O mito de Orfeu e a impossibilidade de não olhar para trás: ensaio sobre quatro obras de Patrick Modiano

May 22, 2017 | Autor: Alexandra da Cunha | Categoria: Fiction Writing, French Literature, Character Design
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O mito de Orfeu e a impossibilidade de não olhar para trás: ensaio sobre
quatro obras de Patrick Modiano

Alexandra Lopes Da Cunha (Doutoranda em Escrita Criativa / PUCRS)

Introdução
Um escritor não foge de suas obsessões, nos ensina Camus (1998). Elas
retornam, continuamente, em suas narrativas. O olhar para trás não é-nos
proibido, mas, como nos ensina o mito de Orfeu, traz consequências: se não
a perda para a morte do que se ama, a consciência de perdas decorrentes da
passagem do tempo. Deveria o escritor então olhar para frente, esquecer-se
do passado? Ao que parece, é-nos impossível não deixar de olhar. É-nos
necessário, imperioso até. E, no caso específico da literatura, não seria
esta a sua essência? Um contínuo olhar para trás?
Modiano escreve, obsessivamente, sobre um período da história da
França: A derrocada diante dos exércitos de Hitler, mas não é apenas o peso
da derrota que pesa sobre os franceses que viveram ou nasceram neste
período e anos posteriores. Houve, na França, o colaboracionismo
entusiasmado, houve Vichy.
O objetivo do presente ensaio é analisar quatro das obras deste autor
a partir da sua percepção e de suas obsessões presentes em suas narrativas:
a derrota, a derrocada moral frente ao inimigo, a colaboração, a destruição
dos ideais de liberdade, igualdade, fraternidade.
Como forma de abordar seu universo ficcional, dividir-se-á a análise
observando, em primeiro lugar, a construção dos personagens. Na sequência,
ater-se-á à construção da narrativa: ambiência, o transcorrer do tempo
narrativo, condução da resolução do conflito ficcional.
O personagem que se constrói durante a narrativa: uma característica
recorrente na obra de Modiano.
O personagem é, segundo Wood, "O mais difícil da criação" (Wood, 2011:
87), além do elemento principal/primordial da ficção (Cândido, 2005). A
dificuldade está em construí-lo, um exercício de imitação, como nos ensinou
Aristóteles, em um ser crível, verossímil. À questão da verossimilhança,
Foster (2008) acrescenta a discussão acerca da complexidade dos
personagens, dividindo-os em rasos (ou planos) e os complexos (ou
redondos). Os primeiros são figuras pouco expressivas e delineadas a partir
de pinceladas, podendo ser algo caricatas, enquanto que os últimos seriam
figuras humanas complexas, às quais o leitor consegue conhecer
completamente.
Os personagens de Modiano não poderiam ser descritos como rasos,
apesar da maneira como o autor escolhe apresentá-los. Na hipótese de se
levar a termo a definição da complexidade dos personagens de Foster, uma
tipologia discutível, não se pode, como leitor, afirmar, ao menos no início
das narrativas, que se conheça aos personagens. Parece mais indicado dizer
que os personagens modianescos guardam semelhança com os de Henry James
que, conforme Zéraffa (2010), desvelaria seus personagens, escolhendo,
cautelosamente o que revelar. Com efeito, ao se analisar as obras de
Modiano, depara-se com descrições físicas bastante econômicas. Quanto a
outros detalhes: Alguns não têm nomes, ou respondem a mais de um, o caso de
Ronda da Noite e, de certa maneira, de Villa Triste. Outros não têm sequer
memória, como em Uma Rua de Roma, e há ainda os que pouco mais são que um
nome, como acontece em Dora Bruder. Os aspectos psíquicos relacionados aos
seus personagens vão sendo paulatinamente revelados. Assim, o leitor sente-
se, durante a maior parte da leitura, perdido, confuso e tal é o objetivo
do autor. Cabe ao narrador conduzi-lo por caminhos tortuosos[1] no
reconhecimento e conhecimento destes, mas sem cogitar nada próximo a um
conhecimento completo. A escolha do narrador, tratada com mais ênfase a
seguir, obedece aos mesmos objetivos, mas fica evidente que este deve
servir de condutor, uma espécie de Orfeu a levar pela mão o leitor nas
diferentes narrativas aqui tratadas. E, como no mito, este narrador há de
olhar para trás. Para ele, não há outra solução possível, pois não pode
seguir adiante. Precisa saber o que se passou, precisa descobrir quem foi,
no que se tornou.
