O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais: problemas e possibilidades [2015]

Share Embed


Descrição do Produto

Edição Câmara Municipal de Cascais – Departamento de Inovação e Comunicação Divisão de Arquivos Municipais Divisão de Marca e Comunicação Coordenação João Miguel Henriques Maria Conceição Santos Autores Ana Cristina Brites Antunes António Cota Fevereiro António José Pereira da Costa Carlos Calado Cristina Carvalho Francisco Matta Pereira Helena Condeço de Castro Isabel Ferrão João Miguel Henriques José d’Encarnação José de Matos-Cruz Marco Oliveira Borges Maria da Conceição Santos Tiago Henriques Design gráfico Ana Rita Garcia Fotografia Jorge Martin Maria Carolina Luzia Maurício Rosiel Agradecimentos Arquivo Nacional Torre do Tombo Biblioteca Nacional de Portugal Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar Museu da Presidência da República Santa Casa da Misericórdia de Cascais Impressão Seleprinter – Sociedade Gráfica, Ld.ª Tiragem 500 exemplares Depósito Legal 401144/15 Na capa Passeio Maria Pia, em Cascais, 1890 [AHMCSC/AFTG/CAM/A/545]

§2

ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

1. A  origem do topónimo Cascais é vulgarmente atribuída ao plural de Cascal

§6

O NAVEGADOR MUÇULMANO KHASHKHASH E A POSSÍVEL LIGAÇÃO COM O TOPÓNIMO CASCAIS: PROBLEMAS E POSSIBILIDADES Marco Oliveira Borges1 e Helena Condeço de Castro2

Figura bastante controversa, o navegador/almirante muçulmano Khashkhash3 (século IX) tem sido associado ao topónimo Cascais e, consequentemente, ao porto desta vila. Todavia, nalguns casos essa associação tem pecado por ser feita sem qualquer ligação histórica ou filológica explicativa que possa elucidar os leitores. Noutros casos, a associação é feita através da proximidade fonética entre o nome do almirante – por meio da transliteração Kaxkax – e Cascais, sem o apoio nas fontes muçulmanas e sem o conhecimento das problemáticas historiográficas que giram em torno desta figura, divulgando-se dados que resultam de uma imprecisão que coloca Khashkhash fora da sua época histórica (mais de 250 anos depois), que o destaca infundadamente como corsário entre outros equívocos. Deste modo, e até mesmo no âmbito das investigações que um de nós tem desenvolvido sobre a defesa costeira no distrito (kura) de Lisboa (al-Ushbuna)

1

 entro de História da Universidade de Lisboa - UID/HIS/04311/2013 e Centro de Estudos Geográficos, IGOT, C Universidade de Lisboa. Bolseiro de Doutoramento pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Licenciada em História e Mestranda em Linguística pela Universidade de Lisboa. 3 Khashkhash, Kaxkax, Hashas, Jashjash, Chaschchasch, etc., conforme as transliterações do árabe para diferentes línguas. Adoptámos a transliteração Khashkhash ao longo do estudo, por transcrever de forma (quase) inequívoca os sons da língua árabe, exceptuando quando nos referimos ao caso dos autores que ligam o nome deste almirante a Cascais através da proximidade sonora entre as duas palavras. Para estes casos usaremos a forma literal usada pelos autores: Kaxkax. Por limitações tipográficas não temos usado letras com diacríticos. 2



ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

durante o período islâmico4, pretendemos contribuir para que esta figura seja compreendida na sua época, explorando ao mesmo tempo uma possível relação com o porto de Cascais e uma hipotética ligação com o topónimo que dá nome a esta vila. Teremos o cuidado de focar as várias dúvidas que giram em torno de Khashkhash e, do ponto de vista metodológico, acentuar da forma mais clara possível quando estamos a analisar factos históricos em concreto e, por outro lado, quando estamos a colocar hipóteses explicativas5. Entre as teorias existentes relativas à origem do topónimo Cascais, aquela que reúne maior consenso diz que o étimo virá do plural de cascal (monte de cascas ou conchas), estando relacionado com a possível abundância de moluscos marinhos aí existentes outrora6. Porém, mais recentemente, tem-se associado ao topónimo Cascais o nome do navegador/almirante muçulmano Khashkhash. Ao que tudo indica, parece ter sido A. H. de Oliveira Marques quem primeiramente estabeleceu uma possível relação entre Cascais e Khashkhash, ainda que numa simples nota de rodapé e sem aduzir qualquer tipo de explicação7. Posteriormente, outros autores viriam a debruçar-se sobre a mesma questão embora sem terem conhecimento da interrogação levantada por Oliveira Marques8. Foi o caso de Maria Teresa Bonvalot9, igualmente sem aduzir qualquer tipo de comentário explicativo, José Sarmento de Matos, José d’Encarnação, Margarida de Magalhães Ramalho e Adalberto Alves. José Sarmento de Matos, na sua obra intitulada A Invenção de Lisboa, liv. I – As Chegadas, realçou uma proximidade sonora entre o nome Kaxkax e o topónimo

4

 arco Oliveira Borges, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante o Garb al-Ândalus. I – Em torno do porto M de Colares”, História. Revista da FLUP, IV sér., vol. 2, Porto, Faculdade de Letras do Porto, 2012, pp. 109-128; idem, “Em torno da preparação do cerco de Lisboa (1147) e de uma possível estratégia marítima pensada por D. Afonso Henriques”, História. Revista da FLUP, IV sér., vol. 3, Porto, Faculdade de Letras do Porto, 2013, pp. 123-144; idem, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante a Época Islâmica. II – Em torno do porto de Cascais”, in Ana Cunha,  Olímpia Pinto e Raquel de Oliveira Martins (coord.), Paisagens e Poderes no Medievo Ibérico. Actas do I Encontro Ibérico de Jovens Investigadores em História Medieval. Arqueologia, História e Património, Braga, Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», Universidade do Minho, 2014, pp. 409-441; idem, “A defesa costeira no distrito de Lisboa durante o período islâmico. I – A área a ocidente da cidade de Lisboa”, Actas do III Colóquio Internacional Nova Lisboa Medieval: Gentes, Espaços e Poderes (no prelo); idem, “O sistema defensivo de Sintra durante o Período Islâmico”, Actas do Congresso Internacional O Mediterrâneo e o Sul Ibérico na Época Medieval. Cultura, Identidade e Património (no prelo). 5 A metodologia de trabalho que temos seguido na vertente histórica é, em grande parte, inspirada nas indicações de José Mattoso, “Introdução”, D. Afonso Henriques, Lisboa, Temas e Debates, 2007, pp. 13-23. 6 Sobre as teorias, cf. Rafael Bluteau, Suplemento ao Vocabulário Portuguez, e Latino […], pt. I, Lisboa, Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1727, p. 204; J. Leite de Vasconcellos, Opusculos, vol. III – Onomatologia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931, pp. 416-417; AHMC, AADL-CMC, “[Parecer de Affonso de Dornellas relativo ao Brasão Heráldico do concelho de Cascais]”, 14 de Abril de 1934; J. Diogo Correia, Toponímia do Concelho de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1964, pp. [9]-11; Ferreira de Andrade (dir.), Monografia de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1969, pp. 7-8; José Pedro Machado, “Cascais”, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 2.ª ed., vol. I, Lisboa, Livros Horizonte, 1993, p. 365; A. H. de Oliveira Marques, “Para a História do Concelho de Cascais na Idade Média – I”, Novos Ensaios de História Medieval Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1988, pp. 108 e 111-112; José d’Encarnação, Cascais, paisagem com pessoas dentro, Cascais, Associação Cultural de Cascais, 2011, p. 14 (n. 2). 7 “Haverá alguma relação entre Cascais e este Hashas?” (cf. A. H. de Oliveira Marques, “O «Portugal» islâmico”, in Joel Serrão e […] (dir.), Nova História de Portugal, vol. II – Portugal das Invasões Germânicas à Reconquista, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 245 (n. 6)). 8 Marco Oliveira Borges, O Porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado em História Marítima (FL/UL), 2012, pp. 32 (n. 63) e 198 (n. 744); idem, “A defesa costeira do litoral […] II”, pp. 430-431; idem, “A defesa costeira no distrito […]” (no prelo). 9 A forma usada, seguindo É. Lévi-Provençal, foi Khashk[h]ash (cf. Maria Teresa Bonvalot, Cascais, janela da Europa, Cascais, Sopa de Letras, 2002, p. 34).

3

§8

O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais

Cascais, “aliás de origem pouco esclarecida, que, sem ousar propor mais nada, não consigo deixar ao menos de acentuar essa intrigante afinidade de sons”10. Contudo, desconhecendo as fontes que revelam as suas origens e que poderão ter existido duas pessoas com o mesmo nome, o autor coloca Kaxkax fora da sua época histórica, reportando-se ao mesmo como um “almirante almorávida” que fez de “Lisboa a sua base de aventura e pirataria, do qual fala Garcia Domingues”11. Refere-o ainda como o chefe dos aventureiros mencionados por al-Idrisi12, como “o primeiro lisboeta a desbravar de peito aberto o Mar das Trevas” e, por certo, morador “no bairro muçulmano de Alfama”, mas também como possível “berbere marroquino”13. Sarmento de Matos aventa mesmo se esta figura, a quem, infundadamente, chama “corsário” (atribuindo-lhe ainda a responsabilidade “por manter a ordem em todo o vasto sector marítimo a norte de Lisboa”), teria escolhido “como poiso para a sua esquadra a última baía amena antes de entrar no Atlântico”: Cascais14. Tendo tido conhecimento da figura Kaxkax através de José D. Garcia Domingues15, Sarmento de Matos refere igualmente que o almirante comandou uma esquadra a Santiago de Compostela durante o período almorávida16, isto quando Kaxkax havia vivido no século IX, ou seja, em pleno emirato de Córdova (756-929). Daquilo que conseguimos apurar, Garcia Domingues, remetendo uma nota de rodapé para É. Lévi-Provençal e usando a transliteração Kaxkax, não alude ao mesmo como um “almirante almorávida”, mas sim como o almirante que comandou uma esquadra muçulmana que partiu de Alcácer do Sal em direcção ao Porto para apoiar al-Mansur num ataque à Galiza17. Há aqui mais uma imprecisão: é que o ataque de al-Mansur à Galiza ocorreu em 99718, sendo que, por essa altura, há muito tempo que Kaxkax estaria morto. O próprio Lévi-Provençal, seguido por Garcia Domingues, não refere que Khashkhash tenha liderado uma expedição em

10

José Sarmento de Matos, A Invenção de Lisboa, liv. I – As Chegadas, Lisboa, Temas e Debates, 2008, p. 211.

