O Negro Irlandês: A construção do estereótipo do imigrante irlandês nos jornais americanos nos Séculos XIX e XX

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  O Negro Irlandês: A construção do estereótipo do imigrante irlandês nos jornais americanos nos  Séculos XIX e XX1     Maria Clara de Lima MENDES2   Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, SP  Associação Brasileira de Estudos Irlandeses        RESUMO    Cartuns  são  um  forte  elemento   da  comunicação,  capaz  de atingir  um leque abrangente de  pessoas  por  seu  caráter  lúdico e crítico,  e  de  alto impacto. Aliados  à política  e  à comunicação em massa,  os  cartuns  são  uma  ferramenta  expressiva  na  disseminação  de ideias  e  ideais, e usados  largamente na  imprensa  mundial.  Durante  a  imigração  em  massa  de  irlandeses  para  os  Estados  Unidos,  jornais  americanos  iniciaram uma forte  campanha de  depreciação desses imigrantes. Uma  das ferramentas  usadas  pelos  periódicos  para  essa  campanha  de  xenofobia  foi  o  cartum,  criando  e  rechaçando  um  estereótipo  pejorativo que perdura até os  dias  de hoje,  cerca  de  150 anos após  o início  da  diáspora  da Irlanda para os  Estados Unidos. Um exemplo disso é o cartum The Yellow  Kid, criado por Richard F.  Outcault  em  1895,  e  publicado  no  jornal  New  York  World.  O  personagem  é  desordeiro  e  mal  educado,  e  ressalta  características  físicas  e  sociais  do  que  seria  um  típico   garoto   da  Irlanda.  Esse  estereótipo criou um estigma social, que reforçou o preconceito contra essa população. Este trabalho  pretende  identificar  e  listar  os elementos xenófobos desses cartuns,  utilizando  os  conceitos  de A. J.  Greimas e C. S. Peirce  como instrumento  de análise, e sua possível contribuição para a disseminação   do estereótipo irlandês no mundo.     PALAVRAS­CHAVE:​ imigração; cartuns; estereótipos, semiótica, comunicação.     

 

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Trabalho apresentado no Iº Simpósio Internacional sobre Religião e Migração ­ mobilidade humana e identidades religiosas  realizado pelo Programa de Estudos Pós­graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP),  Scalabrini International Migration, Institute­Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma e Centro de Estudos Migratórios.  

 

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Graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), e em Letras ­ Língua Inglesa pela Universidade Federal  do Rio Grande do Norte (UFRN), pós­graduanda em Política e Relações Internacionais Fundação Escola de Sociologia e Política de São  Paulo (FESPSP), membro da Associação Brasileira de Estudos Irlandeses e do Núcleo de Estudos Multidisciplinar de Relações  Internacionais. Email: [email protected]  

 

 

1. INTRODUÇÃO    Sure, I've heard that in America it always is the plan  That an Irishman is just as good as any other man;  A home and hospitality they never will deny  The stranger here, or ever say: No Irish need apply.  But some black sheep are in the flock: a dirty lot, say I;  A dacint man will never write: No Irish need apply!  (POOLE, 1862)3 

    O trecho  da  música “No  Irish  Need Apply”, escrita por John F. Poole em 1862, expõe  o ponto de vista  de  um imigrante  irlandês nos Estados Unidos nas décadas finais do  século XIX e  início  do Século XX,  quando  houve  uma emigração em massa  da  população  da  Irlanda para  a América. Conhecida como  “terra  das  oportunidades”,  os  Estados  Unidos  receberam  os  imigrantes  irlandeses  com  bastante  receio,  sendo  o  palco  para  uma  reação  pouco  esperada  por  parte  dos  novos  moradores.  Lá,  foi  observada  uma  campanha  maciça  de  degradação  da  imagem  do  irlandês  e  xenófoba  por  parte  da  população americana, que viam nesse imigrante uma ameaça ao estilo de vida daquele país.    A  letra  da música  descreve uma situação acreditada como comum na época, na qual os imigrantes se  deparavam  com  placas  que  proibiam  a  contratação  dos trabalhadores irlandeses. Apesar de  alguns  acadêmicos  chamarem  essa  situação  de  vitimização4 , alegando que  a  perseguição contra o  irlandês  era  quase  inexistente,  classificados  de  jornais  da  época,  placas  e  cartuns  em  jornais  resgatam  a  história de  discriminação  parte da população americana em relação aos imigrantes vindos da Irlanda.  A música de John F. Poole ­ de grande sucesso na época ­ é apenas mais uma evidência disso tudo.  