Esta é a busca recorrente pela qual passam todos os personagens
centrais nas tramas modianescas: O reconhecimento, a compreensão, a
reconstrução de suas personalidades esfaceladas.
Em seu segundo livro: Ronda da Noite, publicado na França em 1969, o
autor opta em ficcionalizar personagens históricos; Membros da Gestapo
francesa e também da resistência. Tal opção causou celeuma quando do
lançamento do livro e não seria a primeira vez que tal discussão ocorreria.
Há dificuldade em se separar ficção de realidade, uma discussão que vem
acompanhando toda a história da literatura; Flaubert sofreu um processo e
teve de afirmar que Madame Bovary era ele mesmo, ou seja, um a criação
ficcional sua; Proust teve de negar haver retratado esta ou outra dama em
sua obra; Thomas Mann publicou um ensaio num jornal alemão de grande
tiragem, buscando explicar o mesmo ponto sobre os personagens contidos em
Os Buddenbrook: Não eram gente de carne e osso, homo sapiens, mas tratavam-
se de exemplares de homo fictus, para adotar a categorização de Foster. Ou
seja, a criação ficcional nunca é a realidade. Não poderia, nem desejaria
ser. Sempre mimese, sempre aproximativa.
No texto de Modiano, a narrativa se inicia numa cena. O leitor
desconhece por completo onde estão e quem são os personagens que interagem
e dialogam. Poucas informações são dadas a respeito do lugar onde se
encontram. Há seus nomes, mas pouco é informado sobre quem são. Tem-se a
impressão de se adentrar um espaço de sonho (ou pesadelo). O narrador
testemunha diferentes tipos de excessos: personagens que bebem demais, que
têm atitudes incongruentes. O focalizador permanece junto ao narrador da
história, mas custa-se em saber quem ele é. Passam-se mais de trinta
páginas até que se tenha uma ideia de quem se trata: um homem, um rapaz, de
vinte anos, sorriso cativante, olhos cristalinos e que se tornará
informante de uma organização criminosa que atua com beneplácito da polícia
oficial: "os traidores têm sempre um olhar cristalino". (Modiano, 2014:33).
Mas não é apenas esta a sua função na trama. Ele será um agente duplo e,
como agente duplo, terá dois pseudônimos: Swing Troubadour e Lamballe.
É no transcorrer da narrativa que os personagens vão ganhando
profundidade. Os secundários são escroques que tomam partido da situação da
guerra para prosperar. Há traficantes, contrabandistas, proxenetas,
prostitutas, assassinos. São comparados a ratos, tipos desclassificados.
O personagem principal, também o narrador, é um rapaz que foi levado
pelas circunstâncias, ou crê que foi em decorrência destas, que passou a
atuar junto à organização da qual faz parte:
Ele questiona-se, vez que outra, sobre a sua situação de agente duplo, e
pelo fato de ser levado a delatar homens que julga melhores que ele. Há
uso, durante a narrativa, de termos pejorativos que ele se auto-impõe:
"dedo-duro, alcaguete". Sente-se incomodado, diz sofrer, mas não modifica a
sua atuação. O narrador pressente que não terminará bem.
Paris é também uma personagem importante na história. Como símbolo do
que foi: a Cidade Luz, e do que está para se tornar: uma ruína, se não
factual, moral. Por isso, "os postes vomitavam uma luz azulada" (Modiano,
2014:33).
