O Ofício do rei em Portugal: a função dos reis de Avis e suas relações com o \'stado ecclesiastico\' (Portugal, século XV)

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R elações de Poder: da

Antiguidade ao Medievo

R elations of Power: from

Antiquity to the Middle Ages

Alumni: História Antiga e Medieval, vol. 1

R elações de Poder: da

Antiguidade ao Medievo

R elations of Power: from

Antiquity to the Middle Ages

Alumni: História Antiga e Medieval, vol. 1 Organizadores Carlos Eduardo da Costa C ampos R enan M arques Birro Diretores Carlos Eduardo da Costa C ampos Liliane Cristina Coelho M ariana Bonat Trevisan R enan M arques Birro

Departamento de L ínguas Universidade Federal do Espírito Santo

DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS / Biblioteca Setorial Avenida Fernando Ferrari, 514, CCHN - Goiabeiras Vitória/ES - CEP 29075-910 Tel.: (27) 4009.2881 Design por Renan M. Birro © Departamento de Línguas Todos os direitos reservados Primeira edição, Abril 2013

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C172r Relações de poder: da Antiguidade ao Medievo - Relations of Power: from Antiquity to the Middle Ages / Autor: Direção do Alumni / Organizado por Carlos Eduardo da Costa Campos e Renan Marques Birro. - Vitória: DLL/UFES, 2013. ISBN: 978-85-61857-14-1 1. História. 2. Literatura. 3. Teologia. 4. Antiga. 5. Medieval. 6. História Política. 7. Poder 8. I. Direção do Alumni. II. Campos, Carlos Eduardo. III. Birro, Renan Marques. III. Título. CDD: 940 CDU: 94(4)

Índice

Table of Contents Prefácio, i Carlos Eduardo da Costa Campos & Renan Marques Birro

Antiguidade | Antiquity 1. O Egito e seus vizinhos: relações de poder nas Cartas de Amarna, 1 Liliane Cristina Coelho 2. Poder e Genealogia nos inícios da historiografia grega, 25 Katsuzo Koike 3. Néstor e as políticas do tempo: diferenças etárias e relações de poder na Ilíada, 51 Alexandre Santos de Moraes 4. Electra de Sófocles: gênero e poder em Atenas, 65 Maria Angélica Rodrigues de Souza 5. As relações de poder na pólis de Esparta através dos escritos do período clássico, 83 Luis Filipe Bantim de Assumpção 6. Spatium urbis: política e religião na organização dos bairros à época do principado augustano, 113 Debora Casanova da Silva 7. Tácito e o Principado de Nero, 139 Ygor Klain Belchior 8. Autoridade e poder político durante o Principado: a auctoritas na concepção pliniana, 167 Alex Aparecido da Costa

9. Interpretatio e o domínio romano na Lusitânia: O caso dos Lares do Fórum de Conimbriga, 197 Raquel de Morais Soutelo Gomes 10. Resgate e construção da imagem de Alexandre, o Grande: Arriano de Nicomédia e sua “Anábase de Alexandre Magno” (séc. II d.C.), 217 André Luiz Leme 11. Sofistas gregos e poder imperial romano: reflexões sobre o testemunho de Flávio Filóstrato (século III d.C.), 249 Semíramis Corsi Silva 12. Cristo como doulos. Relación de poder y la controversia por la imagen del Dios sufriente en los dos primeros siglos del cristianismo, 271 Mariano Spléndido 13. In hoc signo vinces: Constantino e a cristianização do exército romano (306-337), 291 Raphael Leite Teixeira

Medievo | Middle Ages 1. VICTOR AC TRIUMFATOR. Tradição, poder e administração no governo de Teoderico I Amálo (c. 493 – 526), 321 Otávio Luiz Vieira Pinto 2. O pensamento político nos reinos bárbaros: uma avaliação da perspectiva de P. D. King, 343 Letícia Souza Campos da Silva 3. “Novo Davi”: a ascensão de Heráclio (c. 575-641) ao poder e o triunfo do Imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário (†c. 660), 373 Guilherme Queiroz de Souza 4. Power and weakness: Hamburg-Bremen in the ninth and eleventh centuries, 391 Tim Barnwell 5. The economic aspects of political power. A commentary to Egils saga, chapter 10, 447 Santiago Barreiro

6. Representação guerreira e disputas da realeza norueguesa na Era Viking: análises dos conflitos políticos no Heimskringla, 463 Pablo Gomes de Miranda 7. Representação política e debate institucional na Catalunha da Baixa Idade Média, 489 Rogério Ribeiro Tostes 8. Uma análise do ideal e da prática da Iusticia através do Prólogo da Primeira Partida do rei Alfonso X, o Sábio (1221-1284), 517 Elaine Cristina Senko 9. O ofício do rei em Portugal: A função dos reis de Avis e suas relações com o “Stado Ecclesiastico”, 531 Douglas Mota Xavier de Lima 10. A legitimação da eleição de D. João I no Portugal do século XV: As virtudes do Mestre de Avis e os atributos do ofício régio, 565 Mariana Bonat Trevisan 11. Memories of Rome: papal power and patronage under Boniface VIII, 609 Nayhara Sepulcri 12. A hagiografia e a propagação do “discurso religioso”– o exemplo da Legenda Áurea, 625 Tereza Renata Silva Rocha 13. Colour, ornamental function and signification in Aberdeen University Library MS 24 (Aberdeen Bestiary), 637 Muriel Araujo Lima Garcia

Prefácio

O

Max-Planck-Institut für Geschichte (Departamento de História Max-Planck) de Göttingen, Alemanha, sediou em 1996 um colóquio composto por pesquisadores ingleses e alemães para tratar as ideias políticas e a realidade política na Idade Média. O tema, graças aos empecilhos proporcionados pelos limites entre a teoria e a prática, proporcionou questões complexas aos participantes. Todavia, as discussões foram frutíferas e renderam a publicação de uma excelente obra bilíngue, além de solidificar a cooperação intelectual sobre este objeto de estudo entre as academias inglesa e alemã1. De maneira análoga, esta obra, fruto do Projeto Editoral Alumni, almeja uma reflexão ampla, multitemática e internacional sobre as relações de poder. Contudo, nosso empreendimento abarcou não somente a Idade Média, como o projeto anglo-germânico original, mas também a Antiguidade, em diversos recortes temporais e espaciais. A intenção precípua do conjunto foi oferecer aos leitores várias abordagens teórico-metodológicas, além de abrir um espaço para debates entre colegas brasileiros e estrangeiros de ambos os recortes que ainda cursam a Pós-Graduação ou são recém-mestres e recém-doutores. A proposta rendeu não apenas dificuldades logísticas – um evento acadêmico para o confronto das opiniões mostrou-se impossível –, mas também em razão dos proponentes: em época, todos nós éramos discentes de Pós-Graduação. Neste ínterim, o primeiro esforço foi alcançar os meios de publicação em âmbito acadêmico, quase inacessíveis para quem ainda não alcançou uma 1

CANNING, Joseph & OEXLE, Otto Gerhard (eds.). Political Thought and the realities of Power in the Middles Ages - Politisches Denken und die Wirklichkeit der Macht in Mittelalter. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1998.

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cadeira universitária cativa. Ultrapassada a primeira barreira, foi preciso ir além: o próximo esforço foi encorajar os colegas de diversas regiões do Brasil e do exterior. Alguns aceitaram prontamente; outros ficaram apreensivos pela responsabilidade. Houve ainda quem desistisse ou não respondesse o nosso convite. Após eliminar outro empecilho, coube a reunião, acareação e editoração dos textos. Fase esta que podemos demarcar como demorada e de amplo trabalho, sem dúvidas, sobretudo para quem está sujeito a avaliações periódicas e ainda enfrenta a necessidade de publicar os resultados das pesquisas num ritmo cada vez mais intenso. Independente dos azedumes proporcionados por esta empreitada acadêmica, estamos satisfeitos com os resultados alcançados. O livro Relações de Poder: Antiguidade e Medievo / Relations of Power: from Antiquity to the Middles Ages contabiliza vinte e seis artigos composto por mestrandos, mestres, doutorandos e doutores conforme a proposta original, apesar das dificuldades. No Brasil, os artigos foram produzidos em diferentes centros de pesquisa, a saber, UERJ, UFF, UFRJ e UNIRIO (Rio de Janeiro), UEM e UFPR (Paraná), UNESP e USP (São Paulo), UFOP (Minas Gerais) e UFRN (Rio Grande do Norte). O título ressalta e reconhece também os trabalhos de colegas além-mar: Universidade de Coimbra, Universidade do Minho e Universidade de Lisboa (Portugal), Universidad Nacional de La Plata e Universidad de Buenos Aires (Argentina), Birkbeck College e Leeds University (Reino Unido) e Universidad de Lleida (Espanha). *** No primeiro capítulo contamos com o texto O Egito e seus vizinhos: relações de poder nas Cartas de Amarna de Liliane C. Coelho, que analisa um conjunto de documentos descoberto em 1887, posteriormente denominado como Cartas de Amarna. Como um especialista afirmou certa vez, “não há poder político sem informação; as ações de espalhar notícias e exercer controle político estão intimamente relacionadas”2, afirmação que faz 2

SOTINEL, Claire. Information and Political Power In: ROSSEAU, Philip (org.).

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jus a tais fontes. Assim, estes indícios possibilitam compreender as relações de poder do Egito com outros territórios durante a XVIII Dinastia entre os últimos anos do reinado de Amenhotep III (c. 1391-1353 a.C.) e o início do período de Tutankhamon (c. 1335-1323 a.C.). As cartas tratam de várias matérias, como a guerra, casamentos ou até mesmo a obediência. A menção ao monarca egípcio como Sol confirma que símbolos e cerimônias eram usados pelo poder político unido à religião. Esta combinação era capaz de propiciar a coesão política. O segundo capítulo de nossa obra é denominado de Poder e genealogia nos inícios da historiografia grega, redigido pelo doutorando Katsuzo Koike. O autor chama atenção para a função política que o mito e a genealogia exerciam nas sociedades helênicas, uma vez que a narrativa mítica pode ser vista como um fator de legitimação das aristocracias no poder, modelo usado também em outros contextos históricos. Em suma, a abordagem de Katsuzo Koike é um convite para explorarmos a atuação dos logógrafos na Antiga Hélade. O terceiro capítulo, por sua vez, do doutorando Alexandre Santos de Moraes, intitulado Néstor e as políticas do tempo: diferenças etárias e relações de poder na Ilíada, destacou as relações de poder que se encontram presentes nas diferenças etárias a partir da poesia homérica. O autor materializou sua abordagem por meio da figura de Néstor, um agente importante na dinâmica do poder argivo contra os troianos. Ao aclamar uma condição natural para justificar o poder, Moraes fez jus ao comentário de Peter Brown para a Antiguidade Tardia, embora aplicável também ao seu objeto de estudo, uma vez que os idosos manifestavam de maneira inata boa parte das qualidades inframencionadas: Num sistema social e político onde o poder é utilizado para exercer uma maneira violenta e dominadora contra um círculo de pessoas cada vez maior, aqueles que afirmam empunhar uma autoridade “natural” em suas cidades e regiões baseiam sua autoridade em um treinamento que enfatiza a antítese de tais qualidades abrasivas: limitação, autodisciplina, equilíbrio e elocução harmoniosa3. A Companion to Late Antiquity. London: Blackwell, 2009, p. 126-127. 3

BROWN, Peter. Power and Paideia In: __________. Power and Persuasion in Late

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A doutoranda Maria Angélica Rodrigues de Souza analisou as redes de sociabilidade formuladas pelas mulheres em Atenas no Período Clássico no artigo Electra de Sófocles: gênero e poder em Atenas. Souza utilizou a produção de Sófocles para abordar como as mulheres imiscuíam em diversas teias para conseguir obter o que desejavam para si. Este trabalho nos possibilita compreender a inserção das mulheres atenienses na dinâmica social que se apresentava permeada por relações de gênero, poder e comunicação. Deste modo, Maria Angélica seguiu outros eruditos consagrados, como Sue Blundell, que demonstraram com maestria como certas mulheres gregas foram descritas nos dramas: algumas personagens eram capazes de interagir diretamente sobre o universo político grego ou até mesmo manter ou decidir quem manteria o poder político4. O quinto capítulo foi elaborado pelo mestrando Luis Filipe Bantim de Assumpção. Em As relações de poder na pólis de Esparta através dos escritos do Período Clássico, o autor desvelou, por meio da abordagem teórico-metodológica da análise do discurso, como Xenfonte e Heródoto, autores atenienses, representaram as relações sociais da pólis de Esparta. A abordagem é inovadora e está inserida nas novas possibilidades de investigação histórica, iniciativa fundamental para a historicização da sociedade espartana. Ademais, o trabalho de Assumpção lança novas luzes sobre alguns estudos clássicos que entreviam as relações sociais na Grécia Antiga do período. No capítulo seis iniciamos os estudos sobre a História Antiga de Roma. A partir do texto Spatium urbis: política e religião na organização dos bairros à época do principado Augustano, produzido pela mestranda Debora Casanova da Silva, é possível compreender o processo de reformulação política que foi promovida pelo princeps Augusto. A autora proporciona ao leitor a reestruturação augustina por meio das transformações e dos jogos de poder inerentes aos espaços físicos da urbs. De fato, os prédios públicos e os espaços urbanos da Roma antiga, para além das questões Antiquity: Towards a Christian Empire. Madison: University of Wisconsin Press, 1992, p. 43. 4

BLUNDELL, Sue. Women in drama In: __________. Women in Ancient Greece. Harvard: Harvard University Press, 1995, p. 173.

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estéticas, também transpareciam o equilíbrio social, uma crença mútua nos valores do padrão urbano e das cerimônias rituais, uma aceitação e, em muitos casos, uma expressão visual poderosa e profunda da presença e da autoridade do Estado. Prosseguindo com os estudos romanos, no capítulo sete temos o texto Tácito e o Principado de Nero, de autoria do Mestre Ygor Klain Belchior. Mediante diversas visões historiográficas que tendem a construir uma imagem negativa do supracitado imperador, Belchior enfatizou a revisão do papel de Nero como governante. Ele utilizou os escritos de Tácito para desvelar as relações de poderes que atuavam na época de Nero e as contendas políticas que conduziram a sua queda. O capítulo oito, aos cuidados de Alex Aparecido da Costa, manteve uma continuidade sobre as análises referentes ao sistema de poder do principado romano. O trabalho Autoridade e poder político durante o Principado: a auctoritas na concepção pliniana versa sobre as ideias políticas e morais presentes na sociedade romana desde o período republicano. O autor, porém, focou o papel da autorictas, aspecto descrito na obra Panegírico de Trajano de Plínio, o Jovem. Assim, Belchior e Costa retomaram as orientações de Marc Bloch e Jacques Le Goff quanto ao exercício da crítica documental mais profunda, a desconfiança dos manuscritos e a transformação de documentos em monumentos conforme sua utilização pelo poder5. Outra interessante abordagem encontra-se no nono capítulo, Interpretatio e o Domínio Romano na Lusitânia: O caso dos Lares do Fórum de Conimbriga, da pesquisadora Raquel de Morais Soutelo Gomes. A autora nos possibilitou romper com a visão tradicional de conquista e manutenção do poder romano somente por meio da força das legiões. Assim, através das práticas religiosas como a interpretatio, fomos chamados a problematizar o processo de incorporação dos nativos na dinâmica de poder efetuada por Roma. A situação segue uma indicação valiosa de Walter Pohl: a romanidade integrava diferentes comunidades, mas, 5

BLOCH, Marc. A crítica In: __________. Apologia da História ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 89-124; LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento In: __________. História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1996, p. 535-548.

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simultaneamente, não cancelava identidades regionais e étnicas. A medida pode ser encarada, portanto, como um discurso político que pregava a unidade do Império e que retirava as bases de legitimidade das identidades locais que buscassem a legitimidade ou o autogoverno6. O décimo capítulo, Resgate e construção da imagem de Alexandre, o Grande: Arriano de Nicomédia e sua “Anábase de Alexandre Magno” (Séc. II d.C.), elaborado por André Luiz Leme, ilumina as novas formas de se estudar a esfera política na sociedade romana, uma maneira de preencher as lacunas e promover um “refinamento” da História Política tradicional, como defendeu Christopher Macay7. A produção de Leme também demonstra como uma obra deve ser analisada dentro de seu contexto social de produção e os interesses existentes dos segmentos políticos em sua construção. Sendo assim, de forma objetiva e envolvente, André Luiz Leme constatou as relações político-culturais entre o princeps Adriano e Arriano de Nicomédia. Semíramis Corsi Silva, por sua vez, refletiu sobre as interações culturais nas áreas imperiais romanas. Em Sofistas gregos e poder imperial romano: reflexões sobre o testemunho de Flávio Filóstrato (século III d.C.), a autora analisou o conteúdo e a função retórica presente na obra biográfica intitulada Vida dos Sofistas, escrita por Flávio Filóstrato em meados do III século d.C. para desvelar o jogo de poder entre a esfera de poder romana e o grupo do qual o referido filósofo fez parte. De fato, como observou Graham Anderson, os sofistas foram importantes no período analisado para articular homens de letras a patronos com ambições e potencial políticos. Assim, o renascimento da sofística refletiu não apenas uma dimensão política, mas também de cunho cultural8. O décimo segundo capítulo retomou o âmbito religioso: o texto 6

POHL, Walter. Telling the difference: signs of ethnic identity In: REIMITZ, H. & POHL, W. (eds.). Strategies of Distinction: the construction of ethnic communities, 300-800. Transformation of the Roman World, vol. 2. Leiden: Brill, 1998, p. 1.

7

MACKAY, Christopher S. Introduction In: __________. Ancient Rome: a military and political history. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 1.

8

ANDERSON, Graham. Conclusion: Values and valuations In: __________. The second sophistic: a cultural phenomenon in the Roman Empire. London: Routledge, 1993, p. 233-242.

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Cristo como doulos. Relación de poder y la controversia por la imagen del Dios sufriente em los primeros siglos del cristianismo de Mariano Spléndido explorou o surgimento e o desenvolvimento da representação de Cristo-Escravo nas práticas do Cristianismo primitivo entre os anos 50 e 150 d.C. O processo de construção desta imagem foi demonstrado pelo autor como o resultado de interesses na hierarquização e organização das comunidades cristãs durante os séculos I e II d.C. Neste processo, as comunidades cristãs usaram tal recurso para delimitar uma imagem crística, uma das possíveis facetas das sobreposições hierárquicas desta época9. Raphael Leite Teixeira encerrou a seção de Antiguidade desta obra com o capítulo In hoc signo vinces: Constantino e a cristianização do exército romano (306-337). O autor percebeu como a cristianização gradual que ocorria nos exércitos romanos foi apropriada por Constantino e aplicada para o fortalecimento bélico de Roma e de seu prestígio político perante a sociedade. Assim, Teixeira mostrou a outra “face da moeda” quanto às comunidades cristãs, i.e., como o Cristianismo poderia dissolver comunidades tradicionais e ser usado para idealizar e/ou criar um grupo novo e coeso10. *** O primeiro capítulo da seção Medievo é de autoria de Otávio Luiz Vieira Pinto. O texto VICTOR AC TRIUMFATOR. Tradição, poder e administração no governo de Teoderico I Amálo (c.493–526) sumarizou as relações políticas entre Ravena e Constantinopla pouco após a conquista da Península Itálica pelos godos comandados por Teodorico I. Neste ínterim, o autor apresentou alguns desdobramentos para garantir a legitimidade do monarca, como a devolução das insígnias ao imperador. Em âmbito local, Teodorico teve que lidar com as relações de poder entre romanos e godos. A opção do governante foi a sociedade bicéfala: tomou os primeiros principalmente como administradores, e os segundos como servidores militares. 9

CONSTABLE, Giles. Preface In: WILLIAMS, Mark F. The Making of Christian Communities: In Late Antiquity and Middle Ages. London: Anthem Press, 2005, p. 1-3.

10 Id.

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Letícia Sousa Campos da Silva, autora do segundo capítulo intitulado O pensamento político nos reinos bárbaros: uma avaliação da perspectiva de P. D. King, verificou as contribuições do erudito supracitado quanto ao Regnum Francorum. A autora comparou as conclusões de King com as fontes e percebeu uma minimização da importância germânica nas novas formações sociais na Gália, além da ausência de um “pensamento político germânico” formal. Portanto, Pinto e Silva encontram-se engajados nos mais recentes estudos sobre as relações sociais entre grupos étnicos na Alta Idade Média encontradas nas fontes. Assim, “o discurso da alteridade - o discurso étnico - tornou-se uma chave para o poder político na Antiguidade Tardia e na Alta Idade Média Europeia”11. Em “Novo Davi”: a ascensão de Heráclio (c. 575-641) ao poder e o triunfo do Imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário(†c. 660), Guilherme Queiroz de Souza encerrou esta subseção e ofereceu aos leitores uma análise minuciosa da transposição da imagem de Davi ao imperador Heráclio. Para tanto, o cronista apontou as qualidades físicas, o espírito marcial, a ideia de “rei guerreiro” e o monarca como o combatente dos “inimigos da fé”, ou seja, os indivíduos avessos à ortodoxia. O capítulo de Tim Barnwell, Power and weakness: HamburgBremen in the ninth and eleventh centuries, ressaltou o processo de criação e consolidação da diocese de Hamburgo e Bremen entre os séculos XI e XII. Neste ínterim, Rimberto e Adão usaram várias estratégias literárias para afirmar o caráter inefável que propiciou a criação desta sede episcopal, como a Geografia, a literatura e a ordem do mundo. Ademais, até mesmo a fraqueza da sede e seus santos foram usados como recursos para afirmar a legitimidade e o poder desta sé Setentrional. Souza e Barnwell fizeram um resgate do contexto de criação dos textos e de como pesquisá-los adequadamente. Como Gabrielle Spiegel apontou há alguns anos, o debate pós-moderno abriu novos campos de observação, mas ocultou questões relevantes para a Idade Média, como a elencada por estes autores. Deste 11 THEUWS, Frans. Grave good, ethnicity and the rethoric of burial rites in Late Antique Northern Gaul In: DERKS, Tom & ROYMANS, Nico (eds). Ethnic Constructs in Antiquity: the Role of Power and Tradition. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2009, p. 292.

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modo, o foco num modelo epistemológico puramente linguístico tem ignorado a gênese das obras e as referências textuais dos agentes sociais, ou seja, a esfera de atividade dos historiadores12. The economic aspects of political power. A commentary to Egils saga, chapter 10, a cura de Santiago Barreiro, trabalhou com o conceito de poder político, i.e., a habilidade de ser obedecido sem o exercício da força, mas mantendo este elemento de forma latente. A ideia de econômico foi ressaltada a partir de uma conceituação abrangente, capaz de observar os meios de controle e apropriação de recursos por diferentes grupos num panorama específico de relações sociais contraditórias. Dada às ferramentas analíticas, Barreiro trabalhou o capítulo 10 da Egils saga (c.1225), excerto que abordou a atividade de Þórólfr Kveld-Úlfsson, os canais de circulação de riqueza no extremo Norte e as relações de poder entre a elite e os monarcas noruegueses. Neste ínterim, o autor concluiu sugerindo que a visão política do autor era um elemento necessário e importante para a composição das narrativas nórdicas no final do século XII e início do XIII13. Pablo Gomes de Miranda, por sua vez, encerrou a subseção germano-escandinava com o texto Representação guerreira e disputas da realeza norueguesa na Era Viking: análises dos conflitos políticos no Heimskringla. O autor estabeleceu duas relações binárias entre três monarcas noruegueses, a saber, Haraldr Hárfagri x Hákon Góði e Magnús inn Góði x Haraldr Harðraða, com a intenção de demonstrar as relações de força e poder entre reis e lideranças locais no contexto escandinavo. Neste âmbito, Miranda apontou principalmente os conflitos entre as perspectivas e valores religiosos cristãos e pagãos, e demonstra como o a religião era importante na Era Viking entre os primeiros governantes escandinavos quando expressava posições de poder14. O autor ofertou ainda alguns pontos conclusivos 12 SPIEGEL, G. M. History, historicism, and social logic of the text In: SPIEGEl, G. M. (ed.). The past as a text: the theory and practice of Medieval historiography. Baltimore: John Hopkins University Press, 1997, p. 15-16. 13 ANDERSSON, Theodore Murdock. Introduction In: __________. The growth of medieval icelandic sagas (1180-1280). Cornell: Cornell University Press, 2006, p. 1-19. 14 SUNDQVIST, Olof. An arena for higher powers. Cult buildings and rulers

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sobre a qualidade intrínseca do monarca como “rei guerreiro”, e afirmou que a marcialidade era uma condição sine qua non para o exercício da autoridade. Para dar início ao segmento de Península Ibérica, Rogério Ribeiro Tostes propôs o capítulo Representação política e debate institucional na Catalunha da Baixa Idade Média. O florilégio do autor destacou a transformação da paisagem institucional catalã no século XIII, sobretudo pela redução do personagem régio ao caráter unificador. Além desse perspectiva, o monarca perdeu seu primado como fonte intelectual da lei e foi reduzido ao papel ministerial. Elaine Cristina Senko ofertou o texto Uma análise do ideal e da prática da Iusticia através do Prólogo da Primeira Partida do rei Alfonso X, o Sábio (1221-1284), uma análise das premissas teóricas e jurídicas do rei Alfonso X. Entre os elementos destacados, a autora enfatizou a convivência pacífica e a tolerância dos nobres e do povo em relação ao rei, o guia eleito e escolhido por Deus. Tal instrumento atenuante visava à resolução de conflitos internos entre as coroas de Leão e Castela e ecoa uma importante consideração de Perry Anderson sobre o tema: “a justiça foi a modalidade central do poder político”15. O ofício do rei em Portugal: A função dos reis de Avis e suas relações com o “Stado Ecclesiastico”, de Douglas Mota Xavier Lima, discutiu os cenários de ampliação e de redefinição do poder régio no caso português. Ademais, Lima ressaltou ainda as disputas entre o poder temporal e espiritual da época, contexto complexo que levou a dinastia de Avis a desenvolver um projeto político que pretendia controlar a conduta nobiliárquica, clerical e da própria monarquia. Outrossim, os textos analisados demonstram que a figura régia foi sobreposta ao papel de Vigário de Deus na terra e de promotor do bem e da justiça, conforme a hierarquia terrestre.

in the Late Iron Age and the Early Medieval Period in the Mälar region In: STEINSLAND, Gro (ed.). Ideolog y and Power in the Viking and Middle Ages: Scandinavia, Iceland, Ireland, Orkney and the Faroes. Leiden: Brill, 2011, p. 163. 15 ANDERSON, Perry. The feudal mode of production In: __________. Passages from Antiquity to Feudalism. London: Verso, 2000, p. 152.

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O décimo artigo, A legitimação da eleição de D. João I no Portugal do século XV: As virtudes do Mestre de Avis e os atributos do ofício régio, aos cuidados de Mariana Bonat Trevisan, propôs uma análise da legitimação da dinastia de Avis em Portugal durante o século XV. A autora percorreu os textos da eleição régia de D. João nas Cortes de Coimbra (1385) e a valorização da concepção ascendente de poder em algumas obras cortesãs portuguesas posteriores. Trevisan ressaltou o ideal de escolha divina por vontade popular a partir das qualidades de D. João apontadas por diversas fontes de época. Lima e Trevisan fizeram um importante exercício, pois o pensamento político e a realidade não eram redutíveis entre si. Desse modo, foi preciso confrontar o pensamento político com o que os homens daquele tempo pensavam sobre o poder político16. A separação entre as ideias políticas e a realidade política na Idade Média é uma premissa muitas vezes negligenciada e que produz uma pesquisa desencarnada e emancipada do contexto histórico17. Nayhara Sepulcri, autora do capítulo Memories of Rome: papal power and patronage under Boniface VIII, abordou o pontificado do supracitado papa e os argumentos teológicos para legitimação da primazia da Igreja romana na Cristandade do Ocidente Medieval. Para tanto, a Igreja lançou mão das memórias pagãs e cristãs da Cidade Eterna para justificar seu lugar de domínio naquele contexto, além da insistência na continuidade do pensamento, das ideias e dos princípios governativos do corpo de Cristo. Deste modo, a autoridade política derivava de onde a autoridade final estava assentada, ou seja, da própria figura papal18. Curiosamente, 16 DUNBABIN, Jean. Hervé de Nédellec, Pierre de la Palud and France’s place in Christendom In: CANNING, Joseph & OEXLE, Otto Gerhard (eds.). Political Thought and the realities of Power in the Middles Ages - Politisches Denken und die Wirklichkeit der Macht in Mittelalter. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1998, p. 159-160. 17 CANNING, Joseph & OEXLE, Otto Gerhard. Preface In: CANNING, Joseph & OEXLE, Otto Gerhard (eds.). Political Thought and the realities of Power in the Middles Ages - Politisches Denken und die Wirklichkeit der Macht in Mittelalter. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1998, p. 6. 18 CANNING, Joseph. Conclusion In: _________. Ideas of Power in the Late Middle Ages, 1296-1417. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 295.

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o trabalho de Tostes presente na subseção anterior vai de encontro ao cenário da pesquisa de Sepulcri, o que torna obrigatória a leitura dos dois trabalhos e comprova a circularidade da obra como um todo. A hagiografia e a propagação do “discurso religioso”– o exemplo da Legenda Áurea, por Tereza Renata Silva Rocha, abordou a ideia de hagiografia e a estratégia global da Igreja de fixação de calendários e dos cultos santorais para reforço das doutrinas cristãs e a refutação das heresias. A autora lançou mão da Legenda Áurea, indício que serviu em época como uma ferramenta política e religiosa dos dominicanos para defender estes pregadores dos ataques seculares e de outros grupos monásticos e clericais. O trabalho de Rocha faz parte de uma tendência recente: após gozar de muito prestígio na Idade Média, a Legenda Áurea sofreu grande oposição a partir do século XVI nos meios protestantes por ser considerada muito católica, pelo estilo do latim e por ser uma fonte secundária da vida dos santos e da história da Igreja. Tal preconceito perdurou deveras, pois poucos estudos foram feitos sobre esta importante obra medieval até a década de 80. Assim, a proposta da autora é de vanguarda e pode ser taxada como uma seara acadêmica relativamente inculta e bastante fértil19. Por fim, Muriel Araujo Lima Garcia contribuiu com o capítulo Colour, ornamental function and signification in Aberdeen University Library MS 24 (Aberdeen Bestiary). A autora abdicou das análises mais tentadoras quanto ao uso das cores e de seus atributos simbólicos para enfatizar a importância do contraste entre as cores, o ritmo que elas imprimem (que conferiam unidade e continuidade ao bestiário) e a utilização da ornamentação no sentido retórico da elocutio. Garcia superou o preconceito de alguns historiadores, que enxergam a arte como reflexo de sua sociedade ou como uma representação mais ou menos fiel da realidade20. Assim, a autora afirmou que em muitas ocasiões um livro era comissionado por um patrono rico, laico ou religioso, como símbolo de poder 19 REAMES, Sherry L. Legenda Aurea In: KLEIHENZ, Christopher (ed.). Medieval Italy: an encyclopedia. Vol. 2. London: Routledge, 2004, p. 628. 20 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: EDUSC, 2007.

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e status. Porém, a obra deveria ser ornamentada de forma a valorizar o conteúdo expresso. Neste caso, o bestiário reflete e tenta decifrar o mundo e a vontade divina, um objetivo que por si só despenderia todo esmero e dedicação. *** Como parte do Projeto Editoral Alumni, garantimos aos leitores que este é apenas o primeiro volume de muitos outros que virão. Os trabalhos para os dois próximos volumes já foram iniciados e serão lançados nos próximos anos. Agradecemos a confiança depositada pelos colaboradores e convidamos outros colegas para participar conosco deste fórum permanente de diálogo.

Cordialmente,

Vitória, 22 de Abril de 2013. Carlos Eduardo da Costa Campos & Renan Marques Birro

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I O Egito e seus vizinhos: relações de poder nas Cartas de Amarna

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Liliane Cristina COELHO1

s egípcios sempre mantiveram contato com as populações de seu entorno, mas durante o Reino Novo (c. 1550-1070 a.C.)2 , período de maior expansão territorial e que ficou conhecido como Império Egípcio, tais relações são melhor documentadas. No final da XVIII Dinastia, entre os últimos anos do reinado de Amenhotep III (c. 1391-1353 a.C.) e o início do período de Tutankhamon (c. 1335-1323 a.C.), a troca de correspondências entre os reis egípcios e governantes dos Estados aliados foi bastante abundante e algumas destas cartas foram localizadas na cidade de Akhetaton, centro administrativo e religioso3 do Egito durante o reinado de Amenhotep IV/ Akhenaton 1 Mestre e doutoranda em História Antiga pela Universidade Federal Fluminense, sob orientação do professor doutor Ciro Flamarion Cardoso. Atualmente desenvolve a pesquisa “Mudanças e Permanências no Uso do Espaço: a cidade de Tell el-Amarna e a questão do urbanismo no Egito antigo”, com auxílio do CNPq. E-mail: [email protected] 2

As datas seguem a cronologia proposta por BAINES, J. & MÁLEK, J. O mundo egípcio: deuses, templos e faraós. Madri: Ediciones del Prado, 1996. v.1. p.36.

3

Optei por utilizar “centro administrativo e religioso” e não “capital” porque não

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(c. 1553-1335 a.C.). No início do governo deste faraó o Egito era um dos Estados mais poderosos do mundo antigo e uma conexão importante em um complexo sistema de relações diplomáticas. As fronteiras egípcias se estendiam desde a quarta catarata do Nilo, na Núbia, até o Eufrates, ao Norte, numa distância de aproximadamente 3200 quilômetros4. O modo de exercer o poder no sul e no norte, porém, era diferente. Enquanto no sul existia uma dominação de fato, sendo o território governado por funcionários egípcios, no norte havia poderes locais estabelecidos, sendo o poder egípcio exercido por meio da diplomacia. Tais relações são conhecidas por meio de um conjunto de documentos, descoberto em 1887 por uma camponesa que vasculhava as ruínas da antiga cidade de Akhetaton em busca de materiais que pudessem ser utilizados como fertilizantes no campo (sebak, em árabe)5 segundo algumas fontes, e que denominou-se Cartas de Amarna. Tais cartas correspondem, na realidade, a tabletes escritos em cuneiforme e são uma pequena parte da correspondência trocada entre os faraós e reis de Estados da Síria-Palestina. Atualmente são conhecidos 382 tabletes, dos quais 350 são cartas ou listas que deveriam estar anexadas às cartas e os demais constam de contos ou relatos mitológicos, possivelmente relacionados ao aprendizado da escrita utilizada nos documentos por escribas egípcios, e que não constam na compilação mais recente das cartas, organizada por William há, na língua egípcia, palavras que possam ser traduzidas como “capital”. O uso do termo, porém, é comum nas publicações que têm como tema a cidade egípcia. Ver, por exemplo, UPHILL, Eric. Eg yptian towns and cities. Aylesbury: Shire Publications, 1988. Para uma discussão detalhada sobre o tema, ver: ESPINEL, A. D. Ciudades y urbanismo en el Egipto antiguo (ca. 3000-1069 a.C.). Stud. Hist., Ha antig. Salamanca, n. 20, p. 15-38, 2002. 4

KENDALL, T. Foreign relations. In: FREED, R. E. ; MARKOWITZ, Y. J. & D’AURIA, S. H. Pharaohs of the Sun. Akhenaton, Nefertiti, Tutankhamon. Boston : Museum of Fine Arts, 1999. p. 157.

5

Para maiores informações, ver, por exemplo: SHAW, Ian & NICHOLSON, Paul. British Museum dictionary of ancient Eg ypt. Cairo: The American University in Cairo Press, 1996. p. 27 e ARAÚJO, L. M. de (dir). Dicionário do Antigo Egipto. Lisboa: Editorial Caminho, 2001. p. 185.

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Moran6. A linguagem utilizada é o cuneiforme acadiano ou babilônico, a “língua franca” do século XIV a.C., modificado pelo emprego de termos específicos de cada região7. Do conjunto, apenas nove cartas foram “escritas” pelo faraó, sendo todas as outras correspondências recebidas pelos reis egípcios8. Para este artigo, analisamos o conjunto de cerca de quarenta cartas que foram enviadas ou recebidas dos Grandes Reis de Babilônia, Assíria, Mitanni, Hatti, Arsawa (Anatólia) e Alashiya (Chipre)9, e que ajudam a esclarecer como eram as relações do Egito com outros Estados do Antigo Oriente Próximo no período corresponde ao final da XVIII Dinastia, bem como a correspondência trocada entre o governante de Biblos, RibHadda, e o Egito, o que abrange um conjunto de cerca de setenta cartas que mostram a situação da Síria-Palestina no período. Antes de passarmos às cartas, no entanto, faremos uma breve descrição da cidade de Akhetaton, local do arquivo no qual a correspondência foi localizada. Akhetaton: o local de descoberta das Cartas A cidade de Akhetaton, conhecida atualmente como Tell elAmarna ou simplesmente Amarna10, foi erigida no Médio Egito 6

MORAN, W. L. Les Lettres d’el-Amarna. Paris: Les Éditions du Cerf, 2004. p. 17.

7

Do conjunto, há algumas cartas que não foram escritas em acadiano. São elas a EA 15 (assírio), EA 24 (hurrita) e EA 31-32 (hitita). Ibidem. p. 22.

8

HUEHNERGARD, J. & IZRE’EL, S. (ed.) Amarna Studies: collected writings. Winona Lake (Indiana): Eisenbrauns, 2003. p. 238.

9

Ibidem. p. 238.

10 Thomas Eric Peet e Charles Leonard Woolley argumentam que a primeira denominação é uma corruptela. Segundo os autores, a antiga Akhetaton fica no distrito conhecido pelos nativos como el-Amarna, cujas cidades principais na margem oriental do Nilo são, a partir do norte: et-Til, el-Hag Kandil, elAmariya e el-Hawata. Por uma questão de distinção, os moradores do distrito costumam referir-se às cidades com seu nome seguido por aquele do distrito. Et-Til do distrito de el-Amarna, assim, se transforma em Til el-Amarna. Quando os primeiros visitantes europeus chegaram ao local e perguntaram o nome daquela localidade, os habitantes disseram ser Til el-Amarna, o que foi tomado erroneamente como Tell el-Amarna (tell aqui significando morro). O nome, então, passou a ser utilizado para designar a cidade de Akhetaton e seus subúrbios.

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provavelmente a partir do ano 5 do reinado Amenhotep IV/ Akhenaton. Para delimitar o local – que teria sido escolhido pelo próprio Aton, o deus cultuado pelo faraó – foram erigidas inicialmente duas estelas de fronteira, uma ao norte e outra ao sul, que informam as primeiras edificações a serem levantadas no local atualmente denominado Cidade Central e que era conhecido pelos egípcios como “a ilha” ou “o distrito”. Dentre estas construções podemos contar o Pequeno e Grande Templos dedicados ao Aton e as Casas do Faraó – que constam de um palácio ao norte e uma casa na Cidade Central. Outras estruturas indicadas nos textos – como os sunshades – não foram identificadas pela Arqueologia, mas por certo estariam localizadas próximo aos templos. Há também uma indicação sobre o local de construção da tumba real e daquelas dedicadas aos principais funcionários reais, em um wadi distante alguns quilômetros da Cidade Central11. Um ano após a fundação inicial, o sítio foi melhor delimitado por meio da instalação de mais doze estelas de fronteira. Houve também a substituição da estela do sul do ano 5 devido ao grande desgaste sofrido pelo monumento em razão da rocha de baixa qualidade na qual foi esculpido. Próxima a este sítio está uma vila murada, na entrada do deserto, que foi o local de habitação dos trabalhadores responsáveis pela construção das tumbas atualmente conhecidas como Tumbas de Amarna. Há ainda, próximo à Vila dos Trabalhadores, um pequeno agrupamento de casas que, devido aos achados arqueológicos presentes em seu interior, foi denominada Vila de Pedra12. Porém, como apenas uma pequena parte da antiga cidade fica próxima a et-Til, seria melhor usar para designá-la, segundo Peet e Woolley, o termo mais geral, ou seja, el-Amarna. Ver: PEET, T. E. & WOOLLEY, C. L. op. cit. p. v. 11 Uma tradução para a língua portuguesa de tais estelas está sendo elaborada pela autora como parte de sua pesquisa de doutorado. Para tal, está sendo utilizada a edição hieroglífica presente em: MURNANE, William J. & VAN SICLEN III, C. C. The Boundary Stelae of Akhenaten. London: Kegan Paul International, 1993. 12 Uma publicação completa sobre a Vila de Pedra está em preparação, sendo seu lançamento previsto para dezembro de 2012. Um estudo preliminar foi publicado em: STEVENS, A. The Amarna Stone Village Survey and life on the urban periphery in New Kingdom Egypt. Journal of Field Archaeolog y, Boston: Boston University, v. 36, n.2. p. 100-118, 2011.

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Sem sair do alinhamento determinado pelas estelas de fronteira, a cidade de Akhetaton se desenvolveu de maneira orgânica, ou seja, sem obedecer a um planejamento inicial, que parece ter existido apenas para a Cidade Central, ou “a ilha”. Ao longo na proximidade imediata do Nilo, nos cerca de onze quilômetros pelos quais a cidade se estende de nordeste a sudeste, há núcleos habitacionais, ou bairros, conhecidos hoje como Subúrbio do Norte, Cidade Principal e Subúrbio ou Cidade do Sul, que se desenvolveram, então, organicamente. A figura 1 mostra a configuração atual da cidade. O sítio de Akhetaton é conhecido desde o início do século XVIII. A primeira referência moderna à cidade foi encontrada nos diários de viagem do jesuíta francês Claude Sicard, que visitou o Egito em 1714, e o primeiro mapa detalhado do assentamento urbano foi publicado por Napoleão Bonaparte na Description de l´Égypte, obra que resultou de sua expedição ao país iniciada em 1798. Entre os primeiros egiptólogos e viajantes a visitarem o sítio estão John Gardner Wilkinson, James Burton, Jean-François Champollion, Robert Hay, Nestor l’Hôte e Karl Richard Lepsius13. O interesse por estudar e entender o sítio por meio da Arqueologia, porém, teve início no final do século XIX. A primeira área escavada foi a correspondente às tumbas construídas para o rei e sua família e àquelas construídas para os nobres da cidade. Esta teve início em 1883, sob a direção de Gaston Maspero, e a publicação dos resultados, em seis volumes publicados pela Egypt Exploration Society, começou em 1892 sob a responsabilidade de Norman de Garis Davies. As escavações na cidade principal começaram na temporada de 1891-92, sob a direção de William Matthew Flinders Petrie. Os locais explorados pelo arqueólogo foram o templo dedicado ao Aton, o Palácio Real e algumas casas privadas14. Os resultados desta primeira temporada foram publicados na obra intitulada Tell el-Amarna15. Ao longo do século XX equipes britânicas e alemãs coordenaram escavações na cidade e desde o ano de 1977 o 13 PEET, T. E. & WOOLLEY, C. L. The City of Akhenaten I. Excavations of 1921-22 at el-Amarneh. London: The Egypt Exploration Society, 1923. p. v. 14 PEET, T. E. & WOOLLEY, C. L. p. v. 15 PETRIE, W. M. F. Tell el Amarna. London: Methuen & Co., 1894.

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arqueólogo britânico Barry J. Kemp supervisiona os trabalhos na localidade. Relatórios anuais são publicados no The Journal of Egyptian Archaeology, editado pela Egypt Exploration Society, de Londres, e as atualizações mais recentes são disponibilizadas no sítio eletrônico do Amarna Project, também coordenado por Kemp.

Figura 1: Mapa da cidade de Akhetaton. Referência: Amarna Project: Amarna the place. Disponível em: http://www. amarnaproject.com/pages/amarna_the_place/index.shtml Acesso em 28set12.

O Egito e os Grandes Poderes: as relações internacionais por meio das Cartas de Amarna As Cartas de Amarna, junto com documentos contemporâneos ugaríticos e hititas16 e outras fontes egípcias, são documentos 16 Refiro-me aqui ao arquivo encontrado na cidade de Bogazkale (Anatólia), datado do reinado de Murshilish II, filho de Shuppiluliumash, o governante

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valiosos para a história da Síria e da Palestina durante parte do século XIV a.C.17. A correspondência cobre cerca de 25 a 30 anos, entre os últimos anos de reinado de Amenhotep III e o primeiro ano de governo de Tutankhamon18, sendo mais abundante durante o reinado de Akhenaton. Segundo nos informa o assiriólogo americano William Moran, que é autor da tradução mais recente dos documentos, apesar de escritas em acadiano, as cartas são fontes valiosas sobre o cananita, que tem no hebraico bíblico um de seus dialetos19. Em 1896 Hugo Winckler, um orientalista alemão, realizou a primeira transliteração e tradução dos textos contidos nos tabletes até então conhecidos20. Em 1907, após novas descobertas que aumentaram o número de tabletes para 358 e quando os estudos amarnianos atingiram seu auge, o assiriólogo norueguês Jorgen Alexander Knudtzon publicou o primeiro volume de sua obra Die El-Amarna Tafeln, que até hoje é uma referência importante sobre as cartas e que estabeleceu não apenas a numeração ainda utilizada para sua organização, que consta das letras EA seguidas pelo número correspondente, como também a organização hitita que aparece nas Cartas de Amarna. Trata-se, no entanto, de um grupo muito fragmentário de documentos, mas que auxiliam para uma reconstrução das relações diplomáticas no final do século XIV a.C.. DODSON, A. Amarna sunset: Nefertiti, Tutankhamun, Ay, Horemheb and the Egyptian counter-reformation. Cairo: The American University in Cairo Press, 2009. p. 53. 17 MORAN, W. L. op. cit. 2004. p. 237-238. 18 Alguns autores consideram que as últimas Cartas datam do ano três de Tutankhamon, argumentando que este foi o ano da transferência da corte novamente para Tebas e consequente abandono de Akhetaton. A datação das cartas, no entanto, é bastante difícil, pois há assuntos, como as corregências, que devem ser levados em consideração e para os quais não há documentos comprobatórios. Sobre o ano três de Tutankhamon ver KOZLOFF, A. et al. Aménophis III le Pharaon-Soleil. Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1993. p. 48. Já sobre a corregência ver, por exemplo, ALDRED, C. Akhenaten: king of Egypt. London: Thames & Hudson, 2001. p. 191. 19 MORAN, W. L. op. cit. 2004. p. 223. A tese de doutoramento de Moran versa justamente sobre este tema. Para maiores informações, ver: MORAN. W. L. A syntactical study of the dialect of Byblos as reflected in the Amarna Tablets. In: HUEHNERGARD, J. & IZRE’EL, S. (ed.) Amarna Studies: collected writings. Winona Lake (Indiana): Eisenbrauns, 2003. p. 1-130. 20 MORAN, W. L. op. cit. 2004. p. 15.

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cronológica e geográfica dos tabletes21. Foi Knudtzon também quem estabeleceu, em função de diferenças nas formas de tratamento e de linguagem, a divisão das cartas em dois grandes grupos: no primeiro está a correspondência trocada com os Estados aliados (um grupo pequeno de cerca de 40 cartas) e no segundo, que soma cerca de 350 cartas, estão as missivas trocadas com os “vassalos” ou Estados subordinados. Os Estados aliados a que aqui nos referimos são22: 1. Babilônia (EA 1-14): também chamada Karadunyiash ou Sanhar, era governada desde o final do século XVI a. C. por uma dinastia cassita. Os reis que aparecem nas Cartas são Kadashman-Enlil I e Burra(/Burna)-Buryiash II. 2. Assíria (EA 15-16): tinha como governante na época das Cartas Assur-uballit. 3. Mitanni (EA 17; 19-30): também conhecido como Hanigalbat e como Nahrin, situava-se no norte da Síria, entre os rios Tigre e Eufrates. Sua cidade principal era Washukanni e o governante que aparece nas Cartas é Tushratta. 4. Arzawa (EA 31-32): situava-se na costa leste da Anatólia e a oeste da esfera de influência hitita. 5. Alashiya (EA 33-40): era um reino situado em Chipre, fonte de cobre para os egípcios. 6. Hatti (EA 41-44): situado no leste da Anatólia, tinha Hattusha como cidade principal. O governante que aparece nas Cartas, e que liderou a expansão do Hatti, é Shuppiluliumash.

Já dentre os “vassalos” podemos contar pequenos reinos da Síria-Palestina que estavam sob domínio egípcio. Na figura 2 são mostrados desenhos de linha produzidos por Petrie e nos quais é possível observar como são estes documentos.

21 Ibidem. p. 15. 22 Os dados sobre os Estados aliados foram retirados de: COHEN, R. & WESTBROOK, R. (ed.) Amarna Diplomacy: the beginnings of internacional relations. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2000. p. 6-7.

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Figura 2: Desenhos de linha, elaborados por Petrie, que mostram duas das Cartas de Amarna localizadas por sua equipe durante as escavações de 1891-92. Referência: PETRIE, W. M. F.. Tell el Amarna. London: Methuen & Co., 1894. PL XXXI.

Algumas das cartas enviadas por governantes de Estados “vassalos” referem-se a pedidos de ajuda ao faraó, especialmente no que se refere a tropas para evitar invasões ou expulsar invasores. Este tema será tratado em seguida. Já nas cartas trocadas entre o rei do Egito e governantes de Estados aliados, os assuntos tratados são os mais diversos, mas o cabeçalho das cartas tem uma forma geral: “Diga a X. Assim disse Y.”23. Os governantes egípcios sempre são tratados por seu prenome, ou nome de trono, já que esta era a maneira convencional de tratamento entre os reis24. A forma de tratamento mais comumente utilizada é “meu irmão”, e há saudações que remetem à família e aos bens do governante em questão, conforme podemos apreender a partir da saudação da carta EA 1 transcrita abaixo, justamente uma das poucas enviadas pelo faraó, no caso Amenhotep III, para um governante estrangeiro: 23 Ibidem. p. 28. 24 DODSON, A. Amarna sunset: Nefertiti, Tutankhamun, Ay, Horemheb and the Egyptian counter-reformation. Cairo: The American University in Cairo Press, 2009. p. 55.

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Diga a Kadashman-Enlil, rei de Kardunishe, meu irmão: Assim (disse) Nibmuarea25, grande rei, rei do Egito, teu irmão. Para mim, tudo está bem. Para ti, que tudo esteja bem. Para tua casa, para tuas mulheres, para teus filhos, teus Grandes, teus cavalos, teus carros, para o teu país, que tudo esteja muito bem. Para mim, tudo está bem. Para minha casa, para minhas mulheres, para meus filhos, meus Grandes, meus cavalos, meus carros, (e) as numerosas tropas, tudo está bem, e no meu país tudo está bem26.

Os assuntos mais recorrentes nas missivas são as declarações de amizade, ou a manutenção de relações diplomáticas provenientes de reinados anteriores; a discussão das listas de presentes relacionadas a tal amizade; os pedidos de casamento, ou os casamentos diplomáticos; e os presentes trocados no momento da união27. Com menos frequência há pedidos de ouro ao rei egípcio e também cartas cujo objetivo é informar a vitória sobre um inimigo comum. Durante o reinado de Amenhotep III (c. 1391-1353 a.C.) o controle egípcio sobre a Síria-Palestina estava dividido em três áreas: a região que inclui os modernos Israel, Palestina, Jordânia e a costa libanesa até Beirute, conhecida como “Canaã”, que era controlada pelo governador de Gaza; a região do atual Líbano, que tinha como responsável o governador de Kumidu; e a região de Simurru (na Síria), área também conhecida como Amurru e que corresponde às terras ao norte de Ugarit, cujo responsável era o governador de Simurru28. Durante o Período de Amarna, 25 Nibmuarea (Nebmaatra, “o Senhor da Verdade é Ra”) é o prenome de Amenhotep III. 26 MORAN, W. L. op. cit. 2004. p. 59. 27 Ibidem. p. 33. 28 Conforme SILVERMAN, D. P.; WEGNER, J. W. & WEGNER, J. H. Akhenaten and Tutankhamon: revolution and restoration. Philadelphia: University of Pennsylvania Museum of Archaeology and Antropology, 2006. p. 153. Outros autores, como William Murnane, egiptólogo especialista no Período de Amarna, afirmam que a forma como o império asiático estava subdividido não é conhecida plenamente, e nem mesmo em quantas províncias se baseava esta divisão. Ver, por exemplo, MURNANE, W. J. Imperial Egypt and the limits of power. In: COHEN, R. & WESTBROOK, R. (ed.) Amarna Diplomacy: the beginnings of

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no entanto, a hegemonia egípcia na região da Síria-Palestina foi quebrada. O crescimento militar de Estados aliados como a Assíria e o Hatti foi negligenciado pelos últimos faraós da XVIII Dinastia29. Tal afirmativa pode ser confirmada ao analisarmos a missiva EA 41, na qual fica clara a insatisfação do rei do Hatti com o novo governo egípcio: [Assim (diz) o Sol], Shuppiluliumash, g[rande] rei, [rei do Hatti]. Diga a Hurey[a30, o rei do Eg]ito, meu irmão: (...) Agora, meu irmão, [t]u estás no trono de teu pai, e, assim como teu pai e eu estávamos interessados ​​na paz entre nós, assim agora tu e eu deveríamos ter amizade um pelo outro. O desejo eu expressei a teu pai, eu expresso a meu irmão também. Ajudemonos um ao outro31.

Já na carta EA 17 há uma menção a uma vitória de Mitanni sobre os hititas, o que comprova o crescimento do Estado aliado: [O mais tardar n]o ano seguinte, no entanto, ... de meu irmão toda a terra do Hatti. Quando o inimigo se aproximava do [meu] país, Tesshup, meu Senhor, deu-lhe em meu poder, e eu venci. Não há um que retor[nou] ao seu próprio país32.

Tais cartas confirmam a importância do Egito como um grande Estado no cenário do Antigo Oriente Próximo durante o século XIV a.C. ao mesmo tempo em que mostram a insatisfação dos governantes dos Estado aliados com o governo de Amenhotep IV/ Akhenaton ou de Tutankhamon, que pareciam não se importar com a manutenção das alianças estabelecidas por seus antecessores, se levarmos em consideração principalmente a missiva EA 41, parcialmente transcrita acima. Em alguns casos, como por exemplo no do Hatti, a relação que se rompeu durante este período só foi restabelecida cerca de um século depois, por meio de um casamento diplomático entre o faraó Ramsés II e internacional relations. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2000. p. 108. 29 HUEHNERGARD, J. & IZRE’EL, S. op. cit. p. 223-224. 30 Hureya é um apelido “carinhoso” de Akhenaton ou de Tutankhamon. 31 MORAN, W. L. op. cit. 2004. p. 210-211. 32 Ibidem. p. 110-111.

12 • O Egito e seus vizinhos: relações de poder nas Cartas de Amarna

uma princesa hitita. Os casamentos diplomáticos, não obstante, são um dos outros assuntos bastante recorrentes nas cartas. Significativo neste sentido é conjunto de correspondências trocadas entre o faraó Amenhotep III – há referências nas Cartas a pelo menos quatro casamentos entre este faraó e princesas estrangeiras33 – e o rei babilônico Kadashman-Enlil. Em cinco missivas os governantes discutem a questão do casamento, que é colocado de diferentes maneiras pelos governantes. Na primeira carta (EA 1), enviada pelo faraó ao rei babilônico, Amenhotep III responde a KadashmanEnlil uma questão colocada em uma correspondência anterior, infelizmente não localizada: Diga a Kadashman-Enlil, rei de Kardunishe, meu irmão: Assim (fala) Nibmuarea, grande rei, rei do Egito, seu irmão. (...) “Tu me pedes agora a minha filha em casamento, mas minha irmã que meu pai te deu está lá, contigo, e ninguém a viu (de maneira a saber) se ela atualmente está viva ou se ela está morta.” Essas são tuas palavras que tu me escreveste sobre o tablete. Mas tu já enviaste aqui um homem importante que conheça a tua irmã, que poderia falar com ela e identificá-la?34

Enquanto o rei babilônico reclama não ter notícias de sua irmã, o faraó se defende dizendo que ele deveria mandar então alguém que a conhecesse e que pudesse identifica-la, pois apenas dessa maneira poderia confirmar que ela continuava viva. A reclamação de Kadashman-Enlil, no entanto, é bem fundamentada, pois se uma irmã sua já havia sido dada em casamento ao faraó, por que ele haveria de querer também uma filha sua para o mesmo fim? A relação entre os governantes, no entanto, é mantida e em outra carta (EA 3) vemos que, apesar da desconfiança inicial, o rei babilônico deu sua filha em casamento a Amenhotep III: Quanto à moça, minha filha, sobre a qual tu escreveste para mim para um casamento, ela se tornou uma mulher; está pronta para casar. Simplesmente envia uma delegação para busca-la. 33 WEINSTEIN, J. M. Egypt and the Levant in the Reign of Amenhotep III. In: O’CONNOR, D. & CLINE, E. H. Amenhotep III: perspectives on his reign. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1998. p. 225. 34 Ibidem. p. 59.

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Anteriormente, meu pai te mandou um mensageiro, e tu não o mantiveste por um longo tempo. Tu o mandaste embora rapidamente, e tu também enviaste aqui, ao meu pai, um presente em tua homenagem.35.

Os casamentos diplomáticos incluíam também a troca de presentes, aqui chamados de “presente em tua homenagem”. Entre as cartas há várias listas que tratam especificamente deste assunto, como a que encontramos em EA 14, que trata do envio de “presentes” em homenagem ao rei babilônico Burna-Buriyash, quando este o enviou sua filha em casamento. Trata-se de uma longa lista, na qual aparecem itens como peças de ouro, de cobre, de bronze, estatuetas femininas, e recipientes dos mais variados tipos. Em outra carta (EA 4), Kadashman-Enlil questiona Amenhotep III sobre uma resposta dada a ele a respeito de seu pedido para se casar com uma das filhas do faraó. Segundo o rei babilônico, um rei pode fazer o que quiser, sem que ninguém possa falar nada sobre suas decisões: Além disso, meu irmão, quando te escrevi a propósito de meu casamento com tua filha, de acordo com teu hábito de não dar (uma filha), tu me escreveste nestes termos: “Historicamente, nenhuma filha de um rei do Eg[ito] é dada a quem quer que seja.” Por que n[ão]? Tu és é um rei, tu fazes o que gosta. Se tu deres uma menina, quem teria qualquer coisa a dizer?36.

