Artigo para o EPENN 2014 Trabalho encomendado para o GT 16 Educação e Comunicação
O Marco Civil da Internet - desafios para a educação Nelson De Luca Pretto
[email protected] Maria Helena Silveira Bonilla
[email protected]
Introdução Em meados do século passado, mais precisamente durante o final da década de 1960 e ao longo das duas seguintes, iniciavase, basicamente nos Estados Unidos, a ideia de articularse as redes de comunicação de dados já existentes. Começa a configurarse a criação de uma rede das redes, uma metarrede, que veio a ser conhecida, rapidamente como Internet, ainda escrita, naquele tempo, com o I maiúsculo. Jovens programadores espalhados pelos laboratórios de universidades e centros de pesquisa da Califórnia, Massachusstes e Utah, começaram a trocar informações via rede de dados, configurandose, nos anos 1970, a primeira rede denominada ARPANET (LEVY, 2012). Nos anos 1980 essa rede se desdobra, constituindo a MILNET, exclusiva dos militares americanos, e a ARPNET é expandida para outras universidades e centros de pesquisa no mundo inteiro, com o nome de Internet. Era uma internet de uso quase que exclusivo da academia. Na final da década de 1980, Tim BernersLee, trabalhando na Organização Europeia para Investigação Nuclear (CERN Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire, em frances), o Laboratório Europeu de Partículas Físicas, propôs a ideia de um Identificador Universal de Documento (Universal Document Identifier) para acessar cada informação disponível na rede, ainda uma rede pequena e interna aos laboratórios de pesquisa (BERNERSLEE, 1998). Mais adiante, em 1990 escreveu um programa chamado "WorldWideWeb", um hipertexto distribuído ainda somente dentro da comunidade científica e, no verão de 1991, distribui mais amplamente o programa,
transformando radicalmente a ideia de rede. Estava criada, assim, a World Wide Web, a conhecida Web (www), a interface gráfica para o uso da rede, e que terminou configurandose quase como sinômino da própria internet. O importante a destacar desta história é que todo esse movimento liderado por BernersLee poderia não ter dado em nada se ele tivesse patenteado a criação. Como afirma Howard Rheingold, outro dos pioneiros da internet, “ele recusase a patentar a solução. [...] Ele queria usála. E sabia que seria mais útil para ele e outros cientistas se muito mais pessoas a usassem” (RHEINGOLD, 2012, p. 147, tradução nossa). A partir de então, a web se populariza, chega a toda a sociedade, com a abertura para o uso comercial. Desta forma, em tese, qualquer cidadão podia estar conectado à rede, desde que tivesse uma linha telefônica, um modem e um local (provedor) para poder fazer a conexão com o primeiro ponto da rede mundial. Importante ressaltar que a principal característica de todo esse movimento, exaustivamente já descrito e analisado por diversos autores e inúmeros trabalhos (CASTELLS, 2003; LEVY, 2012, RHEINGOLD, 2012 e outros), foi conectar redes diferentes, sem procurar transformar cada uma delas em uma única rede. A partilha livre e aberta dos códigos e o uso cooperativo dos recursos possibilitou a criação de protocolos para essa comunicação, e o protocolo TCP/IP (Internet Transfer Porotocol/Internet Protocol) terminou se configurando como sendo o protocolo de comunicação da rede, que viabilizou a troca de dados entre diversos computadores espalhados pelo mundo. Outro princípio que sustentou o funcionamento da internet e que, em teoria, como veremos ao longo deste texto, ainda deve sustentála é o princípio de que todo dado que é recebido por um nó na rede deve ser repassado adiante, sem nenhuma cobrança e sem nenhuma verificação do conteúdo deste dado. Estes princípios são a base da internet e possibilitaram o desenvolvimento da multiplicidade de aplicativos que permitem a circulação de informações e a comunicação generalizada, pois, uma vez que cada projeto é disponibilizado na rede, conta com o apoio e colaboração de muitos desenvolvedores (hackers), profissionais ou amadores, do mundo inteiro, para seu aperfeiçoamento. Ainda, a circulação de informações e a
comunicação ampla permitem que cada sujeito, em qualquer ponto do planeta, desde que conectado, possa constituirse num ponto “emissor"1 , compartilhando suas ideias, sua cultura, seus referenciais e, assim, contribuir para uma visão mais ampla e complexa da própria sociedade. Portanto, esses princípios devem ser defendidos a todo o custo, sob pena de não termos, caso eles sejam afetados, mais a possibilidade de usar a rede com a liberdade que caracterizou o seu nascimento e o uso que dela estamos fazendo, desde os primeiros anos até os dias de hoje. Mas nem tudo se desenvolveu, ao longo deste tempo, da maneira como se previa nos primeiros anos. As grandes corporações de telecomunicações começaram a perceber na internet, de um lado, um bom negócio que precisa ser “melhor administrado”, e alguns governos, de outro lado, um negócio que demandaria ser controlado. Iniciase uma verdadeira guerra pelo controle do funcionamento da internet, com os modelos de negócios das grandes corporações de telecomunicações assumindo um papel protagonista neste embate. Mais uma vez trazendo Howard Rheingold, ao discutir os movimentos das grandes corporações que ambicionam cercar/controlar a rede (enclosure), é importante considerar que o conflito sobre quem tem o direito de usar a mídia digital para criar e disseminar a propriedade intelectual é uma guerra pelo controle político do poder de informar, persuadir, educar, debater e inovar. Argumentos sobre a 'neutralidade da rede' ou o licenciamento do espectro eletromagnético pode exigir que você seja tanto nerd de tecnologia como um expert da política para compreendêlos, mas você pode ter certeza de que as decisões legislativas e judiciais que forem tomadas agora determinarão que no futuro inovadores terão que pedir permissão antes de inventar a World Wide Web ou uma empresa caseira de um motor de busca (RHEINGOLD, 2012, p. 213/4, tradução nossa).
É neste contexto que, no Brasil, ganham força os debates sobre a criação de uma legislação própria para a rede, uma espécie de Constituição para o seu funcionamento, que ficou conhecido como Marco Civil da Internet, que garanta o direito à comunicação
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utilizamos o termo “emissor” entre aspas, por entendermos que ele é próprio das mídias de massa e, no contexto das redes horizontais, precisa ser ressignificado, indicando que todo participante dessas redes passa a ser um interagente, aquele que, ao mesmo tempo, recebe, emite, participa, dialoga, interage, ou seja, usa, plenamente, os processos comunicacionais horizontalizados.
horizontalizada, sem discriminação de qualquer ordem, a todos os cidadãos. Analisar esse movimento, bem como as potencialidades do Marco Civil da Internet, especialmente para a educação, é o objetivo deste artigo. Mas antes, importante se pensar sobre o direito à comunicação e as condições concretas da situação brasileira, pois são sobre essas bases que podemos pensar a educação brasileira.
