O medo, as suas modalidades e discursos

September 10, 2017 | Autor: Luis Ramalho | Categoria: Antropología Política, Antropología, Historia Cultural, Antropologia Da Emoção, Cognição Social
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Luís Pedro Ramalho, nº 53869, AC 1 | Crise e Catástrofe

Existir é ter medo e “catastrofar” Porquê o medo? Em primeiro lugar por um interesse na violência como processo de construção identitária, onde o medo, quer como gerador de violência, quer como criação de alteridade, desempenha um papel fundamental. Em segundo lugar por uma experiência pessoal de infância num meio (de guerra civil) onde o medo se torna omnipresente, e onde se manifesta de formas peculiares. Em terceiro lugar um interesse epistemológico do papel das emoções na construção das racionalidades e discursos, e mais importante até, nas acções quotidianas e “vulgares”. Em quarto e último lugar, e a razão mais preponderante para este ensaio de crise e catástrofe é a noção de que inerente, ou como pano de fundo a todas as narrativas de crise ou catástrofe esta o medo. Ele é subjacente à própria ideia de crise e catástrofe, e as suas analises não se lhe escapam, quer sejam as catástrofes projectadas, isto é, num tempo futuro, quer sejam vividas no presente ou no passado.

A História e o medo

Caracterizar o medo pressupõe por um lado a sua história, por outro lado perceber como funciona ou que processos usa. Jean Delumeau, na sua História do Medo dá-nos três perspectivas históricas sobre o medo. A primeira é a resposta a pergunta: Existe um medo de classe? Isto é, será que conforme a classe económica e social, o medo pode ser maior? Pode haver mais medos? Ou são apenas diferentes? Na obra de Delumeau essa diferença parece ser apenas ao nível de uma narrativa criada ao longo da história para utilizar o medo como ferramenta de poder e superiorização, quer pela nobreza nos seus contos de cavaleiros destemidos, quer pela igreja como interlocutores e mediadores da vontade de deus, ou como criadores de castigos e infernos. Em segundo lugar uma perspectiva do medo enquanto construtor efectivo da história devido a acontecimentos marcantes como as guerras e violência na Europa, os cismas, as peste e as pragas. Em terceiro lugar temos uma perspectiva mais “filosófica”, mais transversal a toda a condição humana, que se reflecte na acção através da significação e simbolismo, é uma perspectiva de uma cognição reflexiva desse medo. Também William Desmond, em Lessons of fear: A reading of Thucydides, se enquadra nesta “historicidade” do medo. Este autor analisa os escritos do historiador, filosofo e general Grego para descrever a preponderância do medo na política de alianças, acordos e submissão, e remete-nos para Thomas Hobbes, o filosofo e político Inglês do fim do renascimento, para quem o medo é “motor” e fundamento das relações e da necessidade de uma ordem de estado e lei. Que também é tratado num texto de Jan H. Blits, Hobbesian Fear. (1) 1) Thucydides writes under the assumption that fear is the most important incentive to the formation of treaties, alliances, states, and eventually empires. Thus, in the Archaeology, the insecurity of the state of nature, and fear of “more numerous others” compel disparate individuals or groups to coalesce into a single military or political entity. The Mycenaeans’ fear of the returning Sons of Heracles, for instance, prompts them to crown Atreus as their protector. The alliance that sailed to Troy to recover Helen was convened not by the suitors’ oaths (Thucydides reasons), but by fear of Agamemnon’s naval power. Lessons of Fear: A Reading of Thucydides. William Desmond More than any other philosopher, Thomas Hobbes emphasizes the determining power of fear. Fear, according to Hobbes, suffuses and shapes human life. It pervades the state of nature, of whose many miseries the “worst of all [is] continual fear, and the danger of violent death.”’ It is both the sole origin of civil society (“the original of all great and lasting societies consisted not in the mutual good will men had towards each other, but in the mutual fear they had of each other”)’ and the only reliable means of its preservation... Hobbesian Fear. Jan H. Blits

