O medo da fome nos contos de fadas dos séculos XVII ao XIX

September 18, 2017 | Autor: Icles Rodrigues | Categoria: History, Literature, Fairytales, History and literature
Share Embed


Descrição do Produto

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

O medo da fome nos contos de fadas dos séculos XVII ao XIX Icles Rodrigues1

Resumo: O presente trabalho objetiva demonstrar como a literatura pode não apenas servir como fonte de conteúdo histórico por si só, mas também ser uma espécie de fonte complementar no que tange ao âmbito material dos indivíduos da época em que ela foi produzida. Neste caso, usaremos os chamados “contos de fadas” para demonstrar a presença do medo da fome na Europa entre a Idade Média e Moderna, encontrado em documentos e relatos destas épocas, demonstrando a possibilidade do uso dos contos não para o encontro de fatos, mas de verossimilhanças com a realidade material e as mentalidades de seus produtores.

Palavras-chave: Contos de fada; literatura; medo; fome; fontes

I. Introdução

Era uma vez o medo. Sentimento inerente ao ser humano, talvez seu maior inimigo interno, está presente na vida de cada indivíduo do seu nascimento a sua morte. Afirmou Sartre certa vez que o todo o homem teme; aquele que não o faz, não é normal (DELUMEAU, 2009, p. 23). O medo ou os medos – senão os motivos dos medos – se fazem presentes no cotidiano humano desde seus primórdios, e com o passar do tempo alteram-se; o medo de uma época pode tornar-se a trivialidade de outra, e vice-versa. O sentimento de medo, contudo, é ambíguo: sendo inerente à nossa natureza, ao mesmo tempo que traz o desconforto e, por vezes, o pânico e o desespero, “é uma defesa essencial, uma garantia contra os perigos, um reflexo indispensável que permite ao organismo escapar provisoriamente à morte.” (DELUMEAU, 2009, p. 24) Essa ambiguidade é fornecida pelo inventário de perigos com os quais podemos lidar; ao mesmo tempo em que estes podem se mostrar irracionais, inspirados em “perigos subjetivos”, os quais não podem causar mal real por sua imaterialidade, podem ser “perigos objetivos”, palpáveis e independentes dos aspectos culturais do conjunto humano que atingem. Não podemos ignorar, é claro, o fato de que um medo subjetivo, de acordo com a sociedade, pode adquirir caráter de realidade, como quando os vôos noturnos de bruxas rumo aos sabás deixaram de ser apenas produto de sonhos 1

Graduando pelo curso de História da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais – Meridianum. E-mail: [email protected].

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

influenciados pelo diabo para tornarem-se uma realidade material na mentalidade dos europeus. Por “perigos objetivos”, entendem-se os perigos como o medo do lobo, do mar, da fome, etc. Já os “perigos subjetivos” possuem origem cultural, por vezes de suporte material, como o medo os fantasmas, da noite ou das bruxas. Portanto, ao mesmo tempo em que podem ser nocivos, podem ser a força motriz de um ímpeto de autopreservação e busca pela segurança. A despeito da sobrevivência de alguns elementos causadores de medo no homem, as mudanças no cotidiano, na alimentação, no instrumental básico de subsistência, na expansão urbana ou na cultura, fazem com que alguns medos saiam dos holofotes e sejam relegados a contextos culturais e geográficos muito particulares, assolando a um numero inferior de pessoas do que assolariam no passado. Vêm ao nosso conhecimento por fontes diversas, desde documentos escritos quanto iconográficos – como, por exemplo, os relatos de Raul Glaber, do século XI2, sobre as intempéries climáticas e sobre a fome ou as iluminuras representando as pestes e a morte como um todo – e cabe a historiadores, antropólogos e demais estudiosos tentar, na medida do possível, remontar o imaginário diante desses medos da forma mais verossímil que as fontes e recursos disponíveis permitem. Nesse sentido, a literatura é um importante instrumento de análise, e este trabalho tem como objetivo justamente usar um nicho literário específico para remontar um quadro de escassez material, especificamente de carência alimentar: os contos de fadas. Como fonte, usaremos a edição recentemente lançada no Brasil pela editora Jorge Zahar, com traduções de contos de autores diversos. Os contos – tratados como “versões originais” – foram retirados de compilações de séculos distintos, mas para este trabalho, foram utilizados os contos pertencentes a três compilações em especial, usadas como bibliografia para a compilação de contos da editora Jorge Zahar: a compilação de Charles Perrault datada de 1697, a de Wilhelm e Jacob Grimm, cuja primeira edição data de 1812, e a de Joseph Jacobs, de 1890. Analisando-as, pretendemos mostrar a permanência de medos – baseados tanto em ameaças objetivas quanto subjetivas – tanto do período medieval quanto do período moderno, ressaltando seu papel didático, a despeito dos arquétipos literários mais comumente ressaltados nestes contos, levando em consideração a já decorrente análise alicerçada no conceito braudeliano de “longa duração” defendida por Jacques Le Goff e sua