O questionamento de Kadashman-Enlil é pertinente, já que o faraó não explica os motivos que o levam a não dar uma filha em casamento, conforme o rei babilônico deixa claro em sua missiva. Amenhotep III diz apenas que se trata de um costume egípcio, o que leva o governante estrangeiro a afirmar, em outro momento na mesma carta, que se o faraó mandasse qualquer moça bonita dizendo ser sua filha todos acreditariam e ele não precisaria dar explicação alguma:

35 Ibidem. p. 66. 36 Ibidem. p. 68.

14 • O Egito e seus vizinhos: relações de poder nas Cartas de Amarna

Uma vez que a mensagem me foi transmitida, eu escrevi o seguinte para [meu irmão]: “As filhas adultas [de alguém], belas mulheres, deverão estar disponíveis. Envia-me uma bela mulher como se fosse [t]ua [filha]. Quem poderá dizer: ‘Não é a filha do rei!’?”37

Para Samuel A. Méier, especialista em temas relacionados ao Antigo Testamento bíblico, os casamentos diplomáticos eram importantes para a manutenção das alianças entre estados38, o que leva a uma discussão sobre quais as consequências de um rei egípcio não enviar sua filha para se casar com um rei estrangeiro. O autor afirma que, talvez, a troca de princesas não tivesse necessariamente o mesmo significado para todos os atores internacionais, e por isso tal fato não levava a quebras nas relações entre o Egito e os outros Estados da Síria-Palestina. A troca de princesas por presentes, por exemplo, poderia ser uma alternativa para este impasse. Menções a casamentos anteriores de princesas estrangeiras com reis egípcios também são encontradas nas cartas. Em EA 29, por exemplo, uma princesa do Mitanni é citada na troca de correspondências entre Amenhotep IV e Tushratta: [Diga a Naphurereya39, rei do Egito, m]eu irmão, meu filho, que [eu] amo e que me a[ma: Mensagem de Tushratta], grande [rei], re[i de Mitann]i, teu irmão, teu padrasto, que o ama. (...) Para Tadu-Heba, minha filha, que tudo esteja bem40.

Em outro trecho desta missiva o rei babilônico procura confirmar os laços de amizade estabelecidos desde o reinado de seu avô, Artatama, com os governantes egípcios. Ele se refere, quando menciona a correspondência constante entre ele e Amenhotep III, à rainha Tyi, esposa de Amenhotep III e mãe 37 Ibidem. p. 68. 38 MEIER, S. A. Diplomacy and internacional marriages. In: COHEN, R. & WESTBROOK, R. (ed.) Amarna Diplomacy: the beginnings of internacional relations. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2000. p. 170. 39 Naphurereya (Neferkheperura, “Belo em suas formas é Ra”) é o prenome de Amenhotep IV. 40 MORAN, W. L. op. cit. 2004. p. 179.

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de Akhenaton, que ele diz saber muito bem da situação a que ele faz referência. Tushratta menciona o fato de Tyi ser a esposa principal e preferida de Amenhotep III, e por isso conhecedora da política externa praticada por seu marido, o que faz da rainha uma mulher muito importante naquele contexto. Como não há uma resposta de Akhenaton que possa ser analisada, ficamos na dúvida sobre ser esta uma declaração unilateral ou recíproca de amizade. Por fim, resta-nos falar justamente sobre as declarações recíprocas de amizade. Este é o tema da carta EA 9, com certeza direcionada a Tutankhamon pelo rei babilônico Burna-Buriyash: Diga a um Nibhurrereya41, o rei do Eg[ito], meu [irmão]: Assim (diz) Burra-Buriyas rei de Karaduniyas teu irmão: Para mim está tudo bem. Para ti, para tua casa, tuas mulheres, teus filhos, teu país, teus Grandes, teus cavalos, teus carros, que todos estejam muito bem. A partir do momento (em que) meus ancestrais e teus ancestrais fizeram uma declaração de amizade mútua, eles têm enviado belos presentes como homenagem e nunca recusaram um pedido de qualquer coisa de belo. Meu irmão frequentemente enviava duas minas de ouro como presente de homenagem. Agora, se o ouro é abundante, envia-me tanto quanto os teus antepassados, mas se é raro, envia-me metade do que teus antepassados ​​enviavam.42

Vemos, assim, que a manutenção das relações de amizade entre o Egito e os Estados aliados passava não apenas pelos casamentos diplomáticos, tal como discutido anteriormente, mas também pela troca de presentes. Na carta EA 9, parcialmente transcrita acima, o pedido é por uma quantidade de ouro semelhante àquela que era enviada pelos governantes anteriores. Em outros casos, como em EA 3, cujo tema principal é o casamento, o ouro é também o desejo do rei estrangeiro, mas este não usa como argumento a manutenção da amizade, como em EA 9: o ouro é necessário para que ele possa terminar de construir um novo templo: 41 Nibhurrereya (Nebkheperura, “o Senhor das transformações é Ra”) é o prenome de Tutankhamon. 42 MORAN, W. L. op. cit. 2004. p. 80-81.

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Por que tu enviaste duas minas de ouro? Neste momento meu trabalho para o templo é considerável, e eu estou muito ocupado com a sua execução. Envia-me muito ouro. E tu, de tua parte, tudo que tu quiseres de meu país, escreva-me, a fim de que tudo possa ser feito para ti.43

De uma maneira ou de outra, no entanto, a manutenção das relações internacionais passa pelos presentes, que são também dados em troca das princesas estrangeiras. Isto não é o mesmo que se observa na correspondência com os Estados vassalos, conforme discutitemos a seguir. A troca de cartas entre o Egito e Biblos: Rib-Hadda, “um servidor fiel”

As relações do Egito com os Estados vassalos se configuram de maneira diferente da anteriormente descrita, quando nos referimos aos Grandes Poderes do século XIV a.C.. À primeira vista o que facilmente diferencia esta relação é a forma de tratamento dada ao faraó pelos governantes estrangeiros: enquanto os Grandes o tratam como “irmão”, conforme verificado no trecho transcrito anteriormente, de EA 1, os vassalos dirigem-se ao rei egípcio por meio de termos como “meu senhor” ou “meu sol”, conforme mostra o trecho abaixo, retirado de EA 118: Diga ao rei, meu senhor, o Sol: mensagem de Rib-Hadda, teu servidor. Eu caio aos pés de meu senhor, o Sol, sete vezes e sete vezes. Que a Dama de Gubla conceda o poder ao rei, meu senhor. (...) Como meu único objetivo é o de servir ao rei, segundo o costume de meus ancestrais, que o rei envie arqueiros e garanta a segurança a seu país.44

Também não há referências ao nome do faraó a quem o vassalo está se dirigindo e, em alguns casos, nem mesmo ao nome do remetente da carta, o que dificulta sobremaneira a datação desta correspondência45. Os chamados Estados vassalos estavam situados na região da Síria-Palestina e aqueles que aparecem nas 43 Ibidem. p. 81. 44 Ibidem. p. 326. 45 KOZLOFF, A. et al. op. cit. p. 49.

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Cartas de Amarna são46: 1. Amurru: o vassalo mais ao sul, cresceu sob o comando de Abdi-Ashirta. Seu filho Aziru também aparece nas Cartas. 2. Biblos (Gubla): era governado por Rib-Hadda, o rei cuja correspondência é a mais numerosa dentre os que aparecem nas Cartas. 3. Shechem (Shakmu): era governado por Lab’ayu. 4. Qadesh (Qidshu/ Qinsa): era a cidade mais ao norte sob influência egípcia, governada por Aitakkama. 5. Damasco: também ao norte, era governada por Biryawaza. 6. Ugarit: era uma importante cidade portuária na costa da Síria.

A geografia desta região, conhecida como Canaã, era ao mesmo tempo favorável e desfavorável ao Egito. Favorável porque a costa era descontínua e frequentemente estreita, com montanhas corriam paralelas a ela, e ao norte os vales arborizados eram muitas vezes íngremes, o que dificultava o aparecimento de um Estado unificado. Desfavorável porque as mesmas características dificultavam a comunicação entre os Estados, entre os quais se inclui o Egito, que tinha dificuldades em exercer sua autoridade devido a complicações logísticas e táticas47. Tal autoridade era exercida por meio de um oficial que tinha um título genérico, rabisu, ou “comissário”. Altos comissários – dos quais o único conhecido é Maya – tinham o título de “enviados do rei sobre todo território estrangeiro”, enquanto os de menor hierarquia eram chamados “superintendentes dos territórios estrangeiros do norte”. Já os vassalos tinham o título de hazannu, que corresponde ao título egípcio hAty-a, “chefe”, mas, segundo Murnane, isso reflete apenas a condição de subordinados dos príncipes estrangeiros em relação ao faraó48. A maneira como se estabelecia esta relação, no entanto, não 46 Os dados sobre os Estados aliados foram retirados de: COHEN, R. & WESTBROOK, R. (ed.) Amarna Diplomacy: the beginnings of internacional relations. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2000. p. 8. 47 JAMES, A. Egypt and her vassals. In: COHEN, R. & WESTBROOK, R. (ed.) Amarna Diplomacy: the beginnings of internacional relations. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2000. p. 112. 48 MURNANE, W. J. op. cit. 2000. p. 107-108.

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é conhecida. Não foram encontrados tratados firmados entre o Egito e seus vassalos, o que não quer dizer que não tenham existido, já que a documentação administrativa do Período de Amarna é extremamente escassa. O que pode ter existido, embora não seja possível perceber pelas Cartas, são juramentos de fidelidade firmados entre o Egito e cada um dos vassalos49. É possível saber, no entanto, por meio da correspondência, que os vassalos deveriam operar a favor dos interesses do faraó, tratando os inimigos do Egito como se fossem os seus próprios e participando de ações militares contra estes inimigos sempre que preciso. Este parece ser o caso da mensagem da carta EA 99, dirigida a Rib-Hadda pelo faraó: “[D]iga [a...] ..., [o homem de ...] ...: Assim (diz) o rei. Ele te enviou o presente tablete, te dizendo: Que tu estejas alerta. É necessário manter o lugar do rei onde tu estás.”50 É justamente a correspondência de Rib-Hadda que mais nos informa sobre a situação da Síria-Palestina no século XIV a.C., e que também nos dá mais pistas sobre a maneira pela qual o Egito exercia seu poder sobre os vassalos. São cerca de setenta cartas nas quais o governante de Biblos informa ao faraó sobre as ações do rei de Amurru, Abdi-Ashirta, e de seu sucessor, Aziru, que se mostram, pelo retrato traçado por Rib-Hadda, servos infiéis do rei egípcio. Por meio destas cartas, segundo o egiptólogo Cyril Aldred, é possível contar a história do progressivo declínio do poder egípcio na Ásia51. De acordo com Francesco Tiradritti a correspondência de Rib-Hadda pode ser dividida em três fases distintas: 1. Correspondendo ao reinado de Amenhotep III, Abdi-Ashirta é mencionado como governante de Amurru. 2. Aparece como governante de Amurru o filho de AbdiAshirta, Aziru. 3. Corresponde ao período de exílio e morte de Rib-Hadda e em seguida à tentativa bem sucedida da parte de Amurru de se apossar de Biblos, o que também está indicado em cartas de outros reis, como Abi-Milki de Tiro e Aitakkama de Qadesh. 49 Ibidem. p. 105. 50 MORAN, W. L. op. cit. 2004. p. 291. 51 ALDRED, C. op. cit. p. 186.

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Esta fase, assim como a anterior, corresponde ao reinado de Akhenaton52.

O pedido mais comum do governante de Biblos ao faraó, em todas as três fases, é o de ajuda militar. Durante o reinado de Amenhotep III, no entanto, ao mesmo tempo em que AbdiAshirta, rei de Amurru, ataca a cidade de Biblos, tentando dominála, ele jura fidelidade ao rei egípcio, o que faz com que a ajuda a Biblos não aconteça53. Em um determinado momento, no entanto, o nome de Abdi-Ashirta não aparece mais na correspondência como o governante de Amurru, pois em EA 103 Rib-Hadda já se refere à guerra que os filhos de Abdi-Ashirta fazem contra ele. Suas reclamações ao faraó, porém, não cessam, conforme podemos inferir da carta EA 119, pertencente já à segunda fase, com Aziru como governante de Amurru: Quanto àquilo que o rei, meu senhor, me escreveu: “Tenha cuidado!”, quem vai cuidar de mim? Certamente, eu escrevo assim continuamente ao palácio uma [g]uar[ni]ção e por cavalos para que eu possa manter sua cidade. O que devo fazer? Vivo eu manterei a cidade do rei para ele; mas, se eu morrer, o que poderei fazer?54

As notícias sobre os Apiru também são frequentes nas cartas provenientes de Biblos. Rib-Hadda constantemente escreve sobre as ações dos dos Apiru, que ainda aparecem como Habiru ou Hapiru. Este termo, segundo Raymond Cohen e Raymond Westbrook, refere-se, provavelmente, a um grupo nômade que atacava as áreas de assentamento ou cujos membros alugavamse como mercenários55. Bernard Newgrosh, David M. Rohl e Peter G. Van der Veen sugerem que o termo “apiru” é derivado do verbo acadiano habaru, que significa “migrar” – daí sua característica de povo nômade. O termo nas Cartas aparece 52 TIRADRITTI, F. Les Lettres de Tell el-Amarna: l’Égypte et le monde extérieur. In: CHAPPAZ, J.-L. et al. Akhénaton et Néfertiti: soleil et ombres des pharaons. Milano: Silvana Editoriale, 2008. p. 88. 53 DODSON, A. op. cit. p. 54. 54 MORAN, W. L. op. cit. 2004. p. 328. 55 COHEN, R. & WESTBROOK, R. (ed.) op. cit. p. 8.

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também de maneira pejorativa, com o significado de “rebelde”, “traidor” ou “reprovável”56. Um exemplo da aliança do Estado de Amurru com os Apiru aparece em EA 118: Veja, [el]es estão [partindo] com os filhos de Abdi-Ashirta, para Sin, e Beirute. Uma vez que os filhos de Abdi-Ashirta são hostis ao rei, e desde que Sidon e Beirute não pertencem (mais) ao rei, envia o Oficial para os repreender, a fim de que eu não abandone a minha cidade e que eu não vá até ti. Veja, se os camponeses partirem, os Apiru se apoderarão da cidade.

Apesar de todos os pedidos de Rib-Hadda por uma guarnição militar, arqueiros e cavalos na tentativa de manter a sua cidade, o desenrolar dos acontecimentos não é bom para o governante de Biblos. É o que fica claro em EA 124: Ri[b-Hadda] escreve a seu senhor: “Aziru tomou todas as minhas cidades. Somente Gubla me resta. Pensa então em teu leal servidor”. Se agora, as tropas avançarem contra Gubla, eles a tomarão. Agora, de fato, ele está tentando reunir todas as cidades para tomá-la.57

Sem obter uma resposta convincente para suas queixas, RibHadda acaba por ser exilado, conforme aponta a carta EA 136: “Então eu voltei para a minha própria casa, mas ele me proibiu (de entrar) na casa.”58 Biblos caiu, por fim, nas mãos de Aziru, tornando-se parte de um mini-Estado que se tornava cada vez mais forte: Amurru. Desta maneira, a configuração dos domínios egípcios na região da Síria-Palestina, durante o período de governo de Akhenaton, sofre muitas mudanças. Quando tomadas em conjunto com a correspondência dos Grandes Reis, as cartas de Rib-Hadda mostram a progressiva perda do poder egípcio na região, que será parcialmente reconquistado já bem entrada a XIX Dinastia. 56 NEWGROSH, B.; ROHL, D. M.; VAN DER VEEN, P. G. The el-Amarna Letters and Israelite history. Journal of Ancient Chronolog y Forum. v. 6, 1992/93, p. 38. 57 MORAN, W. L. op. cit. 2004. p. 336. 58 Ibidem. p. 356.

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Outro ponto que merece atenção nas cartas enviadas por RibHadda ao Egito é a falta de referências a tributos ou presentes59. Não existe, conforme aponta William Murnane, um jogo de reciprocidade entre o Egito e os vassalos60. Enquanto nas cartas trocadas com os Grandes Reis há referências a “presentes em homenagem” e a pedidos de ouro, na correspondência dos subordinados os pedidos geralmente são por ajuda militar, aparecendo apenas uma vez, em uma carta de Rib-Hadda, um pedido de provisões ao Egito61. Em períodos de fome severa ou de falta de grãos, no entanto, os pedidos deveriam ser mais frequentes. Por último, vale ressaltar que a relação de poder do rei egípcio se manifesta, tal como evidenciado anteriormente, por meio da lingugem utilizada pelos governantes estrangeiros. Um exemplo bastante claro deste fato aparece na carta EA 147, repleta de elogios ao faraó: Ao rei, meu senhor, meu deus, meu sol: Mensagem de AbiMilki teu servidor. Eu caio aos pés do rei, meu senhor, sete vezes e sete vezes. Eu sou a poeira sob as sandálias do rei, meu senhor. Meu senhor é o sol que se eleva sobre todos os países dia após dia, da maneira (de ser) do sol, seu pai gracioso; que concede a vida por seu doce vento do norte; que estabelece a segurança sobre todos os países, pela força de seu braço: ha-apshi; que eleva seu grito para o céu como Baal, e todos os países se amedrontam com seu grito.62

A maneira como o Egito exercia seu poder, então, era bastante diferente quando se tratava de um governante aliado ou de um vassalo. Enquanto os aliados eram tratados como iguais, que davam suas filhas em casamento e trocavam presentes com o faraó, os vassalos viam no rei egípcio uma figura superior a eles, a quem deveriam servir sempre, de geração a geração. 59 NA’AMAN, N. The Egyptian-Canaanite correspondence. COHEN, R. & WESTBROOK, R. (ed.) Amarna Diplomacy: the beginnings of international relations. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2000. p. 129. 60 MURNANE, W. J. op. cit. 2000. p. 104. 61 NA’AMAN, N. op. cit. p. 133. 62 MORAN, W. L. op. cit. 2004. p. 378.

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Considerações finais Embora formem um corpus pequeno de documentação sobre a situação política da região da Síria-Palestina durante o final da XVIII Dinastia, as Cartas de Amarna auxiliam para a compreensão de como o Estado egípcio exercia seu poder e mantinha seus domínios em sua época de maior expansão territorial. Não sabemos ao certo a quantidade de tabletes que se perdeu, dada sua fragilidade e a maneira como foram descobertos – segundo alguns relatos por uma camponesa que vasculhava as ruínas em busca de fertilizante agrícola –, mas os documentos existentes mostram que tal hegemonia se conservava por meio de diferentes fatores, como os casamentos diplomáticos e a troca de presentes. Fica claro, por meio de tais documentos, que a diplomacia era essencial para manter os territórios e os aliados conquistados por meio de guerras e, consequentemente, para manter o Império Egípcio. A instabilidade do final da XVIII Dinastia, época a que se referem os documentos aqui analisados, resultou na perda de alguns dos territórios aliados e subordinados que aparecem nas Cartas. Verifica-se, então, que durante os primeiros reinados da XIX Dinastia há um grande esforço, por parte do governo egípcio, para restabelecer tais contatos diplomáticos, o que se consegue, em alguns casos, bastante tardiamente na mesma dinastia. A manutenção das relações diplomáticas egípcias passava também pela linguagem. Vemos pelas formas de tratamento utilizadas por aliados que eles se consideravam – e eram considerados pelo faraó – como iguais. Mesmo na língua original dos tabletes, o acadiano, a palavra utilizada para “rei” é a mesma quando falamos do faraó ou de um dos Grandes Reis do período. Já os vassalos tratavam ao faraó como um superior, e este se sentia assim em relação a eles, conforme pode ser verificado pela correspondência de Rib-Hadda. Segundo Raymond Cohen e Raymond Westbrook as Cartas de Amarna representam o auge de uma tradição, desenvolvida ao longo de séculos, por meio da qual os Estados podem comunicarse uns com os outros em uma linguagem comum, procurando atingir seus próprios interesses ou resolver problemas comuns63. Para tal, se usa uma “interlinguagem”, ou seja, uma linguagem 63 COHEN, R. & WESTBROOK, R. (ed.). op. cit. p. 2.

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com desenvolvimento artificial, criada para servir como um intermediário neutro entre diferentes culturas64. No caso das Cartas esta interlinguagem se desenvolveu a partir do acadiano, mas este era empregado não em sua forma tradiconal, mas a partir de um vocabulário repleto de palavras originárias das várias formas de falar das populações envolvidas. Há dois fatores, no entanto, que estão diretamente relacionados ao nosso entendimento incompleto dos elementos funcionais da organização do império e das obrigações administrativas dos burocratas egípcios responsáveis por sua manutenção: em primeiro lugar, a correspondência cobre um breve período e, em segundo, os nomes e títulos de muitos oficiais egípcios identificados nas Cartas não podem ser relacionados a títulos e indivíduos específicos conhecidos pelas fontes egípcias. Com relação ao primeiro fator algumas considerações precisam ser tecidas. O período coberto pelas Cartas de Amarna geralmente aceito é de cerca de trinta anos, entre os últimos anos de reinado Amenhotep III e o primeiro ou terceiro ano do governo de Tutankhamon. Algumas particularidades, no entanto, levaram a diferentes interpretações. O egiptólogo Cyril Aldred, por exemplo, ao datar as cartas leva em consideração uma longa corregência – o ano 6 de Akhenaton corresponde, segundo sua opinião, ao ano 33 ou 34 de Amenhotep III, o que corresponderia a uma corregência de cerca de 12 anos. O autor baseia suas conclusões na ausência do nome de Nefertiti na correspondência e também na presença de referências a Mayati nas cartas de AbiMilki e de outros governantes. Mayati, segundo Aldred, pode ser um apelido de Meritaton, a filha mais velha de Akhenaton e que aparece como esposa real após o desaparecimento de Nefertiti das fontes egípcias65. Outro fator emblemático com relação à datação das cartas é uma inscrição em hierático abaixo do texto cuneiforme de EA 23, que diz: “Ano 36, quarto mês do inverno, dia 1. (O rei) estava na cidade meridional, na Casa do Júbilo (o palácio de Malqatta)”66. O “ano 36” do documento só pode corresponder 64 Ibidem. p. 10. 65 ALDRED, C. op. cit. p. 187-191. 66 KOZLOFF, A. et al. op. cit. p. 50.

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ao ano 36 de Amenhotep III, pois apenas este faraó chegou a este ano de governo. Se considerarmos as observações com relação à corregência de Aldred, o ano 36 de Amenhotep III corresponderia aproximadamente ao ano 8 ou 9 de Akhenaton, justamente quando do término da construção de Akhetaton e da mudança completa da sede do governo para esta cidade. Não há, contudo, documentos admisnistrativos que comprovem esta prática durante a XVIII Dinastia, sendo, no entanto, bastante comum na XIX. Levando ou não em consideração uma corregência, curta ou longa, entre Amenhotep III e Amenhotep IV/ Akhenaton, por meio das Cartas de Amarna é possível compreender o que estava ocorrendo no Egito e em seu entorno em uma época na qual o que chama mais a atenção dos estudiosos é a revolução religiosa que Akhenaton tentou levar a cabo no Egito. Se levarmos em consideração as cartas encontradas, no entanto, não é verdadeiro afirmar que este faraó não estava preocupado com as relações internacionais. Primeiro, porque os tabletes foram encontrados na cidade que Akhenaton mandou erigir para ser a sua nova capital – Akhetaton, e em segundo lugar porque a maioria dos tabletes localizados na chamada “Sala de Correspondência do Faraó – Vida, Prosperidade, Saúde” data justamente de seu reinado.

II Poder e Genealogia nos inícios da historiografia grega

O

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que os primeiros historiadores gregos dispunham acerca dos tempos antigos era, basicamente, relatos míticos tradicionais cantados durante séculos por poetas errantes, bem como uma massa indefinida de lendas populares de cunho local cultivada pelas várias comunidades gregas. Feitos divinos e heroicos, fundação de cidades, intrigas reais, viagens e guerras eram os temas que predominavam nessas tradições. Se o simples interesse pelo passado, enquanto tendência natural do ser humano, não é datável com exatidão, a historiografia, enquanto estudo e registro ordenado sobre o passado do homem, é um aspecto bem documentado na civilização grega. As evidências literárias mostram que ela teria surgido no decorrer dos séculos VI e V a.C., no litoral oeste da Anatólia, onde habitavam populações gregas eólias, jônias e dórias. Distingue-se, a partir daí, uma abordagem crítica acerca do passado heroico, seja para entender a realidade atual, seja para que “os feitos dos homens não se percam com o tempo”, como disse Heródoto em seu preâmbulo (Hist.I,1). 1 Doutorando em História e Cultura Clássicas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Bacharel em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Membro da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC).

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O “fazer história” grego empenhou-se em mostrar os vínculos entre presente e passado, utilizando o instrumento da escrita nessa tarefa. Nos reinos orientais, predominaram as crônicas reais e narrativas divinas, conforme demonstram as inscrições hititas e assírias, e como está cheio o Antigo Testamento bíblico. Já os gregos do Período Arcaico passaram a dialogar com o passado, e como diria Paul Veyne2, na direção da lembrança de outro mundo, o das idades heróicas, mas interessados em reduzi-lo às coisas do mundo atual. A História, então, começou na Grécia tomando o ambiente ancestral dos heróis guerreiros enquanto sua própria imagem de passado, mas logo preocupada em explicar e investigar uma realidade bem humana. Dificilmente poderíamos entender esses processos sem abordar a emergência dos aristocratas no período anterior, desde que representa um dos aspectos mais marcantes da história grega arcaica. Muitas foram as tentativas de entender e desvendar as mudanças sócio-culturais no mundo grego, entre o fim do Período Micênico e o final das invasões dóricas3. No comentário de Chester Starr4, estudioso da aristocracia grega, “no mundo de Homero havia heróis, mas não aristocratas”, muito embora possamos perceber a presença de nobres e de gente comum na sociedade descrita na Ilíada. É possível supor, todavia, que na época em que viveram Homero e Hesíodo, os poetas mais conhecidos da Grécia, a aristocracia enquanto grupo social já existisse. A partir de então, torna-se mais nítido que o poder das 2

VEYNE, P. Acreditaram os Gregos nos seus Mitos? Trad. António Gonçalves. Lisboa: Ed. 70, 1987. Pp.30 e 95.

3

Por exemplo, VERNANT, J.-P., As Origens do Pensamento Grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel, 2002; MOSSÉ, C.. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Trad. Emanuel L. Godinho. Lisboa: Ed. 70, 1989. OSBORNE, Robin. Greece in the Making 1200–479 BC. London ; New York : Routledge, 1996; RAAFLAUB, Kurt A. - WEES, Hans van, (eds.) A Companion to Archaic Greece. Malden/MA- Oxford: Blackwell Pub., 2009.

4

STARR, C. The Aristocratic Temper of Greek Civilization. N.York- Oxford: Oxford Univ. Press, 1992, p.07. Para uma interpretação diferente, ver JAEGER, W. Paidéia. A Formação do Homem Grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Pp. 24-25; GITTI, A. Mythos. La tradizione pré -storiografica della Grecia. Bari: Adriatica, 1949, p.201; FINLEY, M-I. O Mundo de Ulisses. Trad. Armando Cerqueira. Lisboa: Presença: 1988, p. 102.

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classes elevadas estivesse mais limitado, e não concentrado nas mãos de algumas famílias ilustres proprietárias de terras, nem sob as ordens de um monarca. Com as várias crises do século VI a.C., foi preciso considerar a divisão da autoridade política com o demos5, quando esse exigiu participação em todos os cargos de magistratura. O fator principal das mudanças sociais esteve, pois, vinculado à formação da principal organização política surgida no mundo grego: a Pólis ou Cidade-Estado. A antiga realeza hereditária que Homero expõe em sua poesia cederá espaço, nessa nova ordem, a uma estrutura de poder oriunda da comunidade cívica. Se no mundo homérico havia heróis e reis, na ordem políade há o cidadão (polites). Nesse sistema, embrião dos regimes democráticos posteriores, governa-se cada vez mais em sentido igualitário, sem haver necessidade de sustentar uma realeza. Para Starr6, todavia, o panorama aristocrático na sociedade grega tornase notório apenas uma ou duas gerações após Hesíodo, conforme transparece nos fragmentos de Arquíloco, poeta de Paros, que viveu em pleno século VII a.C. Essa época é em geral vista como a fase em que a aristocracia atinge o seu auge7. O certo é que tanto entre os nobres micênicos, quanto nas elites políades, é possível distinguir um grupo familiar que não apenas detinha as melhores terras, mas ainda levava uma vida de padrões e hábitos elevados, seja pelo modo de vestir, seja pelo consumo de produtos mais sofisticados, até mesmo importados do Oriente8. Eles também expressavam uma superioridade moral, religiosa e educacional que os distinguiam de outras parcelas da sociedade. Notadamente, os aristocratas que viverão nas Póleis serão os detentores do poder, cultivando valores elevados, controlando os cultos da cidade, e podemos dizer que levando uma vida mais descansada que a maioria do povo. Nas fontes antigas, são conhecidos como “aristoi” (os excelentes, os melhores) “kaloi” e “agathoi” 5

MOSSÈ, C. A Grécia Arcacica de Homero a Ésquilo. Trad. Emanuel L. Godinho, 1989, p.97.

6

STARR, C. op. cit., pp.13-14.

7

ARNHEIM, M.W. Aristocracy in Greek Society. London: Thames and Hudson, 1977, pp.39 e ss.

8 STARR, C.G.. The Origins of Greek Civilization. 1100-650 B.C. New York/ London: Will Norton & Company, 1991, p. 303.

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(belos e bons), cujos indícios histórico-sociais estariam ligados à nobreza primitiva. Na maioria das Póleis gregas as monarquias hereditárias foram extintas, sendo substituídas por várias outras formas de governo, com poderes limitados para os descendentes dos antigos reis. Assim ocorreu em Corinto, Mitilene, na Tessália, Épiro, Quios, e na maioria das cidades jônicas da Ásia Menor, como Mileto, Éfeso, Éritras e Clazômenas9. Entre os problemas apresentados, interessa saber que as classes nobres, pertencentes aos gene aristocráticos, se faziam descendentes de deuses e heróis do passado mítico, e a eles deviam culto. Ficaram famosos o culto de Perseu em Argos, o de Teseu em Atenas, ou os vários cultos a Hércules, um herói venerado em toda Hélade (e segundo alguns, mesmo no ‘exterior’), da Ásia Menor à Ática, do Peloponeso à Magna Grécia, da Cítia à Fenícia e ao Egito10. Uma das formas culturais de um indivíduo reivindicar origem nobre, em qualquer sociedade civilizada, é a possibilidade de exibir uma longa linhagem, da qual se faça descender. A situação não foi diferente no mundo grego arcaico, quando o critério de “sangue” ou nascimento foi um fator bastante valorizado, às vezes mais que o simples poder econômico. Se um cidadão nascido no grupo aristocrático herdava a linhagem nobre, poderia ocorrer de não herdar o poder político ou a condição econômica, segundo demonstram certos contextos11. Para que os gene nobres fossem reconhecidos pelo público, para que indivíduos a ele pertencentes pudessem exercer as suas funções e atividades religiosas, políticas e culturais nas Póleis, era preciso comprovar antiguidade familiar, ou seja, mostrar que possuíam antepassados heroicos e divinos. Mesmo na época helenística, se quisermos continuar com o exemplo de Hércules, muitas famílias reais se declaravam 9

ARNHEIM, M.W. op. cit. p. 40.

10 Por exemplo, ver Heród. II 42-45 e 83; IV 8-10 e 59; V 43 e 63; VI 53. 11 Por exemplo, lembramos a posição do poeta Teógnis de Megara, de ideais aristocráticos, descontente com as mudanças sociais de seu tempo, quando a riqueza se tornara a única arete para a multidão (vv.699-700). Sobre a questão, ainda é válido ler JAEGER, W., op. cit., pp. 230 e ss. ou o mais recente DONLAN, W., The Aristocratic Ideal and Selected Papers. Wauconda: Bolchazy-Carduzzi. Publishers, 1999, principalmente o cap. 3, pp. 77-112.

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“Heraclidas”, e assim, descendentes desse herói12. Em contexto semelhante, são famosas as genealogias apresentadas pelos evangelistas Mateus e Lucas no intuito de legitimar a linhagem real de Jesus Cristo, chegando a declará-lo descendente de Davi, Abraão, e até de Adão, o primeiro homem, filho de Deus13. Portanto, o sentido do termo genos (no plural gene) indica um grupo (clã ou tribo) que afirmava descender de um único ancestral nobre ou fundador de estirpe, através de um descendente masculino, a exemplo dos Alcmeônidas de Atenas, cuja descendência chegava a Possêidon, ou dos Baquíadas de Corinto, os Ágidas e Euripôntidas, de Esparta, todos declarados descendentes de Hércules. Lembremos que a família grega é basicamente patrilinear, e a base de sua nobreza consistia justamente em poder legitimar socialmente uma descendência heroica ou divina pelo lado paterno. Segundo a crença mais antiga, os deuses, em certa época ancestral, uniram-se aos humanos, engendrando seres mortais, notadamente os heróis. Na maioria das vezes, era um deus que desejava uma bela jovem mortal, mas ocorria também o contrário, a exemplo de quando Afrodite apaixonou-se pelo belo pastor Anquises, no cimo do Monte Ida, próximo de Tróia. Tais uniões entre deuses e humanos sempre ocorreram de modo insólito ou anormal (o mais comum eram deuses se disfarçarem de animais para conseguir seus intuitos sexuais), e assim a poesia demarcava o caráter excepcional do feito14. A tradição mítica, dessa forma, servia para explicar situações de um passado perdido, como ainda mantinha a ligação da sociedade com o mundo divino. A religiosidade grega, então, foi mitológica por natureza, e os encarregados de divulgar e expressar esse saber de geração em geração, nesse mundo, foram primeiramente os aedos, rapsodos e poetas em geral. Não devemos ver em Homero e Hesíodo os criadores exclusivos do arquivo mítico grego, mas certamente, foram eles os porta-vozes de um imaginário ancestral, cujas raízes são difíceis de identificar, seja no mundo helênico, seja pelas influências orientais. Em consequência, é fácil perceber 12 GRIMAL, P. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Coord. Ed. portuguesa Victor Jabouille. Lisboa: Difel, 2009, p. 221. 13 Cf. Mt.1:1-17; Lc.3:23-38. 14 BERMEJO, J. Mito y Parentesco em la Grecia Arcaica. Madrid: Akal, 1980, p.14.

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que suas versões mitológicas terminaram se estabelecendo como as principais ou dominantes, enfim, as mais influentes da cultura grega, tanto na educação quanto na religião ou na arte. Importa ainda salientar que as distorções, complementações ou mesmo alterações das versões padrões desses poetas maiores foram inevitáveis e naturais, pois as histórias foram contadas e repetidas durante gerações, em um meio basicamente oral. Esse problema configurou uma grande dor de cabeça para os antigos (e modernos) que se ocuparam em ordenar, sistematizar e interpretar os mitos gregos. A explicação do professor espanhol García Gual15 para as alterações dos mitos gregos, “apesar de seu afã para se manterem inalterados”, é tríplice: a) Os poetas eram os guardiões dos mitos: a relação entre a mitologia e a poesia forneceu à primeira uma tremenda liberdade; b) Com o impacto da escrita alfabética na cultura grega, a mitologia unida à literatura torna-se alvo da crítica e da ironia; c) A emergência da racionalidade filosófica na Jônia do século VI a.C., prolongada na ilustração sofística, vai gerar críticas sobre os mitos. Os três aspectos apresentados parecem muito razoáveis, e são merecedores de um tratamento mais aprofundado, muito embora fosse preciso demarcar a participação dos primeiros historiadores na tarefa que tiveram de relacionar o passado heroico e o tempo presente. Os chamados logógrafos, trabalhando paralelamente aos poetas e filósofos, também exerceram um importante papel nesse contexto da cultura arcaica grega, de tornar mais diversificado o arquivo mítico grego. Não é demais lembrar que a tradição mítica grega não era um sistema unificado nem ordenado, pois cada recanto da Hélade possuía suas lendas e histórias. Existia, no entanto, um “núcleo tradicional duro”, ou seja, aquele corpo de notícias já arraigado nas várias cidades-Estado, sobre a origem e feitos dos deuses e dos principais heróis. Os chamados logógrafos exerciam sua atividade, então, coletando e divulgando tradições lendárias nas quais se confundiam história e fábula. Para Tucídides (I, 21), esses autores não mereciam crédito, a partir do momento em que compunham apenas para “agradar os ouvidos, e não dizer a verdade”, a partir do momento em que suas histórias não podiam ser comprovadas. É ponto aceite que o historiador 15 GUAL, C.G. Introducción a la Mitologia Griega. Madrid: Alianza, 2001, p. 31.

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ateniense havia aqui sutilmente dirigido sua crítica a Heródoto, para ele, um logógrafo16. O outro aspecto que interessa apresentar neste estudo diz respeito à elite grega, que, dominando a arte da escrita, passou a produzir literatura de alta qualidade, seja em forma de poesia, seja em prosa. Em dado momento do século VI a.C., a arte da escrita alcançou um grau de desenvolvimento tal que tornou possível a produção de materiais textuais bem elaborados, como tratados, poesias, notas de viagem, textos técnicos, religiosos ou filosóficos. A escrita alfabética, uma vez estabelecida no mundo grego, logo iria ultrapassar a função utilitária restrita ao comércio e impostos, ao artesanato, ao registro simples de listas de nomes de sacerdotes ou atletas, dias do ano ou legislações. Já antes, no século VII a.C., haviam sido transcritas poesias épicas e líricas na forma de texto escrito, e somente em seguida, iriam emergir obras em prosa sobre os mais variados temas, incluindo “história”. Um lado muitas vezes negligenciado pelos estudiosos modernos da literatura clássica diz respeito aos aspectos sócioculturais envolvidos no advento da escrita alfabética em solo grego. São poucos os que chamam a atenção para o fato de que praticamente toda produção literária helênica procedeu de setores aristocráticos da sociedade, ou seja, das elites que dominavam as formas mais evoluídas de saber na Pólis. Os primeiros autores que utilizaram a escrita de modo elevado provinham das melhores famílias, e haviam recebido o que de mais apurado a paideia de seu tempo podia oferecer. Em sua instrução, a escrita já ocupará um lugar importante, pois se assim não fosse, a elite não seria capaz de compor textos com tamanha destreza e vigor. Através desse novo recurso visual que foi a escrita, a cultura foi expressa por esse grupo baseada na autoridade que o mesmo gozava na comunidade. Os aristocratas foram, na verdade, os formadores e divulgadores das tradições míticas, filosóficas ou históricas do mundo helênico. Segundo confirmam os dados biográficos e históricos, os mais antigos poetas, filósofos e historiadores que se atreveram a mostrar seus saberes por escrito foram realmente pessoas de elevada posição social. Mesmo Hesíodo 16 A denominação tinha, para Tucídides, um sentido negativo. Cf. CAGNAZZI, Silvana. Tavola dei 28 Logoi di Erodoto. In: Hermes, 103. Bd., H. 4 (1975), P. 386.

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– tido equivocadamente como exemplo de camponês beócio – devia pertencer a uma família importante17. Do mesmo modo Arquíloco, Tirteu, Mimnermo, Anaximandro e Hecateu de Mileto, Xenófanes, Sólon, Acusilau e Heráclito, apenas para citar alguns, pertenceram às aristocracias de suas póleis. Dois grandes problemas foram enfrentados por aqueles que se ocuparam de desvendar o passado mítico de forma mais crítica. Primeiramente, a questão de fornecer crédito ao elemento “maravilhoso” presente no canto poético, para que ele tivesse condições de se tornar histórico18. Segundo, de criar uma forma de calcular as distâncias no tempo, ou seja, projetar uma cronologia para que os eventos pudessem ser concretamente datáveis, e saírem da época do “era uma vez”. Os gregos sabiam que mesmo a Idade dos heróis podia ser datada no tempo, e que eventos bem conhecidos como a Guerra de Tróia, a viagem dos Argonautas ou a guerra dos sete chefes contra Tebas, não haviam ocorrido no princípio indefinido das cosmogonias e teogonias antigas, e sim muito mais próximas do presente. A maneira que eles encontraram para conectar essas duas “realidades”, a do passado e a do presente, com alguma fiabilidade, foi fazendo as genealogias das famílias ilustres atuais recuarem até a época dos seus antepassados, quando homens, heróis e deuses ainda conviviam. Dessa forma, foram sendo criados os primeiros rudimentos no sentido de uma cronologia genealógica, baseada em uma geração de duração prescrita. O primeiro autor conhecido que utilizou em sua historiografia um sistema definido de cronologia foi Hecateu de Mileto, que concebeu 40 anos para cada geração19. O estudioso italiano Alberto Gitti20 chama a atenção para o fato de que as genealogias gregas, embora representassem uma rica fonte de informação, não demonstravam longas árvores genealógicas. Em sua maioria, contavam apenas com cerca de doze gerações (com raras 17 STARR, C. The Aristocratic Temper of Greek Ciilization. N.York- Oxford: Oxford Univ. Press, 1992, p.13. 18 VEYNE, P. op. cit., p. 63. 19 PRAKKEN, D.W. Studies in Greek Genealogical Chronolog y. Lancaster: Lancaster Press, 1943, p. 03. 20 GITTI, A. op. cit. p. 198.

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exceções, como Hecateu, que se dizia descender de um deus na décima sexta geração). Também é necessário levar em conta que provavelmente, as genealogias completas foram raras (do primeiro fundador até dado presente)21. Para Heródoto, a Guerra de Tróia havia ocorrido na terceira geração depois da morte do Rei cretense Minos (VII 171), ou cerca de 800 anos antes da época do próprio historiador (II 145). Eventos marcantes como a Guerra de Tróia, contados por meio dos poetas, serviram de referencial “histórico” para o povo grego, bem como da mesma forma o serão a lendária viagem dos Argonautas, os trabalhos de Hércules ou o retorno de Ulisses para casa. Os gregos arcaicos não viam nessas narrativas meras fabulações ou falsidades, pois dificilmente se poderia negar que aqueles tão famosos heróis, de tão grandiosos feitos, haviam existido de fato22. Hecateu de Mileto não foi rigorosamente o primeiro representante do gênero genealógico na literatura grega arcaica. Homero já faz demonstrar a importância das genealogias em sua poesia, e no mundo que pretendeu retratar, mesmo estando longe de ser um historiador. Os autores contemporâneos têm investigado o valor historiográfico das obras homéricas, manifestando algumas controvérsias de interpretação. Por exemplo, para M.I. Finley23, o épico não era história, mas uma narrativa detalhada que descrevia banquetes, funerais, guerras, viagens, etc, em que tudo acontecia no estilo “era uma vez”, ou seja, isolado de critérios temporais, como soltos no nada. Exemplifica com o rapto de Helena, para ele “fundamentalmente atemporal”. Por outra óptica, lembramos F. Hartog24, para quem está muito claro o senso histórico de Homero, pois ao apresentar uma grande guerra, começa por narrar sua causa, mesmo que fantasiosa ou fabulosa, revelando a noção temporal do poeta: “Na Ilíada, Tróia não foi tomada 21 THOMAS, Rosalind. Oral Tradition and Written Record in Classical Athens. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1992, p.157. 22 VEYNE, P. op. cit., p. 35. 23 FINLEY. M-I. História Antiga, testemunhos e modelos. Trad. Valter E. Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p.07. 24 HARTOG, F. Os Antigos, o passado e o presente. Trad. J. Otávio Guimarães, Sonia Lacerda e Marcos Veneu. Brasília: UnB, 2003, pp. 16-17.

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ainda, Aquiles está vivo: estamos na expectativa. Assim que abre a Odisséia, estamos no depois, na memória do acontecimento e na lembrança dos lutos e sofrimentos suportados”. O que a epopéia mostrava tinha raízes históricas. Os gregos mesmos nunca incorporaram essa mensagem enquanto mera fantasia ou romance. Os detalhes geográficos verídicos, a vivacidade das cenas, os nomes de povos existentes citados, como Egípcios e Fenícios, ajudavam a formar a idéia de que tudo não se tratava de uma grande mentira. Aquelas personagens, como Aquiles, Heitor e Ájax foram notáveis, na mente deles. Foram heróis memoráveis. O poeta apenas canta, com muita distorção, a glória de um tempo ancestral, grandioso, que se isolou no tempo, antes dos dórios romperem com o mundo micênico. No canto VI da Ilíada, Diomedes e Glauco referem-se às próprias descendências, como forma de afirmar sua linhagem nobre. No Canto II da mesma poesia, quando o poeta apresenta o catálogo das naves gregas que atacarão Tróia, diversas genealogias de comandantes são apresentadas. Importa salientar, além disso, que a epopéia homérica não se interessou em recuar muito no tempo, e por isso praticamente não se esforçou em representar o passado distante, anterior à Guerra de Tróia. Se aceitarmos que a Ilíada pode ter sido composta em meados do século VIII a.C., e que mencionava lembranças lendárias de quinhentos anos antes, ou seja, do século XIII a.C., teremos uma breve ideia da dificuldade de Homero e dos gregos sobre seu passado mais remoto. Quase nada se sabe sobre a época anterior ao século VIII a.C., por ser pouco documentada na história grega. Como bem afirmou Bruno Snell25, “os séculos entre Agamemnôn e Homero são muito obscuros”. Hesíodo, que segundo a tradição viveu não muito depois de Homero, foi considerado o mais antigo “genealogista” grego, e ocupou-se de preencher o espaço entre as origens cósmicas e seu tempo. Foi esta a grande tendência seguida por quase todos aqueles que decidiram ocupar-se do passado mítico ou cosmológico: a busca das origens. O mundo apenas tem sentido se houver um começo26. Na vasta obra que leva o nome de 25 SNELL, B. A Descoberta do Espírito. As Origens do Pensamento Europeu na Grécia. Trad. Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, 2003, p. 196. 26 Mesmo Homero buscou as origens, ao dizer “Oceanos, gerador dos deuses e sua mãe

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Hesíodo, podemos perceber seu intuito de utilizar princípios genealógicos para ordenar a ascendência dos deuses até seus primórdios, desde o surgimento das potências cósmicas como Caos, Gaia e Úrano, chegando até a geração de Cronos, e a seguir, com a de Zeus27. Nos primórdios, logo com o nascimento das potências cósmicas, segue-se uma relação de sucessão sem filiação: “primeiramente” (protista) o Caos, e em seguida (autar epeita) Geia e Eros, forças que engendram dentro de suas entranhas outras forças cósmicas28. Na primeira geração divina, como resultado da ligação entre Geia e Úrano, destaca-se o nascimento do titã Cronos, que após tornar-se Soberano, será destronado pelo seu filho mais novo, Zeus. A partir dos poemas homéricos, esse deus foi estabelecido como o mais importante do Panteão grego, e potência universal entre todas as divindades29. Há alguns aspectos que não podem passar despercebidos, dentro de toda a estrutura mitológica grega. Primeiro, que os deuses gregos olímpicos fazem parte ou convivem dentro de relações familiares cujo caráter é basicamente patriarcal. Nessa “família” olímpica, Zeus é o senhor da Casa, possui poder e nobreza. Segundo, os gregos tinham a consciência que essa geração divina era mais nova que as anteriores, as dos Titãs, Ciclopes e outros. Basta lembrarmos as palavras de Prometeu contra Hermes, na pena do dramaturgo Ésquilo30: “Vós, novos, governais há pouco, e julgais habitar uma cidadela inacessível à dor!”. Os deuses são imortais, porém, não existiram desde sempre. Foram gerados, e a tradição poética construiu parâmetros genealógicos para dar sentido a esse sistema. Hesíodo utiliza o motivo genealógico em sua Teogonia para conciliar a antiga Tétis” (Plat.Crat.402b). Os primeiros filósofos e logógrafos também. 27 Os gêneros teogônico e cosmogônico perdem-se no tempo na história da Humanidade. Nem Homero nem Hesíodo foram seus criadores, considerando as primitivas influências orientais sobre a cultura grega. Cf. WALCOT, P. Hesiod and the Near East. Cardiff: University of Wales Press, 1966. BURKERT, W. The Orientalizing Revolution. Cambridge/Mass. – London: Harvard Univ. Press, 1995. 28 SOREL, R. As Cosmogonias Gregas. Trad. Paula Guerreiro. Lisboa: Europa – América, 1995, p. 35. 29 GRIMAL, P. op. cit., pp.468-469. 30 Prom. 955; In: Ésquilo, Prometeu Agrilhoado. Trad. Ana P. Quintela Sottomayor. Lisboa: Ed. 70, 1992.

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religiosidade, ainda presente no povo, com a nova religiosidade olímpica. Por esse modelo, o poeta beócio instaura um novo ordenamento cósmico no plano divino, sobrepondo o reino de Zeus ao das forças primitivas pré-homéricas, através de uma “titanomaquia”, ou seja, uma luta entre os Titãs primitivos e os deuses olímpicos31. Segundo a tradição mitológica corrente no Período Clássico, relatada por Platão (Prot.320 c-d) houve um tempo em que havia deuses, mas não mortais. Depois, os deuses criaram os humanos e os animais debaixo da terra. Os irmãos titãs Prometeu e Epimeteu receberam o encargo de dar-lhes as características devidas. A ressalva a ser feita aqui é que na Teogonia, Prometeu é um benfeitor, mas não o criador da humanidade. Já em sua outra obra prima, Trabalhos e Dias, escrita provavelmente após a Teogonia32, o poeta declara que tanto os deuses quanto os homens possuem a mesma origem (v.108). Hesíodo vai apresentar uma percepção histórica curiosa sobre a raça humana, que foi o seu famoso mito das Cinco Idades do mundo (vv.106201). Segundo Jaeger33, era assim que ele explicava a “enorme distância entre a própria existência e o mundo resplandecente de Homero”, e ainda como ele representava o eterno desejo humano por uma vida melhor. Dentro de um formato proverbial, esse mito narra como os homens foram se degradando, a partir de uma Idade Dourada, quando se vivia livre das angústias e sofrimentos, sem doença nem velhice. Mas o poeta deixa claro que mesmo essa raça “de Ouro” era mortal. Foi a época do reinado de Cronos até o de Zeus, por isso o nome “de Ouro”, devido à realeza dos deuses, embora o poeta não tenha fornecido indicação de sua duração. Em seguida, surge uma raça inferior e diferente em tudo da anterior, a chamada raça de Prata: eles passavam 100 anos da infância, mas quando atingiam a juventude, os homens dessa raça praticavam excessos de violência e não prestavam culto aos deuses imortais. Por isso, foram eliminados por Zeus. O deus criou então uma terceira raça de homens mortais, uma raça de Bronze, bem diferente da raça anterior. Fortes e violentos, munidos com armas 31 UNTERSTEINER, M. La Fisiologia del Mito. Milano: Fratelli Bocca, 1946, p. 113. 32 ADRADOS, F.R. La composicón de los poemas hesiódicos. In: Emerita 69, 2001, p.200. 33 Op. cit., p.89.

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de bronze, morreram violentamente lutando e guerreando uns contra os outros, e foram assim transportados para o Hades. Depois, surge a raça dos Heróis, mais justa e corajosa, como os semideuses, tendo vivido na época das guerras de Tebas e Tróia. Alguns deles, no entanto, que foram tomados pelo excesso e a violência, morreram e foram para o Hades, como os da raça de bronze. Os outros, piedosos e temperantes, Zeus mandou para a ilha dos Bem-aventurados, onde passaram a viver como imortais. Por último, vem a raça de Ferro, da qual a geração de Hesíodo faz parte. O poeta faz dessa idade um tempo constituído por fadigas, misérias, cuja raça não teve fim ainda. O que se diz comumente é que essa visão mítica por raças ou idades tem eco em contos orientais antiquíssimos, que de alguma forma Hesíodo havia herdado34. Ao apresentar esse esquema de eras, o poeta não trabalha contando gerações, já que o espaço temporal de cada uma das eras é indefinido35. Apesar de tudo, o lugar de Hesíodo no pensamento histórico grego ainda é discutível. Na concepção de Arnaldo Momigliano36, Hesíodo sente o peso do destino histórico quando conta preferir não estar entre os homens da quinta raça, mas ter morrido antes, ou nascido depois. O que se enseja, no mito das cinco raças, é uma concepção ciclica da história, frequente no pensamento grego, mas que demonstra certo sentido racional, pelo lado humanístico, ético e natural que apresenta, mesmo permeado de religiosidade. Ao contrário dessa visão coloca-se Finley37, para quem Hesíodo não tinha a mente voltada para a história, nem se preocupava com cronologia ou incongruências da tradição mítica. Inclusive, o poeta Beócio falava em raças, não idades, raças que não evoluem de uma para outra, mas são destruídas uma após outra, sendo substituídas: “Nenhuma das raças existe nem no tempo nem no espaço. São atemporais como a guerra de Tróia”. A questão importante é que Hesíodo não foi 34 VERNANT, J-P. As Origens do Pensamento Grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel, 2002, p. 114. 35 PRAKKEN, D. W. Op. cit., p.13. 36 MOMIGLIANO, A. La Historiografia Griega. Trad. José M. Gásquez. Barcelona: Grijalbo, 1984 37 FINLEY, M.-I. Uso e Abuso da História. Trad. Marylene P. Michael. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p.8-9.

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considerado um “historiador”, nem um investigador ou autor de história, segundo a tradição grega; mas ele foi seguramente um genealogista de peso, formador de opiniões e tradições. Logo a seguir, outros autores sentiram a necessidade de desenvolver e tratar da temática genealógica, motivados pelas novas exigências sociais da Pólis, quando as melhores famílias e o público em geral requisitavam afirmar suas próprias origens, sempre ligadas aos tempos heroicos. Mas se o gênero genealógico não era recente, sua forma de expressão escrita vai mudar da poesia para a prosa, um modelo discursivo surgido no século VI a.C. que buscava simular o modo de conversação direta, fora da métrica poética38. Era um modelo bem mais simples de expressão, em seus inícios, pouco elaborada em comparação com a poesia, apesar de nutrir grande potencial estético. Os registros escritos em prosa serão chamados “logoi” (discursos, contos), e portanto é compreensível porque muitos dos autores que utilizaram o tipo de expressão prosaica receberão a denominação logographoi ou logopoioi39. Sua atividade pode ser localizada justamente em meados do século VI a.C. e em todo século V a.C., principalmente na Jônia. Eram basicamente aristocratas da elite intelectual políade interessados em registrar por escrito, para um público de ouvintes ou leitores, tudo o que podiam juntar acerca das tradições, da cronologia conhecida, do conhecimento do espaço, da memória mítica, sobretudo, de um passado pouco acessível e longínquo das póleis. Por isso, difunde-se comumente, em muitos manuais, que os logógrafos ainda não seriam “historiadores” plenamente falando, já que se toma Heródoto (afinal, “o pai da História) como o marco de fundação do pensamento histórico grego. Os logógrafos, então, são autores lançados em uma espécie de “limbo”, no limite entre o epos dos poetas e a história propriamente 38 Estrabão, o geógrafo do século I a.C., afirmou, no entanto, que a prosa era na verdade a reprodução da linguagem dos poetas, possuindo todas as qualidades poéticas, mas sem a métrica. Ele citou como exemplos de prosa mais antiga Cadmo e Hecateu de Mileto, além de Ferécides de Siros (Strab.I 2,6). 39 Alguns escritores de prosa do século VI a.C. não são considerados logógrafos em sentido estrito, a exemplo dos filósofos Milésios Anaximandro e Anaxímenes, ou do teólogo Ferécides de Siro. Mas Heródoto chama expressamente Hecateu de “logopoiós”, fazedor de logoi (II, 143).

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dita de Heródoto40. O motivo geral é que eles não demonstram rigor científico em seus trabalhos, ao misturar lendas e fatos, acriticamente. Também o estado fragmentário de sua obra serviu para descolorir a imagem deles como historiadores, ao contrário dos livros mais conhecidos de Heródoto ou Tucídides, que conseguiram chegar completos à modernidade. Mas os logógrafos não devem ser excluídos da classe “historiadora” grega, desde que deixaram nítida sua consciência histórica, tentando organizar o passado, revisando mitos, e estabelecendo de forma mais crítica as relações entre presente e passado, a seu modo. A situação dificulta quando vemos muitas características logográficas em Heródoto, e quando alguém como Tucídides (I, 21) o viu pejorativamente como um logógrafo41. Merece menção a famosa referência do historiador Dionísio de Halicarnasso (séc.I a.C.) sobre os mais antigos prosistas da Grécia, que haviam se ocupado de história antes e no tempo de Heródoto. Em seu tratado sobre Tucídides (cap.V), ele cita doze nomes de autores anteriores à Guerra do Peloponeso, dos quais nove provinham da Ásia Menor e de ilhas vizinhas. Entre os mais famosos são citados Cadmo e Hecateu, de Mileto, Helânico de Lesbos, Acusilau de Argos e Xanto da Lídia. Entre os menos conhecidos, Eugeon de Samos, Deioco 40 Ver COLLINGWOOD, R.G. A Ideia de História. Trad. Alberto Freire. Lisboa: Presença, 1994, pp.27-31. CASSANI Jorge L. - PÉREZ AMUCHÁSTEGUI, Antonio J. Del Epos a La Historia Científica. Buenos Aires: Nova, 1971, pp.31-35. Muitas vezes, os logógrafos nem são citados, como na análise de F. Hartog, que passa de Homero a Heródoto. Cf. HARTOG, F., 2003, pp.15 e ss. Segundo L. Pearson, não é nada adequado separar epos e logos, considerando esses primeiros prosistas, pois eles traziam em suas obras mitos, anedotas, lendas, sagas, tradições nacionais e história popular. In: PEARSON, L. Early Greek Historians. Westport: Greenwood Press, 1975, p.05-06. 41 Para Tucídides, autores como Heródoto apenas queriam agradar os ouvidos do público, com seus contos cheios de coisas fabulosas (mythodes, cf. Tuc.I 22). Mas nenhum desses dois autores se afastou totalmente dos mitos, muito pelo contrário. No caso de Heródoto, é sugestivo saber que, embora ironizando o logopoios Hecateu, seu predecessor, ele denominou as partes de sua própria obra como “logoi” (por ex. I 75 e 107 ou VI 39). A autora italiana Silvana Cagnazzi (1975) estudou os 28 logoi catalogados da obra de Heródoto, por exemplo, a história de Creso e Ciro, a de Cambises e Dario, a do Egito, dos Citas, dos Líbios, etc.