11

Idem, ibidem, pp. 193 e 207. 12 Vide infra, n. 31 e 60-61. 13 José Sarmento de Matos, op. cit., pp. 193, 207 e 211. 14 Idem, ibidem, p. 211. 15 Vide supra, n. 11. No entanto, no «Post Scriptum» do seu livro, e entre as várias obras citadas, Sarmento de Matos refere a Nova História de Portugal dirigida por Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques. Conforme tivemos oportunidade de ver, é no vol. II desta última obra que Oliveira Marques estabelece uma possível relação entre Cascais e Khashkhash (vide supra, n. 7), pelo que a mesma parece não ter sido notada por Sarmento de Matos. 16 Cf. José Sarmento de Matos, op. cit., p. 207. 17 Cf. José D. Garcia Domingues, O Garb Extremo do Andaluz e «Bortuqal» nos Historiadores e Geógrafos Árabes. Sep. do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 1960, p. 348. Alessia Amato, anteriormente a Sarmento de Matos e embora sem qualquer ligação estabelecida com Cascais, também caiu na mesma imprecisão de Garcia Domingues ao colocar Kaxkax numa expedição à Galiza para apoiar al-Mansur (cf. Alessia Amato, “Navegar entre Al-Uxbuna e o Al-Garbe”, Actas do Colóquio Jornadas do Mar 2004 – O Mar: um oceano de oportunidades, Almada, Escola Naval, 2004, p. 591). 18 Cf. R. Dozy, Recherches sur L’Histoire et la Littérature de L’Espagne pendant le Moyen Age. Trois. éd., t. II, Paris, Leyde, Maisonneuve & Co., E. J. Brill, 1881, p. 399; António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, 3.ª ed. rev., Lisboa, Editorial Caminho, 2008, pp. 232-234 e 238 (n. 39); Christophe Picard, La mer et les Musulmans d’occident au Moyen Age (VIIIe - XIIIe siècle), Paris, Presses Universitaires de France, 1997, p. 28; idem, L’océan Atlantique musulman. De la conquête arabe à l’époque almohade. Navigation et mise en valeur des côtes d’al-Andalus et du Maghreb occidental (Portugal-Espagne-Maroc), Paris, Maisonneuve et Larose, 1997, pp. 80-82; idem, Le Portugal musulman (VIIIe - XIIIe siècle). L’Occident d’al-Andalus sous domination islamique, Paris, Maisonneuve et Larose, 2000, pp. 109 e 112; António Borges Coelho, História de Portugal, vol. I – Donde viemos, Alfragide, Editorial Caminho, 2010, pp. 161-162.



ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

concreto à Galiza, mas sim que, em 857 [sic], juntamente com Markashish Ibn Shakuh, liderou uma frota ao longo da costa atlântica do al-Ândalus para se opor ao regresso dos viquingues19. Para além das questões já referidas (entre outras que não houve espaço para comentar), saliente-se que a citada obra de Sarmento de Matos, embora também seja inspirada em factos históricos, consiste, como o próprio refere, numa “reflexão pessoal sobre a história de Lisboa e não qualquer espécie de trabalho de tese ou similar, nem sequer ensaio. Por isso decidi adoptar a designação de Narrativa Histórica, que me pareceu a mais conforme para este tipo de conversa alongada sobre a evolução da cidade nas suas múltiplas facetas”20. Neste sentido, o autor apresenta uma liberdade de imaginação e de criação literária mais alargada, acabando por fundir o real com a ficção, pelo que é preciso ponderar fortemente sobre a validade de fazer uso deste tipo de obras para fins historiográficos sem as devidas precauções21. Em 2010, tendo tido conhecimento da obra de Sarmento de Matos através de Margarida de Magalhães Ramalho, José d’Encarnação também se debruçou sobre o assunto em questão22. De forma breve, e desconfiando do conteúdo, José d’Encarnação lembrou que a referida obra trata da história da cidade de Lisboa numa «narrativa ficcionada». No entanto, por meio do website genealógico My Heritage, José d’Encarnação acrescentou que Kaxkax é “um sobrenome e todos de Espanha!”23. No ano seguinte foi publicado um estudo de Margarida de Magalhães Ramalho onde se retomou este assunto, no seguimento da narrativa ficcionada de Sarmento de Matos, alertando-se para a atenção que deveria ser dada à suposta ligação do “almirante almorávida” com Cascais. Foi mesmo referido que a importância deste almirante, “como responsável pelo corso almorávida, lhe dava, porventura, o direito de baptizar com o seu nome um porto, ainda obscuro, onde a sua presença deveria ser frequente”24. Em 2012, um de nós teve oportunidade de alertar que Oliveira Marques já se havia interrogado sobre uma possível ligação entre Cascais e Khashkhash25, isto 15 anos

19

 f. É. Lévi-Provençal, Histoire de l’Espagne Musulmane, t. I – La Conquête et l’emirat hispano-umaiyade (710-912), C Paris, Leiden, G.-P. Maisonneuve & Cie, E.-J. Brill, 1950, p. 354 (n. 1); idem, Histoire de l’Espagne Musulmane, t. III – Le Siècle du Califat de Cordoue, Paris, G.-P. Maisonneuve & Cie., 1953, p. 342 (n. 1); idem, “España Musulmana. Hasta la caída del Califato de Córdoba (711-1031 de J.C.). Instituciones y vida social e intelectual”, in Ramón Menéndez Pidal (dir.), Historia de España, 4.ª ed., t. V, Madrid, Espasa-Calpe, S.A, 1982, p. 208 (n. 39). Quanto ao erro na data, vide infra, n. 36. 20 Cf. José Sarmento de Matos, op. cit., p. 311. 21 Se bem que, por vezes, estas obras possam fornecer dados que o historiador pode usar como hipóteses explicativas. Contudo, é necessária a máxima cautela para não se fugir ao rigor da investigação histórica. 22 José d’Encarnação, “O topónimo Cascais”,  Jornal de Cascais,  n.º 247, 15 de Dezembro de 2010, p. 6. 23 Idem, ibidem, p. 6. 24 Margarida de Magalhães Ramalho, “A defesa de Cascais”, Monumentos. Cidades. Património. Reabilitação, n.º 31, Lisboa, Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, 2011, p. 34. 25 Vide supra, n. 7-8.

§ 10

O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais

antes do assunto ter ganho destaque perante o grande público. No ano seguinte, durante o I Encontro Ibérico de Jovens Investigadores em Estudos Medievais (Braga), houve a oportunidade de desenvolver a problemática em torno do “caso Khashkhash”, focando-se os diversos problemas que giram em torno desta figura e, ao mesmo tempo, explorando uma possível ligação histórica com Cascais26. Teve-se mesmo o cuidado de alertar para as cautelas necessárias relacionadas com essa possível ligação, tanto mais que já existiam sítios na Internet que davam como garantido que Cascais ganhou o seu nome em homenagem a Khashkhash e que este havia morrido, inclusive, naquele local em combate contra os normandos27 (viquingues). Houve igualmente oportunidade de focar levemente estas questões numa comunicação apresentada no III Colóquio Internacional, Nova Lisboa Medieval (Novembro de 2013). Por fim, ainda em 2013, Adalberto Alves, seguindo a ideia de que o topónimo Cascais poderá ter derivado do antropónimo Haxhax (“papoila branca dormideira”), interrogou-se se “o célebre almirante lisboeta” teria tido propriedades em Cascais28.

Muito

Khashkhash

embora

apareça

na

desta sua

vez

época

histórica, não deixam de ser referidas imprecisões relacionadas com a sua vida. Para além de ser apresentado erroneamente

como

um

“almirante

lisboeta”, a data da sua morte (853), que é apontada para poucos anos antes da real ocorrência29, e a interrogação levantada que o liga ao período califal, isto quando ainda se estava no emirato, são dados a corrigir. Face ao que acima foi sendo dito, quem era realmente esta figura conhecida por Khashkhash? Qual a sua origem geográfica? Em que época viveu? Qual o(s) ofício(s) que desempenhou? Qual a sua área de movimentação? Teria mesmo havido um possível contacto com o porto de Cascais? Khashkhash teria 2. A Papaver somniferum, papoila branca dormideira, tem como palavra sinónima em árabe haxhax, antropónimo do almirante muçulmano do século IX 26

Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira do litoral […] II”, pp. 430-434. Cf. http://alvorsilves.blogs.sapo.pt/58542.html; http://foro.webislam.com/archive/index.php/t-9732.html Adalberto Alves, “Cascais”, Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, p. 373. 29 Vide infra, n. 38.

