O Modernismo Notas para uma Reinterpretacao

May 26, 2017 | Autor: B. Pinto de Almeida | Categoria: Historia Da Arte Em Portugal
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A Arte em Portugal no Século xx, ed. Bertrand Editores, Lisboa, 1974.
Veja-se, a título de exemplo, o volume dedicado ao século xx, na História da Arte Portuguesa lançada pelas edições do Círculo de Leitores, Lisboa, com direcção de Paulo Pereira.
Cf. Belting, Hans, The Invisible Masterpiece, University of chicago Press e também Krauss, Rosalind. e al, Art Since 1900, Modernism, Anti-Modernism Postmodernism, ed. Thames and Hudson, London, 2004.

Sobre as questões relativas à construção da subjectividade moderna, leia-se Kristeva, Júlia, La Révolution du langage poétique. L'avant-garde à la fin du XIXe siècle: Lautréamont et Mallarmé, ed. du Seuil, Paris, 1974.
Cf. meu livro O plano de Imagem, ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 1996.
Veja-se o admirável ensaio O Pintor da Vida Moderna, ed. Nova Vega, Lisboa, 2013.
Paris, capitale du xixème Siècle, ed. Cerf, Paris, 1982.
Em 1884, na sua Art Poétique, Verlaine escrevera: 'De la musique avant toute chose/Et pour cela préfère l'Impair/Plus vague et plus soluble dans l'air/Sans rien en lui qui pese ou qui pose'.
Ver, entre outros, Trotter, David, Cinema and Modernism, , Wiley-Blackwell, 2007.
Mais recentemente, numa notável antologia dedicada ao Ano de Orpheu, organizada por Steffen Dix, este autor refere entre os grande acontecimentos do ano de 1915 o lançamento pelos Keystone Studios do primeiro filme produzido com Chaplin. In Vv.Aa, 1915 — O Ano de Orpheu, ed. Tinta da china, Lisboa, 2015, p.20.
Frederic Jameson refeiu já que "A estética de Kant libertou a arte da decoração feudal e posicionou uma nova arte burguesa para transportar os valores Utópicos e, mais tarde, Modernistas." in A Singular Modernity, ed. Verso, Londres, 2002, p. 175.
The Originality of Avantgarde and Other Modernist Myths, MIT Press, Cambridge, Mass. 1985.
Cf. Lacoue-Labarthe, Ph e Nancy, J. L., L'Absolu Littéraire, Théorie de la literature du romantisme allemand, ed. du Seuil, Paris, 1978.
Frederic Jameson notou: "a força do imperativo para inovar ou 'fazê-lo novo' o poderoso e central valor que presidiu ao Novo enquanto tal, pareceu sempre constituir a lógica fundamental do modernismo, que replicou a dinâmica da modernidade de Schelling, na sua poderosa expulsão do passado em nome da procura da inovação.". op. cit p. 151.

- Frederic Jameson escreveu "foi o poeta nicaraguense Ruben Dario quem primeiro disseminou o termo modernismo em 1888 onde aparece de modo suficientemente claro como sinónimo para um estilo normalmente identificado como simbolismo ou jugendstil." Op. cit., p. 100.
No seu estudo sobre a obra de Edvard Munch, Paloma Alarcó referiu, a propósito deste pintor, que ele "nunca abandonou a figuração, mas afastou-se de qualquer imitação do natural através de uma linguagem soimbólica e expressionista muito radical e do uso de diversas estratégias artísticasque lhe permitiram orientar o espaço em direcção a uma dimensão psíquica." In Edvard Munch – Arquétipos, ed. Museo Thyssen Bornemisza, Madrid, 2015, p.20.
Einstein, Carl, L'Art du XXème Siècle, tradução francesa Éditions Jacqueline Chambon/Actes Sud, Arles, 2011, pp.195 e segs.
Recorde-se aquela enigmática e grave declaração de Baudelaire, em carta a Manet: "vous n'êtes que le premier dans la decrépitude de votre art". In Correspondance Tome I (1832-1860). Ed. de La Plêiade, Gallimard, Paris.
Voltando a Jameson: "É isto que é frequentemente chamado a auto-referencialidade ou auto-designação do moderno e o modo como as obras modernistas podem tantas vezes ser vistas, implícita ou explicitamente como alegorias da sua própria produção. (…) O ponto é que também as obras [dos artistas emergentes do Modernismo] são cada vez mais inclassificáveis e começam a resistir às categorias comerciais dos géneros no esforço de se distinguirem das formas da mercadoria, ao mesmo tempo que inventam várias reivindicações, míticas e ideológicas, de um estatuto formal único que não possui reconhecimento social, e a auto-referencialidade é a própria dinâmica deste processo." op. cit. p. 159.