O Direito à Comunicação
A comunicação faz parte da constituição do ser humano, pois é ela que garante a possibilidade do social, da relação com o outro, do entendimento entre os sujeitos, da transmissão do saber historicamente acumulado, da coordenação das ações, do estabelecimento de normas, o que nos torna, segundo Mario Osório Marques (1999, p. 59), cidadãos singularmente autônomos e socialmente atuantes e corresponsáveis pelo mundo que temos. Portanto, a comunicação é tão antiga quanto o próprio homem e, embora a liberdade de pensamento e expressão apareça como um dos ideários das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, destacandose nas principais declarações de direitos dessa época, a exemplo da Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e mais tarde, já no século XX, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948, o tema da comunicação, enquanto fluxo de informação, só passa a ser mais intensamente discutido no século XX, com a disseminação e empoderamento dos meios de comunicação de massa, constituindose como uma área do conhecimento. Durante todo o século XX, segundo Eugenio Trivinho (1999, p. 181182), procedimentos práticos, categorias e esquemas teóricos pretenderam dar fundamentação científica à Comunicação, convencionandose encerrar o processo comunicacional em torno do emissor e do receptor, destacandose na relação entre eles mediadores sociais e culturais, tais como a codificação, o contexto, o canal, a mensagem, o signo, o sentido, o ruído. Para Raimunda Gomes (2007), destacamse como focos de pesquisa os meios de comunicação de massa, o conteúdo de suas mensagens, sendo a informação a maior protagonista do processo, e o impacto dessas mensagens nas sociedades. Para esta
autora, a “onipotência das chamadas mídias obscureceu por muito tempo a práxis do processo original: a comunicação” (GOMES, 2007, p. 35), embora alguns autores já denunciassem as fissuras da teoria da comunicação em voga, a exemplo de Brecht, que fez a crítica à transformação ocorrida com o rádio, que de um meio de comunicação que permitia a interação e a mobilização política, passa a operar na perspectiva da radiodifusão, com emissão controlada pelos monopólios e a serviço da lógica mercantil. (FREDERICO, 2007) Foi somente no final do século XX, com a emergência das tecnologias da informação e comunicação, mais especialmente com a internet, que emerge um outro processo comunicacional, em rede, horizontalizado, interativo, que permite a realização de trocas simbólicas
(informações,
sons, imagens) personalizadas, individualizadas e
descentralizadas. Neste novo processo, as categorias elementares da então Teoria da Comunicação, segundo Trivinho (1999, p. 182183), perdem o seu caráter distinto, ora porque se imbricam, se sobrepõem ou se mesclam umas às outras, ora porque se ofuscam mutuamente, se autoanulam e se desfiguram, com a agravante de que esse processo implosivo deixa de comprometer tão somente a natureza dos elementos básicos para deixar ainda em risco o próprio edifício esquemático sob o qual se finca a teoria. Comparecem aqui todas as características de uma era da confusão, expressão correspondente à fase atual da sociedade tecnológica.
Decorre daí a “'liberação' da palavra” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 25), ou a hibridização das funções de emissor e receptor, uma vez que, a partir dos sistemas e ferramentas de comunicação próprios da web 2.0 (blogs, softwares sociais, twitter, wikis) e da emergência dos dispositivos móveis, todo sujeito social que possua acesso ao ciberespaço pode produzir e distribuir informações, e não apenas consumilas, a partir de qualquer lugar do planeta. Para os referidos autores, o fenômeno da “liberação da emissão é correlata ao aumento da esfera pública mundial e da emergência de novas formas de conversação e de veiculação da opinião pública, agora também planetária” (p. 25), o que provoca o surgimento de novas mediações e de novos agentes do processo comunicacional. Em consequência, tensões se estabelecem, quer em torno dos modelos
de negócios do sistema estabelecido, que têm dificultado o acesso de boa parte da população aos serviços de conexão, gerando a chamada “exclusão digital”, quer na relação entre os cidadãos e os governos, quer ainda na legislação que tenta regular os novos sistemas emergentes. É no bojo dessas tensões que aparece a necessidade de tomar a comunicação como um direito de todo cidadão. O primeiro movimento nessa direção se dá com a publicação, em 1980, do Relatório MacBride2, da Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas da Comunicação, da Unesco. Segundo Venício Lima (2008), o Relatório “foi o primeiro documento oficial de um organismo multilateral que não só reconhecia a existência de um grave desequilíbrio no fluxo mundial de informação e comunicações, mas apresentava possíveis estratégias para reverter a situação”, incluindo “as primeiras formulações sobre o 'direito à comunicação', que abarca o 'direito à informação' e avança em relação às repetidas distorções na utilização dos princípios de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa.” Em decorrência, conferências regionais sobre políticas culturais e políticas nacionais de comunicação, sob o patrocínio da Unesco, foram realizadas em várias partes do mundo, bem como a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação foi organizada e realizada, em duas etapas, em Genebra (2003) e em Tunis (2005). Ao longo desse período, os movimentos em favor do reconhecimento do direto à comunicação e a própria UNESCO sofreram forte oposição dos conglomerados globais de mídia e dos países hegemônicos, que lançaram “uma ofensiva mundial a favor do 'livre fluxo da informação', bandeira com 'poder de fogo' equivalente ao princípio da liberdade de imprensa” (LIMA, 2008), o que enfraqueceu o debate sobre a comunicação como direito humano. No entanto, tal debate ganha força novamente, no início deste novo milênio, incluindo o Brasil, em virtude do poder que vai sendo centralizado nas mãos das grandes corporações de telecomunicações, com forte articulação internacional, que impõem seus
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O relatório intitulase Um mundo e muitas vozes, mas ficou conhecido como Relatório MacBride, em uma alusão ao então presidente da Comissão Internacional, o jurista e prêmio Nobel da Paz Sean MacBride.