Luís Pedro Ramalho, nº 53869, AC 1 | Crise e Catástrofe

O medo é visto na história como persuasivo, inibidor e organizador das relações e acções humanas, individuais e sociais. Voltando a Delumeau. Na sua obra podemos perceber como o medo, justificado nos acontecimentos na Europa entre os séculos XIV e XVIII, passou sobretudo por uma interpretação religiosa que apesar de assolar os próprios (religiosos, Clero), foi também instrumentalizado para construir uma ordem e poder clerical, através de narrativas, significações e rituais que envolviam a culpa, o pecado, o sacrifício, a redenção, o arrependimento ou o castigo. Sem dúvida deste ponto de vista o medo foi manipulado e incutido ao nível das classes. Mas apenas manipulado, porque quanto a sentir o autor revela-nos que apesar de serem medos ou intensidades diferentes, as elites “sofriam” mais de medo. (2)

O medo conserva-nos, a curiosidade impele-nos

No entanto é possível e pertinente referir que o medo possui também uma “história natural” ou, bio-fisiológica, e pode ser abordado ao nível individual pela psicologia ou ao nível social (colectivo) pela História, como atrás foi referido, mas também pela Sociologia e Antropologia. Do ponto de vista biológico ou evolutivo o medo é uma característica universal nos chamados animais vertebrados, com mais ou menos nuances, ou mais ou menos “sofisticação” entre eles, e cujo centro situa-se ao nível da amígdala (órgão cerebral). O medo teria assim sido característica seleccionada pelos sobreviventes das adversidades. Não quero com isto dizer que se tenham preservado os cobardes e medrosos, isto porque se por um lado a sua manifestação (do medo) pode ser a paralisia ou fuga, por outro pode ser a agressividade. (3) Embora seja um sentimento universal e mensurável pelas manifestações psicofisiológicas, pode ser sentido e manifestado de diversas maneiras. Também o que o origina pode ser muito diverso. G. Stanley Hall, que conduziu um estudo publicado em 1897, publicado no American Journal of Psychology, fez um levantamento de 5037 medos, manifestado de outras muitas maneiras, que podem ser classificadas segundo a sua intensidade em: angustia, ansiedade, medo, pânico ou terror, e como já referido, manifestado com paralisia, agitação, fuga ou agressividade e cujos sintomas mais comuns são os suores frios, palidez, hiperventilação ou falta de ar (peito apertado). Ou seja o que o causa, percepção a montante, assim como a forma como se manifesta, a jusante, diferem muito de indivíduo para indivíduo, embora hajam algumas linhas comuns.

2) É no momento — séculos xiv -xvi — em que começam a avançar na sociedade ocidental o elemento burguês e seus valores prosaicos que uma literatura épica e narrativa, encorajada pela nobreza ameaçada, reforça a exaltação sem nuança da audácia. “Como a lenha não pode queimar sem fogo”, ensina Froissard, “o fidalgo não pode chegar à honra perfeita, nem à glória do mundo, sem proeza.”5 Três quartos de século mais tarde, o mesmo ideal inspira o autor de Jehan de Saintré (por volta de 1456). Esse arquétipo do cavaleiro sem medo, perfeito, é constantemente realçado pelo contraste com uma massa considerada sem coragem. Jean Delumeau, História do Medo no Ocidente. 1300-1800 Uma cidade sitiada. Tradução Maria Lucia Machado. 2009 3) IF a true psychology is physiological, and if the physiological furniture of the world is largely the result of a vast series of experiments of which only the most successful ones have survived, it ought to be possible to find an important useful significance in the thought-habits, the instincts, the will-mechanisms, the emotions of animals, and more especially of man. It was this conviction that set Darwin to work on his ‘Expression of the emotions in man and animals.’ Among these emotions there is one, very wide-spread in the animal kingdom, as Dr. Romanes has shown (‘Mental evolution in animals’), very important to the welfare of the animal, and typical of the suggestive conceptions resulting from the positing of a comparative and a physiological point of view, - the emotion of fear. The object of fear is to advertise and escape danger to life. It would not do to leave the danger to be avoided by a reasoned action: there would be no time to form syllogisms. Nature puts the emotion first, and the reasoning afterwards. The chickens would soon disappear if they had not an instinctive, fear of the fox. There is, then, a simple form of the emotion which expresses itself by an unreasoned, involuntary reflex action. These effects are well shown by the typical picture of terror, - the pale features, the limbs fixed power-less to move, trembling, chattering of teeth, altered heart-beat, gasping breath, cold perspira-tion, etc. These paralyzing effects of fear may reach a dangerous intensity, and produce death by arresting the activity of the heart. The Psychology of Fear J. J.Source