Nesse sentido vai também Paul Virilio, quando afirma: "Thinking about it all, I realized that the art of the 20th century is basically terrorist, and terrorized. It has been devastated by the two World Wars, by the Holocaust. You can't understand Dada or Surrealism without World War I." in The Accident of Art, MIT Press, Cambridge, 2005, p. 14. E, ainda, Steffen Dix quando refere que este "foi o início de uma época em que o homem começou a suspeitar ser uma marioneta nas mãos de forças invisíveis, que a vida humana não passa de uma odisseia incontrolável e que a nossa linguagem é incapaz de abranger a nossa própria realidade." Idem, p. 23.
Boris Groys referiu já que "a vanguarda radical, de Marinetti a Malévich ou Mondrian, não quis restabelecer uma nova, mas apenas uma relação negativa com a natureza. (…) Quis quebrar completamente com a natureza em nome do novo mundo industrial e com a mimésis da natureza em nome da invenção de novas e não naturais formas de arte e vida." In the Flow, ed. Verso, London, 2016, p. 142.
idem, p. 57.
Escritos de Malévich, ed. espanhola editorial Sintesis, Madrid, 2006, p. 305. Veja-se também Goriacheva, Tatiana, 'Suprematismo y constructivismo in Vanguardias Rusas, coordenação de Tomás Llorens, ed. Museo Thyssen Bornemisza, Madrid, 2006.
Steffen Dix observou também: "os anos antes e durante a Primeira Guerra Mundial constituíram uma série constante de rupturas, desarmonias, assimetrias ou acontecimentos cuja simultaneidade não tem lógica. O mundo começou a fragmentar-se muito tempo antes da guerra." In idem, p. 30.
In 1915 — O Ano de Orpheu, p. 39.
In Plastique, ed. Sophie Taeuber Arp, Meudon, 1937, recolhido mais tarde em "The Documents of Modern Art" org. R. Motherwell, N.Y., 1952.
Histoire de la Peinture Surrealiste, ed. du Seuil, Paris, 1959, pp. 118.
Cf. Arnaldo, Javier, 1914 — La Vanguardia Y La Gran Guerra, ed. Museo Thyssen Bornesmiza, Madrid, 2009.
O Modernismo: uma introdução crítica e histórica — notas para uma reinterpretação

Todas as interpretações de carácter histórico que, ao longo do tempo, e mais em particular nas quatro últimas décadas, têm vindo a filiar na possibilidade de um qualquer ideário Modernista coerente aquele conjunto heteróclito de artistas portugueses do início do século xx e as respectivas exposições, em que apenas se fez sentir um lampejo, fosse ele débil, de esforço modernizante — e que, na sua maioria, apenas tentaram forjar, por vezes quase ingenuamente, um Impressionismo à portuguesa, como se depreende das obras que restaram, e que se podem hoje ver nas colecções existentes — estão destinadas a desentender o essencial. A saber, que o Modernismo português, se o houve — e creio que sim, como tentarei demonstrar adiante — se desenhou por outra via, por outras latitudes e, sobretudo, em outras obras e momentos singulares, que é necessário e urgente ir reencontrar como os eventuais protagonistas de um tal programa. Até para que o termo ganhe, entre nós, um sentido próprio.
Foi José-Augusto França — historiador a vários títulos notável, cuja obra e trabalho nos devem merecer o maior respeito intelectual, mesmo quando o lemos em total divergência — quem, com maior responsabilidade, proporcional à influência que de facto exerceu, quer como crítico e historiador, quer como académico, forjou e defendeu, como se fosse evidente em si mesma, a interpretação que proclamou a existência não apenas de um, mas de três (ou de três gerações dele!) Modernismos.
E nesse desentendimento — que no essencial foi confundindo o eclodir do Modernismo com o surgir tímido de um 'espírito modernizante', o que é, de facto, completamente diferente — comprometeu este autor, em grande medida, as demais e grandes qualidades do seu gigantesco trabalho de investigação e de levantamento da arte portuguesa na primeira metade do século. A que, mesmo assim, evidentemente muito ficou a dever a historiografia da arte em Portugal, e cuja referencialidade não pode ser esquecida, mesmo se deve ser criticada. Uma pequena, mas empenhada legião de discípulos, que ele mesmo formou, directa ou indirectamente, e acabou por ter forte presença em instituições e publicações, foi, no essencial, incapaz de contrariar tais teses e persistiu longamente em perpetuar alegremente o equívoco.