2

Um dos autores que trabalha com Raul Glaber é Jacques Le Goff, como em seu A civilização do ocidente medieval.

2

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

“longa Idade Média”, onde as estruturas da sociedade, materiais ou não, permanecem à revelia de marcos temporais, como veremos adiante.

II. Os contos de fada e a história: um diálogo possível

Os contos de fadas presentes nas compilações aqui trabalhadas, largamente conhecidas no ocidente e transmutadas com o passar das décadas – se adequando a contextos, intenções e situações como nas versões dos Estúdios Disney, onde foram adaptadas, talvez mesmo “suavizadas” –, assim como outros contos deixados de fora, tratam de questões cruciais com as quais a criança se defronta no seu desenvolvimento, tendo “um valor extraordinário no desenvolvimento infantil, sendo, via de regra, o primeiro contato da criança com o mundo ficcional formalizado numa narrativa.” (MENESES, 2010, P. 265) Um dos vieses antropológicos possíveis no que tange ao diálogo com a literatura consiste na identificação de traços de permanência na construção imaginária do mundo, por vezes buscando arquétipos fundamentais construtores de sentido presentes na trajetória do homem na terra; num viés de cunho histórico, busca-se o entendimento de que os imaginários são construções sociais, consequentemente históricas e datadas, guardando especificidades e assumindo configurações e sentidos diferentes de acordo com o contexto temporal e geográfico (PESAVENTO, 2006) Sandra Jatahy Pesavento, fazendo eco a Lucian Boia e seu Pour une histoire de l’imaginaire, admite “a possibilidade de conjugar, estrategicamente, as duas posturas [antropológica e histórica].” (PESAVENTO, 2006) Ambas combinadas associariam os traços de permanência de estruturas mentais às configurações específicas de cada temporalidade. A expressão do mundo, seja do mundo material ou mesmo do imaginário (o “mundo não-visto”) foi feita das mais diversas maneiras na história da humanidade, e obviamente a literatura é uma delas. Ainda que possa ser descompromissada do factual, pode também ser instrumento de análise, mesmo quando projeta o passado ou o futuro; falam-nos de sentimentos, virtudes, defeitos, miséria e – como é o caso a ser analisado – medos dos indivíduos. O que transforma o objeto literário em uma fonte histórica, contudo, é a ação do historiador, através das perguntas que ele faz ao passado. Atribuindo ao traço a condição de documento ou fonte, portador de um significado e de um indício de resposta às suas indagações, o historiador transforma a natureza do traço. Transforma o velho em antigo, ou seja, rastro portador de tempo acumulado e, por extensão de significações. Como fonte, o traço revela, desvela sentidos. (PESAVENTO, 2006)

3

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

Todos os contos de fada possuem em comum uma função: apresentar “questões com que depara a criança – não apenas as crianças, mas principalmente elas – no seu processo de desenvolvimento e ofertar-lhe o nível do simbólico, para que ela possa lidar com essas questões.” (MENESES, 2010, p. 280) Sendo assim, a reconstrução de certos aspectos do imaginário de períodos passados através da literatura se mostra possível. A literatura, portanto,

dá acesso para nós, historiadores, às sensibilidades e às formas de ver a realidade de um outro tempo, fornecendo pistas e traços daquilo que poderia ter sido ou acontecido no passado e que os historiadores buscam. Isto implicaria não mais buscar o fato em si, [...] mas de resgatar possibilidades verossímeis que expressam como as pessoas agiam, pensavam, o que temiam, o que desejavam. (grifo nosso) (PESAVENTO, 2006)