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do Proconeso, Eudemo de Paros, Dêmocles de Figela, Damastes de Sigeu, Xenomedes de Céos e o Ateniense Meleságoras, todos eles nascidos antes da Guerra do Peloponeso, e portanto, contemporâneos de Heródoto42. Ou seja, Dionísio distingue e classifica a personalidade do escritor, autor – singrapheis em grego, como “historiador”, para a época anterior ou contemporânea a Heródoto. Para ele, são homens do passado que escreveram para criticar a tradição épica ou investigar os fatos. Algumas dessas referências são conhecidas apenas pelo nome, pois de todos eles, nenhuma obra completa sobreviveu, apenas uma massa variada de fragmentos reunidos no começo do século XX pelo filólogo alemão Felix Jacoby, nos quinze volumes de seu Fragmente der griechischen Historiker43 (Fragmentos dos Historiadores Gregos), escritos entre 1923 e 1959, mas inacabada devido à morte do autor. Basicamente, a literatura praticada por esses logógrafos versava sobre temas bastante afins: as genealogias, por exemplo, estiveram bem presentes por causa da exigência aristocrática em se fazer descender de heróis e deuses. Antes deles, as obras de Hesíodo, como já dissemos, ou a tradição do Ciclo Tebano (Edipodia, Tebaida, Alcmeónida) já demonstravam a importância dessa temática na cultura grega. Helânico, um prolífico escritor do século V a.C., tentou ordenar o passado mítico de heróis como Foroneu, Deucalião, Atlas e Asopo nas obras intituladas Foronide, Deucalionea, Atlantide e Asopide44. Entre outros temas, os contos de fundação de cidades (ktiseis), também foram produzidos no intuito de preservar e ao mesmo tempo instituir um passado que se desejava imortalizar. Assim fizeram Cadmo para Mileto, e Helânico para Quios, por exemplo. De modo semelhante, na 42 FOWLER, R. Herodotus and his prose predecessors. In: DEWALD, C.MARINCOLA, J. The Cambridge Companion to Herodotus, Cambridge: Cambridge University Press, 2008. Pp.29-45. Para a passagem de Dionísio, ver o Test.5 de Helânico em CAEROLS-PÉREZ, J.J., op. cit., p.61. 43 JACOBY, F. Die Fragmente der Grienchischen Historiker. Genealogie und Mythographie. Leiden: E.J. Brill, 1957. 44 CABALLERO LÓPEZ, J.A. Inicios y desarollo de la historiografia griega. Madrid: Sintesis, 2010, p. 48.

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mesma época, poetas e filósofos escreveram sobre essa temática, como Xenófanes e Íon, sobre a fundação de suas cidades de origem Cólofon e Quios, respectivamente. Além desses assuntos, a periegética surgiu como um importante objeto logográfico, a destacar a mais famosa obra do gênero no século VI a.C., a Periegesis ou Circuito da Terra, de Hecateu de Mileto, herança clara do saber geo-histórico acumulado pela expansão colonizadora milésia. O conhecimento do mundo, como forma de controle do espaço, também constituiu expressão de poder. Os grandes viajantes do mundo grego não eram exploradores independentes, mas estavam a serviço de seus Estados, seja em função de ampliar domínios coloniais, ou por causa das trocas comerciais. Isso gerou um amplo conhecimento geográfico sobre as regiões fronteiriças do Mediterrâneo. A etnografia, por sua vez, mostrou-se um assunto cada vez mais crescente nos novos textos que surgiam. Os povos bárbaros que habitavam o mundo conhecido, vizinhos ou não dos Gregos, há tempos chamavam a atenção popular: os Citas, os Egípcios, Etíopes, Fenícios, e outros grupos lendários, como os Hiperbóreos, Pigmeus ou as Amazonas sempre fizeram presença na literatura grega, desde Homero e Hesíodo. As narrativas sobre as origens de povos e cidades, bem como a etimologia de seus nomes também chamaram a atenção dos primeiros historiadores, no tempo em que etnografia, geografia e história constituíam disciplinas indistintas entre si. Hábitos exóticos, roupas ou culinárias estranhas igualmente incitavam a curiosidade grega; aliás, todo tipo de notícia interessante, lendas incríveis ou maravilhas naturais serviram de objeto de registro para os logógrafos. Essa literatura foi pedagogicamente muito útil no decorrer do século V a.C., quando a cultura na Pólis foi dominada pelos chamados sofistas, os novos educadores da rica juventude grega. O exemplo de Hípias, citado por Platão (Hip. Ma. 285 d-e) é bastante elucidativo nesse sentido. Quando Sócrates pergunta ao grande orador de Elis quais os assuntos que os lacedemônios tinham prazer de ouvir e aplaudiam, ele responde: histórias da geração dos heróis e homens (Peri ton genon ton te heroon kai anthropon), da fundação de colônias (katoikiseon) e tudo o que se relacionava com a Antiguidade (pases tes archaiologias). Ou seja, eles gostavam de escutar discursos sobre os temas elaborados pelos logógrafos em

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suas obras. O sucesso geral dos livros de Heródoto e Tucídides também comprovava a utilidade pública dos assuntos históricos dentro da sociedade políade clássica. Esse tipo de saber, ao mesmo tempo em que entretinha e divertia os ouvintes e leitores, ensinava-os e informava-os sobre a própria sociedade e sobre a vida e terra dos bárbaros, uma função pedagógica semelhante ao da poesia, em outros tempos. Torna-se válido, a partir de agora, tentar esboçar a postura desses antigos autores, logógrafos, mitógrafos e cronologistas diante das genealogias gregas, no intuito de perceber as ligações entre o poder aristocrático e a atividade historiográfica em geral. Esses homens continuam o esforço de “historicizar” o epos, um processo que teria se iniciado antes deles, como defende Santo Mazzarino45, com os trabalhos de Calino, Mimnermo e Epimênides, nos quais seriam encontrados os primeiros indícios da chamada “crítica histórica” grega. A poesia elegíaca dos dois primeiros era recheada por informações históricas e lendárias acerca de eventos antigos no mundo grego e bárbaro. O passo que deram, no sentido da História, também foi de estabelecer a continuidade entre passado e presente. Ao registrarem outros relatos que circulavam em seu tempo, forneciam suas próprias versões acerca das coisas, conforme a situação atual. Esses poetas usaram o canto para falar sobre a invasão dos Cimérios na Anatólia, sobre a história dos Pelasgos (habitantes primitivos do Peloponeso), a fundação de Esmirna, a história do reino vizinho dos Lídios, entre outras, e terminaram servindo como fontes para historiadores mais tardios, como Heródoto e Tucídides. Já Epimênides, figura quase lendária segundo a tradição, natural de Creta, era um teólogo inspirado, um místico entendido acerca dos assuntos divinos, não um logógrafo ou historiador. Mas é ainda S. Mazzarino46 que vê nele um profeta do passado, alguém que se preocupou com a verdade pregressa para alcançar um melhor entendimento do presente e do futuro. A atenção por ele concedida ao passado o capacitava de prever, interpretar e analisar os eventos humanos em jogo, apesar da abordagem religiosa 45 MAZZARINO, S. Il Pensiero Storico Clássico. V. I. Roma-Bari: Laterza, 1990, pp.44-52. 46 Op. cit. pp. 46-47.

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típica de sua personalidade. Foi assim que o iniciado Epimênides trabalhou para purificar Atenas de uma pestilência que assolava o lugar, atribuindo como causa da desgraça o assassinato dos Cilônidas (Diog. L. I, 109), nos finais do século VII a.C. Entre os logógrafos, o primeiro destaque que vale a pena investigar, por causa de seu trabalho genealógico e de sua antiguidade, veio da Jônia: Hecateu de Mileto. Esse autor pode ser considerado o mais importante logógrafo e o mais antigo historiógrafo com um número considerável de fragmentos preservados. Ele aparece como o primeiro na lista dos historiadores gregos, nas antologias modernas, como as de C. e T. Müller e F. Jacoby47. Hecateu ganhou fama, entre antigos e modernos, porque foi o único antecessor declarado de Heródoto, que apesar de ironizá-lo sempre que podia, não abandonou o seu espírito crítico no campo historiográfico. No Período Helenístico e no Período Imperial, Hecateu foi respeitado como geógrafo, por exemplo, por Eratóstenes e Estrabão. Ele nascera em Mileto, em torno de 560-550 a.C., e teve uma participação destacável no contexto das Guerras Pérsicas, segundo o relato de Heródoto (V 36, 125-126). Pelo que diz a tradição, Hecateu foi um homem muito viajado e culto, o autor que declarou pela primeira vez e expressamente que “escrevia”, e que tinha interesse na verdade. O poder da escrita não está apenas em registrar para preservar, mas também é capaz de reformular ou recriar o que um autor encontra ou pensa. A prosa em dialeto jônico, que Hecateu utiliza de forma apurada, era o veículo de cultura elevada nos séculos VI e V a.C., mas seu estilo foi pouco preservado do original, conforme se nota pelo estado atual de seus fragmentos. Ao afirmar que os lógoi dos gregos eram “muitos e ridículos” (F1)48, logo no preâmbulo de sua obra Genealogias, ele institui, sem dúvidas, o mais antigo método de pesquisa histórica do Ocidente. Enquanto autoridade em muitos assuntos, e por ser uma figura de refinada linhagem milésia, sua expressão apenas indicava, para muitos, o próprio orgulho 47 MÜLLER, Carl & Theodor, Fragmenta historicorum Graecorum, T.I. Paris: Didot, 1849. JACOBY, F. Op. cit. (FGrHist). 48 Leia-se F1 de Jacoby. Todos os fragmentos de logógrafos citados neste trabalho seguem a numeração da obra desse autor alemão, em seu FGrHist.

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aristocrático49. Seu trabalho genealógico percorreu o caminho de estabelecer as linhagens humanas, revisando alguns mitos famosos, como o de Hércules, além de fornecer uma abordagem mais verossímil para os absurdos da mitologia. A propósito, esse último sentido da obra de Hecateu tem sido visto como marca da racionalidade jônica (logos) sobre a imaginação desvairada dos mitos (mythos)50. Entretanto, ele estava longe de ser um indivíduo anti-religioso, ou que rompera com qualquer presença sobrenatural nos discursos que produziu. Ele apenas revisava aquilo que lhe parecia adequado, colocando-se contra algumas impossibilidades e contra a diversidade de versões míticas que circulavam. Por exemplo, ele quis explicar geograficamente por quais rios e mares teria passado a nave Argo (F21) em sua viagem; afirmou que os filhos de Egito não eram cinquenta, como dizia Hesíodo, mas que nem chegavam ao número de vinte (F23); que Gerião, de quem Hércules roubara os bois, nunca governara na Ibéria (F26), e assim por diante. Seu trabalho tende a organizar a tradição mítica grega, sem tantos absurdos e versões. Ao contrário de Acusilau, que estudaremos a seguir, o Milésio não gasta seu tempo com cosmogonias e teogonias de tempos imemoriais, mas prefere saber a origem das cidades e dos seus habitantes, de onde vem sua denominação, e quais os deuses ou heróis que mantêm alguma ligação com eles. Hecateu não negligenciou as grandes temáticas mitográficas de seu tempo, como a questão dos Pelasgos (F127), Deucalião e seus filhos (F13 e F15), a viagem dos Argonautas (F17-F18a), os trabalhos de Hércules, (F24 e F26), as Amazonas (F40), os Pigmeus (F328a), etc. A passagem citada por Heródoto no Livro II (143-145) vem a ser uma das poucas informações biográficas existentes de Hecateu, e serve bem para ilustrar o espírito genealógico jônico nos finais do século VI a.C. Diz Heródoto que quando seu antecessor esteve no sul do Egito, em visita a Tebas, afirmara aos sacerdotes locais que descendia de um deus na décima sexta geração. Os sacerdotes negaram-se aceitar essa alegação, dizendo que não 49 PEARSON, L.I. Early Ionian Historians. Westport: Greenwood Press, 1975, p. 97. 50 Cf. FERTONANI, R. Ecateo di Mileto e il suo Razionalismo. In: La Parola del Passato. V. I (1952) Pp. 18-29. MOMIGLIANO, A. Il Razionalismo di Ecateo di Mileto. In: Atene e Roma, XII (1931) Pp. 133-142.

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existia mortal com origem divina ou heroica. Assim, convidaram Hecateu a visitar um templo onde lhe mostraram 345 estátuas de antigos sacerdotes, e disseram que cada um do quais havia herdado sua função do pai, sem nenhuma ascendência divina. Esse impacto sofrido por Hecateu diante de tão antiga civilização, com certeza deve tê-lo ajudado a repensar a própria cronologia grega, e também serviu a outros autores, sobretudo Heródoto51. É improvável que após esse encontro, o Milésio tenha deixado de acreditar na sua própria linhagem divina ou na dos nobres clãs gregos. Mas no mínimo, o evento, caso seja verídico, serviu-lhe para fazer comparações cronológicas entre gregos e bárbaros. A maior parte das passagens que referem sua obra Genealogias é proveniente dos escólios, ou seja, comentários das grandes obras clássicas, e por autores tardios como Pausânias, Ateneu ou Herodiano. Pelo que podemos perceber nesses relatos, o intuito genealógico de Hecateu era ligar passado e presente, a fim de enobrecer as gerações atuais52. Esse trabalho do Milésio foi dividido em quatro livros, dos quais hoje nos restam pouco mais de trinta fragmentos. Não há dúvidas, entretanto, que dependeu de obras de autores antigos, como Hesíodo, e que manteve contato com escritos contemporâneos, como os de Acusilau53. Acusilau, diferente da maioria dos logógrafos conhecidos, não provinha da Jônia nem das Ilhas, mas do continente grego, da velha Argos. Não sabemos muito sobre sua vida, mas aparece ativo na segunda metade do século VI a.C. Uma tradição antiga preservada pelo Léxico Suidas afirma que ele havia escrito o texto de sua obra, também intitulada Genealogias, em tábuas de bronze que seu pai encontrara enterradas em certa parte de sua casa54. Essa lenda tardia, apesar de geralmente não receber crédito entre os estudiosos55, não deve ser vista como absurda, já que não é o 51 MITCHEL, F. Herodotos use of genealogical chronology. In: Phoenix, 10 (1956), 48-69. P.62. 52 BERTELLI, L. Hecataeus : from Genealogies to Historiography. In : LURAGHI, N. (Ed.) The Historians Craft in the Age of Herodotus. Oxford : Univ.Press., 2001, p.31. 53 MAZZARINO, S. op. cit., p.60. 54 Ver em Suidas “Acusilau”, Test. 1, de Jacoby. 55 PÀMIAS, J. Acusilau d´Argos i els primers mitògrafs: entre oralitat i escriptura. In: Faventia 30/ 1-2 (2008), p.167. Disponível em www.raco.cat/index.php.

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único caso do gênero. No século V a.C., o famoso astrônomo Enópides de Quios (c.450 a.C.) havia depositado em Olímpia uma tábua de bronze na qual tinha figurado os movimentos dos astros durante um ciclo de cinquenta e nove anos, segundo conta o autor romano Cláudio Eliano (c.200 d.C.)56. Também lembramos que o mapa-múndi de Hecateu, versão melhorada da carta de Anaximandro, havia sido gravado em um prato (pinax) de Bronze, provavelmente o mesmo objeto que Aristágoras, tirano de Mileto, havia mostrado em Esparta (Herod. V, 49), durante a Revolta Jônica. Mas se tais informações são confiáveis ou não, o certo é que Acusilau utilizou a prosa para compor seus textos, no dialeto da erudição de seu tempo, o jônico. Ele foi um reconhecido mitógrafo das tradições gregas, e por sua antiguidade, serviu de fonte aos eruditos mais recentes, como Apolodoro, Filodemo, Clemente e alguns comentadores. Seus fragmentos constam nas obras de F. Jacoby e H. Diels – cerca de quarenta passagens – que já são suficientes para termos uma boa noção do escopo de seus escritos. A análise dos fragmentos de Acusilau demonstra que esse autor tomou muitas de suas informações míticas das obras de Hesíodo, apesar de utilizar a prosa para compor. Para exemplificar, ambos os autores diziam que, antes de todas as coisas veio o Caos (F6), que Zeus havia gerado Asclépio (F18), que Io era filha de Pirene (F26). Mas ele também age com alguma crítica ao escolher versões míticas diferentes da interpretação hesiódica, e assim discordando do seu antecessor, como sobre os Pelasgos, sobre a genealogia de Deucalião, de Cila, e de Proteu (F25, F42 e F11). Em seu programa geneo-mitográfico, Acusilau inicia remetendo ao campo cosmogônico e teogônico, com Caos, Gaia, Noite, os titãs, chegando até o mundo grego, com o primeiro humano, Foroneu, não por acaso referido como o primeiro rei de Argos. Ele também oferece sua versão sobre as causas lendárias da Guerra de Tróia (F39), da geração de algumas personagens recorrentes da mitologia, como Europa, Io, Héracles, Argo, Deucalião, entre outros. Mas esse autor não pode ser visto como mero compilador de mitos, pois ele já exercitava a crítica como já fizera Hecateu, no sentido de buscar resolver algumas inverossimilhanças presentes nas tradições míticas. Tais 56 41DK9A.

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críticas são raras nos fragmentos de Acusilau, a exemplo de sua alegação sobre o famoso velo dos Argonautas, que diziam ser de ouro, mas para ele havia se tingido de cor púrpura por causa da água do mar (F37). Em continuação aos trabalhos logográficos de Hecateu e Acusilau, não pode passar despercebido o nome de Ferécides de Atenas. Esse autor é geralmente confundido com seu homônimo, Ferécides de Siro, teólogo e filósofo do século VI a.C.57 O autor Ateniense foi reconhecido como genealogista, que teria vivido em meados do século V a.C., sendo, portanto, um contemporâneo de Helânico, Acusilau e Heródoto. Sua obra mais famosa chamavase Histórias, em dez livros, e continha histórias das gerações de algumas famílias e personalidades famosas do mundo grego. F. Jacoby registrou e apresentou 172 fragmentos de sua obra, a maioria deles presentes em escólios a outros autores que trataram mitos, como Homero, Hesíodo, Píndaro, Eurípedes, Apolônio de Rodes, entre outros. Ele não tratou de fornecer as origens teogônicas e cosmogônicas, como Hesíodo ou Acusilau, mas preferiu expor a linhagem de algumas famílias importantes das póleis gregas, desde o herói fundador até o tempo presente. Por exemplo, ele apresenta a estirpe de Milcíades, grande estrategista ateniense do século VI a.C. (tio do herói de Maratona, Milcíades, o Jovem) da Casa dos Filaidas, uma das mais nobres e ricas de Atenas, descendente de Fileu, filho do grande Ájax. Nesse contexto, ao ser exposto publicamente, o trabalho de Ferécides ajudará a consolidar o valor aristocrático de nobreza de sangue com base no passado heroico58. Em seu catálogo de genealogias, Ferécides tocou em mitos bem conhecidos dos gregos, como o de 57 PÀMIAS, J. Ferecides de Siros y Ferecides de Atenas: una nueva aproximación. In: Cuadernos de filología clásica, 15 (2005), págs. 27-34. Disponível em http://dialnet. unirioja.es/. Há quem defenda, contra a interpretação geral, que ambos os autores de nome Ferécides, o de Siro e o de Atenas, tratam-se da mesma pessoa. TOYE, D. L., ‘Pherecydes of Syros: Ancient Theologian and Genealogist’, in: Mnem.4 50. (1997), 530–60. 58 Não quer dizer que ele tenha criado ou inventado o formato geral (e mais conhecido) dessa genealogia. Mas ao registrá-la e torná-la pública, talvez com ‘retoques’ próprios, Ferécides depositará ali sua autoridade para reforçar a propaganda aristocrática. Ver a discussão sobre a genealogia dos Filaidas em THOMAS, R. op. cit., pp.161 e ss.

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Hércules (F68 a F83), o da viagem dos Argonautas (F98 a F113a), o da Guerra de Tróia (F136 a F144), entre outros. Esse autor não segue a crítica racional de Hecateu, por exemplo, mas tenta dar coerência e sincronia a muitos mitos gregos, sem negligenciar a realidade presente. Outro prosista de importância inegável no século V a.C. foi Helânico de Lesbos. Esse autor natural de Mitilene, principal cidade de Lesbos, produziu a obra mais extensa e variada entre todos os logógrafos. São mais de vinte títulos atribuídos a ele, em temas que vão de genealogia, história e geografia, até cronografia, etnografia e literatura. Segundo as fontes, estava ativo por volta de 450 a.C., sendo então, um contemporâneo de Heródoto, e o final de sua vida aproxima-se do fim desse mesmo século. O que restou de suas obras possui um volume em nada desprezível. Felix Jacoby foi quem também reuniu e ordenou seus testemunhos e fragmentos, que ultrapassam as duzentas passagens. O tradutor de seus fragmentos para a língua espanhola, José J. Caerols Pérez, defende que o projeto central de Helânico, em sua atividade literária, foi “revisar, prolongar, sistematizar e racionalizar os trabalhos precedentes de Hecateu”59. Isso explica, em parte, seu grande interesse pela investigação de assuntos genealógicos e mitográficos, bem como geográficos. É possível imaginar que um homem assim fosse um dos mais instruídos da Hélade de seu tempo. Foi chamado de “aner polihistor”, “homem de variada investigação” por Agatêmero, geógrafo grego da época imperial. É também a única fonte logográfica citada nominalmente por Tucídides (I 97). Infelizmente, essa é a única citação de seu nome no século V a.C. Mas posteriormente, outros autores vão recorrer a obras suas para obter informações mitográficas de certa antiguidade: Ateneu, Dionisio de Halicarnasso, Estrabão, Ateneu, Estéfano de Bizâncio e muitos comentadores serão os principais fornecedores de fragmentos seus. Helânico tentou ordenar o passado mítico tratando de heróis conhecidos como Foroneu (F1a-F5a), Deucalião (F6a-F18), Asopo (F22) e Atlas (F19a-F21). Para cada um deles, conforme já foi dito acima, produziu um tratado particular, embora não tenha esquecido de heróis como Teseu (F164-F166) e Hércules 59 CAEROLS PÉREZ, J.J. Helánico de Lesbos. Fragmentos. Madrid: CSIC, 1991, p.01.

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(principalmente F103-F112). Ele investigou ainda algumas regiões gregas e comunidades destacadas nos cantos poéticos, como a Beócia, Arcádia (F36a e b), Argólida (F37-F49) e a Tróade (F23-F31), além de áreas de domínio bárbaro, como Egito (F53-F56), Lídia (F58), Pérsia (F59-F63) ou Cítia (F64-F71). Sua genealogia forneceu uma visão histórica pelo prisma local, e relacionou lugares e principais famílias com os feitos heroicos e lendários. No exaustivo estudo sobre Helânico realizado por L. Pearson em seu livro Early Ionian Historians, cuja primeira edição foi de 1939 (Oxford), conclui-se que a reputação do autor Lésbio enquanto mitógrafo era dependente de sua habilidade para organizar e arrumar a coleção de lendas, e enquanto historiador, se ele foi superado de certa forma por Tucídides ainda no século V a.C., foi completamente ultrapassado pelos escritores de história universal do século IV a.C., como Éforo, Teopompo, entre outros60. No final das contas, da mesma forma que Hecateu foi superado e apagado por Heródoto, os outros logógrafos, alguns dois quais não foram abordados neste trabalho, foram sendo superados pelos novos gostos literários e pelo estilo de outros historiadores. Ainda assim, não se pode negar que suas obras representaram o saber enciclopédico desde o século VI a.C., sendo útil para toda sorte interessados sobre o passado, desde sofistas, poetas, dramaturgos ou mesmo historiadores. No fim, eles terminaram atraindo a atenção da erudição antiquarista iniciada no Período Alexandrino, seja por sua autoridade nos assuntos míticos, seja simplesmente por sua antiguidade. O papel político que orientou os trabalhos genealógicos da antiga logografia grega não é uma questão a ser desprezada. As relações que foram estabelecias entre o passado mítico e o mundo das famílias aristocráticas da Pólis, expressas na literatura que emergia no decorrer do século VI a.C., irão configurar a tendência historiográfica da qual Heródoto será o porta-voz. Diríamos que para além do desejo criticar um passado fabuloso, de buscar as causas dos eventos, de priorizar o lado confiável das narrativas, de confrontar e renovar tradições mais antigas, ou de ter a consciência de um passado humano universal, houve, na atividade daqueles historiadores, um interesse político bastante 60 PEARSON, L. op. cit., p.233.

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claro. O desejo de dominar o passado – ou seja – de ter o poder de declarar o passado serviu, cultural e politicamente, para que certos setores daquela sociedade mantivessem privilégios, atribuições e interesses. Mas deve ficar claro, pelo que foi apresentado, que os logógrafos, em sua busca pelas origens, produziram suas obras em favor de várias Cidades-Estado. Escreveram em nome dos valores e tradições grandiosas de sua própria classe, a aristocracia, para um público que se agradava de suas histórias. As linhagens citadas em suas obras foram as que mereciam ser lembradas. As outras foram deixadas no esquecimento.



III Néstor e as políticas do tempo: diferenças etárias e relações de poder na Ilíada

N

Alexandre Santos de MORAES1

a introdução do capítulo X do Leviatã, Thomas Hobbes faz uma digressão antológica a respeito da questão do poder. Em linhas gerais, admite que o poder de um homem “consiste nos meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro”.2 O filósofo inglês considera ainda que “qualquer qualidade que torna um homem amado ou temido por muitos, é poder; porque constitui um meio para ad1 Aluno de doutorado do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense (UFF), sob orientação do Prof. Dr. Ciro Flamarion S. Cardoso. Esse artigo foi escrito durante a vigência da bolsa de doutorado “sanduíche”, realizado no âmbito do Instituto de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra, sob a co-orientação da Profa. Dra. Maria de Fátima Sousa e Silva, e com financiamento da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), aos quais registro meu agradecimento pelas oportunidades e auxílios. 2

HOBBES, T. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 83.

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quirir a ajuda e o serviço de muitos”.3 O pensamento social, de lá pra cá, refletiu amplamente a respeito dessa problemática, preocupando-se particularmente com o tipo de dispositivo que leva determinados agentes a estabelecerem ou a se submeterem a determinadas influências. Em linhas gerais, consideramos que poder evoca a capacidade que determinado agente (ou grupo de agentes) dispõe para fazer cumprir suas vontades, preceitos ou disposições a partir da influência que exerce sobre a capacidade decisória dos demais. O poder, no ponto de vista que assumimos, é sobretudo relacional, pois para sua constituição concorrem tanto a força influenciadora como a aceitação (passiva ou não) dessa influência. Neste artigo, ocupamo-nos particularmente de um tipo de relação de poder que se instaura e se desenvolve com base em discursos biologicamente justificados, isto é, em discursos que determinados agentes mobilizam tomando como base certas condições naturais, admitidas coletivamente como sendo capazes de estabelecer diferenças sociais por uma contingência existencial. Esse tipo peculiar de poder pode ser associado àquele que Pierre Bourdieu qualificou como “simbólico”, sugerindo que É necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.4

3

Idem.

4

BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 2001, p. 7-8. A título de exemplo, recorremos a um tipo de manifestação do poder simbólico observado no âmbito das relações de gênero. Segundo Bourdieu, O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes. Esse programa social de percepção incorporada aplica-se a todas as coisas do mundo e, antes de tudo, ao próprio corpo, em sua realidade biológica: é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade social. Cf.: BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 19-20.

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A questão das diferenças etárias também pode ser analisada com base nesse paradigma, especialmente porque os especialistas concordam que as fases da vida são fenômenos biológicos socialmente refletidos.5 No âmbito da poesia homérica, nas passagens que representam exemplos de interação entre pessoas de diferentes idades, nota-se a existência de um tipo de relação de poder assentada pela autoridade que se arroga em função do tempo de vida: em geral, os mais velhos tendem a exercer uma força impositiva, geralmente vista de modo legítimo e amplamente reconhecida pelos mais jovens. Retomando a leitura de Hobbes, consideramos que a idade, uma consequência inexorável da sobrevivência do indivíduo ao longo do tempo, sendo exibida aos olhares de todos através das mudanças do corpo, torna-se uma qualidade capaz de exercer influência sobre as condutas de outrem. Assim, a pergunta explorada ao longo desse artigo é: em que situações e com base em que justificativas é permitido aos personagens mais velhos da Ilíada assumirem o prelado das decisões e fazerem uso da palavra política, capaz de exercer influência e orientar a conduta dos demais? É imprescindível, antes de mais nada, que situemos o contexto em que tais questões se apresentam. Como é bem conhecido, os 15.693 versos da Ilíada discorrem sobre a célebre Guerra de Tróia, na qual aqueus e troianos combateram por mais de dez anos. Apesar disso, o tempo da ação é bem curto: apenas o nono ano do conflito é objeto das atenções dos poetas, sendo que as ações de fato duram apenas cinqüenta e seis dias. O cenário é, portanto, marcadamente belicoso, crivado pela ética guerreira e pela noção de heroísmo que caracterizava as sociedades helênicas dos séculos X ao IX a.C..6 Assim, as intervenções dos personagens mais velhos 5

BOURDIEU, La “juventud” sólo es uma palabra. In: Cuestiones de Sociología. Madrid: Akal, 2008, p. 145; DEBERT, A. A antropologia e o estudo dos grupos e das categorias de idade. In: Velhice ou Terceira Idade? Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 51; EISENSTADT, S. N. De geração a geração. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 1; GROPPO, L. A. Juventude: ensaios sobre Sociologia e História das juventudes modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000, p. 8; RODRIGUES, J. C. Tabu do Corpo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980, p. 45.

6

A datação dos poemas é fonte de inúmeros debates e polêmicas entre os

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costumam ocorrer com fins deliberativos, buscando sobretudo sugerir os melhores caminhos a seguir e os procedimentos a serem adotados. Néstor, que governava Pilos a despeito de sua idade avançada, é o exemplo mais recorrente. Donaldo Schüler observou que o ancião, “sempre que se põe a aconselhar, fornece planos claros, exatos, práticos”.7 De fato, a posição de Néstor em relação ao exército aqueu se mostrava inequívocamente definida: sua função era a de orientar os rumos do combate e conciliar as querelas através das sugestões que fornecia8. Agamêmnon, líder dos aqueus, expressava com bastante frequência a admiração que nutria pelo discursar do ancião: ‘ἦ μὰν αὖτ᾽ ἀγορῇ νικᾷς γέρον υἷας Ἀχαιῶν. αἲ γὰρ Ζεῦ τε πάτερ καὶ Ἀθηναίη καὶ Ἄπολλον τοιοῦτοι δέκα μοι συμφράδμονες εἶεν Ἀχαιῶν: τώ κε τάχ᾽ ἠμύσειε πόλις Πριάμοιο ἄνακτος E novamente excedes, sênior, os aqueus nos discursos. Ah! Se Zeus Pai, a deusa Athená e Apolo dessem-me, entre os aqueus, dez conselheiros como ti! Rápida seria a derrocada da pólis de Príamo.9

homeristas. Acreditamos, a despeito da tendência atual de situar a Ilíada e a Odisseia no quadro das transformações das sociedades helênicas de meados do século VIII a.C., que os argumentos de Moses I. Finley, que situam o núcleo narrativo dos épicos entre os séculos X ao IX a.C., permanecem resistentes às inúmeras críticas que se colocaram ao longo de seus mais de 60 anos de existência. Sobre o assunto, consultar FINLEY, M. I. El mundo de Odiseo. México: Fondo de Cultura Económica, 1978. Dois comentadores de Homero, também adeptos da tese do historiador inglês, merecem destaque, especialmente por concordarem que as epopeias são coerentes em relação aos valores, crenças e atitudes que teriam caracterizado a Idade do Ferro: ADKINS, A. W. H. Homeric values and Homeric Society, Journal of Hellenic Studies, nº 91, 1971, p. 1-14; e WHITLEY, J. Style and society in Dark Age Greece: the changing face of a preliterate society, 1100-700 BC. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. 7

SCHÜLER, D. A construção da Ilíada: uma análise de sua elaboração. Porto Alegre: LP&M, 2004, p. 77.

8

HOMERO, Ilíada, IV, 309-324.

9

HOMERO, Ilíada, II, 370-373.

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Não sem razão, a habilidade oratória e o poder persuasivo se caracterizam como os elementos mais recorrentes na caracterização de Néstor, materializados através de sua “fala doce” (ἡδυεπής). É inegável que a possibilidade de decidir era um privilégio de Agamêmnon, que exercia sua influência política de modo impositivo. Os anciãos, quando convocados, posicionavamse e aconselhavam, mas a última palavra era sempre do Atrida. A despeito disso, a particular deferência com que Homero representou o velho Néstor era exibida aos olhos da audiência a partir dos discursos sempre verdadeiros que enunciava. Ele tinha por característica a capacidade de antecipar os acontecimentos, dado que observava os dilemas e conflitos que se colocavam com clareza e distanciamento. A posição que Néstor assumiu, por exemplo, diante da contenda entre Agamêmnon e Aquiles, foi absolutamente coerente com o desenrolar da trama. Recorde-se que Criseida e Briseida, duas mulheres troianas, foram tomadas respectivamente pelo primeiro e pelo segundo como espólio de guerra na distribuição do butim. Outrossim, Crises, pai de Criseida e sacerdote de Apolo, rogou ao deus de sua predileção que vingasse o rapto da filha e foi prontamente atendido: as setas do filho de Leto e uma peste terrível que lançou estavam levando os gregos à ruína. A única solução, de acordo com o vaticínio de Calcas, era devolver Criseida a seu pai, posição esta que Aquiles defendeu enfaticamente. Agamêmnon, após relutar, concordou, mas tão somente se o filho de Peleu cedesse seu próprio espólio e o entregasse a ele. Essa atitude, certamente ofensiva, instaurou a célebre dissensão entre o rei dos reis e o melhor dos aqueus. Néstor, observando as discussões que se seguiram, procurou conciliar a demanda, já antevendo que o afastamento de Aquiles seria desastroso para o exército argivo. Tomou a palavra (uma ação, por si só, cabível apenas a quem goza de prestígio social), ponderou que os troianos se regozijariam com a querela e, antes de sugerir a Agamêmnon que não tomasse Briseida de Aquiles e de sugerir a Aquiles que não discutisse com Agamêmnon, justificou o prelado da palavra a partir dos méritos de sua idade provecta:

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ἀλλὰ πίθεσθ᾽: ἄμφω δὲ νεωτέρω ἐστὸν ἐμεῖο: ἤδη γάρ ποτ᾽ ἐγὼ καὶ ἀρείοσιν ἠέ περ ὑμῖν ἀνδράσιν ὡμίλησα, καὶ οὔ ποτέ μ᾽ οἵ γ᾽ ἀθέριζον. Acreditem! São ambos mais jovens que eu! Outrora já estive junto a homens mais bravos que vós, e eles, nenhum deles, desprezaram-me os ditos.10

Apesar de concordar com o discurso do ancião, Agamêmnon insistiu na contenda, censurando duramente o comportamento de Aquiles; este, a seu turno, insubordinou-se e decidiu recolherse ao ostracismo voluntário. Outrossim, a despeito de seu conselho não ter sido seguido, ninguém ousou contradizê-lo, e o desenvolvimento ulterior da narrativa exibiu a correção de sua fala, já que a vitória dos aqueus só foi assegurada quando ambos revisaram suas posturas e intercambiaram pedidos de desculpas. A partir desta passagem, Adkins assinala que A mera habilidade de fornecer bons conselhos não assegura as atenções na assembleia homérica. Isso não é suficiente, apesar de não termos dúvida de que é necessário. É necessário ser ou ter sido um guerreiro de valor, e Néstor reclama que em sua juventude ele o foi, e ainda mais valoroso tanto em relação ao que Agamêmnon e Aquiles seriam. Esse é um tipo de status em uma comunidade belicista que confere a expectativa de ser ouvido com devido respeito.11

Há, portanto, duas questões interdependentes, que concorrem para o acesso à fala e são constantemente reiteradas pelo próprio Néstor. A primeira é sua senectude que, se por um lado, assegura um tipo de saber consubstancial para fornecer bons conselhos, por outro lado o impede de combater12; a segunda é o fato de 10 HOMERO, Ilíada, I, 259-261. 11 ADKINS, A. W. H. Values, Goals, and Emotions in the Iliad, Classical Philolog y, v. 77, n. 4, 1982, p. 299. 12 E são inúmeras as passagens. Merecem destaque: HOMERO, Ilíada, XI, 669673; HOMERO, Ilíada, IV, 309-324; HOMERO, Ilíada, VII, 123-161; HOMERO, Ilíada, XI, 669-673; HOMERO, Ilíada, XXIII, 614-627.

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que fora, em um tempo inacessível aos demais, um guerreiro valoroso, e suas ações de outrora precisam ser recordardas com vistas a subsidiar o sentido de autoridade que sustenta seus discursos13. Assim, seu valor guerreiro, por não estar mais disponível aos olhos dos demais, precisa ser presentificado através desse esforço constante de reminiscência. É na glória do passado que sua autoridade encontra seus alicerces, e o desafio de fazê-la conhecida tem exatamente que ver com essa dimensão relacional do poder: sem o aval do grupo, nenhum ato heróico de outrora faria sentido. Homero, inegavelmente, assevera esse reconhecimento, e um dos mais fortes indicativos, caso tomemos por base a leitura de Carlo Brillante, é o uso constante da fórmula Γερήνιος ἱππότα Νέστωρ. O autor notou que o epíteto resgata um momento importante da juventude do ancião, educado na Gerênia (daí o epíteto Γερήνιος), onde reinava uma família aparentada com seu pai Neleu. Acontece que assim que retornou à casa, ainda jovem, urgiu a necessidade de defender Pilos. Neleu, ciente de que o filho estaria à testa do exército, escondeu os cavalos para preservar-lhe a vida. No entanto, assim que a batalha teve início, Néstor matou um homem com vistas a se apoderar do animal do adversário, que foi utilizado para trucidar inúmeros inimigos e fazê-lo se destacar no conflito14. Brillante considera que é esse o episódio que justifica o epíteto ἱππότα, já que o guiar dos cavalos o qualificou, diante da comunidade, como um valente guerreiro15. Assim, ainda segundo o autor, “os epítetos de ‘gerênio’ e de ‘condutor de carros’, não são simplesmente justapostos no âmbito das fórmulas tradicionais, mas sim evocam uma experiência única, que evidencia a qualidade heróica do personagem16. Situações como estas fornecem o substrato necessário para 13 Particularmente em: HOMERO, Ilíada, I, 259-262. 14 HOMERO, Ilíada, XI, 656 -762. 15 BRILLANTE, C. Nestore Gerenio: una postilla, Quaderni Urbinati di Cultura Classica, v. 69, n. 3, 2001, p. 137. Sobre a análise desse tema, consultar também BRILLANTE, C. Nestore gerenio: le origini di un epiteto. In: DE MIRO, E.; GODART, L.; SACCONI, A. (org.). Atti e Memorie del secondo congresso internazionale di micenologia. Roma, 1996, p. 209-219. 16 Idem, p. 138

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a construção de seu prestígio social, fundamentado a partir do relato de vivências e que permite a Néstor arrogar pra si a possibilidade de recomendar (ou ordenar), como em determinada batalha, que os dânaos só pilhem os bens troianos após liquidálos completamente17, ou a concitar e organizar o exército para os combates18. Sua palavra é eficaz dado que experimentou contendas que podem ser rememoradas para entender os cenários que se colocam e, assim, propôr soluções e caminhos. Essa posição exemplar também é justificada pela assimetria etária que se coloca comparativamente a todos os personagens homéricos, pois são mais jovens e, em função disso, situam-se em relação ao ancião em uma distância intransponível. É por essa razão que evocar as diferenças etárias é, para Néstor, um discurso estratégico e que estabelece, por força de sua aparência senil, uma atmosfera de verdade, posto que não há ninguém que possa com ele se equiparar em relação ao curso de vida. Uma contigência existencial, ou seja, a sobrevivência ao longo tempo, converte-se em virtude. Esse sentido mostra-se particularmente claro quando o ancião censura parte dos aqueus que consideram a possibilidade de retornar à casa antes da guerra vencida: ‘ὦ πόποι ἦ δὴ παισὶν ἐοικότες ἀγοράασθε νηπιάχοις οἷς οὔ τι μέλει πολεμήϊα ἔργα. πῇ δὴ συνθεσίαι τε καὶ ὅρκια βήσεται ἥμιν; Oh! Vergonha! Conduzem a assembleia como crianças ingênuas, pirralhos que nada sabem em matéria de guerra. Por onde andam as alianças e os juramentos?19

A velhice figura, portanto, como uma posição, um espaço de observação, um ponto distante e privilegiado que permite ao ancião sentenciar que determinados comportamentos, ao destoar da ética belicista da Ilíada, seriam tipicamente infantis (νηπίαχος20), ou seja, peculiares a alguém carente da potência 17 HOMERO, Ilíada, VI, 66-73. 18 HOMERO, Ilíada, IV, 291-293; HOMERO, Ilíada, VII, 123-161; HOMERO, Ilíada, X, 090-191. 19 HOMERO, Ilíada, II, 337-339. 20 Há uma longa discussão a respeito do vocábulo νήπιος, a partir do qual

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elucidativa da vivência. Expediente semelhante é utilizado por Odisseu quando Aquiles retorna ao combate e, ébrio pelo desejo de vingança, recusa a oferta de comida que lhe foi feita. Ciente de que uma boa refeição seria necessária para o sucesso do herói no combate, Odisseu o adverte e explica essa situação, não sem antes porém dizer-se mais velho, πρότερος, e declarar que, por correspondência, “sabe mais coisas”, πλείονα οἶδα.21 Outrossim, nem o passado guerreiro, nem a habilidade oratória são suficientes para assegurar o prelado das decisões. Vale retomar a passagem descrita há pouco, em que Néstor intervém na querela instaurada entre Agamêmnon e Aquiles. O discurso que buscava sanar na crise foi ouvido, não foi contradito e nem foi ao menos considerado inadequado, mas como a dissenção persistiu, é inegável que foi ineficaz. Antes de mais nada, resgatando a leitura de Adkins, nota-se que Néstor promoveu um “exercício de diplomacia”22. O ancião parece consciente de que sua sabedoria está subordinada ao poder político do Atrida. Em outras palavras, por mais verdadeiro e adequado que seja, seu discurso permanecerá ineficaz se não afetar o juízo de Agamêmnon. É nesse sentido que a noção de “diplomacia” proposta por Adkins, parece ter se desenvolvido o dativo νηπιάχοις, usado na passagem em questão para adjetivar o comportamento dos aqueus. Formada pelo prefixo de negação νη- associado ao termo ἒπος, “palavra”, “fala”, “discurso bem construído”, o vocábulo νήπιος significa precisamente “que não fala ainda”, “balbuciante” e, desse modo, passou a designar “crianças” e os sentidos que giram em torno da noção de puerilidade. Susan Edmunds notou oportunamente o paralelismo entre ἤπιος e νήπιος, considerando a primeira como uma palavra que parece ser a expressão positiva de uma raiz da qual a segunda é a expressão negativa. De acordo com a autora, tomando como referência passagens da Odisseia (IV, 32; II, 47; II, 234; V, 12; XV, 152), “quando alguém é nēpios é paîs hōs, “como uma criança”, ao passo que quando alguém é ēpios, é patēr hōs, “como um pai” (1990, p. 10). A autora também observa que o personagem caracterizado como ἤπιος é maduro, dá bons conselhos, entende de justiça e promove a coesão social; o νήπιος, contudo, é associado a um ambiente perigoso e fragmentado, ao risco de tornar-se um órfão, estando alijado do mundo social e sendo incapaz de observar leis de hospitalidade. Para uma síntese da questão, consultar EDMUNDS, S. T. Homeric nēpios. London: Garland Publishing, 1990, p. 98. 21 HOMERO, Ilíada, XIX, 219. 22 ADKINS, Op. Cit., p. 299.

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apesar de não encontrar uma ressonância ideal no vocabulário ou sociedade homéricas, mostra-se absolutamente pertinente em se tratando desse tipo peculiar de relação de poder, sustentado pela experiência, mas efetivo apenas com cuidadosas negociações. É essa negociação, essa diplomacia, que se mostra manifesta quando Néstor discorre a respeito do relato onírico de Agamêmnon. Ocorre que o favorecimento aos troianos era parte dos planos de Zeus, disposto a respeitar o apelo de Tétis em relação à honra de Aquiles. O Crônida envia, então, um sonho enganoso que, como era esperado, favoreceu amplamente o exército de Tróia. Porém, antes de incitar os aqueus à luta, o Atrida convoca a assembleia dos anciãos para deliberar cuidadosamente a respeito do assunto. Agamêmnon relata seu sonho e, em seguida, Néstor o comenta: ‘ὦ φίλοι Ἀργείων ἡγήτορες ἠδὲ μέδοντες εἰ μέν τις τὸν ὄνειρον Ἀχαιῶν ἄλλος ἔνισπε ψεῦδός κεν φαῖμεν καὶ νοσφιζοίμεθα μᾶλλον: νῦν δ᾽ ἴδεν ὃς μέγ᾽ ἄριστος Ἀχαιῶν εὔχεται εἶναι: ἀλλ᾽ ἄγετ᾽ αἴ κέν πως θωρήξομεν υἷας Ἀχαιῶν. Ó amigos, dos Argivos os chefes e guardiões! Tivesse relatado esse sonho qualquer um dos Aqueus, afirmaríamos que é enganoso e o abandonaríamos. Mas quem o sonhou foi quem se diz o maior e melhor dos Aqueus; Assim, vamos! Convoquemos às armas os filhos dos Aqueus.23

Homero sugere claramente que Néstor foi capaz de perceber o teor enganoso da predição (ψεῦδός) por suas características gerais. Outrossim, o acesso à palavra divina, verossímil por excelência24, era um predicado restrito a personagens que gozavam de algum tipo de privilégio. Além dos aedos e adivinhos, cujo conhecimento provinha da onividência dos deuses, heróis emblemáticos dos poemas tinham suas caracterizações marcadas 23 HOMERO, Ilíada, II , 79-83. 24 Essa questão nos remete invariavelmente à noção de “palavra mágico-religiosa” proporsta por Marcel Detienne, caracterizada pela sua eficácia e atemporalidade, sendo inseparável das condutas e dos valores, um privilégio de homens excepcionais. Cf.: DETIENNE, M. Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989, p. 45.

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pelo acesso diferenciado ao universo numinoso, tais como Aquiles e Odisseu. Néstor, portanto, encontra-se diante de uma situação limite: sentenciar a inadequação do discurso seria, por correspondência, questionar o valor e honra de Agamêmnon, e como recorda Jaeger, “a negação da honra era [...] a maior tragédia humana”25. Instaura-se um dilema cuja solução precisa ser considerada com base no inconteste poder político do Atrida; ao mesmo tempo, o ancião não pode recusar a própria condição de conselheiro, que sustenta seu próprio estatuto; por fim, Néstor é uma das personagens mais recorrentes na trama iliádica, e suas representações são absolutamente coerentes entre si, especialmente quando se asssociam aos bons conselhos. Era preciso evitar, portanto, uma caracterização idiossincrásica que destoasse do restante da narrativa. O escape encontrado, portanto, foi simultaneamente poético, político e diplomático: Néstor atrela a veracidade do sonho à personalidade de Agamêmnon, sugerindo que o que soa falso converte-se em verdadeiro na boca de um sujeito inspirado e, portanto, nobre e honrado. O ancião, ao transferir a responsabilidade do discurso para o prestígio social do rei, consegue simultaneamente indicar a inadequação do mesmo e valorizar tanto a sua própria fala quando a de seu interlocutor. Esse debate nos remete ao estudo de Walter Donlan que, refletindo acerca das estruturas do poder na Ilíada, considerou os aspectos da Autoridade do Líder como sendo “a habilidade, reconhecida, aclamada e assumida, de tomar decisões, dar ordens ou sugerir condutas específicas com a expectativa de que estas decisões/ordens/sugestões sejam persuasivas”26. O autor identificou 340 passagens em que determinado personagem exorta o grupo a adotar determinada postura ou a realizar determinada ação, e em 280 ocasiões a vontade do interlocutor é respeitada, de modo que a margem de é de 87%.27 Como conclusão, Donlan observou que a Ilíada é orientada para a preservação de um balaço 25 JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 312. 26 DONLAN, Walter. The Structure of Authority in the Iliad, Arethusa, 12 (1), 1979, p. 51. 27 Idem, p. 52.

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estrutural, pautado pela necessidade de restaurar a autoridade coletiva, reafirmar princípio de posição-autoridade e reduzir os atritos entre as reivindicações de posição. Nesse sentido, as representações do rei de Pilos são singulares, dado que, segundo o autor, “as intervenções de Néstor buscam sempre recuperar um sentido de cooperação coletiva.28 Néstor figura como uma espécie de “fiel da balança”, um ponto de equilíbrio em que Agamêmnon precisa se apoiar para sustentar a própria soberania. Essa situação parece particularmente clara no início do Canto IX. Em um momento delicado do conflito, tem-se de um lado o pessimismo de Agamêmnon, que aventa a possibilidade de abandonar o prélio, e o otimismo exacerbado de Diomedes, que apontou uma nova possibilidade de dissensão no interior do exército quando o Tideide declarou que lutaria à revelia da vontade do rei. Néstor intervém para reafirmar o princípio de equilíbrio e, dirigindo-se a Diomedes, sentencia: ἦ μὲν καὶ νέος ἐσσί, ἐμὸς δέ κε καὶ πάϊς εἴης ὁπλότατος γενεῆφιν: ἀτὰρ πεπνυμένα βάζεις Ἀργείων βασιλῆας, ἐπεὶ κατὰ μοῖραν ἔειπες. ‘ἀλλ᾽ ἄγ᾽ ἐγών, ὃς σεῖο γεραίτερος εὔχομαι εἶναι, ἐξείπω καὶ πάντα διίξομαι: οὐδέ κέ τίς μοι μῦθον ἀτιμήσει᾽, οὐδὲ κρείων Ἀγαμέμνων. Ainda és jovem; podias até mesmo ser meu filho, o mais novo de minha prole; mas falaste como um sábio aos chefes argivos, e tudo que disseste foi bem dito. Mas de minha parte, por ser mais velho do que ti, declaro que que ainda há o que dizer, e ninguém há de desonrar meu discurso, incluindo o soberano Agamêmnon.29

Nesse sentido, o intercâmbio de poderes entre rei e ancião (ou seja, o decisório e o conselheirático), dá o tom das relações políticas entre eles ao longo de todo o épico. Ainda no Canto II, interrompendo um banquete, Néstor exorta a necessidade de lançarem-se ao combate, e Agamêmnon o obedeceu prontamente30. A decisão do conselheiro de Pilos de cremar os mortos e separar 28 Idem, p. 58. 29 HOMERO, Ilíada, IX, 57-62. 30 HOMERO, Ilíada, II, 441.

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os ossos para entregá-los às suas respectivas famílias também foi igualmente aceite pelos reis que compunham o exército aqueu31. Por ocasião das batalhas perdidas, um Agamêmnon insone decide recorrer a Néstor em busca de projetos que alteressem o rumo desastroso que então se desenha no conflito32. Através da análise das relações de poder, conclui-se que Néstor figura como um artífice que busca promover a coesão necessária para a manutenção da ordem social. Trata-se igualmente de uma personagem que representa o quinhão da velhice sadia, assentada nas glórias e nas ações guerreiras de um passado inacessível aos demais, mas que se presentifica pela força da experiência. O orador de Pilos é capaz de exibir uma espécie de saber por antecipação que, evocado em meio às negociações com os demais líderes do exército aqueu, assegura-lhe uma posição de destaque graças ao reconhecimento público de seus méritos. Nessa rede intricada de deliberações, querelas, conflitos e dissensos, Néstor é a personificação do equilíbrio que assegurou, ao lado da potência guerreira dos heróis jovens, a vitória dos argivos na célebre guerra contra Tróia.

31 HOMERO, Ilíada, VII, 327-342. 32 HOMERO, Ilíada, X, 17-24.

IV Electra de Sófocles: gênero e poder em Atenas

A

Maria Angélica Rodrigues de SOUZA1

proposta do presente artigo é refletir sobre as tramas que as mulheres teciam em Atenas no Período Clássico. Defendemos que os enredos estavam relacionadas com o modelo aracne/mulher tecelã2. Concebemos que tais entrelaçamentos se constituíam em uma das possibilidades da presença das atenienses na dinâmica social que apresentava-se permeada por relações de gênero, poder e comunicação. O trabalho está inserido na dimensão historiográfica da História Social e sua interface especialmente com a História Cultural. A História Social ao propor objetos de estudo e interpretações que continham novos temas como o cotidiano, as experiências vividas entre homens e mulheres, a sexualidade e a vida em família, nos oferece condições para desenvolver estudos sobre as mulheres atenienses do Período Clássico, pois até a primeira parte do século XX discussões nos debates acadêmicos das ciências humanas envolvendo o grupo feminino foram relegadas. A partir de meados do século mencionado o quadro começa a se modificar. 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientada pelo Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa. Email: [email protected] 2 Mulher hábil em tecer e bordar mediante a concessão de Atená.

66 • Electra de Sófocles: gênero e poder em Atenas

Segundo Peter Burke a História Cultural foi redescoberta nos anos de 1970 e acentuou nas décadas 1980 e 1990 o interesse por cultura3, História Cultural e estudos culturais4. Dessa forma, com a consolidação nos debates acadêmicos, teorias que apresentam diferentes concepções da natureza da estrutura social, e especialmente da relação entre estrutura social e cultura, têm diferentes implicações na compreensão de como as pessoas consomem bens culturais. Em nosso estudo, incluso no contexto apresentado, estão as vestimentas e os adereços das atenienses. Lançaremos mão principalmente da tragédia de Sófocles Electra, do Oikonomikós de Xenofonte e de autores contemporâneos que pesquisam a temática para tratarmos neste artigo. Sófocles nasceu em Atenas (496 a. C.) e morreu em Colono Ática (406 a. C.). A tragédia Electra foi apresentada pela primeira vez em Atenas aproximadamente em 413 a. C.. O contexto da trama está relacionado com a lenda da Guerra de Tróia. Clitemnestra mata Agamêmnon quando este retorna da guerra com o auxílio de Egisto, primo de Agamêmnon e amante de sua esposa, Clitemnestra. Nessa ocasião Electra salva Orestes, seu irmão e envia-o a Estrófio, rei da Fócida. A personagem que dá nome à peça espera pelo retorno do irmão que vingará a morte de seu pai. A composição dramática inicia com o regresso de Orestes a Micenas. O tragediógrafo compõe Electra como uma mulher não submissa, astuciosa e que trama em momentos oportunos ações que conduzem a seus objetivos. Esta mulher requer uma atenção especial e deve ser vigiada, pois externa suas opiniões, questiona, rompe com o silêncio (σιγή) que deveria ser uma das qualidades das esposas dos cidadãos, não se deixa diminuir, assim observamos, quando as questões de gênero e poder se fazem presentes. Peter Burke ao tratar de fontes na Grécia Antiga ressalta que 3

De acordo com Peter Burke “O termo cultura costumava se referir às artes e às ciências. Na última geração, a palavra passou a se referir a uma ampla gama de artefatos (imagens, ferramentas, casas e assim por diante) e práticas (conversar, ler, jogar)” BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 43.

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BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 75.

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segundo John Winkler os documentos foram produzidos quase totalmente pelos homens, mas podem ser interpretados sob a ótica inversa, trazendo a tona pontos de vista femininos sobre assuntos diversificados como sexo e outros “(...) uma consciência por parte das mulheres gregas, no que se refere aos significados de sexo e gênero diferentes dos enunciados por seus maridos e pais”5. Inserida neste contexto Neyde Theml afirma que a tragédia e o teatro fazem emergir uma forma de divulgar e criticar os valores da pólis e também os democráticos; visto que é no teatro que os mitos são reinterpretados e apresentados em várias versões ao público. E não é qualquer público, mas aquele que tem a necessidade de ouvir e ver6. Partiremos do pressuposto de que a tragédia sinalizava que as mulheres utilizavam os recursos de sua esfera para conseguir o que almejavam e que os escritores lançaram mão de um repertório cotidiano, entre outros, para construir suas produções e partilhar com os atenienses suas concepções. Trabalharemos no decorrer do artigo teias que foram elaboradas por Electra na tragédia, utilizando-se de uma métis com o intuito de atingir seus propósitos. Electra aguardava o retorno de seu irmão para concluir seu intento: vingar a morte de seu pai. A estudiosa Carlinda Fragale Pate Nuñez euforiza que Electra refugia-se nos cantos, fortalezas onde ela armazena o ódio, lugares-tenentes da solidão auto-impingida, esconderijos em que recolhe o ultraje e donde espreita a oportunidade para a revanche7. Nas palavras de Crisótemis, personagem irmã de Electra, podemos verificar que esta externa seus sentimentos rancorosos “Por que vieste novamente, irmã, gritar e lamentar-te assim às portas do palácio? Não aprendeste, decorrido tanto tempo, que o ódio apenas nutre inúteis esperanças?”8. Percebemos que o 5

BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 41.

6

THEML, Neyde (Coord.) Linguagens e formas de poder na antiguidade. Rio de Janeiro: FAPERJ, Mauad, 2002, p. 14.

7

NUÑEZ, Carlinda F. P. Electra ou uma constelação de sentidos. Goiânia: Editora da UCG, 2000, p. 184.

8 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 316-319.