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Claro, eu ouvi que na América sempre é o plano   Que um irlandês é tão bom quanto qualquer outro ser humano;  Um lar e hospitalidade eles nunca vão negar  O mais estranho aqui, ou sempre dizem:: Nenhum irlandês para trabalhar.  Mas algumas ovelhas negras estão no rebanho: um muito sujo, quero falar;  Um homem decente nunca escreverá: Nenhum irlandês para trabalhar.  

 Richard Jensen, professor da Universidade de Illionois, em Chicago,  escreveu um artigo intitulado "No Irish Need Apply": A  Myth of Victimization. Nesse estudo, ele discorre sobre a discriminação dos irlandeses nos Estados Unidos e o mito criado em torno do  “No Irish Need Apply”. Para ele, não houve um preconceito generalizado contra essa população.  

 

  Fig. 1 ­ A imagem representa sentimento anti­irlandês nos Estados Unidos.  

  A  ideia  por  trás  desses  avisos  de  “No  Irish  Need  Apply”  era  de  que  o  imigrante  irlandês  era  preguiçoso,  desordeiro,  gostava  de  brigas  e  bebidas,  tinha  costumes  e  religião  diferentes  dos  americanos,  constituindo um estereótipo  pouco atrativo para os ideais  dos  empresários dos Estados  Unidos.     Um  instrumento  importante  na  pulverização  desse  estereótipo  foram  os  periódicos  da  época,  que  circulavam  com  mensagens  desfavoráveis aos imigrantes irlandeses, reforçando a  ideia de  que essa  população  não  se  adequava  àquele  país.  Dentre  os  elementos  de  persuasão  usado  pela  mídia  americana  estavam os cartuns,  servindo  como um dos principais  instrumentos  para a  construção de  uma  imagem  desfavorável  dos  irlandeses  na  América.  Ou  seja,  esses  desenhos  representavam  um  discurso político e social carregado de preconceito.     Esse  presente  trabalho  tem  como objetivo  catalogar uma  série de  cartuns chamada The  Yellow  Kid,   publicada  no  jornal  New  York  World  dos  Estados  Unidos  no  período  da  grande Diáspora  Irlandesa,  assim  como  analisar  as  imagens  de  acordo  com  a  Semiótica  Discursiva  de   Greimas.  Dessa  forma,  pretende­se  traçar quais  são os  símbolos  presentes  nessas  representações que ajudaram a construir  os estereótipos do imigrante irlandês nos Estados Unidos, e por consequência, para o mundo.  

 

  O artigo está dividido em quatro partes: um  breve  referencial  histórico sobre a Diáspora Irlandesa, a  segunda parte discorre  sobre o  papel social das charges e dos cartuns e o uso da semiótica discursiva  para  análise  iconográfica  e  na  terceira  parte,  será  realizada  a  análise  da  presença  dos  elementos  xenófobos  nesse  cartum,  concluindo, é feita  uma  reflexão  a respeito desses desenhos contribuírem  ou não para a construção o fortalecimento do estereótipo racista desses imigrantes.        

 

 

2. CONTEXTO HISTÓRICO    A  situação  social e política da Irlanda no século  XIX era  complexa devido a sua relação com a  Coroa  Britânica. Os irlandeses eram subjugados aos ingleses e impedidos de expressar sua cultura e religião.  Além  disso,  a  Ilha,  que  fazia  parte do Reino Unido,  servia como uma grande  ​plantation nos moldes  expansionistas  desde o final século XVI. Foi nessa época que a plantação de batatas foi introduzida na  Irlanda, tornado­se o principal produto agrícola da Ilha.    Os pequenos agricultores dependiam tanto da plantação quando o Governo. Era da batata que saia o  sustento  das  famílias  irlandesas,  assim  como  o  dinheiro  para  o  pagamento  de  impostos  e   de  suas  moradias.  Em 18455, a  população irlandesa  foi  severamente  afetada por  uma  praga  na plantação de  batata,  deixando o  país devastado. Os trabalhadores perderam seu sustento e sua renda, e por causa  da crise, muitos perderam suas casas.     A  fome  de  1845­49  não  foi  a  primeira  na  Irlanda,   mas   foi  de  longe  a  mais  severa,  persistente  e  generalizada.  Condições  econômicas  de  milhares  de  pequenos  agricultores  e suas famílias se tornaram precárias por muitos anos.  Olhando  para trás, era  fácil  prever que esse  era  um desastre esperando para  acontecer. (ANNAIDH, 2007, tradução nossa)     