modelos de negócios, sem que o governo possa adequadamente atuar, quer regulando o sistema, quer ofertando serviços para a população de baixa renda, que fica submetida aos altos custos e à baixa qualidade dos serviços ofertados pelas teles. Neste novo ciclo de debates, duas frentes são abertas sobre o direito à comunicação, uma mais legalista, que toma o direito à comunicação como uma evolução dos direitos à liberdade de expressão e à informação, e portanto um direito humano universal, que deve ser protegido; e outra mais alargada, que vem se destacando com mais força, e que abarca reivindicações em torno de ações destinadas à democratização da comunicação, da proposição de políticas públicas e da criação de um marco legal que assegure a liberdade de informação, a garantia de acesso às TIC para todos, tanto no que diz respeito aos dispositivos, quanto à conexão, e o apoio à produção de conteúdos locais, por todos os grupos sociais. Nesta segunda perspectiva, a comunicação é tomada na sua potencialidade de promotora de direitos, uma vez que vivemos numa sociedade marcada pela desigualdade, por preconceitos e pela violação constante dos direitos básicos dos cidadãos. Para que esses direitos possam ser defendidos, protegidos, reivindicados, bem como outros possam ser reconhecidos, efetivados, disponibilizados, é fundamental que todos os sujeitos sociais tenham acesso aos meios de produção e veiculação das informações, bem como condições de participar dos processos de formulação e monitoramento das políticas relacionadas a cada um desses direitos. É no debate sobre as questões sociais que os problemas vão se tornando “visíveis” e possíveis soluções vão sendo construídas. Assim, a livre circulação de ideias, experiências e opiniões possibilitam a emergência de novos discursos e práticas sociais e a criação de espaços privilegiados de reconstrução da realidade, tornando a comunicação um instrumento de poder, e, portanto, promotora de direitos, como vimos nos recentes movimentos da população brasileira, em junho de 2013, denunciando insatisfação pelas condições sociais e reivindicando seus direitos, mobilizados nas redes e nas ruas (PRETTO, 2014). Logo, as redes digitais constituemse no locus, ou são articuladoras das lutas mais significativas pelos direitos dos cidadãos, e, segundo Bia Barbosa e João Brandt (2005),
do importante Coletivo Intervozes3, constranger o direito à comunicação dificulta a promoção de todos os demais direitos. Portanto, é a comunicação, hoje, uma questão central para a humanidade, a base para uma organização social mais justa e igualitária, plena e democrática. Ainda, exerce um papel educativo, uma vez que possibilita ao sujeito aprender, ter acesso ao conhecimento, a compreender melhor o mundo e ser capaz de interferir em seu entorno e na sociedade. A liberdade de acesso da população a todos os meios de comunicação, dos mais elementares aos mais sofisticados e a liberdade de uso desses canais de comunicação segundos suas necessidades, contribuem para o avanço da cidadania que se realiza não apenas pela possibilidade de participação na comunicação, mas essencialmente porque potencializa a ação cidadã na busca pela ampliação dos demais direitos. (SANTOS, 2013, p.95)
Ou seja, para que todo cidadão tenha voz e vez, e possa atuar ativamente em sociedade, é fundamental o reconhecimento e a viabilidade do direito à comunicação, sem condicionamentos ou impedimentos de quaisquer ordens, cabendo ao Estado a garantia de seu exercício, sem limitálo à mera recepção passiva das informações produzidas de forma centralizada e distribuídas de forma massiva, expressão de um ponto de vista hegemônico. Para que as minorias, as culturas locais, os pontos de vista dissidentes, contrários e contraditórios possam emergir e tensionar o hegêmonico, é fundamental que a esses grupos seja garantido o acesso aos meios de comunicação horizontalizados, que permitem a todos se comunicarem com todos, sem o controle externo dos meios. Nesse contexto, a internet passa a se configurar como a grande possibilidade comunicacional e de expressão das diferenças e, por isso, a delimitação de um marco legal que garanta o princípio de neutralidade da rede é fundamental, pois impede bloqueios ou discriminação dos fluxos de informação, possibilitando igualdade de direitos
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“Coletivo Brasil de Comunicação Social é uma organização que trabalha pela efetivação do direito humano à comunicação no Brasil.” http://intervozes.org.br
a todos, ou seja, que a comunicação e a informação processada por qualquer um seja equivalente a de qualquer outra pessoa, em qualquer ponto da rede.
O Marco Civil da Internet no Brasil A história da presença da internet no país é marcada por lutas e avanços na busca da implantação de uma rede que seguisse os modelos iniciais preconizados pelos seus criadores. Desde o início de sua implantação, no final dos anos 1980, a internet no país foi se constituindo como um esforço conjunto do setor acadêmico, governo e sociedade civil, esta representada pelo chamada terceiro setor. As primeiras conexões com as redes mundiais se deram com a rede Bitnet, através de duas conexões, sendo uma a partir da UFRJ e uma do LNCC (MCT), respectivamente no Rio de Janeiro e em São Paulo. A partir destas conexões, diversas outras universidades e instituições de pesquisas podiam acessar a rede de forma compartilhada, como sempre foi o princípio da rede. De acordo com Michel Stanton, do departamento de informática da PUCRio, a organização das redes brasileiras, no final de 1991, foi eminentemente cooperativa, onde cada instituição participante custeava seu enlace de telecomunicações ou para o Rio ou para São Paulo. (É interessante notar que o enlace direto entre o Rio e São Paulo era custeado pelo governo federal, para manter a harmonia nacional.) Uma solução definitiva para o problema de projetar uma rede nacional deveria adotar uma topologia de malha, o que seria mais robusto, e poderia até reduzir custos de telecomunicações, pela maior utilização de enlaces mais curtos. (STANTON, 1998)
De acordo com Imre Simon, uma “outra ligação pioneira que deve ser mencionada é aquela realizada pela rede Alternex, ligada ao IBASE, uma Organização NãoGovernamental que se ligou à rede USENET, via linha discada internacional, em julho de 1989” (SIMON, 1997). A partir do CNPq, em 1989, iniciase a implantação de um projeto denominado de Rede Nacional de Pesquisa (RNP) que passa, então a liderar a
implantação da rede com a instalação do primeiro backbone nacional em 1991, com links de 9.600 bps (SIMON, 1997). Com a realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, mais conhecida como ECO 92, no Rio de Janeiro, entidades civis e acadêmicas viabilizaram a conexão via internet do evento, constituindose num importante marco da história da internet no país. Mais uma vez, “respondendo a demandas de entidades civis e acadêmicas, o Ministério de Ciência e Tecnologia liderou a criação de uma comissão nacional para acompanhar e coordenar o desenvolvimento da Internet no país”, segundo artigo de um dos pioneiros da internet, Carlos A. Afonso (2011, p. 17), que, na época, junto com o sociólogo Betinho, atuavam no IBASE e, desta forma, demandavam que o acesso não se limitasse à comunidade acadêmica, mas que pudesse estar disponível às diversas ONG existentes no país. Nascia assim o Comitê Gestor da Internet (CGI.br), com a missão de ser o formulador, orientador ou executor de políticas relacionadas ao desenvolvimento da Internet no país. O decreto original de criação destacava quatro campos de atuação: supervisionar o desenvolvimento dos serviços Internet; avaliar e recomendar padrões e procedimentos operacionais e técnicos; coordenar a designação de nomes de domínio “.br” e números IP; publicar estatísticas sobre a Internet (AFONSO, 2011, p. 17).