27

28 

11 §

ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

tido propriedades naquela área? Teria dado o seu nome a Cascais? A leitura das fontes muçulmanas levanta diversos problemas quanto a esta figura, devendo ter existido duas pessoas com o mesmo nome, razão pela qual a discussão em torno de Khashkhash se revela bastante complexa. Todavia, de duas coisas parece não haver dúvida: as fontes nunca apresentam Khashkhash como um corsário ou pirata, e muito menos como sendo natural de Lisboa. Baseado nas fontes muçulmanas, É. Lévi-Provençal apresentou Khashkhash como sendo filho de Said Ibn Aswad de Pechina (Almeria), membro dos Banu Aswad, tendo Khashkhash, em 889-890 AD (276 AH), feito parte da delegação de marinheiros árabes de Pechina que fora enviada para dialogar pacificamente com Sawwar Ibn Hamdun (chefe da liga árabe de Elvira)30. Refere-o ainda como o Khashkhash de Córdova – embora chegue a duvidar desta origem – que terá liderado uma viagem de exploração pelo Atlântico saída de Lisboa, a qual é referida por al-Idrisi, e que não teria passado das Canárias. Na descrição de al-Idrisi (1099-1165/66) não surge o nome de nenhum marinheiro, apenas a referência a oito aventureiros da mesma família, sendo que um deles ia como líder31, mas LéviProvençal refere uma alusão de al-Bakri [sic]32 a uma viagem pelo Atlântico na qual o nome de Khashkhash é mencionado como chefe de expedição, deduzindo assim que essa seria a mesma viagem que al-Idrisi afirmava ter saído de Lisboa. Para além disso, para o arabista francês, Khashkhash teria liderado uma frota omíada juntamente com Markashish Ibn Shakuh, patrulhando toda a costa atlântica do al-Ândalus com o intuito de se opor à nova ofensiva dos piratas nórdicos33. Posteriormente, D. M. Dunlop veio a divergir do raciocínio de Lévi-Provençal em vários pontos. Para este investigador era difícil aceitar que uma só pessoa pudesse ser identificada, em simultâneo, como sendo o jovem Khashkhash de Córdova que, de acordo com al-Masudi34 (871-957 AD) – geógrafo que seria seguido posteriormente por al-Himyari35 –, empreendeu uma viagem de exploração pelo Atlântico (em data incerta) e que depois de algum tempo no mar e de ter atingido terra desconhecida36 regressou com um rico espólio, ficando famoso pela proeza; como sendo ainda o Khashkhash Ibn Aswad de Pechina que havia feito parte da 30

 e bem que É. Lévi-Provençal (La Péninsule Ibérique au Moyen-Age […], Leiden, E. J. Brill, 1938, p. 36 (n. 3)) também S refira, erroneamente, que Khashkhash fora enviado por Sawwar. Cf. Idrisi, Geografia de España, Valencia, Anubar, 1974, pp. 172-174. 32 Na verdade, é al-Himyari (vide infra, n. 35). 33 Vide supra, n. 19. 34 “Such an adventurer was a Moor of Spain, of the name of Khoshkhash. He was a young man of Cordoba: having assembled some young men they went on board a vessel which they had ready on the ocean, and nobody knew for a long time what had become of them. At length they came back loaded with rich booty. Their history is well known among the people of el-Andalos” (cf. El-Mas’údí’s, Meadows of Gold and Mines of Gems, vol. I, London, Printed for the Oriental Translation Fund of Great Britain and Ireland, 1841, p. 283). 35 “Hashas salió de al-Andalus para adentrarse en el Océano: era un hombre de Córdoba. Algunos jóvenes de esta ciudad se embarcaron bajo sus órdenes en barcos equipados para este viaje y penetraron en el Océano. Permanecieron ausentes durante cierto tiempo, después volvieron con presas abundantes y contaron detalles conocidos acerca de su escapatoria” (cf. al-Himyari, Kitab ar-Rawd al-Mi’tar, Valencia, Anubar, 1963, p. 67). 36 Alguns autores referem a América ou, relacionando esta viagem com a que é referida por al-Idrisi, as Canárias (cf. É. Lévi-Provençal, Histoire […], t. III, p. 342; idem, “España Musulmana”, p. 208; Tabish Khair et al. (ed.), Other Routs. 1500 Years of African and Asian Travel Writing, Indiana University Press, 2005, p. 12). 31

§ 12

O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais

delegação enviada ao encontro de Sawwar Ibn Hamdun – e não por este –, no intuito de pedir que o chefe árabe se retirasse sem atacar Pechina (Ibn Hayyan), bem como sendo o Khashkhash al-Bahri, referido por Ibn Hayyan (987-1076) e al-Udhri (1102-1185), que havia comandado a frota omíada contra os piratas nórdicos e ainda o líder anónimo dos aventureiros que saíram de Lisboa para uma viagem pelo Atlântico, sendo esta última a tal que é referida por al-Idrisi37. Note-se que o homem que havia comandado a frota contra os viquingues (Khashkhash al-Bahri) não podia ser o mesmo Khashkhash de Pechina (finais do século IX), porquanto o primeiro, segundo Ibn Hayyan e al-Udhri, havia morrido durante os combates travados ao largo de Cádis (858, 859, 861 ou 862)38. Porém, para Jorge Lirola Delgado isso não impede que o jovem Khashkhash (de Córdova) que fez a viagem pelo atlântico fosse Khashkhash al-Bahri ou o homem de Pechina. O investigador não descarta igualmente que possa ter sido outro indivíduo em vez de um dos dois últimos citados39, situação que levaria à existência de três pessoas distintas. Outro problema, segundo Dunlop, surge da tentativa de se tentar ligar Khashkhash com Lisboa. Dunlop argumenta que não é verosímil que uma rua de Lisboa fosse dedicada aos “aventureiros”, a menos que os mesmos fossem naturais da dita cidade. Se fosse esse o caso, prossegue Dunlop, então os “aventureiros” não teriam nada a ver com o Khashkhash alegadamente de Córdova (fig. 5) e cuja origem, na verdade, deveria ser Pechina40. Todavia, a existência de uma localidade denominada “Khaskhash” nas proximidades de Córdova, pelo menos desde 89441, poderá ter levado a que al-Masudi tenha feito uma analogia com o nome do navegador, pensado que o mesmo fosse natural daquela cidade. Por outro lado, talvez houvesse mesmo uma raiz familiar em Córdova, havendo posteriormente uma mudança para Pechina. Christophe Picard, por sua vez, diz que se Lévi-Provençal duvidou da origem cordovense de Khashkhash (o tal da viagem pelo Atlântico) foi porque existiu uma família com o mesmo nome instalada em Pechina (fig. 5) a partir de 276 AH

37

 . M. Dunlop, “The British Isles according to Medieval Arabic authors”, The Islamic Quarterly, vol. 4, London, Islamic D Cultural Centre, 1957, pp. 11-28; idem, Arab Civilization to AD 1500, London, Longman, 1971, pp. 162 e 311 (n. 83). Idem, Arab Civilization […], p. 311 (n. 83); Jorge Lirola Delgado, El poder naval de al-Andalus en la época del califato omeya (siglo IV hégira/X era cristiana). Tesis Doctoral, Estudios Arabes e Islamicos: Filologia, Literatura e Historia (FFL/UG), vol. I, 1991, pp. 124-125; Abbas Hamdani, “An Islamic Background to the Voyages of Discovery”, in Salma Khadra Jayyusi (ed.), The Legacy of Muslim Spain, 2nd ed., Leiden, Brill Academic Publishers, 1994, p. 275; Christophe Picard, La mer [...], pp. 21 e 125; idem, L’océan [...], p. 76. O emir omíada Abd al-Rahman II havia encarregado Khashkhash e outros marinheiros de organizarem o arsenal e a frota de guerra sevilhana. A frota seria construída em Sevilha, após o primeiro ataque (844), servindo contra a segunda ofensiva levada a cabo pelos homens do Norte às costas do al-Ândalus (858), acabando por capturar dois navios inimigos na costa alentejana. A frota era liderada por Khashkhash al-Bahri e Qarqasis Ibn Sakuh (ou Kasuh) (Christophe Picard, L’océan […], pp. 75, 294 e 343). Aquando do início desta investida, os piratas nórdicos encontraram os portos fechados e uma frota muçulmana devidamente armada a fazer a patrulha atlântica. Em 861, já na viagem de regresso ao Norte, a frota nórdica passaria novamente pelas costas andaluzas mas sem fazer os habituais estragos devido ao forte controlo que se exercia. Fortemente equipada, a frota muçulmana abordou os navios nórdicos ao largo de Cádis, local onde veio a morrer Khashkhash (cf. Jorge Lirola Delgado, op. cit., vol. I, pp. 123-125; Christophe Picard, La mer [...], pp. 21, 24 e 125). 39 Jorge Lirola Delgado, op. cit., vol. I, p. 290. 40 D. M. Dunlop, “The British Isles […]”, pp. 11-28. 41  Ahmed Ibn Mohammed al-Makkari, The History of the Mohammedan Dynasties in Spain […], vol. II, London, 1843, p. 454. 38

13 §

ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

(889-890 AD), parecendo lógico que esta figura fosse parente de Khashkhash Ibn Said Ibn Aswad ou de Khashkhash al-Bahri, sendo este último aquele que morreu a combater os viquingues42. De facto, este problema só faz sentido com a existência de – pelo menos – duas pessoas com o mesmo nome. Christophe Picard chega mesmo a referir que estas figuras pertenceram a um clã de marinheiros. Doravante separaremos as duas figuras. Não obstante toda a controvérsia em torno do “caso Khashkhash”, parece assente que as origens geográficas destes homens estavam na Andaluzia. Porém, conforme teremos oportunidade de desenvolver mais adiante, é possível que um deles pudesse mesmo ter estado em contacto com Cascais. A época histórica destas figuras, pelo menos de uma delas, coincide com os ataques viquingues do século IX ao al-Ândalus (844, 858-859), sendo que estes levaram as autoridades islâmicas a dar especial atenção ao sistema defensivo costeiro e a reforçar o aparelho militar ao longo do litoral atlântico e mediterrânico43. Esse reforço do sistema defensivo abarcou também o distrito (kura) de al-Ushbuna, englobando Sintra e Cascais44. Relativamente a Cascais, e ao contrário de Sintra, não existem dados concretos que comprovem que já estaria fortificada. Contudo, existem alguns elementos soltos que estão a ser explorados, nomeadamente a informação sobre uma suposta torre moura que viria a estar adossada à muralha medieval de Cascais (geralmente chamada castelo), sendo que a própria época de construção desta muralha é um problema ainda em aberto45. Seguindo as hipóteses que ligam Khashkhash a Cascais (século IX), é possível que um dos navegadores referidos tenha conhecido este local no âmbito das patrulhas de defesa costeira ou de uma outra tarefa que o tenha levado a Lisboa. Todavia, tendo havido um Banu de marinheiros ao qual os dois pertenceriam, qual deles teria estado em contacto com Cascais? O homem que liderou a frota de Sevilha ou o Khashkhash de finais do século IX? Qual o tipo de contacto que poderia ter sido estabelecido? Em que momento teria ocorrido?