Diante  da  crise,  o  governo  britânico  montou  um  plano  de  ajuda  humanitária,  o  que,  segundo  os  registros  históricos,  consistia  em  trocar  ajuda  na  alimentação  dos  irlandeses  (católicos)  pela  conversão  ao  protestantismo,  entre  outras  práticas  subjugantes.  Além  disso,  o alimento produzido  pela  Ilha  era  exportado  e  administrado  pela  Coroa  para  obter  renda  fundiária,  ao  invés   de  ser  distribuído  entre  a  população  da  Ilha.  Nessa  época,  o número de pessoas  que moravam  na  Irlanda  chegou   a  9  milhões.  Durante a  Grande  Fome6 , mais  de 1 milhão  de irlandeses morreram, e milhões  emigraram para outros países e continentes, fazendo com que a população caísse em torno de 25%7 .   5

De acordo com a cronologia levantada por pesquisadores da Quinnipiac University, em Connecticut, nos Estados Unidos.  . Registros históricos mostram que a  crise na plantação de batata data do final do século XVIII, se acirrando na década de 1840 na Irlanda até o final do século XIX, sendo  esse período  conhecido como A Grande Fome (An Gorta Mór, em gaélico irlandês).   6 Como ficou conhecido o período de fome generalizada na Irlanda. Tradução livre para Great Famine.   7  Kinealy 1994, p. 357 

 

 

  Fig. 2 ­ Senhora Kennedy entrega roupas para as vítimas da Grande Fome, em Kilrush, Irlanda, 18498. 

  A  imigração  irlandesa  massiva  durou  da  década  de  1850  até  a  primeira  década  do  século  XX.  A  Diáspora Irlandesa  enviou  imigrantes  para  países como Argentina, México, Canadá e Estados Unidos.  Neste último  país,  ocupando  essencialmente  os estados  de Nova  York,  Massachussets, Pennsylvania  e Maryland.    No  livro  Irish  History,  Séamas  Mac  Annaidh  descreve  a  jornada  dos  imigrantes como uma situação  desesperadora.  Segundo  o   autor,  essas  pessoas  eram tratadas como carga  e  jogadas em porões de  navios conhecidos  como “navios­caixões”,  por causa das inúmeras mortes causadas pela travessia do  Oceano Atlântico.     Esses  navios  eram  carregados  de  pessoas  doentes,  famintas  e  sujas.  “Aqueles  que  cruzavam  o  Atlântico,  chegavam  com  passageiros  mais  mortos  do  que  vivos”.  (ANNAIDH,   2007).  Esses  navios  foram  comparados aos navios negreiros por causa das pobres condições de viagem. Essa comparação 

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A imagem foi publicada no períodico Ilustrated London News em 15 de dezembro de 1849 Biblioteca do Condado de Claire, na  Irlanda. Disponível em  em 30 de  junho de 2015.  

é considerada como um precedente ao crescente preconceito em relação ao irlandês.     2.1 O NEGRO IRLANDÊS   

  Fig. 3 ­ O irlandês é comparado ao negro­americano pelo jornal americano Harper’s Weekly. 

  O termo “Negro Irlandês” tem sido usado de maneira distinta ao longo dos séculos. Há ao menos três  versões  diferentes  para  o  uso  dessa  expressão,  e  nenhum  consenso  diante  de  sua  origem.  Historicamente, não  há  nenhum registro  sobre quando o termo começou a ser usado, apenas que se  tornou  popular  a  partir  do  século  XVI.  Foi  nessa  época,  que  o  contato  com  irlandeses  morenos  (cabelos  e  olhos  negros)  começou  a  chamar  a  atenção  dos  anglo­europeus.  Essa  população  era  percebida como “diferente”, e em muitas ocasiões, como “inferior”.     Até  hoje,  não  há  uma explicação científica  para o  surgimento dessa característica no povo  irlandês,  mas  a  história  mais conhecida  (e considerada  um  mito entre os acadêmicos) é de  que os irlandeses  morenos são  descendentes  de marinheiros  espanhóis que  chegaram à Ilha com a Armada Espanhola  para lutar contra a Inglaterra.     Apesar  de  não ter comprovações de o  fenótipo surgiu dessa  mistura com os latinos, o estigma social  que  esses  irlandeses  carregavam  não  diminuiu  com  o tempo. Ao se tornar parte do Reino Unido,  a   