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tempo não é um fator, neste caso, que indica a desistência e nem o esquecimento de Electra diante de seu objetivo, ao contrário, se constitui em um elemento afirmador dos fins que se deseja alcançar. Sófocles reitera nos versos que seguem após apresentar esta posição determinada de Electra na própria fala de Crisótemis o modelo de conduta que deveria ser seguido por Electra e que era permeado pelas relações de gênero e poder: “Sei que a justiça não está comigo, irmã; está contigo, mas se quero viver bem devo curvar-me aos detentores de poder”9. O autor euforiza a obediência diante dos que detêm o poder, a submissão diária que as mulheres deveriam vivenciar e que estaria inclusa no modelo tradicional, o modelo mélissa e ao mesmo tempo põe em xeque esta relação de poder, evidenciando sua diluição. O desejo de vingança é um dos itens que diferencia Electra da irmã. Com o intuito de continuarmos analisando esta fonte enfatizaremos a intertextualidade e colocaremos Sófocles para dialogar com Xenofonte na questão da submissão contida no modelo mélissa. Ao estudarmos o Oikonomikós de Xenofonte, nos concentramos principalmente nas referências acerca do comportamento peculiar a uma esposa bem-nascida. Percebemos que o texto de Xenofonte euforiza as ações femininas de acordo com a idealização da sociedade; assim o autor constrói um modelo de conduta para a esposa desde sua preparação para o matrimônio, passando pelo conhecimento de algumas tarefas peculiares até a complementação dessa educação recebida na casa dos pais pelo esposo. É interessante observarmos que Xenofonte detalha o modelo mélissa objetivando mostrar a importância da concepção deste por parte da esposa, pois ajudaria no desempenho de suas tarefas cotidianas, já que as mulheres atenienses também eram responsáveis pela preservação dos bens do casal, podendo ser uma ótima ou má administradora. Neste último caso, ela poderia levar a ruína um cidadão: “Também te posso citar maridos que de tal modo lidam com suas mulheres que as transformam em úteis auxiliares para o fomento de sua casa, enquanto para outros são elas causa essencial de ruína”10. 9 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 325-327. 10 XENOFONTE. Oikonomikós. Biblioteca de Altos Estudos. Academia das

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Nesta perspectiva, contextualizaremos este documento, por acreditarmos que o momento no qual a pólis dos atenienses estava vivenciando, se fazia necessário propostas que resgatassem modelos, formas que estavam se distanciando naquele período. As informações que obtivemos após um mapeamento da vida de Xenofonte (430 a. C. a 355/350 a. C.) nos permitiram afirmar que sua família pertencia a uma aristocracia fundiária, agrária de Atenas. De acordo com Denis Roussel, temos poucas informações sobre sua vida, mas para nós suas obras constituíram um testemunho precioso. Aparentemente Xenofonte foi educado com bases em um regime que tinha aversão ao governo popular11. Xenofonte em 401/399 fez parte de um grupo de mercenários que apoiava Ciro contra seu irmão, o rei da Pérsia. Roussel afirma que Xenofonte em sua obra Anábasis explica como decidiu, junto com seu amigo beócio Proxeno, se unir a Ciro, apontando principalmente a busca de riquezas fora de Atenas que se encontrava destruída pela guerra12. Foi banido de Atenas por ter lutado ao lado dos espartanos. Viveu durante um tempo perto de Olímpia, dividindo seu tempo entre a agricultura, a equitação e a escrita de suas obras. Possivelmente se refugiou em Corinto, tendo morrido nesta pólis. Com o término da guerra do Peloponeso, os atenienses vivenciaram um momento de crise, suas conquistas no decorrer do século V, quando Atenas chegou a liderar um grande número de póleis, não mais faziam parte do cotidiano. Dessa forma, podemos perceber que o V século para os atenienses foi um momento em que a pólis atingiu o auge e no final deste enfrentou uma crise significativa com o findar da guerra contra os lacedemônios. Pressupomos que Xenofonte, na maioria das vezes, utilizou argumentos para ratificar a ideologia. Se este procedimento foi adotado podemos crer que as esposas não estavam seguindo totalmente os padrões, ou seja, o que ele repetiu várias vezes em relação à educação das esposas, o que elas deveriam fazer era na prática o que provavelmente elas não estavam efetuando. Ciências de Lisboa: 1942, III, 10. 11 ROUSSEL, Denis. Los Historiadores Griegos. Trad. N. Mígues. Buenos Aires: Siglo XXI, 1975, 123. 12 ROUSSEL, Denis. Los Historiadores Griegos. Trad. N. Mígues. Buenos Aires: Siglo XXI, 1975, 124.

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No decorrer de nossa releitura selecionamos várias citações do Oikonomikós que nos possibilitaram confirmar as reafirmações ao modelo e a manutenção da “ordem” (eunomía). • •

• •

À boa administradora cabia conservar o abastecimento do oîkos que era arrecadado, além de gerenciar as tarefas que só podiam ser efetuadas nesse local13. A seguinte bipolarização dos espaços: homem/externo e mulher/interno, dessa forma o cidadão cuidaria das tarefas no exterior enquanto sua esposa gerenciaria as atividades no interior14. A euforização de sua principal virtude, a concepção de filhos, principalmente do sexo masculino. Tendo a esposa a missão de cuidar deles15. A disforização da inversão da ordem, visto que de acordo com Xenofonte seria mais honesto para a mulher permanecer no interior do oîkos, do que frequentar o espaço externo. Já para o esposo seria vergonhoso ficar no oîkos, ele deveria tratar dos assuntos exteriores16.

Podemos verificar a posição do autor em deixar claro que cabe ao marido transformar a mulher em “útil auxiliar”, pois se esta não fosse educada pelo esposo poderia se tornar peça principal de sua ruína. Concebemos, dessa maneira, que a esposa possuía uma função importante dentro da administração dos bens do casal, tanto que ele está priorizando sua “boa educação”17. No livro III, Xenofonte, através de seus personagens, repete nos versos 10, 14 e 15 esta questão da educação, retomando-a no livro VII. O exemplo de esposa ideal é a de Iscômaco, pois esta é tomada como modelo e está habilitada a dirigir os negócios 13 XENOFONTE. Oikonomikós. Biblioteca de Altos Estudos. Academia das Ciências de Lisboa: 1942, VII, 21. 14

XENOFONTE. Oikonomikós. Biblioteca de Altos Estudos. Academia das Ciências de Lisboa: 1942, VII, 22 e 23.

15 XENOFONTE. Oikonomikós. Biblioteca de Altos Estudos. Academia das Ciências de Lisboa: 1942, VII, 24. 16

XENOFONTE. Oikonomikós. Biblioteca de Altos Estudos. Academia das Ciências de Lisboa: 1942, VII, 30.

17

XENOFONTE. Oikonomikós. Biblioteca de Altos Estudos. Academia das Ciências de Lisboa: 1942, VII, 3.

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caseiros sozinha. Portanto se fazia necessário, de acordo com o autor, uma reafirmação do modelo ideal. Podemos concluir então que, o comportamento ideal esperado para uma esposa não correspondia à prática social vivenciada no momento de Xenofonte. Dessa forma, Xenofonte estaria tentando restabelecer uma tradição, que no decorrer do tempo foi se desintegrando, pois a pólis, na época da produção do Oikonomikós, havia passado por transformações que não eram concebidas por Xenofonte e seus pares. Esta obra de Xenofonte prioriza dentre outros assuntos o comportamento, a conduta da esposa bem-nascida, foi escrito aproximadamente em 362 a. C. e objetiva recuperar um espaço, na pólis, que antes os belos e bons (καλoι και αγαθοί) cidadãos detinham. Neste momento, nos dedicaremos, à pontos da tragédia Electra em que o escritor aborda os ritos funerários e o papel das representações femininas contidas na peça. Obtêm destaque as oferendas que são conduzidas aos mortos pelas atenienses com o propósito de manter vínculo com o passado e através destas faz emergir duas sinalizações: da mulher que profere palavras próprias contrariando assim os modelos coexistentes e a mulher que é frágil submissa. Sófocles também aborda com cautela a importância de informações passadas de mãe para filha, a comunicação estabelecida entre elas e que em certos momentos não resulta na educação desejada. “Todos os teus conselhos aprendeste dela; és incapaz de proferir palavras próprias”18. Através deste embate entre as irmãs o tragediógrafo aponta a dualidade de conduta, a manipulação por intermédio de presentes: “Teu ódio, esse vive apenas em palavras, de fato, segues os algozes de teu pai; eu, entretanto, não me curvarei a eles embora me prometam todos os presentes que agora ostentas com tamanha vaidade; mostre-se tua mesa cada vez mais farta e sejam os teus dias superabundantes; a mim porém, me satisfaz só o bastante para viver em paz com a minha consciência”19.

18 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 328-332. 19 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 348-355.

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As diferenças entre as irmãs acentuam-se na representação do figurino da peça, em que as roupas de Crisótemis são marcadas pela elegância, contrastando com a indumentária simples de Electra. Defendemos que as vestes e os adereços comunicam, transmitem uma mensagem. Electra e seus enredos nos ritos funerários Para análise das tramas da personagem que intitula a tragédia lançaremos mão do conceito de métis formulado por Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant que se encontra na obra Métis – Astúcias da inteligência. Os historiadores especialistas no estudo da Grécia Antiga definem métis como uma forma de inteligência – a inteligência astuciosa: “(...) a métis não é mais que um componente de certos saberes ou de alguns poderes detidos por um pequeno grupo de deuses, cujas atividades são funcionalmente orientadas para os domínios, onde prevalece esta forma de inteligência”20. Ela é polimórfica e diversa e aplica-se aos múltiplos saberes. Os esquadrinhadores mostram que é no mundo dos humanos que esta forma de inteligência astuciosa desfruta de todos seus privilégios21. Verificaremos a astúcia de Electra através de um momento oportuno onde sua irmã deveria obedecer sua mãe Clitemnestra e levar as oferendas determinadas pela mãe ao jazigo de Agamemnon. Electra deve ser vigiada, acompanhada, quando ocorre um descuido ela aproveita o momento oportuno e age. Electra faz uso de sua métis convencendo sua irmã a não levar tais oferendas: “Não deixes nada do que tens tocar no túmulo! Nem os preceitos dos mortais, nem os divinos permitem a consagração das oferendas mandadas pela mais perversa das esposas; será mais natural deixar que o vento as leve ou escondê-las todas no âmago da terra, onde jamais possam ir perturbar meu pai; e quando tua mãe morrer, vá encontrá-las intactas e guardadas 20 DETIENNE, M. & VERNANT, J. P. Métis - As astúcias da inteligência. São Paulo: Odysseus Editora, 2008, p. 276. 21 DETIENNE, M. & VERNANT, J. P. Métis - As astúcias da inteligência. São Paulo: Odysseus Editora, 2008, p. 276.

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para ela mesma!”22. “Deixa-as de lado, irmã: põe sobre a sepultura alguns de teus cabelos; por mim – é tudo quanto posso dar, coitada! – dedica-lhe estes meus cabelos maltratados e este modesto cinto gasto pelo uso”23.

Neste contexto, a protagonista da tragédia aproveita as tarefas que eram atribuídas (tecer, bordar, cuidar dos mortos e outros) às mulheres para através delas burlar a idealização. As atividades que possuíam uma finalidade específica ganhavam uma outra dimensão. Electra não rejeita diretamente essas atividades, mas atribui à elas um novo sentido além do esperado. Os itens euforizados pelo tragediógrafo para que sejam colocados no túmulo de Agamemnon apresentam referências relacionadas à questão das roupas e dos adereços denotando a posição social e o status das personagens. Comunicando que, neste momento, Electra não dispõe de indumentárias que pertençam a um grupo social abastado. Crisótemis acaba realizando o pedido de sua irmã: “Farei, pois o que é justo não é objeto de briga, mas deve ser realizado com pressa. Enquanto tentar executar estas coisas, guardai-me o segredo, amigas, pois se minha mãe for informada, penso que um dia pagarei caro esta tentativa”24. Lin Foxhall e Gabriele Neher no capítulo introdutório do livro Gender and the City before Modernity ao abordar a cidadania, o pertencimento e a participação defendem que embora as mulheres não possuíssem, em grande parte, poder de participação direta na política, eram grandes articuladoras na esfera igualmente importante, a religiosa, com o registro de suas atividades em Santuários, individualmente e em grupos.25 Outro momento da peça relevante, para este artigo, que envolve os ritos funerários é o alerta de que as mulheres que ameaçam devem ser vigiadas: Sófocles por intermédio de um diálogo entre Clitemnestra e sua irmã aborda esta questão: “Vejo-te espairecer 22 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 422-430. 23 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 446-447. 24 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 463-467. 25 FOXHALL, Lin. e NEHER, Gabriele. Introduction. In: FOXHALL, Lin. e NEHER, Gabriele. Gender and the City before Modernity. Hoboken, New Jersey: Wiley-Blackwell, 2012, p. 12.

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de novo, como queres, aproveitando a ausência do zeloso Egisto, pois ele não te deixa, quando está presente, transpor as portas para injuriar amigos”26. A ausência da presença masculina é levantada como um dos momentos que as mulheres agem. Mais uma vez o tragediógrafo elabora um diálogo entre a protagonista da tragédia e sua irmã: “Eu não os dei nem tu (e como poderias, se não permitem, que te afastes sem escolta nem mesmo para reverenciar os deuses?)”27. Oferecer oferendas era uma das atividades do cotidiano feminino que o autor sinaliza aos receptores que poderia ser usada para outros fins. Uma das referências às oblações divinas pode ser verificada nos versos que seguem nas oferendas humildes a Apolo nas falas de Electra: “Ah! Quantas vezes vim depor em teu altar piedosas oferendas, quase sempre humildes, pois outras não podiam minhas mãos devotas!”28. Tais oblações que envolvem a tragédia estudada também está presente, assim defendemos, na imagem contida na documentação imagética que segue. Passaremos, neste momento, para análise da hydría.

26 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 500-503. 27 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 910-912. 28 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 1378-1380.

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Mulheres e homem

a



b

c

d

e

f

Imagem 1: C. V. A. Rússia_ Pushkin State Museum of fine arts _ Moscow. South Italian Vases _ Lucania Campania. Fascicule III. By Olga Tugusheva29. 29 Localização: Moscow, Pushkin State Museum of fine arts. Inv. II 1b612. Temática: Mulheres e homem. Proveniência: Sicília. Forma: hydría. Estilo: Figuras Vermelhas. Pintor: Sydney. Data: 360-340 a. C..

Id.

Proveniência

Sicília

Temática

Mulheres Homem

Análise da vestimenta das personagens

e Duas mulheres Vestimentas com padronagem. Roupas com linhas retas e linhas pontilhadas. Cabelo com faixa. Adereços: Colar Pulseira Linhas que aparecem: Linhas retas; Linhas pontilhadas.

Decoração

Acabamento do vaso entre as representações

30 Ver referências em SOUZA, Maria Angélica R. de. Tecendo mensagens numa trama bem urdida: as mulheres atenienses. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005, p. 155 e 156.

Imagem

Tabela 130

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Nesta hydría temos representado, no centro, a cena de uma tragédia, segundo a descrição contida no C.V.A.. Esta foi composta por três personagens, duas mulheres e um homem (a). As mulheres31 vestem chitón e péplos decorado com linhas retas e com linhas pontilhadas (c e d). No centro, o pintor destacou o altar onde vemos uma personagem feminina sentada (d). O jogo de olhares desta personagem está em três quartos. Sua cabeça está inclinada e o gesto efetuado com o braço esquerdo denota preocupação. Esta personagem usa chitón com péplos com linhas retas estreitas e largas e linha pontilhada; está descalça. Ela usa uma pulseira no braço esquerdo. Do lado direito da mulher sentada no altar se aproxima uma mulher, segurando um oinochoe e um phiale32. Seu cabelo está amarrado. Esta mulher usa chitón com corpete, com linha pontilhada em baixo do peito, também há linha tracejada na túnica e na bainha de chitón. Ela usa um colar com detalhes em forma de círculo. Na face interna do pé temos reservado um esboço de genitália. Arthur Dale Trendall supõe que a cena da hydría de Moscou provavelmente é de inspiração trágica (TRENDALL, LCS, 128)33, enquanto N. M. Loseva tratou a composição como uma reunião de Orestes e Electra à tumba do Agamemnon34. Questões de gênero e poder As discussões de gênero no presente estudo focam a sociedade ateniense, a análise de como, os sujeitos históricos dão significação 31 O cabelo da primeira personagem da esquerda para direita está preso, já o da segunda personagem é longo e está solto com uma faixa no alto da cabeça. O homem está em pé, ele possui um tecido jogado no ombro direito que passa pelas costas e cai no braço esquerdo (a e b). Com a mão esquerda ele segura um bastão. O tecido está ornado com linha reta. Entre as duas mulheres temos no fundo um tecido pendurado que está decorado com linhas pontilhadas e entre a mulher que está sentada no altar e o homem temos uma coroa pendurada. 32 Cântaro, taça (kýlix), skýphos e phiale eram vasos de beber. 33 Ver referências em C.V.A. Rússia_ Pushkin State Museum of fine arts, Moscow. South Italian Vases, Lucania Campania. Fascicule III. By Olga Tugusheva. 34 Ver referências em C.V.A. Rússia_ Pushkin State Museum of fine arts, Moscow. South Italian Vases, Lucania Campania. Fascicule III. By Olga Tugusheva.

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às construções de masculinidade e feminilidade em meio às relações hierárquicas de dominação. As mulheres atenienses não constituíam um grupo unívoco. Adriana Piscitelli, discorrendo sobre o conceito de gênero, mostra que o objetivo de construir um sujeito político fez com que o pensamento feminista destacasse a identidade entre as mulheres, concedendo pouca atenção às diferenças entre elas. De acordo com Piscitelli essa “identidade foi intensamente contestada na década de 1980, principalmente por feministas negras dos Estados Unidos. Elas defendiam que sua posição social e política as tornava diferentes assim como as suas reivindicações”35. De acordo com a pesquisadora “(...) nas novas leituras sobre gênero considera-se que a distinção entre masculino e feminino não esgota os sentidos do gênero”36. Neste estudo, a antropóloga cita as pesquisas de Judith Butler e suas contribuições no sentido de pensar a inclusão de diversas categorias de pessoas aos estudos de gênero e não restringir a homens e mulheres, a masculino e feminino. Inserida nesta discussão acerca da defesa do gênero como uma categoria que contém diversos grupos de pessoas, que se distancia de uma reflexão que contempla o modelo binário e unificado, Kate Gilhuly defende que há diversas maneiras para representálo37. A Matriz Feminina proposta pela pesquisadora ressalta a forma que o gênero foi manipulado com o intuito de atender a interesses dos atenienses38. A matriz feminina estava contida no imaginário social ateniense, assim a maneira como a ateniense era percebida na esfera pública estava intimamente ligada ao papel 35 PISCITELLI, Adriana. Gênero: a história de um conceito. In: ALMEIDA, H. B. de e SZWAKO, J. (orgs.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009, p. 139-140. 36 PISCITELLI, Adriana. Gênero: a história de um conceito. In: ALMEIDA, H. B. de e SZWAKO, J. (orgs.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009, p. 143. 37 GILHULY, Kate. The Feminine Matrix of Sex and Gender in Classical Athens. New York: Cambridge University Press, 2009, p. 06-08. 38 GILHULY, Kate. The Feminine Matrix of Sex and Gender in Classical Athens. New York: Cambridge University Press, 2009, p. 10.

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que ela exercia na koinonía.39 As questões de gênero e poder se fazem presentes na relação de Clitemnestra com sua filha. Clitemnestra desaprova o comportamento de Eléctra, mas quem castiga e pune a mesma é Egisto. O cidadão deveria ter a palavra final em uma sociedade masculinizada. “Por Ártemis! Há de custar-te muito caro o atrevimento! Egisto te castigará!”40. Electra mais uma vez questiona o posicionamento de sua mãe “Viste? Permites-me falar e logo cedes ao ódio habitual e me fazes calar!”41. Clitemnestra recorre às recompensas ao tentar silenciar sua filha. Ela propõe que se o forasteiro conseguisse refrear a língua de Electra ele seria recompensado. “Se conseguisses refrear a sua língua terias boa recompensa, forasteiro”42. O estudioso Thomas Laqueur enfatiza que o gênero na Antiguidade era muito importante e fazia parte da ordem das coisas. “Foi no mundo do sexo único que se falou mais diretamente sobre a biologia de dois sexos, que era mais arraigada no conceito de gênero, na cultura”43. Ele defende ainda que ser homem ou mulher implicava em uma posição social, um lugar na sociedade, assumir um papel cultural. Assim como Laqueur, Gilhuly sinaliza que a estrutura defendida por ela opera em uma variedade de textos e gêneros.44 Tal papel está presente nos versos que seguem: Crisótemis dirigindo-se a Electra se refere a esta como mulher que não é precavida, que fala com indiscrição. “Ainda ignoras que és mulher, que não és homem e tua força é bem menor que a força deles, e que a fortuna de teus inimigos cresce enquanto a nossa cai e se

39 GILHULY, Kate. The Feminine Matrix of Sex and Gender in Classical Athens. New York: Cambridge University Press, 2009, p. 13. 40 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 615-616. 41 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 617-618. 42 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 808-809. 43 LAQUEUR, Thomas. Inventando o Sexo. Corpo e Gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001, p. 19. 44 GILHULY, Kate. The Feminine Matrix of Sex and Gender in Classical Athens. New York: Cambridge University Press, 2009, p. 02.

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reduz a nada?”45. A Política de Aristóteles acerca da natureza da alma, constata a inferioridade da mulher e a justifica, mencionando sua não plenitude da parte racional da alma, o logos: “Isto nos leva imediatamente de volta à natureza da alma: nesta, há por natureza uma parte que comanda e uma parte que é comandada, às quais atribuímos qualidades diferentes, ou seja, a qualidade do racional e a do irracional. (...) o mesmo princípio se aplica aos outros casos de comandante e comandado. Logo, há por natureza várias classes de comandantes e comandados, pois de maneiras diferentes o homem livre comanda o escravo, o macho comanda a fêmea e o homem comanda a criança. Todos possuem as diferentes partes da alma, mas possuem-nas diferentemente, pois o escravo não possui de forma alguma a faculdade de deliberar, enquanto a mulher a possui, mas sem autoridade plena, e a criança a tem, posto que ainda em formação”46.

Sófocles enfatiza este comportamento e reafirma que nem todas as mulheres estão inseridas nesse conjunto. O diálogo entre Orestes e Electra reafirma a posição do autor de que o momento requer atenção e vigilância sobre as mulheres: “Calemos ambos; alguém pode ouvir-nos. Não pela deusa virgem! Não por Ártemis! Não há motivos para recearmos mulheres indolentes confinadas lá no palácio, simples peso inútil! Não deves esquecer porém, de que há mulheres de espírito viril, e tu és uma delas”47. Segundo o tragediógrafo a protagonista da peça obedece ao irmão, a presença masculina, porque a obediência está relacionada à concretização de sua vingança: “Dispõe de mim; ordena e obedecerei”48. As obras, neste artigo, tecem o feminino, trazendo a tona reflexões que envolvem as atenienses no Período Clássico, indumentária, gênero e poder. Iniciamos com a análise da documentação textual de Sófocles, em seguida, a obra de Xenofonte e nos remetemos novamente a tragédia utilizando também a documentação 45 SÓFOCLES. Eléctra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 996-999. 46 ARISTÓTELES. Política. Brasília: UNB, 1997, p. 32-33. 47 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, vv. 1237-1242. 48 SÓFOCLES. Electra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, v. 1317.

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arqueológica do IV século a. C.. Concluímos que nosso estudo aborda a indumentária grega euforizando a história do vestuário, das roupas das atenienses e seus complementos como um dos canais comunicacionais na pólis. Visando a relação do vestuário com o conjunto de valores existentes em Atenas e que estavam entrelaçados em relações de gênero e poder.

V As relações de poder na pólis de Esparta através dos escritos do período clássico

A

Luis Filipe Bantim de ASSUMPÇÃO1

historiografia tradicional 2 que foi produzida ao longo do XIX até a primeira metade do XX, observou os cidadãos espartanos como guerreiros em tempo integral, além de serem considerados como rústicos que devido ao modo de vida austero, se diferenciaram dos demais helenos. Tal perspectiva pode ser entendida como uma tentativa de se fomentar uma identidade cultural helênica, na qual Atenas (Άθήναι) foi considerada enquanto um modelo de pólis3 “ideal”. Entretanto, como fomos 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, (PPGH-UERJ), membro do Núcleo de Estudos da Antiguidade da UERJ (NEA/UERJ), orientado pela Profª. Drª. Maria Regina Cândido. Bolsista CAPES. Email: [email protected] 2

Podemos afirmar que os estudos desses autores, ainda que tenham sido inovadores no período em que foram produzidos, se mantiveram atrelados a um viés tradicional, tais como: Eugene Tigerstedt (The Legend of Sparta, 1965), William George Forrest (A History of Sparta, 1968), George Huxley (Early Sparta, 1970), Pavel Oliva (Sparta and Her Social Problem, 1972), Paul Cartledge (Sparta and Lakonia, 1979).

3

Concebemos o conceito de pólis (πόλις) através da relação entre o espaço físico,

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capazes de verificar, ao longo de nossas pesquisas, os estudos4 acerca de Esparta (dialeto ático: Σπάρτη; dialeto dórico: Σπάρτα) que se desenvolveram, sobretudo nas duas últimas décadas do XX e início do XXI, passaram a analisá-la por um novo viés que rompe com a visão em contraponto com Atenas. Sendo assim, verificamos que Esparta emerge como uma pólis com singularidades, devido aos os interesses específicos dos seus cidadãos, mas que outros pontos que são comuns as outras poleis helênicas contemporâneas. No entanto, esse viés renovado, no que diz respeito às pesquisas sobre o mundo helênico, somente se tornou possível devido às transformações pelas quais o campo historiográfico perpassou, que a partir do diálogo interdisciplinar, possibilitou que o arcabouço documental historiográfico fosse ampliado e outros grupos sociais – até então deixados a margem dos estudos acadêmicos – viessem a ser pesquisados, no intuito de fornecerem uma visão mais ampla das relações interpessoais que se davam no interior de cada sociedade. Nesse ínterim, podemos destacar a Renovação da História Política suscitada, na França, sobretudo pelas pesquisas do historiador René Rémond, na década de 1980. Mediante as críticas pelas quais a História Política perpassou – por ser elitista, factual, voltada para o superficial, pautada na descrição dos grandes acontecimentos sociais e ligada aos interesses do Estado – a mesma foi capaz de se readaptar, no intuito de corresponder às novas necessidades dos historiadores, bem como de lidar com as deficiências e generalismos gerados pela História Social e Econômica. Desta que envolve a área urbana (asty - ἃστυ) e a rural (khora – χώρα) ocupada por uma sociedade, e da interação de caráter cultural, político, econômico, religioso e militar que esses indivíduos desempenhavam em seu meio social. O termo póleis (πόλεις). Averiguar informação em: ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de. A Hélade no período Clássico, entre o Imperialismo Ateniense e a Hegemonia Espartana – um estudo conceitual. In: III Encontro Nacional de Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo: Novas Perspectivas sobre as Práticas Imperialistas na Antiguidade, 2011a, Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2012. v. 03. p.167. 4

O International Sparta Seminar, promovido pelos historiadores Anton Powell e Stephen Hodkinson, desde o final da década de 1980 no Reino Unido, promoveram uma releitura da historiografia da primeira metade do XX e teceram novos estudos sobre Esparta.

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maneira, seguindo a perspectiva de Rémond5, a História Política precisou reintroduzir a dimensão política dos fatos sociais, para que assim retomasse o seu lugar de importância junto ao meio acadêmico6. Notamos que a proposta de Rémond seria a de que a História Política poderia se renovar através de uma relação multidisciplinar, fazendo com que o estudo do político passasse a abarcar temáticas diversas, tais como as biografias, religião, o contexto político interno e externo, assim como as relações entre os diferentes grupos sociais que integram uma sociedade. Sendo assim, evidenciamos que as modificações que ocorreram no campo historiográfico acabaram influenciando os estudos sobre a Antiguidade - em nosso caso Esparta-, assim levando os historiadores a abordarem aspectos político-sociais que outrora haviam sido relegados a margem das pesquisas acadêmicas. Imersos nesta perspectiva, daremos início a nossa proposta de investigar as relações de poder que se davam entre os diversos segmentos que integravam a região da Lacedemônia7 (Λακεδαιμονίων). Contudo, devemos elucidar que iremos nos deter aos três grupos sociais que são considerados como principais8 na 5

RÉMOND, René (org.). Do Político. In: Por uma História Política. Trad.: Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, pp.16-21.

6

Devemos ressaltar que nossos apontamentos se mantiveram enfocados nas transformações que ocorreram no cenário acadêmico francês, pois, como enfatizou a historiadora Susan Pedersen enquanto na França e na Alemanha do início do XX, os interesses estiveram voltados para a História Social e a História Jurídica, na Grã-Bretanha se desenvolveram amplas produções destinadas a História Política, com ênfase no estudo da liderança política, da biografia política e das instituições de poder. Ver: PEDERSEN, Susan. Que é a História Política Hoje? In: CANNADINE, David. Que é a História Hoje? Trad.: Rui Pires Cabral. Lisboa: Gradiva, 2006.pp.64-65.

7 Embora no período Clássico o termo Lacedemônia tenha sido utilizado, em algumas ocasiões, enquanto sinônimo de Esparta, nós concebemos a Lacedemônia como uma das diversas regiões que integravam a península do Peloponeso, que englobava a Lakoniké (Λακωνικὴ - região situada entre os montes Parnon/Πάρνων e Taygetos/Ταΰγετος) e a Messênia (Μεσσηνία), cujo centro de poder político era a pólis de Esparta. 8 Tornou-se necessário esclarecer que, no período Clássico, outros grupos sociais se formaram na Lacedemônia, devido às modificações ocasionadas pelo contexto histórico de então. No entanto, tendo em vista a extensão deste artigo iremos nos

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dinâmica social dos lacedemônios e que formavam a base de tal sociedade, ou seja, os esparciatas (Σπαρτιάτας), os periecos (περίοἵκος) e os hilotas (είλώται). Por sua vez, devemos esclarecer que adotamos em nosso título o termo “relações de poder em Esparta”, pois as determinações políticas da Lacedemônia emanavam e ocorriam no território desta pólis. De acordo com a documentação textual escrita, com ênfase para o período Clássico da Hélade (Έλλάς), os esparciatas foram identificados enquanto um grupo que devido as suas atribuições e práticas sociais, políticas e culturais puderam se estabelecer enquanto indivíduos de plenos direitos políticos na região da Lacedemônia. Neste contexto, o ateniense Xenofonte (Ξενοφῶν) pontua que os esparciatas, se reconheciam enquanto homoioi/ pares/iguais (ὃμοιοι)9, ou seja, sujeitos que devido ao fato de seguirem um mesmo código de conduta puderam criar uma identidade social de grupo, que lhes outorgaram a hegemonia sobre a Lacedemônia. Todavia, ainda que o comportamento dos esparciatas se diferenciasse dos demais helenos do período Clássico, essa comensalidade a qual os autores da Antiguidade atestam entre os cidadãos espartanos foi um ideal defendido pelos segmentos aristocráticos de toda a Hélade. Ao dialogarmos com os pressupostos levantados pelo historiador Julián Gallego notamos que, através de um conjunto de práticas político-culturais os indivíduos são capazes de formar uma identidade social, que consequentemente os vinculam sobre um território específico. Logo, essa interação existente entre os sujeitos de um dado limitar a apenas citá-los. Seguindo a designação do pesquisador Nikos Birgalias, esses outros segmentos seriam: os hypomeiones (ύπομειονες – possivelmente, espartanos que perderam seus direitos políticos por questões econômicas), tresantes (τρέσαντες – homens de Esparta que perderam a sua cidadania por fugirem do campo de batalha), os mothakes (μόθακες – escravos que auxiliavam os jovens espartanos no decorrer de seu processo de formação), os trophimoi (τρόφιμου – estrangeiros que passavam pelo processo de formação espartano) e os neodamodeis (νεοδαμωδεις – hilotas que adquiriam a liberdade por serviços militares prestados a Esparta). Averiguar informação em: BIRGALIAS, Nikos. Helotage and Spartan Social Organization. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002. pp.253-254. 9

XENOFONTE. A Constituição dos Lacedemônios. 10.7.

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espaço físico acaba se constituindo em uma relação de amizade, (philia/φιλία) que pressupunha o “poder de união” que caracterizava todo o grupo social10. Gallego complementa afirmando que a partir dessa relação, os sujeitos poderiam se organizar enquanto cidadãos, desenvolvendo o princípio da isonomia e da isegoria11. Desta maneira, o referido historiador destaca que a pólis do período Arcaico se desenvolveu através de um espaço centrado e simétrico, cujos privilégios sociais se restringiam a uma aristocracia, vinculada mediante estes dois princípios12. Com isso, podemos situar o grupo social dos esparciatas nesta lógica de interação, na qual a isonomia (ἰσονομία) permitia que todos os cidadãos participassem, em certa medida, do poder político, e a isegoria (ἰσηγορία) garantia que o poder de fala fosse limitado a tais indivíduos, assegurando a autoridade política desse segmento aristocrático sobre a Lacedemônia. Retomando os pressupostos de Gallego, notamos que os estudos do Prof. Paul Cartledge em certa medida corroboram com as argumentações do referido historiador argentino. Embora Cartledge se utilize, de imediato, de uma proposta comparativa entre a sociedade espartana e outras póleis helênicas, este ressalta que entre 750 e 650 a.C., a Hélade foi marcada pelo aumento populacional e o estabelecimento de diversos assentamentos, os quais formaram áreas propícias para o plantio e para criação de animais. Contudo, nesse período a guerra acabou sendo utilizada para expropriar indivíduos de uma região ou destruir plantações para que assim os mesmos fossem enfraquecidos, o que teria levado a organização militar da falange (φάλαγξ) hoplita (ὁπλίτης), na qual os guerreiros se defendiam mutuamente, visando interesses relativamente comuns13. Somando-se a tais fatores, o comércio marítimo se desenvolveu levando a obtenção de escravos, metais, matérias-primas e produtos de luxo, necessários para o 10 GALLEGO, Julián. El Campesinado em la Grecia Antigua – Uma Historia de la Igualdad. Buenos Aires: Eudeba, 2009.pp.22-23. 11 GALLEGO, Julián. El Campesinado em la Grecia Antigua – Uma Historia de la Igualdad. Buenos Aires: Eudeba, 2009, p.23. 12 Idem. 13 CARTLEDGE, Paul. Spartan Reflections. London: Gerald Duckworth & Co. Ltd., 2001, pp.31-32.

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estabelecimento da pólis. No entanto, a modificação das formas de governo fizeram com que diversos territórios sofressem golpes políticos que desencadearam nas implementações das tiranias14. Nesse contexto, Esparta não teria sofrido com regimes tirânicos, pois a realeza abriu mão de parte de seus poderes para que se mantivesse no poder político No que tange a Esparta, notamos que nas palavras de Cartledge a comensalidade, estabelecida pela difusão de um interesse comum entre os sujeitos, possibilitou o estabelecimento do modelo de organização políade, já no período Arcaico15. Neste contexto, os dizeres de Cartledge nos auxiliam em medida que atrela a reciprocidade de um grupo de indivíduos com a formação de uma aristocracia16, entre os séculos VIII e VII, período esse em que Esparta teria se constituído enquanto pólis. Por sua vez, o pesquisador Nikos Birgalias interage com esses fatores por um viés diferenciado, no qual situa a organização político-social de Esparta. Birgalias17 afirma que diferentemente de boa parte das sociedades helênicas, Esparta teria se constituído como pólis já em meados do século VII, e devido à guerra contra os messênios, os espartanos puderam fortalecer os seus laços identitários, formando assim uma lógica aristocrática sólida representada pela adoção do sistema de combate pautado na falange hoplita18. Sendo assim, Esparta se transformou de uma 14 Na obra “Ética a Nicômaco”, Aristóteles define a tirania (Τυραννίς) como uma transgressão a monarquia (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. VIII, 10.2). 15 CARTLEDGE, Paul. Spartan Reflections. London: Gerald Duckworth & Co. Ltd., 2001.pp.32-33. 16

Na concepção aristotélica (ARISTÓTELES. Política, III, 1280b-1281a), a aristocracia (ἀριστοκρατία) seria a forma de governo na qual os mais virtuosos governavam, que por sua vez são identificados com os indivíduos vinculados à tradição, cuja riqueza não provinha do comércio e seriam os mais bem preparados para a atividade política.

17 BIRGALIAS, Nikos. Helotage and Spartan Social Organization. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.pp.250-251. 18 Tal como nos apresentou o pesquisador Yvon Garlan, o hoplita poderia ser definido enquanto o combatente de infantaria pesada, da qual a sua designação era proveniente de parte do seu armamento – um escudo de aproximadamente

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sociedade de aristoi (ἅριστος) para uma pólis de hoplitas, na qual teria ocorrido uma redefinição nos critérios de participação e obtenção de poderes políticos levando os guerreiros/camponeses, que até então constituíam a aristocracia, se desenvolverem como um novo corpo de cidadãos, ou seja, os homoioi/esparciatas19. Mantendo-nos enfocados na documentação do período Clássico e interagindo com os estudos historiográficos, Heródoto situa que os espartanos teriam modificado o seu governo, por intermédio de Licurgo, e com isso alcançaram a “boa ordem” (εὐνομία)20. Ainda que os escritos de Tirteu (Τυρταϊος), que datam de finais do século VII a.C., não façam alusão a Licurgo, os apontamentos de Heródoto, assim como os de Xenofonte – ao longo de toda a sua Constituição dos Lacedemônios – deixam transparecer que o mítico legislador espartano viveu entre o final do VIII e meados do século VII a.C. Tais comentários nos permitem situar as transformações do governo espartano de forma semelhante a historiografia de Cartledge e Birgalias, nos possibilitou evidenciar através do discurso da Antiguidade que a sociedade espartana perpassou por modificações políticas que corresponderam a um determinado contexto social, e que delimitaram a estruturação de políade de Esparta. Desta maneira, em meados do século V, boa parte das póleis da Hélade já haviam abandonado o modelo de organização social, baseado no guerreiro/cidadão, fazendo com que o comportamento de Esparta fosse entendido como austero e arcaico, sobretudo pelos atenienses21. Neste ínterim, mediante os pressupostos que levantamos podemos delimitar as atribuições político-sociais destes homens, 90 cm de diâmetro, denominado hoplon. Garlan complementa que os mesmos portavam lanças, couraça, elmo, adaga e grevas. Ver: GARLAN, Yvon. War in the Ancient World – A Social History. London: Chatto & Windus, 1975.pp.58-60. 19 BIRGALIAS, Nikos. Helotage and Spartan Social Organization. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.p.251. 20 HERÓDOTO. Histórias. I, 65.2. 21 BIRGALIAS, Nikos. Helotage and Spartan Social Organization. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.pp.250-251.

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reconhecidos como homoioi/esparciatas, e de materializar as relações que estes mantinham com os demais segmentos sociais da Lacedemônia. Xenofonte, em sua Constituição dos Lacedemônios, narra o comportamento dos espartanos em sociedade, e ainda que um grupo de especialistas22 ressaltem as possíveis omissões que se fazem presentes na obra, não podemos desprezar o fato de Xenofonte ter sido o estrangeiro que, no período Clássico, conviveu por mais tempo com os cidadãos de Esparta. O referido autor ateniense expõe, ao longo de seus escritos, que o modo de vida dos esparciatas era semelhante, no qual os mesmos deveriam integrar um conjunto de instituições básicas para que fossem reconhecidos pelos seus “pares”. Xenofonte esclarece que todos os jovens de Esparta a partir de uma determinada faixa etária, passavam para a tutela da pólis e deveriam integrar um processo de formação comum23. Somando-se a tal aspecto, Xenofonte tenta transparecer que em Esparta todos os cidadãos detinham direitos políticos semelhantes, fator este que os tornavam iguais, entretanto, seria através da disputa que os melhores iriam se diferenciar, e ao cabo de suas ações acabaria tendo o acesso aos melhores cargos político-militares24. Seguindo por esse viés, o referido escritor ateniense pontua que os indivíduos de maior idade deveriam servir de exemplo de virtude para os jovens, sendo este um aspecto que diferenciaria o processo de formação da sociedade espartana (Paidéia - παιδεια) daqueles que eram desenvolvidos pelos “demais helenos”25. Ainda que no período de Xenofonte – início do IV século a.C. – tenha sido permitido que jovens estrangeiros perpassassem pela formação educacional espartana, o viés tradicional da constituição pressupunha que 22 Embora não tenham tecido críticas acerca de Xenofonte, podemos citar as análises dos estudiosos de cultura clássica José Francisco de Moura, no livro Imagens de Esparta: Xenofonte e a Ideologia Oligárquica (2000), e o artigo de Alessandra Carbonero Lima, intitulado Xenofonte – elementos para um novo perfil (2008), nos quais os autores argumentam que Xenofonte teria omitido aspectos da sociedade espartana, no intuito de que sua obra se adequasse aos interesses dos grupos aristocráticos de Atenas. 23 XENOFONTE. A Constituição dos Lacedemônios. 2.1. 24 XENOFONTE. A Constituição dos Lacedemônios. 2.3. 25 XENOFONTE. A Constituição dos Lacedemônios. 2.13-14.

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somente os filhos de esparciatas poderiam ser educados nesta forma peculiar de Paidéia. Verificamos assim, que a formação do jovem nos moldes estabelecidos pela pólis de Esparta seria o primeiro fator determinante para que o indivíduo viesse a integrar o grupo dos homoioi. Outro elemento de grande importância seria o philition (φιλιτιον), identificado como grupo de refeições nos quais somente os esparciatas poderiam participar. Todavia, fazer parte de um philition não seria o suficiente para que um indivíduo fosse reconhecido enquanto esparciata, mas sim o fato de integrar um grupo de refeições e ser capaz de arcar com as suas despesas. Nesse contexto, os professores Juan Miguel Casillas e César Fornis afirmaram que o philition26 reunia os homens de plenos direitos entre os lacedemônios, com a finalidade de estreitar e reforçar os vínculos sociais, os quais permitiam que esse grupo de indivíduos mantivesse a sua hegemonia no âmbito da pólis, mediante a execução de um ato simbólico de uma refeição comum27. De forma semelhante as demais instituições político-sociais, o investigador Nino Luraghi declara que o philition de Esparta teria sido uma transformação do symposion aristocrático que se fazia presente na grande maioria das sociedades helênicas28. Contudo, diferentemente deste último, o philition tinha por objetivo integrar o grupo dos esparciatas, sendo oficialmente vetada a participação de qualquer outro sujeito que não integrasse o corpo de cidadãos espartanos. Podemos endossar a nossa assertiva a partir da documentação de Xenofonte, intitulada Symposium29 (Συμπόσιον). Neste contexto, o autor ateniense comenta sobre o banquete oferecido por Callias (Καλλίας), em honra da vitória de seu amado, o jovem Autólikos (Αὐτολύκου). Deste modo, Xenofonte expõe que somente algumas poucas pessoas foram convidadas para o 26 O termo philition é o singular de philitia (CASILLAS; FORNIS, 1994: passim). 27 CASILLAS, Juan Miguel; FORNIS, César. La comida em común espartana como mecanismo de diferenciación e integración social. In: Espacio, Tiempo y Forma, Serie II, Historia Antigua, t.7, 1994.p.66. 28 LURAGHI, Nino. Helotic Slavery Reconsidered. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.p.234. 29 Esta obra de Xenofonte foi traduzida para o português como “O Banquete”.

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banquete30, que após alguns momentos de conversa informal foi seguido de descontração, bebericagem e degustação de alimentos e vinho31. Contrapondo essa descrição de Xenofonte no Symposium, com o seu discurso na Constituição dos Lacedemônios, observamos que, diferentemente do tradicional banquete helênico, o philition pressupunha a participação de todos os esparciatas – sem a necessidade de um convite, pois era uma determinação institucional. O banquete espartano, tal como verificamos, não estaria voltado para o ato de beber o vinho32, um aspecto que, segundo a historiadora Pauline Schmitt Pantel, a atividade do symposion se manteve enfocada ao longo de sua prática33. Ao prosseguirmos em nossos estudos, recorremos às pesquisas realizadas pelo cientista social Mogens Herman Hansen, o qual afirmou que ser esparciata era habitar o centro urbano e de poder político da Lacedemônia – ou seja, Esparta –, sendo proibidos por lei de desenvolverem atividades agrícolas, artesanais e comerciais34. Cotejando os apontamentos de Hansen, com os pressupostos de Paul Cartledge, este definiu que para que um homem pudesse vir a deter a condição de esparciata este deveria ter perpassado pelo processo de formação dos jovens espartanos, ser eleito para integrar um dos philition, e ter a capacidade de arcar com as despesas provenientes desses banquetes, através daquilo que era produzido em suas terras ou caçado na região da Lacedemônia35. Retomando Hansen, este ainda ressalta que, devido as suas atividades, os espartanos eram ociosos proprietários de terras e guerreiros em tempo integral36. Desse modo, podemos conjeturar 30 XENOFONTE. Symposium. 1.2-3. 31 XENOFONTE. Symposium. 1.11. 32 XENOFONTE. A Constituição dos Lacedemônios. 5.2,4. 33 PANTEL, Pauline Schmitt. La cite au banquet. Histoire des repas publics dans les cites grecques. Rome: École Française de Rome, 1992.p.145. 34 HANSEN, Mogens Herman. Was Sparta a Normal or an Exceptional Polis? In: HODKINSON, Stephen (Ed.). Sparta – Comparative Approaches. Swansea: The Classical Press of Wales, 2009.p.393. 35 CARTLEDGE, Paul. Spartan Reflections. London: Gerald Duckworth & Co. Ltd., 2001.p.14. 36 HANSEN, Mogens Herman. Was Sparta a Normal or an Exceptional Polis? In: HODKINSON, Stephen (Ed.). Sparta – Comparative Approaches. Swansea: The Classical Press of Wales, 2009.p.393.

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que os esparciatas conseguiram desenvolver a lógica aristocrática da isenção do trabalho manual37, sem que dessa maneira tivessem a necessidade de se lançarem em atividades comerciais. Corroborando com o viés de Nikos Birgalias, notamos que as transformações pelas quais a sociedade espartana perpassou não pretendiam lidar com a matriz cultural guerreira de seus cidadãos, tais como a historiografia tradicional38 propôs, mas sim que mediante ao contexto social que teriam vivido no século VII a.C, as experiências militares fizeram com que os espartanos se organizassem com base nessas circunstâncias, nas quais o ideal arcaico do guerreiro e camponês foi alterado para a lógica do guerreiro e cidadão, proprietário de terras, cuja atividade central era cunho político-militar, ficando a cargo de segmentos sociais submetidos suprirem as suas necessidades econômicas. Dando continuidade aos nossos estudos, nos cabe agora analisar os grupos sociais que possibilitaram que os espartanos desenvolvessem o seu estilo de vida aristocrático. Iniciemos pelos periecos. No que tange ao referido segmento39 notamos que estes se inserem em um status social relativamente ambíguo, que acaba se somando ao fato de não termos conhecimentos precisos acerca da emergência desse segmento social. Podemos ressaltar que a documentação textual tardia, tais como Estrabão40, Plutarco41 e 37 Platão, na República, declarou que as atividades manuais acabavam mutilando e transgredindo a physis (φύσις), ou seja, as condições naturais de desenvolvimento de um sujeito (PLATÃO. República. VI, 495d). 38 Tal como havíamos pontuado, os trabalhos de Geoffrey de Ste Croix e, ate mesmo, Paul Cartledge. 39 Esta seria uma transliteração do vocábulo helênico formado por duas palavras, ou seja, peri/περί (“ao redor de”) e oikos/οἵκος (“casa, habitação, propriedade”), fazendo com que os mesmos sejam concebidos como “aqueles que habitam ao redor de”. PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Portugês e Portugês-Grego. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1998.pp.399, 447. 40 Segundo a investigadora Daniela Dueck, Estrabão(Στράβων) viveu entre os séculos I a.C. e I d.C., tendo nascido na região do Pontus. Como pontuou Dueck, Estrabão teria desenvolvido a sua obra (Geographica/Γεωγραφικά) no intuito de descrever os limites de todo o mundo conhecido até o seu período DUECK, Daniela. Strabo of Amasia: a Greek man of letters in Augustan Rome. London: Routledge, 2000. passim. 41 Plutarco (Πλούταρχος) foi um biógrafo e historiador helênico, nascido na região da Beócia, na cidade de Coronea. O referido pensador viveu entre os séculos I

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Pausânias42 nos fornecem indícios sobre a conformação desses indivíduos enquanto grupo, porém, este não será o nosso enfoque no presente trabalho. Todavia, o próprio conceito de perieco determina que esses se constituiriam em um grupo relativamente homogêneo – aspecto que iremos discorrer –, e ainda que esses teriam se organizado em função de um centro de poder, afinal, eles estariam assentados “ao redor de” um centro político, ou seja, a pólis de Esparta. Evidenciamos que a própria terminologia da palavra perieco foi constituída a partir da relação que esses homens desenvolveram em relação aos esparciatas, entretanto, podemos ressaltar de imediato que embora estivessem em uma relação de submissão a pólis de Esparta os periecos eram livres. Tal como pontuou o Prof. Julián Gallego, na Lacedemônia – diferentemente de outras póleis – o grupo social detentor de terras era aquele quem monopolizava o poder político, constituindo um governo fechado que excluía os agricultores livres da participação política direta, ainda que dependessem desses trabalhadores rurais para que suprissem as suas necessidades econômicas43. Nas palavras do Prof. Graham Shipley não podemos considerar que os periecos desenvolvessem apenas atividades agrícolas, tendo em vista que as práticas econômicas desses indivíduos teriam variado de acordo com as condições geográficas do território em que habitavam. Segundo Shipley, as comunidades periecas poderiam desempenhar atividades pastoris e agrárias, em alguns casos acrescidos da pesca, trabalhos em pedreiras, e produção de diferentes frutas e frutos secos, assim como práticas comerciais, manufatureiras e de artesanato44. Deste modo, verificamos que a e II d.C., período no qual a Hélade se encontrava sobre a dominação de Roma. Devido a sua abastada proeminência, Plutarco adquiriu a cidadania romana STADTER, Philip (Ed.). Plutarch and the Historical Tradition. London; New York: Routledge, 1992.pp.01-02. 42 Nas palavras do pesquisador Christian Habicht, Pausânias (Παυσανίας) foi um escritor e viajante helênico que viveu no século II d.C. HABICHT, Christian. Pausanias’ Guide to Ancient Greece. Los Angeles: University of California Press, 1985.pp.01-27. 43 GALLEGO, Júlian. Campesinos en la ciudad – basis agrárias de la pólis griega y la infantería hoplita. Buenos Aires: Del Signo, 2005.pp.51-52. 44 SHIPLEY, Graham. Perioecic Society. In: WHITBY, Michael. Sparta. Edinburgh:

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aparente unidade social que foi atribuída aos periecos não existiu de fato, o que em certa medida poderia ter sido um dos fatores que impossibilitaram que os mesmos construíssem uma identidade social de grupo, e viessem a ameaçar a hegemonia dos esparciatas. Quanto a produção de uma identidade entre os periecos na região da Lacedemônia, ao que tudo indica esta teria sido forjada pelos habitantes de Esparta, no intuito de delimitar as diferenças entre o grupo social hegemônico e a condição social daqueles que eram os “habitantes ao redor”. Essa distinção entre espartanos e periecos se fez presente nos textos da Antiguidade. Heródoto ao narrar os acontecimentos da batalha das Termópilas, apresentou o diálogo entre o Grende Rei Xerxes (Ξέρξης) e o espartano Demáratos (Δημάρατος), que anteriormente havia sido basileus de Esparta, acerca dos homens que habitavam a Lacedemônia. Assim Demarátos teria dito: Meu rei – disse Demáratos – o número de lacedemônios é grande, da mesma forma que o número de suas póleis (πόλεις). Mas o que você gostaria de saber, eu irei lhe contar: existe na Lacedemônia uma pólis (πόλις) chamada Esparta (Σπάρτη), cujo território abriga por volta de oito mil homens, todos eles iguais àqueles que combateram aqui hoje; os demais lacedemônios não são iguais a estes homens, embora sejam indivíduos de valor45.

Nessa perspectiva, observamos que na visão de um grupo de pensadores do período Clássico, a relação entre esparciatas e periecos não ocorria em um viés de igualdade, pois tal como Heródoto nos comentou, a partir da figura de Demáratos, os periecos não eram iguais aos cidadãos de Esparta. Mediante as palavras de Heródoto, verificamos outra atribuição dos periecos, e esta estava associada à esfera guerreira. Partindo da premissa levantada pelo Prof. Gallego, evidenciamos que os periecos, ainda que não fossem completamente livres e se encontrassem em uma condição de passividade política frente às determinações de Esparta, foram capazes de integrar o corpo de combatentes da Lacedemônia, na condição de hoplitas46. Partindo de um estudo acerca da realidade Edinburgh University Press, 2002.pp.182-183. 45 HERÓDOTO. Histórias. VII, 234.2. 46 GALLEGO, Júlian. Campesinos en la ciudad – basis agrárias de la pólis griega y la

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político-social da sociedade ateniense do período Clássico, o helenista Alair Duarte declara que na Ática, o sujeito que desejasse combater na falange de guerreiros hoplitas deveria ter recursos necessários para que fosse capaz de adquirir o seu armamento47. Dialogando com Duarte, notamos que a os fatores de ordem econômica foram determinantes para a constituição do corpo de guerreiros helênicos, e ao adaptarmos essa perspectiva para a sociedade espartana, podemos afirmar que os periecos detinham, em certa medida, autonomia política e econômica ao ponto de investirem na aquisição de armamentos de combate. Interagindo os escritos de Shipley com as argumentações suscitadas por Gallego e Duarte, nós levantamos a hipótese de que devido às condições econômicas e territoriais, sobre as quais os periecos se encontravam sujeitos, somente uma parte desses indivíduos poderia compor o exército dos guerreiros lacedemônios, tendo em vista a capacidade de obterem o armamento de guerra necessário. Valendo-nos das palavras de Graham Shipley, este nos auxilia a endossar nossa assertiva ao destacar que nos assentamentos periecos haveria uma liderança local, assim como havia uma distinção entre periecos com recursos e menos favorecidos48. Essa questão que diz respeito à liderança local dos periecos foi justificada por Shipley pelo fato destes serem utilizados pela pólis de Esparta no exército, tornando necessário que os mesmos recebessem algum tipo de treinamento militar que lhes permitisse entender as ordens dos comandantes espartanos, ou seja, nesse viés o referido pesquisador britânico enfatizou que as lideranças locais das sociedades periecas estavam a cargo de uma elite, dentre esses homens, que mantinha relações políticas diretas com as autoridades de Esparta49. Para que possamos dar cabo do segmento social dos periecos devemos abordar um aspecto que os vinculava aos cidadãos de Esparta, ainda que de maneira indireta, a saber, ambos os infantería hoplita. Buenos Aires: Del Signo, 2005.pp.51-55. 47 DUARTE, Alair Figueiredo. Paz Negativa na Atenas Clássica: Guerras, Discurso e Interesses de Estado. Rio de Janeiro: Departamento de Filosofia – UERJ, 2008.p.54. 48 SHIPLEY, Graham. Perioecic Society. In: WHITBY, Michael. Sparta. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2002.pp.188-189 49 Ibidem, p.187.

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segmentos sociais eram denominados de lacedemônios. Tal como verificamos em Heródoto, os periecos e os espartanos eram identificados pelo epíteto que fornecia a denominação de uma área extensa da península do Peloponeso, a Lacedemônia. Em um primeiro momento, partilhando de um posicionamento levantado pelo helenista Nigel Kennell, as relações estabelecidas entre os espartanos e os periecos ocorria em um nível semelhante aquele que Esparta implementou junto as demais póleis do Peloponeso, a partir do século VI50. Contudo, os estudos realizados por Jonathan Hall, a partir de vestígios arqueológicos encontrados em Tebas, sugerem que essa designação de “lacedemônios” teria sido apropriada pelos espartanos no intuito de constituírem uma identidade social que lhes qualificassem enquanto herdeiros da tradição do herói mítico Lacedaemon51. Corroborando com essa proposta, Kennell aponta que os tabletes de argila encontrados em Tebas datam do período micênico, no qual esses “filhos de Lacedaemon” detinham uma elevada proeminência políticoreligiosa na referida região52. Hall ressalta que, a partir do século VIII a.C., os habitantes de Esparta passaram a se valer desta designação para assegurar a sua hegemonia política sobre a região da Lacedemônia, e posteriormente o epíteto de “lacedemônios” foi concedido aos periecos como um privilégio por serviços militares prestados a Esparta53. Referente a esse contexto abordado, o cientista social Nigel Kennell declara que com a ampliação da área de influência espartana sobre um número amplo de sociedades do Peloponeso, os periecos teriam verificado que a submissão parcial a Esparta seria a melhor maneira de se protegerem contra ameaças externas, da mesma maneira que os esparciatas poderiam ser 50 KENNELL, Nigel M. The Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.p.88. 51

HALL, Jonathan M. Sparta, Lakedaimon and the Nature of Perioikic Dependency. In: FLENSTED-JENSEN, Pernille (Ed.). Further Studies in the Ancient Greek Polis. Stuttgart: F. Steiner, 2000.p.85.

52 KENNELL, Nigel M. The Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.pp.04-05. 53

HALL, Jonathan M. Sparta, Lakedaimon and the Nature of Perioikic Dependency. In: FLENSTED-JENSEN, Pernille (Ed.). Further Studies in the Ancient Greek Polis. Stuttgart: F. Steiner, 2000.pp.85-87.

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ótimos consumidores dos produtos produzidos nas comunidades periecas54. Por fim, o referido helenista norte-americano enfatiza que as elites periecas se identificavam com a cultura dos esparciatas, sendo este um elemento que facilitaria a hegemonia da pólis de Esparta sobre os assentamentos dos periecos55. Logo, tais argumentações nos permite pontuar que, independentemente da origem dos periecos as relações políticas, sociais e econômicas que estes estabeleceram com os esparciatas, permitiram que eles tirassem benefícios econômicos e detivessem certos privilégios políticos junto aos espartanos, se comparados a outras sociedades da Hélade. Mediante esses pressupostos podemos materializar essa relação direta entre esparciatas e periecos a partir da documentação textual, do mesmo modo que esta nos leva a supor que os periecos eram súditos dos basileis (Βασιλείς)56, espartanos. Quanto a este último fator, Heródoto de Halicarnassos declarou: “Quando um basileus lacedemônio morre, um contingente fixo de periecos de toda a Lacedemônia devem ir ao funeral, e se juntarem aos esparciatas”57. Ou seja, ainda que os basileis mantenham sua residência na pólis de Esparta, eles são reis dos lacedemônios, fazendo necessária a presença dos periecos em ocasiões desse tipo. Já Xenofonte expôs que os basileis lacedemônios seriam detentores de amplas propriedades nas áreas periecas, de forma que pudessem exercer suas atribuições sem que fossem imensamente ricos58. Possivelmente, essa relação entre os reis e os periecos estivesse associada ao contexto da narrativa mítica de Lacedaemon, no qual os basileis seriam detentores de prerrogativas sagradas que lhes forneciam os subsídios necessários para a formação de uma perspectiva identitária, pautada na relação entre a esfera do divino e do mundo físico, afinal, os reis de Esparta se afirmavam enquanto 54 KENNELL, Nigel M. The Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.p.88. 55 Ibidem,p.89. 56 Este termo designa o plural da palavra βασιλέως, cujo equivalente seria rei. PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Portugês e Portugês-Grego. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1998.p.102. 57 HERÓDOTO. Histórias. VI, 58.2. 58 XENOFONTE. A Constituição dos Lacedemônios. 15.3.

