O Negro Irlandês: A construção do estereótipo do imigrante irlandês nos jornais americanos nos Séculos XIX e XX1 Maria Clara de Lima MENDES2 Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, SP Associação Brasileira de Estudos Irlandeses RESUMO Cartuns são um forte elemento da comunicação, capaz de atingir um leque abrangente de pessoas por seu caráter lúdico e crítico, e de alto impacto. Aliados à política e à comunicação em massa, os cartuns são uma ferramenta expressiva na disseminação de ideias e ideais, e usados largamente na imprensa mundial. Durante a imigração em massa de irlandeses para os Estados Unidos, jornais americanos iniciaram uma forte campanha de depreciação desses imigrantes. Uma das ferramentas usadas pelos periódicos para essa campanha de xenofobia foi o cartum, criando e rechaçando um estereótipo pejorativo que perdura até os dias de hoje, cerca de 150 anos após o início da diáspora da Irlanda para os Estados Unidos. Um exemplo disso é o cartum The Yellow Kid, criado por Richard F. Outcault em 1895, e publicado no jornal New York World. O personagem é desordeiro e mal educado, e ressalta características físicas e sociais do que seria um típico garoto da Irlanda. Esse estereótipo criou um estigma social, que reforçou o preconceito contra essa população. Este trabalho pretende identificar e listar os elementos xenófobos desses cartuns, utilizando os conceitos de A. J. Greimas e C. S. Peirce como instrumento de análise, e sua possível contribuição para a disseminação do estereótipo irlandês no mundo. PALAVRASCHAVE: imigração; cartuns; estereótipos, semiótica, comunicação.
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Trabalho apresentado no Iº Simpósio Internacional sobre Religião e Migração mobilidade humana e identidades religiosas realizado pelo Programa de Estudos Pósgraduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Scalabrini International Migration, InstitutePontifícia Universidade Urbaniana de Roma e Centro de Estudos Migratórios.
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Graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), e em Letras Língua Inglesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), pósgraduanda em Política e Relações Internacionais Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), membro da Associação Brasileira de Estudos Irlandeses e do Núcleo de Estudos Multidisciplinar de Relações Internacionais. Email:
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1. INTRODUÇÃO Sure, I've heard that in America it always is the plan That an Irishman is just as good as any other man; A home and hospitality they never will deny The stranger here, or ever say: No Irish need apply. But some black sheep are in the flock: a dirty lot, say I; A dacint man will never write: No Irish need apply! (POOLE, 1862)3
O trecho da música “No Irish Need Apply”, escrita por John F. Poole em 1862, expõe o ponto de vista de um imigrante irlandês nos Estados Unidos nas décadas finais do século XIX e início do Século XX, quando houve uma emigração em massa da população da Irlanda para a América. Conhecida como “terra das oportunidades”, os Estados Unidos receberam os imigrantes irlandeses com bastante receio, sendo o palco para uma reação pouco esperada por parte dos novos moradores. Lá, foi observada uma campanha maciça de degradação da imagem do irlandês e xenófoba por parte da população americana, que viam nesse imigrante uma ameaça ao estilo de vida daquele país. A letra da música descreve uma situação acreditada como comum na época, na qual os imigrantes se deparavam com placas que proibiam a contratação dos trabalhadores irlandeses. Apesar de alguns acadêmicos chamarem essa situação de vitimização4 , alegando que a perseguição contra o irlandês era quase inexistente, classificados de jornais da época, placas e cartuns em jornais resgatam a história de discriminação parte da população americana em relação aos imigrantes vindos da Irlanda. A música de John F. Poole de grande sucesso na época é apenas mais uma evidência disso tudo.
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Claro, eu ouvi que na América sempre é o plano Que um irlandês é tão bom quanto qualquer outro ser humano; Um lar e hospitalidade eles nunca vão negar O mais estranho aqui, ou sempre dizem:: Nenhum irlandês para trabalhar. Mas algumas ovelhas negras estão no rebanho: um muito sujo, quero falar; Um homem decente nunca escreverá: Nenhum irlandês para trabalhar.