Irlanda  servia  como  uma  colônia  britânica,  e  seus  habitantes  era  constantemente  subjugados  à  população  dominante.  No  livro  “How  The  Irish  Became  White”,  ​Noel  Ignatiev  usa  o  termo  “negros  brancos”  para  descrever  a  percepção  dos  britânicos  em  relação  aos  irlandeses,  reforçando  a  noção  de  opressão  racial.   Outro  uso  para  o  termo,  apesar  de  incomum,  pode  ser  encontrado  nos  registros  dos  irlandeses  católicos  ao  descrever  os  irlandeses  protestantes  que  apoiavam  a  permanência  do  vínculo  entre a Irlanda e a Coroa Britânica. Nesse sentido, a palavra “negro” se referia a obscuridade da ação.     A  terceira   versão  para  o  uso  do  termo “Negro Irlandês” é a que interessa para esse estudo, levando em   consideração   que  ela  foi  construída  e  solidificada  durante  a   imigração  dos  irlandeses  para  os  Estados  Unidos.  Durante  a  Grande  Fome, a  população irlandesa que fugiu para os Estados Unidos era vista por  muitos  como  pessoas  de  baixa  classe,  sujas  e  iletradas,  com  doenças  e  em  situação  degradante.  Esses  imigrantes  chegavam  à  costa  americana  em  embarcações  comparadas  aos  navios  negreiros,  tornando  fácil a conexão entre os imigrantes irlandeses e os escravos.     Ser considerado um “negro irlandês” nos Estados  Unidos, ia além  da  simples  associação ao fenótipo  “moreno”,  mas  a  um  conjunto  de  elementos  que  aproximada  os  irlandeses  aos  africanos.  Novamente, o que era considerado “estrangeiro”, era visto como estranho e inoportuno.     2.1.1 ESTEREÓTIPO    O povo  irlandês foi o  primeiro  grupo étnico  a imigrar  em grande escala para os Estados Unidos. Eles  não  poderiam  se misturar sem serem  notados,  e  muito menos foi isso  o que aconteceu.  Devido aos  adventos da chegada  desse grupo,  a população irlandesa  foi  facilmente  identificada e estigmatizada  sob a características de um estereótipo negativo.     William  H.  A. Williams  faz  uma análise  categórica sobre como esse estereótipo não foi apenas criado  mas  reforçado  ao   longo  dos  anos.  Ao  reunir  elementos da cultura irlandesa,  como: língua,  religião,  traços físicos e comportamental,  os americanos  criam o “típico irlandês”. Em sua obra “Twas Only an  Irishman's  Dream:  The  Image  of  Ireland  and  the Irish in American  Popular Song  Lyrics, 1800­1920”, 

 

Williams afirma:    Comportamentos  estereotipados  dos  irlandeses eram mostrados por meio de  todas  as  mídias  populares:  artigos  em  jornais,  relatos  de  cortes,   livros  de   escola,  almanaques,  folhetos  políticos  e  religiosos,  roteiros  de  viagem,  novelas   e  contos,  peças,  desenhos,  cartuns   políticos,   e,  finalmente,  tirinhas  em quadrinho e filmes. (WILLIAMS, 1996, tradução nossa)   

  Dessa  forma,  podemos  compreender  o  papel  da  comunicação  em  massa  na  disseminação  de  estereótipos negativos, nesse caso, o estereótipo do irlandês­americano.    

  Fig. 4 ­ Representação do cartunista Thomas Nast9​ ​do “típico irlandês”.  

