  deste  artigo.  Mas  antes,  importante  se  pensar  sobre  o  direito  à  comunicação  e  as  condições  concretas  da  situação  brasileira,  pois  são sobre  essas bases que podemos pensar a educação brasileira. 

O Direito à Comunicação  

A  comunicação  faz  parte  da  constituição  do  ser  humano,  pois  é  ela  que  garante  a  possibilidade   do  social,  da  relação  com  o  outro,  do  entendimento  entre  os  sujeitos,  da  transmissão  do  saber  historicamente  acumulado,  da  coordenação  das  ações,  do  estabelecimento   de  normas,  o  que  nos   torna,  segundo  Mario  Osório  Marques  (1999, p.  59),  cidadãos  singularmente  autônomos  e  socialmente  atuantes  e corresponsáveis  pelo  mundo  que  temos.  Portanto,  a  comunicação  é  tão  antiga  quanto  o  próprio  homem  e,  embora  a  liberdade  de  pensamento  e  expressão  apareça  como   um  dos  ideários  das  revoluções  burguesas  dos séculos XVII e XVIII, destacando­se nas principais declarações  de direitos dessa época, a exemplo da Declaração Francesa de Direitos do Homem e do  Cidadão,  de  1789,  e  mais  tarde,  já  no século  XX, na Declaração  Universal  dos  Direitos  Humanos,  da  ONU,  de   1948, o  tema  da comunicação, enquanto  fluxo  de informação,  só  passa  a  ser  mais  intensamente  discutido  no  século  XX,  com  a  disseminação  e   empoderamento   dos  meios  de  comunicação  de massa,  constituindo­se  como  uma  área  do conhecimento.   Durante  todo  o  século  XX,  segundo  Eugenio  Trivinho  (1999,  p. 181­182),  procedimentos  práticos,  categorias  e  esquemas  teóricos  pretenderam  dar  fundamentação  científica  à  Comunicação,  convencionando­se  encerrar  o   processo  comunicacional  em  torno  do  emissor  e  do  receptor,  destacando­se  na  relação  entre  eles  mediadores   sociais  e  culturais,  tais como  a  codificação,  o  contexto,  o  canal, a mensagem, o signo, o sentido, o  ruído. Para Raimunda Gomes  (2007), destacam­se  como focos de pesquisa os meios de  comunicação  de  massa,  o  conteúdo  de  suas  mensagens,  sendo  a  informação  a  maior  protagonista  do  processo,  e  o  impacto  dessas  mensagens  nas  sociedades.  Para  esta 

autora,  a  “onipotência  das  chamadas   mídias  obscureceu  por  muito  tempo  a  práxis  do  processo  original:  a  comunicação”  (GOMES,  2007,  p.  35),  embora  alguns  autores   já  denunciassem  as  fissuras  da  teoria  da comunicação  em  voga,  a  exemplo de Brecht, que  fez  a  crítica à transformação  ocorrida com  o  rádio,  que de um meio de comunicação  que  permitia  a  interação  e  a  mobilização  política,  passa  a  operar  na  perspectiva   da  radiodifusão,  com emissão  controlada  pelos  monopólios  e  a  serviço da  lógica  mercantil.  (FREDERICO, 2007)  Foi  somente  no  final  do século XX, com a emergência  das  tecnologias  da informação  e  comunicação,  mais   especialmente  com  a  internet,  que  emerge  um  outro  processo  comunicacional,  em  rede,  horizontalizado,  interativo,  que  permite  a  realização de trocas  simbólicas 

(informações, 

sons,  imagens)  personalizadas,  individualizadas  e 

descentralizadas.   Neste  novo  processo,  as  categorias  elementares  da  então  Teoria  da  Comunicação, segundo Trivinho (1999, p. 182­183),  perdem  o  seu  caráter  distinto,  ora  porque  se  imbricam,  se  sobrepõem  ou  se  mesclam  umas  às  outras,  ora  porque  se  ofuscam  mutuamente,  se  auto­anulam  e  se  desfiguram,  com  a  agravante  de  que  esse  processo implosivo deixa de comprometer  tão  somente  a  natureza  dos  elementos  básicos  para  deixar ainda  em  risco   o  próprio   edifício  esquemático  sob  o  qual  se  finca   a  teoria.  Comparecem  aqui  todas  as características  de  uma  era  da   confusão,  expressão  correspondente  à  fase  atual  da  sociedade  tecnológica.  

  Decorre daí  a  “'liberação'  da  palavra” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 25), ou a hibridização das  funções  de  emissor  e  receptor,  uma  vez  que,  a  partir  dos  sistemas  e  ferramentas  de  comunicação  próprios  da  web  2.0  (blogs,  softwares  sociais,  twitter,  wikis)  e  da  emergência  dos  dispositivos  móveis,  todo  sujeito  social  que  possua  acesso   ao  ciberespaço  pode produzir e distribuir informações, e não apenas consumi­las,  a partir de  qualquer  lugar  do  planeta.  Para  os  referidos  autores,  o  fenômeno  da  “liberação  da  emissão  é  correlata  ao  aumento  da  esfera  pública  mundial  e  da  emergência  de  novas  formas de conversação  e  de  veiculação da  opinião pública, agora também planetária” (p.  25),  o  que  provoca  o  surgimento  de  novas mediações  e de novos  agentes  do  processo  comunicacional. Em consequência, tensões  se estabelecem,  quer  em torno dos modelos 

de  negócios  do  sistema  estabelecido,  que  têm  dificultado  o  acesso  de  boa  parte  da  população  aos  serviços  de  conexão,  gerando  a  chamada  “exclusão  digital”,  quer  na  relação  entre  os  cidadãos  e  os  governos,  quer  ainda  na legislação  que tenta  regular  os  novos sistemas emergentes.  É no bojo dessas tensões que aparece a necessidade de  tomar a comunicação como um  direito  de  todo   cidadão.  O  primeiro  movimento  nessa  direção  se  dá  com a  publicação,  em  1980,  do  Relatório  MacBride2,  da  Comissão  Internacional  para  o  Estudo  dos  Problemas  da  Comunicação, da Unesco. Segundo Venício Lima (2008), o Relatório “foi o  primeiro  documento  oficial  de  um  organismo  multilateral  que  não  só  reconhecia   a  existência  de  um  grave  desequilíbrio  no  fluxo   mundial  de  informação  e  comunicações,  mas  apresentava  possíveis  estratégias  para  reverter  a  situação”, incluindo “as  primeiras  formulações  sobre  o 'direito à comunicação', que abarca o 'direito à informação' e avança  em  relação  às  repetidas  distorções  na  utilização  dos  princípios  de  liberdade  de  expressão  e  de   liberdade  de  imprensa.”  Em  decorrência,  conferências  regionais  sobre  políticas  culturais  e  políticas  nacionais  de  comunicação,  sob  o  patrocínio  da  Unesco,  foram  realizadas  em  várias  partes  do  mundo,  bem  como  a   Cúpula  Mundial  sobre  a  Sociedade  da  Informação  foi  organizada  e  realizada,  em  duas  etapas,  em  Genebra  (2003) e em Tunis (2005).   Ao  longo  desse  período,  os  movimentos  em   favor  do  reconhecimento  do   direto  à  comunicação  ­  e   a  própria  UNESCO  ­  sofreram  forte  oposição  dos  conglomerados  globais de  mídia e dos  países  hegemônicos, que lançaram “uma ofensiva mundial a favor  do  'livre  fluxo  da  informação',  bandeira  com  'poder  de  fogo'  equivalente  ao  princípio  da  liberdade de imprensa” (LIMA, 2008),  o  que enfraqueceu o debate sobre a comunicação  como direito humano.  No  entanto,  tal  debate  ganha  força  novamente,  no  início  deste  novo  milênio,  incluindo  o  Brasil,  em  virtude  do   poder  que  vai  sendo  centralizado  nas  mãos  das  grandes  corporações  de telecomunicações,  com forte articulação  internacional,  que impõem seus 