A cidade apodrece, cheira mal, soçobra diante dos inimigos. Há ainda
lugares onde se pretende que nada mudou, mas os gêneros alimentícios vão
escasseando. Para os que podem pagar os subornos, há patê de foie,
conhaque, champagne. Para os que não, o medo e a tentativa de fuga. Ficam
os ratos, os covardes, os loucos.
Paris é personagem também de seus dois outros romances: Uma Rua de Roma
e Dora Bruder. Sempre percorrida, sempre palmilhada: endereços são
apontados, pontos turísticos conhecidos. A cidade símbolo da França, imã,
centro a atrair os eventos históricos importantes. É em Paris que se
encontram os personagens de quase todos os livros de Modiano.
Já em Uma Rua de Roma, o personagem principal não tem nome ou passado.
Perdeu a memória por completo. Recebe um nome de um detetive particular que
foi procurar na tentativa de recuperar sua vida pregressa e termina por
trabalhar para ele. Quando o dono da agência decide fechá-la, o personagem
passa a se dedicar exclusivamente ao caso que permanecera inconcluso: sua
própria vida.
A vida que teve, o verdadeiro nome do personagem vão sendo pouco a
pouco revelados a partir das investigações. A princípio, as pistas são
muito vagas, uma fotografia, um nome que lhe é desconhecido. Com
persistência e paciência, o personagem aproxima-se do seu destino, retorna
no tempo. Apropria-se de seu nome, de sua antiga vida, de amigos, da mulher
que teve, de quem começa a recordar o semblante, a cor da pele e cabelos.
Ao final da novela, tem-se um personagem completo cuja história pessoal é
constituída de perdas irreparáveis: O narrador termina sem conseguir
encontrar viva nenhuma das pessoas que significaram a sua vida anterior.
Ele sabe quem é, mas tudo o que foi se esfumou. O preço de haver olhado
para trás foi permanecer sem nada de concreto.
O título seguinte, Villa Triste, dos quatro livros aqui analisados, é
o único que não se passa em Paris, mas em uma cidade balneária junto à
fronteira da Suíça. Neste livro, outro jovem que foge de algo, aparente, a
guerra na Argélia, usa um monóculo e que se deixa apresentar como possuidor
de um título nobiliário. Vive, durante uma estação de verão, um caso com
uma pretensa atriz, Yvonne, e circula pela cidade com ela e seu amigo, o
médico René Meinthe, homossexual, que clinicaria em Genebra. Mais uma vez,
os personagens têm pouca definição, sendo os detalhes (alguns),
apresentados durante a narrativa. O rapaz já morou na África (seu pai foi
sócio ou fundador de uma sociedade em prol de povos ou países africanos),
angariou algum dinheiro vendendo livros raros que herdou. Se este pai
desapareceu ou faleceu não é informado. Yvonne, por sua vez, é natural da
cidade, foi criada por um tio. O pai, aparentemente, desapareceu. Não há
menção à existência da mãe. O que dela se sabe é que se trata de uma jovem,
bela, que abandonou o tio nos subúrbios da cidade e se mantém sem
apresentar uma profissão. Ao que tudo indica, prostitui-se. René diz-se
médico, como o seu pai também o fora. Vive sozinho em uma casa situada na
avenida tradicional da cidade, mas quase desprovida de móveis. Recebe
visitas suspeitas, pessoas são vistas saindo carregadas e feridas de sua
casa e ele visita ocasionalmente Genebra. Também recebe telefonemas
estranhos em sua casa e encarrega o narrador de atendê-los quando se
ausenta. Intitula-se Rainha da Bélgica.
Personagens fragmentados, desinteressados de seus passados e mesmo em
seus futuros. Todos os seus poucos esforços estão concentrados no presente,
em viver despreocupadamente uma vida agradável em uma cidade litorânea.
Tamanha despreocupação não parece estar associada unicamente à juventude
dos personagens, então o que é? É a proximidade da Guerra, neste caso em
específico, a da independência da Argélia.