Assim, ficou por entender o que seria uma interpretação outra, susceptível de perceber que Modernismo foi, ou não, o português, ou se o houve. Desde há muito que, pelo meu lado, venho procurando sugerir outro campo interpretativo, e outra definição e interpretação para o facto. Na verdade, se entendermos a partir de uma definição mínima e coerente aquilo em que consiste o Modernismo, na sua interpretação quase já canónica, e hoje quase comumente professada pelos pensadores da historiografia recente da arte — de Rosalind Krauss a Hans Belting, apesar das diferenças interpretativas que os opõem, há uma série de convergências formais e conceptuais no que respeita ao entendimento geral do fenómeno — temos que reelaborar a grelha conceptual e formal que o sustenta, e procurar ver se tem aplicação no caso português, verificando os seus termos e, sobretudo, o modo como é possível encontrar um quadro referencial simples para o ler.
A questão mais decisiva que se levanta ao historiador que estuda e tenta compreender a cultura da primeira metade do século xx é, justamente, o que foi o Modernismo? O que é, como se define, que diferença o marca diante do que o antecedeu, em que medida se constituiu como programa coerente, com características próprias, diferenciadas — são questões que envolvem problemas ao mesmo tempo metodológicos e científicos, críticos e históricos, culturais e estéticos. Essa distinção desenha uma perspectiva essencial para a compreensão do que foi essa história que, só ela, permite perceber o lugar relativo das artes locais na sua relação com a arte global, já que desse paradigma fundador ou contra ele, nasceu toda a arte do século passado.
É talvez este o momento, então, de esclarecer o critério de entendimento quanto ao que é o Modernismo que aqui se seguirá, e que guiará, desse modo, a interpretação e as decorrentes escolhas e análises que se levam a cabo, e já que ela se constitui como uma das diferenças essenciais que justificam este livro. Também assim, porque o termo Modernismo — espécie de mot valise em que tudo cabe, ou coube — designa, na verdade, antes do mais e cada vez mais, um conceito, histórico e cultural, que refere um estilo, se não mesmo um movimento profundo, histórico, que se deu no interior da arte e da cultura do século que passou, e que correspondeu, também, a um modo de entender e de praticar a arte. E que, se se foi definindo sobretudo no interior dessa prática conduzida pelos próprios artistas, foi depois como conceito que se elaborou no campo crítico. Essa prática e essa teoria possuem então uma relativa convergência susceptível de se explicitar, mas, também, uma historicidade própria e, como tal, os seus debates e controvérsias que, ao longo do tempo foram progressivamente afinando, no plano conceptual, a definição que dele herdámos.
Também por isso, o Modernismo se tornou para nós em algo que é da ordem do que Kubler chamou uma forma do tempo. Porquê?
Porque, para além de tudo o mais, este termo designa um modo de entender a arte que, por sua vez, reúne um certo número de características altamente diferenciadas e diferenciadoras susceptíveis de se sintetizarem, e mesmo de se entenderem, como próprias de um processo concreto, ocorrido num dado tempo histórico e num dado espaço geográfico. Assim, e como tal, além de um conceito, ele constitui-se como um instrumento operatório que designa um projecto e um programa estético, e que permite pensar, dentro de um quadro nítido de referências, um período histórico e as suas produções concretas.
Poderíamos assim, em síntese, dizer que o Modernismo tem um espaço — o Ocidente, mesmo se com extensões ao Japão ou à América Latina, geografias e espaços de criação onde predominou a influência europeia — e tem um tempo. E que, em grande medida, nasceu como conceito literário, já que acompanhou a eclosão de uma série de movimentos que, na literatura do início do século passado, do Vorticismo ao Imagismo de Pound, ou ao Futurismo de Marinetti, procuraram produzir novas formas e hipóteses de criação. Mas que cedo se estendeu às demais formas de expressão, da música às artes.
Poderemos, ainda, postular como certo que o seu tempo histórico sucedeu, histórica e esteticamente, ao da Modernidade. E esta, definindo-a sintética e rapidamente, foi por sua vez a estética de caracterização pós-kantiana, iniciada com o Romantismo, e que depois se desenvolveu ao longo de todo o século xix na arte da Europa culta, a partir de ideias novas sobre a criação. Ideias que se foram intensificando, entre as quais a da possibilidade de uma weltliteratur, tal como sugerida por Goethe nas conversas com Eckerman, como nova forma literária transnacional, susceptível de se constituir como arte de sentido geral, e nesse sentido independente dos entendimentos nacionais.
Mas a Modernidade encontrou em Baudelaire o seu mais fino e o mais alto teorizador, quando este pensou a arte, e mais em geral o acto da criação, a partir da ideia, verdadeiramente inovadora, de esta poder tornar-se numa prática capaz de reflectir e testemunhar historicamente a vida moderna e as suas convulsões. Assim, a Modernidade baudelaireana não foi, de todo, uma abstracção filosófica ou poética. Pelo contrario, foi, ela para ele e para a maioria dos que pensaram, depois dele, o fenómeno, a forma típica de um programa crítico e formal determinado, que o próprio poeta definiu para a questão da criação, a partir da pintura romântica de Eugène Delacroix, ou da literatura e da poética, igualmente românticas, de Edgar Allan Poe, e sobre as quais procurou fundar uma nova teoria estética, em que o sujeito moderno se pudesse ver reflectido, enquanto habitado por uma subjectividade historicamente diferenciada.