Tendo a literatura, portanto, como uma de suas funções revelar e insinuar “as verdades da representação ou do simbólico através de fatos criados pela ficção” (PESAVENTO, 2006), julgamos plenamente possível dissertar acerca de reconstruções dos medos do período Medieval e Moderno – sem estabelecer uma ruptura precisa entre estes períodos – tendo como fontes os contos de fadas oriundos das compilações de Perrault, Jacobs e dos irmãos Grimm, mesmo que a distância temporal de nosso tempo em relação a época dos textos impossibilite que nossa relação com eles seja a mesma dos leitores do passado, (DARNTON, 1992, p. 200) e mesmo que a fantasia por trás destes contos diminua ainda mais o compromisso com o factual, o que nesta análise não é um obstáculo. Muito já se dissertou acerca das construções arquetípicas de alguns personagens e elementos de contos de fadas e da literatura em geral, como nas obras Vermelho, verde e amarelo: tudo era uma vez (2010), de Adélia Bezerra de Meneses, a obra de Bruno Bettelheim, A psicanálise dos contos de fadas (2002) ou a interessante obra de Eleazar Meletínski, Os arquétipos literários (1998). Contudo, percebemos que os medos mais facilmente identificáveis – a fome está entre eles – são mais objetivos e concretos, e menos alicerçados em arquétipos. Desse modo, focaremos menos no uso de elementos literários como metáforas e mais em como este medo em suas formas concretas aparecem nesses contos, não sem carregar uma pesada dose de didatismo. Em primeiro lugar, devemos problematizar uma questão que, para o grande público, pode passar despercebida: a “originalidade” dos contos publicados por Perrault, Jacobs e os Grimm. Como afirma Ana Maria Machado no prefácio do livro que aqui usamos como principal fonte, os contos ali presentes são fruto de uma tradição oral cujas origens se perdem

4

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

no tempo, e geram diferentes versões. “Essas diferentes versões se multiplicam. [...] Por isso, o próprio conceito de ‘versão original’ é difícil de precisar” (MACHADO, 2010, p.10). É impossível saber que versão seria, de fato, a “original”, a primeira; talvez – e muito provavelmente – as versões originais da maior parte destes contos tenham se perdido nas sucessivas vezes em que foram recontadas e passadas de geração para geração. Em um processo tão complexo e de tão longa duração, detalhes se perdem e se acrescentam. Outra questão a ser brevemente problematizada é o conceito anteriormente citado de “longa Idade Média” trabalhado por Jacques Le Goff. Tal conceito é aventado neste trabalho por entendermos que, no plano das mentalidades, poucas são as rupturas significativas no passar dos séculos entre a Idade Média e a Idade Moderna. Como afirma Christian Amalvi,

a historiografia mais recente substituiu a noção de ruptura brutal pela de evolução e transição lenta, no mesmo momento em que a reflexão política repudiou o desejo de tabula rasa revolucionária nascida da fascinação cega dos intelectuais por ‘este grande clarão no Leste’. A partir do conceito de ‘Antiguidade Tardia’, pelo qual Henri-Irénée Marrou e Peter Brown substituíram o de ‘Baixo Império’, Jacques Le Goff propõe uma cronologia provocativa, fundada sobre o conceito braudeliano de ‘longa duração’. Trata-se de uma Idade Média muito longa, nascida de uma Antiguidade tardia prolongada até o século X, dividida em três sequências temporais: uma Idade Média Central que vai do ano 1000, desembaraçado de seus pretensos terrores, à grande peste de 1348; uma Idade Média Tardia, da Guerra dos Cem Anos à Reforma Protestante; por fim, um longuíssimo Outono da Idade Média (Huizinga) terminando, no nível das estruturas políticas, com a Revolução Francesa e, no plano das mentalidades, com a Revolução Industrial (AMALVI, 2006, p. 548-549).