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descendentes de Héracles – enfatizando o aspecto sagrado desses governantes. A documentação textual nos fornece maiores informações acerca das relações político-militares que os periecos desempenharam junto à pólis de Esparta. Retomando os dizeres de Heródoto, este nos apresentou que quando os esparciatas, sob a liderança de Pausânias, partiram para o conflito em Platéia, cinco mil (5000) periecos os acompanharam59. O ateniense Tucídides nos informou que após a derrota dos espartanos para os atenienses em Pylos e o isolamento de seus guerreiros na ilha de Sphactéria, a pólis de Esparta enviou representantes oficiais a Ática, na tentativa de conseguir estabelecer um tratado de paz e, com isso, resgatar os guerreiros espartanos. Nesse contexto, um grupo de espartanos e alguns periecos que estavam próximos a região partiram no intuito de socorrer os guerreiros do exército peloponésio60. No decorrer das Guerras do Peloponeso, Tucídides narra que no momento que os peloponésios, liderados pelos espartanos, estavam promovendo rebeliões junto aos aliados de Atenas, a frota dos peloponésios era comandada pelo perieco Deiníadas (Δεινιάδας)61. Ampliando as possibilidades que apontam para a boa relação entre periecos e esparciatas, como argumentou Nino Luraghi, os assentamentos periecos formavam um “cinturão” que protegia os esparciatas de ameaças externas, mas também de possíveis rebeliões dos vilarejos hilotas62. Desta forma, podemos verificar que as atividades desempenhadas pelos periecos foram substanciais para que a sociedade espartana alcançasse seus objetivos políticos e suprisse suas necessidades econômicas, pois tal como a documentação textual ressaltou embora houvesse diferenças de cunho político-social entre esses segmentos, a conformidade entre ambos manteve os seus respectivos interesses intactos (sejam econômicos, políticos e/ou militares). 59 HERÓDOTO. Histórias. IX, 11.3 60 TUCÍDIDES. História das Guerras do Peloponeso. IV, 8.1. 61 TUCÍDIDES. História das Guerras do Peloponeso. VIII, 22.1. 62

LURAGHI, Nino. Helotic Slavery Reconsidered. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.p.231.

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No que diz respeito aos hilotas, a historiografia tradicional promoveu de maneira enfática que estes se constituíram como uma ameaça interna a integridade dos esparciatas. Podemos ressaltar aqui textos como os de Geoffrey De Ste Croix (The Helot Threat), Paul Cartledge (Spartan Reflections) e Yvon Garlan (War in the Ancient World), nos quais a sociedade espartana teria organizado as suas instituições político-sociais devido a recorrente ameaça que os hilotas acabavam proporcionando a integridade do território políade63. De Ste Croix informa que Esparta teria sido uma das poucas póleis que conseguiu submeter toda uma população, fazendo com que a mesma se tornasse escrava em seu próprio território. No entanto, devido ao fato de serem detentores de uma identidade vinculada ao território, e por terem sido outrora livres os hilotas acabaram se tornando ameaças constantes para os espartanos. Nesse ínterim, Esparta teria se constituído em uma pólis de guerreiros, cujo principal objetivo seria controlar os seus escravos hilotas por meio da coerção64. Ainda que partilhe, em certa medida dessa tendência historiográfica, Paul Cartledge comenta que a relação entre hilotas e esparciatas era paradoxal, pois ainda que os escravos fossem uma ameaça latente foi graças as suas atividades que os cidadãos de Esparta puderam se manter como legítimos detentores do poder político sobre a Lacedemônia65. Já na obra Sparta and Lakonia, Paul Cartledge expõe que os hilotas poderiam viver em vilarejos próprios e virem a formar família, no entanto, a grande maioria dos indivíduos deste segmento social eram retirados do território de seus antepassados e divididos entre as propriedades dos esparciatas, para que assim as possíveis rebeliões fossem diminuídas66. Somos capazes de citar o classicista 63 DE STE CROIX, Geoffrey Ernest Maurice. The Helot Threat. In: WHITBY, Michael. Sparta. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2002.pp.190-191; CARTLEDGE, Paul. Spartan Reflections. London: Gerald Duckworth & Co. Ltd., 2001.pp.15-16; GARLAN, Yvon. War in the Ancient World – A Social History. London: Chatto & Windus, 1975.pp.80-81. 64 DE STE CROIX, Geoffrey Ernest Maurice. The Helot Threat. In: WHITBY, Michael. Sparta. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2002.pp.191-192 65 CARTLEDGE, Paul. Spartan Reflections. London: Gerald Duckworth & Co. Ltd., 2001.p.15. 66 CARTLEDGE, Paul. Sparta and Lakonia – a Regional History 1300 to 362 B.C.

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Moses Finley, no livro “Economia e Sociedade na Grécia Antiga”, ao frisar que o modo de vida espartano foi mantido graças ao seu contingente de hilotas, pois os cidadãos de Esparta se mantinham sempre sob o cuidado de um ataque de seus servos, bem como só eram capazes de se inserirem em tal estilo de vida graças ao trabalho deste segmento social servil67. Logo, podemos ressaltar que nesses autores citados de matriz cultural anglófona, há um debate acadêmico semelhante, no que diz respeito à submissão dos hilotas e as relações que estes mantiveram com os esparciatas. Todavia, nos fundamentamos em um viés diferenciado que objetivou por analisar a relação entre os hilotas e os espartanos, de acordo com as especificidades de cada grupo, mas, sobretudo mediante ao contexto social que partilharam. Desta maneira, recorremos aos estudos do historiador grego Nikos Birgalias ao mencionar que os hilotas foram comumente entendidos como servos estatais da sociedade espartana, que recorrentemente ameaçavam os seus senhores por meio de revoltas. Segundo Birgalias, esse foi o consenso – tal como mostramos – que se fez presente na historiografia, e justifica que este teria se desenvolvido a partir de alguns pressupostos básicos, vinculados a chegada dos dórios no Peloponeso e a condição social dos referidos segmentos lacedemônios. O referido pesquisador declara que as evidências que detemos acerca dos dórios são demasiadamente efêmeras e frequentemente é alvo de crítica, pontuando que não seria sensato de nossa parte atribuir à emergência da hilotagem e a organização da politeia (Πολιτεία) espartana a chegada desse grupo invasor68. Sendo assim, Birgalias insere a instituição dos hilotas no processo de transformação da sociedade espartana que se deu no século VII a.C. Nessa ótica, a dominação da região da Messênia teria sido o evento histórico determinante para o estabelecimento da hilotagem. No entanto, temos que ter em mente que, assim como London: Routledge, 2002.p.141. 67 FINLEY, Moses I. Economia e Sociedade na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989.passim. 68 BIRGALIAS, Nikos. Helotage and Spartan Social Organization. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.p.249-250.

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a designação de perieco, os hilotas foram constituídos enquanto um grupo homogêneo somente quando comparado ao segmento dos esparciatas. Se levarmos em consideração que existiam hilotas em toda a Lacedemônia – englobando a Lakoniké e a Messênia – os mesmos poderiam não ter tido a mesma matriz cultural e, consequentemente, não detinham uma identidade étnica comum. Retomando os apontamentos de Paul Cartledge, este declarou que os hilotas da Lakoniké seriam descendentes dos antigos aqueus, submetidos com a chegada dos dórios69. Contudo, indo por um caminho distinto da “invasão dórica”, o historiador Nino Luraghi ao citar as análises levantadas por Ulrich Kahrstedt, considerou os hilotas da Lakoniké, enquanto antigos membros da sociedade espartana os quais foram submetidos a condição de escravos devido as dívidas que adquiriram com os proprietários de terras, esse fator levou Kahrstedt a considerar Esparta como uma Atenas sem as medidas de Sólon70. Independentemente das propostas acadêmicas desenvolvidas, essas são apenas hipóteses construídas a partir da documentação textual escrita e que, infelizmente, não somos capazes de estabelecer uma conclusão. Por sua vez, a grande maioria dos escritores da Antiguidade, com ênfase para aqueles do período Clássico, aparentemente não estiveram preocupados com as motivações da hilotagem, afinal, a escravidão era uma realidade comum entre as sociedades da Hélade. Pautados na lógica de que a pólis de Esparta se desenvolveu de acordo com as circunstâncias do século VII, a hilotagem poderia ser compreendida como uma das medidas necessárias para que o segmento social dos esparciatas pudesse manter o seu status através do cumprimento das determinações mínimas que a cidadania espartana requeria. Deste modo, tornou-se necessário a utilização de escravos nas propriedades dos homoioi, cuja produção era necessária para que estes contribuíssem com os repastos coletivos e se mantivessem no interior da aristocracia espartana. Luraghi, por sua vez, ressaltou que se os hilotas se reconhecessem 69 CARTLEDGE, Paul. Sparta and Lakonia – a Regional History 1300 to 362 B.C. London: Routledge, 2002.p.82. 70

LURAGHI, Nino. Helotic Slavery Reconsidered. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.pp.240-241.

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como um grupo formalizado, após a segunda guerra da Messênia, seria provável que no século V a.C. os mesmos já tivessem autorreproduzido uma identidade de grupo através das gerações, resguardando a origem étnica desses indivíduos, chegando a constituir uma identidade étnica capaz de fazer frente à hegemonia espartana – devido as Guerras do Peloponeso71. Entretanto, o próprio Luraghi ao citar um trabalho de Thomas Figueira declarou que durante as Guerras do Peloponeso todos os hilotas que fugiam do controle dos espartanos se tornavam messênios72. Isto nos indica que a identidade dos hilotas da Messênia foi fruto do contexto social do período Clássico, o que nos permite supor que estes não teriam formado, até então, um grupo homogêneo. O helenista Nikos Birgalias nos permite endossar esses fatores, e adverte que a diferença substancial dos hilotas da Lakoniké e da Messênia seria as condições históricas em que a hilotagem foi estabelecida em cada região73. O historiador Nigel Kennell comenta que os hilotas eram propriedades da pólis, e ainda que estivessem vinculados a um único senhor, este não poderia vendêlo ou libertá-lo por iniciativa privada74. Entretanto, Xenofonte – na Constituição dos Lacedemônios – afirmou que os escravos, os cães de caça e os cavalos de um esparciata poderiam ser utilizados pelos demais caso fosse necessário75. Kennell argumenta sobre esse trecho dos escritos de Xenofonte, ao considerar os escravos como hilotas, o referido pesquisador declara que os hilotas foram inseridos no mesmo patamar dos cães de caça e dos cavalos, possibilitando que os hilotas fossem considerados propriedades privadas dos esparciatas76. A despeito desses fatores, Luraghi comenta que a constituição e os costumes espartanos teriam inibido a venda 71 BIRGALIAS, Nikos. Helotage and Spartan Social Organization. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.p.239. 72 Ibidem, pp.239-240. 73 Ibidem, p.257. 74 KENNELL, Nigel M. The Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.p.82. 75 XENOFONTE. A Constituição dos Lacedemônios. 6.3. 76 KENNELL, Nigel M. The Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.p.82.

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e a libertação dos hilotas, fazendo com que estes fossem uma população escrava que se autorreproduzia. Devido a esses fatores os esparciatas acabaram se tornando autossuficientes em termos de trabalhadores, se eximindo da necessidade de adquirir escravos regularmente, seja pelo comércio ou a guerra77. Através do que foi exposto, e fundamentado nos estudos de Birgalias e Luraghi, evidenciamos que o discurso de Tucídides78 foi determinante para a construção de um discurso no qual os hilotas seriam vistos como uma ameaça para a sociedade espartana, porém, o lapso de informações escritas provenientes dos esparciatas, e até mesmo dos hilotas nos impossibilita de estabelecermos considerações mais precisas acerca das relações entre esses dois segmentos79. Por sua vez, relatos presentes na documentação de Heródoto, nos apresentam os hilotas e os esparciatas em uma relação aparentemente íntegra e complementar. Podemos citar o caso de Eurytus (Εὔρυτόν), que devido à “oftalmia”80 acabou não combatendo junto a Leônidas (Λεωνίδας) e os demais esparciatas, sendo deixado em um vilarejo próximo as Termópilas sob os cuidados de seu acompanhante hilota81. Ou ainda, após a batalha no desfiladeiro das Termópilas, aonde Heródoto afirma que hilotas combateram junto a Leônidas e os demais helenos82. As palavras do autor de Halicarnassos nos permite observar que a interação existente entre espartanos e hilotas ocorria de forma semelhante ao modo pelo qual os helenos se relacionavam com seus escravos, sem que esses se constituíssem em uma ameaça a organização 77

LURAGHI, Nino. Helotic Slavery Reconsidered. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.p.234.

78 TUCÍDIDES. História das Guerras do Peloponeso. IV, 80.3. 79 Somos capazes de ampliar essa assertiva através do discurso de Aristóteles, na Política. Este declara que os hilotas se constituíam em uma ameaça constante aos esparciatas, sendo considerados como inimigos que ficavam espreitando possibilidades de agirem contra os seus senhores (ARISTÓTELES. Política. II, 1269a). 80 Ainda que o referido autor clássico não tenha assinalado os possíveis sintomas desta possível doença, supomos que esta seja uma inflamação no globo ocular. 81 HERÓDOTO. Histórias. VII, 229.1. 82 HERÓDOTO. Histórias. VIII, 25.1.

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político-social do território políade, mas sim como uma relação necessária para a manutenção dos interesses sociais e econômicos dos habitantes da pólis. Ainda em Heródoto, quando este passa a narrar o período no qual Cleomenes I (Κλεομένης) foi basileus de Esparta, diversos relatos são apresentados nos quais os hilotas são compreendidos como escravos, em uma perspectiva ampla do termo. No momento em que Cleomenes, segundo Heródoto, fora imobilizado e preso pela sua conduta, considerada como anormal, os esparciatas deixaram um hilota de guarda, que após ser ameaçado pelo referido rei acabou fornecendo-lhe um punhal, com o qual Cleomenes se matou83. Nesse trecho, podemos analisar que a maneira como o basileus se relaciona com o hilota se assemelhava ao tratamento de um senhor para com um escravo, no qual Cleomenes enquanto figura de poder e autoridade na política da referida pólis – se encontrando em uma condição social superior – poderia acarretar algum malefício a um indivíduo que não estivesse em um patamar semelhante ao seu. Em outra ocasião, Cleomenes na tentativa de dominar a região de Argos teria incendiado o bosque sagrado que ali existia – que Heródoto informa que seria dedicado a um herói argivo – no intuito de matar os sobreviventes do combate que efetuara nas imediações deste local84. Todavia, possivelmente para que não incorresse em um ato desmedido para com a divindade, a qual o lugar era dedicado, Cleomenes ordenou que os hilotas ateassem fogo no mesmo, fazendo com que a sua participação no ato fosse indireta. Em seguida, ainda em Argos, o basileus Cleomenes se dirigiu a um templo dedicado a deusa Hera, porém impedido de adentrar ao recinto sagrado pelo sacerdote sob a alegação de ser vetada a entrada de estrangeiros no santuário da divindade. Desse modo, o rei espartano teria mandado que os seus hilotas afastassem o sacerdote do altar e o chicoteasse, para que assim o seu sacrifício fosse realizado85. Do mesmo modo, Pausânias ao cabo da batalha de Platéia teria ordenado que os hilotas saqueassem os corpos dos 83 HERÓDOTO. Histórias. VI, 75.2-3. 84 HERÓDOTO. Histórias. VI, 80.1. 85 HERÓDOTO. Histórias. VI, 81.1.

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persas em busca de riquezas86. Sendo assim, verificamos que a documentação textual do período Clássico nos fornece indícios de que os hilotas foram tratados e utilizados tais como escravos, sejam eles acompanhantes de batalha ou indivíduos empregados para a realização de serviços considerados indignos, mas ainda assim necessários para os seus senhores. Outro elemento que podemos destacar acerca dos hilotas foi que os mesmos poderiam, segundo a documentação escrita, serem utilizados em serviços domésticos pelos espartanos. Retomando Xenofonte, este nos informou que em Esparta, as mulheres jovens se preocupavam unicamente com a manutenção de sua compleição física para que assim pudessem gerar filhos saudáveis. Logo, ficaria a cargo dos hilotas as atividades domésticas tais como trabalhar a lã, e até mesmo cozinhar87. Dialogando acerca das palavras de Xenofonte, o Prof. Nigel Kennell aponta que nas demais póleis da Hélade essas funções ficariam a cargo das mulheres, fazendo com que em Esparta fossem necessários muitos atendentes para a realização dos serviços domésticos88. Kennell complementa que os hilotas poderiam efetuar trabalhos domésticos, serem amas de leite, atendentes pessoais dos espartanos em batalha, componentes de uma infantaria ligeira e, a partir de 424 a.C., guerreiros hoplitas. Por conseguinte, o referido historiador moderno pontua que os hilotas poderiam viver com suas famílias em pequenas comunidades centralizadas no interior das áreas cultiváveis do rio Eurotas, sempre sob a vigilância dos esparciatas89. Quanto à perspectiva de que os hilotas pertenciam a pólis, e não a um esparciata em particular, esta poderia ter se desenvolvido pelo recorrente envolvimento de Esparta na libertação dos seus escravos – sobretudo no período das Guerras do Peloponeso – autoridade essa que somente os proprietários desses sujeitos seriam detentores90. 86 HERÓDOTO. Histórias. IX, 80.1-2. 87 XENOFONTE. A Constituição dos Lacedemônios. 1.4. 88 KENNELL, Nigel M. The Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.p.81. 89 Idem. 90 Ibdem, p.83.

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Independentemente de serem propriedade privada de um esparciata ou não, o historiador Nikos Birgalias enfatiza que a relação entre estes dois segmentos se dava de forma bastante peculiar. Tal como nos informou Birgalias91, os hilotas eram dependentes de seus senhores em medida em que não eram detentores da terra em que viviam, e tiravam o seu sustento, porém os mesmo poderiam possuir algum tipo de bem pessoal92. No que tange a violência pela qual os hilotas eram tratados, Nigel Kennell comenta que embora pudesse existir uma degradação ritualizada entre os senhores e seus escravos, como uma forma de legitimar a condição social dos cidadãos, os espartanos não poderiam ter se valido estritamente da coerção, afinal a violência não teria sido capaz de manter uma população tão ampla sob controle durante tanto tempo93. Os apontamentos de Birgalias nos permite corroborar com Kennell, pois os homoioi não poderiam ter aniquilado ou submetido os hilotas a péssimas condições, pois seria através do trabalho desses indivíduos que os esparciatas asseguravam a sua posição política em Esparta e na Lacedemônia94. Entretanto, seguindo por esse viés e calcados no discurso de Tucídides, podemos supor que os hilotas que habitavam a região da Messênia seriam passíveis de revolta com maior frequência que aqueles que viviam na Lakoniké. Tecemos estas considerações devido ao fato da distância física que existia entre os escravos que se encontravam nas terras messênicas e os seus senhores, tendo em vista que os esparciatas deveriam residir no centro urbano e de poder político da Lacedemônia, ou seja, 91 BIRGALIAS, Nikos. Helotage and Spartan Social Organization. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.p.257. 92 Tucídides afirma que alguns hilotas teriam se voluntariado a levarem víveres para os espartanos que estavam sitiados na ilha de Sphactéria, e para isso teriam se utilizado de seus próprios barcos (TUCÍDIDES. História das Guerras do Peloponeso. IV, 264-6). 93 KENNELL, Nigel M. The Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.pp.84-85. 94 BIRGALIAS, Nikos. Helotage and Spartan Social Organization. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.p.256.

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Esparta. Por sua vez, não seria incorreto levantarmos a hipótese de que os hilotas que trabalhavam nas residências dos espartanos pudessem desenvolver algum tipo de vínculo com o seu senhor. Nessa perspectiva, os apontamentos de Nigel Kennell nos permite endossar tal assertiva, afinal, o helenista norte-americano afirmou que haveria na relação entre hilotas e esparciatas a cooptação em um nível individual, no qual os escravos criariam laços de lealdade para com a família de seu senhor. O autor complementa que os hilotas poderiam ser tirados de seus afazeres rurais para que servissem no interior das casas dos espartanos, caracterizando que algumas famílias hilotas seriam detentoras de certos privilégios devido a tradição de seus serviços95. Sendo assim, o Prof. Birgalias argumenta que o fato dos autores do período Clássico terem divergido quanto à utilidade dos hilotas, e o modo pelo qual eram tratados, seria uma evidência de uma perspectiva confusa e de opiniões divergentes acerca da hilotagem, mostrando o possível desconhecimento dos autores atenienses sobre a escravização dos hilotas. Para Birgalias a imagem dos hilotas enquanto sujeitos que odiavam os seus senhores, e dos espartanos como indivíduos que temiam os seus escravos teria sido resultado do discurso ateniense do V século a.C. – que estava imerso no contexto social das Guerras dos Peloponeso –, e da construção tardia de uma identidade para os habitantes da Messênia96. Com isso, podemos apontar que os hilotas eram escravos dos esparciatas, e diferentemente da proposta levantada pela historiografia tradicional, a instituição da hilotagem não deveria ser compreendida enquanto uma ameaça para a pólis de Esparta – assim como sugeriu parte da documentação escrita do V século a.C. – e sim como uma medida tomada no intuito de se minimizar os problemas agrários que se abateram sobre toda a Hélade, no período Arcaico. Por sua vez, ainda que tenhamos discorrido sobre as principais características destes três segmentos sociais da Lacedemônia, 95 KENNELL, Nigel M. The Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.p.86. 96 BIRGALIAS, Nikos. Helotage and Spartan Social Organization. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Eds.). Sparta: Beyond the Mirage. Swansea: The Classical Press of Wales; Duckworth, 2002.pp.255-258.

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podemos enfatizar que os meios pelos quais os esparciatas se utilizaram para se estabelecerem como o grupo hegemônico na referida região nem sempre se deu pelo uso da violência, mas sim pela utilização daquilo que identificamos como “poder simbólico”. De imediato iremos informar que o nosso arcabouço teórico reside nas pesquisas do sociólogo francês Pierre Bourdieu sobre o “poder simbólico”, na obra “O Poder Simbólico”. Ainda que Bourdieu não tenha desenvolvido suas análises para os estudos sobre as sociedades do mundo antigo, o seu arcabouço conceitual, ao ser adaptado para a nossa proposta, nos possibilita lançar olhares mais amplos acerca dos estudos sobre as relações de poder existentes entre os grupos sociais de Esparta. Ao iniciar suas argumentações, Bourdieu ressalta que o “poder simbólico” reside em todo local, até mesmo naqueles em que sua presença é pouco perceptível, no entanto, todo e qualquer esforço de representá-lo nos acarretaria numa mera simplificação. Nesse ínterim, através das considerações de Émile Durkheim, Pierre Bourdieu afirma que o poder simbólico, por ser um poder, tem a capacidade de estabelecer de maneira imediata à ordem na sociedade, constituindo com isso uma concepção homogênea do tempo e do espaço vivido e das causas que permitem que haja concordâncias entre os modos de pensamento97. Com isso Bourdieu declara que em uma sociedade a cultura dominante se utiliza dos poderes simbólicos na tentativa de estabelecer as distinções existentes em relação aos demais segmentos sociais, criando a impressão fictícia de uma integração entre os diferentes grupos. Desta maneira, os indivíduos que compõem o grupo hegemônico criam uma falsa consciência social que desmobiliza as “classes dominadas” por meio de hierarquizações e da legitimação dessas distinções. Logo, o poder simbólico produz um efeito equivalente àquele que é proporcionado pela coerção física, graças a sua eficácia de mobilização, que somente pode ser exercida quando vir a ser reconhecida e reproduzida pelos grupos que lhe estão sujeitos (violência simbólica), assim possibilitando que os segmentos hegemônicos acabem transformando representações simbólicas 97 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1989, pp.07-09.

110 • As relações de poder na pólis de Esparta através dos escritos do período clássico

em efeitos reais, que legitimam a sua autoridade política98. Por fim, o autor define que os diversos poderes simbólicos se organizam em sistemas simbólicos, que cumprem a função de assegurar o controle de um grupo social sobre outro (violência simbólica), dando respaldo e reforço ao poder hegemônico e garantindo a manipulação dos segmentos submetidos99. Tendo por fundamentação os pressupostos desenvolvidos por Bourdieu, e respeitando as especificidades do contexto do autor, e relacionando com os indícios presentes na documentação escrita de matriz ateniense, podemos conjeturar que os esparciatas teriam se valido de um conjunto de poderes simbólicos, que formavam um sistema simbólico específico para que viessem a exercer a sua autoridade político-social sobre os demais habitantes da Lacedemônia. Ou seja, ao difundirem os elementos característicos de suas práticas culturais, associados à imagem destes enquanto valorosos combatentes, os espartanos produziram uma percepção de mundo, aparentemente homogênea entre os lacedemônios. Logo, através de seu sistema simbólico os esparciatas promoveram a integração entre o seu grupo social e os demais segmentos existentes na região, chegando a estabelecer em certa medida o controle político e a coesão social entre os povos que residiam na Lacedemônia. Por meio das representações simbólicas que desenvolveram, e do fato dessas terem sido reproduzidas pela grande maioria dos periecos e alguns grupos de hilotas, os esparciatas legitimaram a sua autoridade sobre a Lacedemônia. Feitas as devidas considerações e pautados nos debates estabelecidos entre a documentação textual e a historiografia, concluímos que os esparciatas exerceram a sua autoridade político-social na Lacedemônia devido a um conjunto de fatores e circunstâncias, que os possibilitaram a serem reconhecidos como os governantes. Desta maneira, a sociedade espartana teria se desenvolvido, a partir do século VIII a.C, de acordo com as necessidades que se fizeram presentes no referido contexto histórico. Com isso, também evidenciamos que a imagem que se produziu acerca de Esparta foi, sobretudo, proveniente do discurso ateniense de meados do V século a.C. Imbuídos desta perspectiva, 98 Ibidem, pp.10-15. 99 Ibidem, p.11.

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concebemos que as relações de poder que foram mantidas entre os esparciatas, os periecos e os hilotas tinham por objetivo corresponder aos interesses sociais e econômicos de cada segmento, que através de um sistema simbólico particular manteve os espartanos na hegemonia política da região. Por sua vez, não podemos ser ingênuos em acreditar nas argumentações historiográficas sem estabelecermos o mínimo de questionamento, ou seja, devemos ter consciência de que se os esparciatas tivessem mantido um sistema de controle meramente coercitivo, possivelmente os demais segmentos teriam se rebelado. No entanto, o que verificamos a partir dos indícios da documentação escrita foi que os espartanos permaneceram no poder político da Lacedemônia por mais de três séculos, fator este que nos permite supor que os mesmos, sempre que necessário, criavam e/ou transformavam os seus poderes simbólicos no intuito de manterem relações produtivas com os grupos submetidos e preservarem o seu poder político entre os lacedemônios.

VI Spatium urbis: política e religião na organização dos bairros à época do principado augustano Debora Casanova da SILVA1 Compita grata deo, compita grata cani, exagitant et Lar et turba Diania fures: pervilanque Lares, pervilanque canes bina gemellorum quaerebam signa deorum uiribus annosae facta caduca morae; mille Lares Geniumque ducis, qui tradidit illos Vrbs habet , et uici numina terna colunt. Ovídio, Fasti V2 1 Mestranda do curso de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Membro do Núcleo de Estudos e Referências da Antiguidade e do Medievo - NERO. Bolsista CAPES. Orientada pela professora Drª Claudia Beltrão da Rosa. Email: [email protected]. br. 2 “A encruzilhada é grata ao deus, a encruzilhada é grata ao cão/ Tanto o Lar quanto a injúria de Diana afugentam a desordem/ E os Lares velam, e também os cachorros/ buscavam o vestígio dos deuses gêmeos/ que para eles foram deixados aos loucos por causa do peso dos anos/ a cidade tem mil Lares e Genius/ Do princeps, que os deu ao povo/ E os bairros cultuam as três divindades. OVÍDIO.

114 • Spatium urbis: política e religião na organização dos bairros à época do principado augustano Textos clássicos são célebres por fazerem, com que nós historiadores modernos, atenhamo-nos a pequenos trechos, palavras de efeito e expressões significativas. Através dos elementos de retórica esses autores nos permitem pensar em outra época, a que eles viviam. Nossa distância, no tempo e no espaço, faz com que tenhamos certo estranhamento inicial com os textos, mas, através dessas construções linguísticas, tal estranhamento vai sendo minimizado ao longo da obra. Com apenas duas palavras – spatium urbis3 – Suetônio nos permite o prazer de vislumbrar a nova Roma de mármore, que fora construída sob o governo de Augusto. Em alguns trechos da obra de Suetônio, Vita Diui Augusti, ele apresenta as mudanças empreendidas por Augusto na sociedade romana, entretanto poucas são as seções que destacam o momento da reorganização do espaço físico. Dois parágrafos de Suetônio, entre outros documentos, tais como os altares, relacionados com o culto dos Lares e Genius Augusti, são significativos para a pesquisa histórica, apresentando as necessidades e turbulências do cotidiano na urbs do século I a.C, possibilitando-nos uma leitura, a partir da análise da documentação supértiste, das mesmas e uma via para a compreensão da reestruturação urbana promovida por Augusto. Espaços físicos, que para os romanos eram sagrados, figuram entre os elementos expoentes que auxiliaram na fundamentação da legitimação do princeps, da religião “restaurada” à sua época e dos cultos voltados à criação de uma aura de divinização em torno de sua família, a domus augusta. É difícil aproximarmo-nos da concepção de que uma divindade circulava fisicamente pela cidade, e de que sua presença era algo constante e iminente. Entretanto, Ovídio deixa clara no Fasti l.V Fasti V, p. 137-46. Disponível em: http://www.thelatinlibrary.com/ovid/ovid.fasti5.shtml. Acesso em: 12/12/2011. (Tradução nossa). 3

Na obra de Suetônio, os parágrafos que informam sobre essas modificações físicas na cidade de Roma, são os XXIX e XXX. As duas palavras acima citadas fazem parte do parágrafo XXX, que Suetônio inicia com “Dividiu o espaço da cidade...”. SUETONIO. Vita Diui Augusti. In: A vida e os feitos do Divino Augusto. Trad. Matheus Trevizam, Paulo S. Vasconcelos, Antônio M. de Rezende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p.70-71 (Texto em latim e tradução em português).

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essa presença, como deixa explícita sua irritação quanto à falta de limpeza e ornamentação nos espaços pelos quais elas passavam4. Desde pelo menos 43 a.C., houve tentativas, algumas um tanto frustradas, de reorganizar a urbs, de forma que os espaços físicos sofressem menos com o impacto dos incêndios, a falta d’água, a dificuldade na distribuição dos grãos, a violência local, a negligência e esquecimento dos cultos e rituais, que eram feitos em toda a cidade5. Em 33 a.C., Marcus Agrippa se tornava aedil executando diversas obras e modificações significativas, como o aumento da construção de fontes nos bairros e a restauração das mais antigas6. Para Pierre Grimal, Agrippa aumentou significativamente o número de fontes na cidade7. A inclusão das fontes nos bairros pode ser vista como uma primeira aproximação de Octaviano com os bairros. Mesmo que não explícita, havia uma continuidade nesses planos e objetivos voltados a uma melhor organização do espaço urbano de Roma. Uma continuidade que nos permite dizer que a reorganização urbana, foco de nossa análise, não seria a primeira nem tampouco a última acontecida na urbs. Havia duas questões principais no contexto das obras e modificações feitas ao longo da República média e tardia: o acesso mais rápido à água e a distribuição de grãos, que por sua vez estava imbricado com o recenseamento de cidadãos. Em 312 a.C., Roma teve seu primeiro aqueduto construído pelo censor Ápio Claudio, possibilitando a chegada de água a cidade8. Em 123 a.C. Caio Graco iniciou a distribuição de grãos à população. Sila durante sua ditadura, utilizando seu próprio dinheiro, também distribuiu 4

Ver nota 2.

5

LOTT, John B. The neighborhoods of Augustan Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p.40-41.

6

Em uma das dedicatórias apresentadas no livro de Lott, Marcus Agrippa em 33 a.C. restaura um monumento do Vicus Salutaris. Idem, p.181.

7

GRIMAL, Pierre. O século de Augusto. Lisboa: Edições 70, 2008, 247.

8

GRIMAL, Pierre. A Civilização Romana. Lisboa: Edições 70, 2009, 247-248. PATTERSON, John. The City of Rome. In: ROSENSTEIN, N. MORSTEINMARX, R. A Companion to the Roman Republic. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2006, 358.

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grãos em tempos de crise9. Em 58 a.C., Clódio fez uma grande distribuição de grãos, sem nenhum custo para a população10. Como podemos verificar, os grãos, que acabavam auxiliando no apoio da população a estes cidadãos, eram fundamentais, assim como as ações que implicassem a chegada de água na cidade. Uma regulamentação mais firme foi executada por Júlio César, que instituiu uma contagem por bairros (uicatim) e por número de pessoas residentes nas insulae, para auxiliar no censo11. Havia a noção de que para regulamentar a distribuição de grãos, era preciso que houvesse registros confiáveis para contabilizar a população. Questões relativas aos bairros foram levantadas em diferentes épocas da sociedade romana e em diferentes administrações. Muitas vezes o problema maior eram as disputas políticas, o patronato e seus clientes, a disputa entre as gentes pela influência sobre Roma e seu império, os privilégios de determinado collegium, e as variações dos grupos e suas culturas. Segundo Andrew Lintott, Laços horizontais entre a plebe romana na República foram criados por uma multiplicidade de organizações nomeadas pelos romanos como “colégios” (collegia). Algumas dessas eram antigas guildas de comércio ou profissões, como a dos escribas, músicos, e trabalhadores de madeira e metal. Similarmente estabilizadas eram as associações ligadas aos distritos dentro da cidade (uici) e as colônias no campo (pagi). Estas características podiam ser facilmente sobrepostas, criando uma tendência nas cidades de concentração do comércio em quarteirões específicos. De todo modo tudo isso podia ser associado com o fato de uma ou mais divindades presidirem esses locais12.

Administração e religião se juntam ao poder e influência de Augusto, e dessa união é possível entrever como se pensou o espaço e a partir de quais prioridades. Os espaços de que estamos 9 Idem: 247-248; idem: 358. 10 LOTT, John B. The neighborhoods of Augustan Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p.63-64. 11 Idem: 63-64. 12 LINTOTT, Andrew. The Romans in the age of Augustus. Oxford: Blackwell Publishing, 2010, p.101.

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falando não são somente os reservados a grandes monumentos e templos; estamos falando de interseções, que apontavam para o microcosmo dentro de um cosmos complexo13, a urbs. Os uici14 ou bairros eram um desses meios que representavam a multituto urbana, na Roma tardo-republicana em diante. No governo de Augusto, vemos uma nova tentativa de organizar todo o espaço da urbs, redimensionado e unindo o físico e o sagrado, a partir da introdução de mais um culto, especificamente ligado às esquinas e encruzilhadas. O culto dos Lares Augusti, provavelmente, foi iniciado no ano 7 a.C. em conjunto com a reorganização do espaço, o que não foi mera coincidência. O ritual dos Lares Augusti foi uma transposição, ou melhor, uma coadunação de um ritual já conhecido, o ritual das Compitalia15. O ritual originalmente era dedicado a duas 13 É importante destacar que foram forjadas, como explica Diana Favro, “responsabilidades específicas” que remetiam a um poder de propriedade estimulando nos habitantes da urbs a ideia de uma ligação entre eles e a própria cidade, ou seja, seu espaço físico constantemente restaurado. Além do patronato concentrado na família imperial, direcionado a reparos e construções, havia também a participação dos indivíduos ou dos collegia na doação de determinados adornos e pequenas inclusões na paisagem urbana, vide os altares já citados. FAVRO, Diane. The Urban Image of Augustan Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p.223. 14 Lott citando o dicionário de Festus apresenta três opções do que poderia ser considerado um uicus, entretanto, dentre as três, optamos pela descrição elaborada pelo próprio autor. Os bairros ou uici seriam desta forma, vistos como “entidades geográficas, religiosas e sociais que englobam uma pequena área do espaço urbano correspondendo a uma pequena rua e suas casas contíguas, apartamentos em edifícios, e seus negócios ou lojas. No centro físico e social de cada bairro havia um cruzamento (compitum) onde o uicus mantinha um santuário para seus dois espíritos tutelares, os Lares”. Acrescentando que o uicus também era tido como um núcleo administrativo, no qual os oficiantes eram os administradores, cuidando da prevenção de incêndios, da distribuição de água e de alimentos, das decisões políticas do grupo e dos rituais religiosos. Os oficiantes de nome magistri ou uicumagistri, eram libertos e livres de nascimento, que tinham como seus assistentes, os ministri, servos e escravos LOTT, John B. The neighborhoods of Augustan Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p.4. MAGALHÃES, M.M. La cd. Villa del Fauno: un possedimento imperiale a Stabiae? In: CAMARDO, D.-FERRARA, A. (org.). Stabiae dai Borbone alle ultime scoperte. Castellammare di Stabia: Nicola Longobardi Editore, 2001, p.105-108. 15 Cf. STEK, Tesse. Cult places and cultural change in Republican Italy. Amsterdam: Am-

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divindades, os Lares Compitales, tendo sido modificado em 7 a.C. quando passou a ser associado à Augusto, a partir da inclusão de uma terceira divindade, a sua essência divina, o seu genius, passando a se chamar culto aos Lares Augusti. Os uici: origem e poder A urbs, no ano 7, foi dividida em 14 regiões16 e aproximadamente 265 uici17. Essa estimativa é posterior ao governo de Augusto, contudo diversas epigrafias foram encontradas mostrando alguns aspectos dessa divisão. De acordo com John Bert Lott, grande número de dedicatórias existentes apresentam a restauração de bairros e sua reorganização no governo de Augusto18. Os mapas que temos hoje e que possibilitam uma aproximação desse espaço divido por Augusto, são compilações de fragmentos que são recorrentemente estudados e revistos para formar algo mais próximo do que seria a Forma Vrbis Romae (imagem 1), ou a forma da cidade de Roma19. Fragmentos provindos do plano de mármore sterdam University Press, 2009, p.187-212; SCULLARD, H.H. Festivals and Ceremonies of the Roman Republic. London: Thames and Hudson, 1981, p.51-54. 16 Os nomes das regiões são: I Porta Capena; II Caelimontium; III Isis et Serapis; IV Templum Pacis; V Esquiliae; VI Via Lata; VIII Forum Romanum; IX Circus Flaminius; X Palatium; XI Circus Maximus; XII Piscina Publica; XIII Aventinus; e XIV Transtiberim. Disponível em: http://penelope.uchicago.edu/Thayer/L/Gazetteer/Places/Europe/Italy/Lazio/Roma/Rome/_Texts/Regionaries/text*.html. Acesso: 17/08/2012. (Ver Imagem 1). Regio, onis – limites, fronteiras; [fig.] linhas imaginárias traçadas no céu pelos áugures para delimitação das zonas; região território. ALMEIDA, A.R. Dicionário de Latim-Português. Porto: Porto Editora, 2008, p.562563. 17 Segundo Lott, Plínio o Velho teria apontado 265 uici (HN 3.66-67); Virgílio, 300 uici (Aen. 8.116-117); e Ovídio, 500 (Fasti 5.145-146). No entanto, essas estimativas são de datações diferentes, seguimos a de Plínio o Velho por entender que seus levantamentos estavam de acordo com as estatísticas físicas feitas sobre a urbs, no consulado de Vespasiano e Tito em 73 d.C. LOTT, John B. The neighborhoods of Augustan Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p.15. 18 Para tal ver: Appendix – Compital Dedications by year. Idem: p.180-219. 19 Para uma análise específica dessa documentação, ver os seguintes projetos: Universidade de Stanford, disponível em: http://formaurbis.stanford.edu/, acesso: 16/08/2012; Lacus Curtius, disponível em: http://penelope.uchica-

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elaborado no governo de Sétimo Severo, que ainda mantinham a mesma divisão feita no governo de Augusto, possibilitaram essa aproximação. Pela tradição, a primeira divisão da cidade de Roma foi realizada, ainda na época monárquica, no período do reinado de Sérvio Túlio20, que de acordo com Tito Lívio, dividiu “a cidade em quatro partes, formadas por regiões e colinas que eram então habitadas, chamou-as de tribos...” 21. A cidade, desse modo, poderia ser mais bem administrada, principalmente devido ao censo e as divisões ocorridas a partir da condição financeira de cada cidadão. Então, uma primeira divisão física e social foi feita, com a criação de ofícios públicos, a partir da fortuna de cada um, incluindo-os nas classes e nas devidas centúrias. Essa divisão permitiu a primeira distribuição de cargos públicos, contudo, ela ainda não dividia os bairros e as demais funções, e principalmente não especificava quem iria cuidar desses espaços.

go.edu/~grout/encyclopaedia_romana/imperialfora/forma.html, 16/08/2012.

acesso:

20 O período do reinado de Sérvio Túlio é convencionalmente datado por Dionísio de Halicarnasso, entre 557 – 538 a. C. Dio. Hal. apud LOTT, John B. The neighborhoods of Augustan Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p.30. 21 “Quadrifariam enim urbe diuisa regionibus collibusque qui habitabantur, partes eas tribus apellauit...”. TITO LÍVIO. História de Roma. Livro I – Monarquia. Edição Bilíngue. Belo Horizonte: Crisálida, 2008, p.144-145.

Imagem 1: Mapa das 14 regiões de Roma. Fonte: http://it.wikipedia.org/wiki/File:Plan_Rome-_Regiones.png

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Na primeira metade do século I a.C., com o aumento da população, novas divisões, inclusões de cargos e funções eram necessárias ao bom funcionamento do espaço urbano. A ideia apresentada pelo arquiteto Marcos Vitrúvio Polião, baseava-se na perspectiva de que um espaço estabilizado, físico e socialmente, condizia com uma boa administração, tanto quanto com o bom funcionamento da política. Havia o desafio constante em tentar contentar tanto a plebe urbana, quanto os proprietários de terras. Todo esse conjunto de fatores, ligados aos conflitos entre as forças políticas auxiliaram a inflar uma crise que mais parecia não ter fim. O quadro brevemente apresentado fornece pano de fundo que ilumina as intervenções urbanas de Augusto no intuito também de diminuir a crise, proveniente de um conjunto de fatores que deflagaram a guerra civil. A res publica restituta expressa essa ação, o retorno a um modelo idealizado de governo conservador calcado nos mos maiorum, apresentando-o como um modelo que havia sido abalado, e que deveria ser restaurado. O apoio da plebe era disputado como força política, mobilizado em favor de algumas famílias aristocráticas romanas. A capitalização dessa força era clara e pode ser vista a partir da relação entre a plebs infima e a elite, e crescia através de benefícios e laços de dependência, gerando vantagem para ambos os lados. De todo modo, o que vai ser visto, posteriormente, com Augusto, como o surgimento de sua imagem de defensor do povo, não foi novidade, foi uma ação que já havia sido empreendida por outras famílias da aristocracia. O final da República tardia foi marcado por turbulências políticas que afetaram a estabilidade da urbs. Dentro dos bairros havia os bandos, operae ou manus; os assim chamados clubes de eleição, sodalitates e decuriae; e as guildas ou confrarias de profissionais, os collegia. No final da república, houve uma grande tentativa de coordenar os bairros e diminuir os problemas associados às camadas baixas da população. Problemas ligados aos collegia fizeram com que por três vezes fossem proibidos os Ludi Compitalicii, jogos em homenagem as divindades Lares Compitales, em 52 a.C. após a morte de Clódio22, 22 Cícero nos informa que Clódio, além de desrespeitar a proibição dos ludi Compitalicii, também modificou a data para seu próprio benefício, propondo automaticamente leis que facilitavam o apoio direto da plebe, como a distribuição livre de grãos. LOTT, John B. The neighborhoods of Augustan Rome. Cambridge: Cambridge

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em 48 e 47 a.C. quando foram proibidos por Júlio César, então ditador23. A autonomia dos grupos dentro dos collegia pode ser vista como uma das preocupações de Augusto, que pensou a inclusão de administradores, os uicomagistri, como uma possível melhora na administração, fazendo com que esses grupos não fossem tão proeminentes. A influência de Augusto dentro dos bairros, assim como em todas as outras questões que acarretavam competição dentro da elite, diminuía a possibilidade de uma família da aristocracia romana se promover, que não fosse a própria família de Augusto. As questões referentes à cidade e a responsabilidade sobre todo esse contingente diverso, até a República média, eram atribuições dos aediles24. No governo de Augusto, a essa magistratura foi incorporada, em referência ao nível dos bairros, os uicomagistri, que cuidavam dos assuntos administrativos internos dos mesmos. No entanto, a diferença entre os dois é que o magister, não era um cargo oficial, diferentemente do aedil que detinha a magistratura25. Os aediles tinham como função a administração das aedes, edifícios ou templos, obras, a supervisão da cura annonae, que coordenava a distribuição de grãos para a população em tempos de crise, policiamento das ruas, limpeza e distribuição de água26. O mais importante, para nós, é que desde o início, ou seja, desde a criação do cargo de aedil, este esteve ligado também às questões religiosas da cidade, como os ludi, ou jogos. Uma das atividades do aedil era University Press, 2011, p.54-57. 23 Idem: p.61 – 62. 24 O cargo de aedil variava entre aediles curules, que podiam ser patrícios e plebeus, e os aediles plebeus, no qual, como o nome já diz, só eram permitidos plebeus. Idem: p.40. 25 A diferença entre magisterium e magistratus é significativa. Magisterium, il – significa função de chefe, professor, aio, preceptor; enquanto que magister é traduzido como aquele que comanda, dirige, chefia. No entanto magistratus, us – era uma magistratura, correspondendo à função pública, ao cargo de magistrado, cargo oficial. ALMEIDA, A.R. Dicionário de Latim-Português. Porto: Porto Editora, 2008, p.400. 26 Idem: 34; BUNSON, Mathew. Encyclopedia of the Roman Empire. New York: Facts on file, 2002, p.6.

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supervisionar rituais estrangeiros, e fazer com que tanto os cultos oficiais, quanto os rituais ligados às localidades fossem executados. Desse modo, a organização tanto dos Ludi Compitalicii quanto do culto dos Lares Augusti, depois incorporado por Augusto, eram de responsabilidade dos aediles e principalmente após as reformas, dos uicomagistri. As Compitalia Compreender, analisar e depreender algo sobre um culto antigo, a ponto de se aproximar das ações envoltas naquele tipo de ritual, é uma questão extremamente delicada, assim como detectar a diferença de cultos que aparecem sobrepostos, em dado momento de uma sociedade, visto que tratam de divindades aproximadas, também nos exige grande atenção. Tidos como modelos de representação27 ou recriação de certos contextos sociais, os rituais auxiliam no entendimento de culturas por vezes extremamente distantes, no tempo e no espaço, da nossa. O ritual possibilita uma visualização distinta daquela sociedade, por ser ele próprio o modelador que dá forma ao conjunto social, a partir do ordenamento dos elementos inseridos nela. A análise do ritual ajuda na percepção de que há a intenção de ajuste no meio social, de compartimentos sociais, de mudanças e permanências, da necessidade de se entender o comportamento e o que está fora do mesmo, da tradição e do novo, da ordem e do caos28. As Compitalia, festivais que demarcavam, mesmo que com variações, a passagem do ano no calendário oficial romano, eram rituais voltados à homenagem de duas divindades, os deuses Lares. O festival era anunciado por um praetor29, nos fins de dezembro e 27 GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p.6667. 28 BELL, Catherine. Ritual Theory, Ritual Practice. Oxford: Oxford University Press, 2009, p.15-17. 29 Segundo Bunson, o título de praetor “em um primeiro momento, foi designado para denotar um consul; posteriormente veio a significar as magistraturas voltadas ao campo da justiça em Roma”. Essa magistratura foi criada no século IV a.C., e era extensiva aos plebeus. Eles eram eleitos pelos comitia centuriata, as assembleias por centúrias que aconteciam no Campo de Marte. Iniciado com apenas um praetor, em 242 a.C. esse número foi aumentado para dois e na época de Júlio César

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início de janeiro. Como outros cultos, o festival da Compitalia foi revisto na época da restauratio augustana. Há diversas variações em torno de qual seria a tradição do ritual. Dentre a gama de criações literárias especulativas, que tentavam dar conta do universo complexo e expressivo da religio romana, o belíssimo relato de Ovídio faz sentido na nossa análise, devido principalmente ao fato de se alinhar ao contexto da organização física, como um espaço social, religioso e político. De acordo com Ovídio, no Fasti II 609-610, as duas divindades, os Lares, teriam sido geradas a partir da união de Lara com o deus Mercurio. Designado por Júpiter a levá-la à morada dos Manes, o mundo inferior, Mercúrio teria estuprado Lara e dado origem aos Lares. Ela teria sido enviada ao mundo inferior devido à irritação de Júpiter por não ter lhe ajudado a encontrar Juturna, a ninfa por quem se apaixonara. Por serem filhos de Mercurio, deus que protegia os caminhos e o comércio, aos Lares também foi delegado o mesmo ofício, porém restrito a lugares específicos. O festival das Compitalia, tido como um dos feriae conceptivae, ou seja, um feriado variável no calendário, era extremamente singular, nele era possível que os escravos e servos fossem liberados dos seus afazeres, para presidirem o culto. Segundo Plínio o Velho30, Sérvio Túlio teria fundado o culto aos Lares e o estabelecido como um culto feito por escravos em homenagem à sua mãe, então escrava, que teria sido engravidada por um falo que saíra da terra no momento em que ela estava fazendo os sacrifícios aos Lares. As Compitalia possibilitavam não somente a aproximação das famílias, mas também a inclusão das camadas baixas nos rituais. É interessante pensarmos que provindos de uma mesma para 10. Tinham jurisdição sobre os termos legais de contratos de negócios na cidade, o que poderia levar até mesmo um ano para a conclusão. Eram dois tipos de praetores, os praetores urbanus, voltados aos assuntos da cidade, atuando sob o ius ciuile, a lei civil; e os praetores inter peregrinos, que cuidavam dos assuntos voltados aos estrangeiros, a partir do ius gentium, uma espécie de lei estrangeira. BUNSON, M. Encyclopedia of the Roman Empire. New York: Facts on file, 2002, p.446; AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Lexicon, 2012, p.367. 30 Essa informação é retirada por Lott de História Natural, l. 36.204, de Plínio O Velho. LOTT, John B. The neighborhoods of Augustan Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p.33.

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tradição, que denominava Sérvio Túlio como responsável pela organização da cidade, esta também o incluía, através do papel delegado à sua mãe e ao milagre acontecido, como o responsável pela integração social. De todo modo, o festival das Compitalia acabou representando a preocupação do romano quanto aos espaços físicos, sagrados e sociais, e a importância de delimitá-los está presente, todo momento, nos mitos e tradições. Havia diferentes qualidades das divindades Lares, cada uma direcionada a proteção de algo específico, fossem praestites, protetores dos caminhos e estradas; familiaris, protetores da família; compitales, protetores das esquinas, encruzilhadas e bifurcações; viales, das ruas e avenidas; e até mesmo Augusti, protetores também das esquinas e encruzilhadas, porém levando o epíteto do princeps, após a restruturação promovida pelo mesmo. Essas variações, entretanto, nos levam a pensar no quanto o espaço e os que ali habitavam eram sagrados para os romanos. De acordo com Claudia Beltrão, os espaços eram delimitados e: Marcos territoriais visíveis eram – e são – uma necessidade. Cippi ou termini, e limites (fronteiras) eram recomendados, ordenados e esperados em várias circunstâncias, e a tradição representava Rômulo estabelecendo o pomerium31 de Roma, com seus termini. (...) Os marcos físicos, garantidos e protegidos por Terminus, definindo as propriedades eram mais do que uma necessidade de uso particular, recebendo destaque nos Fasti, L. II, de Ovídio. A defesa desses marcos contra os efeitos do tempo e da atividade humana era tema de grande relevância. Dionísio (2.74) afirma que Numa recomendara que priuati instaurassem marcos de fronteira com ritos apropriados em honra de Júpiter Terminus, bem como que os limites da terra pública fossem estabelecidos do mesmo modo. A agressão a esses marcos – 31 Designa-se pomerium o espaço original de fundação da cidade de Roma. Os prédios deveriam ficar a certa distância desse espaço que determinava o local onde a cidade começou. O pomerium possuía grande importância jurídica. Militares deveriam despor de suas armas para entrar nessa parte sagrada, exceto nos dias voltados ao ritual do triunfo. A importância política advinha da impossibilidade de alguém que detivesse o imperium, ou comando de homens, ter que deixar suas armas, para entrar na cidade. Entrar na cidade portando armas era tido como um desrespeito ao espaço sagrado delimitado. Idem: p.439. Cf. SCHEID, John. An Introduction to Roman Religion. Bloomington, Indianapolis: Indiana University Press, 2003, p.61-63.

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terminus motus ou crimen termini moti – era uma das mais antigas violações sancionadas da lei romana, e sua origem foi atribuída a Numa (cf. Dion Hal. 2.74: Plut. Num. 16, Quaest. Rom. 15; Festus, 505L).32

Sendo assim, pode-se dizer que a violação de um espaço era uma questão de lesa religio. A sacralização das terras permite que estando sob a proteção de determinada divindade, se esteja de acordo com a ordem estabelecida, ou seja, a política instaurada. No entanto, devido à ausência de achados arqueológicos que confirmem a origem do festival, a dúvida paira no que diz respeito ao local originário do mesmo. O festival das Compitalia seria um culto iniciado no campo e trazido para a urbs posteriormente, ou seria um ritual estabelecido no século II a.C. na urbs, e que foi sendo expandido para as outras partes da Itália, através do que Tesse Stek chamaria de a romanização da Itália33? A resposta a essa questão poderia de fato auxiliar em um entendimento mais detalhado do culto, no entanto não há comprovações materiais de locais de culto antigo nos campos, e esse tipo de vestígio somente aparece da época de Augusto em diante, na urbs e, principalmente, na cidade de Pompeia. Por vezes, essa ausência de vestígios no terreno, que apresentem a marcação de um compitum, não deixa espaço para o mapeamento de uma demarcação mais precisa das origens do ritual. De todo modo, escritores antigos em suas obras nos legaram trechos sobre o ritual: tais como Catão, Cícero, Macróbio, Varrão, Dionísio e Ovídio. Do que podemos depreender da documentação, o festival parece estar ligado ao recenseamento dos cidadãos e demais habitantes de Roma. As informações sobre as oferendas utilizadas nesse festival variam entre os clássicos, e um exemplo disso é a informação que pode ser encontrada em Macróbio, na qual ele diz que os sacrifícios poderiam ter sido feitos, originalmente, com a vida de garotos como oferendas a deusa Mania, até ser 32 BELTRÃO, Claudia. Terminatio e limitatio: inauguração, fundação e cena ritual. Palestra proferida no II Encontro Discente de História Antiga e Medieval da Universidade Federal Fluminense-UFF, Espaços Praticados e Práticas do Espaço, em 23 de agosto de 2012, p.9-10. 33 STEK, Tesse. Cult places and cultural change in Republican Italy. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2009, p.203-213.

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extinto por Brutus, o primeiro consul romano, que os substituiu por cabeças de alho e papoulas. Em Festo, ele diz que as vítimas humanas foram suplantadas por bonecas e bolas de lã34. Com o passar dos tempos houve uma modificação quanto às oferendas, e nas informações de Propércio e Dionísio de Halicarnasso, eram oferecidos porcos, bois e bolos de mel35. O que seria mais importante, até porque estes primeiros sacrifícios vão diferir dos sacrifícios encontrados nos relatos que remetem ao final da República e início do principado augustano, é saber que as vítimas eram usadas nesse primeiro momento como forma de conduzir o numen, ou a potência da divindade, para aqueles que ali estivessem, incluindo a terra e as coisas materiais36. Os altares como espelhos da política do principado augustano Em cada compitum existente nos bairros havia altares, encomendados pelos sacerdotes do culto dos Lares Augusti, que concentravam parte do ritual das Compitalia. Acompanhando a restruturação dos bairros, esses altares passaram a apresentar os signae imperae. Os antigos, produzidos em sua maior parte de pedra, foram substituídos pelos novos, feitos de mármore, condizentes com a mudança que estava em curso. Espelhos da política do principado augustano, os altares que chegaram até nós trazem algumas das prerrogativas da retórica 34 As oferendas de lã de acordo com Scullard eram direcionadas da seguinte forma: bonecas (effigies), pelo fato de ter cabeça (caput), representavam membros livres da casa, que tinham deste modo “personalidade legal”; e bolas ( pilae), para cada escravo, nas quais a falta de caput condizia com a sua própria falta de representação legal, não podiam responder por si mesmos. SCULLARD, H. H. Festivals and Ceremonies of the Roman Republic. London: Thames and Hudson, 1981, p.58. 35 Idem: p.58-59. 36 Scullard informa, que a ênfase do ritual pode ter sido o lustrum ou lustratio, purificação feita nas terras, como preparação para o próximo ano. A purificação era feita através da passagem da potência divina dos Lares às oferendas, e assim aos ofertantes. Idem: p.59. Lustrum, i – lustro, (sacrifício expiatório feito pelos censores, de cinco em cinco anos, ao terminar o recenseamento); cerimônia purificadora, purificação. ALMEIDA, A.R. Dicionário de Latim-Português. Porto: Porto Editora, 2008, p.395.

128 • Spatium urbis: política e religião na organização dos bairros à época do principado augustano imperial, através de símbolos e representações. Os altares do culto dos Lares Augusti, de certa forma estão integrados em um grande conjunto visual, que através da propagação das ações do princeps, acaba por perpetuar as modificações e reestruturações do seu governo. De acordo com Diane Favro, é possível “ler a urbs de Augusto”37, e concordamos com a mesma, quando vemos a partir dessa leitura a possibilidade de identificar os ícones que codificam toda a criação da ideologia do principado, construída a partir da linguagem de símbolos ligados ao próprio Augusto. Desde um simples ramo de louro, até o extenso floreio da Ara Pacis, que traz a flor de nome acanthus, como um elemento decorativo que vai ser ligado ao estilo augustano, pautados na religião cívica, e por isso, não deixam de ser a representação mais viva da política que sustentava o novo regime. Abstrações tais como numen, genius38, diuus, têm significados diversos, porém pontuais. Complexos e pragmáticos, os romanos refletiam, criavam, e tudo que era criado, recebido a partir de bons augúrios, poderia se transformar em algo divino, ligado diretamente à esfera dos deuses. Palavras, ideias, regiões, coisas, lugares, prédios, pessoas em sua unidade ou em conjunto, tudo era passível de se tornar divino ou ter uma essência divina. Onde religião é política e política religião, em Roma a partir do século III a.C., aquilo que estipulavam por leis, sua política e intervenções na sociedade, era pautado numa abstração de suas tradições ancestrais – o mos maiorum39 – que remetia ao divino, no entendimento de que seus ancestrais teriam ligação direta com os deuses ou eram os 37 FAVRO, Diane. The Urban Image of Augustan Rome. Cambridge; Cambridge University Press, 1996, p.217-251. 38 FISHWICK, Duncan. The Imperial Cult in the Latin West: studies in the ruler cult of the Western Provinces of the Roman Empire. Volume II, 1. Leiden: E. J. Brill, 1991, p.375387. 39 “Moribus antiquis res stat Romana uirisque..” (São os costumes antigos e os heróis que fazem a grandeza de Roma) citando o poeta Ênio, Cícero inicia o livro quinto de De Re Publica, posicionando a importância dos costumes. O mos maiorum eram os costumes ancestrais dos romanos, a partir dos quais eles pautavam as diretrizes de suas ações, assim como a organização de sua sociedade. Disponível em: http://remacle.org/bloodwolf/philosophes/Ciceron/republique5.htm. Acesso em: 06/09/2012. l. V, & 1.