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 O relatório intitula­se Um mundo e muitas vozes, mas ficou conhecido como Relatório MacBride, em  uma alusão ao então presidente da Comissão Internacional, o jurista e prêmio Nobel da Paz Sean  MacBride. 

modelos  de  negócios, sem  que o governo possa adequadamente atuar, quer regulando o  sistema,  quer  ofertando  serviços  para  a  população  de  baixa  renda,  que  fica  submetida  aos altos custos e à baixa qualidade  dos  serviços ofertados pelas teles. Neste novo ciclo  de debates,  duas frentes são abertas  sobre  o direito à comunicação, uma mais legalista,  que  toma  o  direito  à  comunicação  como  uma  evolução  dos  direitos  à  liberdade  de  expressão  e  à  informação,  e  portanto  um  direito  humano  universal,  que  deve  ser  protegido;  e  outra mais  alargada,  que vem  se destacando com mais força, e  que abarca  reivindicações  em  torno  de  ações  destinadas  à  democratização  da  comunicação,  da  proposição  de  políticas  públicas  e  da  criação  de  um  marco  legal  que  assegure  a  liberdade  de  informação,  a  garantia  de  acesso  às  TIC  para  todos,  tanto  no  que  diz  respeito  aos  dispositivos, quanto à conexão, e o  apoio à  produção  de  conteúdos locais,  por todos os grupos sociais.   Nesta  segunda  perspectiva,  a  comunicação  é  tomada  na  sua  potencialidade  de  promotora  de  direitos,  uma  vez  que  vivemos  numa  sociedade  marcada  pela  desigualdade,  por  preconceitos  e  pela  violação  constante  dos   direitos  básicos  dos  cidadãos.  Para  que  esses  direitos  possam  ser  defendidos,  protegidos,   reivindicados,  bem  como  outros  possam  ser  reconhecidos, efetivados,  disponibilizados,  é  fundamental  que  todos  os  sujeitos  sociais  tenham  acesso  aos  meios  de  produção  e veiculação  das  informações,  bem  como  condições  de  participar  dos  processos  de  formulação  e  monitoramento das  políticas  relacionadas  a cada um desses  direitos.  É  no debate sobre  as questões sociais que os problemas vão se tornando “visíveis” e possíveis soluções vão  sendo  construídas.  Assim,  a  livre  circulação  de  ideias,  experiências  e  opiniões  possibilitam a  emergência  de novos discursos  e  práticas sociais e a criação de espaços  privilegiados  de  reconstrução  da  realidade,  tornando  a  comunicação um instrumento  de  poder,  e,  portanto,  promotora  de  direitos,  como  vimos   nos  recentes  movimentos  da  população  brasileira,  em  junho  de  2013,  denunciando  insatisfação  pelas  condições  sociais e reivindicando  seus direitos, mobilizados nas redes e nas ruas (PRETTO, 2014).  Logo,  as  redes  digitais  constituem­se  no  locus,  ou  são  articuladoras  das  lutas  mais  significativas pelos  direitos dos  cidadãos, e, segundo Bia Barbosa e João Brandt (2005), 

do  importante  Coletivo  Intervozes3,  constranger  o  direito  à  comunicação  dificulta  a  promoção de todos os demais direitos.  Portanto,  é  a  comunicação,  hoje,  uma  questão  central  para  a  humanidade, a base  para  uma  organização  social  mais  justa  e  igualitária,  plena  e  democrática.  Ainda, exerce um  papel  educativo,  uma  vez  que  possibilita  ao  sujeito  aprender,  ter  acesso  ao  conhecimento,  a  compreender  melhor  o  mundo  e ser capaz de interferir em seu entorno e  na sociedade.    A  liberdade  de  acesso  da  população  a  todos  os  meios  de  comunicação,   dos  mais  elementares  aos  mais  sofisticados  e   a  liberdade  de  uso desses  canais  de  comunicação  segundos suas  necessidades,  contribuem  para  o  avanço  da   cidadania  que  se  realiza  não  apenas  pela  possibilidade   de  participação  na  comunicação,   mas  essencialmente  porque  potencializa  a  ação  cidadã  na  busca  pela  ampliação  dos  demais  direitos.  (SANTOS,   2013, p.95)   

Ou  seja,  para  que todo  cidadão tenha voz e vez, e possa atuar ativamente em sociedade,  é  fundamental  o  reconhecimento  e  a   viabilidade  do  direito  à  comunicação,  sem  condicionamentos  ou impedimentos  de  quaisquer  ordens, cabendo  ao Estado a garantia  de seu exercício,  sem  limitá­lo  à  mera recepção passiva das informações produzidas de  forma  centralizada  e  distribuídas  de  forma  massiva,  expressão  de  um  ponto  de  vista  hegemônico.  Para  que  as  minorias,  as  culturas  locais,  os  pontos  de  vista  dissidentes,  contrários  e  contraditórios  possam  emergir  e  tensionar o hegêmonico, é fundamental que  a esses grupos seja garantido o acesso aos meios de comunicação horizontalizados, que  permitem a todos se comunicarem com todos, sem o controle externo dos meios.  Nesse  contexto,  a  internet  passa  a  se  configurar  como  a  grande  possibilidade  comunicacional  e  de  expressão  das  diferenças  e,  por  isso,  a  delimitação de  um marco  legal  que   garanta  o  princípio  de  neutralidade  da  rede  é  fundamental,  pois  impede  bloqueios  ou discriminação dos fluxos de  informação, possibilitando igualdade de direitos 

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 “Coletivo Brasil de Comunicação Social é uma organização que trabalha pela efetivação do direito  humano à comunicação no Brasil.” http://intervozes.org.br 

a  todos,  ou  seja,  que  a  comunicação  e  a  informação  processada  por  qualquer  um  seja  equivalente a de qualquer outra pessoa, em qualquer ponto da rede. 

O Marco Civil da Internet no Brasil A  história  da  presença  da  internet  no  país  é  marcada  por  lutas  e  avanços  na  busca  da  implantação  de  uma  rede  que  seguisse  os  modelos  iniciais  preconizados  pelos  seus  criadores.  Desde   o  início  de sua  implantação,  no final  dos  anos 1980, a internet  no país  foi  se  constituindo  como  um esforço  conjunto  do  setor acadêmico, governo  e  sociedade  civil, esta representada pelo chamada terceiro setor.  As  primeiras  conexões  com  as  redes  mundiais  se  deram  com a  rede Bitnet, através  de  duas conexões, sendo uma a partir da   UFRJ e uma do LNCC (MCT), respectivamente no  Rio  de Janeiro  e  em  São Paulo.  A partir  destas  conexões, diversas outras universidades  e  instituições  de  pesquisas  podiam  acessar  a  rede  de  forma  compartilhada,  como  sempre  foi  o  princípio  da  rede.  De  acordo  com  Michel  Stanton,  do  departamento  de  informática da PUC­Rio,   a  organização  das  redes  brasileiras,  no  final  de  1991,  foi eminentemente  cooperativa,  onde  cada  instituição  participante  custeava  seu  enlace  de  telecomunicações  ou  para o Rio ou para São Paulo.  (É  interessante notar  que  o  enlace  direto  entre  o  Rio  e  São  Paulo   era  custeado  pelo  governo  federal,  para  manter  a  harmonia nacional.)  Uma  solução  definitiva  para  o  problema   de  projetar  uma  rede  nacional  deveria  adotar  uma  topologia  de  malha,  o  que  seria  mais  robusto,  e  poderia  até  reduzir  custos  de  telecomunicações,  pela  maior  utilização  de  enlaces  mais  curtos.  (STANTON, 1998) 