42

Christophe Picard, L’océan […], p. 76. Sabe-se que o governo omíada reforçou a estrutura de defesa marítima com a formação de uma marinha de guerra ampla, bem provida de projécteis incendiários e fogo grego, com a colocação de torres de vigilância (burj) e atalaias (at-talai’a, pl. tali’a), bem como de pontos fortificados (incluindo husun e ribat/s), ordenando ainda o recrutamento de marinheiros, de outros combatentes e a edificação de estaleiros de construção naval. Esta última iniciativa teve lugar, pelo menos, em Sevilha (cf. Abenalcotía, Historia de la conquista de España de Abenalcotía el Cordobés. Seguida de fragmentos históricos de Abencotaiba, etc. Trad. de Don Julián Ribera, Madrid, Tipografía de la Revista de Archivos, 1926, p. 53; António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, p. 169; Fátima Roldán Castro, “Los Mayus. A proposito de un texto atribuido a al-Udri”, Philologia hispalensis, vol. 2, Sevilla, 1987, p. 157; Jorge Lirola Delgado, op. cit., vol. I, pp. 122-125; Christophe Picard, La mer [...], pp. 23-24, 122, 148, 156 e passim; idem, L’océan [...], pp. 72-75, 93, 461 e passim; idem, Le Portugal […], pp. 141-142). 44 No caso do distrito de al-Ushbuna, e até mesmo em torno da cidade, a conjugação dos dados históricos, arqueológicos e toponímicos disponíveis – reforçados com a exploração das condições geográficas e do pensamento geoestratégico – permite perceber que durante o período islâmico haveria um sistema de alerta e defesa costeira que incluiria, sobretudo, os seguintes locais: Sintra, Cascais e Oeiras, a Ocidente, Almada, Seixal e Palmela, a Sul, Montijo, a Oriente, Sacavém, Santa Iria de Azóia e Vila Franca de Xira, a Norte (cf. a bibliografia indicada por Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira do litoral […] II”, pp. 414-415 (n. 44); idem, “A defesa costeira no distrito […]” (no prelo)). 45 Idem, “A defesa costeira do litoral […] II”, pp. 420-424; idem, “A defesa costeira no distrito […]” (no prelo). 43

§ 14

O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais

Se explorarmos o caso Khashkhash al-Bahri, então o possível contacto com Cascais teria que ter ocorrido num espaço de tempo após os ataques de 844, altura em que houve uma preocupação de reforçar o sistema defensivo do al-Ândalus, e anteriormente a 858-862, altura em que o próprio morreu em combate contra os viquingues ao largo de Cádis (fig. 5). Sabe-se que os navios muçulmanos faziam a patrulha ao longo da costa até à Galiza46, actividade essa que também se podia conciliar com ataques às povoações costeiras cristãs, pelo que durante essas viagens poderia ter ocorrido algum tipo de contacto com o local que viria a ter o nome Cascais. Com maior probabilidade, talvez uma deslocação a Lisboa ou o destacamento para uma missão temporária nos arredores pudesse ter levado ao contacto de Khashkhash al-Bahri com Cascais47. Na verdade, o possível contacto até se podia ter tornado algo frequente caso tivesse havido um destacamento para algum tipo de função continuada em Lisboa – cidade na rota dos ataques viquingues – e arredores. O governo central islâmico – em certos postos – não costumava deixar em funções durante muito tempo o mesmo homem, havendo uma rotatividade do mesmo posto para outras realidades geográficas, pelo que é de pensar que Khashkhash pudesse ter estado ao serviço de uma frota ou armada de guerra no distrito (kura) de Lisboa, isto anteriormente à segunda vaga de ataques viquingues.

LEGENDA Topónimos Estruturas militares Portos

3. Visão parcial do sistema de defesa costeira no Baixo Vale do Tejo durante a época islâmica48 46

 mbora de 844, aquando do primeiro ataque viquingue registado a Lisboa, não haja notícias de navios muçulmanos E a retorquirem os ataques viquingues na área do actual litoral português, sabe-se que a patrulha costeira já estava activa nesta área em 859, ocorrendo de Sevilha à Galiza. No ataque deste ano, o qual foi levado a cabo por 62 navios, 2 navios viquingues que vinham carregados com ouro, prata, escravos e provisões, e que se haviam adiantado à restante frota, acabaram mesmo por ser capturados por navios muçulmanos na costa de Beja, ou seja, algures na área costeira atlântica a que o distrito presidia (António Borges Coelho, op. cit., p. 173; Hélio Pires, Incursões Nórdicas no Ocidente Ibérico (844-1147): Fontes, História e Vestígios. Tese de Doutoramento em História Medieval (FCSH/ UNL), 2012, pp. 114-115). A interpretação de Hélio Pires em relação aos ataques de 858 e 859 diverge da de outros investigadores (vide supra, n. 38). 47 Sobre a importância estratégica de Cascais para este período, isto em ligação com Lisboa, cf. Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira do litoral […] II”, pp. 424-430. 48 A presença dos topónimos a Oriente de Cascais será explicada no nosso estudo sobre “A defesa costeira no distrito de Lisboa durante o período islâmico. I – A área a Ocidente da cidade de Lisboa” (no prelo).

15 §

ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

Deste modo, um contacto algo frequente com Cascais poderia ter feito com que o porto local ganhasse o nome do almirante. Para além disso, sabe-se que no âmbito do reforço da defesa costeira após os ataques viquingues, e para além da mão-de-obra local e das forças enviadas pelo poder central, também vinham voluntários de outras partes do al-Ândalus e do seu exterior a favor da jihad49, pelo que alguns homens e clãs (Banu Danis50, por exemplo) estiveram associados à defesa de portos e de áreas estratégicas. Neste seguimento, e tendo em conta as hipóteses de José Sarmento de Matos e de Margarida de Magalhães Ramalho – embora com sérias cautelas e o necessário enquadramento histórico –, teria sido possível um contacto com Cascais, como também se poderia pensar que Khashkhash pudesse ter dado o seu nome a esse local. Por outro lado, uma eventual presença prolongada nesse porto (ou um acontecimento marcante ocorrido ali mesmo e em que o almirante tivesse estado envolvido) poderia ter levado a que a memória do seu nome tivesse sido preservada depois de ele ter partido, não tendo Khashkhash necessariamente de ter dado o seu nome àquele local. Esta é uma hipótese que, aliás, até pode ser pensada analogamente com a presença viquingue na actual costa portuguesa, sendo que alguns possíveis locais de apoio à navegação nórdica poderão mesmo ter mantido o nome que era dado a esses guerreiros depois de os mesmos terem partido51. Alguns topónimos permitem pensar nesse sentido: Lorvão52 e Lordemão53, no actual distrito de Coimbra, e Salvaterra de Magos54, no de Santarém. Quanto à presença islâmica, é hoje sobejamente conhecido o seu contributo para a constituição lexical dos romances hispânicos, tal como para a toponímia actualmente visível nesse espaço. Uns e outros – i. e., arabismos e topónimos (portugueses) – apresentam uma distribuição geográfica característica, a qual tende a concentrá-los nas áreas meridionais, afinal aquelas cujo domínio político e militar islâmico se fez

49

 ernando Branco Correia, “Fortificações de iniciativa omíada no Gharb al-Andalus nos séculos IX e X – hipóteses F em torno da chegada dos Majus (entre Tejo e Mondego)”, in Isabel Cristina F. Fernandes (coord.), Fortificações e Território na Península Ibérica e no Magreb (Séculos VI a XVI), vol. I, Lisboa, Edições Colibri, Campo Arqueológico de Mértola, 2013, p. 75. 50 Na década de 870, os berberes Banu Danis ter-se-ão fixado em dois ribat/s, um em Alcácer do Sal e outro na Arrábida, com a finalidade de impedir o acesso viquingue ao estuário do Sado (cf. Isabel Cristina Ferreira Fernandes, “A Península de Setúbal em Época Islâmica”, Arqueologia Medieval, n.º 7, 2001, p. 188). 51 Tal como Ibn Idhari refere para uma cidade mediterrânica (cf. António Borges Coelho, op. cit., p. 174). 52 A hipótese é colocada por Joseph M. Piel, por se ter “lembrado do etnónimo Lordemanos/Lordemãos, […] a forma medieval corrente que se substituiu à historicamente mais conforme de Nordemanos, literalmente “homens do Norte”, ou seja os Normandos, aliás Viquingos” (cf. Joseph M. Piel, Sobre a origem do nome do mosteiro de Lorvão. Sep. de Biblos, Coimbra, LVII, 1981, p. 169). 53 À semelhança de Lordemanos (província de Leão) e no seguimento da hipótese levantada por Joseph M. Piel (cf. Vicente Almazán, Gallaecia Scandinavica. Introducción ó estúdio das relacións galaico-escandinavas durante a Idade Media, Vigo, Galáxia, 1986, pp. 119-120; Hélio Pires, op. cit., pp. 260-261). 54 Pedro Gomes Barbosa, Reconquista Cristã. Séculos IX-XII, Lisboa, Esquilo, 2008, pp. 131-132; Fernando Branco Correia, op. cit., p. 85 (n. 50). “Paul de Magos, na região onde depois se criou a povoação de Salvaterra de Magos. Esta hipótese baseia-se no facto de os muçulmanos designarem por «maghus» aqueles que a documentação cristã chama «lordomani»” (Pedro Gomes Barbosa, op. cit., pp. 131-132).

§ 16

O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais

sentir por mais tempo55. O que não impediu a sua expansão para regiões fora desse âmbito, uma situação muito bem documentada e cuja explicação a historiografia tem-na encontrado na migração para Norte das populações moçárabes provocada pela degradação sócio-económica almorávida e almóada56, sendo de salientar a condição bilingue, embora com predomínio do árabe-andaluz, dessas mesmas populações57. Mas para além de nomes comuns, também a topo-antroponímia de origem árabe não é de todo uma raridade, estando desde há muito estabelecido o étimo de Marvão < MARWĀN58, apenas para citarmos um exemplo flagrante. Perante estes dados, derivar Cascais a partir de um nome pessoal árabe elevado a nome de local torna-se uma hipótese viável, tanto mais que o contexto toponímico envolvente parece particularmente propício a uma conclusão dessa índole ao atestarem-se numerosas localidades de etimologia arábica na área do concelho de Cascais59. Optando pelo Khashkhash de finais do século IX, o espaço diacrónico e a possível ligação com Cascais teria de ser estendida – pelo menos – até 889-890, altura em que surge a notícia de que Khashkhash fez parte do grupo de marinheiros enviado para dialogar com Sawwar Ibn Hamdun. É possível que este Khashkhash, provável parente de Khashkhash al-Bahri, também estivesse envolvido nas lides da defesa costeira, parecendo-nos mais provável que tenha sido ele próprio a liderar a viagem pelo Atlântico à qual al-Masudi faz referência, isto num momento posterior à segunda vaga de ataques viquingues e no âmbito da atenção que parece ter sido dada por Muhammad I (852-886) à navegação no Atlântico. Quanto a um possível contacto com Cascais, as hipóteses seriam similares às que foram colocadas para o primeiro caso, sendo possível inclusive que pudesse ter ocorrido num momento posterior ao encontro com Sawwar. É viável que este Khashkhash tenha vivido para lá do século IX.