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próprios. Se pensarmos nessa perspectiva, entenderemos porque era tão difícil para um romano dissociar, política e religião. Por vezes havendo uma classificação, o ius publicum, o ius ciuiles e o fas40, política e religião se entremeavam permitindo o funcionamento de uma sociedade na qual coabitavam sob os mesmos costumes, entendido como leis, os cidadãos humanos e os cidadãos divinos. A retórica política do governo augustano, foi sendo criada desde a morte de Júlio César. Titulações, como a de Diuus Filius e Filius Vltor41, são pequenas amostras de um caminho que foi percorrido por Octaviano até a chegada ao sólido título de Augustus42. Não só os títulos, que por sua vez eram elementos de uma cultura baseada em investiduras e homenagens cívicas, construíam o que podemos ver como a identidade social43 do cidadão romano das elites, mas principalmente os símbolos que foram selecionados e incorporados, são essenciais para o entendimento da política do principado augustano. Muito do que foi feito, ou proposto por Augusto, no momento da restauratio, foi apresentado como algo novo, entretanto restaurationes, revisões, e até mesmo fusões de elementos antigos e novos podem ser vistos durante grande parte da história da República romana. A própria tentativa de reorganização do espaço, das terras e das pessoas, teria sido um projeto iniciado antes de Júlio César e terminado 40 Mesmo sem uma definição própria, Ando explica que de acordo com Cícero, que por vezes posicionava ius religionis e ius rei publicae, lei da religião e lei do oficial, não havia uma definição padrão. O mais aproximado seria então, “ius publicum – as leges, os estatutos usados pela comunidade de cidadãos”, enquanto que ius ciuile, seria “feito dos estatutos, decretos do Senado, decisões judiciais, a autoridade destes apreendida, através das leis, os editos dos magistrados, costumes, equidade”. ANDO, Clifford. The matters of the gods. California: University of California Press, 2009, p.74. Enquanto que fas, seria – 1) expressão da vontade divina, lei religiosa, direito divino; 2) o que é permitido pelas leis divinas e naturais, o que é permitido, o que é lícito. ALMEIDA, A.R. Dicionário de Latim-Português. Porto: Porto Editora, 2008, p.278. 41 ZANKER, Paul. The Power of Images in the Age of Augustus. Michigan: University of Michigan Press, 2010, p.92MOMIGLIANO, Arnaldo. De paganos, Judíos y Cristianos. México: Fondo de Cultura Economica, 1996, p.168-169. 42 Cf. ZANKER, Paul. 43 BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP, 1996, p.101-102.

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depois do governo de Augusto. A restauratio augustana, não corresponde somente à reparação de edifícios, revitalização de templos, construção e reforma de prédios públicos. Podemos dizer que a restauratio augustana, foi uma revolução cultural44 para ser vista e lembrada como uma refundação da cidade45, a partir de padrões antigos e novos. Foi um conjunto de ações iniciadas com Octaviano, logo após a vitória da batalha do Actium, sobre Marco Antônio e Cleópatra em 31 a.C., como um movimento artístico, religioso, jurídico e administrativo, que incluía o redimensionamento da política a partir do novo regime instaurado, o principado46. As mudanças estruturais do principado augustano foram extensas, e os signa47 ligados a Augusto e a sua família podem ser vistos na maior parte destas. A presença da essência divina de Augusto, seus Lares próprios, já que levando seu nome, tiveram estrita relação com a “inauguração” de seu culto, e a exaltação de seu poder e de sua política. Em adição à valorização do culto aos Lares Compitales, Augusti, e Domesticii, houve a valorização da domus, como centro da moralidade da família; a exaltação da figura 44 WALLACE-HADRILL, Andrews. Mutatas Formas: the Augustan transformation of Roman kwnowledge. In: GALINSKY, Karl. The Cambridge Companion to the Age of Augustus. New York: Cambridge University Press, 2005, p.55-81. 45 GRIMAL, Pierre. O século de Augusto. Lisboa: Edições 70, 2008, p.18. 46 GALINSKY, Karl. Continuity and change: Religion in the Augustan semi-century. In: RÜPKE, Jörg. A Companion to Roman Religion. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2007, p.73-78. 47 Dentre os símbolos ligados a Otaviano/Augusto estão: sidus Iulius, a estrela que simboliza diuus Iulius; a Rostra, que representava a proa dos navios dos inimigos de Otaviano; arbustos de louros, ligados à divindade Apolo; os cisnes, também ligados à divindade Apolo; a coroa cívica ou coroa de carvalho; o escudo áureo ou escudo da virtude; centauros marinhos, golfinhos e cavalos marinhos; a deusa Victoria; Enéias; a quadriga, que representava o triunfo de Augusto; etc. Segundo Zanker esses símbolos “votados para Augusto em 27 a. C. foram combinados de modos inimagináveis, não somente um com o outro, mas com novos ou mais recentes símbolos da vitória ou salvação. (...) Durante anos a batalha do Actium foi lembrada como um tipo de milagre secular, a partir do qual o novo governo de Augusto foi criado” ZANKER, Paul. The Power of Images in the Age of Augustus. Michigan: University of Michigan Press, 2010, p. 84, 97. Desse modo, os símbolos trazem não só a relação com Augusto, mas também com seu governo.

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do sacerdos priuatus, o paterfamilias, e a importância das divindades que consolidavam a harmonia das gentes. Essa impressão criada tinha por objetivo primeiro a valorização da família como algo possivelmente perdido com o tempo, devido às intempéries sociais provocadas pela guerra civil. O domínio do pater e a domus foram elevadas como o núcleo de uma sociedade em coerência com as diretrizes das divindades. A essência do pater, que detinha auctoritas sobre a sua família, seu genius, sua responsabilidade quanto aos deuses domesticii, foi revigorada. A forma mais visível dessa valorização foi a constituição da domus Augusta como exemplo de virtude para as famílias romanas. Nesse interim, as leis criadas para o casamento figuram como um desses esforços do governo para ter um maior controle sobre a família. A legislação incorporada por Augusto em 17-18 a.C., a Lex Iulia de Maritandis Ordinibus e a Lex Iulia de Adulteris48, estabelecia um suposto retorno a uma tradição e costumes moderados, que, ao fim, tinham um cunho estritamente conservador. Desse modo houve um controle sobre o número de filhos, por família, e o posicionamento de que eles deveriam ser legítimos, o que demonstra uma grande preocupação com os casamentos entre camadas diferentes. Com isso foi feita uma redistribuição das famílias aristocráticas romanas, a partir do divórcio e casamentos acordados visando a interesses políticos. Essa preocupação acaba sendo vista por Dionísio de Halicarnasso49 como uma restauração ou revisão de leges, estabelecidas no passado por Rômulo. O movimento de recriar ou recuperar o antigo como algo que legitimasse as ações no presente, era um dos pontos fundamentais das mudanças do governo augustano e podemos verificar que ainda hoje preservamos essa tradição de utilizar o antigo como argumento de autoridade e infalibilidade nas ações. Por outro lado, a revisão das ações dos seus adversários, assim como a restauração do que presumidamente eles haviam danificado era uma necessidade não só física, mas política. Quanto à política augustana e à religio romana, Scheid deixa claro que: 48 MILNOR, Kristina. Gender, Domesticity and the Age of Augustus: inventing private life. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 140-154. 49 Idem: p. 147.

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Em minha opinião, contudo, a evidência claramente indica que as atividades religiosas de Augusto apontam para uma grande reforma real da tradição ritual romana. A restauração de Augusto não teve nada a ver com a mudança da religião ou aprofundamento da fé. Foi simplesmente uma reação contra a negligência dos deveres rituais públicos e dos templos, em conjunto com a desordem da guerra civil. E estas restaurações eram parte do seu objetivo político. Restaurar a res publica automaticamente significava restaurar as instituições e lugares de culto, especialmente quando eles haviam sido negligenciados ou mesmo esquecidos. Do mesmo modo, havia um ângulo político: essas tradições tinham de ser apresentadas como esquecidas ou negligenciadas. A melhor forma de legitimar seu próprio poder era restaurando o que seus inimigos haviam negligenciado e violado durante a guerra civil. Augusto pode ter tido um caráter bem tradicional, que ansiava pelo modo de vida ancestral, em casa e na vida pública (Suet.,Aug. 64), mas sua restauração foi uma necessidade política. Seus inimigos negligenciaram, confiscaram e praticamente arruinaram a res publica, ele afirmava, e agora ele estava devolvendo isso ao povo, com todas as instituições funcionando novamente, como antes. Podemos questionar a veracidade deste tema político e a sinceridade de Augusto, mas um fato permanece: Augusto fez isso, o povo significativamente aceitou isso, e as instaurações de Augusto permaneceram por três séculos50.

Em um dos altares é possível ver a valorização da domus Augusta, como modelo familiar, e da valorização da religio romana. Os dois pontos, de todo modo incorporam questões políticas; modificando o núcleo principal da sociedade romana, a familia, e a extensão identitária dessa sociedade, a religio, Augusto estaria chegando com sua política a toda as principais estruturas daquela sociedade. O altar do Vicus Sandaliarius51 (imagem 2), por exemplo faz 50 SCHEID, John. Augustus and Roman Religion: continuity, conservatism, and innovation. In: GALINSKY, Karl. The Cambridge Companion to Age of Augustus. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 177. 51 Segundo Lott, o altar do Vicus Sandaliarius faz referência à ida de Gaius Caesar ao Oriente, em seu primeiro comando militar, no ano 2 do século I. LOTT, John B. The neighborhoods of Augustan Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p.144.

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referência a um evento de grande importância para a família imperial, ao mesmo tempo que apresenta alguns ícones da religio romana, e símbolos imperiais. Gaius, herdeiro de Augusto, estaria ao centro da cena, segurando um lituus (espécie de pequeno cajado ligado ao colégio dos áugures) com uma galinha aos seus pés. Essa representação aponta para os auspicia militaris que eram tomados antecedendo batalhas, ou à investidura do imperium. A presença de Augusto e Lívia é significativa, compondo deste modo, a família imperial. Na lateral podemos ver a Victoria alada com um spolia optima, representando os espólios dos inimigos vencidos. Os altares voltados ao culto dos Lares Augusti tinham como objetivo, a representação de elementos que faziam parte do conjunto produzido pelo principado augustano para dar sentido à ideia da construção do governo de Augusto. A partir da análise destes elementos podemos refletir sobre a necessidade de apropriação das mesmas e de sua transformação em conjunto com o espaço físico, onde se encontravam.

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Imagem 2: Altar do Vicus Sandaliarius, face 1 e lateral esquerda. Fonte: http://ancientrome.ru/art/artworken/img.htm?id=4450.

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Imagem 3: altar Belvedere, cena 1. Fonte: http://ancientrome.ru/art/artworken/img.htm?id=4452

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No altar Belvedere52 (imagem 3) os símbolos imperiais e a própria inauguração do culto aparecem como um momento especificamente ligado à reorganização dos uicus e ao novo regime. A face do altar Belvedere acima, que classificamos como a “entrega das estatuetas por Augusto”, reproduz o momento da entrega das estatuetas, os Lares Augusti, aos sacerdotes de seu culto, os uicomagistri. Da figura principal, devido à proporção e por estar de acordo com as imagens de dorso semi coberto identificadas como Augusto, podemos dizer que é o próprio princeps. De fato a presença de Augusto seria algo extraordinário no dia-a-dia dos uici. A reprodução desse acontecimento, ou seja, a entrega dos simulacra, além de aumentar o reconhecimento do bairro em questão, demonstrava essa preocupação em estar de acordo com a política augustana e o apoio dado a Augusto era de fundamental importância para a promoção desses bairros. Não era comum a presença de Augusto em todas as comemorações, nem tampouco em todos os bairros. Alguns bairros usufruíam de um status maior do que outros, expresso principalmente na posição que ocupavam no traçado urbanístico. De todo modo, cada signae imperiae exposto nos uici era simbólico, por relacionar diretamente aquela localidade, sua importância e seus habitantes a Augusto e a retórica imperial.

52 O Belvedere é um altar que hoje se encontra no Museu Pio Clementino, no Vaticano. Algumas dificuldades permanecem para análise do Belvedere, devido à falta de inscrição com os nomes dos magister, e com a identificação dos integrantes da família imperial. Sua datação varia entre 12-2 a.C., entretanto por enfatizar o acontecimento de 7 a.C. (a reorganização e estabelecimento do culto), essa variação temporal diminui. Alguns trabalhos apresentam o Belvedere, como um dos altares significativos até mesmo para o entendimento do culto imperial, porém nenhum deles é voltado para a análise integral do mesmo. Cf. BEARD, Mary; NORTH, John; PRICE, Simon. Religions of Rome. Volume I – A History. New York: Cambridge University Press, 2010, p.185-187; DOWLING, Melissa B. Clemency and Cruelty in the Roman World. Michigan: University of Michigan Press, 2009, p.368; GALINSKY, Karl. Augustan Culture: an interpretative introduction. Princeton: Princeton University Press, 2009, p. 81, 319-320; LOTT, John B. The neighborhoods of Augustan Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p.104-106; 217218; ZANKER, Paul. The Power of Images in the age of Augustus. Michigan: University of Michigan Press, 2010, p.132-134; 220-222.

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Conclusão Augusto dispôs de imensa quantidade de meios e intervenções, se utilizou de homenagens honoríficas, desfez e rejeitou cargos e homenagens que julgava inadequadas ou exageradas. Utilizou-se das virtudes basilares da cultura ancestral romana, modificando e algumas vezes concedendo-lhes novo corpo. Grande exemplo de modificação e roupagem foi a auctoritas, qualidade que advinda de auctor conjugada no seu próprio nome, na mesma raiz, Augustus, augur, augurium53. Essa quantidade de meios que dispôs em sua pessoa é um exemplo da visão e construção do seu entorno, a política sendo construída à sua volta. Temos que ter a noção de que, em Roma, a política era definida pela religião, assim como a religião se modificava dentro da política. Rituais e cultos tinham um cunho político, definiam lugares, papeis sociais e dessa forma criavam o formato mutatis mutandis da religio romana. Em uma citação breve, analisando nossa dificuldade em compreender a religio romana e seus rituais, inseridos e participantes de uma cultura contaminada por uma tradição judaico-cristã, de longo período, Ando explicita bem quando diz que: Preocupações do cristianismo são doutrinais e existenciais; preocupações da religião romana são políticas. Para um cético, a subsequente dominância dentro do campo que agora chamamos “religião cívica”, o modelo parece pouco diferente das antigas gerações e suas descrições cínicas de magistrados romanos manipulando rituais para fins políticos, exceto que agora nós falamos não de hipocrisia, mas de ideologia, e não de política, mas de poder54.

53 Auctoritas, atis – exemplo, modelo; autoridade moral; prestígio, influência; direito de propriedade. Auctor, oris – aquele que faz crescer; autoridade, modelo. Augustus, a, um – sagrado; venerável, augusto; consagrado pelos áugures; empreendido com bons augúrios. Augur , uris – áugure, adivinho, intérprete. Augurium, ii – observação e interpretação de sinais, sobretudo das aves, augúrio. ALMEIDA, A.R. Dicionário de Latim-Português. Porto: Porto Editora, 2008, p.91-92. 54 ANDO, Clifford. The matters of the gods. California: University of California Press, 2009, p.xi-xii.

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Nosso entendimento do mundo romano, e particularmente da religio romana, que formulava aquele mundo, vem sendo revisto por especialistas desde pelo menos a virada cultural e a introdução de uma perspectiva antropológica do ritual, nas décadas de 1970. Pensar que a urbs, caput mundi, coração do grande imperium romanum condensava essa religio romana oficial e seus elementos não oficiais, como talvez o próprio culto dos Lares Augusti, é pensar na grande estrutura administrativa e política formulada. O século aurum de Augusto, ou século de ouro, não poderia ser tão nítido se a pax augusta não viesse de uma adjunção entre a política, os rituais, os deuses e o social. Os espaços formulados, o físico e o concreto da urbs augustana, “lido” e explorado por diversas temporalidades, seja por sua beleza ou talvez porque somente tivesse intrigado aos demais, nos é apresentado em seções. Por mais que vejamos o passado em fragmentos, partes são fundidas por boas problemáticas e perguntas abrangentes. Os bairros veicularam e veiculam a legitimação de algo grandioso e colocado na concretude das palavras, da imagem, da estrutura arquitetônica. Os signa de um nascente império, por terem tido uma historicidade própria, pois são construções de um momento, são exemplos dessa vivacidade que uma cena nos permite interpretar. De fato entendemos porque uma cidade suja e sem ornamentos não condizia com uma política consolidada e uma boa administração, tampouco com a cidade caput mundi. Compreendemos Ovídio quando entendemos a religião, os deuses e os homens, quando entendemos os antigos romanos em seu cotidiano e em suas ações.

VII Tácito e o Principado de Nero Ygor Klain BELCHIOR1 “viveu ele quieto e sossegado, sabendo que no tempo de Nero, o que era ajuizado era não fazer nada” (Tácito, Agrícola, 6)2. “Dispus-me a escrever a respeito da clemência, ó Nero César, para que eu, de certa forma, desempenhasse a função de espelho” (Sêneca, Tratado sobre a Clemência, I, 1) 3.

O que dizer sobre o imperador Nero? Essa é uma questão que tentamos responder em nossa dissertação de Mestrado por julgarmos que ela cada vez mais se coloca como uma reflexão muito sobre esse polêmico imperador. Pois, como procuramos indicar em nossa dissertação de Mestrado, nas interpretações tecidas sobre esse governante, sejam literárias, cinematográficas e até mesmo historiográficas, existem infinitas maneiras distintas de pensarmos na vida e no governo de Nero4. Por quê?

1 Mestre em História do Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal de Ouro Preto. Orientado pelo Prof. Dr. Fábio Faversani. Email: [email protected] 2

Tradução de Agostinho da Silva.

3

Tradução de Ingeborg Baren.

4

BELCHIOR, Ygor Klain. Tácito e o principado de Nero. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, 2012.

140 • Tácito e o Principado de Nero

Ao analisarmos as contribuições intelectuais construídas sobre Nero é possível observar que este imperador sempre foi apresentado como um homem cruel, louco e um mau imperador, assim como Calígula, que governou antes dele. Como exemplo dessa visão, podemos citar a contribuição de Vassily Rudich, intitulada Political Dissidence under Nero: The Price of Dissimulation, onde foi possível encontrar uma visão muito interessante e ilustrativa sobre o governo neroniano. Em suas palavras: No que diz respeito à visão global dos Julio- Cláudios, é importante lembrar que sua era teve um fim com a catástrofe nacional do ano de 69, um testemunho não de Nero como um estadista, mas da falácia do exercício arbitrário do poder que eles praticaram.5

Nessa visão de Vassily sobre o principado é possível identificar que o autor tece uma estreita relação entre esse sistema político, que fora vivenciado pelos romanos antigos, com uma concepção “monárquica” e “autoritária” de governo. E, para ele, o “exercício arbitrário do poder”, tal como praticado pelos imperadores da primeira dinastia, seria o link entre o principado e a monarquia, demonstrando que a característica primaz do governo dos JulioCláudios nada mais era do que o autoritarismo. E isso se torna cada vez mais evidente, principalmente, se atentarmos para Nero, o imperador que além de se incumbir de exterminar a sua própria dinastia também era, pelo menos na visão de Rudich, tão tirano que proveu inúmeras maneiras para que um pesquisador pudesse se debruçar no estudo das dissidências políticas sob o governo de “maus imperadores”. Assim, visto essas considerações iniciais, convém propor uma pergunta: Seria, então, Nero próximo a um Tirano ou a um Rei? Na verdade, essa questão pode ser formulada e fomentada devido à própria concepção que Vassily Rudich, e cabe afirmar que essa mesma concepção fora defendida por grande parte dos intelectuais do século XIX, nos apresenta sobre o principado. Para ele, essa nova realidade inaugurada por Augusto poderia ser classificada como uma forma de governo “esquizofrênica”, já que 5

RUDICH, Vasily. Political Dissidence under Nero: The Price of Dissimulation. London: Routledge, 1993, p. xiv.

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alternava em diversos níveis de ambivalências e ambiguidades a respeito da “restauração da República” e a posição do princeps6. Pois, na opinião do autor, apesar do discurso dos imperadores se demonstrar diferente de qualquer forma de monarquia, e para isso basta atentarmos previamente a divisão de poderes entre o Senado e o imperador no discurso inicial de Nero (Tac. Ann. XIII, 4), na verdade isso de facto não existia, pois os imperadores deveriam ser lidos como monarcas já que suplantavam a autoridade de tudo e de todos. Para além dessa visão de Rudich, podemos ainda afirmar que o Principado de Nero foi eternizado como um manancial inesgotável para discutirmos a respeito das ambiguidades interpretativas sobre os imperadores romanos. Sobre esse curto espaço de tempo (54 – 68) foi construída uma longa tradição de pensamento acompanhada de discussões que, em muitos casos, refletem visões muito marcantes sobre esse imperador que findou com a sua própria dinastia. Por exemplo, em Os Imperadores loucos, de Michel Cazenave e Roland Auguet, são discutidas as representações do imperador Nero que foram legadas pelas fontes, como Tácito e Suetônio. Segundo os autores, sob o nome Nero foi construído por romancistas todo um imaginário de que o princeps seria um monstro, uma cabeça oca e barulhenta, um charlatão e um fantoche7.Além disso, segundo eles, não devemos deixar de atentar para a ideia de uma imagem “pré moldada” a respeito de Nero e que nos leva a lembrar dele sempre que falamos em incêndios, vaidade exacerbada, crimes violentos, matricídio e assassinato de cristãos. No campo dos estudos críticos sobre Nero também podemos observar o desenvolvimento de uma historiografia que tende a observar este imperador como um dos piores governantes que chefiaram o Império Romano. Dentro dessa mesma lógica de interpretação, o autor Guglielmo Ferrero, em uma obra publicada em 1947, e intitulada História romana, nos oferece um capítulo dedicado ao governo de Nero e a chamada quarta guerra civil. Segundo o autor, “a riqueza, o poder, as adulações despertaram 6

Idem, p. XV.

7

AUGUET, Roland. CAZENAVE, Michel. Os imperadores loucos. Lisboa: Editorial Inquérito, 1995, p. 149.

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rapidamente no jovem os maus instintos até então ocultos, sobretudo seu amor aos prazeres e seu caprichoso exotismo”8. Nesta mesma análise, podemos perceber que Nero aparece como um imperador covarde e que fora manipulado pelas mulheres de sua corte, Agripina minor, Acte e Popéia. Já, após a morte de seus tutores, o imperador teria se libertado daqueles que pensavam no bem da República e passou, com o auxílio do inescrupuloso Tigelino, a combater a tradição romana, que era sustentada por um senado fraco. No final, na análise de Ferrero, a quarta guerra civil seria uma atitude do povo e dos senadores contra imperadores tiranos, neste caso, contra Nero. Outro pesquisador que atuou na primeira metade do século XX, Michael Rostovtzeff, compartilha da visão de que Nero ascendeu ao trono de forma irregular e reafirma que durante seu governo o imperador foi altamente influenciado por Burrus, Sêneca e pela sua mãe Agripina minor. Para o autor, o Principado neroniano pode ser resumido através de ações sanguinárias, como o assassinato de Britânico, seu meio-irmão (filho de Cláudio com Messalina e herdeiro potencial do trono) e uma sequência de atentados terríveis, inclusive culminando com o matricídio, já que sua mãe sempre “tentou usá-lo como fantoche no poder”9. Somado a isso, segundo Rostovtzeff, Nero sempre governou “perturbado por Sêneca e Burrus que o haviam educado e desejam orientá-lo como jovem”10. Já com o afastamento de seus tutores, o princeps entra em choque com a hostilidade e o desprezo dos que o cercam. Em suma, na visão deste autor, o Principado neroniano teria sido um governo marcado pelo terror e o massacre de todos os suspeitos de não simpatizar com ele ou com seus métodos de governo. Fato que levou a sua morte e ao fim de uma dinastia. Para além dessas visões, e graças à enigmática formulação “quinquennium tamen tantus fuit”, atribuída ao imperador Trajano e cunhada por Aurélio Vitor, em seu De Caesaribus, também foi possível encontrar novos caminhos para pensarmos os anos 8 FERRERO, Guglielmo. História Romana. Tradução de Brenno Silveira. Livraria Martins Editora, 1947, p. 221. 9 10

ROSTOVTZEFF, Michael Ivanovitch. História de Roma. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 195 Idem, p. 198.

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do governo neroniano que se distanciam um pouco da visão que acabamos de apresentar. Nesse sentido, podemos citar três versões desenvolvidas por pesquisadores de língua inglesa e que procuraram encontrar e explicar os “cinco anos gloriosos” do imperador Nero. Na primeira, desenvolvida por T. E. J. Wiedeman, em um capítulo intitulado Tiberius to Nero, podemos perceber que o autor argumenta que de fato existiram os cinco anos gloriosos de Nero, tal como havia sido dito por Trajano, e que esses anos deveriam ser entendidos como os últimos cinco anos, já que o imperador teria promovido uma excelente política de reconstrução da cidade de Roma após o nefasto incêndio em 6411. Ao contrário dessa perspectiva, a segunda visão que convém destacar foi defendida por pesquisadores como J.G.F. Hind e M.K. Thornton, que propuseram que o quinquennium de ouro fosse entendido como os anos intermediários de seu governo, graças à construção do Porto de Óstia e da Domus transitoria12. E, por último, a última visão que destacaremos foi defendida por autores como Arnaldo Momigliano, Scullard e David Shotter, mas que também se coloca como a mais aceita entre os pesquisadores que se debruçaram sobre o governo neroniano, pois defende que a resposta para o nosso enigma poderia ser facilmente encontrado na narrativa dos cinco primeiros anos do governo de Nero, quando o louco e devasso imperador era controlado por sua mãe e sues tutores13. 11 WIEDEMANN, T. E. J. Tiberius to Nero. In: BOWMAN, Alan K; CHAMPLIN, Edward and LINTOTT, Andrew (orgs.). The Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. 12 HIND, J.G.F. The Enigma of Nero´s Quinquennium. Historia, Band XXIV/3. Franz Steiner Verlag GmbH. Wiesbaten, 1988; THORNTON, M.K. Nero´s Quinquennium: The Ostian connection. Historia, Band XXXVIII/3. Franz Steiner Verlag GmbH. Wiesbaten. 1989. 13 MOMIGLIANO, Arnaldo. Nero. In: BOWMAN, Alan K; CHAMPLIN, Edward and LINTOTT, Andrew (orgs.). The Cambridge Ancient History. Volume X. First Edition. Cambridge: Cambridge University Press, 2006; SCULLARD. H.H. From the Gracchi to Nero. London: Routledge, 2001 e SHOTTER, David A. C. Nero. London: Routledge, 1997; SHOTTER, David A. C. Nero. London: Routledge, 1997.

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Nesse mesmo caminho, ainda podemos atentar para um pequeno exercício de reflexão que consiste em colocarmos todas as versões anteriormente apresentadas sob uma linha imaginária que compreenderia todos os anos do governo desse imperador. Ou seja, iniciando-se em 54 e sendo finalizada em 68. Dessa maneira, ao levarmos em consideração todas as versões que foram anteriormente citadas pudemos perceber que as versões que nos apresentam os anos em que Nero fez um bom governo preencheriam toda nossa linha imaginária, fato que poderia justificar que o imperador Nero também poderia ser lido como um “bom” governante. Sendo assim, atingimos um caminho sem saída, pois cada vez mais se tornava claro que não deveríamos pensar os imperadores romanos através de termos que os classificassem como “bons” ou “maus” governantes. Todavia, para não alargarmos mais essa discussão, já que não é nosso intuito fazer a defesa desse imperador, e nem o de adentrarmos nesse debate específico e sem destino sobre os “bons anos de Nero”, nos limitaremos apenas ao que já foi exposto. Assim, podemos nos focar apenas no jogo de ambiguidades que estamos construindo a respeito de Nero. Como vimos, existem argumentos que sustentam a noção de que Nero era um imperador louco e tirano, mas, como também foi exposto, ainda é possível sustentar que o seu governo foi bom. Sendo assim, uma pergunta essencial deve ser feita: porque as produções sobre esse polêmico imperador não entraram em um consenso sobre um possível “verdadeiro” Nero? Seria um problema de interpretação ou uma discordância nas próprias fontes? Afinal, o que dizem as fontes contemporâneas sobre esse imperador? Ao atentarmos para leitura das fontes que se debruçaram sobre esse imperador foi possível perceber que existem diversas passagens onde podemos extrair elementos que justifiquem as interpretações sobre o governo de Nero como tirânico e com fortes traços monárquicos. E, para isso podemos citar brevemente Tac. Ann. 15, 37, 1, Suet. Nero. 31, 1 e Suet. Nero. 39, 2, passagens que nos apresentam as tensões causadas pela construção da domus aurea, principalmente através das críticas feitas sobre o

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seu tamanho e opulência, que acarretaram custos enormes de dinheiro, principalmente extraídos das províncias, e, é claro, a própria culpabilidade do imperador nesse desastre. Mas, para além do fato de que extrair passagens onde Nero teria se portado como um tirano seja uma tarefa fácil de ser concretizada, não podemos deixar de atentar para passagens onde é possível perceber outra percepção de seu governo e de sua pessoa, especialmente após a sua morte em 68. Para isso, podemos citar uma passagem extraída da biografia escrita por Suetônio: Na verdade, vinte anos depois, quando eu era jovem, uma pessoa de origem incerta que dizia ser Nero apareceu, e este nome era tão favorável no meio dos Partas que ele foi vigorosamente acolhido por eles, e o entregaram com grande relutância. (Suet. Nero, VI, 57)14.

Assim, mesmo após a análise das fontes ainda podemos perceber que não é possível delimitarmos se Nero foi um “bom” ou um “mau” imperador. Mas, mesmo com essa dificuldade, essas conclusões nos levaram a concordar com a proposta elaborada por Edward Champlin em seu livro intitulado Nero. Neste Livro, o autor defende que nas representações construídas sobre esse imperador é possível encontramos certos excessos em suas narrativas, principalmente se atentarmos para o fato de que esses autores teriam se apropriado de outras narrativas, como a de Clúvio Rufo, Fábio Rústico e Plínio, que teriam legado em seus textos uma interpretação extremamente hostil em relação a Nero. Este fato, para o autor, justificaria porque a tradição construída sobre esse governante sempre se recordaria dele como um imperador tirano e cruel. Assim, se faz necessário estudar o governo desse imperador através de um diálogo com a historiografia que se debruçou em compreender a organização política e social do principado com o intuito de nos indagarmos sobre como o imperador lidava com os outros grupos que compunham a respublica, principalmente com a elite senatorial e equestre. Além disso, também é visível a importância de pensarmos o conteúdo e a forma que esses governantes nos são apresentados pelas fontes, já que, como 14 Tradução nossa.

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destacamos, não parece possível pensarmos o governo de Nero somente através dos critérios morais expressos por elas. Além dessas discussões, também podemos atentar para a historiografia que buscou estudar os imperadores e o principado, como a autora Miriam Griffin, em seu livro Nero: the end of a dinasty, que defende a proposta de que o principado nunca foi de fato um governo monárquico15. Em sua visão do principado era necessário que o imperador se posicionasse de maneira contrária a qualquer atitude considerada como monárquica e autoritária. E para isso, o imperador deveria demonstrar uma constante preocupação com a atuação e a autonomia de outros grupos sociais que também compunham a respublica, como os senadores, os equestres, os exércitos, os libertos, as mulheres e os escravos. E uma das maneiras de se portar dessa maneira era se colocando como um membro da aristocracia e que ainda respondia a uma forma republicana de governo. Ou seja, o imperador não poderia ser um rei, mas ainda concentraria em suas mãos muito poderes. Mas como isso poderia funcionar? Dessa maneira, pretendemos analisar o político romano Públio Cornélio Tácito e atribuição produzida por ele aos fatos transcorridos em dias e governos passados, como o de Nero. No entanto, para estudarmos o principado de Nero (54 - 68), convém afirmarmos que adotaremos em nossa pesquisa marcos distintos de análise que não aqueles que foram anteriormente citados. Ou seja, iremos nos debruçar em uma metodologia distinta daquela que visava estabelecer recortes “qualitativos” para classificar um “bom” ou “mau” governo através de marcos cronológicos distintos, sejam eles as mortes de Agripina, de Burrus, e Sêneca, a ascensão de Tigelino, ou até mesmo em relação aos avanços na área de construção e reurbanização de Roma. Tácito, retórica e o principado Ao estudarmos o sistema de governo inaugurado por Augusto, seja através de fontes seja pela historiografia moderna, podemos perceber que a dinastia Júlio-Claudia (Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero) possui um lugar de destaque dentro de uma vasta 15 GRIFFIN, Miriam. Nero: the end of a dinasty. London: B. T. Batsford, 1984, p. 16.

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quantidade de produções intelectuais sobre o Império Romano. Composta por imperadores muito polêmicos, essa dinastia sempre foi entendida através de um arquétipo que visava traçar uma linha decrescente partindo do “modelo” imperial de Augusto (31 ou 27 a.C – 14), e que se direcionava aos anos de Nero (54 – 68), o imperador que se colocou a cargo de extinguir uma dinastia, deixando o Império Romano novamente à mercê dos conflitos civis. Localizado, portanto, entre dois períodos de guerras civis, o principado dos Julio-Cláudios foi interpretado ao longo de uma vasta tradição intelectual através de modelos que buscavam compreender a nova configuração social e sua ordenação, principalmente através de uma preocupação especial quanto aos limites da atuação do princeps: seria ele um monarca, ou não? Um exemplo dessas preocupações pode ser extraído das reflexões desenvolvidas pelo prestigiado pesquisador Alemão, Theodor Mommsen, contidas nas obras “História de Roma” (Römische Geschichte) e “Direito Constitucional Romano” (Römisches Staatsrecht), ambas publicadas na segunda metade do século XIX. Em suma, nessas reflexões, Mommsen defende a perspectiva de que Augusto e os imperadores seguintes procuraram sustentar a sua posição através do acúmulo de poderes magistráticos específicos, como o imperium proconsulare e a tribunicia potestas – herdados da estrutura política da República. Já, o Senado, mesmo durante o principado, conservava a sua antiga autoridade, além de se encarregar da escolha de magistrados e das leis. Somado a isso, para o autor, o Senado ainda possuía uma função de destaque na hierarquia imperial, já que esta mesma instituição era a responsável por ratificar a escolha do novo imperador através de uma lex de Império16. Desequilibrar essa balança “formalista” poderia ser uma opção, mas levaria a uma crise no interior da elite, e esta seria caracterizada pela oposição dos senadores ao imperador. Diferentemente dessa proposta jurídica de Mommsen, as produções desenvolvidas a partir da segunda metade do século XX buscaram compreender o governo de Augusto como 16 MOMMSEN, Theodor. A history of Rome under the emperors. London: Routledge, 1999; WINTERLING, Aloys. Politics and society in imperial Rome. Oxford: WileyBlackwell, 2009.

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uma ruptura para com a forma de governo poliárquica dos anos da República. Apesar disso, a nova forma de governo não deixava de ser um produto direto desse antigo sistema, principalmente se considerarmos que foi no seio da República que as facções conflitantes da guerra civil vencida por Otaviano se desenvolveram. Nesse caminho, podemos citar o trabalho de Sir Ronald Syme, intitulado The Augustan aristocracy, em que há uma preocupação por parte do autor em afirmar que o primeiro imperador romano nada mais era do que um herdeiro do partido de César, o mesmo que havia enfrentado e derrotado a coligação partidária de Pompeu17. Em outra obra de sua autoria, intitulada “The Roman revolution”, também podemos perceber a preocupação em afirmar que os anos finais da República romana foram marcados pela presença de facções políticas, e que o Principado também pode ser entendido como um reflexo da vitória da facção liderada por Otaviano18. Ou seja, referindo-se à fundação do Principado, Syme afirma que: Um líder revolucionário se ergueu durante os conflitos civis, usurpando o poder para si mesmo e para a sua facção, transformando-a em um partido nacional, e uma terra dilacerada e enlouquecida em uma nação, em um governo estável e duradouro.19

Por esta mesma via, a historiografia moderna sobre o Principado romano, e altamente devedora das reflexões de Syme, adotou a perspectiva de que, finda a guerra civil, Otaviano, tomando para si a condição de líder do partido de César, passou a concentrar poderes extraordinários. Dessa maneira, o novo imperador desenvolveu seus poderes através do acúmulo de muitas honrarias, riquezas e magistraturas, além de realocar as posições sociais com indivíduos que passavam a gozar de seu patrocínio, os quais, por sua vez, estariam ligados a sua família e 17 SYME, Ronald. The Augustan aristocracy. Oxford: Oxford University Press, 1989, p. 1. 18 SYME, Ronald. The Roman Revolution. Oxford: Oxford University Press, 2002. 19 Idem, p. 4

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a sua casa. Dentre os pesquisadores que concordam com as ideias de Syme, enfatizamos principalmente as análises encontradas nos estudos de Andrew Wallace-Hadrill. Nossa opção em destacar suas ideias como ponto inicial de nossa apresentação reside no fato de que nas análises mais contemporâneas sobre o Principado neroniano podemos encontrar uma lógica muito próxima às ideias desenvolvidas pelo autor, principalmente após a publicação de um texto intitulado “The imperial court”20. Neste texto, publicado na prestigiosa The Cambridge Ancient History, a corte imperial romana é tomada à imagem de nosso sistema solar. O sol seria o imperador, fonte de toda a energia (beneficium). As casas senatoriais seriam os planetas que circundavam a esfera solar, enquanto as casas que estavam na margem desse sistema seriam representadas pelos satélites planetários. Contudo, diferente do “modelo astronômico” propugnado por Wallace-Hadrill, esses benefícios provenientes do imperador não se propagavam no vácuo. Eram distribuídos através de mediadores envolvidos em grandes redes de solidariedade. O imperador (sol), portanto, estaria situado no centro de uma complexa rede de interações que envolviam intercâmbios recíprocos de beneficia. Àqueles que se situavam próximos ao sol, a energia disponível para ser compartilhada era maior do que aqueles que situavam na periferia deste mesmo sistema. Em suma, nesse modelo interpretativo desenvolvido por WallaceHadrill, a ordenação social do Império Romano cabia ao princeps que, através dos indivíduos mais próximos do sol, distribuiria os benefícios e controlaria o acesso a todas as posições de honra nas carreiras senatoriais. Posição semelhante a esta foi adotada por outros autores que se debruçaram no estudo sobre o principado romano21. 20 WALLACE-HADRILL, A. The imperial court. In: BOWMAN, Alan K; CHAMPLIN, Edward and LINTOTT, Andrew (orgs.). The Cambridge Ancient History. Volume X. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press. 2006. 21 Como exemplo, VEYNE, Paul. O Império Romano In: DUBY, G; ARIÈS, P. (orgs.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p. 103 e KONSTAN, David. A amizade no mundo clássico. Tradução de Marcia Epstein

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Assim, o que podemos perceber através desse debate inicial é que a historiografia moderna sobre o principado concorda que Augusto promoveu uma excelente política de organização dessa sociedade através da sua auctoritas pessoal, pacificando as guerras civis, e, por seu patronato, colocando-se como o centro de uma vasta rede de clientes que ia desde Senadores até as províncias. Tido pelos historiadores e biógrafos antigos, a exemplo de Tácito e Suetônio, como “modelo de governante” e de um “bom governo”, Augusto foi eternizado nas produções intelectuais como uma referência a ser seguida. Os sucessores de Augusto (dinastia Júlio-Cláudia) deveriam seguir seu modelo de governo, afastando o Império de outra guerra civil. Contudo, o que passamos a observar é uma sequência de governos que se equiparam não ao modelo de Augusto, mas ao de crise, de uma crise da moral e dos costumes romanos, inclusive levando o império a enfrentar mais uma leva de conflitos sangrentos. Sobre o período das guerras civis do ano de 69, podemos perceber através da análise de algumas fontes que se debruçaram nos acontecimentos do final do governo de Nero, como as biografias escritas por Suetônio e as Histórias de Tácito, que não encontramos referências ou atitudes descritas que indiquem a necessidade de se “restaurar” a respublica, tal como havia feito Augusto. Agregado a isso, também não podemos encontrar qualquer possibilidade que nos auxilie na hipótese de que esses conflitos foram desencadeados através de um tom de contestação do regime vigente. O que podemos perceber é que os lideres desses conflitos que visavam à manutenção da situação política do Principado estavam lutando entre si com o intuito de elegerem um novo princeps. Esse mesmo percurso foi traçado pelos antigos apoiadores de Galba, Oto e Vitélio, imperadores que governaram o Império Romano por um curto período de tempo22. Pensando em termos cronológicos, podemos afirmar que entre os anos de 31 a.C (batalha da Ácio) e o ano 69 (o ano dos Fiker. São Paulo: Odysseus Editora, 2005, p. 4. 22 Galba governou por aproximadamente sete meses (8 de junho de 68 - 15 de janeiro de 69); Oto, por três meses (15 de janeiro de 69 – 16 de abril de 69) e Vitélio governou por aproximadamente dois meses (17 de abril de 69 – 20 de setembro de 69).

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quatro imperadores) temos uma distância temporal de cem anos, marcados pelo governo de nove imperadores, dos quais oito foram assassinados. Esse dado serve para ilustrar a importância de considerarmos as disputas pela maior hierarquia do império. No entanto, cabe afirmar que não estamos defendendo que o Principado foi na verdade um período de guerras civis, tais como os anos finais da República. No entanto, como já foi apontado anteriormente, após a morte de Nero podemos observar que a guerra civil se instaura novamente. Na nossa hipótese isso se deve ao enfraquecimento da casa reinante, graças ao fato de que não havia mais ninguém que pudesse assumir esse papel e de que no final do governo de Nero os conflitantes estavam munidos com muita força, principalmente com o apoio de legiões, graças ao desprestígio do imperador. Neste ponto que pretendemos pensar que a política romana era composta por diversos indivíduos que constantemente disputavam a liderança desse poder se constitui como uma alternativa viável para uma leitura dos primeiros anos do Principado romano através das obras taciteanas. Assim, podemos também inferir que as alianças entre as domus eram um fator desejado tanto para as casas mais proeminentes quanto para aquelas que estavam ascendendo, ainda nos “degraus inferiores” dessa sociedade. O quanto esta autonomia não poderia gerar um poder paralelo e superior ao do imperador? O mesmo pode ser perguntado a respeito das principais casas de Roma. Em que medida elas não congregavam interesses próprios e diversos daquela do imperador? O quanto o enfraquecimento da casa imperial não poderia levar os patroni de diversas casas a procurar a proteção de outra casa importante? Como distinguir novos quadros de alianças entre casas e conspirações? Como discernir entre os que agem em nome do imperador aqueles que atuam passando por cima da autoridade imperial? Estas perguntas indicam bem um amplo universo de análise colocado pelo texto de Tácito para uma compreensão da dinâmica social sob o Principado de Nero. Pois, como podemos perceber na leitura das obras históricas de Tácito, existe uma preocupação por parte do historiador latino em evidenciar ao leitor que a política durante o principado também poderia ser entendida através das “guerras civis”. Ou seja, através da noção de que poderia existir outro líder para derrubar o imperador e assumir a liderança da

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respublica. Assim, como podemos perceber através da análise da narrativa taciteana, o fato da posição do Imperador equivaler idealmente à maior grandeza possível, o que faz dela uma medida absoluta da hierarquia, não determina todas as outras medidas. As pessoas tinham riqueza, honra e constituíam redes de relações independentes do poder do Imperador. Como exemplo, podemos citar que o jovem imperador Nero desde o início de seu governo foi assombrado por concorrentes ao poder imperial. Dentre eles, Júnio Silano (Tac. Ann. XIII, 1,1) e o filho legítimo de Cláudio e herdeiro potencial ao trono, Britânico (Tac. Ann. XIII, 15 e 16). De fato, ao longo do governo neroniano é possível perceber que Nero promoveu um verdadeiro extermínio dos concorrentes do poder imperial. Afinal, era mais fácil sobreviver em um governo sem concorrentes. Outro caso que cabe citar é a disputa de poder e prestígio entre os senadores e o Imperador. Essa disputa pode ser identificada durante a narrativa da realização dos jogos quinquenais promovidos por Nero, em 60, quando alguns senadores censuraram a atitude do imperador que promoveu espetáculos para a plebe de Roma. O argumento dos senadores era que não cabia a Nero a realização desses espetáculos, e sim aos pretores, magistrados senatoriais, que costumavam construir teatros provisórios para a realização desses espetáculos (Tac. Ann. XIV, 20). Contudo, o que se criticava não era o fato do imperador organizar os jogos, mas sim, o monopólio que o imperador então assumia sobre a realização de divertimentos políticos. Fato que gerava o acúmulo de prestígio e o apoio político da plebe para um único nobre. Deste modo, podemos perceber que há uma divisão de poderes não apenas entre o Senado e o imperador, mas também uma concorrência por prestígio entre os diversos senadores e o imperador. Assim, estamos lidando com uma dupla condição que iremos atribuir aos indivíduos que eram organizados pelo imperador: eles poderiam se unir sob o signo da oposição ou da situação de governo. Pensando em uma lógica inversa, podemos afirmar que cabia ao imperador a busca pela “ordem imperial” através da aplicação de uma política de manutenção desse Império. Seja através do patronato seja através de estratégias estabelecidas por meio de relações sociais de caráter interpessoal que visavam a arbitrar esses conflitos e manter a unidade do Império. Cabe,

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assim, estudar essas redes em competição. Nesse sentido, cabe destacar que partimos hipótese que existia uma ordem imperial no principado. Esta ordem seria então composta através do conflito entre ao diferentes grupos sociais que compunham uma sociedade tão heterogênea quanto à romana. Para que estes conflitos não levassem à desordem social (neste caso iremos entendê-la como guerra civil) era necessário que alguém arbitrasse e intermediasse essas disputas. Assim, podemos pensar que cabia ao princeps o papel de intermediário nas relações, seja através da busca por um consenso universal que legitimasse o seu papel. No entanto, ao mesmo tempo em que esse quadro se desenhava, podemos observar na narrativa de Tácito a descrição de estratégias pelas quais esses diferentes indivíduos se articulavam em grupos de oposição e buscavam a substituição da hierarquia superior da respublica: o lugar de princeps. Nesse sentido, podemos perceber que se faz necessário estudar como eram compostas essas redes de solidariedade, e através de quais estratégias esses agentes contribuíam para a manutenção ou a sublevação da ordem vigente. Portanto, voltamos a uma velha visão sobre o principado e que foi construída por Theodor Mommsen no século XIX. E, assim como observamos nos debates sobre suas ideias, a análise de Mommsen calcada no direito constitucional romano (Römisches Staatsrecht) nos oferece uma maneira interessante para adentrarmos nesse imenso debate. Pois essa perspectiva nos leva a pensar na possibilidade de interpretarmos o principado romano como que marcado pela distribuição igual de poderes entre o imperador e o senado, tal como fosse uma diarquia. Ou seja, para um bom imperador que quisesse governar sem dissidências era necessário estabelecer um governo que não desnivelasse essa “balança formalista” entre os poderes. Assim, convém afirmarmos que seguindo essa visão desenvolvida por Mommsen, e resgatada por Alloys Winterling, estamos nos colocando diante de diferentes maneiras de pensarmos as relações no principado através de relações pautadas em um “nível de comunicação” entre a posição usurpadora do imperador e a aparência de que mesmo sobre o governo dos imperadores Roma ainda vivenciava uma república23. 23 WINTERLING, Aloys. Politics and society in imperial Rome. Oxford: Wiley-

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E, através dessas críticas, e que novamente nos remontam a noção assumida por Vassily Rudich entre o de jure e o de facto, é que nos inserimos nessas discussões e tentamos propor uma nova maneira para pensarmos o governo e as atitudes do folclórico imperador Nero que seja diferente daquelas que visam estudá-lo através da noção de que ele era um “bom” ou um “mau” imperador. História e Retórica: a guerra civil como evidentia Neste estudo sobre período Neroniano utilizamos como fontes principais duas obras que foram produzidas por um hábil e douto político romano de nome Públio Cornélio Tácito: os Anais e Histórias. Podemos constatar através da datação desses escritos que o historiador latino se propõe, primeiramente, a compor as suas Histórias, cuja narrativa se inicia no ano de 69. É somente depois da composição dessa obra que ele se dedica à sua outra composição historiográfica (os Anais), onde narra acontecimentos anteriores àqueles que são objeto das Histórias, como se sabe, da ascensão de Tibério ao poder, em 19 de agosto do ano 14 até o final do governo de Nero (no ano de 68)24. As obras historiográficas de Tácito, portanto, lidam com acontecimentos que estão compreendidos em dois períodos de guerras civis. Além disso, podemos perceber que a própria organização e composição das obras taciteanas podem nos oferecer questões importantes a respeito da organização política e social de Roma, já que é possível supor que a queda de Nero e o ano de 69 (o ano dos quatro imperadores) podem possuir grande influência nas obras históricas desse historiador. Fato que poderia justificar a grande preocupação taciteana em descrever o principado neroniano como um governo marcado por um “mau” imperador que foi deposto do seu “trono”. Mas como comprovar essa hipótese? Para tanto, acreditamos ser essencial estudar a historiografia taciteana dentro das regras de composição desse gênero discursivo. Ou seja, através da noção de que uma revisão da Retórica antiga pode nos oferecer outras ferramentas para de Blackwell, 2009. 24 No entanto cabe atentar para a forma que os livros que chegaram até nós. Um exemplo nesse sentido é que a narrativa dos anos finais do governo de Nero (final do livro XVI e os seguintes) não foi conservada.

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análise, principalmente se levarmos em consideração que estamos analisando as obras de um orador antigo25. Assim, para debater essas questões iremos focar na análise das duas fontes que encabeçam essa pesquisa, os Anais e as Histórias, através da noção de que essas produções estavam imersas em um ambiente onde a Retórica assumia o papel de base da produção dos discursos. Nosso intuito com esse debate é observar, através do estudo dos antigos retores gregos e latinos, a exemplo da Retórica aristotélica e a Educação Oratória de Quintiliano, como esses conflitos descritos pelo historiador latino funcionaram poderiam, então, funcionar como elementos retóricos próprios da composição do gênero historia. Devido a essas questões referentes à problematização do papel que as duas guerras civis teriam nas obras taciteanas, o pesquisador Ricardo Nobre se lançou na empreitada de estudar as composições historiográficas taciteanas, em especial os Anais, através da ótica proposta pela visão literária de Hayden White26. Desta maneira, pensando a história como pertencente ao campo epidíctico, Nobre indica que Tácito estaria interessado em criar um clima de tensão calcado na ideia de que a guerra civil vencida por Augusto ainda não havia terminado. Pois, para ele, o historiador teria descrito os anos da dinastia Júlio-Cláudia através de estruturas dramáticas e poéticas, exercitando suas habilidades literárias sem a preocupação de que os eventos relatados poderiam ter alguma conexão com a “realidade histórica”27. Em suas palavras: Na Antiguidade, a História era um gênero literário que servia princípios estéticos e retóricos próprios. Neste âmbito, a conspiração ou intriga de bastidores é um campo primordial para o escritor exercer a sua arte narrativa, indo assim ao 25 Para mais informações sobre esse exercício teórico Cf. BELCHIOR, Ygor Klain. A história como um romance? Uma discussão da contribuição teórica da vertente pós-modernista para os estudos sobre a historiografia Taciteana. Revista Ágora (Vitória), v. 7, p. 1-22, 2011a 26 NOBRE, Ricardo. Intrigas palacianas nos Annales de Tácito: tentativas e processos de obtenção de poder no principado de Tibério. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010. 27 Para Nobre, as passagens que ilustram essa proposta são respectivamente Anais I, 9; II, 79; IV, 17, 3 e IV, 30.

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encontro do gosto dos seus leitores. O mistério e a incerteza que a intriga evoca, responde, no geral, à busca de evasão que o leitor da Antiguidade procurava na historiografia — não diferente daquela que nós procuramos hoje num romance.28

Concordamos com essa análise na medida em que nos auxilia a compreender como esses elementos que são constituintes dessa concepção de literatura, tal como formulada pelos intelectuais do século XIX (forma, estilo, retórica e elementos ficcionais) eram integrantes do gênero historiográfico. Contudo, somos levados a atentar para o fato de que a história era praticada por oradores e não era somente uma atividade literária como apontada por Nobre. No entanto, apesar de nossa discordância, ainda devemos aceitar que esses novos questionamentos auxiliaram na revitalização dos estudos sobre a Retórica como um componente essencial para entendermos a prática historiográfica dos antigos. Dessa forma, os pesquisadores passaram a se indagar a respeito das propriedades e da forma que ela era concebida no período em que os historiadores compuseram as suas obras. Esse resgate da Retórica antiga, por sua vez, permitiu a superação do paradigma interpretativo que englobava toda essa linha do saber dentro de um mesmo sistema que pode der resumido como uma Retórica da “ornamentação” e do “falseamento”. Junto a essa percepção de que a Retórica não deveria ser resumida ao mero ornato estilístico, muitos pesquisadores se debruçaram na tentativa de resgatar as essências da Retórica antiga através da noção aristotélica. Um dos pesquisadores que demonstraram essa preocupação foi Carlo Ginzburg que, em sua introdução da obra Relações de força: História, Retórica e Prova, buscou definir em linhas bem gerais a ideia de que os historiadores antigos possuíam outra forma de proceder em relação ao que atualmente entendemos como historiografia. Uma dessas formas, segundo Ginzburg, consistia em estudar a Retórica em um viés muito mais amplo, ou seja, através da concepção de que, para os escritores antigos, a prova era considerada como parte integrante 28 NOBRE, Ricardo. Intrigas palacianas nos Annales de Tácito: tentativas e processos de obtenção de poder no principado de Tibério. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010, p. 145.

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da Retórica29. Essa mesma situação, por outro lado, foi relacionada pelos teóricos da escola científica com a necessidade de indicar “provas” documentais nos textos históricos. Como podemos perceber através da análise de autores antigos que se debruçaram sobre essas questões, a poesia e a história estavam inseridas em um amplo sistema retórico e oratório e, portanto, sujeitas a algumas das mesmas regras de composição de discursos que encontramos em tratados compostos na antiguidade. Como exemplo, podemos citar a Retórica e a Poética de Aristóteles e em algumas reflexões lançadas nos proêmios de alguns historiadores, como Heródoto e Políbio. Todavia, não devemos deixar de destacar que isso não significava que esses dois gêneros pudessem ser identificados como similares, pois eles ainda poderiam possuir as suas próprias regras e divisões internas: e para isso basta atentarmos para os diferentes tipos de poesia apontados por Aristóteles (Aris. Poi. 1447a) e os diferentes tipos de história indicados por Políbio (Pol. Hist. IX, 1). De fato, podemos encontrar elementos que confirmem as ideias de Woodman através de uma análise da obra Diálogo dos Oradores, onde o auctor, na voz de Marcos Apro, defende uma oratória mais próxima das práticas poéticas. Em uma passagem (Tácito, Dial., XX), Apro destaca que os Juízes e os ouvintes estão cansados da dureza e da lucidez dos oradores austeros, que produzem discursos que não são dignos de memória. Ao contrário, o que chama a atenção do ouvinte e que coloca as palavras diante da visão e dos olhos dos ouvintes (Tácito, Dial., XXII) é o colorido, a animação e a beleza do discurso, que não soam “manchado pelas velharias de Ácio ou de Pacúvio” (Tácito, Dial., XX), mas chegam “ao ouvido de juízes com seu apaziguamento” (Tácito, Dial., XX). Dessa maneira, tornam-se dignos de memória (Tácito, Dial., XX). No entanto, apesar de possuirmos dúvidas a respeito da autoria da obra Diálogo dos oradores, também não devemos deixar de atentar que, posteriormente, em Dial., XXII, o auctor referese ao gênero “Anais” como composto por frases de “tardia e deselegante estrutura”, completamente desvinculado da vividez 29 GINZBURG, Carlo. Relações de força: História, Retórica e Prova. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das letras, 2002, p. 13

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que é proporcionada pelas ornamentações e licenças poéticas. A culpa disso, segundo o historiador latino, recairia nos ouvidos exigentes da plateia que ansiavam por composições que fossem retiradas “do santuário de Horácio, de Virgílio e de Lucano” (Tácito, Dial., XX). Para tanto, era necessário que os oradores de seu tempo dialogassem com os poetas no intuito de que seus discursos pudessem ser mais visíveis e, portanto, que fossem dignos aos ouvidos da plateia. Como sabemos, Tácito compôs uma obra do gênero historia em formato de Anais, já que seu conteúdo está organizado pelos anos em que governaram determinados cônsules romanos. Podemos encontrar em muitas passagens de sua obra a narração descritiva de acontecimentos importantes do Principado, características do gênero discursivo “Anais”30. Dessa maneira, mesmo se o historiador latino de nome Públio Cornélio Tácito não tiver sido o mesmo autor do Diálogo dos oradores não devemos deixar de atentar para a ideia de que aquilo que observamos na leitura dos Anais de Tácito é uma amplificação do gênero discursivo. Esses exemplos nos oferecem bases importantes para direcionarmos a nossa reflexão acerca das figuras Retóricas que eram utilizadas pelos historiadores para que o discurso pudesse ser construído, sempre tendo em vista a maior aceitação do ouvinte. Essa “vividez” do discurso, que tanto era perseguida pelos oradores, se constituía também como uma ferramenta essencial para a afirmação do “efeito de verdade” do discurso historiográfico, propiciando uma reflexão muito importante para compreendermos a proposta historiográfica de Públio Cornélio Tácito. Afinal, na leitura dos Anais, a construção de um clima que remetia às mesmas tensões das guerras civis vencidas por Augusto, e que constantemente pairavam e justificavam os conflitos entre a aristocracia imperial romana e o imperador se constituíam como importantes elementos retóricos que facilitavam a aceitação das palavras do orador, mas que também serviam para afirmar a posição de sua versão histórica como verdadeira e que os fatos se deram daquela maneira. 30 Além disso, podemos encontrar referências em passagens extraídas dos Anais que confirmam referências ao gênero discursivo proposto pelo historiador latino: Anais II, 65; IV, 32,1; XIII, 31,1.