  De  acordo  com  Imre  Simon,  uma  “outra  ligação  pioneira  que  deve  ser  mencionada  é  aquela  realizada  pela  rede  Alternex,  ligada  ao  IBASE,  uma  Organização  Não­Governamental  que  se  ligou  à  rede  USENET,  via  linha  discada  internacional,  em  julho de 1989” (SIMON, 1997). A partir do CNPq, em 1989, inicia­se a implantação de um  projeto  denominado  de  Rede  Nacional  de  Pesquisa (RNP)  que  passa,  então  a  liderar a 

implantação  da rede com a instalação do primeiro backbone nacional em 1991, com links  de 9.600 bps (SIMON, 1997).  Com  a  realização  da  Conferência  das  Nações  Unidas  sobre  o  Meio  Ambiente  e  Desenvolvimento,  mais  conhecida  como  ECO  92,  no  Rio  de  Janeiro,  entidades  civis  e  acadêmicas viabilizaram a conexão via internet do evento, constituindo­se num importante  marco  da  história  da  internet  no  país.  Mais  uma  vez,  “respondendo  a  demandas  de  entidades  civis  e  acadêmicas,  o  Ministério de  Ciência e Tecnologia liderou  a criação de  uma  comissão  nacional  para  acompanhar  e  coordenar  o  desenvolvimento  da  Internet  no  país”,  segundo  artigo  de  um  dos  pioneiros  da  internet,  Carlos  A.  Afonso  (2011,  p.  17),  que,  na  época,  junto  com  o  sociólogo  Betinho,  atuavam  no  IBASE  e,  desta  forma,  demandavam  que  o  acesso  não  se  limitasse  à  comunidade  acadêmica,  mas  que  pudesse  estar  disponível  às  diversas  ONG  existentes  no  país.  Nascia  assim  o  Comitê  Gestor da Internet (CGI.br), com a missão de ser o  formulador,  orientador  ou  executor  de  políticas  relacionadas  ao  desenvolvimento  da  Internet  no  país.  O  decreto  original  de  criação  destacava  quatro  campos  de  atuação:  supervisionar  o  desenvolvimento  dos  serviços  Internet;  avaliar  e  recomendar  padrões  e  procedimentos  operacionais  e  técnicos;  coordenar  a  designação  de  nomes  de domínio  “.br”  e  números  IP;  publicar  estatísticas sobre a Internet (AFONSO, 2011,  p. 17). 

Dessa  forma,  a  internet  foi  se  implantando  no  país  pela  ação  do CGI.br e da RNP, que  atuava  de  forma  integrada  com  as  Instituições  Federais  de  Ensino  Superior,   instalando  nela  os  chamados  Pontos­de­Presença  (POP)  que  teriam  a  função  de  implantar  a rede  nos  Estados,  articulando  os  demais  setores  não  acadêmicos,  como  os  governos  estaduais  e  municipais  e a sociedade civil  através das ONG. O  acesso comercial passa  a  se  dar  a  partir  do  ano  de  1995,  sendo  esta  uma  história  que  ainda  merecerá  aprofundamento.  Para o que  nos  interessa  neste  artigo, importante  trazer, mais  uma vez,  Carlos Afonso, com o detalhamento das mudanças na governança da internet no país.  Carlos Afonso:  No  final  de  2002  entidades civis e acadêmicas construíram  uma proposta  de  aprofundamento  da representação  e dos objetivos do CGI.br, entregue  a  representantes  da  Casa  Civil  em  fevereiro  de  2003.  O  governo  federal  decidiu  então  nomear  um  comitê  de  transição  para  ‘estudar  e  propor um  novo  modelo  de  governança  da  Internet  no  Brasil’.  Desse comitê fizeram 

parte  tanto  membros  antigos  do  CGI.br  como  representantes  que  defendiam  novas  propostas.  O  resultado  deste  processo  foi  sacramentado  no  decreto  4.829,  de  3   de  setembro  de  2003,  que  definiu  uma  estrutura  pluralista  de  governança  em  que  os  membros  não  governamentais  da  comissão  teriam  maioria  e  seriam  escolhidos  pelos  seus  próprios  setores  ou  grupos  de  interesses,  e  melhor  precisou  suas  atribuições. (AFONSO, 2011, p. 18). 

A  atuação  do  CGI  marcou  a  governança  da   internet  brasileira,  tendo  sido  destacado  internacionalmente  este  modelo,  uma  vez  que,  em  todo  o  mundo,  a  temática  de  como  garantir  o  funcionamento  aberto  e  democrático  da  rede  é  um  tema  presente.  Um  dos  marcos  desta  atuação  foi  a  formulação  de  princípios  norteadores  da  internet  no  país,  princípios  esses  que  serviram  de  base  para  o que  veio a ser conhecido posteriormente  como Marco Civil da Internet. Mais uma vez Carlos Afonso: “o resultado foi um exemplo de  consenso  pluralista,  sintetizado  em  dez  princípios  que  tornaram­se  uma  referência  nos  debates internacionais sobre governança da Internet” (2011, p. 21).  São os seguintes os princípios:  1. Liberdade, privacidade e direitos humanos  O  uso  da   Internet  deve  guiar­se  pelos  princípios  de  liberdade  de  expressão,  de  privacidade  do  indivíduo   e  de   respeito  aos  direitos  humanos,  reconhecendo­os  como  fundamentais   para   a  preservação  de  uma sociedade justa e democrática.  2. Governança democrática e colaborativa  A  governança  da  Internet  deve  ser  exercida  de  forma  transparente,  multilateral   e  democrática,  com  a  participação  dos  vários  setores  da  sociedade, preservando e estimulando o seu caráter de criação coletiva.  3. Universalidade  O  acesso  à  Internet  deve  ser  universal  para  que  ela seja um meio para o  desenvolvimento  social  e  humano,  contribuindo  para  a  construção  de  uma sociedade inclusiva e não discriminatória em benefício de todos.  4.  Diversidade  A  diversidade  cultural  deve ser  respeitada  e  preservada  e  sua expressão  deve ser estimulada, sem a imposição de crenças, costumes ou valores.  5.  Inovação  A  governança  da  Internet  deve  promover  a  contínua  evolução  e  ampla  difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso.  6.  Neutralidade da rede  Filtragem   ou  privilégios  de  tráfego  devem  respeitar  apenas  critérios  técnicos  e  éticos,  não  sendo  admissíveis  motivos  políticos,  comerciais,  religiosos,   culturais,  ou  qualquer  outra  forma  de  discriminação   ou  favorecimento.  7. Inimputabilidade da rede 

O  combate  a  ilícitos  na  rede  deve  atingir  os  responsáveis  finais  e não os  meios de acesso e transporte, sempre preservando os  princípios maiores  de  defesa  da  liberdade,  da  privacidade  e  do  respeito  aos  direitos  humanos.  8. Funcionalidade, segurança e estabilidade  A  estabilidade,  a segurança  e a funcionalidade globais da rede devem ser  preservadas   de  forma  ativa  através  de  medidas  técnicas  compatíveis  com os padrões internacionais e estímulo ao uso das boas práticas.  9. Padronização e interoperabilidade  A  Internet  deve  basear­se  em  padrões  abertos  que  permitam  a  interoperabilidade e a participação de todos em seu desenvolvimento.  10. Ambiente legal e regulatório  O  ambiente  legal  e  regulatório  deve  preservar  a   dinâmica   da  Internet  como espaço de colaboração.”4  