Richard Jensen, professor da Universidade de Illionois, em Chicago, escreveu um artigo intitulado "No Irish Need Apply": A Myth of Victimization. Nesse estudo, ele discorre sobre a discriminação dos irlandeses nos Estados Unidos e o mito criado em torno do “No Irish Need Apply”. Para ele, não houve um preconceito generalizado contra essa população.
Fig. 1 A imagem representa sentimento antiirlandês nos Estados Unidos.
A ideia por trás desses avisos de “No Irish Need Apply” era de que o imigrante irlandês era preguiçoso, desordeiro, gostava de brigas e bebidas, tinha costumes e religião diferentes dos americanos, constituindo um estereótipo pouco atrativo para os ideais dos empresários dos Estados Unidos. Um instrumento importante na pulverização desse estereótipo foram os periódicos da época, que circulavam com mensagens desfavoráveis aos imigrantes irlandeses, reforçando a ideia de que essa população não se adequava àquele país. Dentre os elementos de persuasão usado pela mídia americana estavam os cartuns, servindo como um dos principais instrumentos para a construção de uma imagem desfavorável dos irlandeses na América. Ou seja, esses desenhos representavam um discurso político e social carregado de preconceito. Esse presente trabalho tem como objetivo catalogar uma série de cartuns chamada The Yellow Kid, publicada no jornal New York World dos Estados Unidos no período da grande Diáspora Irlandesa, assim como analisar as imagens de acordo com a Semiótica Discursiva de Greimas. Dessa forma, pretendese traçar quais são os símbolos presentes nessas representações que ajudaram a construir os estereótipos do imigrante irlandês nos Estados Unidos, e por consequência, para o mundo.
O artigo está dividido em quatro partes: um breve referencial histórico sobre a Diáspora Irlandesa, a segunda parte discorre sobre o papel social das charges e dos cartuns e o uso da semiótica discursiva para análise iconográfica e na terceira parte, será realizada a análise da presença dos elementos xenófobos nesse cartum, concluindo, é feita uma reflexão a respeito desses desenhos contribuírem ou não para a construção o fortalecimento do estereótipo racista desses imigrantes.
2. CONTEXTO HISTÓRICO A situação social e política da Irlanda no século XIX era complexa devido a sua relação com a Coroa Britânica. Os irlandeses eram subjugados aos ingleses e impedidos de expressar sua cultura e religião. Além disso, a Ilha, que fazia parte do Reino Unido, servia como uma grande plantation nos moldes expansionistas desde o final século XVI. Foi nessa época que a plantação de batatas foi introduzida na Irlanda, tornadose o principal produto agrícola da Ilha. Os pequenos agricultores dependiam tanto da plantação quando o Governo. Era da batata que saia o sustento das famílias irlandesas, assim como o dinheiro para o pagamento de impostos e de suas moradias. Em 18455, a população irlandesa foi severamente afetada por uma praga na plantação de batata, deixando o país devastado. Os trabalhadores perderam seu sustento e sua renda, e por causa da crise, muitos perderam suas casas. A fome de 184549 não foi a primeira na Irlanda, mas foi de longe a mais severa, persistente e generalizada. Condições econômicas de milhares de pequenos agricultores e suas famílias se tornaram precárias por muitos anos. Olhando para trás, era fácil prever que esse era um desastre esperando para acontecer. (ANNAIDH, 2007, tradução nossa)
Diante da crise, o governo britânico montou um plano de ajuda humanitária, o que, segundo os registros históricos, consistia em trocar ajuda na alimentação dos irlandeses (católicos) pela conversão ao protestantismo, entre outras práticas subjugantes. Além disso, o alimento produzido pela Ilha era exportado e administrado pela Coroa para obter renda fundiária, ao invés de ser distribuído entre a população da Ilha. Nessa época, o número de pessoas que moravam na Irlanda chegou a 9 milhões. Durante a Grande Fome6 , mais de 1 milhão de irlandeses morreram, e milhões emigraram para outros países e continentes, fazendo com que a população caísse em torno de 25%7 . 5
De acordo com a cronologia levantada por pesquisadores da Quinnipiac University, em Connecticut, nos Estados Unidos. . Registros históricos mostram que a crise na plantação de batata data do final do século XVIII, se acirrando na década de 1840 na Irlanda até o final do século XIX, sendo esse período conhecido como A Grande Fome (An Gorta Mór, em gaélico irlandês). 6 Como ficou conhecido o período de fome generalizada na Irlanda. Tradução livre para Great Famine. 7 Kinealy 1994, p. 357
Fig. 2 Senhora Kennedy entrega roupas para as vítimas da Grande Fome, em Kilrush, Irlanda, 18498.