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Dessa maneira, para confirmarmos nossa hipótese, recorremos novamente às ideias de Aristóteles para entendermos a íntima relação entre o efeito de visibilidade do discurso e a criação de um “efeito de verdade”. Em suas palavras: Se o temor é isto, forçoso é admitir que as coisas temíveis são as que parecem ter um enorme poder de destruir ou de provocar danos que levem a grandes tristezas. É por isso que os sinais dessas eventualidades inspiram medo, pois mostram que o que tememos está próximo. O perigo consiste nisso mesmo: na proximidade do que é temível (Aris. Reth. 2, 1382a).31

Assim, quando for vantajoso para um orador que os ouvintes sintam temor, convém adverti-los no sentido de que pode acontecerlhes mesmo alguma coisa de mal (sabendo que até outros mais poderosos que eles também sofreram); convém ainda demonstrar-lhes como é que gente da mesma condição sofre ou já sofreu, tanto por parte de pessoas de quem não se esperaria, como por coisas e em circunstâncias de que não se estava à espera (Aris. Reth. 2, 1383a).32

A comparação da atividade historiográfica taciteana com as ideias expostas anteriormente nos parece interessante na medida em que nos auxilia a compreender a maneira que Tácito se apropria dos adornos para criar uma sensação de “visibilidade” dos acontecimentos e das ações relatadas. Contudo, como ressaltamos anteriormente, não podemos desvincular esse caráter literário e oratório (uma história para delectare) da função que prescindia a escolha de se fazer uma obra dentro do gênero historiográfico. Essa escolha empreendia muito mais que o deleite, pois a história possuía a função de instruir através de exemplos (caráter pedagógico) e de relatar as coisas passadas através da verossimilhança. Em Tácito também podemos observar a forte presença 31 Tradução de Manuel Alexandre Junior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. 32 Tradução de Manuel Alexandre Junior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena.

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da construção de um conjunto de éthoi que são atribuídos aos personagens de sua narrativa. Dessa maneira poderíamos pensar que esse artifício retórico seria muito próximo ao que Sarah Fernandes Lino de Azevedo denomina como a construção de retracti33. Essa evidentia in narratione estaria muito próxima à concepção de historia magistra vitae, já que, dentro dessa construção epidíctica, o orador iluminava exemplos a serem vituperados ou encomiados. Nesse mesmo caminho, também poderíamos atribuir essa construção de retracti que englobassem características de determinados quadros metafóricos/temporais para reforçar a argumentação do historiador. Dessa forma, é muito sintomática a descrição que Tácito faz de um tempo que apresentava características do que ele define como “tempo das guerras civis”. Em suas palavras: A isso dava todo motivo Sejano, que lhe afirmava estar já Roma dividida em partidos como nos tempos das guerras civis; e que mesmo havia já indivíduos que se intitulavam do partido de Agripina: ao que se não se desse logo um pronto remédio, podia muito bem ter consequências funestas. Que não havia, pois outro meio para abafar na sua origem estas discórdias senão castigar fortemente um outro chefe dos mais atrevidos (Tac. Ann. 17, 3). 34

Esse clima de tensão aparece em diversas passagens dos Anais e resume basicamente os caminhos pelos quais o retractus dos traumáticos conflitos pudesse servir de “efeito de visibilidade” para as palavras do orador. Esta proposta está intrinsecamente ligada com a noção de ékphrasis ou descrição: condição essencial para gerar a enargeia. Essa amplificação do sentimento de instabilidade ocasionado pelas disputas entre os membros da elite romana gerava um quadro que sempre remetia às guerras civis 33 “Palavra que deriva de retraho, “retirar”, pois o autor ‘retira’ os argumentos, se baseando em características de pessoas ou acontecimentos e que lhe são úteis para a construção da representação da personagem ou situação” Cf. AZEVEDO, Sarah F. L. “Consilium muliebre ac deterius” (Tac. Ann., XV, 54, 4): As personagens femininas e a construção da imagem imperial no principado de Nero. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, 2011. 34 Tradução de José Liberato Freire de Carvalho.

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vencidas por Augusto. As “ordens cruéis, acusações contínuas, amizades enganosas, ruína inocentes” (Tac. Ann. IV, 33, 3)35 funcionariam, então, como “provas inartísticas” construídas por Tácito para que sua história possa “deleitar os olhos” e observar os preceitos da verossimilhança. Além disso, não devemos deixar de atentar para o fato de que as Histórias são iniciadas através da exposição das “causas e dos efeitos” dos acontecimentos anteriores (os Anais) para com o ano em que os romanos puderam presenciar uma guerra que englobou grande parte das províncias e dos exércitos romanos36. Nesse sentido, também podemos lidar com o sentimento de instabilidade construído por Tácito em duas maneiras distintas, mas que são essenciais para nossa leitura das obras historiográficas produzidas pelo historiador latino: a primeira através de um nível literário e metafórico. Já, a segunda, corroborando com o proêmio das Histórias, pode ser vista através da noção de “causa e efeito”, ou seja, por meio da hipótese de que o clima e a amplitude de guerras civis, que fora dada aos conflitos internos na cidade de Roma, também serviam para o “efeito de verdade” de que as coisas ocorreram daquela maneira. Assim, ao aceitarmos a hipótese de que o objetivo de Tácito era o de tentar explicar os acontecimentos que desencadearam as drásticas mudanças sociais durante os anos de 68 e 69, podemos inferir que o historiador privilegiou em sua narrativa a escolha de uma documentação composta por acontecimentos relativos às decisões dos imperadores, as atas do senado e os processos de delações e de conspirações. Mesclando esses acontecimentos com elementos retóricos e poéticos o historiador conseguiu evidenciar ao leitor a importância do tema tratado, além de propiciar a sua elocução uma história mais agradável ao ouvinte, já que esta 35 Tradução de Fábio Duarte Joly. 36 “Começo meu trabalho com o ano do consulado de Sérvio Galba Tito Vínio. Sobre o período anterior, dos 820 anos da fundação da cidade, muitos autores já trataram; e enquanto tiveram que escrever sobre os negócios do povo romano escreveram com igual eloquência e liberdade. Após o conflito de Ácio, e quando se tornou essencial para a paz que o poder residisse em um só homem, os grandes intelectos desapareceram. E o mesmo aconteceu com a verdade” (Tac. Hist. I, 1).

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era composta através da exposição de um vasto rol de intrigas, bajulações e acusações. Tudo isso deve ser destacado sem, contudo, nos esquecermos de que esses elementos que eram trazidos por Tácito não poderiam transitar fora da verossimilhança. Os personagens de sua narrativa, então, participavam de um jogo pelo poder que era do total conhecimento do senador romano Tácito. As artimanhas, as alianças, as delações, as premiações e todo o processo que envolvia a composição de grupos sociais de apoio e de oposição aos imperadores eram elementos do cotidiano do próprio historiador, bem como daqueles que consumiam as leituras das obras historiográficas. Somado a isso, observamos que as guerras civis vencidas por Augusto e os conflitos que se originaram após a queda de Nero podem se constituir como uma alternativa interessante para entendermos como o historiador latino tenta explicar os acontecimentos de seu tempo. Essas hipóteses nos revelaram que na função de político e orador o historiador latino também atribuiu um sentido bem relevante para a sua exposição do principado neroniano. Para ele, este principado demarcaria um limite entre o governo dos Julio-Claudios e outra guerra civil, que já não era marcada por uma contestação do regime e era sustentada por personalidades que adquiriram muito prestígio ao longo do governo de Nero. Essa transição, para Tácito, revelou “o segredo do império”, demonstrando que seu governo já não era destinado a uma só família, mas que era possível fazer um imperador que não estivesse na capital do império (Tac. Hist. I, 4, 1). Além disso, como também foi apontado por esse estudo, é possível atentar para o fato de que as disputas entre os diversos grupos sociais que compunham a respublica e o imperador possuem um papel preponderante no entendimento dos fatos narrados por Tácito. Dessa maneira, também é possível trilhar esse mesmo caminho percorrido pelo historiador latino e observarmos o principado neroniano, tal como é descrito em suas obras, como um governo marcado por disputas dentro dos círculos mais íntimos do imperador, mas que poderiam se estender aos outros cantos do império, como os exércitos e as províncias. Tácito, portanto, constrói em sua obra um clima de instabilidade calcado na adulação, em governantes viciosos, no medo e em muitos excessos que foram cometidos durante a

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dinastia Julio-Cláudia, deixando a impressão de que o ambiente era hostil e os costumes decadentes. Proposta persuasiva é semelhante à apresentada pelos manuais de Retórica disponíveis. Dessa maneira, demonstramos que a oposição entre os retratos de conflitos civis e de um período em que existe liberdade é muito evidente na narrativa taciteana e deve ser entendida através da ótica que privilegia Tácito como literário, historiador e político. Nesse mesmo caminho também é importante destacar que o historiador latino utiliza o exemplum como ornamento retórico, tendo como objetivo descrever os eventos e os personagens (inclusive os maus imperadores) de uma maneira tão viva que possa colocar diante dos olhos dos seus ouvintes37. Conclusão Neste trabalho demonstramos que as visões construídas sobre Nero e que privilegiam a sua postura como um tirano ou monarca, inclusive nas fontes, deve ser lida com cuidado. Afinal, em Tácito, foi possível observar que o principado romano era um sistema de governo muito mais complexo do que uma noção próxima a um governo autoritário, apesar de ainda ser observável que o Imperador deveria posicionar a sua domus como a mais proeminente da respublica. Ou seja, para o historiador latino, o imperador, portanto, precisava arbitrar os conflitos políticos e sociais que englobavam diversos grupos que também eram atuantes na República, como o senado e os equestres. Além deles, também se fazia necessário que o princeps fornecesse uma política de ordenação dos libertos e dos escravos, grupos que não estavam necessariamente articulados à sua domus, mas que também poderiam se articular no intuito de modificar a ordem vigente. Ainda dentro dessa proposta, pudemos observar que uma nova leitura das fontes nos permite debater questões que por muitos anos se colocaram como problemas na compreensão do principado inaugurado por Augusto. Assim, e nos focando na preocupação que Tácito demonstra com as guerras civis, pudemos construir um quadro diferente daquele que visa estudar os imperadores através da noção de que este deveria ordenar a sociedade romana 37 Como demonstrado pelo auctor de Retórica a Herênio em IV, 60 – 62.

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exclusivamente através do seu patronato. Além disso, como fica evidente em Tácito, essa nova realidade política fornecida pela domus imperial e pelo imperador pode ser entendida como uma autarquia graças à própria submissão dos Senadores ao imperador, seja através da bajulação ou das acusações, mas que sempre estavam direcionadas a um único objetivo: adquirir proeminência, magistraturas e honrarias oriundas do princeps. Contudo, apesar desse fato, o que podemos perceber é que o imperador não poderia ultrapassar certos limites que compreendiam a atuação do Senado, a exemplo, da preocupação de Nero em afirmar no início do seu governo que os negócios do Estado não seriam confundidos com os seus interesses particulares38. E a proposta, para isso, seria a de conservar a antiga autonomia do Senado. Assim, voltamos à balança formalista de Mommsen. O imperador, portanto, deveria articular a sua independência e a sua atuação em conjunto com o Senado. Caso essa balança pesasse para o lado do imperador, cabia aos senadores fornecer uma outra alternativa para a liderança desse poder. Dessa maneira, podemos afirmar que para compreender os principados dos imperadores se faz necessário voltar a ideia de “diarquia”, tal como exposta por Mommsen, e analisar a política dos imperadores não através de críticas às condutas individuais, mas através da noção de que o principado pode ser entendido como um sistema de governo onde todas as posições hierárquicas poderiam ser alcançáveis, principalmente pelos membros do Senado romano. Cabia, portanto, ao imperador equilibrar essa balança entre a sua autonomia e a sujeição às leis e as normas da respublica. Especialmente se recordarmos que o próximo imperador deveria ser reconhecido pelo Senado. Em suma, o que podemos perceber ao final do governo de Nero é que alguns grupos sociais que apoiaram o imperador ainda se encontravam atuantes, só que desta vez se na condição de sustentar a candidatura de Oto, que foi representado por Tácito como um concorrente viável para a sucessão imperial. Em suma, podemos perceber que estamos trabalhando com elementos que consistiam em uma nova realidade política e social que já não era igual à do período republicano, mas que possuía muita 38 No discurso inicial do governo de Nero (Tac. Ann. XIII, 4).

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afinidade com os tempos das guerras civis e com as disputas que envolviam as facções conflitantes. Ao mesmo tempo, podemos perceber que, diferente das concepções de um governo marcado por uma autocracia, os poderes do princeps poderiam ser (e foram) contestados por indivíduos que se aliavam em grupos de oposição que visavam suplantar o grupo dominante. Em suma, essas novas questões nos levam a complexificar o universo pelo qual o imperador se fazia superior aos outros indivíduos que compunham a sociedade romana, além de demonstrar que elementos, como a honra, prestígio, riqueza, patronato e até mesmo o culto imperial, quando analisados separadamente, não servem para explicar o funcionamento das disputas políticas e sociais, mas que com certeza se constituem como elementos importantes para a afirmação e a sublevação da ordem vigente. Além disso, também pudemos constatar que os conflitos internos aos governos dos imperadores da dinastia Júlio-Cláudia são essenciais para entendermos como o historiador latino observa os acontecimentos dos anos do Principado inaugurado por Augusto e também se constituem como alternativas para pensarmos, na mesma relação de “causa e efeito”, que a queda de Nero, o último imperador dessa dinastia, pode ser pensada através dessa noção desenvolvida por Tácito, de que a queda de um imperador também fazia parte do sistema de disputa por espaço de atuação política durante o principado. No caso de Nero, podemos ainda afirmar que existiam muitas pessoas dispostas e com força para disputar esse poder. É este fato que, para Tácito, justificaria a guerra civil de 69 e os quatro imperadores que pereceram em um ano.

VIII Autoridade e poder político durante o Principado: a auctoritas na concepção pliniana

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homem romano buscava orientar seu comportamento pessoal e sua carreira pública diante dos cidadãos pela observação de um conjunto de ideias morais e políticas que eram entendidas como valores nacionais e fontes da grandeza histórica de Roma, e ainda que algumas delas tenham sido herdadas dos gregos foram amplamente incorporadas ao universo romano e passaram a constituir um modelo a ser assumido por aqueles que ambicionavam uma carreira política. A lista desses preceitos nos revela, em grande medida, a mentalidade própria da aristocracia de Roma, pois ainda que não se comportassem rigorosamente de acordo com suas recomendações podemos captar a importância que era votada a eles pela sua ampla utilização nos 1 Pesquisador do Laboratório de Estudos Antigos e Medievais e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá onde desenvolve pesquisa sobre a idealização do imperador romano durante o Principado sob a orientação da Profª. Drª. Renata Lopes Biazotto Venturini. Email: [email protected]

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discursos, na propaganda política e na vida pública romana na qual o uso das palavras era essencial na transmissão de ideias e valores que se buscavam afirmar no interior da sociedade. Nesse sentido estudá-las constitui-se em uma tarefa essencial para o entendimento desse universo, e na medida em que focalizamos as maneiras de pensar, agir e as formas de interações que se desvendam a partir dessas ideias passaremos a compreender mais acuradamente como funcionavam as instituições políticas romanas. E essa aproximação é importante, sobretudo em um período de ambiguidade dessas instituições, como é o caso da época do Principado, na qual esse regime inovador conviveu com importantes permanências do sistema republicano. E uma das marcantes constâncias da República sob o Principado é exatamente o papel destacado que desempenharam as ideais morais e políticas nos momentos em que a propagando do poder imperial buscou respaldo nas tradições que em grande parte se expressavam por meio delas. Como se trata de um conjunto léxico amplo, optamos aqui pela análise de somente uma delas, a noção de auctoritas que de maneira sintética pode ser entendida como reconhecimento natural ou obtido, por um indivíduo ou instituição perante a sociedade, que fornece assim prestígio e poder perante ela. Buscaremos compreender a noção de auctoritas a partir das definições fornecidas pela historiografia para posteriormente observarmos como ela emerge na concepção de Plínio, o Jovem na sua representação do príncipe ideal na obra Panegírico de Trajano. Como nosso propósito é estudar o Principado convém antes de adentrarmos nesse complexo período da história de Roma, ainda que sumariamente, observarmos alguns motivos e causas que o levaram a substituir a República como forma de governo do mundo conquistado e governado sob a égide de Roma. Isso nos fornecerá também a possibilidade de apresentar como algumas das demais ideias morais e políticas atuaram nesse processo que levou à substituição do antigo pelo novo sistema político que possibilitou a Roma atingir seu apogeu.

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O advento do Principado e a reacomodação das instituições A principal característica da organização política da República era que suas instituições foram criadas como obstáculos ao restabelecimento do poder pessoal. Este sistema de governo fora instituído no fim do século VI a. C. quando a monarquia foi substituída por um grupo de magistrados2 oriundos das famílias aristocráticas que assim passaram a controlar a cidade de Roma3. Nessa reação oligárquica contra a realeza vemos a busca da afirmação da libertas dos cidadãos da elite romana contra o poder do rei que estabelecia com a cidade uma relação por eles considerada semelhante a do senhor com o escravo4. A noção de libertas pressupunha o livre exercício dos direitos políticos dos cidadãos romanos5, porém sob a monarquia estes direitos eram frequentemente violados e obstruídos pelo poder do rei, que apoiado nas camadas populares opunha-se muitas vezes aos interesses das oligarquias diminutas, porém com amplo poder econômico devido às suas posses fundiárias. No início do período republicano o sistema adotado cumpriu seu papel, pois a limitação do poder dos magistrados pela colegialidade e pela duração anual dos mandatos vedou as possibilidades de sucesso dos projetos ambiciosos individuais. Mas este sistema, concebido para governar uma cidade começou a mostrar seus limites quando Roma principiou a se tornar um império. As vitórias sobre Cartago assinalam o início das mudanças sofridas pelas estruturas sobre as quais a Urbe estava baseada6, e nos sinais dessas mutações veremos a presença de algumas das ideias morais e políticas romanas sendo afirmadas ou degradadas, mas em ambos os casos atestarão o esgarçamento do plano político e social republicano e a emergência do poder pessoal. Uma das características da expansão romana foi o acentuado 2

Detentores dos cargos políticos, administrativos e militares.

3

CORASSIN, Maria Luiza. Sociedade e política na Roma antiga. São Paulo: Atual, 2001, p. 19.

4

MENDES, Norma Musco. Roma republicana. São Paulo: Ática, 1988, p. 11.

5

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica: cultura romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 368-373.

6

ALFÖLDY, Géza. História social de Roma. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 65.

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aumento de poder de algumas famílias cujos membros conquistaram avassaladoras vitórias militares, alcançando assim uma eminente distinção em Roma. É o caso dos Cipiões que durante o século II a. C., devido às seus sucessos contra Cartago, alcançaram poder para exercer magistraturas com idades precoces e vedadas pelas leis republicanas7. Figuram neste exemplo a gloria, reconhecimento dos valores inerente ao cidadão romano8, oriunda das conquistas militares que contribuíam para a grandeza de Roma e a dignitas, prestígio advindo do pertencimento à aristocracia e ao desempenho de cargos a ela reservados9, dos membros de uma família senatorial. Ambas deram base para os Cipiões ultrapassarem os limites impostos pelas leis da República. Outro sintoma pode ser observado metade do século II a. C. quando a tentativa de reforma agrária proposta por Tibério Graco colocou em evidência mais uma consequência da dilatação dos domínios romanos no Mediterrâneo. O crescente aumento das campanhas militares ocasionadas pelo expansionismo retirava durante longos períodos os pequenos proprietários de suas terras para lutarem nas guerras de conquistas de Roma, disso resultava a ruína dos camponeses por não poderem lavrar seus campos durante o tempo de mobilização. Endividados vendiam suas terras aos aristocratas que utilizavam cada vez mais a mão de obra escrava obtidas nas vitórias dos mesmos camponeses, que contraditoriamente viam seus sucessos favorecer com seu prejuízo a aristocracia. Por isso, sem trabalho ou terras para manter-se, grandes massas afluíram para a Urbe em busca de novas possibilidades de subsistência. Diante desse quadro a proposta de Tibério Graco visava restabelecer o campesinato, pois segundo a noção de mos maiorum, os costumes dos ancestrais10, a grandeza atingida por Roma era devida, sobretudo a força e dos hábitos rústicos da figura do camponês soldado. Mas para levar a cabo seu projeto o tribuno Tibério Graco agiu de forma arbitrária às leis da res publica, as

7

Ibid., p. 74.

8

PEREIRA, 1987, p. 331-335.

9

Ibid., p. 339-341.

10 PEREIRA, 1987, p. 345-351.

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instituições do Estado romano11, quando apelou para a ideia inédita de soberania legislativa das assembleias populares para destituir de sua magistratura o outro tribuno chamado Otávio, que por ser representante da aristocracia agrária usaria seu poder de veto contra a proposta. Feito isto Tibério conseguiu que a assembleia aprovasse seu projeto, mas uma violenta reação senatorial acabou por assassiná-lo12. Esse violento desfecho deve-se a interpretação da aristocracia que viu na tentativa reformista uma aspiração ao poder pessoal, pois as estratégias de Tibério Graco ameaçavam a libertas por que levaram à destituição do poder de forma ilegal um magistrado legítimo e sinalizavam a tirania popular contra a posição retora dos aristocratas reunidos na ordem senatorial. Posteriormente os fatores até aqui apontados foram polarizados por Caio Julio César para ascender ao poder pessoal durante os últimos anos da República. Vencedor das Guerras Gálicas acumulou sobre si a gloria e a dignitas, usou as camadas populares que antes apoiaram Tibério Graco nas suas pretensões, e também se beneficiou da transformação do exército romano que foi possível após a já descrita proletarização do campesinato. Nos últimos anos do século II a. C. Caio Mario introduziu uma reforma que permitiu o recrutamento militar dos capite censi, os cidadãos romanos sem propriedade, que por essa condição não eram mobilizáveis, pois tradicionalmente os soldados das legiões romanas eram equipados às suas próprias custas13. Essa nova realidade estabeleceu o poder militar14, pois as legiões passaram a serem menos leais à República do que aos seus generais que durante as campanhas com eles dividiam os saques e ao final delas os premiavam com terras nos territórios conquistados. Assim como outros antes dele, César contou com a devoção dos veteranos por ele comandados na Gália para confrontar as leis da res publica e tornar-se ditador perpétuo em detrimento da libertas dos eminentes cidadãos de Roma e de seus inimigos políticos que 11 Ibid., p. 373-379. 12 CORASSIN, Maria Luiza. A reforma agrária na Roma antiga. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 54. 13 ALFÖLDY, 1987, p. 110. 14 HOMO, Léon. Les instituitions politiques romaines: de la Cité à l’État. Paris: Albin Michel, 1950, p. 192-204.

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ficaram dependentes de sua clementia, uma prerrogativa própria daqueles que por seu grande poder a utilizava para julgar os que estavam sob seu domínio. Os sintomas, explicitados pelo uso e abuso das ideias morais e políticas, demonstravam que as instituições republicanas, criadas para governarem uma cidade, tornaram-se obsoletas quando Roma transformou-se em um império. Na Urbe as facções políticas estavam em conflito permanente, na Itália e nas províncias os governos e os comandos militares eram para os ambiciosos as etapas do acúmulo de riquezas e forças necessárias para alcançar o poder pessoal, e quando Otávio por sua vez superou todos seus adversários estava claro que a estabilidade do mundo romano não repousaria mais sobre as leis da República. Ela passaria a depender de um governo centralizado nas mãos de um só homem. Mas o exemplo do assassinato de César por uma conspiração senatorial cujos membros nele viam uma obstrução à res publica e a libertas demonstrava que se o caminho para o poder pessoal estava traçado pela via militar15, ainda não existia uma forma clara de como mantê-lo. César alcançara as “condições de manejar e tutelar as instituições em benefício do seu poder pessoal”16, mas “agiu sem se preocupar com as aparências, transformando os institutos políticos em instrumentos que pudessem conceder-lhes poderes, honras e títulos”17. Otávio precisava agir de outra forma, e o fez criando uma “ficção constitucional”18 para “conciliar as antigas tradições da aristocracia senatorial, tradições próprias do passado romano, com a necessidade de uma direção única nas mãos, senão de um senhor, ao menos nas do mais eminente dos cidadãos”19.

A solução para esse dilema foi a criação de um sistema ambíguo no qual apesar da manutenção das instituições republicanas todo poder 15 HOMO, 1950, p. 192-204. 16 MENDES, 1988, p. 75. 17 Ibid., loc. cit. 18 HOMO, op. cit., p. 248. 19 Ibid. p. 248.

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de Roma estaria centralizado em suas mãos, pois sua posição passara a ser a de princeps, o primeiro cidadão, de onde deriva o nome do regime, o Principado. Esse novo tipo de governo, em consonância com a realidade, mas em conflito com as tradições e violando algumas das mais caras ideias políticas romanas, encontraria por sua vez respaldo em uma ideia moral pela qual Otávio e seus sucessores buscariam sempre estar investidos, a auctoritas.

A noção de auctoritas durante o Principado romano Desde o início do Principado percebemos que a auctoritas era uma noção importante para esse novo regime de governo que procurava se afirmar a partir da construção da imagem de um governante que, pela posse de qualidades pessoais superiores, estivesse capacitado a governar o mundo romano. O valor que a sociedade romana lhe votava pode ser apreendido no empenho em que a propagando imperial a utilizava. Nas suas memórias políticas Otávio, que passou a ser chamado de Augusto, nome “de natureza religiosa que eleva o imperador acima da humanidade e lhe confere um caráter sagrado”20 ressaltou a importância de sua auctoritas para manutenção de sua posição a frente do Principado. No meu sexto e sétimo consulados, após haver posto fim às guerras civis e assumido o poder absoluto por consenso universal, transferi a República do meu domínio para o arbítrio do Senado e do Povo Romano. Por esse motivo e pelo meu próprio mérito foi-me atribuído, por decisão senatorial, o título de Augusto, e as ombreiras de minha casa foram publicamente recobertas de louros, uma coroa cívica foi fixada sobre a minha porta e um escudo de ouro foi colocado na Cúria Júlia, como testemunho, através da inscrição nele registada, que o Senado e o Povo Romano mo haviam dado graças à minha virtude, clemência, justiça e devoção. Depois dessa época fiquei acima de todos em autoridade; porém, não tive mais nenhum poder além do que tinham os outros que também foram meus colegas de magistratura21.

A citação acima foi retirada dos Res Gestae Divi Augusti, registro 20 HOMO, 1950, p. 266. 21 AUGUSTO, Res Gestae, 34, apud GRIMAL, Pierre. O século de Augusto. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 7.

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dos eventos mais significativos do governo de Augusto que lista também as magistraturas por ele exercidas, suas vitórias, conquistas e principais medidas políticas adotadas22. O documento afirma que as magistraturas não deram a Augusto poder, potestas, além do comum, porém sua autoridade, auctoritas, colocava-o em posição de governar. Mas o que de fato significava auctoritas, o que fornecia a essa noção tanta importância? Buscaremos respostas começando por Pereira23, nossa principal informante acerca das ideias morais e políticas romanas. De acordo com a ela auctoritas é um conceito basicamente romano, portanto essencial para a compreensão da cultura desse povo. Etimologicamente a palavra carrega a noção de acréscimo, aumento. Sua ancestralidade remonta a registros na Lei das Doze Tábuas e Cícero a atribui a militares e políticos, e ressalta que era o Senado o órgão com a mais destacada auctoritas, cujas orientações tinham peso para posteriormente tornarem-se leis. A autora sublinha a relevância política do termo pelo uso que Augusto fez dele nos Res Gestae Divi Augusti. Outras definições mais sintéticas e objetivas também lançam luz à ideia que refere-se ao “fato de uma pessoa ou um grupo constituído possuir eficácia necessária para assegurar o sucesso de uma empresa projectada”24, outra afirma que trata-se do “controle exercido pelo Senado sobre as decisões do povo; em sentido amplo, autoridade moral ou política, reconhecida por todos”25, uma quarta afirma que o conceito “significa influência e prestígio, e engloba a ideia de aquisição destes mediante uma combinação de hereditariedade, riqueza, personalidade e sucesso pessoal. Elemento importante é que implica a capacidade de exercer patrocínios em larga escala”26. Tanto Nicolet quanto Shotter acrescentam em suas definições o fato da noção de auctoritas ter sido utilizada na propaganda de Augusto, mas busquemos na historiografia acerca do Principado os motivos do protagonismo dessa ideia nesse período de 22 HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica: grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, p. 347-348. 23 PEREIRA, 1987, p. 351-358. 24 GRIMAL, Pierre. O império romano. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 159. 25 NICOLET, Claude. Les idées politiques à Rome sous la République. Paris: Armand Colin, 1964, p. 175. 26 SHOTTER, David. Nero. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 161.

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inovação política. Aqui devemos lembrar da noção de mos maiorum. Conforme colocamos acima, os romanos acreditavam na força das tradições e nos valores do passado como essenciais para a grandeza da Urbe, Augusto por sua vez apresenta-se como restaurador da República, atitude expressa no trecho citado de seu testamento político. Essa junção do poder da tradição com um projeto político foi importante para o papel da auctoritas durante o Principado. Estudos acerca da organização familiar romana arcaica afirmam que por conta de sua auctoritas o chefe da família tinha o poder ilimitado sobre os demais entes, fossem estes escravos, esposa ou filhos27. No desenvolvimento da ideologia imperial com o aporte da filosofia estoica, que favoreceu a construção da figura de um governante pleno de virtudes, o príncipe alcançou uma posição superior à dos demais cidadãos, adquirindo o status de Pai da Pátria com o qual unificou e integralizou a sociedade romana em torno de si28, o que fundamenta na tradição a possibilidade do príncipe, além de seus poderes legais, apelar para sua auctoritas pessoal quando era preciso29. Essa grande proeminência de poder moral emanado da auctoritas do príncipe reclama para a compreensão de seus desdobramentos durante o Principado a compreensão da noção de fides, que atuava na organização da sociedade, da política e das leis romanas e significava um compromisso recíproco de duas partes que legitimava a ligação entre romanos ou entre Roma e outros povos aliados ou protegidos, possibilitando a manutenção do império e a integração de seus habitantes. Essa noção atuava, sobretudo, no interior do sistema de patronato que na época do Principado colocava o imperador no topo da pirâmide social romana30. Grosso modo, o patronato era uma relação estabelecida entre cidadãos de diferentes status, patronos 27 ALFÖLDY, 1987, p. 22. 28 MENDES, Norma Musco. O sistema Político do Principado. In: MENDES, Norma Musco & SILVA. Gilvan Ventura da. Repensando o Império Romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro/Vitória: Mauad/EDUFES, 2006, p. 21-51. 29 ALFÖLDY, 1987, p. 139. 30 Ibid., p. 131-146.

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e clientes, dentro da sociedade. Em Roma, criado nos primeiros tempos da República para manter a posição retora dos patrícios diante dos plebeus mediante a submissão destes à proteção dos nobres que detinham o monopólio dos conhecimentos jurídicos sagrados necessários para a celebração de negócios e contratos na Roma que se dinamizava31, tornou-se importante elemento de coesão em uma sociedade extremamente estratificada de forma que o “mundo greco-romano teria sido ímpar na história se o patrocínio pessoal – o elemento objectivo da relação entre desiguais – não fosse conscientemente utilizado para apoiar as estruturas do poder”32. Por meio desse sistema, no qual a fides era essencial no estabelecimento de obrigações recíprocas, patronos e clientes trocavam apoio financeiro jurídico e político, e ainda que o patrono estivesse em uma posição privilegiada ele deveria contar com clientes poderosos para afirmar sua posição na Urbe. Dessa condição, expandida durante o Principado, os imperadores não eram eximidos, pois apesar de seu poder militar desde César, poder este que também era em parte exercido por meio do patronato fornecendo recompensas aos soldados na forma da distribuição de terras e dinheiro33, eles não poderiam governar sozinhos, dependiam também de um grande grupo de parentes e amigos que davam apoio e conselhos sobre os negócios do Estado34. Esse círculo de apoio por sua vez também se organizava pelo sistema de patronato sob a auctoritas do príncipe. Vejamos então seu funcionamento a partir de um olhar sobre a vida e as obras de duas figuras exemplares do Principado. Plínio, o Jovem, Trajano e o Panegírico Entre as transformações políticas, sociais e econômicas introduzidas pelo Principado, Plínio e Trajano, cuja ação e representação estão contidas em um importante documento, o 31 ROULAND, Norbert. Roma, democracia impossível? Os agentes do poder na Urbe romana. Brasília: UnB, 1997, p. 47-52. 32 FINLEY, Moses I. Política no mundo antigo. Lisboa: Edições 70, 1997, p. 57. 33 MENDES, 2006, p. 33. 34 VENTURINI. Renata Lopes Biazotto. As palavras e as ideias: o poder na antiguidade, Diálogos, v. 9, n. 2, p. 143-155, 2005. Disponível em www.diálogos. uem.br

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Panegírico, surgem como exemplos singulares para compreendermos esses processos que envolviam Roma, onde a mais de um século de Principado a ideia de retorno à República estava afastada, pois nos seus anos finais suas instituições desgastadas trouxeram apenas dolorosas conturbações em virtudes das disputas pessoais. Diante disso a concentração legítima de poder trazia a estabilidade desejada, o que importava era que o príncipe fosse capaz de imporse sem violência e que suas qualidades fornecessem a direção de um caminho que satisfizesse todo o império. Este príncipe idealizado deveria possuir uma elevação espiritual que o igualasse aos deuses, sua excelência moral, obediência às leis e aos costumes ancestrais faria dele o cidadão exemplar escolhido entre os senadores para governar sozinho, mas com apoio e sob a orientação da cúria, segundo as tradições valorizadas pela aristocracia ainda apegada à forma mentis republicana que permanecera. Como representante deste estrato social e ao mesmo tempo intimamente ligado ao príncipe e à administração do império Plínio, o Jovem fez em sua obra, o Panegírico de Trajano, a representação de um governante em consonância as ideias morais e políticas exigidas pelos romanos para o homem político a frente do Império. De acordo com nosso tradutor35 do Panegírico de Trajano a obra tratava-se, originalmente de uma gratiarum actio, um discurso de agradecimento ao imperador, proferido no ano 100 d. C., pela ascensão de Plínio ao consulado, que posteriormente foi ampliado para a publicação. Estima-se que o texto que temos em mãos é três vezes maior que o original, sua importância repousa no fato de que do período em questão muitos dos documentos que sobreviveram trouxeram informações fragmentadas, por isso ao Panegírico devemos consideráveis informações acerca dos três primeiros anos no governo de Trajano e também dos detalhes das instituições que cercavam o Principado. Para nós o primeiro detalhe sobre a obra que nos chama a atenção é o fato dela ter se originado de um agradecimento pelo acesso de Plínio a mais alta 35

DURRY, Marcel. Introdução In: SECUNDUS, Caius Plinius Caecilius. Panégyrique de Trajan. Tradução e comentários de Marcel Durry. Paris: Les Belles Lettres, 1972 1972, p. 86. Na introdução e nas notas de sua tradução para o francês do Panegírico de Trajano, Marcel Durry fornece informações essenciais para a compreensão da obra.

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magistratura romana, o que ocorreu sob o beneplácito do príncipe e nos direciona a relação de colaboração inserida no sistema do patronato imperial, na qual a noção de auctoritas tem um papel fundamental. Buscaremos compreender o funcionamento dessa instituição a partir da carreira de Plínio, o Jovem, pois por meio de seu contexto perceberemos como o homem romano do Alto Império transitava pelos meios políticos e sociais do período. Isso nos dará noção de como se constituía e se estruturava o poder imperial. Em suas Cartas Plínio, o Jovem nos oferece muitas informações sobre sua vida e carreira, e é a partir desses dados que Chastagnol36 nos fornece um quadro exemplar da vida dos senadores romanos. Segundo ele, a riqueza necessária para entrar para a ordem senatorial, 1.000.000 de sestércios37, Plínio adquiriu por meio de heranças, matrimônios e pela sua adoção por parte de seu tio, Plínio, o Velho. Seus primeiros passos rumo à ascensão política se deram ainda sob o governo de Domiciano, que lhe favoreceu permitindo pular etapas do cursus honorum, dispositivo que determinava a ordem e as idades mínimas em que as magistraturas deveriam ser desempenhadas38. Sob Trajano Plínio recebeu o jus trium liberorum39, foi cônsul, curador do Tibre e governador da Bitínia, província romana no norte da atual Turquia40. Bowder41 destaca que essa designação recaiu sobre Plínio para que ele resolvesse problemas econômicos na região, nesse sentido devemos atentar para uma característica importante da ordem equestre, da qual Plínio era oriundo antes de atingir o status senatorial. Os membros do ordo equester geralmente enriqueciam em atividades comerciais e posteriormente adquiriam terras para 36 CHASTAGNOL, André. Le Senat romain à l’époque imperiale. Paris: Les Belles Lettres, 1992, p. 145-153. 37 ALFOLDY, 1987, p. 159. 38 MENDES, 1988, p. 78. 39 Benefício criado por Augusto para premiar os aristocratas que tivesse três filhos, Plínio não teve nenhum mas ainda assim foi favorecido por Trajano. 40 HARVEY, 1987, p. 402-404. 41 BOWDER, Diana. Quem foi quem na Roma antiga. São Paulo: Art Editora, 1980, p. 211.

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equipararem-se às fortunas senatoriais. A boa gestão que faziam de seus negócios capacitavam seus elementos a fazerem parte dos quadros administrativos imperiais para os quais os imperadores recrutavam os cavaleiros que demonstrassem capacidade para tais funções, principalmente as ligadas à gestão financeira do império42. Diante disso percebemos que trajetória política de Plínio inseria-se em uma dinâmica própria do Principado onde a relação patrono-cliente que envolvia o imperador e os senadores que o apoiavam era muito importante. E ilustrando isso temos o fato de Plínio assumir a magistratura mais alta não só por seus méritos, mas, sobretudo pela indicação de Trajano, que como príncipe gozava de auctoritas para recomendar a esse cargo os candidatos de sua preferência, fazendo com que eles fossem ratificados pelo Senado43. Portanto Plínio, o Jovem usufruiu dos benefícios de sua relação com o poder imperial, e como vimos este dependia em grande parte da auctoritas que o príncipe conseguia concentrar sobre sua pessoa, por isso interessa-nos verificar como Trajano agiu em relação a essa necessidade para fortalecer sua posição a frente do Principado. O primeiro dado importante a ser arrolado sobre o novo imperador é ele ter sido o primeiro imperador provincial44, apesar de inédito o fato não o prejudicava, pois assim como Vespasiano de origem Sabina antes dele, Trajano beneficiou-se da ideia de que os romanos que viviam mais afastados da cidade de Roma conservavam virtudes morais superiores que nos habitantes da Urbe teriam desaparecido. De fato ele tinha raízes que o ligava aos valores ancestrais romanos, nascido na Bética, região sul da Hispânia, porém de uma família originária da Úmbria45, região central da Itália. Seu pai foi o primeiro de sua família a conquistar o acesso ao Senado, e é com base nessa distinção que o futuro imperador construiu uma sólida carreira militar e senatorial. No momento em que Nerva enfrentava dificuldades com a guarda pretoriana e com algumas legiões nas províncias 42 MENDES, 2006, p. 30-32. 43 PETIT, Paul, A paz romana. São Paulo: EDUSP, 1989, p. 208. 44 ENGEL, Jean-Marie. O Alto Império In: ENGEL, Jean-Marie; PALENQUE, Jean-Rémy. O Império Romano. São Paulo: Atlas, 1978, p. 95. 45 BOWDER, 1980, p. 211.

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a nomeação de Trajano como governador da Germânica e sua adoção indicando-o como sucessor foi a chave para alcançar a estabilidade, pois o novo príncipe tinha o consentimento dos soldados46 e com apoio de senadores, especialmente do também hispânico Licínio Sura47, consolidou sua posição como futuro imperador. Nesse momento os fatores que constituíam a auctoritas de Trajano, e que contribuíram para sua indicação como sucessor de Nerva, eram o apoio do Senado, das legiões, sua ligação com valores ancestrais romanos e a ideia de que a adoção recaíra sobre ele a partir da escolha do melhor cidadão do império para dirigir o Principado. A nomeação de Trajano como sucessor de Nerva a partir do principio de adoção significou um passo a mais para a consolidação da extensão dos direitos de cidadania romana para além da Urbe. A presença de um provincial a frente do império representou a incorporação de camadas mais vastas de clientes sob o patronato do príncipe, portanto já na ascensão de Trajano sua auctoritas incorporou novas bases de sustentação, diferentes daquelas dos Júlio-Claudios e do Flávios, cujas famílias monopolizaram os processos sucessórios. O novo príncipe fora escolhido entre todos os cidadãos e não apenas no interior de uma dinastia reinante, e em consequência disso sua representação como patrono de todo império apresentava-se desde o início fortalecida. A noção de auctoritas no Panegírico de Trajano No discurso de Plínio, o Jovem a noção de auctoritas apesar de não estar sempre associada à figura de Trajano ela se apresenta como justificativa, instrumento e fonte de fortalecimento do poder do príncipe, ou das instituições e do círculo político à sua volta. Plínio utiliza-se dela nas primeiras linhas do Panegírico ao elogiar a observação dos hábitos dos antepassados em relação à necessidade de preceder por orações os atos e discursos públicos. Esses costumes representavam para o Senado o respeito aos valores ancestrais da República, sempre evocada como forma de legitimar a política dos imperadores sob o Principado. Nesse sentido Plínio indaga: “este hábito, quem deve seguir e observar 46 GRIMAL, 1999, p. 95. 47 BLÁZQUEZ, José María. Trajano. Barcelona: Ariel, 2003, p. 44.

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senão um cônsul, especialmente quando pela injunção do Senado e em nome do Estado nos somos convidados a agradecer o melhor dos príncipes?”48. Em relação a esta citação, antes da análise são necessários parênteses. A passagem “em nome do Estado” é nossa tradução da versão francesa de Durry onde aparece “au nom de l’État”, todavia o texto em latim por ele estabelecido traz “auctoritate49 rei publicae”, o que poderia ser traduzido para “autoridade da República”, embora essa ou qualquer tradução acarrete fatalmente a perda de significação própria do contexto em que Plínio enunciou seu discurso devido às novas significações que essas palavras vertidas para o francês ou para o português nos oferecem atualmente50. A despeito disso, para nós importa, sobretudo, a presença da noção de auctoritas, que atribuída à República reforça a ideia da permanência desta instituição determinando a condução dos atos políticos em Roma. Somemos a isso importância que ele dá ao Senado como instituição que determinara a necessidade de agradecimento ao príncipe pela indicação ao consulado. Mas por trás dessa valorização do ato podemos vislumbrar um gesto de submissão da cúria em relação ao príncipe, pois o pronunciamento da gratiarum actio era uma recomendação de um senatus consultum da época de Augusto51. Finley52 mostram-nos que o senatus consultum era um tipo de medida policial de grande poder e que foram utilizadas durante as crises da República desde os Gracos. Temos, portanto, desde o início do discurso de Plínio, a ambiguidade sob a qual viviam os senadores romanos: por um lado era evocada a auctoritas da República como geradora do ato de agradecimento, porém de outro devemos indagar em que medida a instituição dessa gratiarum 48 PLÍNIO, Panegírico, 1, 2. As citações em português da fonte são traduções nossas a partir da versão francesa de Marcel Durry. 49 Convém informar ao leitor que o latim, como uma língua sintética, acrescenta diferentes desinências às palavras conforme as funções sintáticas que elas assumem nas orações, conservando, porém seus aspectos semânticos. 50 Nas demais citações do Panegírico de Trajano, nas quais aparece a noção de auctoritas, Durry a traduziu para autorité, a qual verteremos para “autoridade”. Esperamos que o prejuízo seja compensado pela análise contextualizada do termo. 51 DURRY, 1972, p. 86. 52 FINLEY, 1997, p. 14-17.

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actio poderia expressar a soberania de um órgão político que desde Júlio César e Augusto era tutelado pelo poder dos imperadores que indicavam de acordo com seus interesses os candidatos às magistraturas. Nessa perspectiva a aprovação da cúria para a instituição de um ato de gratidão ao príncipe poderia significar uma atitude coletiva de submissão da ordem senatorial ao passo que ao proferir o discurso o novo cônsul exprimia escondido sob a aparência de agradecimento também sua submissão àquele que lhe outorgava uma cargo que pela libertas republicana deveria ser alcançado pelo voto popular e pela decisão dos elementos da ordem à qual ele pertencia. Tratando-se do caso específico de Plínio e Trajano devemos levar em conta que provavelmente os elogios do novo cônsul eram sinceros, pois o príncipe recebeu o título de Optimus do Senado desde sua ascensão53, além disso, o tom utilizado na correspondência54 trocada entre os dois revelanos uma estima mútua e franca. Entretanto a convivência entre a cúria e os imperadores nem sempre foram cordiais e desde a instauração do regime a ordem era com frequência purgada violentamente dos elementos indesejáveis e reconstituída por senadores simpáticos ao césar governante. Quando Plínio tratava de enaltecer a escolha de Trajano como sucessor de Nerva por meio do principio de adoção, ele utiliza-se da noção de auctoritas. Nas suas palavras o fator de sucesso dessa forma de seleção do governante do império se devia “graças à autoridade daquele a quem ele era dado”55. A adoção não era novidade em Roma, tampouco durante o Principado, quando desde a sucessão de Augusto por Tibério deu-se por meio desse expediente que foi repetido em outras ocasiões durante a dinastia Júlio-Claudia. Todavia, diferentes usos desse princípio ocorreram desde os tempos ancestrais antes que Plínio celebrasse sua excelência para designar o novo príncipe no início da dinastia Antonina, atestando assim a característica do novo regime de criar fórmulas inovadoras baseadas em soluções antigas e aceitas 53 DURRY, 1972, p. 87. 54 Especialmente no livro X das Cartas que reúne as missivas da época em que Plínio governava a província da Bitínia como legado de Trajano e tratava dos assuntos administrativos diretamente como o príncipe. 55 PLÍNIO, Panegírico, 8, 6.

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pela tradição da Urbe. Desde antes da queda da República, e também após, a adoção era a maneira tradicionalmente utilizada para estabelecer herdeiros para famílias inférteis56, e no plano político do Principado o sistema teve um papel essencial e muitas vezes decisivo. Augusto, o fundador do Principado, teve como grande fator de sucesso de seu projeto o fato de ter sido adotado por seu tio, Júlio César, que lhe legou como principal herança o prestígio conquistado a frente do partido popular nas lutas contra os conservadores do Senado57. O respaldo que a adoção lhe deu foi explorado exaustivamente: a divinização de César e sua vinculação com divindades romanas58 fizeram com que a filiação de Augusto com um gênio político de apelos divinos fosse a garantia de a obra do ditador seria inacabada. Entretanto, o que foi um fator de êxito no início do governo e Augusto poderia ter adquirido consequências funestas quando este precisou indicar um sucessor. A opção pela via direta alinharia o regime com uma monarquia, o que era amplamente execrado pela sociedade romana e apagaria as ilusões em torno da manutenção das instituições republicanas sob o Principado. Augusto não tivera filhos e a adoção de Tibério apesar de um fato normal para os romanos daria um claro aspecto dinástico ao regime caso apenas este ato habilitasse o filho de Lívia para conduzir o governo. A solução foi utilizar-se da coregência, que o prestigiava diante dos romanos lhe oferecendo a oportunidade de mostrar-se capaz de assumir o império59. A estratégia de Augusto garantiu a tranquila passagem do poder para as mãos de Tibério que foi acolhido pelo povo e pelo Senado, que lhe fizeram o juramento de lealdade, tornando-o o novo patrono do império. Além disso, Augusto foi divinizado oficialmente60, assim a posição do novo príncipe foi mais uma vez respaldada na herança divina contida na auctoritas de seu pai adotivo. 56 VEYNE, Paul. História da vida privada: do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, passim. 57 GRIMAL, Pierre. O século de Augusto. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 23. 58 Ibid., loc. cit. 59 MENDES, 2006, p. 53. 60 GRIMAL, 2008, p. 29.

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Mas este sistema se degradou e deus mostras de seu fracasso em governos tirânicos como os de Calígula61 e Nero62, os exemplos desses imperadores demonstraram que o pertencimento à família de um primeiro dinasta competente não era garantia de que daí grandes imperadores surgiriam. Durante as perturbações do ano dos quatro imperadores Galba, ao adotar Pisão Liciniano e indicar-lhe como sucessor buscando estabilizar a situação, inovou o principio de adoção ao escolher um indivíduo que não pertencia a sua família, mas o projeto não teve tempo de ser posto a prova, pois ambos foram assassinados pela guarda pretoriana que junto com o Senado apoiava Otão63. Portanto o novo modo de selecionar o futuro imperador ocorreu de forma completa, com a adoção de um indivíduo de fora da família do césar governante e sua ascensão inconteste ao poder, apenas no início da dinastia Antonina, na qual somente seu último representante não seria escolhido pelo princípio de adoção64. Mas Nerva, ao retomar o projeto de Galba, também incluiu nele uma inovação. Durante o Principado o desenvolvimento urbano e econômico das províncias tinha favorecido a extensão dos direitos de cidadania romana para além das fronteiras da Itália. O sistema social romano penetrou nas vastas regiões conquistadas e as elites locais, fossem elas autóctones ou oriundas de Roma ou da Itália alcançaram a possibilidade de atuar dentro dos quadros políticos e militares do império65. A adoção de Trajano e sua indicação como futuro imperador marcam esse processo de expansão e ajustamento do mundo romano durante o Principado. Sua família era da Bética, região sul da província da Hispania, dela seu pai fora o primeiro a alcançar a ordem senatorial. Por meio dessa distinção e seguindo os passos paternos Trajano construiu uma sólida carreira, principalmente militar66, que o habilitou ao cargo máximo do império. 61 ENGEL, 1978, p. 47-49. 62 SHOTTER, 2008, passim. 63 Ibid., p. 109-122. 64 Cômodo era filho de Marco Aurélio. 65 AFÖLDY, 1987, p. 131-146. 66 BOWDER, 1980, p. 258-259.

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A opção por Trajano deu-se em um momento de impasse, pois a idade avançada de Nerva colocava desde o início o problema da sucessão e o velho príncipe, apesar do apoio do Senado não tinha unanimidade entre as legiões, que foi assegurada pela indicação de Trajano67. Este, reafirmamos, conquistou sua posição à frente do império também pelo apoio de senadores provinciais, especialmente do também hispânico Licínio Sura que pressionou Nerva em favor de Trajano contra outros pretendentes ao cargo68. De fato a sucessão era uma questão problemática, principalmente em um regime que pelo apego às tradições republicanas não queria se reconhecer como monárquico. A ênfase de Plínio na auctoritas de Trajano como requisito para sua escolha revela a valorização das elites provinciais que o apoiaram, cada vez mais atuantes na política do império, constituindo-se em uma clientela poderosa sob o patronato do novo príncipe, que, além disso, contava com o tradicional apoio das legiões. Por outro lado, mostra também o temor que a permanência de uma situação indefinida ou uma má escolha acarretaria, pois “não foi a obra da adoção, mas daquele de quem ela foi objeto; mas Nerva teria sido imprudente se tivesse escolhido outro. Esquecemos como uma vez a adoção não fez cessar a sedição, mas a fez nascer?”69. Aqui Plínio refere-se diretamente à adoção de Pisão por Galba70, e ao escolher um exemplo trágico expõe mais do que seu apoio ao príncipe, para além disso ele reforça o papel propagandístico de seu discurso comparando os fracassos do passado com os sucessos do presente. A visão de Plínio em relação ao Principado e a responsabilidade daquele que devia estar a sua frente emerge de maneira aguda nas primeiras linhas da passagem em que seu discurso trata da morte de Nerva, na qual afirma: “o que aumentava a autoridade de quem dava a ordem é que esta autoridade corria grande risco e tu tinhas maior razão para obedecer a essa ordem do que os

67 GRIMAL, 1999, p. 95. 68 BLÁZQUEZ, 2003, p. 43. 69 PLÍNIO, Panegírico, 8, 5. 70 DURRY, 1972, p. 103.

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outros”71. Nesse caso a noção de auctoritas tem sua importância invertida, pois se antes ela aparece como qualidade necessária a quem almeja ascensão política aqui ela é algo que deve ser assumido pelo príncipe. Dessa forma podemos entender que para Plínio o império demanda auctoritas ao mesmo em que ele se configura como auctoritas, mas esta é muito mais um encargo a ser chamado para si do que um prêmio que foi conquistado. Essa representação procura criar uma oposição com os príncipes anteriores, Plínio afirma “não existe bom elogio sem comparação”72. E Domiciano é o principal objeto desse recurso, pois dentre diversas atitudes que desagradavam a aristocracia senatorial ele usava sua posição imperial para buscar a divinização orientalizante73, um comportamento completamente diferente do enaltecido pelo Panegírico no qual Plínio afirma que “o príncipe deve parecer o mais possível e o cônsul o menos possível com um simples cidadão”74. Eis as balizas a serem observadas por todos os homens políticos romanos sob o Principado. A busca de aproximar a figura do príncipe com o ideal de cidadão, expressada na citação anterior, demanda, por exemplo, para Plínio certa independência da auctoritas dos legados imperiais em relação à auctoritas do príncipe, para ilustrar esse ponto de vista ele escreveu que Tal é a natureza das constelações, que as pequenas e fracas são obscurecidas quando as mais fortes se elevam. Assim a chegada do imperador eclipsa o prestigio de seus legados. Mas tu eras maior que todos e maior sem diminuir ninguém: cada um conservava em tua presença a mesma autoridade que em tua ausência75.

O tom poético busca enaltecer o príncipe que não se entrega às seduções de seu poder absoluto sobre os seus comandados. Mas em contraste com essa passagem do Panegírico a análise do epistolário contido no já citado livro X das Cartas, confirma um acentuado 71 PLÍNIO, op. cit., 10, 1. 72 Ibid., 53, 1. 73 ENGEL, 1978, p. 63-67. 74 PLÍNIO, Panegírico, 59, 5 75 Ibid., 19, 1, 2.

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grau de submissão e centralização da administração provincial76. Todavia, a forma de governar as províncias durante o período imperial é entendido como superior àquele utilizado durante a República77, quando muitas vezes elas eram vistas apenas como um território conquistado, cujas riquezas invariavelmente serviam mais para enriquecer e prestigiar seus governadores sedentos de poder pessoal do que para alimentar a reais necessidades de Roma. Dentro desse sentido de evolução administrativa, no qual os governadores das províncias reportavam-se diretamente ao príncipe que lhe dera o cargo, criando assim uma forma mais racional de administração, devemos entender a construção de Plínio sobre a relação do príncipe com seus legados como a exaltação de um sistema mais harmonioso que não mais favorecia apenas os oligarcas da Urbe, mas sim todos os cidadãos do império sob o benéfico patronato do imperador que é inclusive apresentado como fonte da auctoritas de seus clientes que o auxiliavam na tarefa de gerir o mundo romano. É o que Plínio sublinha ao afirmar que “mais de um devia um acréscimo de respeito ao respeito que tu lhe testemunhava”78. Essa postura de patrono por parte do príncipe foi muito importante para a manutenção da estrutura política e social do império, que significou uma extensão do tradicional sistema de organização social romano para além de suas fronteiras. Esse movimento centrífugo ampliou a área de atuação das relações de patronato do Principado que passaram a integrar de forma mais abrangente, em sua base, camadas mais vastas das populações provinciais, que cada vez mais tiveram acesso ao estilo de vida romano por meio do processo de urbanização que teve lugar durant,e o Alto Império. As elites locais por sua vez alcançaram mais representação política através do desenvolvimento econômico verificado fora da Itália e pela distribuição dos direitos de cidadania que as equiparavam juridicamente com as famílias tradicionais da Urbe. Todo esse sistema de integração mais amplo completava-se com a figura do príncipe, que do vértice dessa estrutura piramidal era entendido como o responsável pela boa 76 HARVEY, 1987, p. 403. 77 PETIT, 1989, p. 128-131. 78 PLÍNIO, op. cit., 19, 2.

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condução do império79. Sua atuação decisiva nesse processo se dava quando suas ações contribuíam para esse desenvolvimento, e é essa imagem de Trajano que Plínio busca ressaltar quando aponta as obras do príncipe. Semelhante a um congiário perpétuo é, em minha opinião a abundancia da anona. O cuidado que outrora lhe deu Pompeu não adicionou menos a sua glória do que ter expulsado a intriga do Campo de Marte, livrado o mar dos piratas, desfilado seus triunfos do Oriente e do Ocidente. Ele não foi melhor cidadão que nosso pai quando por sua autoridade, suas opiniões, sua boa fé ele abre as rotas, escava portos, restabelece os caminhos por terra, dos rios ao mar, do mar aos rios, e religa as diversas nações por tal comércio que os produtos de um local qualquer parecem pertencer a todos os países80.

No início da citação a comparação com Pompeu apresenta-se muito esclarecedora no sentido de enaltecer feitos de infraestrutura em detrimento de façanhas militares. Neste ponto é valorizada uma característica do Alto Império, a pax romana, cuja tranquilidade que trouxe ao interior do império contrastava acentuadamente com as perturbações das guerras civis da República tardia. Parecenos que Plínio quer dizer que os romanos já haviam entendido que a belicosidade revertia-se mais em benefício individual para os generais ambiciosos do que para as populações do império que estariam mais preocupadas em usufruir da integração comercial que o príncipe poderia lhes fornecer. Nesse sentido, a auctoritas do imperador é vista como fonte de poder para intervir amplamente nas estruturas do império e beneficiar as populações sob o seu patronato, cumprindo um papel que em sua essência tinha a responsabilidade de suprir necessidades básicas de seus clientes, especialmente monetária e alimentar no caso dos mais humildes. Por isso os benefícios oferecidos pelo príncipe são comparados de forma alegórica com um congiário, que era uma distribuição de dinheiro feito pelos imperadores em ocasiões específicas, substituído pela fartura da anona, órgão imprescindível para o bem estar e a estabilidade de Roma. A anona, grosso modo, era responsável pelo abastecimento de trigo na Urbe, e desde os tempos 79 ALFÖLDY, 1987, p. 131-146. 80 PLÍNIO, Panegírico, 29, 1, 2.