Mas  estes  princípios  não bastariam.  Com  a  expansão  do  sistema  de  telecomunicações,  privatizados  desde  o  ano  1998,  a   partir  da  promulgação  da  Lei  Geral  da  telecomunicações  (Lei  9.472/97),  inicia­se  mais  uma  etapa  na  luta  pela  garantia  de  acesso  público  aos  recursos  da  comunicação.  A  universalização  do  sistema  já  estava  prevista  na  referida  lei  a  partir  da  instituição  de  um  Fundo  de  Universalização   dos  Serviços  da  Telecomunicações  (FUST)  que,  no  entanto,  ao  longo  de  todos  esses  anos  não  foi utilizado  para  os  seus  fins.  Não trataremos  deste  importante tema  pois o mesmo  já  foi  bastante  discutido,  como  em  Queiroz  (2010),  e  seus  relatórios  de  gestão  estão  disponíveis no site da Anatel5.  Assim,  desde o final dos anos 1990, discute­se no Brasil formas de se regular  o acesso e  uso da internet  no país.  A  primeira iniciativa  na  linha de uma regulação da rede acontece  em  1999  com  o  Projeto  de  Lei  (PL)  84,  proposto  pelo  senador  Eduardo  Azeredo  (PSDB/MG)  objetivando  tipificar  crimes  praticados na internet.  A  lei  foi  logo  denominada  pelos  ativistas  de  AI­5  Digital,  gerando ampla  mobilização nas redes.  Um  agregador  da  luta  contra  esse  projeto  de  lei foi o movimento “Mega­Não ­  diga  não  a  vigilantismo”.6  O  referido  PL passou praticamente 11 anos parado no Congresso e, em 2011 voltou à baila  pelo mesmo Eduardo Azeredo, agora Deputado Federal.  

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 http://www.cgi.br/resolucoes/documento/2009/003, acesso: 22 ago. 2014.   http://www.anatel.gov.br   6  https://meganao.wordpress.com/  5

Neste  meio  tempo,  governo  e  sociedade  civil  mobilizaram­se  em  defesa  da  ideia  de  primeiro se ter  um Marco  que regulamentasse o  uso  da internet para, somente depois se  pensar  em  algum  tipo  de  legislação  que  tipificasse  crimes.  Também,  tivemos  uma  sucessão  de  projetos  de  leis  que  tramitaram  no  cenário  internacional,  voltadas  para  o  controle dos fluxos  nas  redes, a exemplo  do  já  citado  PL 84/99 que terminou aglutinando  outros  projetos  de  lei  que  já  estavam  em  tramitação  para  tipificar  condutas  realizadas  mediante  uso  de  sistemas  digitais  e  rede  de  computadores,  e  as  leis  PIPA,  SOPA  e  ACTA7,  todas  apresentadas  com  o  argumento  de  proteger  os  direitos  dos  internautas,  mas  tratando  a internet  como  um ambiente  criminoso,  e  deixando  explícita a intenção  de  vigilância, cerceamento de liberdades, e quebra de privacidade.  No  Brasil, o que  se  buscou,  ao longo deste tempo, foi garantir que a rede mantivesse sua  dinâmica  livre  e  aberta.  No  período  que  vai  de  1999  até  meados   do  ano  2000,  a  discussão  sobre  a  necessidade  de  um  marco  regulatório  para  a  internet  que  não fosse  centrada  em  uma  lógica  de  criminalização  vai  ocorrendo  na  surdina  dos  movimentos  sociais e do próprio Congresso Nacional. Em janeiro  de 2008 é realizada na Câmara dos  Deputados  uma   audiência  pública  organizada  pela  Comissão  de  Ciência  e  Tecnologia,  Comunicação  e  Informática  em  conjunto  com  a  Comissão  de  Segurança  Pública   e  Combate  ao  Crime  Organizado  para  retomar  a  discussão  sobre  o  tema8,  já  que  havia  possibilidade   de  que  o  antigo  projeto  84/99,  aprovado  pelo  Senado,  retornasse  à  Câmara  na  forma  de  substitutivo  do  senador  Eduardo  Azeredo  (PSDB­MG).  A  organização  dos  ativistas contrários  ao,  como  já dito,  AI­5  Digital,  intensificou­se.  Foram  diversas  ações,  como  pode  ser acompanhada  na linha do  tempo  acima referida,  dia de  blogagens  contra  o  movimento,  produção  de  peças  gráficas  que  eram  distribuídas  e  ocupavam as redes, tuitagens coletivas em dias de discussão no Congresso,  entre outras 9

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.  Ao  longo  de  2008  uma  petição  pública  “Em  defesa  da  liberdade  e  do  progresso  do 

 SOPA (Stop Online Piracy Act),  PIPA (Protect IP Act), ACTA(Anti­Counterfeiting Trade Agreement)   O movimento em defesa do Marco Civil da Internet construiu de maneira colaborativa uma linha do tempo  das ações em defesa de um Marco Civiul da Internet que está disponível em:.  Acesso em: 22 ago. 2014.  9  Entre outros, http://xocensura.wordpress.com/2008/07/05/chamada­para­o­dia­da­blogagem­politica,  http://meganao.wordpress.com e https://twitter.com/hashtag/megan%C3%A3o.   8

conhecimento  na  internet  brasileira”  circulou  na  internet  e  terminou  sendo  entregue  ao  Congresso  com  mais  de  160  mil  assinaturas.  O  texto  da  petição  recupera  a  história da  internet ao afirmar:  A  Internet  é uma rede de redes, sempre em construção e coletiva. Ela é o  palco  de   uma  nova  cultura  humanista  que   coloca,  pela  primeira  vez,  a  humanidade  perante  ela  mesma  ao  oferecer  oportunidades  reais  de  comunicação  entre os  povos. E não  falamos  do  futuro.  Estamos  falando  do  presente.  Uma  realidade com desigualdades regionais, mas planetária  em seu crescimento.10   

Para então concluir, em defesa da internet brasileira:  Defendemos  a  necessidade  de  garantir  a   liberdade  de  troca,  o  crescimento  da  criatividade  e  a  expansão  do conhecimento no Brasil. [...]  Devemos estimular a  colaboração e enriquecimento cultural, não o plágio,  o  roubo  e  a  cópia  improdutiva  e  estagnante.  E  a Internet é um importante  instrumento  nesse  sentido.  Mas  esse  projeto  coloca  tudo  no  mesmo  saco.  Uso   criativo,  com   respeito  ao  outro,  passa,  na  Internet,  a  ser  considerado  crime.  Projetos  como  esses  prestam  um  desserviço  à   sociedade  e  à  cultura  brasileira,  travam  o  desenvolvimento  humano  e  colocam  o  país   definitivamente  para  debaixo  do  tapete  da  história  da  sociedade da informação no século XXI.11  

No  final  de  2009,  a  partir  de  um  texto  base  elaborado  pela  Secretaria  de  Assuntos  Legislativos  do  Ministério  da  Justiça,  em  parceria  com  o  Centro  de  Tecnologia  e  Sociedade  da  Fundação Getúlio  Vargas,  e  com base  no  Decálogo da  Internet Brasileira  (a  resolução  CGI.br/RES/2009/003/P12   do  Comitê Gestor da Internet no Brasil),  inicia­se  um  processo  de consulta pública aberto e  colaborativo, que contou com a participação da  sociedade  civil  em  diversos  momentos,  tanto  online  como  offline,  pelo  período  de  dois  anos.  Essa dinâmica de construção de um projeto de lei lhe conferiu caráter inédito, tanto  em  âmbito  nacional  como  internacional.  Nesse   processo,  procurou­se  desenhar  um  Marco  Civil  da  Internet  como  uma  Lei  que  estabelecesse  princípios,  direitos  e  deveres  para  o uso da  internet no país e, portanto, o Projeto de Lei – PL 2.126/2011 – enviado ao  Congresso  com a  denominação de  Marco Civil  da Internet  foi  elaborado com base numa  ampla  discussão  com  a  sociedade,  e  apresentado  pelo  Poder  Executivo  ao  Congresso  Nacional em agosto de 2011. 