55

 ão disto exemplo os trabalhos de L. F. Lindley Cintra, “Áreas lexicais no território português”, Boletim de Filologia, S t. XX, fasc. 3-4, 1962, pp. 273-307; Orlando Ribeiro, A propósito de áreas lexicais no território português: algumas reflexões acerca do seu condicionamento, Lisboa, Centro de Estudos Filológicos, 1965; Maria Luísa Marques de Azevedo, Toponímia Moçárabe em Portugal, Coimbra, [s.n.], 1994. 56 José Mattoso, “A Cristandade e o Islão”, Identificação de um País. Ensaio sobre as Origens de Portugal (1096-1325), vol. I – Oposição, 5ª ed. rev. e aum., Lisboa, Editorial Estampa, 1995, pp. 320-329. 57  Cf. Federico Corriente, “Novedades en el estudio de los arabismos en iberorromance”, Revista Española de Lingüística, n.º 26, t. 1, 1996, pp. 3-6. 58 Cf. Pedro Cunha e Serra, Contribuição topo-antroponímica para o estudo do povoamento do Noroeste penínsular, n.º 16, Lisboa, Publicações do Centro de Estudos Filológicos, 1967, pp. 51-52. Embora restrito à geografia minhota e galega, mantém toda a actualidade este estudo. 59 Algumas resultantes de estabelecimentos novos, outras do robustecimento dos antigos: Abuxarda, Adroana,  Alcabideche, Alcoitão, Alcorvim, Aljafamim, Alvide, Birre, Quenena, Zambujal, Zambujeiro, talvez Bicesse, Murches, Sassoeiros, Talaíde e Trajouce (cf. A. H. de Oliveira Marques, “Para a História […]”, p. 109). Um dos topónimos que está associado à possível fixação de um grupo humano, clã ou tribo, é Alcorvim, derivação de Alquerubim, sendo que, por vezes, também surge grafado como Alcorobim. Alquerubim pode derivar do árabe al-qarawiyin, significando “os de Qayrawan”, Cairuão, cidade situada na actual Tunísia. A sua importância religiosa assume tal importância que é vista como a “Meca do Ocidente” (cf. José Pedro Machado, Sintra muçulmana. Vista de olhos sobre a sua toponímia arábica, Lisboa, Na Imprensa Mediniana, 1940, p. 8; idem, “Alquerubim”, Dicionário Onomástico […], vol. I, p. 111; António Rei, “Ocupação humana no alfoz de Lisboa durante o período islâmico (714-1147)”, A Nova Lisboa Medieval. Actas do I Encontro, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp. 31-32 (n. 35)). Para o caso de Cascais, é na área da Malveira da Serra que se encontra o topónimo Alquerubim.

17 §

ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

Ainda associada a este segundo caso, existe a possível ligação de Khashkhash a Lisboa, isto no âmbito da hipótese proposta pelos autores que acreditam que a viagem de Khashkhash referida por al-Masudi poderá ter sido a mesma que é referida por al-Idrisi. Recorde-se que al-Idrisi (1099-1165/66) – autor posterior a al-Masudi –, embora sem fazer qualquer alusão à viagem de Khashkhash, aborda uma viagem de exploração atlântica feita a partir de Lisboa por oito aventureiros da mesma família, sendo que um deles ia como líder60. Os aventureiros terão voltado a al-Ushbuna, ficando assim famosos pela proeza. A fama dessa viagem persistiu mesmo no nome de um arruamento perto das termas de Alfama: a Rua dos Aventureiros (al-mugarrirun)61. Se, de facto, esses dois relatos dissessem respeito apenas a uma viagem, então tínhamos um elemento importante quando pensamos na possível aproximação entre Khashkhash e Cascais: Lisboa. Porém, se a viagem referida na obra de al-Masudi (terminada em 332 AH62, entre 943-944 AD) ocorreu em ano incerto, embora algures na segunda metade do século IX, provavelmente ainda no emirato de Muhammad I, a descrição da viagem feita por al-Idrisi também não é acompanhada de qualquer indicação temporal. Aliás, al-Himyari separa a viagem de Khashkhash pelo Atlântico63 daquela que foi feita pelos aventureiros, ainda que isso não seja decisivo para excluir a hipótese da conjugação das duas viagens numa só. Note-se que o geógrafo al-Idrisi é o primeiro autor a abordar a viagem dos oito aventureiros, tendo sido seguido por outros autores64, caso de al-Himyari. Contrariamente a al-Masudi, que na sua descrição da viagem pelo Atlântico refere claramente Khashkhash como líder, al-Idrisi omite o nome do líder dos aventureiros. Muito embora não se saiba qual a fonte que usou para abordar esta viagem, é possível que al-Idrisi se tenha feito valer de um testemunho oral recolhido aquando da sua passagem por Lisboa (c. 1140)65. Por sua vez, a citada obra de al-Himyari foi publicada em 1461, se bem que seja baseada num exemplar

60

 esta viagem os aventureiros terão atingido uma das ilhas da Madeira (“isla de los Carneros”), uma das ilhas do N arquipélago das Canárias e Safim. Inversamente, outros autores acreditam que os aventureiros tenham chegado aos Açores, à Irlanda ou à Inglaterra, mas, de acordo com a descrição de al-Idrisi, estas últimas hipóteses parece-nos fora de contexto (cf. Idrisi, op. cit., pp. 173-174; al-Himyari, op. cit., pp. 45-48; É. Lévi-Provençal, “España Musulmana”, p. 208; D. M. Dunlop, “The British Isles […]”, pp. 11-28; Jorge Lirola Delgado, op. cit., vol. I, pp. 292-293; A. H. de Oliveira Marques, “O «Portugal» islâmico”, p. [244]; Christophe Picard, “Récits merveilleux et réalité d’une navigation en Océan Atlantique chez les auteurs musulmans”, in Miracles, Prodiges Et Merveilles Au Moyen Age, Paris, Publications de la Sorbonne, 1995, pp. 77-79 e 85; idem, La mer [...], p. [99]; idem, L’océan [...], p. 34; Abbas Hamdani, op. cit., pp. 275-276). 61 Cf. Idrisi, op. cit., p. 173; A. H. de Oliveira Marques, op. cit., p. 245. 62 El-Mas’údí’s, op. cit., p. 3. 63 Cf. al-Himyari, op. cit., pp. 45-48 e 67. 64 A. H. de Oliveira Marques, op. cit., p. 245. 65 A data é sugerida por José Pedro Machado, “A Península Hispânica segundo um geógrafo arábico do século XII”, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, n.º 1-3, Lisboa, 1964, p. 19. Sobre o problema da passagem de al-Idrisi por Lisboa e o seu testemunho directo ou indirecto, cf. Adel Sidarus e António Rei, “Lisboa e seu termo segundo os geógrafos árabes”, Arqueologia Medieval, Porto, n.º 7, 2001, p. 50 (n. 9); António Rei, op. cit., p. 26.

§ 18

O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais

de finais do século XIII66. Neste sentido, é possível que al-Himyari, para além de se ter baseado em al-Masudi, o qual não refere a viagem dos aventureiros, tenha pensado que a viagem referida por al-Idrisi teria ocorrido num momento diferente em relação à de Khashkhash, acabando por referir duas viagens distintas. Deste modo, e apesar de ser bastante duvidoso, a dita viagem referida por al-Idrisi poderia ter sido a mesma que Khashkhash liderou.

4. Pormenor do mapa-múndi (1154) de al-Idrisi. O exemplar está orientado no sentido inverso ao utilizado actualmente, estando o Sul no topo. No lado oriental do mapa, e entre vários locais do actual território português, note-se Lisboa (ašbuna) destacada a vermelho

Depois de termos apontado os argumentos históricos e filológicos que permitem supor com alguma propriedade uma relação genética entre Khashkhash e Cascais, resta-nos analisar a questão do ponto de vista linguístico, um aspecto impossível de descurar. O trabalho crítico a desenvolver não poderia senão assentar numa 66

 urante o século XVII existiam duas versões desta obra a circular atribuídas a diferentes indivíduos, embora D presumivelmente da mesma família. Porém, só a versão mais recente chegou até aos nossos dias. A versão mais antiga, sem data, mas que provavelmente teria vindo a lume em finais do século XIII ou inícios do seguinte, a partir de diversas notícias de carácter histórico-geográfico assimiladas de outros autores árabes, já era citada em 814 AH (1411-1412 AD) por alguns autores e copistas. Por sua vez, a obra mais recente teria sido retocada e publicada em 1461 por um familiar que também tinha al-Himyari no nome, o qual viria a falecer em 900 AH (1494-1495 AD), mas que não indicou a prioridade de autoria do anterior familiar. Deste modo, ficou como único autor (cf. al-Himyari, op. cit., pp. 5-9).