Tal conceito é trazido à baila por julgarmos improcedente classificarmos nosso objeto de análise – o medo da fome, não os contos em si – como pertencente a uma época específica; é oriundo de épocas remotas e permanece em voga durante tempo o bastante para que uma redução a poucos séculos, ou mesmo às épocas de publicação das compilações dos contos seja imprudente e reducionista. Tais questões apresentadas, remetemo-nos aos contos e, consequentemente, aos medos. Da compilação de contos de fadas com a qual trabalharemos, foram selecionados contos de acordo com a proposta, de localizar o medo da fome no decorrer da narrativa, trazendo-o ao papel de protagonista da história, estabelecendo ligações com a realidade contemporânea aos contos. De Charles Perrault, os contos selecionados foram O gato de botas e O Pequeno Polegar; de Jacob e Wilhelm Grimm, selecionamos Branca de Neve e João e Maria. Por fim, de Joseph Jacobs selecionamos João e o pé de feijão. No decorrer das análises dos medos, o

5

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

enredo destes contos virá à tona para aqueles que eventualmente não conheçam algumas destas histórias.

III. A fome e suas implicações sociais.

Muitas são as obras que trabalham com a fome no período medieval e moderno. Jacques Le Goff em seu A civilização do ocidente medieval aponta o ocidente medieval, antes de tudo, como um universo da fome, por conta de um equipamento técnico deficitário somado a uma estrutura social que paralisava o crescimento econômico (LE GOFF, 2005, p. 227). Delumeau em História do medo no ocidente ressalta a nossa relação distanciada com a fome, quando afirma que em nossa sociedade ocidental, onde o alimento é abundante em comparação com o passado, “temos dificuldade em imaginar que há apenas algumas centenas de anos se podia morrer de fome em nossas cidades e em nossos campos. No entanto, são inúmeros os testemunhos a esse respeito.” (DELUMEAU, 2009, p. 251) Já Michel Le Mené em A economia medieval, afirma que a documentação disponível não nos permite perceber com exatidão a dimensão deste flagelo, pois eles focam em casos mais excepcionais. Dentro de um contexto de penúria crônica,

os contemporâneos só se interessam pelos fenômenos que transcendem os limites do cotidiano; consistem em relatos sobre a miséria humana que ultrapassam as raias da compreensão: homens amassando restos de farinha com argila branca, comendo o mato dos campos, os próprios excrementos e até os seus semelhantes. Mas o mal-estar é mais profundo e mais constante do que esses episódios particularmente violentos deixam entrever; [...] (LE MENÉ, 1979, p. 20)

Jacques Berlioz também se dedica a falar a respeito de flagelos que assolaram a Idade Média, e a fome é, por certo, um deles. Mesmo o lobo é citado: Os invernos rudes, particularmente numerosos no século XV, são uma provação para todos e um perigo mortal para os pobres, com a madeira excessivamente cara, os moinhos inativos, o pão mais caro e o trabalho quase impossível. [...] A estas frequentemente se acrescenta o perigo dos lobos. Em julho de 1423, eles entram todas as noites em Paris, porque o inverno naquele ano foi muito rigoroso [...] (BERLIOZ, 2006, p. 459).

O mesmo Jacques Berlioz, contudo, nos alerta para exageros presentes em crônicas, hagiografias e outras fontes eclesiástica, quando aponta o caráter de incitação à penitência dos relatos e seus supostos exageros (BERLIOZ, 2006, p. 457). Ainda assim, os relatos a respeito

6

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

das penúrias da fome não podem ser ignorados pelo fato de aspectos mais impactantes estarem em voga, seja qual for sua função. Raul Glaber, monge beneditino de Cluny, na França, em seus relatos escritos no século XI sobre diversos flagelos que assolavam a Europa, dedica parte de seus relatos a trazer à tona as penúrias de uma fome brutal, oriunda de um rápido aumento da população cuja produção – predominantemente agrícola e rica em farináceos – não era suficiente. Segundo Glaber,

uma fome maior assolou durante cinco anos o mundo romano, de modo que nenhuma região teve condições de suportar a falta de pão, e muitas pessoas morreram de fome. Naqueles dias, também em muitas regiões, a fome terrível impeliu os homens a fazerem sua comida não apenas de animais imundos e criaturas rastejantes, mas mesmo da carne de homens, mulheres e crianças, sem levar em conta o parentesco; pois tão voraz foi essa fome que filhos crescidos devoraram suas mães, e mães, esquecendo seu amor materno comiam seus bebês (tradução do autor). (GLABER, s/ data)