A imigração irlandesa massiva durou da década de 1850 até a primeira década do século XX. A Diáspora Irlandesa enviou imigrantes para países como Argentina, México, Canadá e Estados Unidos. Neste último país, ocupando essencialmente os estados de Nova York, Massachussets, Pennsylvania e Maryland. No livro Irish History, Séamas Mac Annaidh descreve a jornada dos imigrantes como uma situação desesperadora. Segundo o autor, essas pessoas eram tratadas como carga e jogadas em porões de navios conhecidos como “navioscaixões”, por causa das inúmeras mortes causadas pela travessia do Oceano Atlântico. Esses navios eram carregados de pessoas doentes, famintas e sujas. “Aqueles que cruzavam o Atlântico, chegavam com passageiros mais mortos do que vivos”. (ANNAIDH, 2007). Esses navios foram comparados aos navios negreiros por causa das pobres condições de viagem. Essa comparação
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A imagem foi publicada no períodico Ilustrated London News em 15 de dezembro de 1849 Biblioteca do Condado de Claire, na Irlanda. Disponível em em 30 de junho de 2015.
é considerada como um precedente ao crescente preconceito em relação ao irlandês. 2.1 O NEGRO IRLANDÊS
Fig. 3 O irlandês é comparado ao negroamericano pelo jornal americano Harper’s Weekly.
O termo “Negro Irlandês” tem sido usado de maneira distinta ao longo dos séculos. Há ao menos três versões diferentes para o uso dessa expressão, e nenhum consenso diante de sua origem. Historicamente, não há nenhum registro sobre quando o termo começou a ser usado, apenas que se tornou popular a partir do século XVI. Foi nessa época, que o contato com irlandeses morenos (cabelos e olhos negros) começou a chamar a atenção dos angloeuropeus. Essa população era percebida como “diferente”, e em muitas ocasiões, como “inferior”. Até hoje, não há uma explicação científica para o surgimento dessa característica no povo irlandês, mas a história mais conhecida (e considerada um mito entre os acadêmicos) é de que os irlandeses morenos são descendentes de marinheiros espanhóis que chegaram à Ilha com a Armada Espanhola para lutar contra a Inglaterra. Apesar de não ter comprovações de o fenótipo surgiu dessa mistura com os latinos, o estigma social que esses irlandeses carregavam não diminuiu com o tempo. Ao se tornar parte do Reino Unido, a
Irlanda servia como uma colônia britânica, e seus habitantes era constantemente subjugados à população dominante. No livro “How The Irish Became White”, Noel Ignatiev usa o termo “negros brancos” para descrever a percepção dos britânicos em relação aos irlandeses, reforçando a noção de opressão racial. Outro uso para o termo, apesar de incomum, pode ser encontrado nos registros dos irlandeses católicos ao descrever os irlandeses protestantes que apoiavam a permanência do vínculo entre a Irlanda e a Coroa Britânica. Nesse sentido, a palavra “negro” se referia a obscuridade da ação. A terceira versão para o uso do termo “Negro Irlandês” é a que interessa para esse estudo, levando em consideração que ela foi construída e solidificada durante a imigração dos irlandeses para os Estados Unidos. Durante a Grande Fome, a população irlandesa que fugiu para os Estados Unidos era vista por muitos como pessoas de baixa classe, sujas e iletradas, com doenças e em situação degradante. Esses imigrantes chegavam à costa americana em embarcações comparadas aos navios negreiros, tornando fácil a conexão entre os imigrantes irlandeses e os escravos. Ser considerado um “negro irlandês” nos Estados Unidos, ia além da simples associação ao fenótipo “moreno”, mas a um conjunto de elementos que aproximada os irlandeses aos africanos. Novamente, o que era considerado “estrangeiro”, era visto como estranho e inoportuno. 