Dessa forma, a internet foi se implantando no país pela ação do CGI.br e da RNP, que atuava de forma integrada com as Instituições Federais de Ensino Superior, instalando nela os chamados PontosdePresença (POP) que teriam a função de implantar a rede nos Estados, articulando os demais setores não acadêmicos, como os governos estaduais e municipais e a sociedade civil através das ONG. O acesso comercial passa a se dar a partir do ano de 1995, sendo esta uma história que ainda merecerá aprofundamento. Para o que nos interessa neste artigo, importante trazer, mais uma vez, Carlos Afonso, com o detalhamento das mudanças na governança da internet no país. Carlos Afonso: No final de 2002 entidades civis e acadêmicas construíram uma proposta de aprofundamento da representação e dos objetivos do CGI.br, entregue a representantes da Casa Civil em fevereiro de 2003. O governo federal decidiu então nomear um comitê de transição para ‘estudar e propor um novo modelo de governança da Internet no Brasil’. Desse comitê fizeram
parte tanto membros antigos do CGI.br como representantes que defendiam novas propostas. O resultado deste processo foi sacramentado no decreto 4.829, de 3 de setembro de 2003, que definiu uma estrutura pluralista de governança em que os membros não governamentais da comissão teriam maioria e seriam escolhidos pelos seus próprios setores ou grupos de interesses, e melhor precisou suas atribuições. (AFONSO, 2011, p. 18).
A atuação do CGI marcou a governança da internet brasileira, tendo sido destacado internacionalmente este modelo, uma vez que, em todo o mundo, a temática de como garantir o funcionamento aberto e democrático da rede é um tema presente. Um dos marcos desta atuação foi a formulação de princípios norteadores da internet no país, princípios esses que serviram de base para o que veio a ser conhecido posteriormente como Marco Civil da Internet. Mais uma vez Carlos Afonso: “o resultado foi um exemplo de consenso pluralista, sintetizado em dez princípios que tornaramse uma referência nos debates internacionais sobre governança da Internet” (2011, p. 21). São os seguintes os princípios: 1. Liberdade, privacidade e direitos humanos O uso da Internet deve guiarse pelos princípios de liberdade de expressão, de privacidade do indivíduo e de respeito aos direitos humanos, reconhecendoos como fundamentais para a preservação de uma sociedade justa e democrática. 2. Governança democrática e colaborativa A governança da Internet deve ser exercida de forma transparente, multilateral e democrática, com a participação dos vários setores da sociedade, preservando e estimulando o seu caráter de criação coletiva. 3. Universalidade O acesso à Internet deve ser universal para que ela seja um meio para o desenvolvimento social e humano, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória em benefício de todos. 4. Diversidade A diversidade cultural deve ser respeitada e preservada e sua expressão deve ser estimulada, sem a imposição de crenças, costumes ou valores. 5. Inovação A governança da Internet deve promover a contínua evolução e ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso. 6. Neutralidade da rede Filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento. 7. Inimputabilidade da rede
O combate a ilícitos na rede deve atingir os responsáveis finais e não os meios de acesso e transporte, sempre preservando os princípios maiores de defesa da liberdade, da privacidade e do respeito aos direitos humanos. 8. Funcionalidade, segurança e estabilidade A estabilidade, a segurança e a funcionalidade globais da rede devem ser preservadas de forma ativa através de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e estímulo ao uso das boas práticas. 9. Padronização e interoperabilidade A Internet deve basearse em padrões abertos que permitam a interoperabilidade e a participação de todos em seu desenvolvimento. 10. Ambiente legal e regulatório O ambiente legal e regulatório deve preservar a dinâmica da Internet como espaço de colaboração.”4
Mas estes princípios não bastariam. Com a expansão do sistema de telecomunicações, privatizados desde o ano 1998, a partir da promulgação da Lei Geral da telecomunicações (Lei 9.472/97), iniciase mais uma etapa na luta pela garantia de acesso público aos recursos da comunicação. A universalização do sistema já estava prevista na referida lei a partir da instituição de um Fundo de Universalização dos Serviços da Telecomunicações (FUST) que, no entanto, ao longo de todos esses anos não foi utilizado para os seus fins. Não trataremos deste importante tema pois o mesmo já foi bastante discutido, como em Queiroz (2010), e seus relatórios de gestão estão disponíveis no site da Anatel5. Assim, desde o final dos anos 1990, discutese no Brasil formas de se regular o acesso e uso da internet no país. A primeira iniciativa na linha de uma regulação da rede acontece em 1999 com o Projeto de Lei (PL) 84, proposto pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB/MG) objetivando tipificar crimes praticados na internet. A lei foi logo denominada pelos ativistas de AI5 Digital, gerando ampla mobilização nas redes. Um agregador da luta contra esse projeto de lei foi o movimento “MegaNão diga não a vigilantismo”.6 O referido PL passou praticamente 11 anos parado no Congresso e, em 2011 voltou à baila pelo mesmo Eduardo Azeredo, agora Deputado Federal.