Em seu A civilização do ocidente medieval, Le Goff usa Glaber como uma de suas fontes. O relato do monge não é menos terrificante, apesar dos evidentes exageros: A fome se pôs a espalhar sua devastação e pôde-se recear o desaparecimento quase inteiro do gênero humano. [...] Entretanto, quando comeram os animais selvagens e os pássaros, os homens se puseram, sob o império de uma fome devoradora, a juntar para comer toda a sorte de cadáveres e coisas horríveis de dizer. Para escapar à morte, alguns recorreram às raízes das florestas e às ervas dos rios. [...] Viajantes eram aprisionados por outros, mais fortes do que eles, e seus membros eram cortados, cozidos no fogo e devorados. Muitas pessoas que iam de um lugar a outro para fugir da fome e encontravam hospitalidade no caminho foram degolados durante a noite e serviram de alimento àqueles que os tinham acolhido. Muitos, mostrando um fruto ou um ovo às crianças, atraíam-nas a lugares ermos, massacravam-nas e devoravam-nas. Em muitos lugares cadáveres eram retirados da terra e serviam igualmente para saciar a fome. (LE GOFF, 2005, p. 234-235)

E mesmo em épocas posteriores, como entre 1221 e 1222 na Polônia, ou em 1233 na França e na Livônia, as crises de fome foram violenta e trouxeram morte e desespero. No último destes três casos em particular a fome atingiu níveis tão altos que “os homens devoraram-se uns aos outros; e os ladrões eram retirados dos patíbulos para serem devorados”. [...]” (LE GOFF, 2005, p. 235) Delumeau, sobre o canibalismo, nos conta que Na Lorena, uma mulher foi condenada à morte por ter comido o filho. Em 1637, segundo um magistrado que fazia uma investigação em Borgonha, “[...] as carniças dos animais mortos eram procuradas; os caminhos estavam cobertos de pessoas, a maioria estendida de fraqueza e agonizando [...]. Enfim, chegou-se à carne humana”. Nos tratados de casuístas descobre-se uma prova indireta de que a antropofagia não desaparecera nos séculos XVI e XVII. Se esfaimados, para não perecer, consumiam a carne de um cadáver humano, conseguem a indulgência da maioria dos casuístas. (DELUMEAU, 2009, p. 253)

7

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

Após tal explanação sobre o tema, voltamos nosso foco aos contos de fada uma vez mais. Nos relatos anteriormente citados, não apenas a fome é um medo concreto de grandes proporções, mas o canibalismo tem lugar de destaque; Raul Glaber, além dos relatos anteriores, nos alerta que se vendia carne humana grelhada no mercado de Tournus, na Borgonha! (BERLIOZ, 2006, p. 460) Ambos os elementos – fome e canibalismo, ou a intenção de cometê-lo – estão presentes

em alguns dos contos das compilações aqui

analisadas: a saber, João e Maria, O Pequeno Polegar, João e o Pé de Feijão, Branca de Neve e, em menor proporção, O gato de botas.

IV. A fome nos contos de fadas.

Em O gato de botas, o filho mais novo dos três que recebem a herança do pai, recebe o gato de estimação, ao contrário dos outros dois, que podem trabalhar em conjunto com o asno e o moinho recebidos. Ao receber o gato, o jovem se desespera: “Meus irmãos [...] poderão ganhar a vida honestamente trabalhando juntos. Quanto a mim, quando tiver comido o meu gato e feito luvas com a sua pele, só me restará morrer de fome.” (PERRAULT, 2010, p. 50) No conto, a astúcia do gato salva o dono da miséria, mas o medo da vindoura fome por não ter instrumental para praticar algum ofício existe; temos aí um exemplo do “equipamento deficitário” anteriormente citado segundo Le Goff. Em O Pequeno Polegar, os pais das sete crianças – por idéia do pai – resolvem abandoná-las na floresta por medo de vê-los todos morrerem de fome, e pelo próprio medo de morrerem, já que não havia como alimentar a todos. “Como vê, não poderemos mais alimentar nossos filhos. Eu não seria capaz de vê-los morrer de fome diante dos meus olhos, e decidi levá-los amanhã para o bosque e abandoná-los lá.” (PERRAULT, 2010, p. 61) Na segunda tentativa, as crianças de fato se perdem, por ter o Pequeno Polegar marcado o caminho de volta com pedaços de pão e os pássaros os terem comido. Procurando o caminho de casa, dão de cara com a casa de um ogro, que anseia em devorá-los. Percebe-se que o canibalismo, em nenhum momento, é atribuído aos pais ou às crianças, “humanos normais” por assim dizer; mesmo que episódios dessa dramaticidade tenham acontecido não poucas vezes durante a Europa Medieval e Moderna, o consumo de carne humana é sempre associado às feras – como o lobo em Chapeuzinho Vermelho –, ogros ou bruxas/feiticeiras, por seu traço de “desumanidade”.