2.1.1 ESTEREÓTIPO O povo irlandês foi o primeiro grupo étnico a imigrar em grande escala para os Estados Unidos. Eles não poderiam se misturar sem serem notados, e muito menos foi isso o que aconteceu. Devido aos adventos da chegada desse grupo, a população irlandesa foi facilmente identificada e estigmatizada sob a características de um estereótipo negativo. William H. A. Williams faz uma análise categórica sobre como esse estereótipo não foi apenas criado mas reforçado ao longo dos anos. Ao reunir elementos da cultura irlandesa, como: língua, religião, traços físicos e comportamental, os americanos criam o “típico irlandês”. Em sua obra “Twas Only an Irishman's Dream: The Image of Ireland and the Irish in American Popular Song Lyrics, 18001920”,
Williams afirma: Comportamentos estereotipados dos irlandeses eram mostrados por meio de todas as mídias populares: artigos em jornais, relatos de cortes, livros de escola, almanaques, folhetos políticos e religiosos, roteiros de viagem, novelas e contos, peças, desenhos, cartuns políticos, e, finalmente, tirinhas em quadrinho e filmes. (WILLIAMS, 1996, tradução nossa)
Dessa forma, podemos compreender o papel da comunicação em massa na disseminação de estereótipos negativos, nesse caso, o estereótipo do irlandêsamericano.
Fig. 4 Representação do cartunista Thomas Nast9 do “típico irlandês”.
Entre as características mais lembradas do estereótipo irlandêsamericano estão:
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Thomas H. Nast foi um famoso caricaturista e cartunista do século XIX, considerado um dos pais da charge política americana
● Problemas com bebida ● Temperamento explosivo ● Membro de gangues ● Baixinhos ● Pobre higiene bucal ● Pele branca ● Tem sardas ● Ruivos ● Preguiçosos ● Mal educados ● Católicos fervorosos ● Amam batatas O sociólogo Erving Goffman reforça a força do estigma social na sociedade. Para ele, as pessoas tendem a categorizar os atributos considerados comuns, e hostilizar o que é considerado incomum. A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas. As rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos permitem um relacionamento com outras pessoas... (GOFFMAN, 2008)
Para Émile Durkheim (2003), é na expressão desse conjunto de características que o indivíduo é deslocado, a fim de se adaptar, a certos grupos de pessoas. De acordo com Durkheim, são os estereótipos que ditam os espaços sociais que os indivíduos ocupam na sociedade ou são levados a ocupar. No caso dos irlandeses nos Estados Unidos, a marginalização desses imigrantes perante a sociedade estadunidense teve como um forte aliado as tirinhas em quadrinho, charges e cartuns. O personagem Mickey Dugan, figura central do cartum The Yellow Kid ("O Garoto Amarelo"), é um exemplo disso. O desenho era a representação de um garoto irlandês que vivia nas favelas de Nova Iorque. Ele aparecia sempre com um sorriso bobo e vestindo um pijama amarelo enquanto circulava
por uma vila cheia das mais estranhas criaturas. Mickey usava uma linguagem de gueto, e estava sempre metido em confusão. A tira era desenhada pelo artista Richard Felton Outcault e teve sua estreia oficial no jornal New York World em 17 de fevereiro de 1895.