           

Entre as características mais lembradas do estereótipo irlandês­americano estão: 

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Thomas H. Nast foi um famoso caricaturista e cartunista do século XIX, considerado um dos pais da charge política americana 

● Problemas com bebida  ● Temperamento explosivo  ● Membro de gangues  ● Baixinhos  ● Pobre higiene bucal  ● Pele branca  ● Tem sardas  ● Ruivos  ● Preguiçosos  ● Mal educados  ● Católicos fervorosos  ● Amam batatas    O  sociólogo  Erving  Goffman  reforça  a  força  do  estigma  social  na  sociedade.  Para  ele,  as  pessoas  tendem a categorizar os atributos considerados comuns, e hostilizar o que é considerado incomum.    A  sociedade  estabelece  os  meios  de  categorizar  as   pessoas  e  o  total   de  atributos  considerados  como  comuns  e  naturais  para  os  membros  de  cada  uma  dessas  categorias.  Os  ambientes  sociais  estabelecem  as  categorias  de  pessoas  que  têm  probabilidade  de  serem  neles  encontradas.   As  rotinas  de  relação social  em  ambientes estabelecidos nos permitem um relacionamento  com outras pessoas... (GOFFMAN, 2008)  

  Para  Émile  Durkheim  (2003),  é  na  expressão  desse  conjunto   de  características  que  o  indivíduo  é  deslocado,  a  fim  de  se  adaptar,  a  certos  grupos  de  pessoas.  De  acordo  com  Durkheim,  são  os  estereótipos  que  ditam  os espaços sociais  que  os indivíduos  ocupam na sociedade ou  são levados  a  ocupar.  No  caso  dos  irlandeses  nos  Estados  Unidos,  a  marginalização  desses  imigrantes  perante  a  sociedade  estadunidense teve  como um forte aliado  as  tirinhas  em  quadrinho, charges e cartuns.  O  personagem  Mickey  Dugan,  figura  central  do  cartum  The  Yellow  Kid  ("O  Garoto  Amarelo"),  é  um  exemplo  disso.  O desenho era a  representação  de um garoto irlandês que  vivia nas  favelas de Nova  Iorque. Ele  aparecia sempre com um sorriso bobo e vestindo um pijama amarelo enquanto circulava 

 

por  uma  vila   cheia  das  mais  estranhas  criaturas.  Mickey  usava  uma  linguagem   de  gueto,  e  estava  sempre  metido  em  confusão.  A  tira  era  desenhada  pelo  artista   Richard  Felton  Outcault e teve sua  estreia oficial no jornal New York World em 17 de fevereiro de 1895.          

 

 

3. SEMIÓTICA E SEMÂNTICA    A  semiótica  é  uma  teoria  que  se  aplica  ao  estudo das  imagens e as mediações  feitas  no  âmbito  da   interpretação  dos  significados.  Criada  por   Charles  Sanders  Peirce,  essa  teoria  explica  como  o  repertório individual  é  aplicado na interpretação das imagens. Para  isso, Peirce definiu sua teoria em  três categorias, para mostrar como os fenômenos aparecem à consciência:    ­ Primeiridade ­ a qualidade da consciência imediata, percepção espontânea.    ­ Secundidade ­ reação, compreensão e profundidade do seu conteúdo.    ­ Terceiridade – experiência das mediações.      Para  efeito  de  análise,  a  imagem  deve  ser   decodificada  respeitando  essas  três  categorias.  É  importante reconhecer  elementos  que possibilitam  a interpretação de  um  signo, transformando em  símbolos e extraindo o seu significado.     Já  no  âmbito  da  Análise  do  Discurso  Francesa,  Greimas  (2002)  considera  a  imagem  uma  unidade  discursiva,  uma  mensagem  visual  que  pode  ser  decomposta  em  unidades  sintáticas  e  semânticas  menores,  permitindo  compreender  noções  de  sentido  e  significados,  possibilitando  postular   considerações a respeito da composição visual das imagens analisadas.     Nessa  análise,  usaremos  as  duas  teorias  como  instrumento de  decodificação do  cartum The  Yellow  Kid,  e  identificar  símbolos  e  significados que representam o estigma  do imigrante irlandês­católicos  nos Estados Unidos, no final do século XIX.          