A Guerra é também um personagem na obra de Modiano. Está sempre à
espreita, como em Villa Triste. Ou então Paris, a Cidade-Luz, está prestes
a cair em mãos alemãs (Ronda da Noite) e, uma vez ocupada, soçobrada,
entrega cidadãos franceses ao extermínio, o caso relatado em Dora Bruder, o
último livro a ser analisado neste trabalho. A Guerra é, o Deus Ex-Machina
que explica ou justifica a falta de valores, a ausência de moral, a
destruição da própria França.
Em Dora Bruder, o narrador, que é também um autor, o autor da obra,
inicia uma busca. A partir de um anúncio de jornal publicado em 1941, mas
que ele apenas toma conhecimento anos depois, parte na busca do paradeiro
da jovem Dora.
As histórias da vida deste narrador se misturam com as de Dora Bruder;
Dora e o pai do narrador teriam sido presos pela polícia na mesma noite.
Ele especula se não teriam sentado lado a lado na viatura. As ruas por onde
ela teria passado, a estação de metrô que usaria seria também utilizada
pelo narrador. Ele tem a sensação de senti-la por diversas vezes durante os
seus percursos e, a buscar pistas sobre ela, cogitar sobre o que poderia
ter vivido se fosse então já nascido. O tempo que os separa vem e vai,
contribuindo para uma leitura que transparece alucinação.
Dora, uma jovem de dezesseis anos, um metro e cinquenta e cinco, olhos
marrom-acinzentados, filha de imigrantes do leste europeu, figura em
algumas poucas fotografias que o narrador/detetive arrecada durante mais de
trinta anos de busca. Esteve interna em um colégio de freiras, de onde
foge, mas não pode fugir de seu passado, da marca que lhe impingiram os
nazistas: a estrela amarela. Durante mais de trinta anos, entre idas e
vindas, perdas de rastro, o narrador procura saber o que lhe aconteceu, por
que fugira do internato, por que fugiu em uma segunda oportunidade, desta
vez, da própria casa, para depois acabar encarcerada em um centro de
detenção antes de ser deportada para Auschwitz. O destino de Dora não foi
diferente de tantos outros cidadãos de origem judaica na Europa assolada
pela Guerra, na Europa ocupada e, pior ainda, no caso da França, com um
regime colaboracionista.
Da personagem retratada nesta novela, temos uma percepção vaga. Pouco
se sabe dela além da altura, da cor dos olhos, da roupa que trajava, da
filiação. Ela pouco mais era que mais uma judia, mais uma estrela amarela,
mais uma indesejável. O que pensara, o que sentia, fica sendo unicamente
seu, talvez o seu único trunfo perante os opressores.
Conforme Antônio Cândido, as personagens existem para viabilizar as
narrativas. "O enredo existe através dos personagens; As personagens vivem
no enredo". (Cândido, 2008: 53). Se os personagens logram em convencer o
leitor, se são convincentes em suas verdades, o leitor pode perdoar-lhes
falhas de caráter, de comportamento, como no caso do personagem do romance
Lolita de Nabokov. Humbert Humbert é um sujeito execrável, mas nos convence
de que existe.
Os personagens presentes nas narrativas de Modiano guardam
características comuns, talvez a principal seja o fato de começarem nas
narrativas imprecisos, esfumados e ir ganhando densidade e profundidade com
o transcorrer da trama. Como a Antônio Cândido ressalta: os personagens
devem bem servir os objetivos do autor e da trama, do enredo. No caso das
histórias de Modiano, o importante é sempre a busca: do passado, da razão
de continuar vivendo, ou de não haver perecido. Os personagens não podem
seguir adiante porque não compreendem os porquês que os mantêm vivos.
Assim, eles voltam-se para trás, para seus passados e, como Orfeu, veem-se
sozinhos.


A Construção da Narrativa: Circularidades, Repetições, localizações
geográficas
Se os personagens nas narrativas de Modiano são, a princípio,
imprecisas, a construção da ambiência onde se desenrolam as tramas é o
contrário: detalhadamente explicitada, geograficamente precisa.