19 §

ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

metodologia comparativa face a palavras de origem inegavelmente árabe, focando-se nos aspectos de adequação fonético-fonológica e semântica67. Deixaremos, contudo, o seu comentário mais alargado para outra ocasião. José Sarmento de Matos, na citada obra de 2008, é o único autor a utilizar elementos linguísticos para justificar a potencial etimologia, numa frase que poderíamos interpretar como “existe uma identidade fonética que liga Khashkhash, o antropónimo árabe, a Cascais, o topónimo português”. Adoptando a perspectiva do falante da variante-padrão do Português Europeu Contemporâneo (doravante PEC), poderíamos transcrever em notação fonética68 o nome da vila assim: [kɐʃ’kajʃ]. A nível supra-segmental, são desde logo perceptíveis as parecenças no número de sílabas (ambas as palavras são bissilábicas), na sua estrutura interna (CVC)69 e na prosódia (acentuam a última sílaba); também o nível segmental oferece exemplos de semelhanças, pois ambos os vocábulos manifestam uma vogal com o traço [+baixo]70 na posição de núcleo de sílaba e apresentam a mesma consoante fricativa [ʃ] na posição de coda. Mas porque a primeira atestação conhecida do nome Cascais data da segunda metade de Duzentos71, compete-nos mais avaliar a capacidade perceptiva dos falantes do Português Antigo (PA) do que propriamente a consciência linguística dos do PEC. No plano fonológico como no grafemático, o PA distinguia a sibilante surda ápicoalveolar /ʂ/, graficamente representada por e 72, da fricativa prepalatal surda /ʃ/, sistematicamente representada por 73. A primeira consequência desta constatação impõe que alteremos a transcrição fonética que apresentámos para Cascais, correspondendo-a agora ao PA: [kaʂ’kaeʂ]; a “intrigante afinidade sonora” de Sarmento de Matos parece agora mais aparente do que real. A actual realização de /s/ → [ʃ] quando em final de sílaba é um fenómeno bem conhecido e datável graças às descrições dos gramáticos modernos; Paul Teyssier aponta 1746 como data para o primeiro testemunho do fenómeno, no Verdadeiro Método

67 

Tal como resumido em Federico Corriente, Dictionary of Arabic and Allied Loanwords: Spanish, Portuguese, Catalan, Gallician and Kindred Dialects, Leiden, Brill, 2008, pp. XV-XVIII. Marcamos os segmentos fonéticos enquadrando-os por [ ], os fonológicos por / / e os grafemáticos por < >,  procedimentos convencionados para o trabalho em Linguística. Nas transcrições fonéticas do Português utilizamos o Alfabeto Fonético Internacional (AFI) adaptado a essa língua, cuja tabela de correspondências som-letra se pode consultar em Maria Helena Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, 5ª ed. rev. e aum., Lisboa, Editorial Caminho, 2003, p. 20. 69 Em que C está para Consoante e V para Vogal. Mas a presença da semivogal no núcleo (ramificado) da segunda sílaba no PEC é, como veremos, uma diferença fundamental. 70 Para a fonologia generativa, os segmentos sonoros produzidos em actos de fala são caracterizáveis por traços de natureza articulatória e perceptiva, existentes como propriedades abstractas na componente fonológica da gramática dos falantes. Para a classificação dos segmentos do PEC standard através do sistema de traços, cf. Maria Helena Mira Mateus, Aspectos da Fonologia Portuguesa, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1975, pp. 25-27. 71 Vide infra, n. 107. 72 Cf., por todos, os quadros comparativos do consonantismo do Português duocentista e actual em Ivo Castro,  Introdução à História do Português, 2.ª ed., Lisboa, Edições Colibri, 2008, p. 144. 73 Em absoluto rigor, o PA podia representar graficamente [ʃ] por , mas essa solução restringe-se quase  exclusivamente à documentação em escrita conservadora, sendo rara naquela em escrita inovadora. Cf. o ponto 3.4 do Quadro 2 com a p. 169 e a n. 4 em Ana Maria Martins, “O primeiro século do português escrito”, in Ana Boullón Agrelo (ed.), Na Nosa Lyngoage Galega. A Emerxencia do Galego como Lingua Escrita na Idade Media, Santiago de Compostela, Consello da Cultura Galega e Instituto da Lingua Galega, 2007, p. 68. 68

§ 20

O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais

de Estudar de Luís António Verney74. No nosso corpus75 de arabismos do Português, em 65 com ش‬na forma árabe, 50 (77%) representam esse segmento /ʃ/ por , enquanto apenas 6 (9%) utilizam ou 76. Podemos pois concluir que o português, e em especial o PA, percepcionaram ش‬/ʃ/) pelo seu correspondente fonológico (/ʃ/). Também outro ponto da adaptação do consonantismo árabe-andaluz ao português torna o caso em análise não isento de problemas. É que o segmento /kh/ foi maioritariamente transposto para /f/, se bem que a percentagem face a outras possibilidades não seja tão avassaladora quanto a de /ʃ/. Contabilizando 54 arabismos com خ‬na sua composição, 27 (50%) optaram pela solução com /f/, mas 18 (33%) apresentam , ou 77. Fazendo agora uso da nossa própria intuição linguística, reconhecemos em cascalense um adjectivo de referência a Cascais através do sufixo derivativo -ense. Semelhante constatação revela a presença de um /l/ na representação subjacente de Cascais, cujo desaparecimento na representação de superfície resulta da aplicação da regra que elimina esse segmento quando em contexto intervocálico78. Reconstituímos então a forma fonológica /kaskales/ para a forma visível [kɐʃ’kajʃ]. Dois motivos79 permitem supor a validade desta representação abstracta para um período recuado. A síncope da lateral produziu uma sequência de duas vogais acentuadas e por esse motivo pertencentes a duas sílabas distintas. A grafia Cascaaes confirma o hiato ao grafar ao invés de , o grafema mais usado para representar a semivogal [j]. Mas porque -ae- permitia a formação de ditongo decrescente e a língua eliminou sistematicamente os encontros vocálicos, entre outros meios, pela ditongação, a vogal /e/ mudou o seu traço silábico para [-silábico], semivocalizando-se e tornando a palavra de tri 74

 f. Paul Teyssier, História da Língua Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1982, pp. 54-56. Por assimilação com C o traço [± vozeado] do segmento seguinte, [ʃ] manterá essa realização fonética ou alterar-se-á para [ʒ] / [z] se seguido por consoante sonora ou vogal, respectivamente. Para uma formalização deste fenómeno no quadro teórico autossegmental, cf. Maria Helena Mateus, Ernesto d’Andrade, The Phonology of Portuguese, Oxford, Oxford University Press, 2009, p. 142. 75 Efectuámos o nosso estudo tendo por base um corpus de arabismos cuja etimologia não oferecia dúvidas, recolhidos nas listas em Federico Corriente, “Los arabismos del portugués”, Estudios de Dialectología Norteafricana y Andalusí, n.º 1, Zaragoza, Instituto de Estudios Islámicos y del Oriente Próximo, 1996, pp. 5-86; idem, “Los arabismos y otras voces medio-orientales del Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”, Filologia e Linguística Portuguesa, vol. 15, n.º especial, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2013, pp. 69-184. 76 Os nossos resultados encontram-se na mesma linha dos de Reinhard Kisler, Por uma fonética arábigo-portuguesa, [s.l.], [s.n.], 1992, pp. 29-30. A reavaliação da documentação medieval e moderna poderia mostrar variações gráficas que esclarecessem ou alterassem as nossas conclusões, mas esse muito necessário trabalho não caberia no âmbito deste artigo. 77 Novamente apresentando resultados semelhantes, Reinhard Kiesler, op. cit., pp. 30-31. 78 Esta é uma justificação devedora à fonologia generativa standard, cujas regras de derivação linear aqui utilizamos por se adequarem a uma explicação histórica (cf. Maria Helena Mira Mateus, op. cit., pp. 39-41). Contudo, para uma perspectiva sincrónica, a fonologia autossegmental propõe outra justificação, na qual a lateral é movida da posição de coda para a de núcleo quando o morfema de plural é adicionado, aí se semivocalizando (cf. Maria Helena Mateus e Ernesto d’Andrade, op. cit., pp. 71-72). 79 Mas não a razão apontada por Oliveira Marques (“Para a História […]”, p. 111) de que um sinal geral de abreviação estaria colocado sobre a palavra, abreviando assim o -l- (ou o -n-). Esse traço, mais ou menos horizontal, não deve ser entendido como sinal abreviativo, mas antes como duas plicas, colocadas sobre vogal geminada e unidas num só traço. Cf. Eduardo Borges Nunes, “Introdução”, Álbum de Paleografia Portuguesa, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1969, pp. 7-8; idem, “Há ler e ler. 2. «Amtonio camelo o fez»”, Brotéria, vol. 136, n.os 5-6, Maio-Jun., Lisboa, [s.n.], 1993, pp. 502-504.

21 §

ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

a bissilábica – algo que, uma vez mais, a grafia permite confirmar através da forma Cascajs80. Também a não elevação da vogal tónica /a/ na segunda sílaba permite entrever a existência de /l/ na forma fonológica, pois, como foi notado por Ana Maria Martins, nos ditongos resultantes da síncope de -l- intervocálico o traço [+baixo] manteve-se inalterado81. Perante estes dados, parece-nos difícil derivar Cascais directamente de Khashkhash sem que houvesse a mediação de cascal. A relação entre essas duas palavras não passou despercebida a Adalberto Alves, o qual remete as entradas uma para a outra, mas o que não compreendemos totalmente foi a sua recusa em aceitar uma derivação directa cascal > cascais, independentemente de um dos vocábulos receber origem árabe. De facto, Adalberto Alves propõe étimos diferentes para cascal e Cascais: para este o antropónimo Haxhax, para aquele o comum haxhax. Além dos escolhos fonéticos que vimos, o “caso Khashkhash” encontra iguais dificuldades no campo semântico. Em árabe, khashkhash é palavra sinónima do português “papoila-dormideira”; já cascal em português designa, e apenas para nos mantermos na definição de Adalberto Alves, uma casta vinícola da região minhota. Também estes problemas no relacionamento dos dois vocábulos não escaparam à atenção de Adalberto Alves, que, não os tendo propriamente resolvido, propõe no entanto uma evolução semântica para justificar a distância no seu conteúdo interpretativo82. Chegados a este ponto, um dado interessante provém do Oriente peninsular: o catalão contém no seu léxico a palavra cascall ([kəs’kaʎ]), inegavelmente de origem árabe. A sua passagem para o romance não esteve isenta de irregularidades fonéticas, mas o que a distingue da proposta de Adalberto Alves é a manutenção da interpretação original, pois cascall significa “papoiladormideira”83. É este o facto que permite reconstruir o percurso fonético irregular: 80