8

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

Em João e Maria, as crianças são abandonadas pelos pais na floresta, como no conto de Perrault, por idéia da mãe, que afirma – e acaba convencendo o marido – que a família não tem como se alimentar e alimentar as crianças, sendo a solução abandoná-las a própria sorte na floresta, pois seria melhor do que morrerem todos de fome. Apesar da resistência do marido, o plano é colocado em prática. Da primeira vez, da mesma forma que em O Pequeno Polegar, o garoto esperto deixa seixos brancos para marcar o caminho. Volta para casa, mas os pais colocam em prática o plano novamente; impedido de pegar seixos, João deixa pedaços de pão pelo caminho, mas os pássaros os comem. Em busca do caminho para casa, as crianças se deparam com uma casa de doces – um verdadeiro oásis para as crianças, não só pela tremenda fome que os assolavas, mas pelo fato de serem doces e de seu apelo com as crianças – habitada por uma senhora que se mostra uma bruxa, disposta a engordar João e Maria para devorá-los. Novamente vemos o canibalismo tendo um destaque. Em Branca de Neve, a fome não dá as caras como nos demais contos, mas vemos a rainha má, invejosa da beleza da garota, ordenando sua morte, depois devorando órgãos de um javali pensando serem os de Branca de Neve. Não há grandes desdobramentos diante deste acontecimento na história, apesar de que a rainha mais adiante se mostra praticante de malefícios – a típica bruxa da Europa moderna. Em João e o pé de feijão, o garoto que nomeia o conto troca a única vaca da família por supostos feijões mágicos, ao invés de vendê-la. Este é agredido pela mãe em represália, que joga os feijões pela janela. Durante a noite, um pé de feijão gigantesco nasceu, e João subiu nele, encontrando um castelo nas nuvens onde habita um ogro gigante. Novamente temos o personagem à beira da fome e da penúria que, ao deixar o lar, defronta-se com um elemento hostil – e novamente canibal. Como citado anteriormente, em momentos de grande penúria os viajantes, solitários e crianças corriam o risco de serem abrigados por anfitriões hostis, para serem mortos e devorados. O mesmo ocorre, de certa maneira, em alguns destes contos. Em busca de alimento, da própria casa ou abrigo, os personagens se deparam com situações de perigo. Mas, como dito anteriormente, a figura dos canibais é transfigurada; nenhum deles é mostrado como um ser humano normal em momento de necessidade, mas como criaturas vis. Já o papel dos pais em João e Maria e O Pequeno Polegar também encontra eco na realidade. “O infanticídio, comum no mundo antigo e também entre os germanos – infanticídio que deixou marcas na época medieval – não deve ser, portanto, descartado; mas também não convém exagerar sua importância; [...]” (LE MENÉ, 1979, p. 27). O abandono na

9

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

floresta, embora não seja um infanticídio prático, torna-se um; os pais, em ambos os contos, sabem que eles morrerão. Ainda sobre abandonos:

Em ambiente popular ou camponês, a mortalidade dos bebês é considerável no momento das pestes (1348-1430). Desde esse momento, e mais ainda a partir do século XV, o infanticídio (por sufocação) não é mais um fenômeno excepcional, e os abandonos tornaram-se suficientemente numerosos para levar à criação de asilos [...], geradores por sua vez de novos abandonos. (LA RONCIÈRE, 1990, p. 224)