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 http://www.petitiononline.com/veto2008/petition.html, acesso: 22 ago. 2014.   idem, ibidem  12  http://www.cgi.br/resolucoes/documento/2009/003  11

Em  discurso realizado  durante a 66ª  Assembleia  Geral  da ONU, em Nova York, no painel  “Internet  Access  for  All?”  (Acesso  à  Internet  para  todos?),  o  secretário  de  negócios  legislativos do Ministério da Justiça,  Guilherme Almeida, descreve o processo:   

 

  Com  relação  ao  processo,  vale  a  pena  mencionar  que  ele  começou  a  partir  de  uma  demanda  da  sociedade.  (...)  Esta  demanda  levou  o  Ministério  da  Justiça a iniciar um processo de construir, em conjunto com  todas  as   partes  interessadas,  uma  estrutura  para  a  internet  no  Brasil  baseada  nos  direitos  civis.  Neste  processo,  tivemos  a  colaboração  do  Centro  de  Tecnologia  e  Sociedade  da  Fundação  Getulio  Vargas,  um  importante grupo brasileiro para questões de tecnologia.  Para  promover  um  debate aberto e online, montamos um site como parte  do  'Cultura  Digital',  rede  social  brasileira  patrocinada  pelo  Ministério  da  Cultura para promover a discussão de políticas públicas digitais.  Realizamos  a  elaboração  da  proposta  em  duas  distintas  frentes.  Na  primeira  delas,  apresentamos  um  livro branco,  a  fim de contextualizar as  discussões,  que  foram  organizadas  em  três  diferentes  eixos:  direitos  do  usuário,  um  segundo  em  relação  aos  deveres  e  responsabilidades  dos  prestadores  de serviços, e um terceiro focado nas ações  governamentais  necessárias  para  a  promoção  da  Internet.  Nesta  primeira  fase,  cada  parágrafo do texto proposto foi aberto para comentários não moderados.13  

Foram  mais  de  2  mil  contribuições  de  todos  os  setores  da   sociedade  brasileira,  analisadas   pelo  Ministério  da  Justiça,  e  discutidas  no  interior  do  próprio  governo  para,  finalmente, ser enviado o texto ao Congresso, com os seus 25 artigos.  

 Tradução nossa para ““With respect to the process, it is worth mentioning that it started from  a request from society. [...] This request led the Brazilian Ministry of Justice to start a process to  build, jointly with all interested parties, a civil rights­oriented framework for internet in Brazil. In  this process, we had the close collaboration of Fundação Getulio Vargas’ Center for Technology  and Society, an important Brazilian think tank for technology issues. To promote an open and  online discussion, we set up a website at “Cultura Digital”, a Brazilian social network sponsored  by Brazilian Ministry of Culture to promote the discussion of digital public policies. We  13

conducted the drafting in two different phases. In the first one, we presented a white paper  in order to contextualize the discussions, which have been arranged in three different axes:  one concerning user’s rights, a second regarding service providers’ duties and liabilities,  and a third focused on governmental activities which would be necessary to promote the  internet. In this first phase, each paragraph of the proposed text was open for  non­moderated comments.”  http://culturadigital.br/marcocivil/2011/10/22/experiencia­do­marco­civil­da­internet­e­apresentada­na­onu/,  acesso: 04 set. 2014. 

Já no Congresso,  o tema foi incluído no portal e­democracia14 , importante espaço para as  discussões  dos  projetos  em  tramitação  no  Congresso  brasileiro.  No  site15   dedicado  à   discussão  sobre  o  tema  podem  ser encontradas as diversas  versões  do  referido  marco  legal  e  as  discussões  travadas  ao longo  do período  de tramitação do  mesmo,  até o  dia  23  de  abril  de  2014,  quando  o  Marco  Civil  foi  finalmente  aprovado  e  sancionado  pela  Presidência da República, como a Lei Ordinária nº 12.965/2014.  Durante  este  longo  período,  muitas  disputas  se  estabeleceram em torno  da  redação do  texto final,  disputas  estas  que marcaram o embate entre as possibilidades de liberdade e  de controle da internet no país. 

A polêmica no Congresso: os três direitos garantidos pelo Marco Civil   Três  grandes  contenciosos  ocuparam  o  debate  ao  longo  de  todo  esse  tempo:  a  neutralidade  da  rede,  a  retirada  de  conteúdo  sem  ação  judicial  e  a  garantia  de  privacidade/guarda de logs.16   Neutralidade  da  rede  ­ esta,  sem dúvida,  foi  a  questão  que mais  rendeu  debate  e  uma  verdadeira batalha  foi  travada ao longo da tramitação da lei do Marco Civil.  Basicamente,  podemos  definir  a  neutralidade  da  rede  como  sendo,  primeiro,  uma  das  características  que  marcou  a  internet  desde  o  seu  nascimento;  segundo,  podemos  afirmar  que  a  neutralidade  da rede define  que, para as operadoras  do  sistema  de  infraestrutura, todos  os  bits  trafegados  devem  ser  tratados  de  forma  isonômica,  ou  seja,  não  pode  haver 

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 O portal e­democracia foi criado em 2009 pela Câmaraa dos Deputados com o objetivo de usar a internet  para “incentivar a participação da sociedade no debate de temas importantes para o país. Acreditamos que  o envolvimento dos cidadãos na discussão de novas propostas de lei contribui para a formulação de  políticas públicas mais realistas e implantáveis.” Veja em http://edemocracia.camara.gov.br, acesso: 02  ago. 2014.  15  http://edemocracia.camara.gov.br/web/marco­civil­da­internet/inicio  16  Um resumo geral de todas as versões do Marco Civil ao longo de todo o processo pode ser encontrado,  entre tantos outros, no trabalho de Marcelo Pimenta, Flávio Wagner e Diego R. Canabarro na “Tabela  comparativa da redação das versões do Substitutivo do Dep. Alessandro Molon ao texto do Projeto de Lei  2.126/2011 (Marco Civil da Internet do Brasil). Disponível em  . Acesso em 01 set. 2014.  