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Dessas linhas comuns destacam-se o condicionamento da acção e raciocínio, e os medos inatos. Estes últimos teriam sido resultado de medos de situações concretas e constantes ao longo do tempo, como o medo do escuro, resultante de ataques de animais e da incapacidade perceptiva no escuro, o medo do desconhecido e o medo de cair. Manifestados inclusivamente com reflexos físicos, sobretudo nas fases precoces da vida (infância). Do ponto de vista antropológico podemos partir da premissa que sendo o medo um sentimento ou emoção universal, e por conseguinte estruturante ao nível das relações e significações, é no entanto dependente de contextos sócio-culturais para essas relações, manifestações e significações, e por outro lado, a sua origem, ou o que o causa, também é em parte, dependente de uma interpretação feita ou adquirida nessa variação de contextos. Depende da linguagem ao nível expressivo, e de como as culturas estruturam as emoções e interpretam ameaças e riscos. Isto quer dizer também que o medo não só varia geograficamente como temporalmente. Há medos específicos de cada época e para cada lugar, assim como há medos comuns, como já vimos. Uma dos trabalhos relevantes para constatar empiricamente estas afirmações é o de Clayton A. Robarcheck, Learning to fear: A case study of emotional condioning, entre os Semai, população aborígene das montanhas do centro da península Malaia. (4) Este trabalho não só oferece dados concretos para premissa da variação cultural do medo, como também da sua característica de transmissão cultural. É no entanto num outro artigo da área das neurociências que o processo da aprendizagem social do medo é explicada: Social Learning of Fear, de Andreas Olsson e Elizabeth Phelps (2007). (5) Assim em jeito de sumário desta introdução, podemos dizer que o medo tem uma componente inata, e é um “mecanismo matricial”, isto quer dizer que existe uma propensão ou capacidade para sentir medo e por conseguinte aprende-lo, o que lhe dá uma capacidade de “contagio”. Pode desta forma ser analisado individualmente ou colectivamente.

4) T  he sole exception to this generalization of low affect is in the expression of fear. Dangers of all sorts are ubiquitous in the Semai world. They fear strangers, supernatural beings, storms, and animals; virtually everything in their culturally constituted environment is viewed as actually or potentially threatening. Even that gentlest and most harmless of nature’s creatures, the butterfly, may bring disaster and death if not dealt with circumspectly. Behavior in all areas of life is rigidly circumscribed to avoid precipitating the dangers inherent in this universe (Robarchek 1977a). The examination of the relationships between cognition and affect, between specific cul-tural beliefs and the conditioning of fearfulness in individuals, may provide a key to at least a partial understanding of how an emotional “specialization” and a distinctive cultural ethos come into being and are maintained in a particular sociocultural system. It is ap-parent that we are dealing here with affect and cognition on two levels: with individual beliefs and emotions, and with cultural norms of belief and affect. Bateson, many years ago, coined the terms “ethos” and “eidos” to refer respectively to the affective and cognitive aspects of a cultural system. Learning to Fear: A Case Study of Emotional Conditioning. Clayton A. RobarchekSource 5) R  esearch across species highlights the critical role of the amygdala in fear conditioning. However, fear conditioning, involving direct aversive experience, is only one means by which fears can be acquired. Exploiting aversive experiences of other individuals through social fear learning is less risky. Behavioral research provides important insights into the workings of social fear learning, and the neural mechanisms are beginning to be understood. We review research suggesting that an amygdala-centered model of fear conditioning can help to explain social learning of fear through observation and instruction. We also describe how observational and instructed fear is distinguished by involvement of additional neural systems implicated in social-emotional behavior, language and explicit memory, and propose a modified conditioning model to account for social fear learning. A better understanding of social fear learning promotes integration of biological principles of learning with cultural evolution. […] The social environment provides a suitable medium to transfer emotionally significant information between individuals. Verbally communicating with a fellow human or observing a conspecific’s expressions of fear are two such means that can produce learning that shares both behavioral and neural qualities with fear acquired through fear conditioning. […] Social transmission and detection of fear signals is well documented in a range of species. The ability to detect and respond appropriately to signs of fear and pain in a conspecific probably has conferred a significant selective advantage during evolution. However, these signs not only alert the receiver about potential imminent danger, they also assign a threat value to the context or cue associated with the threat. […] The study of fear learning through social observation is informed by different lines of research, from emotional contagion and imitation to more complex operant tasks. Learning about potentially harmful stimuli and events is critical in shaping adaptive behavior in a rapidly changing environment. It allows animals to establish and update associations between external events and motivational states such as fear. Fear can be expressed, transmitted and acquired in various ways. Social learning of fear. Andreas Olsson & Elizabeth A Phelps