Ou seja, Baudelaire procurou definir uma forma de compreensão estética com um carácter simultaneamente subjectivo e objectivo, mensurável e acessível nos seus termos, e como tal capaz de relacionar o indivíduo com a sua história própria (ou com o próprio tempo histórico em que vivia), a partir de um conjunto de protocolos, observáveis em todas as épocas e diferentes em cada uma, como seriam a moda, a época, a moral e a paixão. Eram essas as figuras do moderno, decerto, mas também os eixos de transformação, tipificados em cada época e, como tal, identificáveis nela.
Na nova estética baudelaireana, a noção de belo perdia desde logo o seu assento num carácter universal, próprio do entendimento clássico, vigente ainda na época como ideal burguês, para se pensar, antes, como promessa de felicidade e se converter, desse modo, numa forma nova a que o poeta chamou de belo compósito (e histórico), susceptível de representar as qualidades específicas da própria época e de exprimir, com uma qualidade essencial de presente, as formas de uma nova experiência subjectiva.
Assim, sem se dar conta, ali se introduzia já a dimensão cultural que toda a apreciação estética implica. E será talvez útil lembrar aqui que essa nova estética reagia, também, contra as normativas neoclássicas, dominantes na França sob Louis Bonaparte, opondo-lhes portanto a noção subjectiva de um belo que era, ao mesmo tempo, racional, subjectivo e histórico, ou seja, relacionando-se directamente com a história e com a experiência concreta dos homens, com as suas formas de vida, os seus gostos e até os seus modos de vestir.
A definição baudelaireana do belo histórico, ou compósito, introduzia desde logo profundas modificações conceptuais. Porque o pensava como produção e, como tal, ligado à transformação social que a arte deveria manifestar e, portanto, aberto ao acolhimento da novidade, introduzindo assim, no próprio do artístico, e como necessidade estética, a inovação e o sentido da transformação constantes.
Ao contrário do belo clássico, estático, o seu, sendo histórico, era mutável, dinâmico e, como tal, susceptível de se ir modificando em função da própria transformação histórica da vida, do tempo e dos costumes. Por isso Walter Benjamin, nos ensaios sobre o poeta, pôde afirmar que era doravante preciso pensar Marx em conjunto com Baudelaire, e já que este último elaborou uma teoria da história e do seu movimento próprio, ancorada na dimensão directa e concreta da vida quotidiana nas cidades que complementava a interpretação económica do outro. Uma dimensão de que emergiam figuras novas como a do flanêur ou a do dandy.
A Modernidade, no sentido que hoje ainda lhe atribuímos, sobretudo a partir da formulação baudelaireana, foi, pois, essencialmente marcada pelo sentido de um regresso ao real e às suas fontes. Aquele mesmo que veio a encontrar quer no Realismo pós-romântico de Corot, Daumier e sobretudo de Courbet, quer no formalismo realista de Manet, as formas de expressão mais nítidas, de que nasceria o Impressionismo como consequência mais directa.
Hoje parece-nos evidente que o Modernismo, enquanto movimento e corrente artística digna de ser considerada ao mesmo título que o Barroco ou o Romantismo, para citar apenas dois exemplos — correntes que, cada uma a seu modo, modificaram definitivamente o entendimento histórico e formal da arte — nasceu de uma transformação profunda, consequente do processo iniciado com a instauração da Modernidade.
Dois imperativos estéticos fortes marcaram, porém, a transformação interna deste paradigma relativamente ao que lhe fora anterior. Que se podem sintetizar respectivamente na exigência de Rimbaud, postulada na afirmação il faut être absolument moderne, que desencadeou no seu processo um primeiro sobressalto, e na máxima de Verlaine, la musique avant toute chose. A primeira, ao fazer da inovação estética um pressuposto, ou um a priori, que puxava a arte para o campo de uma autonomização progressiva dos seus processos internos, movida por uma paixão desmedida pela inovação. A segunda, conduzindo-a para um plano cada vez mais abstracto, afastado de qualquer obrigação para com uma representação fiel do real, e motivada, antes, pelo sentido da composição (ou do seu desfazer), o que foi verdadeiro tanto na literatura como na arte, que caminharam sempre de mãos dadas.