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http://www.cgi.br/resolucoes/documento/2009/003, acesso: 22 ago. 2014. http://www.anatel.gov.br 6 https://meganao.wordpress.com/ 5
Neste meio tempo, governo e sociedade civil mobilizaramse em defesa da ideia de primeiro se ter um Marco que regulamentasse o uso da internet para, somente depois se pensar em algum tipo de legislação que tipificasse crimes. Também, tivemos uma sucessão de projetos de leis que tramitaram no cenário internacional, voltadas para o controle dos fluxos nas redes, a exemplo do já citado PL 84/99 que terminou aglutinando outros projetos de lei que já estavam em tramitação para tipificar condutas realizadas mediante uso de sistemas digitais e rede de computadores, e as leis PIPA, SOPA e ACTA7, todas apresentadas com o argumento de proteger os direitos dos internautas, mas tratando a internet como um ambiente criminoso, e deixando explícita a intenção de vigilância, cerceamento de liberdades, e quebra de privacidade. No Brasil, o que se buscou, ao longo deste tempo, foi garantir que a rede mantivesse sua dinâmica livre e aberta. No período que vai de 1999 até meados do ano 2000, a discussão sobre a necessidade de um marco regulatório para a internet que não fosse centrada em uma lógica de criminalização vai ocorrendo na surdina dos movimentos sociais e do próprio Congresso Nacional. Em janeiro de 2008 é realizada na Câmara dos Deputados uma audiência pública organizada pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática em conjunto com a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado para retomar a discussão sobre o tema8, já que havia possibilidade de que o antigo projeto 84/99, aprovado pelo Senado, retornasse à Câmara na forma de substitutivo do senador Eduardo Azeredo (PSDBMG). A organização dos ativistas contrários ao, como já dito, AI5 Digital, intensificouse. Foram diversas ações, como pode ser acompanhada na linha do tempo acima referida, dia de blogagens contra o movimento, produção de peças gráficas que eram distribuídas e ocupavam as redes, tuitagens coletivas em dias de discussão no Congresso, entre outras 9
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. Ao longo de 2008 uma petição pública “Em defesa da liberdade e do progresso do
SOPA (Stop Online Piracy Act), PIPA (Protect IP Act), ACTA(AntiCounterfeiting Trade Agreement) O movimento em defesa do Marco Civil da Internet construiu de maneira colaborativa uma linha do tempo das ações em defesa de um Marco Civiul da Internet que está disponível em:. Acesso em: 22 ago. 2014. 9 Entre outros, http://xocensura.wordpress.com/2008/07/05/chamadaparaodiadablogagempolitica, http://meganao.wordpress.com e https://twitter.com/hashtag/megan%C3%A3o. 8
conhecimento na internet brasileira” circulou na internet e terminou sendo entregue ao Congresso com mais de 160 mil assinaturas. O texto da petição recupera a história da internet ao afirmar: A Internet é uma rede de redes, sempre em construção e coletiva. Ela é o palco de uma nova cultura humanista que coloca, pela primeira vez, a humanidade perante ela mesma ao oferecer oportunidades reais de comunicação entre os povos. E não falamos do futuro. Estamos falando do presente. Uma realidade com desigualdades regionais, mas planetária em seu crescimento.10
Para então concluir, em defesa da internet brasileira: Defendemos a necessidade de garantir a liberdade de troca, o crescimento da criatividade e a expansão do conhecimento no Brasil. [...] Devemos estimular a colaboração e enriquecimento cultural, não o plágio, o roubo e a cópia improdutiva e estagnante. E a Internet é um importante instrumento nesse sentido. Mas esse projeto coloca tudo no mesmo saco. Uso criativo, com respeito ao outro, passa, na Internet, a ser considerado crime. Projetos como esses prestam um desserviço à sociedade e à cultura brasileira, travam o desenvolvimento humano e colocam o país definitivamente para debaixo do tapete da história da sociedade da informação no século XXI.11
No final de 2009, a partir de um texto base elaborado pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com o Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, e com base no Decálogo da Internet Brasileira (a resolução CGI.br/RES/2009/003/P12 do Comitê Gestor da Internet no Brasil), iniciase um processo de consulta pública aberto e colaborativo, que contou com a participação da sociedade civil em diversos momentos, tanto online como offline, pelo período de dois anos. Essa dinâmica de construção de um projeto de lei lhe conferiu caráter inédito, tanto em âmbito nacional como internacional. Nesse processo, procurouse desenhar um Marco Civil da Internet como uma Lei que estabelecesse princípios, direitos e deveres para o uso da internet no país e, portanto, o Projeto de Lei – PL 2.126/2011 – enviado ao Congresso com a denominação de Marco Civil da Internet foi elaborado com base numa ampla discussão com a sociedade, e apresentado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional em agosto de 2011.
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http://www.petitiononline.com/veto2008/petition.html, acesso: 22 ago. 2014. idem, ibidem 12 http://www.cgi.br/resolucoes/documento/2009/003 11
Em discurso realizado durante a 66ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, no painel “Internet Access for All?” (Acesso à Internet para todos?), o secretário de negócios legislativos do Ministério da Justiça, Guilherme Almeida, descreve o processo:
Com relação ao processo, vale a pena mencionar que ele começou a partir de uma demanda da sociedade. (...) Esta demanda levou o Ministério da Justiça a iniciar um processo de construir, em conjunto com todas as partes interessadas, uma estrutura para a internet no Brasil baseada nos direitos civis. Neste processo, tivemos a colaboração do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas, um importante grupo brasileiro para questões de tecnologia. Para promover um debate aberto e online, montamos um site como parte do 'Cultura Digital', rede social brasileira patrocinada pelo Ministério da Cultura para promover a discussão de políticas públicas digitais. Realizamos a elaboração da proposta em duas distintas frentes. Na primeira delas, apresentamos um livro branco, a fim de contextualizar as discussões, que foram organizadas em três diferentes eixos: direitos do usuário, um segundo em relação aos deveres e responsabilidades dos prestadores de serviços, e um terceiro focado nas ações governamentais necessárias para a promoção da Internet. Nesta primeira fase, cada parágrafo do texto proposto foi aberto para comentários não moderados.13
Foram mais de 2 mil contribuições de todos os setores da sociedade brasileira, analisadas pelo Ministério da Justiça, e discutidas no interior do próprio governo para, finalmente, ser enviado o texto ao Congresso, com os seus 25 artigos.
Tradução nossa para ““With respect to the process, it is worth mentioning that it started from a request from society. [...] This request led the Brazilian Ministry of Justice to start a process to build, jointly with all interested parties, a civil rightsoriented framework for internet in Brazil. In this process, we had the close collaboration of Fundação Getulio Vargas’ Center for Technology and Society, an important Brazilian think tank for technology issues. To promote an open and online discussion, we set up a website at “Cultura Digital”, a Brazilian social network sponsored by Brazilian Ministry of Culture to promote the discussion of digital public policies. We 13
conducted the drafting in two different phases. In the first one, we presented a white paper in order to contextualize the discussions, which have been arranged in three different axes: one concerning user’s rights, a second regarding service providers’ duties and liabilities, and a third focused on governmental activities which would be necessary to promote the internet. In this first phase, each paragraph of the proposed text was open for nonmoderated comments.” http://culturadigital.br/marcocivil/2011/10/22/experienciadomarcocivildainterneteapresentadanaonu/, acesso: 04 set. 2014.