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Aviso: Isto são conjecturas

Para a abordagem do medo numa perspectiva antropológica de crise e catástrofe, vou-me debruçar sobre três aspectos. O primeiro é um estado de liminaridade, no sentido em que os indivíduos que sofrem um medo intenso encontram-se subjugados em todas as suas dimensões a esse estado. Toda a sua existência (ontológica) passada ou futura, fica suspensa. Não podem existir num estado pré-medo ou ausência de medo, nem num estado de pós-medo. Não lhes aconteceu ainda o que temem, mas não conseguem deixar de estar condicionados por esse medo. Tudo o que possa acontecer nesse momento é uma acção que não remete para fora dessa situação, é auto-referencial. O segundo aspecto é uma abordagem baseada no medo universal da morte, como lhe chamam Calvin Moore e John Williamson. A consciência da finitude no ser humano é muito precoce em termos evolutivos, não só a sua própria finitude, mas também a da maior parte das coisas que o rodeiam. Creio que a consciência dessa finitude foi ao longo dos tempos passando de uma percepção ligada a doenças, acidentes e de forma geral “acontecimentos traumaticos-catástroficos”, para uma noção de ciclicidade relacionada à passagem do tempo, que é exterior a si e independente de acontecimentos rotineiros ou a momentos. Renovação, nascimento, maturidade e morte. (6) Do ciclo de existência do indivíduo são extraídas duas percepções: Uma existência efémera e frágil, com muitas condicionantes exteriores, onde a imprevisibilidade sujeita o indivíduo à morte. E uma ciclicidade em que tudo o que existe vai mudando ao longo do tempo, até deixar de existir. Estas duas percepções são transferidas para escalas sociais (de número, ou colectivas) e de tempo numa forma narrativa ou discursos que projectam as existências individuais para o social e para o futuro. Se o indivíduo morre num tempo curto, o colectivo também morre, mas num tempo mais longo. Assim como os mitos ou cosmogonias explicam o principio, explicam também o fim, em forma de catástrofe, ou renovação pós-cataclistica. O tempo projecta-se para trás no passado e na criação e projecta-se para a frente, no futuro e para o fim, tanto para o indivíduo como para a civilização. Há assim uma linha que liga todos os indivíduos através das sua angustias existencialistas, de finitude e que “determina” que embora a sociedade continue após o seu desaparecimento, também ela numa escala maior esta sujeita ao tempo. Embora não desejem que isso aconteça, acaba por dar um propósito ou sentido a uma vida social. Só se constrói, cuida e organiza o que pode acabar ou ser destruído. Embora os autores acima mencionados coloquem o medo da finitude como criação da sociedade de forma a evitar um caos que traz a morte, e como forma de tentar organizar e controlar o mundo, obtendo assim uma sensação de maior segurança, creio que isso não exclui uma explicação para a concepção do seu fim, porque se as sociedades ou civilizações fossem eternas não se renovariam e não valeria a pena 6) Is the fear of death universal? Anthropologist Ernest Becker (1973) seems to think so, arguing that “the idea of death, the fear of it, haunts the human animal like nothing else; it is the mainspring of human activity— activity designed largely to avoid the fatality of death, to overcome it by denying in some way that it is the final destiny for man” […] Because of the complexity of death fears, scholars have debated whether such fears are natural or whether they are social constructs. The most common view that runs through the history of thought on death is that the fear of death is innate, that all of life tends to avoid death, and that the underlying terror of death is what drives most of the human endeavor. The anthropological, philosophical, and psychoanalytic perspectives offer evidence and rationales that the fear of death is a natural response, given all the attempts of biological organisms to preserve life. Throughout human history, fear has been the universal response to death. In 1889, the cultural anthropologist Edward B. Tylor stated, “All life fears death, even brutes which do not know death” (p. 433). Aristotle (1941) said that “plainly the things we fear are terrible things” and referred to death as “the most terrible of things” (p. 978). […] The fundamental problem of society is the preservation of social order. Humans quickly realized that disorder ultimately leads, through chaos, to death. Order and organization represent a flight from death. Religion, which capitalizes on the innate fear of death, is one of the most efficient methods of achieving what Durkheim calls “mechanical solidarity,” which is social order premised on the understanding that all societal members follow the same behavioral norms. Moore, Calvin Conzelus, And John B. Williamson. The Universal Fear of Death and the Cultural Response.