Na história do agente duplo em Ronda na Noite, a observação dos
percursos é importante para assinalar os seus trajetos entre pontos opostos
da cidade. Pela sua condição, ele deve visitar dois endereços que abrigam
as duas organizações de que participa e cujos objetivos são muito
distintos: enquanto uns desejam enriquecer e aproveitar-se das situações
oferecidas pela guerra, outros desejam lutar contra os que invadiriam a
cidade e acabar com os aproveitadores que vicejaram frente à ocupação.
Durante suas andanças, o personagem/narrador descreve a Paris em que
vive, mesclada com a Paris onde viveu sua infância, os anos anteriores.
Mistura experiências passadas com as que experiência no momento da
narrativa. A circularidade experimentada pelo leitor ao acompanhar os
trajetos descritos decorre da repetição de endereços e, também, do
acréscimo de novos detalhes, ou ligeira alteração de informações fornecidas
anteriormente. Fica-se com a sensação que o personagem divaga ou delira e
que talvez muito do que narre não seja verdadeiro. Trata-se de um narrador
não confiável, dissimulado, cínico. Os detalhes que utiliza para dar
veracidade ao seu relato são justamente os geográficos, os facilmente
verificáveis. E é só e tão somente no que se pode confiar.
O decorrer do tempo não segue uma ordem diacrônica. Com muitas idas e
vindas, decorrentes dos deslocamentos do personagem, o leitor é levado para
o passado impreciso e novamente ao presente, sem conseguir compreender se o
que é narrado é sonho/delírio ou se, de fato, está a acontecer.
Em Uma Rua de Roma, um personagem sem memória erra pelas ruas de Paris e
busca, em cada endereço, uma pista, uma lembrança que o leve de volta ao
seu passado. Percorre diferentes partes da cidade, movido pela esperança de
que alguém o reconheça, que se aproxime dele, esclareça alguma coisa. E,
efetivamente, tal acontece: Um homem, que foi seu amigo, anos antes,
confirma-lhe o nome, a profissão, a existência da namorada e o endereço
onde estiveram juntos pela última vez antes de Pedro (o narrador) e Denise
desaparecerem: Um chalé na Suíça.
Nesta obra, Modiano adota a mudança de narrador e de focalizador. Em
dois momentos, parte da história de Pedro é contada por testemunhas
oculares com as quais ele não fará contato, mas que servem para o leitor
compreender e preencher algumas das lacunas da narrativa em primeira
pessoa. Outro recurso utilizado é acrescentar missivas que o narrador-
detetive requisita a informantes, talvez da polícia, ou de algum outro
órgão governamental e que vão contribuindo para delinear os contornos dos
personagens que entram na trama, bem como permitem ao leitor acompanhar o
fio narrativo.
Com o intuito de enfatizar a perda de memória e as tentativas de
recuperá-la, outro subterfúgio é alterar ligeiramente detalhes de trechos
narrados anteriormente. Um exemplo: Em um dado momento da narrativa, o
narrador menciona que jantava com a namorada (tinha vislumbres de memórias)
em um restaurante basco. Páginas depois, menciona que era um restaurante
russo. São flashes que surgem e se vão e que, aos poucos, permitem ao
personagem reconstruir toda uma parte de sua vida perdida.
A frase que abre a novela Villa Triste é: "Destruíram o Hotel de Verdun"
Modiano, 2014:13). Fica-se em dúvida de quem o destruiu ou o quê o
destruiu. Segue uma larga descrição do balneário. O narrador nos informa
de que é inverno, mas o vazio não pode dever-se apenas à estação. Uma frase
se destaca: "Nous aurons été les derniers témoins d´un monde » (Modiano,
2014:6). « Fomos as derradeiras testemunhas de um mundo".
A descrição segue repleta de adjetivos que denotam abandono, término:
árvores mortas, fachadas escuras, calcinadas, a ausência de luz nas
janelas. O narrador vai conduzindo o leitor pelas ruas vazias, aponta
avenidas, o cinema, os hotéis que já não existem e leva o leitor até a
estação de trem. Lá, rapazes se preparam para embarcar. É quase Natal: "On
dirait qu´ils partent au front" (Modiano, 2014:18). "Dir-se-ia que eles
partem para o front". Uma guerra, mas qual?
