O mito da Lei do Silêncio

July 27, 2017 | Autor: Florence Carboni | Categoria: Brazilian Studies, Language Planning and Policy, Language and Identity, Brazilian Politics
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O Mito da Lei do Silêncio Por FLORENCE CARBONI Italiana, é lingüista e professora dos Programas de Pós-Gradução em Letras e História da UPF.

Em pesquisa de 1996-2001, observei que o uso de dialetos entre ítalogaúchos restringia-se sobretudo a idosos, de zonas rurais, no âmbito familiar e em alguns domínios discursivos. Já havia constatado tal monolingüismo tendencial vinte anos antes, ao chegar ao RS e tentar, sem sucesso, me comunicar em italiano com ítalo-descendentes. A mesma pesquisa mostrou que esse monolingüismo convivia com sentimentos lingüísticos contraditórios. Alguns depoentes expressavam seu desgosto por não falar a língua dos avós, inscrevendo-se em cursos de italiano. Outros mobilizavam-se para resgatar fala e identidade sobretudo vênetas. Nos últimos 25 anos, a comunidade ítalo-gaúcha produziu importantes reflexões acadêmicas e étnico-apologéticas sobre vários aspectos da história da imigração. Não raro, em vez de olhar cientificamente para história feita de integração e miscigenação, elaboraram mitificações históricas e lingüísticas, como o desaparecimento dos falares itálicos como decorrência apenas da repressão do Estado Novo, em 1942-5. É difícil ultrapassar elementos superficiais e alcançar explicações essenciais dos fenômenos sociais. Nesse sentido, não é fácil comprovar que a “Lei do Silêncio” do Estado Novo não foi a principal responsável pela quase-extinção dos falares itálicos no RS, sobretudo porque, enraizada na memória coletiva, tal explicação é reiteradamente retomada na academia e na mídia. Para superar leituras simplistas e expiatórias e atingir a riqueza da realidade histórico-lingüística dessa comunidade, é preciso compreender os principais fenômenos de sua formação lingüística, como o bilingüismo e a mescla lingüística. Ao longo da história colonial, complexas situações de bilingüismo e de contato entre línguas e dialetos afins provocaram constantes mesclas lingüísticas, garantindo a comunicação apesar do plurilingüismo. Essas práticas comunicativas convergentes comprovam que, ao menos nos primeiros anos, as línguas presentes no repertório da sociedade colonial serviram sobretudo como meios de comunicação e integração e jamais como de diferenciação nacional, regional ou étnica. A forma de produção do núcleo familiar colonial-camponês foi determinante nas escolhas lingüísticas dos ítalo-sulinos. Enquanto esse modelo produtivo dominou a sociedade colonial, alguns dialetos já mesclados competiram com o português. Com o desenvolvimento manufatureiroindustrial da região e sua progressiva estruturação em classes sociais e integração aos mercados regional e nacional, o português foi impondo-se como língua dominante, com situações marginais de repertórios bilíngües, onde alguns dialetos cada vez mais mesclados ocupavam posições sociais sempre menos favoráveis. Algumas decisões políticas aceleraram ou frearam a evolução lingüística espontânea. As que estavam em consonância com o curso natural da história obtiveram os resultados almejados, como a campanha de nacionalização de Vargas nos anos 1930. Outras fracassaram, como a tentativa do governo fascista italiano, a partir de meados de 1920, de servir-se da língua e da identidade étnica para interromper o processo de nacionalização-integração dos imigrantes no Brasil. A proibição da pratica pública de línguas itálicas, determinada pelo Estado Novo, em 1942-5, enfraqueceu falares já há tempo em processo de debilitação. As relações de força entre português e falares italianos já tinham se modificado substancialmente, sobretudo com a chegada da estrada de ferro

[1910], que permitiu maior integração da região colonial ao RS e ao país, e com o aceleramento da industrialização regional, quando da I Guerra [substituição das importações]. Desde 1930, Vargas promoveu a instauração de modelo econômico dirigido sobretudo à consolidação da economia e mercado nacionais, através da construção de consenso e consciência nacionais e da sufocação de manifestações políticas, culturais e lingüísticas centrífugas. Para tal, impulsionou-se culto de símbolos nacionalistas e política lingüística unitária. A campanha de nacionalização acelerou a modificação das práticas lingüísticas ítalo-gaúchas sobretudo devido à nova política de escolarização primária, obrigatória e gratuita em português que, mesmo alcançando apenas parcial e lentamente a população infantil colonial, transformou progressivamente esse código lingüístico na língua da integração e promoção das novas gerações, que funcionaram como vetores da aculturação lingüísticocultural de seus pais. A industrialização nacionalizou as práticas lingüísticas ítalo-gaúchas bem antes da “Lei do silêncio”. Nas fábricas, colonos expulsos do campo, falantes de dialetos diversificados, serviam-se de estratégias comunicativas, entre elas o uso do português. O novo proletariado inseriu-se em práticas culturais urbanas que favoreceram o uso do português que substituiu os dialetos em domínios associados a atividades político-sindicais. A partir de 1934, o salário mínimo e a jornada de oito horas aumentaram o nível de vida e, portanto, cultural, dos operários ítalo-gaúchos, favorecendo a lusofonização das novas gerações que freqüentaram mais a escola e influenciaram igualmente a fala dos pais. Todo indivíduo implicado em processo de migração aprende a gerir-conciliar, mais ou menos conscientemente, a manutenção-abandono das práticas e valores culturais de origem, para se integrar à nova realidade, resistir a influências deletérias, etc. Em casos de imigração econômica e multitudinária, a perda das línguas de origem não costuma ser vivida de modo dramático. Apenas as terceiras ou quartas gerações sentem a necessidade de recuperar esses falares, como se fossem capazes de produzir a identidade étnica perdida, não raro devido a fenômenos estranhos ao universo lingüístico, como uma crise econômica na nova pátria e/ou a nova prosperidade da terra ancestral. Em função da formação sócio-econômica das comunidades imigradas, a perda da língua original dá-se em geral em uma ou duas gerações. Na sociedade colonial italiana do RS, esse declínio tendencial caracterizou precisamente a população adulta, sobretudo urbana, no período que antecedeu a II Guerra. Em função do contexto sócio-econômico-cultural de então, cedo ou tarde essa população deixaria de falar as línguas de origem com seus filhos. Mesmo considerando os fenômenos subjetivos que, ao associar os dialetos italianos a possíveis represálias, precipitaram seu enfraquecimento, seria absurdo e anti-científico pensar que o processo de “esquecimento” de línguas maternas deu-se em apenas três anos. A língua materna se desenvolve no processo da comunicação social, graças a uma predisposição neurofisiológica inata, que também não permite que essa língua seja esquecida em tão breve tempo. Hoje, uns sessenta milhões de italianos e descendentes vivem espalhados no mundo. A maior parte soube conciliar exemplarmente certas práticas e valores ancestrais com uma perfeita integração às novas sociedades, em boa parte porque compreenderam que imprescindível a uma virtuosa integração nas terras de adoção é, entre outros, o domínio de suas línguas. Deveu-se portanto ao esforço árduo do imigrante italiano, e não à violência estatal, o fato dele e seus filhos dominarem hoje plenamente o português, que enriqueceram em forma poderosa, sobretudo lexical e foneticamente. Mas isso é uma outra história!

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