A estas, porem, deveríamos acrescentar — o que mereceria por si só um estudo à parte que outros já fizeram — a influência que teve na transformação interna da arte a invenção da fotografia, ainda no século anterior e, já no alvor deste, do cinema. Duas práticas cuja nova ordem de referenciação à imagem seria decisiva na nova e grande transformação que ocorreu na pintura e na arte em geral, abrindo-a cada vez mais a uma procura da abstracção. E já que a fotografia e o cinema haviam diversamente introduzido, de par com uma representação mecânica do real, novas perspectivas sobre esse mesmo real, que autorizava novos modos de o perceber e mesmo de o olhar, construindo uma nova lógica da percepção, enomeadametne contribuindo para a introdução em todas as artes da noção de movimento que o cinema mais que todos os outros meios desenvolveu.
Partirei então, primeiramente, da asserção de que o Modernismo foi, no plano formal e conceptual, ao mesmo tempo, consequência e desvio relativamente à Modernidade, tal como esta fora sintetizada por Baudelaire. Quanto aos factores que asseguraram a continuidade entre ambos, percebe-se como o primeiro herdou o regime estético e cultural da afirmação do novo, do contingente e do actual.
No campo concreto das artes e da literatura, a aspiração maior, senão mesmo a exigência mais absoluta da Modernidade, fora a possibilidade de evidenciar, naquelas, os reflexos do actual, do real, celebrando as possibilidades trazidas pela técnica e, no plano social, os modelos emergentes das formas típicas da vida moderna. Como se percebe da leitura crítica de Baudelaire por Benjamin que antes referi, aquelas deveriam ser capazes de lhe restituir os signos distintivos.
Ao contrario da Modernidade, porém, o Modernismo não se quis comprometido com um sentido estrito do realismo, e preferiu à referência ao real um apelo constante às formas subjectivas da percepção: o mundo, sim, mas tal como visto pelo olhar subjectivo dos artistas. Do Expressionismo ao Cubismo, e destes ao Futurismo, tudo proporcionou a descoberta de uma percepção surpreendida pela visão do mundo encontrada a partir do olhar de um eu interior. Que, se não havia, se inventou no processo de o querer encontrar.
Em certa medida, a noção de subjectividade que Kant deixara sugerida na terceira crítica, realizava-a o Modernismo. E este — que da poderosa concepção baudelaireana herdou, no plano das continuidades conceptuais, a vertigem da inovação, e a ideia de celebração do actual, radicalizada na exigência extrema que Krauss designou como "o mito da originalidade", de que as vanguardas foram a expressão mais absoluta — haveria de se afastar da matriz realista, pressuposta na original concepção da estética baudelaireana. Ao contrário do realismo baudelaireano — que partia do credo ideológico do Romantismo e da matriz kantiana na consideração da subjectividade estética, exigindo uma capacidade de celebrar a realidade envolvente como campo de exploração por excelência para os artistas — os modelos que marcaram a eclosão do Modernismo abriram para outras e novas concepções.
Cada vez mais, de facto, este se via voltado para um pensamento constituido a partir da ideia de um retorno sobre a expressão incontida dos abismos da subjectividade, mesmo se tocando o campo da maior irracionalidade, e para o sentido de uma experimentação ilimitada. Premissas que — continuando por outras vias o sentido do pensamento kantiano — o Romantismo, sobretudo o alemão, na sua complexa teorização estética, procurou tomar como as formas mais apropriadas a uma aproximação da experiência estética. Sobretudo no plano da sua afirmação subjectiva, individual, face à questão do sublime. Agora, e no alvor de um novo século, ávido de transformação e de novidade, a que a industrialização tinha dado um novo impulso, estas premissas começavam a ser transpostas até limites inimagináveis. Sob a sua égide acordou o novo século.
Seria afinal esta corrente, tocada profundamente por um misterioso sentido metafísico, a que veio a encontrar em Van Gogh e em Gauguin por um lado, e em Cézanne, por outro, os faróis de uma nova e desejada ideia da criação artística. Todos três, afinal, inscreveriam com uma nova força o papel central da subjectividade do artista no plano da criação e todos eles também abririam caminhos cada vez mais amplos às forças da expressão. E foi também esta corrente que, levada ao seu maior excesso, foi desaguar, à medida que o século xix se aproximava do fim, nas imaginações e práticas simbolistas, fortes de irracionalidade. Aquelas que, desdenhando-as, deixavam cada vez mais para trás, como se esquecida, as heranças do lirismo impressionista e da razão realista que haviam dominado longamente a actividade artística mais empenhada na inovação, para procurar, em vez delas, as formas de representação do mais 'puro' subjectivo.