 

4. ANÁLISE SEMIÓTICA DO CARTUM THE YELLOW KID   

Fig. 5  

  No primeiro momento, a composição  impacta pela  riqueza  dos  detalhes, pela vivacidade das cores, e  pela  diversidade  dos personagens. A  cena seria  uma típica  representação  de algum lugar na Irlanda,  tendo  a  predominância  das  cores  verde,   laranja,  amarela  e  branca,  usadas  nos  símbolos  do  país. É  importante  ressaltar  que  a  Irlanda  não  era  um  país  independente  naquele  momento,  portanto,  a  tradicional bandeira laranja, verde e branco que conhecemos hoje, ainda não era símbolo oficial.  No  segundo  momento,  podemos  identificar  esses  símbolos:  a  harpa,  cobra,  trisquel,  chapéu  verde  comprido,  a  cobra, a bebida.  Todos esses  elementos contribuem para a construção da história. Desse  modo, é possível compreender que o quadrinho mostra o que seria uma cena na Irlanda, os irlandeses  e seus costumes.   A  ideia  do  caos  e  da  desordem  é  proposital,  tendo  em  vista  a  lista  de  estereótipos  irlandeses  construídos  na  época.  É  possível  ver  um  grupo  de  gangues  brigando,  o  que  dá  a   ideia  de  que  o  irlandês  é  violento.  Enquanto  isso,  outro  grupo está  dançando  ao  som de  uma harpa, enquanto um   

homem  cai  bêbado  enrolado  por  uma cobra.  Na  Irlanda, há uma lenda famosa na qual dizem que o  santo  padroeiro  do  país  São Patrício expulsou  todas as  cobras da ilha, e por isso, até hoje não há esse  tipo de  réptil por  lá. Enquanto isso,  o Garoto  Amarelo aparece no  meio  de toda essa confusão, entre  um  porco e um cachorro. Ele se comunica com o leitor por meio do seu vestido amarelo. A mensagem  confirma que aquele lugar é a Irlanda, já que ele menciona a “terra de seus pais”.   Um  ponto  interessante  de  se  observar  nesse  cartum  são  as  duas  figuras  negras  sentadas  em  um  grande cartaz ao fundo da figura. Esses dois personagens representam a população negra dos Estados  Unidos  que  ao  mesmo  tempo  era  discriminada  pelos  americanos,  mas  não  se  misturavam  com  os  irlandeses, sendo os dois povos semelhantes, mas, ao mesmo tempo, bastante diferentes.    

Fig. 6 

  Essa  imagem  impacta  pelo  sentimento  de  medo  e  surpresa.  No  segundo  momento,  é  possível  perceber que  essa reação vem da relação  entre o Garoto Amarelo e o  Negro.  O contexto da imagem  mostra  o   receio  do  sincretismo  religioso  e  cultural  entre  o  negro  africano  e  o  negro  irlandês.  Nos  dizeres  da  camisola  do garoto, há a seguinte  mensagem escrita em forma de  dialeto: “Diz,  esses são  os  truques  que  podemos  trocar”.  Essa  troca  entre  os  negros  e  os  irlandeses  era,  de  algum  modo, 

 

temida pela sociedade americana.  O comportamento do irlandês  em torno de sua religião é outro estereótipo largamente explorado até  os dias de hoje.           

              Fig. 7 e 8 

  As   duas  figuras  mostram  dois  momentos  políticos  distintos:  o   encontro  dos  partidos  (fig.  7)  e  as  eleições  (fig.  8).  A   primeira  imagem  faz  uma  crítica  às  demandas  vazias  dos 

imigrantes 

durante 

o  processo 

democrático.  O  dinheiro aparece  como  uma   peça  chave   nesse  quadrinho,  significando  que  os  imigrantes  tinham  esse  elemento  como  foco. A  mensagem do Garoto Amarelo  é  jocosa:  com  as mãos  sujas, ele  diz  que  é o  “principal  personagem  da  parada”.  É  possível também reparar na representação do negro como “cavalo” da nação.   Na  segunda  figura,  a  intenção   é  mais  dramática.  O  fogo,  ou  o   incêndio,   representam  o  sentimento  de  incertezas  da  população   americana  em  relação a volatilidade  dos  imigrantes  irlandeses. O  Garoto  Amarelo  está   sendo   apresentado   como  o  Imperador  Nero,  um  louco  incendiário enquanto alguns  tentam apagar  o 

 

fogo.  Ele  se  equilibra  em  cima  de  uma  caixa  de  bebidas, reforçando  o  estereótipo  de  que o  povo  irlandês  tem problemas com substâncias alcoólicas.   Fig. 9 