nenhum  tipo  de  descriminação do  que  está  sendo trafegado.  Por isso, o embate  se deu  entre  os  segmentos que  defendiam  uma  internet livre e neutra  e  as grandes corporações  de  telecomunicações,  que  tentavam  garantir  a  possibilidade  de  continuar  aplicando seu  modelo  de  negócios  à internet, modelo  esse já em uso tanto para a telefonia como para a  TV  a  cabo,  ou  seja,  as  teles buscavam garantir  o direito  de  segmentar os conteúdos da  rede através da venda de pacotes, controlando assim seu fluxo.   Ao  término,  a  redação  da  lei  12.965  assim  definiu  a  questão,  em  seu  artigo  9º:  “O  responsável  pela  transmissão,  comutação  ou  roteamento  tem o dever de tratar  de forma  isonômica  quaisquer  pacotes  de  dados,  sem  distinção  por  conteúdo,  origem e destino,  serviço,  terminal  ou  aplicação”  (BRASIL,  2014).  A  lei  prevê   que  uma  eventual  descriminação  ou  degradação  do  tráfego  somente  pode  ocorrer  mediante  uma  regulamentação  complementar,  atribuída  à  Presidência  da  República  (ouvidos o Comitê  Gestor  da  Internet  e  a  ANATEL)  e  decorrente  de  requisitos  técnicos  indispensáveis  à  prestação  dos  serviços  ou  priorização  a  serviços  de  emergência.  Essa  foi  uma  vitória  parcial  da  sociedade civil que  lutou através de forte articulação em rede e por pressão no  Congresso  Nacional,  para  que  a  neutralidade  fosse  garantida  sem  nenhuma  exceção.  Como  esse  foi  um  dos  pontos  onde  as  operadoras  de  telecomunicações  mais  pressionaram,  a  redação  final  terminou  deixando  algumas  brechas  para  a  quebra  de  neutralidade, através da regulamentação da lei.   Retirada  de  conteúdo  ­  conhecida  como  “notice  and  takedown”,  este  foi  outro  dos  motivadores  das  grandes  polêmicas,  uma  vez  que  se  desejava  incluir  no  marco  legal a  possibilidade   de  responsabilização  dos  provedores  por  conteúdos  publicados  na  rede   por  terceiros, responsabilização  essa atribuída  por  qualquer  pessoa  que julgasse ter tido  algum direito  infringido  pela  publicação na internet, sem nenhuma ação judicial. Como diz  a  própria  denominação  do  dispositivo,  bastaria  ao  suposto  prejudicado  comunicar  ao  provedor  e  ele  teria que, imediatamente,  retirar o conteúdo da rede. Argumentava­se que  a  prática  já  existia  em  outros  países  e  que,  com  isso,  ganharia­se  em  celeridade  nos  processos de retirada de conteúdo da internet, o que, com veemência, foi combatido pelo  movimento social aglutinado em torno da campanha pelo Marco Civil.  

Ao longo das  discussões com o relator  do  processo, deputado federal Alessandro Molon  (PT­RJ),  avançou­se  para  não  incluir  o  Notice  and  Takedown  no  texto legal (artigo  15º).  No  entanto,  entre  tantas  idas  e  vindas,  com   as  inúmeras  versões  circulando  pela  rede,  oficial  e  oficiosamente,  surgiu  uma  versão  que  mantinha  basicamente  o  espírito  do  referido  artigo  15º,  mas  incluía  um  segundo  parágrafo,  que  não  existia  até  então,  possibilitando  a retirada  de conteúdo em caso de violação de direito autoral.17  A inclusão  deste  novo  parágrafo  foi  acompanhada  de  protestos  nas  redes,   uma  vez  que  associava­se  à  pressão  da  própria  ministra  da  Cultura,  Marta  Suplicy,  e  também  de  grande  grupos  da  mídia,  como  as  Organizações  Globo,  conforme  declaração  do  sociólogo Sérgio Amadeu  da Silveira, rebatidas pelo relator Alessandro Molon.18  A última  versão,  que  deu origem à lei aprovada, não continha mais este parágrafo, constituindo­se  numa importante vitória dos movimentos sociais na construção do Marco Civil da Internet.  Ainda,  nesta   linha,  a  redação  do  artigo  19º  contemplou  a  luta  para  que  a  remoção  de  conteúdos só se desse a partir de ação judicial. Com isso, assim ficou o texto legal:  Art.  19.  Com  o  intuito  de  assegurar a  liberdade  de  expressão e impedir a  censura,   o  provedor  de  aplicações  de  internet  somente  poderá  ser  responsabilizado  civilmente  por  danos  decorrentes  de  conteúdo  gerado  por  terceiros  se,  após  ordem  judicial  específica,  não  tomar  as  providências  para,  no  âmbito  e  nos  limites  técnicos  do  seu  serviço   e  dentro   do  prazo  assinalado,  tornar  indisponível  o  conteúdo  apontado  como  infringente,  ressalvadas  as  disposições  legais  em  contrário.  (BRASIL, 2014) 

Garantia  da  privaciadde/guarda  de  logs  ­  por  último,  mas  não  menos  importante,  e  obviamente não  esgotando  a  questão  nem  as  polêmicas,  vem a problemática  da guarda  de  logs  (guarda  dos  registros).  Este  foi  um  tema  que  terminou  dando  um  impulso  à  aprovação  do   Marco  Civil  por  conta  da  divulgação  de  informações  coletadas  e 

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 “O disposto neste artigo não se aplica quando se tratar de infração a direitos do autor ou a direitos  conexos”, conforme substitutivo I de 4/7/2012.  18  Respectivamente em  http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/07/sergio­amadeu­a­globo­quer­desvirtuar­o­marco­civil/ e  http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/07/marco­civil­pela­neutralidade­privacidade­e­liberdade/, acesso:  12 jul. 2014. Também em  http://www.idec.org.br/em­acao/artigo/noticias­do­brasil­um­pouco­sobre­o­marco­civil­da­internet e  http://idgnow.com.br/blog/circuito/2013/10/18/entidades­do­setor­audiovisual­defendem­notice­and­take­dow n­no­marco­civil/, acesso: 12 jul. 2014. 

armazenadas  pela  Agência  de Segurança  Nacional  (NSA,  em  inglês)  americana, por um  funcionário  terceirizado, Edward Snowden, que trabalhava para a NSA.  Em  função do que  ficou conhecido como sendo  o  Caso Snowden  ­ que mostrou estarem sendo espionadas  diversas autoridades  em  diversos  países, inclusive  o Brasil e sua presidente ­, o tema  da  segurança  das   informações  e  da  guarda  dos  logs  ganhou  relevância  ainda  maior.  A  discussão  posta  era,  basicamente,  sobre  quem  deveria  guardar  os  registros  de  navegação e por quanto tempo.  Uma  difícil  discussão,  uma  vez  que  a  temática  é  permeada  por  aspectos  técnicos.  O  resultando  final,  no  entanto,  garantiu,  em última  instância, a privacidade como princípio  e  direito fundamental.  Vale  aqui  resgatar,  apesar  de  longa, a síntese  feita por Joana Varon  e  Bruna  Castanheira  no  site  Oficina  Antivigilância19 ,  sobre  o  princípio  da  proteção  da  privacidade garantido na lei:  ●











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“Provedores  de  conexão  devem  manter  registros  de  conexão  por  1  ano,   nos  termos  do  regulamento.  E  são  vedados  de  guardar  registros de acesso a aplicações.  Autoridade  policial  ou  administrativa  ou  Ministério  Público  podem  requerer  guarda  por  prazo superior.  Nesse  caso,  não  há  limite de  prazo.  Tal   requerimento  será  mantido  em  sigilo  pelo  provedor  responsável  pela  guarda  dos  registros,  desde  que  depois  do  pedido cautelar da autoridade haja ordem judicial pela guarda.  Provedores  de  aplicação  ‘constituído  na  forma  de  pessoa  jurídica  e  que  exerça  essa  atividade  de  forma  organizada,   profissionalmente  e  com  fins  econômicos  deverá  manter  os  respectivos  registros  de  acesso  a  aplicações  de  internet’.  É  vedada  a  guarda  de  registros  de  acesso  a  outras  aplicações  se  não  houver  consentimento  e  de  dados  pessoais   excessivos  em  relação à finalidade do consentimento.  Ordem  judicial poderá determinar a guarda obrigatória de registros  específicos  para  provedores  que  não  se  encaixam  nesse  perfil,  desde que por período determinado.  Autoridade  policial  ou  administrativa  ou  Ministério  Público  podem  requerer  guarda  por  prazo superior.  Nesse  caso,  não  há  limite de  prazo fixado na lei.  Parte  interessada  poderá  requerer  o  fornecimento  de  registros de  conexão  ou  de  acesso  a  aplicações  com  o   propósito  de  formar 

 https://antivigilancia.wiki.br/boletim_antivigilancia/9#trilha_1ativismo_e_politicas_digitais, acesso: 07 set.  2014. 