Já no Congresso, o tema foi incluído no portal edemocracia14 , importante espaço para as discussões dos projetos em tramitação no Congresso brasileiro. No site15 dedicado à discussão sobre o tema podem ser encontradas as diversas versões do referido marco legal e as discussões travadas ao longo do período de tramitação do mesmo, até o dia 23 de abril de 2014, quando o Marco Civil foi finalmente aprovado e sancionado pela Presidência da República, como a Lei Ordinária nº 12.965/2014. Durante este longo período, muitas disputas se estabeleceram em torno da redação do texto final, disputas estas que marcaram o embate entre as possibilidades de liberdade e de controle da internet no país.
A polêmica no Congresso: os três direitos garantidos pelo Marco Civil Três grandes contenciosos ocuparam o debate ao longo de todo esse tempo: a neutralidade da rede, a retirada de conteúdo sem ação judicial e a garantia de privacidade/guarda de logs.16 Neutralidade da rede esta, sem dúvida, foi a questão que mais rendeu debate e uma verdadeira batalha foi travada ao longo da tramitação da lei do Marco Civil. Basicamente, podemos definir a neutralidade da rede como sendo, primeiro, uma das características que marcou a internet desde o seu nascimento; segundo, podemos afirmar que a neutralidade da rede define que, para as operadoras do sistema de infraestrutura, todos os bits trafegados devem ser tratados de forma isonômica, ou seja, não pode haver
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O portal edemocracia foi criado em 2009 pela Câmaraa dos Deputados com o objetivo de usar a internet para “incentivar a participação da sociedade no debate de temas importantes para o país. Acreditamos que o envolvimento dos cidadãos na discussão de novas propostas de lei contribui para a formulação de políticas públicas mais realistas e implantáveis.” Veja em http://edemocracia.camara.gov.br, acesso: 02 ago. 2014. 15 http://edemocracia.camara.gov.br/web/marcocivildainternet/inicio 16 Um resumo geral de todas as versões do Marco Civil ao longo de todo o processo pode ser encontrado, entre tantos outros, no trabalho de Marcelo Pimenta, Flávio Wagner e Diego R. Canabarro na “Tabela comparativa da redação das versões do Substitutivo do Dep. Alessandro Molon ao texto do Projeto de Lei 2.126/2011 (Marco Civil da Internet do Brasil). Disponível em . Acesso em 01 set. 2014.
nenhum tipo de descriminação do que está sendo trafegado. Por isso, o embate se deu entre os segmentos que defendiam uma internet livre e neutra e as grandes corporações de telecomunicações, que tentavam garantir a possibilidade de continuar aplicando seu modelo de negócios à internet, modelo esse já em uso tanto para a telefonia como para a TV a cabo, ou seja, as teles buscavam garantir o direito de segmentar os conteúdos da rede através da venda de pacotes, controlando assim seu fluxo. Ao término, a redação da lei 12.965 assim definiu a questão, em seu artigo 9º: “O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação” (BRASIL, 2014). A lei prevê que uma eventual descriminação ou degradação do tráfego somente pode ocorrer mediante uma regulamentação complementar, atribuída à Presidência da República (ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a ANATEL) e decorrente de requisitos técnicos indispensáveis à prestação dos serviços ou priorização a serviços de emergência. Essa foi uma vitória parcial da sociedade civil que lutou através de forte articulação em rede e por pressão no Congresso Nacional, para que a neutralidade fosse garantida sem nenhuma exceção. Como esse foi um dos pontos onde as operadoras de telecomunicações mais pressionaram, a redação final terminou deixando algumas brechas para a quebra de neutralidade, através da regulamentação da lei. Retirada de conteúdo conhecida como “notice and takedown”, este foi outro dos motivadores das grandes polêmicas, uma vez que se desejava incluir no marco legal a possibilidade de responsabilização dos provedores por conteúdos publicados na rede por terceiros, responsabilização essa atribuída por qualquer pessoa que julgasse ter tido algum direito infringido pela publicação na internet, sem nenhuma ação judicial. Como diz a própria denominação do dispositivo, bastaria ao suposto prejudicado comunicar ao provedor e ele teria que, imediatamente, retirar o conteúdo da rede. Argumentavase que a prática já existia em outros países e que, com isso, ganhariase em celeridade nos processos de retirada de conteúdo da internet, o que, com veemência, foi combatido pelo movimento social aglutinado em torno da campanha pelo Marco Civil.
Ao longo das discussões com o relator do processo, deputado federal Alessandro Molon (PTRJ), avançouse para não incluir o Notice and Takedown no texto legal (artigo 15º). No entanto, entre tantas idas e vindas, com as inúmeras versões circulando pela rede, oficial e oficiosamente, surgiu uma versão que mantinha basicamente o espírito do referido artigo 15º, mas incluía um segundo parágrafo, que não existia até então, possibilitando a retirada de conteúdo em caso de violação de direito autoral.17 A inclusão deste novo parágrafo foi acompanhada de protestos nas redes, uma vez que associavase à pressão da própria ministra da Cultura, Marta Suplicy, e também de grande grupos da mídia, como as Organizações Globo, conforme declaração do sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, rebatidas pelo relator Alessandro Molon.18 A última versão, que deu origem à lei aprovada, não continha mais este parágrafo, constituindose numa importante vitória dos movimentos sociais na construção do Marco Civil da Internet. Ainda, nesta linha, a redação do artigo 19º contemplou a luta para que a remoção de conteúdos só se desse a partir de ação judicial. Com isso, assim ficou o texto legal: Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. (BRASIL, 2014)
Garantia da privaciadde/guarda de logs por último, mas não menos importante, e obviamente não esgotando a questão nem as polêmicas, vem a problemática da guarda de logs (guarda dos registros). Este foi um tema que terminou dando um impulso à aprovação do Marco Civil por conta da divulgação de informações coletadas e
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“O disposto neste artigo não se aplica quando se tratar de infração a direitos do autor ou a direitos conexos”, conforme substitutivo I de 4/7/2012. 18 Respectivamente em http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/07/sergioamadeuagloboquerdesvirtuaromarcocivil/ e http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/07/marcocivilpelaneutralidadeprivacidadeeliberdade/, acesso: 12 jul. 2014. Também em http://www.idec.org.br/emacao/artigo/noticiasdobrasilumpoucosobreomarcocivildainternet e http://idgnow.com.br/blog/circuito/2013/10/18/entidadesdosetoraudiovisualdefendemnoticeandtakedow nnomarcocivil/, acesso: 12 jul. 2014.