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cuidar delas, é o medo que acabem, o medo de uma destruição colectiva, que também lhes dá sentido a existência. Podemos estabelecer um paralelismo ao nível individual com a ideia de Sartre de que a morte é o que dá sentido à vida, se assim for, o que “materializa” esse conceito é o medo. O que explica por exemplo o paradoxo do vicio do medo e de correr riscos, ou como alguém dizia: “– nunca me senti tão vivo quando estive numa situação de risco mortal”. Podemos assim perceber todos os desportos radicais, os fãs de filmes de terror, os cultos que versam a morte e o fim, e também as narrativas catastróficas. (Ver Fear, fiction and make belive) O terceiro aspecto é quase um retorno a Delemeau e a história. Também hoje o medo continua a condicionar as acções, opções, pensamento, e a construir a história, continua a construir uma visão de sentido cosmológico ou ontológica e sobretudo continua a ser aproveitado na diferenciação de classes, fazer alteridades e manter poderes. Está presente na economia e é uma óptima ferramenta especulativa, na política onde cada vez mais como narrativa, serve justamente para a manutenção do poder (sujeito a economia), esta em todo o lado. Um dos maiores problemas é precisamente destrinçar todas estas dimensões. Muitas vezes não é possível perceber quando é que a narrativa do medo é fruto de uma visão ontológica, de uma ameaça sentida ou percepcionada como tal, ou de uma narrativa manipuladora. Em War making anda state making as organized crime, Charles Tilly faz a analogia entre os métodos dos gangsters e da máfia e os estados. Recorre a vários historiadores entre os quais Fernand Braudel e Lawrence Stone, para explicar a construção dos estados europeus baseados na guerra, banditagem, pirataria, protecção paga e medo. Mais recentemente três livros abordam o tema do medo como ferramenta para o controle, submissão e exercício do poder, seja político, ideológico ou económico (na verdade os três não se separam). São eles: The Culture of Fear, de Barry Glassner; Fear a Cultural History, de Joanna Bourke; e The Shock Doctrine, de Naomi Klein. O medo esta muito em voga, tanto como ferramenta, como narrativa, ou ainda como forma de marketing para vender seguros, alarmes ou vitaminas. É claro que o medo pode ser incutido pela pratica de violência como descreve a etnografia de Linda Green, Fear as a Way of Life (1994), na Guatemala. (7) Seja ele (medo) incutido pela violência ou pelo discurso, seja para usurpar as riquezas de outros países (p. ex. o caso das armas de destruição maciça), para salvar bancos impondo austeridade (o discurso da saída do Euro e o “armagedão” que isso seria), ou para vender medicamentos e seguros, o processo assenta em dois eixos: O eixo da insegurança/incerteza/imprevisibilidade – segurança/certeza/confiança, e o eixo da chantagem da causalidade: “se não for feito assim X, = acontece isto Y”. Sendo que apesar da insegurança ser um factor subjectivo, depende de contexto e cultura, isto é, uma característica percepcionada, é no entanto pela ligação à incerteza, imprevisibilidade e o desconhecido que “acciona” o medo. O eixo da chantagem da causalidade baseia-se precisamente no oposto, em certezas e dogmas, que vivem de falta de informação ou desconhecimento dos assuntos mais “específicos ou técnicos” para os quais é construída uma linguagem “complicada” propositadamente.