Há descrições de casas visitadas, de dias na praia, despertares em
quartos de hotel, de roupas vestidas. O narrador investe mais tempo nesses
detalhes porque, com o passar do tempo, os contornos de seus companheiros
foram se misturando, perdendo as definições. Ele chega a afirmar que nunca
os pôde perceber direito e é justamente a sensação do leitor: que eles são
muito vagos.
Como em Uma Rua de Roma, há o acréscimo de informações por vias outras
que a voz do narrador: há uma notícia publicada em um jornal da morte do
personagem René Meinthe ocorrida devido a um suicídio. O que o teria levado
a se suicidar não é informado. Assim, ele desaparece sem nunca haver sido
um personagem claro.
Mas o romance termina, não sem antes, serem feitas observações sobre uma
fuga de Paris antes da chegada dos alemães. Como se vê, a guerra, as
guerras, retorna(m) às narrativas de Modiano porque, como seu próprio
narrador afirma, os melhores pontos de referência são as guerras. Um
círculo, de amplo diâmetro, por vezes, englobando a passagem de várias
décadas, mas do qual não se pode escapar.
Em Dora Bruder, os pontos de referência: endereços da cidade de Paris
são constantemente apontados. O livro, também narrado em primeira pessoa,
inicia com a descrição da leitura do anuncio de jornal que leva o narrador
a empreender sua busca pela personagem Dora Bruder.
A cidade de Paris funciona como uma espécie de labirinto, de esconderijo.
Dora Bruder mesmo ficou desaparecida dentro da cidade, sob o domínio
alemão, durante meses. A cidade desaparece com as pessoas; a magia de uma
cidade como Paris é permitir que pessoas desapareçam sem deixar rastros
evidentes.
Ainda assim, o narrador segue, durante anos, em busca de pistas que o
levassem à Dora. Estes percursos de detetive tomam-lhe anos e toda a
narrativa é entremeada de fatos que aconteceram ou poderiam ter acontecido
à Dora, e fatos que aconteceram com ele, o narrador.
A narrativa vem e vai ao passado, há que se tomar atenção às datas.
Como é fácil se perder pelas ruas de Paris, torna-se fácil também se perder
no tempo: 1941, quando Dora desaparece, 1965-1966, quando o narrador lê o
anúncio, 1958, quando ele circula pelo bairro de criança com a mãe, 1988
quando o narrador e autor da narrativa volta a se debruçar sobre o seu
personagem perdido, 1942, quando Dora e seu pai são despachados para
Auschiwtz. Há mais datas porque, se Dora desaparece em 1942, o narrador da
sua história vive até os anos noventa, pelo menos, mas não a esquece, até
conseguir refazer sua trajetória até o campo de extermínio nazista.
Há então a circularidade do tempo: que vem e vai, dos trajetos
percorridos – pelo narrador e por Dora. Há as coincidências temporais: o
pai do narrador é encarcerado na mesma noite em que Dora teria sido detida,
coincidências de endereços, o que só vem a reforçar o desejo do narrador de
encontrar respostas, de se irmanar, de certa maneira a esta moça, nascida
vinte anos antes dele e tão precocemente desaparecida. Dora é uma sombra,
uma espécie de fantasma que o fascina.
Considerações Finais
Na conclusão de sua Introdução à Análise Estrutural da Narrativa,
Barthes (1971) especula sobre a origem desta; quando o homem inventou a
frase e, também, a história de Édipo. Foster (2008), discorrendo sobre o
que aparece na tradução consultada como "estória", o que se poderia
relacionar com a narrativa, comenta: "A estória é primitiva, remonta às
origens da literatura, antes da descoberta da leitura, apela para o que há
de primitivo em nós" (Foster, 2008:66).