3. SEMIÓTICA E SEMÂNTICA A semiótica é uma teoria que se aplica ao estudo das imagens e as mediações feitas no âmbito da interpretação dos significados. Criada por Charles Sanders Peirce, essa teoria explica como o repertório individual é aplicado na interpretação das imagens. Para isso, Peirce definiu sua teoria em três categorias, para mostrar como os fenômenos aparecem à consciência: Primeiridade a qualidade da consciência imediata, percepção espontânea. Secundidade reação, compreensão e profundidade do seu conteúdo. Terceiridade – experiência das mediações. Para efeito de análise, a imagem deve ser decodificada respeitando essas três categorias. É importante reconhecer elementos que possibilitam a interpretação de um signo, transformando em símbolos e extraindo o seu significado. Já no âmbito da Análise do Discurso Francesa, Greimas (2002) considera a imagem uma unidade discursiva, uma mensagem visual que pode ser decomposta em unidades sintáticas e semânticas menores, permitindo compreender noções de sentido e significados, possibilitando postular considerações a respeito da composição visual das imagens analisadas. Nessa análise, usaremos as duas teorias como instrumento de decodificação do cartum The Yellow Kid, e identificar símbolos e significados que representam o estigma do imigrante irlandêscatólicos nos Estados Unidos, no final do século XIX.
4. ANÁLISE SEMIÓTICA DO CARTUM THE YELLOW KID
Fig. 5
No primeiro momento, a composição impacta pela riqueza dos detalhes, pela vivacidade das cores, e pela diversidade dos personagens. A cena seria uma típica representação de algum lugar na Irlanda, tendo a predominância das cores verde, laranja, amarela e branca, usadas nos símbolos do país. É importante ressaltar que a Irlanda não era um país independente naquele momento, portanto, a tradicional bandeira laranja, verde e branco que conhecemos hoje, ainda não era símbolo oficial. No segundo momento, podemos identificar esses símbolos: a harpa, cobra, trisquel, chapéu verde comprido, a cobra, a bebida. Todos esses elementos contribuem para a construção da história. Desse modo, é possível compreender que o quadrinho mostra o que seria uma cena na Irlanda, os irlandeses e seus costumes. A ideia do caos e da desordem é proposital, tendo em vista a lista de estereótipos irlandeses construídos na época. É possível ver um grupo de gangues brigando, o que dá a ideia de que o irlandês é violento. Enquanto isso, outro grupo está dançando ao som de uma harpa, enquanto um
homem cai bêbado enrolado por uma cobra. Na Irlanda, há uma lenda famosa na qual dizem que o santo padroeiro do país São Patrício expulsou todas as cobras da ilha, e por isso, até hoje não há esse tipo de réptil por lá. Enquanto isso, o Garoto Amarelo aparece no meio de toda essa confusão, entre um porco e um cachorro. Ele se comunica com o leitor por meio do seu vestido amarelo. A mensagem confirma que aquele lugar é a Irlanda, já que ele menciona a “terra de seus pais”. Um ponto interessante de se observar nesse cartum são as duas figuras negras sentadas em um grande cartaz ao fundo da figura. Esses dois personagens representam a população negra dos Estados Unidos que ao mesmo tempo era discriminada pelos americanos, mas não se misturavam com os irlandeses, sendo os dois povos semelhantes, mas, ao mesmo tempo, bastante diferentes.
Fig. 6
Essa imagem impacta pelo sentimento de medo e surpresa. No segundo momento, é possível perceber que essa reação vem da relação entre o Garoto Amarelo e o Negro. O contexto da imagem mostra o receio do sincretismo religioso e cultural entre o negro africano e o negro irlandês. Nos dizeres da camisola do garoto, há a seguinte mensagem escrita em forma de dialeto: “Diz, esses são os truques que podemos trocar”. Essa troca entre os negros e os irlandeses era, de algum modo,
temida pela sociedade americana. O comportamento do irlandês em torno de sua religião é outro estereótipo largamente explorado até os dias de hoje.