7) H  ad I been too caught up in terror’s talk? Gradually I came to realize that terror’s power, its matter-of-factness, is exactly about doubting one’s own perceptions of reality. The routinization of terror is what fu-els its power. Such routinization allows people to live in a chronic state of fear with a facade of normalcy, while that terror, at the same time, permeates and shreds the social fabric. Fear has been the motor of oppression in Guatemala. As Brecht noted, “Fear rules not only those who are ruled, but the rulers too” (1976:29-297). The elite, dominant classes are driven by racist fears of “indios” and in more recent decades by the “red menace” of communists to perform the most brutish acts to protect the status quo. There are upper-class ladinos in Guatemala City who deny that the massacres in rural areas ever really happened. Linda Green. Fear as a Way of Life

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Ao nível psicofisiológico ou neurológico o processo descrito por Olsson e Phelps (atrás mencionados), da “aprendizagem do medo” ou “contagio” é a formula que garante que um simples discurso possa ter uma repercussão ao nível da pratica. Isto porque como explicam os autores, para além dos medos inatos, existem ainda a possibilidade de dois tipos de “aprendizagem do medo”: Por condicionamento experiencial ou directo, que é basicamente causar uma má experiência física, que tem como resultado o medo, ou seja, um condicionamento pavloviano. Ou por condicionamento sugestivo, isto é, por método indirecto de empatia. Segundo os autores, ambos usam os mesmos circuitos ou mecanismos neuronais e exercem o mesmo poder, aferido pelas reacções fisiológicas. Embora este último seja sobretudo verificável em mamíferos gregários ou sociais. Este método indirecto ou sugestivo é descrito como uma vantagem social porque permite a indivíduos que assistam ao sofrimento ou morte de outro membro, ou que lhes seja comunicado um perigo, usar esse “input” como estimulo que desencadeia o medo e evita a sujeição de outros ao mesmo destino. O papel desempenhado pelos media é muito relevante neste ponto. As imagens e discursos produzidos saturam o meio e induzem esse processo de medo por empatia, e se por um lado identificamo-nos com as “vitimas” por outro lado “justificamos” uma acção proposta para a resolução daquele “problema”, que em boa verdade já esta consumado, o que torna o “problema” não da vitima mas sim do receptor. “soluções à espera de problemas”, como diz David Althede. (8) Mais grave é a ruptura causada pela saturação do medo e da violência, porque tende a causar uma insencibilização e a delegar imediatamente a resolução do “problema proposto” indiferentemente da sua adequação. É como se perdêssemos a capacidade de racionalizar ou analisar. Seja por causa da urgência, da incapacidade de distinguir ou hierarquizar os casos, ou por uma anulação da empatia com o sofrimento do outro mas medo que nos aconteça a nós. Com a devida proporcionalidade e ajustes, neste momento não me parece que estejamos muito longe do cenário descrito por Delumeau na idade media. O estado e os poderes têm como razão de ser, isto é forma de aceitação e imposição, a percepção ou sentimento de segurança, para tal também precisam na mesma proporção em que “oferecem esse sentimento”, de uma quantidade de medo. Ora se somos cada vez mais, se cada vez há mais “poderes” mais poderosos, é normal que haja cada vez mais medo ou “necessidade” de medo. Um “cardápio” também ele cada vez maior: Terrorismo, guerra, bio-terrorismo, doenças várias, violência, aquecimento global, tremores de terra e tsunamis... Catástrofes, crises e cataclismos. Mais próximos ou mais longínquos temporal ou geograficamente, é só escolher o que se adequa mais a si. 8) T  he discourse of fear is now incorporated into explanations of “fear” and, in turn, “tales of fear.” There are many stories told today. As the discourse of fear pervades everyday life, more experiences seem to be captured by it. Audiences then become more likely to be included as corroborating witnesses to give testimony compatible with the themes resonating the discourse of fear. I do not know of another social dimension or topical area where citizens are permitted-indeed encouraged-to participate in the public news accounts and dialogue about issues. Citizens participate, sometimes in the role of “victims,” witnesses, and occasionally, critics of agencies (e.g., questionable police shootings). Fear of crime in many ways is about fear for one’s safety, fear of becoming a victim, or fear of kids being victims. This is reflected through miscellaneous comments in the reports: “I fear for my kids. 1 don’t let them go out of the house.” “. . . the NRA [National Rifle Association] was appealing to people worried about crime and self-protection.” ...Fear is a vocabulary of motive-certain characteristics and identities are attributed to those persons that we associate with fearing acts. Fear promotes responses to crime. It is like a compass that guides us to prefer some accounts and reject others. Often, the persons used to inspire fear are members of the despised and powerless groups in society. Fear of the homeless and their increased presence may lead people to treat them badly, but often they become victims of crime (e.g., “One fellow threatened to kill me . . . so I went down and got a pistol permit and carry a weapon with me all the time now when I go to work”). News perspectives and practices, including the organizational context and use of entertainment formats, promote the problem frame that in turn produces narratives of fear. Fear is more visible and routine in public discourse than it was a decade ago. Perceptions of safety, security, and relative “ease” of everyday circumstances are neither uniform throughout American society nor are they similarly perceived. “The News Media, The Problem Frame, And The Production Of Fear”. David L. Altheide The routine portrayal of violent death in the mass media has blunted sensibilities: when hearing about real-life viciousness we may feel pity or distaste, but when we identify the emotion of fear it is our fear that concerns us. It is the fear of something that may befall us, rather than fear for others, those whom we inflict suffering… Public policy and private lives have become fear-bound; fear has become the emotion through which public life is administered. Fear A Cultural History. Joanna Bourke