armazenadas pela Agência de Segurança Nacional (NSA, em inglês) americana, por um funcionário terceirizado, Edward Snowden, que trabalhava para a NSA. Em função do que ficou conhecido como sendo o Caso Snowden que mostrou estarem sendo espionadas diversas autoridades em diversos países, inclusive o Brasil e sua presidente , o tema da segurança das informações e da guarda dos logs ganhou relevância ainda maior. A discussão posta era, basicamente, sobre quem deveria guardar os registros de navegação e por quanto tempo. Uma difícil discussão, uma vez que a temática é permeada por aspectos técnicos. O resultando final, no entanto, garantiu, em última instância, a privacidade como princípio e direito fundamental. Vale aqui resgatar, apesar de longa, a síntese feita por Joana Varon e Bruna Castanheira no site Oficina Antivigilância19 , sobre o princípio da proteção da privacidade garantido na lei: ●
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“Provedores de conexão devem manter registros de conexão por 1 ano, nos termos do regulamento. E são vedados de guardar registros de acesso a aplicações. Autoridade policial ou administrativa ou Ministério Público podem requerer guarda por prazo superior. Nesse caso, não há limite de prazo. Tal requerimento será mantido em sigilo pelo provedor responsável pela guarda dos registros, desde que depois do pedido cautelar da autoridade haja ordem judicial pela guarda. Provedores de aplicação ‘constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet’. É vedada a guarda de registros de acesso a outras aplicações se não houver consentimento e de dados pessoais excessivos em relação à finalidade do consentimento. Ordem judicial poderá determinar a guarda obrigatória de registros específicos para provedores que não se encaixam nesse perfil, desde que por período determinado. Autoridade policial ou administrativa ou Ministério Público podem requerer guarda por prazo superior. Nesse caso, não há limite de prazo fixado na lei. Parte interessada poderá requerer o fornecimento de registros de conexão ou de acesso a aplicações com o propósito de formar
https://antivigilancia.wiki.br/boletim_antivigilancia/9#trilha_1ativismo_e_politicas_digitais, acesso: 07 set. 2014.
provas em processo cível ou penal, desde que apresente a) indícios da ocorrência de ilícito, b) justificativa da utilidade de tais registros e c) período dos registros requeridos. ● ‘O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros de conexão e de acesso a aplicações de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial.’ ● O conteúdo das comunicações privadas também só poderá ser disponibilizado por ordem judicial. ● Dados cadastrais poderão ser disponibilizados para ‘autoridades administrativas que detenham competência legal para sua requisição.’” (as citações internas são da Lei 12.965/2014)
Como pode ser visto, esta guarda deve atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas. O texto final da Lei indicou, como resultado das discussões, que esses dados deveriam ser guardados por um ano, apenas pelos administradores de sistema autônomo. Importante observar que ao se falar em guarda de logs, temos que diferenciar o que seja a guarda de registro de conexão (data, hora e duração da conexão de um determinado número IP) e guarda do log de acesso à aplicações (data e hora de uso de uma aplicação por um determinado número IP). Sendo assim, o que ficou na versão final é que devem ser guardados apenas os registros de conexão. Esses foram os três contenciosos principais em torno do Marco Civil da Internet que geraram intensas discussões e negociações, mas que marcaram o movimento brasileiro em torno da efetivação do direito à comunicação. O resultado desse movimento foi a garantia, pelo menos temporariamente, dos princípios que nortearam a constituição e o desenvolvimento da rede, e da possibilidade de todos terem acesso igualitário e poderem se expressar com liberdade. Temporariamente porque, no momento que fechávamos este texto, não tendo o Marco Civil completado nem mesmo cinco meses de vigência, já havia sido proposto no Senado o Projeto de Lei número 180/2014, com o objetivo de alterar alguns dos seus dispositivos, ”para estabelecer a finalidade e restringir o rol de autoridades públicas que podem ter acesso a dados privados do cidadão na internet, prever a possibilidade de recurso contra decisão interlocutória que antecipa
tutela no âmbito dos Juizados Especiais e dar outras providências”, conforme matéria publicada no site do Instituto Telecom20 , o que evidencia que o tema não está esgotado e que tensões e negociações em torno do Marco Civil continuarão a se desenrolar. Isso, obviamente, mostranos a importância de uma permanente vigilância de toda a sociedade para que possamos, efetivamente garantir o pleno uso da internet, com liberdade e privacidade, a todas as camadas da população.
Potencialidades e desafios para a educação
Todas as questões até aqui tratadas estavam mais voltadas para uma leitura do mundo contemporâneo. Importante agora olhar a educação. E, para tal, é necessário se pensar na presença das tecnologias digitais de informação e comunicação na educação não como mera ferramentas auxiliares dos processos educacionais instituídos, conforme já avançamos em outros textos (PRETTO, 2011 e PRETTO, 2014). No conseguimos pensar em um sistema educacional que continue centrado na lógica da transmissão e de distribuição de informações, embora este ainda seja o modelo hegemônico. Nesse modelo, o conhecimento está centrado nos livros, nos professores, e agora também nas redes, e deve ser transmitido aos alunos, cabendo a estes consumilos e assimilálos. No passado, as informações eram escassas e fazia sentido procurarmos a escola e os mestres para buscálas. No entanto, hoje, temos abundância de informações, e isso, diferentemente do que pensam alguns (KEEN, 2008, entre outros), é muito importante para a formação da juventude. Com a emergência das redes interativas, horizontais e descentralizadas, novas questões são incorporadas ao processo formativo, tais como o estabelecimento de relações, a interatividade, a problematização e a produção do conhecimento. A partilha do conhecimento passa a ser potencializada uma vez que o resultado desta produção passa a estar disponível na rede, viabilizando, com isso, um uso pleno e ampliado, estimulando as práticas recombinantes, com todos podendo usar, copiar, reproduzir e remixar os 20
http://institutotelecom.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5999:projetodeleinosenad opretendealteraromarcocivildainternet&catid=1:latestnews, acesso: 31 ago. 2014