                          O  primeiro  impacto  é mais  uma  vez  a ideia  de  caos,  confusão, em uma simples corrida de barcos no central  parque.  Analisando as representações no quadrinho, vemos uma bandeira com uma bebida, meninos pobres  cantando,  pessoas  caindo  na  água,  barcos  improvisados.  Várias  pessoas  carregam   a  placa  com  os  dizeres  “fique longe da grama”, enquanto o Garoto Amarelo aparece feliz com um cachorro amarrado a uma âncora.   A cena está ligada a representação do grupo de imigrantes comemorando o 4 de julho, dia da Independência  dos  Estados  Unidos.  O  discurso  mais  uma  vez  leva  a  acreditar  que  esses  imigrantes  desordeiros eram  uma  ameaça  ao  modo  de  vida  americano.  A  placa  “fique  longe  da  grama”  pode  ser uma  alusão  ao  sentimento  anti­irlandês e uma vontade de expulsar o povo da terra da oportunidade.   Dessa maneira, a cena reforça o sentimento de receio da população americana em relação  ao imigrante, que  por sua vez, ameaça a estabilidade do país.  

 

 

5. CONSIDERAÇÕES    O objetivo maior desta pesquisa foi apresentar, por meio de uma análise semiótica, a representação  de  estereótipos  em  cartuns  e  a  contribuição  desse  material  para  a  disseminação   de  estigmas  negativos e discriminação em relação a um grupo étnico.     Com  esta  análise,  é  possível  demonstrar  que  os  cartuns  são  uma  ferramenta   para  caracterizar  socialmente,  ideologicamente  e  politicamente  os  indivíduos.  O  objeto  desse  estudo  foi  analisado  considerando  o momento histórico no  qual foi produzido, tendo  em vista o sentimento anti­irlandês  nos  Estados  Unidos no início  do século XIX,  sendo o contexto relevante para a  produção do  sentido  do presente discurso representado nesses desenhos.     O  cartum  The  Yellow  Kid  carrega  um  forte  discurso  anti­irlandês.  Apesar  do  seu  caráter  cômico,  a  tirinha  serve como  instrumento para  reforçar o estigma  social do imigrante  irlandês. O  personagem  principal  da  história  contempla  o  estereótipo negativo dos irlandeses católicos nos Estados  Unidos,  entre  eles,  o  dialeto,  sotaque,  violência,  preguiça,  religiosidade  e  costumes  fora  do  padrão.  Esse  “desajuste”  perante a  sociedade no final  do século  XIX,  justificava o uso pejorativo do termo “Negro  Irlandês”, disseminando o preconceito contra essa população.     Apesar  de  ser  um  estudo  iconográfico que  olha  para o passado, é ao tentar compreender o presente  que ele  se torna relevante. Atualmente, as charges políticas em jornal servem como ferramenta para  construir discursos e disseminar ideias de interesse dos grupos atuantes.     Dessa  maneira,  ao  levantar  o  impacto  que  esses  discursos  podem  ter  em determinados grupos  em  uma sociedade, percebe­se que a leitura crítica e ética deve ser levada em consideração.         

 

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS     Acervo iconográfico da Trinity College Dublin, disponível em   Acesso em "22/03/2015".  BAEDER, Berenice Martins. Olhar semi­simbólico de um desenho charge de Angeli. Estudos  Semióticos, Número 3, São Paulo, 2007. Disponível em  . Acesso em  "14/04/2015".  DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico, 1895.  FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 1999.  GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. São Paulo: Perspectiva, 1989.  GREIMAS, Algirdas Julien. Da Imperfeição. São Paulo: Hacker, 2002   The Racial Slut Database, disponível em  Acesso em  "24/07/2015".  IGNATIEV, Noel. How The Irish Became White, Londres, 1995.    KINEALY, Christine. This Great Calamity, Gill & Macmillan, 1994.   Letters of 1916, disponível em  Acesso em "24/07/2015".  POOLE.  John  F.  Disponível  em    Acesso  em  "24/07/2015".  SILVA,  Priscilla  Chantal  Duarte.  A  Intencionalidade  Discursiva:  estratégias  de  humor  crítico  em  charges 

políticas, 

Belo 

Horizonte, 

2008. 

Disponível 

. Acesso em "10/04/2015”.  The Yellow Kid  on the paper stage. Disponível em   Acesso em "07/06/2015".  The Yellow Kid. Disponível em  Acesso em  "07/06/2015".   

 

em 

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