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Como dizia Napoleão: “Se não me amam, que me respeitem, se não me respeitam, então que me temam”. As soluções “oferecidas” ou “vendidas” são muitas vezes falaciosas e apenas pretendem justificar-se a si mesmas. Os discursos de como evitar e prevenir catástrofes e ameaças são eles próprios fundamentos para o medo. A noção de persuasor é já uma noção de medo. A educação é muitas vezes o processo de substituir o nosso medo de um comportamento arriscado de uma criança, por um medo que lhe incutimos no sentido de a condicionar e evitar o nosso. A preparação para o inesperado é um paradoxo falacioso, ou a preparação é para o esperado ou não há preparação para aquilo que não se sabe o que é. Quanto mais nos preparamos mais nos especializamos e por isso há menos hipóteses de poder-mos “reagir” a algo que não tenha constado da preparação. (9)

Conclusão

Se admitimos que temos um “mecanismo” “sócio-adaptativo” que funciona ao nível da espécie (que gera sacrifícios altruístas em prol da espécie), temos que admitir também um medo inconsciente do fim da espécie. O “oblivion”, grande esquecimento, apagados como se nunca tivéssemos existido. O que levaria a nível individual a evitar a solidão, não só como forma de evitar ameaças (através da força do número) como alguns autores referem, mas mais como necessidade de testemunhar a existência uns dos outros. A ciclicidade pode também ser vista não só como renovação, mas sobretudo como o atingir do pico do medo, o cumprimento da incerteza, o auge do mau e desconhecido, que após, traria a tão desejada “paz de espirito”, a tranquilidade e a libertação. Por outro lado temos o paradoxo do medo como vantagem. O homem imagina o que não consegue explicar, atribui-lhe um sentido de ameaça. As narrativas estão cheias disto, desde os gigantes do outro lado do mundo, até ao fogo do inferno. Mas este pessimismo perante o desconhecido faz-nos cautelosos e preserva-nos, ao fim e ao cabo, perante o desconhecido e a curiosidade de tentar avançar no escuro, é a nossa melhor aposta ou posição mais sensata. E se a ciência nos libertou de uns medos, trouxe-nos outros em forma de vírus ou cogumelo atómico. O medo tornou-se consumo, o medo vende e vende-se. Se quanto mais “tementes a deus” mais garantias, mas mais dádivas, dedicação e obediência; Se os mais “desinformados” estão sujeitos a medos que os informados não têm, e informação é poder e dinheiro; Se o medo é usado como arma pelos mais ricos e poderosos... então o medo e a forma de o evitar, é também um questão de classe independentemente de todas o sentirem.

9) A  mericans want more homeland security than they need. That is the politics of homeland security in a nutshell. It results from two things. First, cognitive biases cause people to worry more about terrorists than they should and to demand more protection from them than cost-benefit analysis recommends. Second, U.S. citizens’ information about terrorism comes largely from politicians and government organizations with an interest in reinforcing excessive fears. ... fear of terrorism is a bigger problem than terrorism. Terrorism, after all, takes its name not from violence but from the emotion it provokes. But homeland security policy considers mostly the former. That is a shame, especially because the defenses we mount against terrorists often heighten our fears of them. Managing Fear: The Politics of Homeland Security. Benjamin H. Friedman

Luís Pedro Ramalho, nº 53869, AC 1 | Crise e Catástrofe

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