Um elemento em comum nas histórias chama a atenção: em nenhum dos casos de fome e penúria é aventada a possibilidade de se usar da caça ou de produtos agrícolas para a subsistência. Apesar de estarmos lidando com contos, entendemos que uma explicação plausível pode ser buscada na realidade. Delumeau nos conta que

Em certas províncias da França, ¾ dos camponeses eram incapazes de alimentar a família com sua exploração agrícola. Circunstância agravante: o consumo de carne diminuiu na Europa nos séculos XV-XVIII em relação ao que era na Idade Média. (DELUMEAU, 2009, p. 251)

Já Massimo Montanari, em seu artigo sobre alimentação presente em Dicionário temático do ocidente medieval, afirma que

A abolição ou pelo menos a regulamentação dos direitos de exploração dos espaços incultos – que prosseguiu de maneira cada vez mais sistemática a partir de meados da Idade Média – é talvez o acontecimento maior da história alimentar das camadas subalternas. Ela provocou uma diferenciação social dos regimes alimentares, ou melhor, uma tendência desta diferenciação social (que de certa forma sempre existiu) exprimir-se especificamente em termos de qualidade. A alimentação das classes subalternas foi desde então essencialmente baseada em produtos de origem vegetal (cereais e legumes), enquanto o consumo de carne (principalmente de caça, mas também de carne fresca) tornou-se apanágio de poucos e foi sendo cada vez mais claramente visto como um sinal exterior de prestígio. (MONTANARI, 2006, p. 39)

Quanto à caça, ela “não era mais um direito comum e revestiu-se de todos os traços característicos de um privilégio.” (MONTANARI, 2006, p. 39) Tal explicação, em relação ao que acontece nos contos, é reforçada por um elemento de O Gato de Botas. Ao pedir um par de botas para andar no mato e um saco, começa a caçar coelhos e presenteá-los ao Rei em nome de seu amo, a quem falsamente chama de “Marquês de Cabará”. A farsa persiste até que o plebeu ganha o direito de se casar com a filha do Rei. Ambos, gato e seu amo, vivem com riqueza e conforto pelo resto de suas vidas. Por que não presentear o Rei em nome de seu amo por quem ele realmente era? Ora, a explicação de ser a caça direito exclusivamente de nobres explicaria tal fato; além do mais, podemos inferir que um presente deste tipo dado por um plebeu sem posses pudesse soar

10

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

como uma tentativa de se tirar vantagem; já ele sendo oferecido por um Marquês seria mais fácil de entender como boa vontade. Fome e canibalismo, como vimos, por vezes andam de mãos dadas nos contos de fadas trabalhados, fazendo eco aos relatos de andarilhos capturados para serem devorados em momentos de penúria e inerentes, por exemplo, ao estereótipo da bruxa na Europa. Como afirma Norman Cohn em Europe’s inner demons,

Acreditava-se que as bruxas eram especializadas em matar bebês e crianças pequenas. […] Elas eram canibais, com um desejo insaciável por carne humana muito jovem; de acordo com alguns escritos da época, matar, cozinhar e comer bebês que não foram batizados era o maior prazer de uma bruxa. (tradução do autor) (COHN, 1993, p. 145)

Percebemos, nos contos, que os personagens mais humanizados se recusam a encarar a possibilidade de canibalismo, enquanto aqueles mais “bestializados” ou com características maléficas são propensos a tal prática. É um ogro que tenta devorar o Pequeno Polegar e seus irmãos, assim como é uma bruxa quem tenta devorar João e Maria.