 ara os séculos XIII e XIV, a cronologia das atestações é a seguinte: Cascays (1282), Cascaaes (desde 1364, é a forma P dominante no período em questão), Cascaes (1390); é nas crónicas do século XV que aparecem Cascais (1419) e Cascajs. A inusitada forma gráfica da primeira atestação merece mais alguns comentários. A sequência -ay- deixa entrever a existência de um ditongo, como foi dito. Considerar a ditongação do hiato para esta época tão recuada vai contra a opinião dominante que coloca esta solução como produtiva apenas a partir do século XV, pois até essa data as grafias tendem a manter a vogal etimológica muito regularmente. Mas Maria José Carvalho encontrou logo para os últimos anos do século XIII exemplos de ditongação. É, pois, possível que este processo resolutivo existisse já no PA mas estivesse mascarado por grafias “pouco transparentes”, tal como se documenta, embora numa cronologia um pouco mais tardia, nas Actas das Vereações de Loulé (cf. Esperança Cardeira, Entre o Português Clássico e o Português Antigo, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, pp. 224, 236, 238-239). 81 Cf. Ana Maria Martins, Elementos para um comentário linguístico do testamento de Afonso II (1214), Lisboa, [s.n.], 1985, p. 114. 82 Não deixa de ser curiosa a ausência de outros significados para cascal no Dicionário de Adalberto Alves. Compare-se com a entrada com a mesma designação no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Porto, Porto Editora, 2004, p. 296. As acepções aí assinaladas permitem rapidamente relacionar cascal com a etimologia para Cascais proposta por Bluteau e Leite de Vasconcellos (vide supra, n. 6). 83 Para além de uma outra interpretação, ligada à geomorfologia dos solos, e com a qual se designa a “terra roja mesclada amb pedra, que de dolenta que és no serveix per a certs coureus i es dedica a vinya o a olivar”, e que poderíamos traduzir para português por cascalho. Como referiremos abaixo, apesar de homófonas, as duas interpretações traduzem palavras com etimologias distintas. Cf. Antoni M.ª Alcover e Francesc de D. Moll, “Cascall”, Diccionari català-valencià-balear, tom. III – cas-cuy, Palma de Mallorca, Editorial Moll, 2005, p. 16.

§ 22

O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais

5. Mapa do al-Ândalus e parte do Norte de África c. 868 (simplificado). Principais pontos geográficos a ter em conta no presente estudo

de acordo com Corriente, a sílaba final terá sofrido um processo de reanálise e substituição pelo sufixo romance –ĀLE84. Vocábulos muito semelhantes fonética e semanticamente encontram-se apenas no aragonês (cascall e cascal) e murciano (cascal e cascales), dialectos/línguas cuja proximidade com a Catalunha (figs. 5 e 6) nos permite pensar numa situação de empréstimo a partir do Catalão – opinião partilhada por Federico Corriente85. Para além de cascall figurar no léxico do catalão, é também conhecida a existência de uma vila partilhando o mesmo nome, na Catalunha, anteriormente a 1097, a qual possuía uma rábita, conhecida na documentação cristã (se traduzirmos o latim para catalão) por “ràpita del Cascall”86. Refira-se também que, no final do século XVIII, Cascall figurava ainda na toponímia catalã. É de Félix Hernández Jiménez a autoria do estudo que localiza definitivamente a referida vila e esclarece a etimologia do nome que apresentava nas fontes muçulmanas87. 84

Federico Corriente, “Cascal/Cascall”, Dictionary of Arabic […], p. 251. Cf. idem, ibidem, p. 251. Agradecemos a André de Oliveira-Leitão por nos ter alertado para esta situação, bem como pela disponibilização de alguns estudos apenas disponíveis no estrangeiro, agradecimento esse que se estende a Inês Lourinho e a Elsa Cardoso, pela disponibilização de algumas fontes igualmente de difícil acesso, bem como a Luís Ribeiro Gonçalves, pela elaboração de dois dos mapas presentes neste estudo. 87 Na opinião de Dolors Bramon, “La Ràpita del Cascall al delta de l’Ebre”, La Rábita en el Islam. Estudios Interdisciplinares. Congressos Internacionals de Sant Carles de la Ràpita (1989, 1997), Ajuntament de Sant Carles de la Ràpita, Universitat d’Alacant, 2004, pp. 120-121. O estudo de Félix Hernández Jiménez intitula-se “El ribat de Kaskallu en la provincia de Marmaria”, Al-Andalus. Revista de las Escuelas de Estudios Árabes de Madrid y Granada, vol. IV, n.º 2, Madrid, Imprenta de Estanislao Maestre, 1939, pp. 317-332. 85

86

23 §

ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

Al-Idrisi menciona uma “rabita de Kashtali” situada a Sul de Tortosa, descrevendo-a como “formosa, forta i inexpugnable vora la mar i compta amb una guarnició (qawm) brava”88. Por sua vez, al-Zuhri (século XII) alude à existência da rábita “Kashki”89, enquanto Ali Mahalli, numa compilação elaborada na segunda metade do século XVI, também refere a existência da rábita “Kechki”90 ou “Kashki”91, situando-a entre Valência e Tortosa. Hernández Jiménez, baseado nas descrições de al-Idrisi e Ali Mahalli, aventou desde logo que ambos os nomes diziam respeito a um único local92, o mesmo ao qual a documentação cristã chamava “rabitam de Cascall”. Foi, aliás, “ràpita” que perdurou no nome do mosteiro medieval que sucedeu a estrutura com funções militares e que se mantém ainda hoje na denominação do sítio: Sant Carles de la Ràpita, situado na área costeira do delta do rio Ebro (figs. 5 e 6). Dolors Bramon segue a opinião de Félix Hernández Jiménez e coloca o étimo deste Cascall não no árabe khashkhash, mas sim no reconstituído latim quassicare, o mesmo que origina palavras portuguesas como “cascar” e, por derivação regressiva, “casca”93. Esta hipótese faz particular sentido se atendermos a uma variante que faz a sua aparição numa bula de 1119 e numa doação de 1260: “ripa de Cascayo” e “rápita de Cascallo”, respectivamente94. A dificuldade sentida pelos investigadores em localizar o sítio a que al-Idrisi fazia menção justifica-se agora, e segundo esta perspectiva, precisamente pelas alterações que o árabe teria feito ao vocábulo original em romance, tornando-o irreconhecível. Justificando a estranheza da forma “Kashtali” (em al-Idrisi), Hernández Jiménez inferiu a partir de “Kashki” (em Ali Mahalli) que poderia ter havido um erro na cópia da obra de al-Idrisi, motivado pela proximidade gráfica entre e 95, podendo assim ligar as duas tradições documentais (muçulmana e cristã) que faziam referência à “ràpita de Cascall”. Não obstante a diferente etimologia proposta, este caso permite estabelecer importantes analogias com Cascais. Assim, para além da aproximação a nível toponímico (Cascall), é de acentuar o facto de que a vila catalã estava situada numa área litoral, acrescendo que a mesma estava dotada de uma estrutura militar envolvida nas lides da defesa costeira do al-Ândalus, tendo já sido apontada

88

Apud Dolors Bramon, op. cit., p. 120. Cf. Dolors Bramon, El Mundo en el Siglo XII. Estudio de la versión castellana y del “Original” Árabe de una geografía universal: “El tratado de al-Zuhri”, Barcelona, Editorial Ausa, [s.d.], p. 158 (n. 780). 90 E. Fagnan, Extraits inédits relatifs au Maghreb (Geographie et Histoire), Alger, 1924, pp. 146-147. 91 Félix Hernández Jiménez, op. cit., pp. 327-328. 92 Idem, ibidem, pp. 327-328. 93 Cf. “Cascar” e “Casca”, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, pp. 296-297. A opinião de Hernández Jiménez acerca da etimologia deste topónimo, não sendo tão clara quanto a de Dolors Bramon, é subentendida particularmente quando se refere à origem peninsular e pré-islâmica do nome. Para defesa desta hipótese acrescenta a menção a um outro local, nas proximidades de Saragoça, documentado numa carta de doação de 1246 e cujo nome era “Cascallo” (vide infra, n. 108). 94 Félix Hernández Jiménez, op. cit., pp. 323 e 325. 95 Nas suas palavras, “dada la facilidad con que pueden confundirse el k y el th, Kashki nos sirve para corrigir Kashtali en Kashkali, forma donde basta sustituir el ya’ final por un wāw (error igualmente explicable), y poner un tashtid sobre el lam, para obtener Kashkallu, que es la forma atestiguada por los documentos cristianos” (cf. idem, ibidem, p. 328). 89

§ 24

O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais

6. Litoral catalão com destaque para a rábita Cascall96

também a importância estratégica de Cascais no que respeita ao sistema defensivo da kura de Lisboa e à muito provável existência de uma estrutura fortificada com função de ribat97 e defesa daquela área portuária98. Possivelmente existiria um ribat99 (normalmente designado por convento fortificado ou mosteiro-fortaleza), um pouco à semelhança do que aconteceu no Alto da Vigia (Sintra)100, ou até mesmo uma fortificação de maior envergadura e que poderá ter ganho forma a partir de uma estrutura mais pequena101.