provas  em  processo  cível  ou  penal,  desde  que  apresente  a)  indícios  da   ocorrência  de  ilícito, b)  justificativa  da  utilidade  de  tais  registros e c) período dos registros requeridos.  ● ‘O  provedor  responsável  pela  guarda  somente  será  obrigado  a  disponibilizar  os  registros  de  conexão  e  de  acesso  a  aplicações  de  forma  autônoma  ou  associados  a  dados  pessoais  ou a  outras  informações que possam contribuir para a identificação do usuário  ou do terminal, mediante ordem judicial.’  ● O  conteúdo  das  comunicações  privadas  também  só  poderá  ser  disponibilizado por ordem judicial.  ● Dados  cadastrais  poderão  ser  disponibilizados   para   ‘autoridades  administrativas  que  detenham  competência  legal   para   sua  requisição.’” (as citações internas são da Lei 12.965/2014)   

Como  pode  ser   visto,  esta  guarda  deve  atender  à  preservação  da  intimidade,  da  vida  privada,  da  honra  e  da  imagem  das  partes   direta  ou  indiretamente  envolvidas.  O  texto  final  da  Lei   indicou,  como  resultado  das  discussões,  que  esses  dados  deveriam  ser  guardados  por  um  ano,  apenas pelos administradores de  sistema autônomo.  Importante  observar  que  ao  se  falar  em  guarda de logs,  temos  que diferenciar  o  que  seja  a  guarda  de registro  de  conexão  (data,  hora  e  duração  da conexão de um determinado número IP)  e  guarda  do   log  de  acesso  à  aplicações  (data  e  hora  de  uso de uma aplicação  por  um  determinado  número  IP).  Sendo  assim,  o  que  ficou  na  versão  final  é  que  devem  ser  guardados apenas os registros de conexão.  Esses  foram  os  três  contenciosos  principais  em  torno  do   Marco  Civil  da  Internet  que  geraram intensas  discussões  e  negociações,  mas que  marcaram  o movimento brasileiro   em  torno  da  efetivação  do  direito  à  comunicação.  O  resultado  desse  movimento  foi  a  garantia,  pelo   menos  temporariamente,  dos  princípios  que  nortearam  a constituição  e  o  desenvolvimento  da  rede,  e  da  possibilidade  de  todos  terem  acesso  igualitário  e  poderem  se  expressar  com  liberdade.  Temporariamente  porque,  no  momento  que  fechávamos  este  texto, não  tendo  o  Marco Civil completado nem mesmo cinco meses de   vigência,  já  havia  sido  proposto  no  Senado  o  Projeto  de  Lei  número  180/2014,  com  o  objetivo  de  alterar  alguns dos seus dispositivos, ”para estabelecer a finalidade e restringir  o  rol  de  autoridades  públicas  que  podem  ter  acesso  a  dados  privados  do  cidadão  na  internet,  prever  a  possibilidade  de  recurso  contra  decisão  interlocutória  que  antecipa 

tutela  no  âmbito  dos  Juizados  Especiais  e  dar  outras  providências”,  conforme  matéria  publicada  no  site  do  Instituto  Telecom20 , o que evidencia que o tema não está esgotado e  que  tensões  e  negociações  em  torno  do  Marco  Civil  continuarão  a  se  desenrolar.  Isso,  obviamente,  mostra­nos  a  importância  de  uma  permanente  vigilância  de  toda  a  sociedade  para  que  possamos,  efetivamente  garantir  o  pleno  uso  da  internet,  com  liberdade e privacidade, a todas as camadas da população. 

Potencialidades e desafios para a educação  

Todas  as  questões  até  aqui  tratadas estavam  mais voltadas  para  uma leitura  do  mundo  contemporâneo.  Importante  agora  olhar a  educação.  E,  para  tal, é necessário  se  pensar  na  presença  das  tecnologias  digitais  de  informação  e  comunicação  na  educação  não  como  mera  ferramentas  auxiliares  dos  processos  educacionais  instituídos,  conforme  já  avançamos em outros  textos (PRETTO, 2011 e PRETTO, 2014).  No  conseguimos pensar  em  um  sistema  educacional  que  continue  centrado  na  lógica  da  transmissão  e  de  distribuição  de  informações,  embora  este  ainda  seja  o  modelo  hegemônico.  Nesse  modelo,  o  conhecimento  está centrado  nos livros, nos  professores,  e  agora  também  nas  redes,  e  deve  ser  transmitido aos alunos, cabendo a estes consumi­los e assimilá­los. No  passado,  as  informações  eram  escassas  e  fazia  sentido  procurarmos  a  escola  e  os  mestres  para  buscá­las.  No  entanto,  hoje,  temos  abundância  de  informações,  e  isso,  diferentemente  do  que  pensam  alguns  (KEEN,  2008,  entre  outros),  é  muito  importante  para a formação da juventude.   Com a emergência  das  redes  interativas,  horizontais e descentralizadas, novas questões  são  incorporadas  ao  processo  formativo,  tais  como  o  estabelecimento  de  relações,  a  interatividade,  a   problematização  e  a  produção  do  conhecimento.  A  partilha  do  conhecimento passa  a  ser  potencializada uma vez que o resultado desta produção passa  a estar  disponível  na  rede, viabilizando, com  isso,  um  uso  pleno  e ampliado, estimulando  as  práticas  recombinantes,  com  todos  podendo  usar,  copiar,  reproduzir  e  remixar  os  20

  http://institutotelecom.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5999:projeto­de­lei­no­senad o­pretende­alterar­o­marco­civil­da­internet&catid=1:latest­news, acesso: 31 ago. 2014 

conteúdos,  naquilo  que  denominamos  de  um  círculo  virtuoso  de  produção  de  culturas  e  conhecimentos.  Desta forma,  estimula­se  o envolvimento  de  todos, alunos, professores e  comunidades,  partindo  do  princípio  da   colaboração  em  rede,  possibilitando  não  só  a  partilha,  como  também  a  produção  do  conhecimento  de  forma  horizontalizada.  Aqui,  importante  destacar  que  o  conhecimento  estabelecido  é  parte  deste  diálogo  e  sua  partilha  possibilita que  o  mesmo seja  utilizado e aprendido como  integrante do processo  de produção de novos conhecimentos e culturas.  Também,  a  comunicação  passa  a  ser  ampla  e  generalizada  e,  com  isso,  a  aprendizagem,  nesse  contexto,  não  se  dá  na  mera  relação  sujeito­objeto,  concepção  superada pelas perspectivas interacionistas,  que entendem que a aprendizagem se dá na  relação  entre  sujeitos:  “[...]  funda­se  a  aprendizagem  no  mundo  dos  homens  que ouvem  uns aos outros,  postos à escuta das vozes que os interpelam” (MARQUES, 1995, p. 110).  Portanto,  a  possibilidade  de  comunicação  horizontalizada  permite  que  os  sujeitos  aprendentes,  alunos  e  professores,  possam  ter  acesso ao conhecimento  produzido pela  humanidade,  uma vez que  praticamente tudo já  está disponível nas  redes e, desta forma,  possam  compartilhar  suas  ideias,  suas  culturas,  seus  referenciais,  suas  concepções  de  mundo,  aprendendo,  todos  com  todos,  e  contribuir para uma  compreensão  mais ampla,  critica  e  complexa  da  própria  sociedade.  Possibilita  ainda  que  professores  e   alunos  participem  e/ou  desencadeiem  movimentos  ativistas  em  torno  de  questões  sociais  e  profissionais, interferindo em seu entorno e na sociedade.  Desta  forma,  com  uma  rede  fortalecida, a produção  de  conteúdos  passa,  também  ela, a  se  dar  de  forma  aberta,  incorporando  todas  as  potencialidades  dos  ambientes  da  web  2.0.  Como  não  estamos  mais  dependentes  da  mídia  de massa,  ou  da indústria  cultural,  temos  a  possibilidade  efetiva  de  nos  posicionarmos  –  professores  e  alunos  –  como  propositores,  idealizadores,  autores,  de transformarmos a escola num espaço de  criação  e  socialização  dessa  produção.  Produção  que  pode  ser  realizada  nas  mais  diferentes  linguagens, já  que  as tecnologias digitais possibilitam  trabalhar  com qualquer uma delas.  Historicamente,  a  produção  da  escola  não   tem  visibilidade,  pois  fica  restrita  ao  seu 