conteúdos, naquilo que denominamos de um círculo virtuoso de produção de culturas e conhecimentos. Desta forma, estimulase o envolvimento de todos, alunos, professores e comunidades, partindo do princípio da colaboração em rede, possibilitando não só a partilha, como também a produção do conhecimento de forma horizontalizada. Aqui, importante destacar que o conhecimento estabelecido é parte deste diálogo e sua partilha possibilita que o mesmo seja utilizado e aprendido como integrante do processo de produção de novos conhecimentos e culturas. Também, a comunicação passa a ser ampla e generalizada e, com isso, a aprendizagem, nesse contexto, não se dá na mera relação sujeitoobjeto, concepção superada pelas perspectivas interacionistas, que entendem que a aprendizagem se dá na relação entre sujeitos: “[...] fundase a aprendizagem no mundo dos homens que ouvem uns aos outros, postos à escuta das vozes que os interpelam” (MARQUES, 1995, p. 110). Portanto, a possibilidade de comunicação horizontalizada permite que os sujeitos aprendentes, alunos e professores, possam ter acesso ao conhecimento produzido pela humanidade, uma vez que praticamente tudo já está disponível nas redes e, desta forma, possam compartilhar suas ideias, suas culturas, seus referenciais, suas concepções de mundo, aprendendo, todos com todos, e contribuir para uma compreensão mais ampla, critica e complexa da própria sociedade. Possibilita ainda que professores e alunos participem e/ou desencadeiem movimentos ativistas em torno de questões sociais e profissionais, interferindo em seu entorno e na sociedade. Desta forma, com uma rede fortalecida, a produção de conteúdos passa, também ela, a se dar de forma aberta, incorporando todas as potencialidades dos ambientes da web 2.0. Como não estamos mais dependentes da mídia de massa, ou da indústria cultural, temos a possibilidade efetiva de nos posicionarmos – professores e alunos – como propositores, idealizadores, autores, de transformarmos a escola num espaço de criação e socialização dessa produção. Produção que pode ser realizada nas mais diferentes linguagens, já que as tecnologias digitais possibilitam trabalhar com qualquer uma delas. Historicamente, a produção da escola não tem visibilidade, pois fica restrita ao seu
contexto interno. Temos agora as condições para ultrapassar suas paredes, aproximando o mundo de dentro da escola do contexto social mais amplo. Ainda, para ampliar a nossa capacidade de leitura das informações que abundam, precisamos pensar a leitura numa dimensão muito maior daquela que estamos acostumados a associar às letras e, no máximo, aos números. Agora, muito mais do que antes, isso é insuficiente. É importante que tenhamos a capacidade de ler num sentido muito mais amplo. Uma leitura do mundo, que inclua a leitura dos códigos de programação dos computadores; a leitura das imagens que circulam de forma frenética pelas redes e pelas ruas; a leitura do corpo cada vez mais preso a gadgets eletrônicos; e a leitura do ambiente cada vez mais destruído, aqui, ali e acolá. Paralelamente e de forma complementar, precisamos pensar na escrita, esta também para além da escrita associada às letras e avançarmos, como propõe Douglas Rushkof (2010), para o ensino da linguagem dos computadores, ou seja, para o ensino de programação nas escolas. O reconhecimento dessas potencialidades vem mudando alguns sistemas de educação, como é o caso da rede educacional de Madrid, Espanha, que deverá incorporar, a partir de 2015, a programação como atividade obrigatória para o ensino secundário21 , com o objetivo de que os alunos aprendam a criar sítios web, aplicações para smartphone, jogos e adquiram conhecimento de robótica. A grande meta com esse projeto é colocar o país na vanguarda da educação mundial, pois com esses conhecimentos os alunos efetivamente estarão sendo preparados para compreender e atuar numa sociedade altamente tecnologizada. Algumas iniciativas envolvendo programação de computadores também estão em curso no Brasil, mas ainda muito concentradas nas escolas privadas. O desafio posto à educação, em geral, e à escola pública, em particular, é criar ambientes onde esses conhecimentos possam ser trabalhados com os alunos e onde a vasta gama de informações a que os alunos têm acesso seja discutida, analisada e gere novos conhecimentos, onde as práticas pedagógicas e os currículos sejam abertos, 21
http://www.fayerwayer.com/2014/09/programacionwebseraunaasignaturaobligatoriaenloscolegiosdem adrid/?utm_content=buffer54e85&utm_medium=social&utm_source=facebook.com&utm_campaign=buffer. Acesso: 08 set. 2014.
flexíveis, hipertextuais, para dar conta da diversidade de temas que atravessam o cotidiano dos sujeitos aprendentes. No entanto, para que essas novas perspectivas possam consolidarse é necessário tomar a liberdade como princípio. É na liberdade, e não no cerceamento, de forma coletiva e colaborativa, que o conhecimento é produzido, que a autoria e a criatividade emergem. Nesse sentido, o acesso à infraestrutura de comunicação, com todas as liberdades e possibilidades que discutimos ao longo deste texto, é fundamental. E acesso pleno requer qualidade de conexão, tanto na largura da banda como na estabilidade do sinal, serviço que as escolas não estão recebendo das operadoras comerciais. No Brasil, a conexão das escolas está na mão destas operadoras, pois, em 2008, o governo lançou o Programa Banda Larga nas Escolas (PBLE), e, para operacionalizálo, alterou o Plano Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comutado Prestado 22
no Regime Público – PGMU (Decreto nº 4.769) , passando a contar com as operadoras comerciais para a conexão de todo o sistema de escolas públicas urbanas no país. Conforme o compromisso assumido pelas empresas, mesmo as novas escolas que surgissem durante a execução do programa deveriam estar conectadas até 2010. No entanto, muitas escolas urbanas ainda não foram atendidas, segundo o site desenvolvido pela ONG Meritt e pela Fundação Lemann23 , que organiza as informações veiculadas pelo poder público. Constatase, a partir dos dados analisados, que 84% das escolas públicas urbanas possuem conexão, sendo que banda larga é oferecida a apenas 73% das escolas. O dado bruto poderia ser alvissareiro se não tivéssemos acesso à realidade cotidiana das escolas que apontam claramente para uma ausência de conexão, seja por não estar ativa, seja por conta da velocidade da conexão e estabilidade do sinal. No que diz respeito às escolas rurais, a situação ainda é mais crítica, apenas 14% delas possuem conexão internet, sendo que banda larga só está disponível em 7% das escolas. Esse quadro mostra que a conexão das escolas não pode ficar sob a responsabilidade única das operadoras privadas, demandando políticas públicas que garantam que o 22
Disponível em: http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%204.7692003?OpenDocumen t, Acesso: 08 set. 2014. 23 http://www.qedu.org.br/brasil/censoescolar
acesso à internet seja um direito fundamental, disponível para todo o cidadão, com qualidade. Entre os tantos aspectos da questão, as relativas ao marco legal é uma dessas questões e, como esperamos ter apresentado neste artigo, representa um grande desafio que está sendo enfrentado com luta e participação social, o que consideramos ser uma das importantes funções de um sistema educacional que busque a formação de um cidadão crítico.
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