Fig. 7 e 8
As duas figuras mostram dois momentos políticos distintos: o encontro dos partidos (fig. 7) e as eleições (fig. 8). A primeira imagem faz uma crítica às demandas vazias dos
imigrantes
durante
o processo
democrático. O dinheiro aparece como uma peça chave nesse quadrinho, significando que os imigrantes tinham esse elemento como foco. A mensagem do Garoto Amarelo é jocosa: com as mãos sujas, ele diz que é o “principal personagem da parada”. É possível também reparar na representação do negro como “cavalo” da nação. Na segunda figura, a intenção é mais dramática. O fogo, ou o incêndio, representam o sentimento de incertezas da população americana em relação a volatilidade dos imigrantes irlandeses. O Garoto Amarelo está sendo apresentado como o Imperador Nero, um louco incendiário enquanto alguns tentam apagar o
fogo. Ele se equilibra em cima de uma caixa de bebidas, reforçando o estereótipo de que o povo irlandês tem problemas com substâncias alcoólicas. Fig. 9
O primeiro impacto é mais uma vez a ideia de caos, confusão, em uma simples corrida de barcos no central parque. Analisando as representações no quadrinho, vemos uma bandeira com uma bebida, meninos pobres cantando, pessoas caindo na água, barcos improvisados. Várias pessoas carregam a placa com os dizeres “fique longe da grama”, enquanto o Garoto Amarelo aparece feliz com um cachorro amarrado a uma âncora. A cena está ligada a representação do grupo de imigrantes comemorando o 4 de julho, dia da Independência dos Estados Unidos. O discurso mais uma vez leva a acreditar que esses imigrantes desordeiros eram uma ameaça ao modo de vida americano. A placa “fique longe da grama” pode ser uma alusão ao sentimento antiirlandês e uma vontade de expulsar o povo da terra da oportunidade. Dessa maneira, a cena reforça o sentimento de receio da população americana em relação ao imigrante, que por sua vez, ameaça a estabilidade do país.
5. CONSIDERAÇÕES O objetivo maior desta pesquisa foi apresentar, por meio de uma análise semiótica, a representação de estereótipos em cartuns e a contribuição desse material para a disseminação de estigmas negativos e discriminação em relação a um grupo étnico. Com esta análise, é possível demonstrar que os cartuns são uma ferramenta para caracterizar socialmente, ideologicamente e politicamente os indivíduos. O objeto desse estudo foi analisado considerando o momento histórico no qual foi produzido, tendo em vista o sentimento antiirlandês nos Estados Unidos no início do século XIX, sendo o contexto relevante para a produção do sentido do presente discurso representado nesses desenhos. O cartum The Yellow Kid carrega um forte discurso antiirlandês. Apesar do seu caráter cômico, a tirinha serve como instrumento para reforçar o estigma social do imigrante irlandês. O personagem principal da história contempla o estereótipo negativo dos irlandeses católicos nos Estados Unidos, entre eles, o dialeto, sotaque, violência, preguiça, religiosidade e costumes fora do padrão. Esse “desajuste” perante a sociedade no final do século XIX, justificava o uso pejorativo do termo “Negro Irlandês”, disseminando o preconceito contra essa população. Apesar de ser um estudo iconográfico que olha para o passado, é ao tentar compreender o presente que ele se torna relevante. Atualmente, as charges políticas em jornal servem como ferramenta para construir discursos e disseminar ideias de interesse dos grupos atuantes. Dessa maneira, ao levantar o impacto que esses discursos podem ter em determinados grupos em uma sociedade, percebese que a leitura crítica e ética deve ser levada em consideração.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Acervo iconográfico da Trinity College Dublin, disponível em Acesso em "22/03/2015". BAEDER, Berenice Martins. Olhar semisimbólico de um desenho charge de Angeli. Estudos Semióticos, Número 3, São Paulo, 2007. Disponível em . Acesso em "14/04/2015". DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico, 1895. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 1999. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. São Paulo: Perspectiva, 1989. GREIMAS, Algirdas Julien. Da Imperfeição. São Paulo: Hacker, 2002 The Racial Slut Database, disponível em Acesso em "24/07/2015". IGNATIEV, Noel. How The Irish Became White, Londres, 1995. KINEALY, Christine. This Great Calamity, Gill & Macmillan, 1994. Letters of 1916, disponível em Acesso em "24/07/2015". POOLE. John F. Disponível em Acesso em "24/07/2015". SILVA, Priscilla Chantal Duarte. A Intencionalidade Discursiva: estratégias de humor crítico em charges
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