96

Adaptado de Dolors Bramon, Reivindicació catalana del geògraf al-Idrisi, Barcelona, Institut d’Estudis Catalans, 2012, p. 35.  ste termo, para além de arquitectonicamente designar uma estrutura fortificada, designava igualmente o exercer da E espiritualidade associada à guerra religiosa (cf. Míkel de Epalza, “La Ràpita Islámica: Historia Institucional”, La Rábita en el Islam […], pp. 6-7). 98 Cf. Marco Oliveira Borges, O Porto de Cascais […], pp. 174-184; idem, “A defesa costeira do litoral […] II”, pp. 423-424. 99 Cf. idem, O Porto de Cascais […], p. 184; idem, “A defesa costeira do litoral […] II”, p. 424. 100 Quanto ao sistema defensivo de Sintra, refira-se que será publicado um estudo mais desenvolvido sobre este assunto (vide supra, n. 4). 101 Hipótese relacionada com a suposta existência de uma torre “moura” e com a muralha medieval de Cascais (cf. Margarida de Magalhães Ramalho, “A defesa de Cascais”, pp. 34-36; Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira do litoral […] II”, pp. 423-424). 97

25 §

ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

Quanto à época de construção da rábita do litoral catalão, também referida por alguns autores como ribat102, foram apontadas diferentes hipóteses: nos inícios de 800, na segunda metade do século IX, algures no século X, talvez na segunda metade, ou já no século XI103. Provavelmente, a hipótese relacionada com a segunda metade do século IX será mais credível, altura em que, de acordo com Ibn Hayyan, já existiam murabitun na costa de Tortosa104. A presença destes guerreiros também estava associada à defesa costeira e à existência de estruturas com função de ribat, podendo já estar relacionada com o reforço do sistema defensivo que se seguiu aos ataques viquingues do século IX ao al-Ândalus e que também alcançaram a costa de Barcelona (245 AH). Neste sentido, esta estrutura defensiva do litoral catalão poderá ser coeva da época em que viveu o almirante Khashkhash, sendo esta a época em que se desenvolveu a problemática central deste estudo. Quando pensados em analogia com Cascais, os dados que atrás fomos enunciando relativos ao litoral catalão levam-nos a pensar que, pelos vários argumentos e hipóteses explicativas que fomos invocando sobre o “caso Khashkhash”, a origem deste topónimo poderá mesmo estar associada ao contexto de defesa costeira do al-Ândalus e à deslocação (voluntária ou em serviço do poder central) de forças militares para a kura de Lisboa (fig. 3). Neste sentido, tendo em conta a possibilidade atrás referida de Cascais poder ser um topónimo de origem árabe, abre-se aqui uma nova possibilidade, distinta daquela que foi referida para o caso do almirante muçulmano, mas com proveniência do cascall catalão. Isso poderia ter ocorrido por influência de possíveis combatentes vindos do litoral da Catalunha, acabando, de alguma forma, aquele porto por ganhar um nome que já existia do lado oriental do al-Ândalus. Esta é uma hipótese que deve ser vista em paralelo com outras localidades cujo nome está associado à vinda de grupos humanos de outras áreas do mundo muçulmano e que tivemos oportunidade de referir mais atrás. Na documentação catalã, associada às formas Kashtali, Kashki, Kashkallu, Kashkali (árabes)105 e Cascall (cristã), existem as variantes toponímicas

102

 ão é consensual a discussão em torno das funções dos ribat/s e das rábitas, havendo investigadores que diminuem N a importância militar e defensiva que lhes costuma ser atribuída, favorecendo mais os aspectos religiosos, estando os ocupantes destas estruturas mais ligados a práticas ascéticas embora não descurando as tarefas de vigilância e de sinalização do perigo inimigo. Embora não concordando com o retiro significativo da importância militar e defensiva, sobretudo no caso das estruturas que se encontram edificadas em áreas costeiras bastante expostas ao perigo e sujeitas a um contacto directo com o inimigo, caso de alguns ribat/s, deixaremos um comentário sobre este assunto para outra altura (vide supra, n. 100). 103 Sobre as diferentes cronologias e razões propostas para a construção da fortificação naquela área, cf. D. Daniel Fernandez y Domingo, Anales o Historia de Tortosa […], Barcelona, Establecimiento Tipográfico de Jaime Jepús, 1867, pp. 72-73; Félix Hernández Jiménez, op. cit., p. 331; Míkel de Epalza, op. cit., pp. 15-16; Francisco Franco Sánchez, “Rábitas y Al-Monastir(es) en el norte y levante de la península de Al-Andalus”, La Rábita en el Islam […], p. 106; Dolors Bramon, op. cit., pp. 118-120; Josep F. Pitarch López, “Alguns aspectes sobre el territori de la ràpita del Cascall al voltant de l’any mil”, La Rábita en el Islam […], p. 126; Paco Carles i Guàrdia, “La toponímia i els espais d’època àrab a l’àmbit territorial de la Ràpita del delta de l’Ebre en el segle XI”, La Rábita en el Islam […], p. 137. 104  Dolors Bramon, op. cit., pp. 118-120; Josep F. Pitarch López, op. cit., p. 126. Mais tarde, em 945, foi construído um estaleiro naval em Tortosa (cf. É. Lévi-Provençal, Histoire […], t. III, p. 110). 105  Dolors Bramon, El Mundo […], p. 158 (n. 780).

§ 26

O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais

Cascal, Cascallo, Cascayo, Caschais, Cascai, Cascait e Cascayll106. Parece-nos demasiado evidente que o topónimo Cascais, na sua forma primitiva e podendo derivar do contexto árabe catalão descrito (ainda que a raiz daquela vila catalã e topónimo pudessem ser anteriores à ocupação muçulmana do local), tivesse, posteriormente, seguido semelhantes formas das que surgem atestadas na documentação cristã catalã até chegar à actual. Assim, importa frisar que tanto a primeira forma conhecida do topónimo (Cascays, 1282107) – pelo menos até ao momento –, bem como a forma actual (Cascais), seguem sem qualquer dúvida a orientação das variantes catalãs. Todavia, nada impede que analisemos estes últimos dados sob ainda outra perspectiva, na qual Cascall, como Cascais, seriam locais de fundação pré-islâmica per se, e cuja homofonia toponímica que sem dúvida apresentam é consequência da raiz românica das línguas faladas pelos seus fundadores. Um ponto a favor desta hipótese pode ser encontrado numa doação de uma vinha em 1246, por parte de Jaime I, situada no local de Cascallo, nas proximidades de Saragoça108. É notório como aspectos referentes ao território na sua materialidade serviram de base à imaginação toponímica, admitindo que Cascall/Cascallo/Cascais digam respeito a um só conceito109.

CONCLUSÃO

Complexo, controverso e confuso, o “caso Khashkhash” revela-se um autêntico quebra-cabeças. Feita uma sistematização de dados e a consequente desmistificação de alguns aspectos da vida desta(s) figura(s), falta ainda o acesso a outras fontes muçulmanas que poderão ajudar a clarificar outros dados e a ir mais além no campo das interpretações. Todavia, conforme foi problematizado, e ainda que as suas origens estivessem na Andaluzia, seria possível que um dos Khashkhash tivesse tido contacto com Cascais. A ter acontecido tal situação, teria sido muito provavelmente no âmbito da defesa costeira do al-Ândalus, sendo que o próprio Khashkhash até poderia ter estado destacado na defesa da kura de Lisboa, situação que poderia ter levado a um contacto prolongado com Cascais.

106

 . Hernández Jiménez, op. cit., pp. 320-328; Dolors Bramon, “La Ràpita del Cascall […]”, p. 120; Paco Carles i Guàrdia, F op. cit., p. 135; Dolors Bramon, El Mundo […], p. 158 (n. 780). ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fls. 46v-47. 108 Cf. Joaquím Miret i Sans, Itinerari de Jaume I el Conqueridor (edició facsímil), Barcelona, Institut d’Estudis Catalans, 2007, p. 185; Félix Hernández Jiménez, op. cit., p. 328. 109 Analogamente, pensamos também no caso português de “Seixal”. 107

27 §

ARQUIVO DE CASCAIS HISTÓRIA | MEMÓRIA | PATRIMÓNIO

7. Cascais de meados do século XV numa gravura de inícios do século XVIII [AHMCSC/AESP/CALM/F/047]

Se há quem acredite que Khashkhash poderia ter dado o seu nome àquele local, o possível contacto estabelecido e posterior partida, ou até mesmo um acontecimento marcante nas águas de Cascais em que tivesse estado envolvido, também seriam possibilidades para que aquele porto ganhasse o seu nome. Porém, convém reforçar que estamos apenas no campo das hipóteses. Por outro lado, os dados linguísticos mostram dificuldades na derivação de Khashkhash a Cascais, de modo que dificilmente poderemos considerá-la uma solução regular. As passagens de ش‬e خ‬para /s/ (ou /ʂ/) e /k/, se bem que documentadas, não deixam de ser incomuns para o português. Ainda mais problemática é a justificação da semivogal [j] se não tomarmos Cascais como o plural de cascal, cuja queda do -l- intervocálico não é mais que uma das principais características individualizantes do português (e do galego) em relação às demais línguas romances. Se o exemplo catalão permite manter em aberto a possibilidade de uma origem árabe para cascal, a falta de correspondência semântica mantémse como escolho, pois não encontramos explicação aparente para a mudança de interpretação proposta por Adalberto Alves. A segunda hipótese relacionada

§ 28

O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais

com a possível origem do topónimo Cascais, surgida já com o decorrer das investigações respeitantes a este estudo, também está associada ao contexto muçulmano de defesa costeira, baseando-se na possível vinda de combatentes do litoral da Catalunha, acabando, de alguma forma, aquele porto por poder ter ganho o nome de uma vila e estrutura defensiva já existentes do lado oriental do al-Ândalus. Por fim, a terceira hipótese que enunciámos, ainda que sucintamente, considera que Cascais e Cascall partilham efectivamente algo, o conceito que origina o topónimo, ainda que esta semelhança não seja devida a qualquer contacto populacional, mas uma consequência cultural. Sistematizando, neste estudo apresentámos três hipóteses alternativas à teoria “oficial” para a origem do topónimo Cascais: uma primeira árabe, uma segunda catalã-árabe, e ainda a hipótese local mas pré-islâmica, ainda por explorar. Na verdade, as hipóteses em discussão abalroam a perspectiva “oficial”, mas sobretudo a de A. H. Oliveira Marques, fundamentada no quadro teórico do aparecimento das póvoas marítimas, que via em Cascais a simplificação de uma hipotética “aldeia dos cascais” de origem portuguesa110. Os dados por nós aduzidos mostram que a origem do topónimo será muito anterior a esse momento e que poderá derivar de um contexto diferente. Num futuro próximo aprofundaremos melhor estas teorias, explicando ao mesmo tempo de forma mais aturada os pontos de vista das teorias antigas e que não houve espaço para desenvolver.

110

“A tese mais verosímil aponta para a provável palavra portuguesa cascal – à semelhança de areal, faial, funchal – identificadora de um terreno ou uma praia coberta de cascas ou conchas de mariscos. Haveria nesta zona alguns cascais e o topónimo primitivo seria porventura a aldeia dos cascais ou a dos cascais, de onde derivou, por simplificação, Cascais. Seria assim? Só a documentação nos poderá um dia responder” (cf. A. H. de Oliveira Marques, “Para a História […]”, pp. 111-112).

29 §

§ 250

Edição Especial Comemorações do 650.o Aniversário da Vila de Cascais

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.