A visão 'objectiva' da realidade — que os Impressionistas ainda buscavam, na esteira de Manet, Courbet e Baudelaire — não despertava já, nestes novos artistas simbolistas, ocupados com sondar os abismos da alma humana e do irracional, motivos de grande interesse. Estes procuravam antes afirmar a primazia, singularizada até à loucura, do ponto de vista de um único indivíduo, ou do que chamavam uma alma. Assim, mais do que voltar-se para a realidade, ou então para as inflexões subjectivas de superfície, próprias do lirismo — que o Impressionismo glosou, e que podiam até tematizar a relação amorosa subjetiva, como o fez Renoir nos seus doces e ingénuos quadros de bals musettes —, mas que permaneciam coerentes e firmes para com um sentimento forte do real, os simbolistas procuravam, antes, o que os iria arrastar em direcção aos abismos insondáveis da experiência de uma subjectividade pura. Voltando-se para a descoberta das profundezas do "eu", eles buscavam já, desse modo, algo disso que, mais tarde, Freud chamaria de inconsciente, aproximando a representação pictórica ou literária da esfera inconclusiva, e em grande medida incompreensível, do sonho.
Toldada de sinais de maior ou menor irracionalidade, a pintura simbolista — sobretudo a dos simbolistas franceses como Gustave Moreau, Maurice Denis ou Odilon Redon, suíços como Felix Vallotton, nórdicos como Edvard Munch, belgas como Fernand Knhopff, James Ensor ou Félicien Rops, ou portugueses como António Carneiro — foi crescentemente apontando para outros domínios da experiência estética, dissolvendo nesse movimento o paradigma realista. Mas, com ele, também alguns dos principais motivos que haviam estado presentes na eclosão, e progressiva estabilização, da Modernidade baudelaireana, e privilegiando antes o lado mais nocturno e sombrio. Aquele que, no fundo, já lá estava, na esteira aliás de Edgar Allan Poe, como sugestão de que a alma humana teria um carácter abissal de que apenas a poesia e a arte saberiam dar conta. E, como escrevera ainda Paul Vearlaine na sua Art Poétique, "que ton vers soit la chose envolée/Qu'on sent qui fuit d'une ame en allée/Vers d'autres cieux à d'autres amours."
Procurando integrar, e evidentemente continuar a explorar, pressupostos típicos da Modernidade — nomeadamente o dogma da constante inovação formal — mas, em muitos aspectos, construindo-se em oposição a ela, como negatividade, o Modernismo foi, desde cedo, mais formalista e ideológico e, como tal, esboçou a sua agenda própria, afastada de um desejo de Realismo.
E foi igualmente consequente, disso não devem restar quaisquer dúvidas, do intenso desenvolvimento da História da Arte como disciplina em progressiva autonomização desde finais do século anterior, e que no XX ganhou ainda maior dinâmica. A descoberta baudelaireana de um sentido que ligava o movimento da estética com o da história — sobre cuja unidade se fundou afinal o pathos da modernidade — daria, no Modernismo, lugar a uma verdadeira paixão pela História, ou seja, a uma deslocação progressiva da contemplação dos fenómenos estéticos para o plano de uma contemplação dos fenómenos históricos. Isto é, e dito brevemente, de uma historicização de todos os fenómenos estéticos. Esse é o paradoxo maior da auto-referencialidade que caracterizou mais que todos o próprio do Modernismo.
O primeiro sinal de haver Modernismo como corrente em si mesma, distinta, portanto, relativamente à Modernidade de que saíra, e de configuração diversificada, ocorreu, como tantas vezes antes, do lado da literatura mais do que do lado da arte. A evolução da estética simbolista, porém, foi conduzindo as artes para campos até então insuspeitados. Por um lado, para um processo crescentemente abstractivo que nasceu, em parte, de uma funda identificação com a música (la musique avant toute chose, pedira o poeta). Mas, também, da necessidade de introduzir os signos do invisível no visível, de onde a sua fortíssima inclinação pelo fantasmagórico e até pelo espectral, de que toda aquela pintura lânguida e brumosa daqueles nos dá conta.
Mas, por outro lado, conduziu-as para uma dimensão progressivamente mais expressivista — a que procurava exprimir, aproximando-os, os abismos da alma, da psique — que, inevitavelmente, a conduziria ao Expressionismo. O que, desde muito cedo, se manifestou na obra de alguns dos maiores artistas europeus modernos. Foi Carl Einstein quem porventura primeiramente se deu conta deste mergulho das forças da arte nos abismos do psiquismo. Assim, no seu clássico livro sobre a arte no século XX, escreveria: "Já descrevemos o décalage (a descontinuidade) entre o desenvolvimento psíquico e a norma racional, quer dizer, a imagem transmitida do real. Acabava assim a tendência da arte para a imitação a partir do momento em que excluia consideráveis forças psíquicas. A norma clássica e o equilíbrio pacífico entre a experiência subjective e a convenção objectiva tinham perdido a sua pertinência."
Os Fauvistas, a partir de 1905 ou, pouco depois — continuando também a via de alguns dos chamados pós-impressionistas, que admiravam e de quem se reivindicavam directos herdeiros — os Expressionistas alemães, seriam os continuadores mais directos desta linhagem. A que passara, antes, pelas obras pioneiras e longamente incompreendidas de Van Gogh ou de Gauguin e, mais tarde, pelas de Odilon Redon ou de Gustave Moreau, antes de ser abraçado por Munch ou António Carneiro, Schiele ou Klimt, e mesmo pelo jovem Picasso, entre 1903 e 1905, o dos circos e dos arlequins pobres figurados nos períodos ditos Azul e Rosa.