contexto  interno. Temos agora as condições para ultrapassar suas paredes, aproximando  o mundo de dentro da escola do contexto social mais amplo.  Ainda,  para  ampliar  a  nossa  capacidade  de  leitura  das  informações  que  abundam,  precisamos  pensar  a  leitura  numa  dimensão  muito  maior  daquela  que  estamos  acostumados  a  associar às letras e,  no máximo,  aos números. Agora, muito mais do que  antes,  isso  é  insuficiente.  É  importante  que  tenhamos  a  capacidade  de  ler  num  sentido  muito  mais  amplo.  Uma  leitura  do  mundo,  que  inclua  a  leitura  dos  códigos  de  programação  dos  computadores;  a  leitura  das  imagens que  circulam de forma frenética  pelas  redes  e  pelas  ruas;  a leitura do corpo cada vez mais preso a gadgets eletrônicos; e  a leitura do ambiente cada vez mais destruído, aqui, ali e acolá.  Paralelamente  e  de  forma  complementar,  precisamos  pensar  na  escrita,  esta  também  para  além  da   escrita  associada às letras e avançarmos,  como  propõe  Douglas Rushkof  (2010),  para  o  ensino  da  linguagem  dos  computadores,  ou  seja,  para  o  ensino  de  programação  nas  escolas.  O  reconhecimento  dessas  potencialidades  vem  mudando  alguns  sistemas  de  educação, como  é  o caso da  rede  educacional de Madrid, Espanha,  que deverá incorporar,  a  partir  de  2015,  a  programação  como atividade obrigatória para  o  ensino  secundário21 ,  com  o  objetivo  de  que  os  alunos  aprendam  a  criar  sítios  web,  aplicações para smartphone, jogos e adquiram conhecimento de robótica. A grande meta  com  esse  projeto  é  colocar  o  país  na  vanguarda  da educação  mundial, pois  com  esses  conhecimentos  os   alunos  efetivamente  estarão  sendo  preparados  para  compreender  e  atuar  numa  sociedade  altamente  tecnologizada.  Algumas  iniciativas   envolvendo  programação  de  computadores  também  estão  em  curso  no  Brasil,  mas  ainda  muito   concentradas nas escolas privadas.  O  desafio  posto  à  educação,  em  geral,  e  à  escola  pública,  em  particular,  é  criar  ambientes  onde  esses  conhecimentos  possam ser  trabalhados com os alunos  e onde  a  vasta  gama  de  informações  a  que os alunos têm acesso seja discutida, analisada e gere  novos  conhecimentos,  onde  as  práticas  pedagógicas  e  os  currículos  sejam  abertos,  21

  http://www.fayerwayer.com/2014/09/programacion­web­sera­una­asignatura­obligatoria­en­los­colegios­de­m adrid/?utm_content=buffer54e85&utm_medium=social&utm_source=facebook.com&utm_campaign=buffer.  Acesso: 08 set. 2014. 

flexíveis,  hipertextuais,  para  dar  conta  da  diversidade  de  temas  que  atravessam  o  cotidiano  dos  sujeitos  aprendentes.   No  entanto,  para  que   essas  novas  perspectivas  possam  consolidar­se  é  necessário  tomar  a  liberdade  como  princípio.  É na liberdade, e  não  no  cerceamento,  de  forma  coletiva  e  colaborativa,  que o conhecimento  é  produzido,  que a autoria e a criatividade emergem.  Nesse  sentido,  o  acesso  à  infraestrutura  de  comunicação,  com  todas  as  liberdades  e  possibilidades   que  discutimos  ao  longo  deste  texto,  é  fundamental.  E  acesso  pleno  requer  qualidade  de  conexão,  tanto  na  largura  da  banda como  na estabilidade  do  sinal,  serviço  que  as  escolas  não  estão  recebendo  das  operadoras  comerciais.  No  Brasil,  a  conexão  das  escolas está na mão destas operadoras, pois, em 2008, o governo lançou o  Programa  Banda   Larga  nas  Escolas  (PBLE),  e,  para  operacionalizá­lo,  alterou  o  Plano  Geral  de  Metas  para   a  Universalização  do  Serviço   Telefônico  Fixo Comutado  Prestado  22

no Regime  Público  –  PGMU  (Decreto nº  4.769) ,  passando a  contar com as operadoras  comerciais  para  a  conexão  de  todo  o  sistema  de  escolas  públicas  urbanas  no  país.  Conforme  o  compromisso  assumido  pelas  empresas,  mesmo  as  novas  escolas  que  surgissem  durante  a  execução  do  programa  deveriam  estar  conectadas  até  2010.  No  entanto, muitas  escolas  urbanas  ainda  não foram atendidas, segundo o site desenvolvido  pela  ONG  Meritt  e  pela  Fundação  Lemann23 ,  que  organiza  as  informações  veiculadas  pelo  poder  público.  Constata­se,  a  partir  dos  dados  analisados,  que  84%  das  escolas  públicas  urbanas  possuem  conexão,  sendo  que  banda  larga é oferecida  a  apenas 73%  das escolas. O dado bruto poderia ser alvissareiro  se não tivéssemos acesso à realidade  cotidiana  das escolas  que apontam  claramente  para  uma  ausência  de  conexão, seja por  não estar  ativa,  seja por  conta  da velocidade  da  conexão e estabilidade do sinal. No que  diz  respeito  às  escolas  rurais,  a  situação  ainda  é   mais  crítica,  apenas  14%  delas  possuem conexão internet, sendo que banda larga só está disponível em 7% das escolas.  Esse  quadro  mostra  que  a conexão  das  escolas  não  pode ficar  sob a responsabilidade  única  das  operadoras  privadas,  demandando  políticas  públicas  que  garantam  que  o  22 

Disponível em:  http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%204.769­2003?OpenDocumen t,  Acesso: 08 set. 2014.   23  http://www.qedu.org.br/brasil/censo­escolar 

acesso  à  internet  seja  um  direito  fundamental,  disponível  para  todo  o  cidadão,  com  qualidade.  Entre  os  tantos  aspectos  da  questão,  as  relativas  ao  marco   legal  é  uma  dessas questões e, como esperamos ter apresentado neste artigo, representa um grande  desafio  que  está  sendo  enfrentado  com  luta  e  participação  social,  o  que consideramos  ser  uma  das  importantes funções de um sistema  educacional  que  busque  a formação de  um cidadão crítico.         

Referências  

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