O que há de primitivo em nós? Neste caso em específico, a necessidade
de narrar e de receber tais narrativas. Através delas, compreende-se um
pouco do que se foi, esta necessidade humana em tentar explicar suas
origens, em decifrar o mundo onde surgiu. As histórias ensinam, instruem,
confortam.
As narrativas literárias estão entre nós antes do advento da escrita,
portanto, e muito recentemente, segundo Foucalt (2015), passaram a ser
reunidas e denominadas a partir do termo: Literatura.
A abordagem estrutural de obras literárias surge embasada nas ideias
dos Formalistas russos de encontrar elementos passíveis de análise: A
história (argumento), o discurso (tempos, aspectos e modos correlatos).
A análise que se buscou realizar a partir das obras de Modiano foi de
cunho estruturalista, ou seja, a partir de elementos constitutivos do texto
ficcional, tentou-se apresentar aspectos considerados importantes na
construção do texto deste autor, talvez revelando, novamente recorrendo às
palavras de Camus, suas obsessões, suas ideias a respeito de seus
personagens, do período que escolheu retratar e, também sobre a forma como
reponde às questões fundamentais que afligem a todos os humanos. É quando o
texto literário ganha universalidade que ele cresce em relevância.
A construção dos personagens, a sua apresentação, a definição do
narrador, o ponto de vista adotado, a construção do tempo narrativo são
elementos que talvez escapem ao leitor preocupado em apenas fruir o texto,
mas que são importantes ao leitor que se dedica a estudar literatura e a
produzir textos literários.
Patrick Modiano surge no ambiente literário francês em 1968. Os
estudiosos em sua obra o definem como um escritor obcecado por um período
anterior ao seu nascimento: 1945. Modiano retorna sempre aos anos da II
Guerra, à França ocupada e colaboracionista.
Este olhar obcecado, a construção paulatina e incompleta de seus
personagens, a narração não-linear, foram a forma que o escritor encontrou
de narrar, de expor aos leitores este período muito específico da história
francesa, da sua história. Seus narradores nos conduzem por caminhos
tortuosos, principalmente na cidade de Paris e, a cada passo do trajeto,
adquirimos um conhecimento que não tínhamos. A guerra destruiu não somente
a cidade, dizimou famílias, maculou a honra de uma nação, dividida entre a
resistência e os quadros da Gestapo. Da França, partiram trens para
Auschwitz.
Olhar para trás é sim inevitável. Para a França, para Modiano, para os
leitores que o acompanham. Perde-se o direito de pretextar uma inocência,
ignorância. Se ganha, no entanto, algo precioso, ainda que amargo: um
mergulho na psique humana.

Bibliografia
BARTHES, Roland. Análise Estrutural da Narrativa. Rio de Janeiro: Editora
Vozes, 1971.
CAMUS, Albert. A Inteligência e o Cadafalso. São Paulo: Record, 1998.
CÂNDIDO, Antônio. A Personagem da Ficção. 11ª Edição. São Paulo:
Perspectiva, 2007.
FOSTER, E.M. Aspectos do Romance. São Paulo: Globo, 2004.
FOUCALT, Michel. Language, Madness and Desire on Literature. Minesotta:
University of Minesota Press, 2015.
MANN, Thomas. Travessia Marítima com Dom Quixote. 1ª. Edição. Rio de
Janeiro: Zahar, 2014.
MODIANO, Patrick. Ronda da Noite. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
_________________. Villa Triste. Paris: Gallimard, 2014.
_________________. Uma Rua de Roma. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
_________________. Dora Bruder. Rio de Janeiro : Rocco, 2014.
WOOD, James. Como Funciona a Ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
ZÉRAFFA, Michel. Pessoa e Personagem. São Paulo: Perspectiva, 2010.
-----------------------
[1] As narrativas de Modiano envolvem deslocamento físico dos personagens.
Quer pela cidade de Paris, como em Ronda da Noite, Dora Bruder e Uma Rua de
Roma, como através de um balneário em Villa Triste. São personagens que
honra m a tradição do Flâneur, idealizada por Baudelaire.
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