Há, pois, um duplo caudal que nasceu do Simbolismo: o abstracto e o expressivo ou, mais tarde, expressionista. Ambos estariam na génese do Modernismo, no que respeita aos termos do seu futuro desenvolvimento. Picasso passaria por uma fase 'simbolista' antes de ir ao encontro de uma matriz mais expressionista, com as suas geniais Demoiselles d'Avignon, pintadas em 1907, de que explodiria incontido, depois, o Cubismo, como forma simultaneamente abstractiva e construtiva.
Do mesmo modo que o emprego violento das cores puras, a intensificação matérica aplicada às formas vibrantes, desfiguradoras, e uma gestualidade forte, tal como praticadas pelos Fauvistas, desencadearia registos mais presos à expressão. Que, muito cedo, interessariam os jovens pintores alemães, reunidos no grupo Die Brucke (1905) e, depois, em torno da revista e movimento Der Blaue Reiter (1911), como Kandinsky, que, pela via expressionista, chegaria, antes de todos, à abstracção, logo em 1909.
Assim, se da linhagem simbolista vemos emergir uma dupla de impulsos virados para o desfazer da figuração — a via do Expressionismo, que começara com Van Gogh e Gauguin e a outra, mais construtivista, mas igualmente voltada para a desconstrução da figura, que era a do Cubismo, e que era mais directamente herdeira de Cézanne — seria apoiado sobre as duas, hesitando sempre entre ambas, que o Modernismo se iria construir como diferença, relativamente a tudo quanto o precedera. No sombrio caminho da Expressão encontraremos, além dos já citados, outros nomes de geografias várias, todos buscando o desfazer da forma. Franz Marc, Emil Nolde, Chaim Soutine, Permeke, Ensor, Kupka, Schiele, Kirchner, Rouault, o primeiro Mondrian e o primeiro Malévich, ou Amadeo, e outros que fizeram dessa linha de investigação, e para além das correntes em que se foram inscrevendo, um problema alargado no campo da arte europeia.
Em outro caminho, paralelo mas simultâneo a este, e que levaria a outras possibilidades de desconstrução das formas — mas, neste caso, decorrendo mais directamente do 'construtivismo' iniciado por Cézanne, que queria reduzir a representação a formas geométricas, e de que o Cubismo foi o continuador — os que, a partir dos Futuristas, entenderam introduzir a sugestão do movimento no coração da imagem parada da pintura e que, a partir das formas cubistas, iriam definitivamente desfigurar a forma clássica e a raiz da sua estabilidade.
As duas hipóteses, desconstrutivistas ambas, por relação com o princípio da forma, afastariam doravante a pintura da sua devoção anterior aos modelos da representação, operando em seu lugar, e através de uma sistemática desfiguração, o advento da imagem pura. Da pintura como imagem, ou da imagem da pintura, em vez das imagens capazes de figurar, como até então, os traços de uma representação, isto é, de uma relação directa com o real.
O caminho da imagem, e o da progressiva construção dos seus processos, seria, de então em diante, o novo trabalho a que se propunha a prática da pintura no seu entendimento mais vanguardista. Uma vez liberta da fidelidade para com o real — estando esta, agora, entregue aos cuidados da fotografia, que o fazia melhor, porque mais directa e simplesmente — podia reforçar-se assim, nela, a tentativa de figuração de uma dimensão interior, subjectiva, se não mesmo a busca de um fundo carácter ontológico, como tal, sempre e cada vez mais abstracto. Tal é o sentido da obra de Kandinsky.
Liberta da fidelidade ao real, a pintura estava finalmente em medida de procurar em si mesma, na sua prática mais pura, o sentido que iria ganhar pelo século adiante, e que não parou de desenvolver quer no plano conceptual quer formal. O da procura de uma visão interior que acentuaria cada vez mais a definição do artista como demiurgo, capaz de antecipar o sentido da arte, ou de tornar visível o invisível, entre outros mitos.
A conquista da abstracção postular-se-ia, assim — e estando ainda por cima apoiada sobre a conquista da bidimensionalidade, que a Modernidade lhe oferecera, pela mão de Manet, o primeiro a desfazer a unidade da arte clássica — como o caminho singular e nítido que se ofereceria ao Modernismo como a grande, se não mesmo a única direcção.