V. Conclusão

Não estamos tentando “fazer do medo o motor da história” (BERLIOZ, 2006, p. 470). Nosso objetivo neste trabalho foi menos discutir a importância nos processos de assimilação dos contos de fadas por parte das crianças, de sua interiorização ou exteriorização, e mais discutir como este gênero literário pode trazer úteis informações históricas por conta da permanência de mentalidades, ou ao menos podem servir – mediante cuidadosa análise – para corroborar informações presentes em outras fontes; como em uma análise micro-histórica onde um indivíduo, família ou mesmo núcleo de cidadãos, ao ter seus pormenores analisados, serve de paralelo para se deduzir os pormenores de outros indivíduos, partindo do micro para o macro. Não foi nosso objetivo seguir uma análise arquetípica do ponto de vista literário e/ou buscando um viés psicanalítico, não apenas pela já existência de obras que fazem esse papel de forma muito mais aprofundada, mas também por uma opção metodológica. Tampouco concordamos com Bruno Bettelheim quando este afirma que o conto “nunca se inicia com sua [da criança] realidade física” (BETTELHEIM, 2002, p. 78). O autor defende que nenhuma criança passaria por uma situação tão amedrontadora como, por exemplo, ser “abandonada numa densa floresta, como João e Maria”, pois uma semelhança física seria muito

11

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

amedrontadora para uma criança; além do mais, faria com que o conto perdesse sua função de confortar, um de seus propósitos (BETTELHEIM, 2002, p. 78). A despeito de fazer uma análise voltada para a psicanálise infantil, Bettelhein – psicólogo – parece olvidar que alguns dos contos que trabalha surgiram em contextos temporais distantes de nossa contemporaneidade e, portanto, certas afirmações como a de que nenhuma criança seria abandonada em uma floresta soam um tanto anacrônicas, pois parece ser suportada por concepções de comportamento humano contemporâneo, e não de décadas ou séculos atrás. Reiteramos, então, que ao analisar os medos nestes contos, trazemos à tona temores objetivos e subjetivos presentes na realidade da Europa medieval e moderna. Logo, mesmo reconhecendo o caráter fabuloso de tais contos, buscamos trazer à tona uma possibilidade de análise no que pode ser entendido como concreto nestes contos, levando em conta a presença do concreto através do imaginário, através da identificação da permanência de elementos na mentalidade do recorte geográfico escolhido (nesse caso, a Europa). Acreditamos que estes contos possam ao menos ser úteis para, paralelamente a outras fontes, representar da forma mais fidedigna possível, a realidade material cotidiana.

Referências Fontes PERRAULT, Charles, et al. Contos de fadas: de Perrault, Grimm, Andersen & outros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. 20ª ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 2009. Bibliografia AMALVI, Christian. “Idade Média”. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006. BERLIOZ, Jacques. “Flagelos”. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 16 ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2002. COHN, Norman. Europe’s inner demons: the demonization of Christians in medieval Christendom. Chicago: The University of Chicago Press, 1993.

12

III Semana Acadêmica de História – Destrinchando Quimeras: Mitos, Pensamentos e Cosmogonias. De 5 a 8 de novembro de 2012. Realizado pelo Centro Acadêmico de História, UDESC, Florianópolis, SC

DARNTON, Robert. “História da leitura”. In: BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992 DELORT, Robert. “Animais”. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006. DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. LA RONCIÈRE, Jacques de. “A vida privada dos notáveis toscanos no limiar da Renascença” In: DUBY, George (Org.). História da vida privada, 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 163-310. LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Bauru: EDUSC, 2005. LE MENÉ, Michel. A economia medieval. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. LEVACK, Brian. A caça às bruxas na Europa Moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988. MELETÍNSKI, Eleazar M. Os arquétipos literários. São Paulo: Ateliê editorial, 1998. MONTANARI, Massimo. “Alimentação”. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006. NOGUEIRA, Carlos R. F. Bruxaria e história: as práticas mágicas no Ocidente cristão. Bauru: EDUSC, 2004. Internet “Ralph Glaber: On the First Millenium”. Disponível em Acesso em 30 de março de 2012. MENESES, Adélia Bezerra de. Vermelho, verde e amarelo: tudo era uma vez. Estud. av., São Paulo, v. 24, n. 69, 2010, p. 265. Disponível em . Acesso em 23 Mar. 2012. PESAVENTO, Sandra J. “História & literatura: uma velha-nova história”. Disponível em . Acesso em 23 Mar. 2012. RODRIGUES, Icles. Piedade sangrenta: a legitimação da tortura na caça às bruxas na Europa. Alétheia (Goiâna) v. 1/2, jan/jul 2011, p. 177-193. Disponível em Acesso em 1 abr 2012.

13

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.