Não foi essa a consequência mais profunda da crescente tendência para a desfiguração, de que a arte fizera o programa mais ambicioso e radical? Mesmo quando procurou formas estruturadas, nomeadamente do lado da geometria, o 'programa' modernista quis, sempre, quer como processo quer como objectivo principal, desfazer a forma, e gerar, no seu lugar, o mais puro esvaziamento. Boris Groys escreveu que "[a] arte moderna e contemporânea quer tornar as coisas não melhores, mas piores, e não relativamente piores, mas radicalmente piores — fazer coisas disfuncionais a partir de coisas funcionais, trair expectativas, demonstrar a presença invisível da morte onde tendemos a ver apenas a vida."
O Modernismo quis-se, assim, desde o seu início, violento, desfigurador, destrutivo, negativo (isto é, assentando numa dialéctica do negativo) e jamais se prendeu em formas que o pudessem comprometer no abandono desse sentido de experimentação total, de que fez o seu programa constante, e cuja lógica apercebemos sobretudo no primeiro Picasso. Refiro-me, como é bom de ver, ao jovem pintor boémio das Demoiselles, a partir de 1907, mas também ao das obras imediatamente consequentes do Cubismo — essas obras mistas de pintura e de escultura, a caminho do objecto, que de facto parecem guitarras a desfazer-se — atentando contra toda a estabilidade das formas e mesmo contra a própria noção de Forma, tal como fora concebida ao longo de séculos. Algo se estava a transformar muito profundamente no campo da arte e da cultura com a eclosão do Modernismo, e mesmo se este não tinha ainda uma agenda clara. De outro modo não se poderia entender uma afirmação tão violenta como a de Malévich, no seu ensaio sobre a inutilidade dos Museus — em que se juntava aos que defendiam a sua destruição, como já o haviam feito os Futuristas e mais tarde os Dadaistas — por ser um dispositivo burguês que contribuía para atrasar o desenvolvimento das dinâmicas da Revolução (russa de 1917) afirmava, peremptório: "A vida sabe o que faz, e se está a caminhar no sentido da destruição, não devemos interferir porque, defendendo-o [ao museu] estamos a bloquear o caminho para uma nova concepção de vida que nasce dentro de nós." A este título, Manuel Villaverde Cabral lembrou também "o dito atribuído a Vladimir Tatlin, ao saudar Lenine em 1917 por ter feito em politica o que os modernistas e futuristas teriam já feito em arte!"
Como referiu Gabrielle Buffet-Picabia, "parece incompreensível, para a geração actual, que as máquinas que povoavam o mundo visual de formas desconhecidas até então, surpreendentes e espectaculares, tenham podido permanecer longamente objecto de um ostracismo feroz no mundo oficial das artes e ser consideradas omo essencialmente anti-plásticas na sua matéria e na sua função. Lembro-me de um tempo em que a sua rápida proliferação passava por uma calamidade, e em que qualquer artista devia voltar as costas à Torre Eiffel, em jeito de protesto contra a blasfémia arquitectónica que ela afirmava contra o céu. A descoberta e a reabilitação dessas estranhas personagens de ferro e de aço, eram em si mesmas um acto audacioso e revolucionário; mas que, se não tivesse ultrapassado a representação descritiva, teria permanecido ainda próximo da paisagem e da natureza morta…". Também um insuspeito historiador como Marcel Jean podia observar, já em 1959, que "o motivo mecanicista vindo do Futurismo e de Dada sofreu uma nova e curiosa transformação. O "Grande Vidro" da Mariée Mise à nu par ses célibataires, même [de Marcel Duchamp] irónico antepassado dos robôs de ficção científica, apresentava máquinas de fazer amor, e não apenas no plano físico, como o Super-Macho de Alfred Jarry: a super- fêmea de Duchamp mecaniza as emoções e o pensamento amoroso."
Tornemo-lo pois claro desde início: o motor mais profundo e profundamente activo em todo o processo do Modernismo, e depois ao longo de todo o século xx, foi aquele que conduziu a arte a procurar deslocar os motivos do Nauturalismo, outrora reinante, para a representação desse novo espaço, definitivamente mecanizado que a industrialização tinha gerado. E, consequentemente, a colocar no interior do lugar outrora ocupado pelas Formas, a energia e a desfiguração das anti-formas que, graças à sua poderosa carga destrutiva, niilista, se justificam quase absolutamente por si mesmas, e a si mesmas, como as únicas capazes de testemunhar a nova forma de vida desencadeada pela progressiva industrialização de que a Guerra foi apenas um sinal mais, num mundo em acelerada transformação, como se conduzido por uma locomotiva cega.
Mesmo se, nessa raiva de desfazer a matriz anterior, tenha conservado o Modernismo um secreto sentido humanista, ao querer ser, pelo menos em parte, catárctico — no sentido que Artaud daria ao seu Teatro da crueldade — relativamente a essa desumanização progressiva de que a mesma Guerra foi expoente maior.
É pois daí que deveremos partir.


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