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republicanos era destinada especialmente à massa da população pobre. Essa distribuição alternou períodos em que foi feita a preços módicos e gratuitamente81. Esse dispositivo de assistência era importante para evitar descontentamentos populares que levassem a instabilidade política. Por sua importância política capital, usar a ideia da anona como representação de fartura vivida nos tempos em que Plínio profere O Panegírico significa ilustrar com uma instituição propriamente romana a condição favorável que na sua visão todo o império gozava, no qual as periferias não mais eram apenas fonte de abastecimento da Urbe, mas sim beneficiárias das políticas integradoras do Principado, porque “as colheitas não são como espólios de guerra que irão apodrecer em nossos depósitos, arrancados dos aliados que clamam justiça”82. Por isso Plínio enaltece a política de impostos racionais nas províncias e os pagamentos justos aos cereais destinados à anona, fazendo com que a abundancia em Roma não provocasse a fome nas demais regiões do império83. E ao falar do socorro que Trajano ofereceu ao Egito por ocasião de uma seca84 que sofria este tradicional e orgulhoso celeiro de Roma ele buscou exaltar a auctoritas de um príncipe que governava para o bem de todos. A busca de aproximar os processos do governo de Trajano com o funcionamento próprio dos tempos republicanos ocorre na descrição de como o príncipe abre mão de um papel centralizador para favorecer os direitos e a auctoritas dos demais magistrados que o auxiliavam na administração do império. Segundo Plínio Nenhum magistrado viu por ele seu direito, nenhum sua autoridade diminuída; ele os aumentava inclusive, reenviando a maior parte de negócios aos pretores, e fazia isso os chamando de seus colegas, não para ser popular e agradável a quem o ouvia, mas porque tal era seu sentimento85.

81 HARVEY, 1987, p. 40-41. 82 PLÍNIO, Panegírico, 29, 3. 83 Ibid., 29, 5. 84 Ibid., 30. 85 PLÍNIO, Panegírico, 77, 4.

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O comportamento do príncipe apresenta-se de acordo com a percepção de que com a dinastia Antonina, iniciada com Nerva e Trajano, ocorreu uma restauração senatorial86. Nesse período o imperador louvado por Plínio estabeleceu boas relações com a cúria, opondo-se sistematicamente às políticas adotadas por Domiciano. Aboliu condenações à morte, delações, abriu mão de confiscos, valorizou os magistrados e assistiu às sessões no Senado. Essa abertura ao livre funcionamento das instituições republicanas favorecia a libertas dos cidadãos sob um regime que centralizava as diversas prerrogativas de poder nas mãos do príncipe. Porém, convém relativizar a propaganda sobre o grau de autonomia das delegações de Trajano levando em consideração o que já destacamos sobre a postura submissa de Plínio em relação à tomada de decisões durante seu governo na Bitínia. Sem duvidar da sinceridade de Plínio87, devemos considerar a sucessão de imperadores autoritários que não observaram a noção de princeps que os devia aproximar aos demais senadores ao mesmo tempo em que ficariam acima destes pelas qualidades pessoais que os habilitariam a governar o império. Por isso ele afirma que Trajano é “igual a todos, e maior somente porque é melhor”88. Nesse sentido as relativas liberalidades de Trajano para com o Senado são celebradas com alegria e esperança de que o regime não decline mais para a tirania e que a auctoritas não seja apenas patrimônio do príncipe, mas de todos os membros da cúria como garantia de equidade e segurança. Plínio celebra essa concessão de libertas e auctoritas ressaltando a perspectiva de autonomia na qual o exercício do consulado sob Trajano promete ocorrer, e devido a isso ele destaca sua responsabilidade perante uma situação favorável para atuar como homem político em consonância com as tradições ancestrais. Mas o que é preciso louvar mais do que tudo é que tu deixas ser cônsules aqueles que tu fez cônsules; é que do príncipe não vem nenhum perigo, nenhum temor que enfraqueça ou abata os corações dos cônsules; eles não terão que ouvir nada contra sua vontade, nada a decidir por força. Esta magistratura conserva 86 HOMO, 1950, p. 301-311. 87 DURRY, 1972, p. 87. 88 PLÍNIO, Panegírico, 21, 4.

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e conservará a veneração que lhe é devida e no exercício de nossa autoridade não perderemos nada de nossa segurança. E se por acaso o consulado perder sua alta dignidade, isso será nossa falta e não do nosso século. Pois pelo direito que é de nosso imperador, temos o direito de ter o papel de cônsul como os cônsules antes dos imperadores. Como igualar nosso reconhecimento aos teus benefícios? A única maneira será lembrarmos sempre que fomos cônsules, e teus cônsules, de ter sentimentos e votos dignos de consulares, de nos ocupar da coisa pública de maneira a acreditar que a República existe, de não recusar nem nossos conselhos nem nossa ajuda, de não nos julgar nem nos livrar, nem, por assim dizer nos aliviar do consulado, mas por assim dizer a ele permanecer ligados e comprometidos, e de continuar a oferecer tanto trabalho e zelo quanto nós recebemos em honra e dignidade89.

O longo trecho oferece-nos um retrato singular das relações entre o Senado e o príncipe e expõe a complexidade em que estavam envolvidas as instituições nesse período e nos ajuda a entender em que medida a auctoritas era uma noção condicionada à necessidade de uma convivência harmoniosa entre Senado e imperador. A ambiguidade do discurso de Plínio esforça-se para dar coerência a uma situação em que duas realidades excludentes procuram se justificar por meio de uma relação interdependência. Já dissemos acima que durante o Alto Império o príncipe indicava seus candidatos ao consulado, que por sua vez eram referendados pela cúria. Essa situação incomoda é atenuada por Plínio que enaltece o fato do imperador dar liberdade aos cônsules por ele indicado, ou seja, ele nega que seus candidatos sejam seus instrumentos no interior do Senado, atuando debaixo de coação. Ao contrário disso, segundo ele, a magistratura conserva em seus valores tradicionais, a autoridade, a dignidade e a responsabilidade para aqueles que a exercem dentro dos moldes republicanos. Entretanto, a evocação da República não buscava excluir a ideia da necessária presença do Principado que se expressa, sobretudo na importância de um imperador que permite o livre funcionamento das instituições tradicionalmente aceitas na Urbe. Mas sem esquecermos que o Panegírico é mais um discurso de propaganda do que uma crônica fidedigna da época é possível perceber por meio das informações a respeito do funcionamento 89 PLÍNIO, Panegírico, 93.

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do consulado na época imperial e das atividades de Plínio após pronunciá-lo no ano 100 d. C. uma adequação do consulado às demandas administrativas do Principado. Nesse sentido destacamos seu caráter honorífico e sua perda de importância durante a época imperial90 quando suas principais prerrogativas ligadas às atividades governamentais e aos comandos militares encontravam-se nas mãos do imperador. Outro fato relevante é que Plínio exerceu essa magistratura como cônsul suffectus, ou seja, substituto. Na época republicana a duração do cargo era de um ano91, mas durante o Principado os mandatos eram reduzidos a períodos de seis meses ou menos92, talvez esse fosse um expediente para constituir um número suficiente de homens honrados com a mais alta magistratura para atuarem nas importantes funções da administração do império como o caso de Plínio nos faz suspeitar. De fato Plínio teve um mandato curto como cônsul comprimido entre o dia 1 de setembro e o dia 31 de outubro do ano 100 d. C.93, período em que provavelmente manteve-se como um dos prefeitos do Erário de Saturno94, depois foi curador do Tibre, augur, e finalmente em 111 d. C. foi enviado como governador à Bitínia como legatus pro praetore consularis potestate95, ou seja, ele levou para a província a ser governada o poder consular do qual ele já fora investido anteriormente. Todavia, isso não retira a importância que a tradição havia conferido a essa magistratura, pois ainda que durante o Principado ela possa ser considerada como uma etapa de praxe na escalada dos cargos da administração imperial o fato dos legados do príncipe a exercerem expressa sua relevância como forma de investi-los de uma auctoritas que era advinda deles próprios, da indicação imperial e exercício correto do consulado. Nesse sentido, a ideia que Plínio procura fixar é que no interior das relações de poder estabelecidas durante o Principado 90 HARVEY, 1987, p. 139. 91 CORASSIN, 2001, p. 28. 92 HARVEY, op. cit, loc. cit. 93 DURRY, 1972, p. V. 94 Tesouro do Estado 95 DURRY, op. cit., p. VI.

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o imperador era a fonte de poder e auctoritas, a providência contra o retorno dos distúrbios que degradaram a República e se prolongaram além dela sob o governo dos maus príncipes. Todavia, porém sem prejuízo da construção anterior, para Plínio, as instituições que haviam guiado Roma dos tempos antigos à grandeza do império são apresentadas como salutares e necessárias para a manutenção da ordem social romana, desde que sob elas os homens vivessem com honestidade e moderação, observando os costumes ancestrais da aristocracia romana reunida na ordem senatorial que, pelo paradoxo que o Principado impunha, apoiava com a sua auctoritas enquanto era sustentada pela auctoritas pela qual princeps estava investido. Considerações finais Conforme procuramos nos aproximar das ideias morais de Roma percebemos que seu entendimento dentro do contexto, social e econômico são essenciais para compreendermos o funcionamento das instituições políticas que compunham as estruturas do Estado romano. Percebemos que por cada transformação atravessada pelos romanos estavam presentes essas noções que os orientavam em seu modo de organização social, atuando em favor ou contra a manutenção da ordem vigente. E foi devido a essa flagrante importância que procuramos ressaltar a noção de auctoritas na época do Principado, quando a inovação do sistema político exigiu que a propaganda imperial utilizasse de meios disponíveis para respaldar a posição dos governantes. Diante isso o Panegírico de Trajano de Plínio, o Jovem apresentouse após nossa análise como uma fonte esclarecedora sobre como a auctoritas era afirmada tanto na figura do imperador quanto na do Senado e dos funcionários a serviço da administração do mundo romano para ilustrar a idealização de um governo no qual era buscado o entendimento entre o imperador e a aristocracia senatorial por meio de reminiscências da República e do enaltecimento de suas instituições que em tese permaneciam ativas, mas que eram paulatinamente desrespeitadas sob os príncipes propensos a governar de forma tirânica. Ou seja, percebemos que na concepção pliniana a auctoritas não era e não deveria ser monopólio do príncipe. Diante da realidade da centralização Plínio buscou mostrar que essa noção era uma das

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fontes geradoras de poder e importância sob o Principado, e sendo ela atributo também dos demais cidadãos de Roma deles dependia a preeminência do princeps, que como patrono a redistribuía em benefícios daqueles que colaborassem para a grandeza de Roma. Devido à proposta restauradora do Principado em face da necessidade da construção de uma nova realidade política, a ambiguidade do regime explicitou-se na exaltação dessa ideia tradicional, porém adequada às exigências que se impunham para a manutenção centralizada do poder nas mãos dos césares, ora exclusivamente conforme afirmou o testamento político de Augusto, ora partilhada entre o príncipe e as camadas retoras da sociedade romana que o apoiavam, como no discurso político de Plínio presente no Panegírico. Nele a natureza propagandística da obra é relativizada pelo enaltecimento da noção de auctoritas por meio do respeito aos hábitos ancestrais caros a aristocracia senatorial, herdeira do mos maiorum que expressava a relativa permanência das instituições republicanas. E esse apego ao passado, porém necessariamente adequado às novas condições exalta a auctoritas de Trajano devido a sua adoção como novo imperador por meio de uma escolha que afastava a execrada hereditariedade do poder e aproximava da política da Urbe as elites provinciais representantes da expansão do sistema romano por todo o império, cujo controle centralizado nãos mãos do príncipe não deveria ser para este motivo de regozijo e vaidade pessoal, mas sim a tomada de consciência de uma responsabilidade tão grande e importante quanto eram os domínios de Roma. E essa função grandiosa, da qual a auctoritas era causa e consequência, demandava, por parte do césar, conforme Plínio procurou mostrar, o respeito e a autonomia dos legados que eram também portadores dessa noção por serem os representantes do príncipe e a imagem da Urbe por todo o império. Na pessoa deles o sistema de patronato estendia-se desde Roma até o limes, e o fortalecimento da administração imperial era consequência do beneplácito do pai da pátria, pleno de auctoritas, em retribuição ao apoio recebido de seus clientes que eram favorecidos pelas obras, pelo comércio e políticas fiscais que atendiam seus interesses. E no plano político o mesmo sistema atuava em sinergia com o exercício das tradicionais magistraturas, o que consistia na subsistência parcial, porém concreta das instituições da República

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que sob o Principado contribui para dar à noção de auctoritas os contornos que Plínio, o Jovem apresentou no Panegírico de Trajano. Portanto, o funcionamento das relações entre o imperador, a ordem senatorial composta pelos colaboradores administrativos de Roma e as demais camadas sociais do império apresentadas na obra de Plínio puderam ser mais bem compreendidas conforme as analisamos a partir do entendimento da função que a ideia moral e política auctoritas desempenhava no interior da sociedade romana. Nela, durante o Principado, a permanência das tradições ancestrais expressadas na exaltação desse e de demais valores caros à ordem senatorial foi importante para a adequação a uma nova forma mentis, na qual os interesses da cúria e da aristocracia deveriam convergir para a aceitação por parte de seus componentes de um sistema político que, diferente do anterior, os manteria afastados de posições preeminentes na condução dos negócios do Estado romano. No Panegírico de Trajano vemos a noção de auctoritas apresentada como negadora de um sistema completamente centralizado e também como um elemento da construção política do Principado que buscava sua consolidação por meio do estabelecimento de um modus vivendi.

IX Interpretatio e o domínio romano na Lusitânia: O caso dos Lares do Fórum de Conimbriga

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Raquel de Morais Soutelo GOMES1

Península Ibérica entrou sob domínio romano por volta de 206 a.C, sendo somente divida em duas províncias no ano de 197 a.C, quando são criadas a Hispânia Citerior e a Hispânia Ulterior. Contudo, nessa época de conquista e durante o período republicano são poucas as políticas feitas acerca do novo território, e a terra e seu povo estavam abertos para a exploração daqueles com poder2; uma situação que só foi modificada com 1 Mestranda em Arqueologia pela Universidade do Minho, Portugal. Este capítulo é fruto de uma pesquisa da graduação da autora deste intitulada Práticas de interpretatio na Lusitânia Romana: O caso de Conimbriga, vinculada ao projeto Religio Romana: uma análise das instituições religiosas romanas em discursos tardo-republicanos da Professora Doutora Claudia Beltrão. Orientadora: Professora Doutora Claudia Beltrão da Rosa (UNIRIO). E-mail: raqueldemsgomes@ hotmail.com. 2

MIERSE, W. Temples and Towns in Roman Iberia: the social and architectural dynamics of sanctuary designs from the third century B.C to the third century A.D. Berkeley: University of California Press, 1999, p.1.

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Augusto que alterou os cursos políticos e administrativos do Império, ao criar nessa península três províncias: a Tarraconensis, a Bética e a Lusitânia3. Nessas novas províncias, agora reorganizadas por Augusto iniciaram-se grandes programas de obras públicas que adequaram as cidades ao plano de construção da malha urbana romana4, o que encorajou ainda mais o processo de romanização, que consistia em um: “[...] processo de mudança sociocultural, multifacetada em termos de significados e de mecanismos, que teve início com a relação entre os padrões culturais romanos e a diversidade cultural provincial em uma dinâmica de negociação bidirecional”5.

E como ferramenta para essa romanização, foi utilizada a religio romana, um elemento que fazia parte da identidade romana6e que representava uma forma de sedimentar a solidariedade entre seus membros e manter a pax deorum (paz com os deuses)7. Nesta, os deuses eram considerados como pertencentes à mesma comunidade que seus adoradores, o que veio a possibilitar a entrada de novos cidadãos na sociedade romana e de novos deuses no panteão8. Assim, para os romanos, os deuses de todos os povos eram verdadeiros9, e podiam ser, dessa maneira, incorporados à religio romana, o que transformou esta em um potente instrumento de representação do poder romano e símbolo do Império. Desse 3 Ibid., p.54. 4 Ibid., p.55. 5

BUSTAMANTE, R.; DAVIDSON, J; MENDES, N. A experiência imperialista romana: teorias e práticas, Tempo 18, 2005, p.41. Disponível em: http://www. historia.uff.br/tempo/site/.

6

BELTRÃO, C. Religião na Urbs. In: MENDES, N.; SILVA, G. (orgs.). Repensando o Império Romano: perspectivas socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad, 2006, pp. 137.

7

BUSTAMANTE, R. Práticas culturais no Império Romano: entre a unidade e a diversidade. In: Ibid., p. 117.

8

SCHEID, J. An introduction to Roman Religion. Blomington: Indiana University Press, 2003, p. 18-20.

9

VEYNE, P. Tranquilizações. In: ARIÈS, P; DUBY, G (dirs.). História da Vida Privada. Vol.1. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 190 (Coleção História da Vida Privada).

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modo, ao ser difundida pelo território e ao encontrar novas realidades religiosas que lhe foram assimiladas e incorporadas, muitos de seus deuses e deusas sofreram interpretatio, ou seja, a “[...] identificação dos deuses indígenas a equivalentes romanos e a latinização das denominações das deidades nativas”10. E é este o fenômeno que será utilizado como índice para analisar a relação dos lusitanos (mais especificamente dos habitantes de Conimbriga e dos viajantes que ali chegavam) com o domínio romano, feito a partir da observação destas práticas de interpretatio representadas nas árulas dedicadas aos Lares, datáveis dos séculos I, II e III d.C, que foram encontradas no Fórum da cidade de Conimbriga na Lusitânia. Conimbriga, localizada a 15 km (quinze quilômetros) da atual cidade de Coimbra, Portugal era, antes do domínio romano, um povoamento indígena celtizado habitado desde os séculos VIII a.C e VII a.C11. Sua conquista ocorreu no âmbito das campanhas militares de Décimo Júnio Bruto em 137-136 a.C (data aproximada), que começou sua empreitada de Olisipo (atual Lisboa) em direção a Bracara Augusta (atual Braga) para incorporar este território formalmente ao Império Romano12. Contudo, são poucos os vestígios no terreno de mudanças entre o período da integração e o da reforma augustana13. O momento decisivo para a transformação de Conimbriga em cidade romana coloca-se,

10 MENDES, N; OTERO, U. Religiões e as Questões de Cultura, Identidade e Poder no Império Romano, Phoînix XI, Rio de Janeiro, 2004, p. 202. 11 ALARCÃO, J; ETIENNE, R; ALARCÃO, A; PONTE, S. Trouvailles Diverses – Conclusions Générales. In: ALARCÃO, J; ETIENNE, R. (dirs.). Fouilles de Conimbriga. Vol.7. Paris: Boccard, 1979, p. 249. 12 ALARCÃO, J; ETIENNE, R. Conimbriga, cidade da Lusitânia. Separata de: Revista de Arqueologia 2, Porto, Dezembro de 1980, p. 3. 13 PESSOA, M. Subsídios para a carta arqueológica do período romano na área de Conimbriga. In: Conimbriga XXV, Coimbra, 1986, p. 53-73 apud CORREIA, V. H; DE MAN, A. Variação e constância na ocupação de Conimbriga e do seu território. In: VERMEULEN, F; CORSI, C. CHANGING LANDSCAPES: THE IMPACT OF ROMAN TOWNS IN THE WESTERN MEDITERRANEAN, 2010, Castelo de Vide - Marvão. Proceedings of the international colloquium. Bologna: AnteQuem, 2010, p.299.

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então, sob Augusto14 quando tem o seu urbanismo remodelado com a construção de monumentos públicos como as termas, o aqueduto, a muralha e o Fórum, situado no centro da cidade15. Foi apenas na época dos Flávios, que esta recebe o status de município romano, ganhando um novo programa de obras públicas, que além de remodelar a cidade, destrói o antigo Fórum augustano e cria um novo que se dedicou a função religiosa com seu templo dedicado ao Culto Imperial16. Logo, trabalhamos com os períodos em que a presença romana se intensifica no local, ou seja, após as transformações urbanísticas júlio-claudianas e flavianas, tendo como foco as epígrafes que se encontram no coração da cidade, o Fórum. Um monumento que se adequou não só às necessidades romanas, mas também às indígenas, sendo modificado de acordo com cada momento que a cidade vivenciou. E dentre a gama de epígrafes encontradas neste Fórum, analisaremos duas árulas através da metodologia proposta por Encarnação17 complementada pela observação das fichas epigráficas dos Fouilles de Conimbriga18. Ambas as epígrafes envolvem o culto às divindades tutelares, Lares, um culto que apresenta aspectos tanto romanos quanto lusitanos e que teve uma boa acolhida pelas províncias da Península Ibérica19. 14

ALARCÃO, J. Portugal das origens à romanização. In: MARQUES, A; SERRÃO, J. (coords.). Nova História de Portugal. Vol.1. Lisboa: Presença, 1990, p. 388.

15 ALARCÃO, J; ETIENNE, R. Conimbriga, cidade da Lusitânia. Separata de: Revista de Arqueologia 2, Porto, Dezembro de 1980, p. 4-5. 16 ALARCÃO, J. Portugal das origens à romanização. In: MARQUES, A; SERRÃO, J. (coords.). Nova História de Portugal. Vol.1. Lisboa: Presença, 1990, p. 473. 17

ENCARNAÇÃO, J. Epigrafia: As pedras que falam. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010b, p.183-190.

18 ETIENNE, R; FABRE, G; LÉVÊQUE, M; LÉVÊQUE, P. Épigraphie et Sculpture. In: ALARCÃO, J; ETIENNE, R. (dirs.). Fouilles de Conimbriga. Vol.2. Paris: Boccard, 1976. 19 BELTRÁN LLORIS, F. Culto a los lares y grupos de parentesco em la Hispania Indo-Europea. In: GÓMEZ PALLARES, J; MAYER, M (coords.). RELIGIO DEORUM, 1983, Barcelona. Actas del Coloquio International de Epigrafia “Culto y Sociedad em Occidente”. Barcelona: Editorial Ausa, 1983, p. 63.

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Flávia Conimbriga e seus Lares A primeira epígrafe a ser analisada se encontra atualmente no Museu Monográfico de Conimbriga (Inv. 67.380) e consiste em uma árula com uma moldura saliente sobre os quatro lados sobremontado por um fastigium enquadrado por dois toros lisos. Seu fuste é em forma de paralelepípedo e está destruído à esquerda, à direita e na parte inferior, deixando o campo epigráfico truncado20(vide imagem 1).

Imagem 1: Árula dedicada a Flávia Conimbriga e seus Lares. Fonte: Matriznet: Colecções do IMC (Base de dados do Instituto dos Museus e da Conservação): http://www. matriznet.imc-ip.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar. aspx?IdReg=106704 Transcrição e desdobramento: FL(aviae) • CONIMBRICĀ(ẹ)21 / ẸT • LARIB(us) • EIV[s]/ [..i]VS FAVSTV[s]/ [A(nimo) L(ibens) 20 ALARCÃO, J; ETIENNE, R; FABRE, G. Le culte des Lares à Conimbriga (Portugal). In: Comptes-Rendus des séances de l’Académie des inscriptions et Belles-Lettres, [S.l], 113e année, N.2, 1969, p. 213-214; ETIENNE, R; FABRE, G; LÉVÊQUE, M; LÉVÊQUE, P. Épigraphie et Sculpture. In: ALARCÃO, J; ETIENNE, R. (dirs.). Fouilles de Conimbriga. Vol.2. Paris: Boccard, 1976, p. 29. 21 O nexo envolve as letras A e E.

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V(otum) S(olvit) vel V(otum) S(olvit) L(ibens) M(erito)]//22. Tradução: A Flávia Conimbriga e seus Lares, (..)ius Faustus (cumpriu o voto corretamente de bom grado)23 (tradução da autora)24.

Seguindo a metodologia mencionada, iniciaremos a discussão sobre o tipo de suporte, que, como já foi dito, se trata de uma árula, portanto tem pequenas dimensões. Sendo assim, esta tem todas as características básicas deste suporte, definidas por Encarnação25, pois possui um fuste encimado por um frontão triangular sem fóculo que é circundado por dois toros não decorados. Seu fuste e seu capitel, como é possível ver pela imagem (imagem 1), não são decorados (pelo menos não possui nenhum desenho gravado na pedra o que não impede a hipótese de que ela fosse pintada), assim a atenção do público tem como foco somente a face do campo epigráfico, ou seja, a inscrição. Outro ponto a ser discutido é o material que a compõe, já que esta informação pode nos indicar algo a mais sobre a importância do culto e o status do dedicante. Neste caso, a epígrafe é feita de calcário proveniente de Porto de Mós26, que se encontra a 70 km (setenta quilômetros) de Conimbriga, o que demonstra uma grande importância dada a esse culto por parte do dedicante, e que este, por sua vez, tinha uma condição financeira melhor do que os dedicantes de outras árulas encontradas no Fórum feitas de calcário local que é de fácil acesso e com certeza mais barato nas oficinas epigráficas. A seguir, é preciso analisar o contexto arqueológico no qual 22 Ibid, loc. cit. 23 Ibid, loc. cit. 24 A Flavia Conimbriga et à sés Lares ...ius Faustus (a accompli ce voeu de bon gré et à juste titre). 25 ENCARNAÇÃO, J. Introdução ao Estudo da Epigrafia Latina. Coimbra: Gráfica de Coimbra Ltd., 1997. 26 ETIENNE, R; FABRE, G; LÉVÊQUE, M; LÉVÊQUE, P. Épigraphie et Sculpture. In: ALARCÃO, J; ETIENNE, R. (dirs.). Fouilles de Conimbriga. Vol.2. Paris: Boccard, 1976, p. 29; ALARCÃO, A. Coleccções do Museu Monográfico de Conimbriga: Catálogo. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1984, p. 118.

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foi encontrada que neste caso é o interior do Fórum, no setor 12/13 do que era o Criptopórtico flaviano, estando cercada pelos destroços do Pórtico que estava acima desta área e pela cabeça colossal de Augusto, que possivelmente pertencia ao templo do Culto Imperial que se encontrava próximo dali27. Um local onde possivelmente se encontrava um templete ou uma câmara vizinha ao Templo Imperial28, afinal, de acordo com Buá�, alguns epítetos formados a partir de topônimos, como é o caso desses deuses que implicitamente são Lares Conimbricenses (subentendido pela expressão laribus eius29), podem assinalar um templo àquela divindade. O que, associado a sua proximidade ao Templo do Culto Imperial, indica que ele estava extremamente ligado a este culto30, ou até mesmo que fazia parte deste. Quanto à datação, final do século I d.C e início do século II d.C, podemos dizer que nesse momento a cidade havia acabado de ganhar o status municipal e estava passando por outro grande programa de obras públicas, que a transformou e ampliou o espaço de culto tirando as funções política e comercial do interior do Fórum, que passou a ser dedicado ao Culto Imperial31. Assim, podemos ver que esta epígrafe é produto de um contexto de mudanças significativas na cidade, que a adequou ao status de municipium32, e que podia representar uma forma de afiliação ao poder romano que gerou aquele desenvolvimento, por isso esta 27 ALARCÃO, J; ETIENNE, R; FABRE, G. Le culte des Lares à Conimbriga (Portugal). In: Comptes-Rendus des séances de l’Académie des inscriptions et Belles-Lettres, [S.l], 113e année, N.2, 1969, p. 231. 28 Ibid, loc.cit. 29 RIBEIRO, A. Manifestações particulares de Devoção: As Árulas de Conimbriga. In: RIBEIRO, J. (Ed.). Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 2002, p.196. 30 ALARCÃO, J; ETIENNE, R; FABRE, G. Le culte des Lares à Conimbriga (Portugal). In: Comptes-Rendus des séances de l’Académie des inscriptions et Belles-Lettres, [S.l], 113e année, N.2, 1969, p. 231. 31 CORREIA, V. O forum de Conimbriga e a evolução do centro urbano. In: BASSARATE, T. (ed.). Cidade e Foro na Lusitânia romana. Zaragoza: Junta de Extremadura, 2010, p. 95 (Studia Lusitania, 4). 32 ALARCÃO, J; ETIENNE, R. Conimbriga, cidade da Lusitânia. Separata de: Revista de Arqueologia 2, Porto, Dezembro de 1980, p. 6.

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ligação deste culto tópico com o Culto Imperial simbolizava talvez a nova situação conimbricense de hibridização entre o local e o romano. Assim, após discutir todos os aspectos externos da epígrafe, nos cabe analisar a inscrição. Comentaremos, então, as características paleográficas desta e contextualizaremos seu texto para que, assim, consigamos entender o momento em que foi criada essa epígrafe, o sucesso que o culto aos Lares interpretados teve nessa localidade e o relacionamento dos conimbricenses com Roma. Em relação, então, às características das letras e a forma de gravação, podemos dizer que o ordinator33 que pensou como encaixar esta inscrição neste pequeno suporte, tinha muita destreza em seu ofício34. Segundo Etienne et al.35, ele conseguiu conciliar três tipos de letras de dimensões diferentes e procurou criar uma simetria de linha a linha e dentro das palavras para que a inscrição ficasse mais harmoniosamente possível disposta no campo epigráfico, o que indica também, a nosso ver, um trabalho caro, no qual o paginador teve que pensar muito em como encaixar este grande texto em tão pequeno suporte, o que novamente indica uma boa condição financeira do dedicante. E, para partirmos para o nosso comentário histórico acerca desta epígrafe, é preciso notar que ela não nos apresenta todas as informações descritas por Encarnação para inscrições de cariz votivo36. Segundo este autor, as epígrafes usualmente nos oferecem dados como: o nome da divindade em dativo, o nome do dedicante, o motivo da dedicatória e a fórmula final consacratória, 33 Conhecido também como paginador, este é o encarregado de fazer a distribuição do texto no campo epigráfico (ordinatio, paginação). É comum que, na maioria das oficinas, o paginador não fosse o lapicida (etimologicamente, o que corta a pedra), sendo que este se limitaria a gravar o texto na pedra conforme o modelo criado pelo ordinator (ENCARNAÇÃO, J. Introdução ao Estudo da Epigrafia Latina. Coimbra: Gráfica de Coimbra Ltd., 1997, p. 8, passim). 34 ETIENNE, R; FABRE, G; LÉVÊQUE, M; LÉVÊQUE, P. Épigraphie et Sculpture. In: ALARCÃO, J; ETIENNE, R. (dirs.). Fouilles de Conimbriga. Vol.2. Paris: Boccard, 1976, p. 29. 35 Ibid, loc. cit. 36 ENCARNAÇÃO, J. Epigrafia: As pedras que falam. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010b, p. 130-131.

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uma ausência que pode ser explicada devido a parte inferior estar desaparecida. Voltemo-nos, então, para os dados que ela nos fornece, primeiramente a quem é dedicada esta epígrafe, a Flávia Conimbriga e seus Lares, uma formação pouco usual para um teônimo, informando o nome da cidade e o nome da deidade vinculada a ela. Em primeiro lugar, trabalhemos com os Lares, divindades romanas que se veem aqui associadas ao deus protetor da comunidade indígena. Em Roma, no período republicano esses deuses eram conhecidos no singular, como o deus Lar, um deus tutelar37, protetor da família (Lar familiares), que além de proteger a casa, protege também as pessoas que ali habitam38. Protegia inclusive outros espaços físicos (topos) como, por exemplo, o campo e as encruzilhadas39. Contudo, a partir do Império seu teônimo passa a ser no plural, quando os Lares que protegiam as encruzilhadas (Lares Compitales), após a reforma de Augusto passam a ser os Lares Augusti40. São esses Lares que entram em contato com a Península Ibérica, onde são aceitos devido à sua semelhança ao culto tutelar tópico das divindades indígenas41. Para Beltrán Lloris42 e Portela Filgueiras43 37 GRIMAL, P. The concise dictionary of Classical Mytholog y. Oxford: Basil Blackwell Ltd, 1990, p. 238. 38 BELTRÁN LLORIS, F. Culto a los lares y grupos de parentesco em la Hispania Indo-Europea. In: GÓMEZ PALLARES, J; MAYER, M (coords.). RELIGIO DEORUM, 1983, Barcelona. Actas del Coloquio International de Epigrafia “Culto y Sociedad em Occidente”. Barcelona: Editorial Ausa, 1983, p. 62; FERNANDES, L. Genii, Lares e Tutela na Província da Lusitânia. In: RIBEIRO, J. (Ed.). Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 2002, p. 180. 39 PORTELA FILGUEIRAS, M. I. Los dioses Lares en la Hispânia Romana. Lucentum III. Alicante, 1984, p. 153. 40 Ibid., p. 154; SCHEID, J. An introduction to Roman Religion. Blomington: Indiana University Press, 2003, p. 165. 41 BELTRÁN LLORIS, F. Culto a los lares y grupos de parentesco em la Hispania Indo-Europea. In: GÓMEZ PALLARES, J; MAYER, M (coords.). RELIGIO DEORUM, 1983, Barcelona. Actas del Coloquio International de Epigrafia “Culto y Sociedad em Occidente”. Barcelona: Editorial Ausa, 1983, p. 63-67. 42 Ibid., p. 64-67. 43 PORTELA FILGUEIRAS, M. I. Los dioses Lares en la Hispânia Romana.

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a maior parte dos casos de culto aos Lares na Península Ibérica, claramente recobrem uma realidade indígena. Para esses autores, este é um dos cultos originalmente romanos que mais arraigaram na mentalidade indígena por serem tão semelhantes em funções e características a seus deuses. Assim, em Conimbriga, os Lares parecem ter uma interpretatio com o deus ou deuses indígenas que protegiam esta cidade antes da conquista romana. Hipótese que é corroborada pelo resto das palavras em dativo na inscrição, Flávia Conimbriga, ou seja, são mesmo os protetores da cidade, que agora é município flaviano. Logo, vemos um município flaviano de população mista que presta culto a divindades que associaram antigos deuses aos romanos, formando uma nova deidade híbrida que representava política e religiosamente a cidade e seus fiéis, afinal, um culto para sobreviver e ser aceito tem que ser próximo à realidade de seus adoradores. Como esta inscrição indica, a cidade, que é agora Flávia Conimbriga pode querer retribuir o que os Flávios fizeram pela cidade, assim podem ter o Imperador que lhes deu a municipalidade como uma espécie de fundador, como sugerido por Alarcão, Etienne e Fabre44, e assim, mostrar sua filiação ao domínio romano, o que nos leva a crer que mesmo que os Lares Conimbricenses apesar de não serem chamados de augustanos, sejam de fato Lares Augusti45. Esta hipótese pode ser comprovada pelo seu contexto arqueológico, afinal o Fórum, segundo Encarnação46 era um lugar de celebração dos deuses e dos heróis, e o templo do Culto Imperial, culto a este “herói”. Logo, esta hipótese concordaria com a premissa de Etienne, Fabre, Le Roux e Tranoy47 que os Lares Augusti tiveram uma associação a cultos Lucentum III. Alicante, 1984, p. 156. 44 ALARCÃO, J; ETIENNE, R; FABRE, G. Le culte des Lares à Conimbriga (Portugal). In: Comptes-Rendus des séances de l’Académie des inscriptions et Belles-Lettres, [S.l], 113e année, N.2, 1969, p. 232. 45 Ibid., p. 233. 46 ENCARNAÇÃO, J. Das inscrições em Foros de cidades do ocidente lusitano. In: BASSARATE, T. (Ed.). Cidade e Foro na Lusitânia romana. Zaragoza: Junta de Extremadura, 2010a, p. 124 (Studia Lusitania, 4). 47 ETIENNE, R; FABRE, G; LE ROUX, P; TRANOY, A. Les dimensions sociales de la romanisation de la Penínsule Ibérique des orígenes à la fin de l’Empire. In: ASSIMILATION ET RÉSISTANCE À LA CULTURE GRECO-ROMAINE DANS LE MONDE ANCIEN, 1976, Paris. Travaux de VI Congrès International

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indígenas tópicos, que já estavam presentes no costume ancestral do gênio tutelar da tribo. Logo, é um culto que simbolizaria a situação híbrida da cidade que passou para o domínio romano, mas não esqueceu seus costumes originais, associando-os a sua nova realidade. O que mostra que o Imperador Vespasiano, mesmo ao fazer as reformas, mantém a política de respeitar a cultura indígena e canaliza esse impulso religioso dos deuses tópicos até a ele mesmo, contribuindo dessa forma para a romanização, para a criação de novas deidades48 e para a aceitação da presença romana no território. Portanto, o culto aos Lares Conimbricenses mantém uma ligação ao Culto Imperial, o que explica a escolha daquele local do Fórum para colocar esta epígrafe, afinal, assim os habitantes, ao mesmo tempo em que cultuavam os deuses que protegiam a cidade, podiam mostrar sua afiliação ao Império. Desse modo, estes deuses também protegiam o Imperador que, por sua vez, assegurava o bem-estar e segurança dos membros do Império49. A outra informação que a inscrição nos oferece é o nome do dedicante, que como visto pelo material da epígrafe e pelo cuidado do ordinator ao fazer a inscrição, indica que este dedicante poderia ser uma pessoa com um status elevado na sociedade conimbricense. E de fato, a presença de um tria nomina com o final ius (que pode ser tanto Iulius quanto Flavius) no nomen associado ao cognomen Faustus leva-nos, primeiramente, a crer em um cidadão romano, mas a ausência da tribo e da filiação (que podem não aparecer porque a inscrição está quebrada) nos faz crer que o dedicante fosse um liberto50. Uma hipótese plausível, já que este culto aos Lares Augusti quando fundado por Augusto, permitiu d’Études Classiques. Paris: [s.n], 1976, p. 102-104 apud PORTELA FILGUEIRAS, M. I. Los dioses Lares en la Hispânia Romana. Lucentum III. Alicante, 1984, p. 162. 48 PORTELA FILGUEIRAS, M. I. Los dioses Lares en la Hispânia Romana. Lucentum III. Alicante, 1984, p. 156. 49 EDMONDSON, J. The cult of Mars Augustus and Roman Imperial Power at Augusta Emerita (Lusitania) in the third century A.D: a new votive dedication. In: NOGALES, T; GONZÁLEZ, J. CULTO IMPERIAL: POLÍTICA Y PODER, 2007, [s.l]. Hispania Antigua. Roma: L’Erma, 2007, p. 543 (Serie Arqueológica, 1). 50 ALARCÃO, J; ETIENNE, R; FABRE, G. Le culte des Lares à Conimbriga (Portugal). In: Comptes-Rendus des séances de l’Académie des inscriptions et Belles-Lettres, [S.l], 113e année, N.2, 1969, p. 215.

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que as classes populares, essencialmente os libertos exprimissem seu sentimento de ligação com o soberano, que, ao lado dos homens livres se contentavam ao honrar a cidade, seus Lares e seus Gênios51, ampliando desta forma a aceitação da hegemonia romana no seio da população indígena. Como visto, os cultos a divindades tópicas interpretadas tiveram muito sucesso nesta localidade e se mostraram um meio de promover a romanização, assegurar a aceitação do domínio romano e de representar a nova realidade religiosa local, que abarcava deuses antigos que foram identificados a equivalentes romanos. E também que o teônimo ao ter como epíteto o nome Flávia Conimbriga indica que esta poderia considerar como uma espécie de fundador, o Imperador Vespasiano, o que aproximaria este culto do Culto Imperial durante a intensificação do processo de romanização que ocorreu nas reformas flavianas. Contudo, como visto por Beltrán Lloris52 e Portela Filgueiras53 esta não é a única forma do culto dos Lares que foi interpretada a outras divindades tópicas indígenas. No caso do Noroeste da Península Ibérica, outros Lares com epítetos funcionais de proteger as estradas também podem ser casos de práticas de interpretatio54. Lares Viales Assim como a inscrição aos Lares Conimbricenses, outro altar dedicado aos Lares Viales também foi encontrado no Fórum. Este, encontrado atualmente no Museu Monográfico de Conimbriga (Inv. 67.381), consiste em uma árula com um capitel danificado na parte superior a cima com uma série de molduras ou cornijas em relevo, com um frontão com foculus quadrangular no topo e possivelmente dois toros (existem restos de um toro à esquerda). Faltam a parte direita e a parte inferior abaixo da linha 2 (dois) e está deteriorado à esquerda do campo epigráfico. Seu fuste é, sem 51 Ibid., p. 232- 234. 52 BELTRÁN LLORIS, F. Culto a los lares y grupos de parentesco em la Hispania Indo-Europea. In: GÓMEZ PALLARES, J; MAYER, M (coords.). RELIGIO DEORUM, 1983, Barcelona. Actas del Coloquio International de Epigrafia “Culto y Sociedad em Occidente”. Barcelona: Editorial Ausa, 1983, p. 63. 53 PORTELA FILGUEIRAS, M. I. Los dioses Lares en la Hispânia Romana. Lucentum III. Alicante, 1984, p. 163. 54 Ibid., loc. cit.

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dúvida, liso nos quatro cantos55 (vide imagem 2).

Imagem 2: Árula dedicada aos Lares Viales. Fonte: Matriznet: Colecções do IMC (Base de dados do Instituto dos Museus e da Conservação): http://www.matriznet.imc-ip.pt/MatrizNet/ Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=106762 Transcrição e desdobramento: LARIBV[s] / [v]ỊẠḶỊḄ(us) / ...?// 56. Tradução: Aos Lares protetores das estradas57 (tradução da autora)58.

55 ETIENNE, R; FABRE, G; LÉVÊQUE, M; LÉVÊQUE, P. Épigraphie et Sculpture. In: ALARCÃO, J; ETIENNE, R. (dirs.). Fouilles de Conimbriga. Vol.2. Paris: Boccard, 1976, p. 32. 56 Ibid., loc. cit. 57 Ibid., loc. cit. 58 Aux Lares protecteurs des routes.

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Nossa análise desta epígrafe, então, começa como a anterior pela observação do seu tipo de suporte no qual vemos novamente uma árula59, que, como a outra por causa de uma moldura saliente não parece que estava incrustada em nenhuma parede, podendo estar simplesmente apoiada, ou ainda mesmo, nem próxima da parede. Ela não possui decoração nas laterais e nem na parte traseira, sendo preenchida somente com a inscrição. Quanto ao seu material, é um calcário amarelado60, possivelmente presente na região que é rica em pedreiras de calcário, portanto seu material nos leva a crer que esta epígrafe não deve ter sido muito cara já que o material é da região e muito comum nas epígrafes da cidade, o que ao contrário da epígrafe analisada anteriormente não nos dá informações sobre o status do dedicante. Quanto ao seu contexto arqueológico, podemos dizer que é próximo ao da epígrafe de Flávia Conimbriga e seus Lares o que denota uma similaridade entre os dois cultos, corroborando os argumentos de Beltrán Lloris61 e Portela Filgueiras62, que acreditam que ambos os cultos (Lares tópicos e Lares das estradas) encobrem uma antiga realidade religiosa indígena que, a nosso ver, se associou a uma nova realidade de uma comunidade mista, e que levou à formulação de uma nova divindade interpretada, que refletia a nova situação conimbricense. Assim, 59 Ibid., loc.cit ; ALARCÃO, A. Coleccções do Museu Monográfico de Conimbriga: Catálogo. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1984, p. 131. 60 Ibid., loc. cit.; Ibid, loc. cit.; FERNANDES, L. Genii, Lares e Tutela na Província da Lusitânia. In: RIBEIRO, J. (Ed.). Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 2002, p. 184; RIBEIRO, A. Manifestações particulares de Devoção: As Árulas de Conimbriga. In: RIBEIRO, J. (Ed.). Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 2002, p.194. 61 BELTRÁN LLORIS, F. Culto a los lares y grupos de parentesco em la Hispania Indo-Europea. In: GÓMEZ PALLARES, J; MAYER, M (coords.). RELIGIO DEORUM, 1983, Barcelona. Actas del Coloquio International de Epigrafia “Culto y Sociedad em Occidente”. Barcelona: Editorial Ausa, 1983, p. 63. 62 PORTELA FILGUEIRAS, M. I. Los dioses Lares en la Hispânia Romana. Lucentum III. Alicante, 1984, p. 157.

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ela foi encontrada no setor 15 do Criptopórtico do Fórum flaviano63, onde se encontram resquícios do Pórtico que o encimava. Este altar possivelmente estava neste Pórtico, que caiu sobre o Criptopórtico que o sustentava, o que também poderia ter acontecido ao altar aos Lares Conimbricenses. E se estas se encontram naquela estrutura porticada, podemos dizer que ambas as epígrafes estavam em um local onde se guardava o aparato religioso do Templo do Culto Imperial, uma área de acesso difícil, não aberto e pouco diuturno64. Esses elementos podem indicar um dedicante com um status elevado que tivesse acesso a estas áreas, um magistrado local ou um sacerdote do Culto Imperial, o que é possível se pensarmos de acordo com Fishwick65, que acredita que outros possíveis locais de culto além do templo são os prédios que envolvem este Templo Imperial. Contudo, não são apenas estas informações que podemos retirar do contexto arqueológico. É importante novamente mencionar que essa epígrafe, assim como a outra, se encontra no centro, no coração da cidade66. Na verdade, observando a Planta Geral de Conimbriga67, vemos que esta epígrafe se encontra próxima 63 ETIENNE, R; FABRE, G; LÉVÊQUE, M; LÉVÊQUE, P. Épigraphie et Sculpture. In: ALARCÃO, J; ETIENNE, R. (dirs.). Fouilles de Conimbriga. Vol.2. Paris: Boccard, 1976, p. 32; RIBEIRO, A. Manifestações particulares de Devoção: As Árulas de Conimbriga. In: RIBEIRO, J. (Ed.). Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 2002, p.194. 64 CORREIA, V. O forum de Conimbriga e a evolução do centro urbano. In: BASSARATE, T. (ed.). Cidade e Foro na Lusitânia romana. Zaragoza: Junta de Extremadura, 2010, p. 96-99 (Studia Lusitania, 4). 65 FISHWICK, D. The Imperial Cult in the Latin West: Studies in the ruler cult of the Western provinces of the Roman Empire. Vol. II, N.1. Leiden: Brill, 1991, p. 523. 66 ALARCÃO, P; CORREIA, V. Conimbriga: um ensaio de topografia histórica, Conimbriga XLVII, Coimbra, 2008, p. 43; ENCARNAÇÃO, J. Das inscrições em Foros de cidades do ocidente lusitano. In: BASSARATE, T. (Ed.). Cidade e Foro na Lusitânia romana. Zaragoza: Junta de Extremadura, 2010a, p. 126 (Studia Lusitania, 4). 67 Cf. ALARCÃO, J; ETIENNE, R. L’Architecture. In: ALARCÃO, J; ETIENNE, R. (dirs.). Fouilles de Conimbriga. Vol.1. Paris: Boccard, 1977, Est. LII apud ALARCÃO, P; CORREIA, V. Conimbriga: um ensaio de topografia histórica, Conimbriga XLVII, Coimbra, 2008, Est. V.

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ao local onde as antigas ruas, vias do urbanismo pré-augustano e augustano passavam, logo, é possível que essa epígrafe tenha sido dedicada aos deuses que já protegiam esses caminhos e que sofreram interpretatio com os deuses Lares, tornando-se assim os Lares Viales. Outro dado referente à localização do achado é que este se encontra também em um local onde acontece a intersecção das vias romanas que vão para Aeminium (atual Coimbra), Sellium (atual Tomar) e Collipo (atual Batalha), assim ele não só protege esses caminhos quanto também a seus utilizadores, como já foi dito, ao explicar a característica dos deuses Lares de não só proteger espaços como também as pessoas que o utilizam68. Dessa maneira, ao notarmos que esta se encontra na intersecção destas vias, tanto novas quanto antigas, podemos ver que este culto se assemelha ao culto romano dos Lares Compitales (protetores das encruzilhadas) que segundo, Portela Filgueiras69 e Scheid70, se tornam os Lares Augusti após a restauratio augustana, o que indica que possivelmente a interpretatio dos Lares Viales, seja uma associação dos deuses romanos Lares Augusti (que protegiam encruzilhadas) a um deus indígena que protegia os caminhos, mas cujo nome se desconhece. Uma hipótese que não só explicaria melhor a ligação desta epígrafe com a observada anteriormente, mas que também elucida o motivo da escolha daquele local do Fórum para posicionar estes votos. Quanto à datação, este altar é datável dos finais do século II d.C ou século III d.C, num momento no qual a maioria das epígrafes aos Lares Viais do Noroeste Peninsular são datáveis71. 68 BELTRÁN LLORIS, F. Culto a los lares y grupos de parentesco em la Hispania Indo-Europea. In: GÓMEZ PALLARES, J; MAYER, M (coords.). RELIGIO DEORUM, 1983, Barcelona. Actas del Coloquio International de Epigrafia “Culto y Sociedad em Occidente”. Barcelona: Editorial Ausa, 1983, p. 62; FERNANDES, L. Genii, Lares e Tutela na Província da Lusitânia. In: RIBEIRO, J. (Ed.). Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 2002, p. 180. 69 PORTELA FILGUEIRAS, M. I. Los dioses Lares en la Hispânia Romana. Lucentum III. Alicante, 1984, p. 154. 70 SCHEID, J. An introduction to Roman Religion. Blomington: Indiana University Press, 2003, p. 165. 71 PORTELA FILGUEIRAS, M. I. Los dioses Lares en la Hispânia Romana.

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Nesse momento, a cidade cresce economicamente, mas mantém as reformas flavianas sem muitas mudanças em seu urbanismo e o Fórum continua do mesmo modo72. E assim, após analisarmos todos os aspectos que cercam a epígrafe de seu significado, analisaremos os elementos da gravação do texto. A disposição da inscrição é em formato “caixa”, a gravação das letras no campo epigráfico é superficial e seu estilo de letra é, o que Etienne et al.73 chama de rápido, o que parece aproximá-la ainda mais da epígrafe a Flávia Conimbriga e seus Lares demonstrando, assim, um hábito das oficinas epigráficas de Conimbriga. Quanto ao texto que ela nos oferece, podemos dizer que novamente temos uma epígrafe que foge do esquema habitual de inscrições votivas, definidas por Encarnação74. Oferecendo-nos somente o teônimo, que é formado pelo caso 3 de De Bernardo Stempel75 que consiste em um teônimo somado a um epíteto adjetival que expressa sua função, ou qualidade específica, o qual chamamos de epítetos funcionais, que permite conhecer melhor a natureza dos deuses e definir seus poderes. O primeiro nome do deus já foi discutido aqui anteriormente, os Lares na Península Ibérica e também em Roma protegem lugares específicos (topos) e as pessoas que ali habitam ou utilizam este espaço. Sendo assim, claramente vemos um deus que protege as estradas, vias, suas encruzilhadas e as pessoas que fazem uso delas. E no caso de Conimbriga, tal proteção parece estreitamente ligada ao eixo Lucentum III. Alicante, 1984, p. 159-160. 72 CORREIA, V. O forum de Conimbriga e a evolução do centro urbano. In: BASSARATE, T. (ed.). Cidade e Foro na Lusitânia romana. Zaragoza: Junta de Extremadura, 2010, p. 102 (Studia Lusitania, 4). 73 ETIENNE, R; FABRE, G; LÉVÊQUE, M; LÉVÊQUE, P. Épigraphie et Sculpture. In: ALARCÃO, J; ETIENNE, R. (dirs.). Fouilles de Conimbriga. Vol.2. Paris: Boccard, 1976, p. 32. 74 ENCARNAÇÃO, J. Epigrafia: As pedras que falam. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010b, p. 130-131. 75 DE BERNARDO STEMPEL, P. More Names, fewer deities: Complex Theonymic formulas and the three types of interpretatio. In: ENCARNAÇÃO, J. DIVINDADES EM ANÁLISE, 2008, Cascais. Actas do VII Workshop FERCAN. Cascais: CEAUCP, 2008, p. 66.

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rodoviário que liga Olisipo (atual Lisboa) a Bracara Augusta (atual Braga). Portanto, para ir para Braga de Lisboa, uma pessoa teria que (caso seguisse a estrada romana) entrar pela porta de Sellium em Conimbriga, o que iria levá-lo direto ao Fórum e de lá após fazer a sua dedicação aos Lares Viales para agradecer pela proteção em sua caminhada e pedir que estes continuem o protegendo76, deixa um ex-uoto e segue sua viagem pela via que a levará a próxima parada Aeminium. Sendo assim, estes Lares protegem esta via e por isso é tão comum encontrar vestígios desse culto no Noroeste Peninsular77, principalmente em Bracara Augusta78 para onde esta estrada leva, o que nos mostra uma influência cultural do Norte Peninsular na cidade de Conimbriga, que adotou o mesmo culto, já que esta via ajudou e muito no desenvolvimento da cidade79. Conclusão: O Domínio Romano e os Lares interpretados Assim, vimos as divindades que protegiam o território conimbricense e os caminhos que levavam a ele. Notamos que os deuses cujo teônimo foi expresso nessas epígrafes, eram divindades tutelares tópicas que se formaram a partir da identificação de deuses indígenas protetores aos deuses tutelares romanos, os Lares. Sendo assim, os dois são possivelmente interpretationes dos Lares Augusti, uma suposição que parece plausível, pois as duas se encontram próximas ao templo do Culto Imperial e se aproveitam da aura religiosa deste80. Além de estes cultos ou fazerem referência 76 CUNHA, A; ENCARNAÇÃO, J; LEMOS, F. Ara aos Lares Viales, de Bracara Augusta, Forum 37, [s.l], 2005, p. 150. 77 RIBEIRO, A. Manifestações particulares de Devoção: As Árulas de Conimbriga. In: RIBEIRO, J. (Ed.). Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 2002, p.196. 78 CUNHA, A; ENCARNAÇÃO, J; LEMOS, F. Ara aos Lares Viales, de Bracara Augusta, Forum 37, [s.l], 2005, p. 152. 79 ALARCÃO, J; ETIENNE, R; ALARCÃO, A; PONTE, S. Trouvailles Diverses – Conclusions Générales. In: ALARCÃO, J; ETIENNE, R. (dirs.). Fouilles de Conimbriga. Vol.7. Paris: Boccard, 1979, p. 276. 80 ALARCÃO, J; ETIENNE, R; FABRE, G. Le culte des Lares à Conimbriga (Portugal). In: Comptes-Rendus des séances de l’Académie des inscriptions et Belles-Lettres, [S.l], 113e année, N.2, 1969, p. 233.

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aos imperadores que auxiliaram no desenvolvimento da cidade ou porque os novos deuses absorveram uma característica básica destes deuses romanos, são, assim ambas reflexos da nova situação do assentamento conimbricense. Observamos também, graças ao seu caráter tutelar tópico e seu contexto arqueológico, que estes deviam ser cultos que tinham popularidade na cidade, pois eram os deuses que protegiam aquele lugar. Logo, a associação deles ao Imperador é não só para mostrar afiliação ao domínio romano, mas também porque, desta forma, o Imperador assegurava o bem-estar e a segurança dos habitantes de Conimbriga. Com essas observações vemos como o contato com o mundo romano, como o processo de romanização, foi de fato um processo diferente em cada uma das partes do Império, devendo ser analisado em seu contexto regional, já que como uma negociação bidirecional, respeitou a cultura indígena e a assimilou criando uma nova realidade e novos deuses com os quais os habitantes se identificavam e se relacionavam com a sua nova situação política.

X Resgate e construção da imagem de Alexandre, o Grande: Arriano de Nicomédia e sua “Anábase de Alexandre Magno” (séc. II d.C.)

D

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esenvolver um estudo que contemple o universo político romano da antiguidade já não se restringe a uma simples tarefa descritiva de instituições ou das ações dos chamados ilustres governantes. De fato, uma história política no modelo “tradicional” pouco contribui para uma percepção crítica, de teor reflexivo e compreensivo, sobre os fenômenos sociais do passado. Por isso, quando direcionamos nossa atenção para o panorama político-institucional da Roma do século II d.C. não procuramos apenas tomar conhecimento dos principais “fatos” da época, mas sim iniciar um entendimento do governo e das várias experiências 1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná – linha de pesquisa Cultura e Poder, sob orientação do Professor Doutor Renan Frighetto. Discente pertencente ao Núcleo de Estudos Mediterrâneos (NEMED/UFPR). Contato: [email protected]

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políticas do governante em sua complexidade, em suas múltiplas manifestações. Ou seja, não basta apenas saber que Adriano (76 – 138 d.C.) sucedeu a Trajano (53 – 117 d.C.) no ano de 117 d.C. e desempenhou seu governo de tal e tal forma; devemos, sim, problematizar como se deu esse processo de transição no poder, trabalhando naquele período de modo a compreender suas várias particularidades. Dentre estas, imersa no amplo universo das ideias e modelos políticos, presenciamos uma tentativa de resgate e construção da imagem de Alexandre, o Grande (336-323 a.C.), monarca macedônio do século IV a.C. reconhecido por liderar uma expedição militar visando à conquista do Império Persa. Tal iniciativa de reavivamento histórico foi desempenhada pelo grego Arriano de Nicomédia (c. 90 - após 145/46 d.C.) através de sua obra Anábase de Alexandre Magno, composta na primeira metade do século II d.C. Neste momento colocamos aqui nossas primeiras dúvidas: Que motivos teria o autor, Arriano, para a escrita de sua obra? Por que esse interesse específico pela memória de Alexandre? De que modo esse resgate referencial do passado pode se relacionar ao universo das questões políticas do Império Romano do século II d.C.? Tais questões, portanto, orientam nosso olhar investigativo para a escrita da história, instigando nossa trajetória de análises a seguir. Quanto à historiografia que discutiu o papel de Arriano de Nicomédia e seu trabalho na Anábase de Alexandre Magno, verificamos posições um tanto quanto acríticas acerca dos possíveis interesses do autor na construção desta obra. Citemos aqui dois estudos de grande relevância e abrangência: Arrian of Nicomedia (1980), de Philip A. Stadter, e From Arrian to Alexander: Studies in Historical Interpretation (1988), de A. B. Bosworth. Como notamos, foram obras escritas a mais de 30 anos, mas que ainda se tornam importantes e dignas de menção na medida em que abordam especificamente a vida e a obra de Arriano. Pois bem, na opinião de Stadter teria sido essencialmente uma admiração especial por Alexandre que motivou o grego de Nicomédia a escrever uma obra sobre o rei macedônio2. Bosworth, no mesmo 2

STADTER, P. A. Arrian of Nicomedia. Chapel Hill, 1980. p.66. Stadter também afirma que “The Anabasis is fundamentally an attempt to tell the history of Alexander in such a way that his true greatness will be apparent, to celebrate

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sentido, relatou que Arriano simplesmente seguiu suas próprias predileções para a escrita de tal obra, desejando tornar evidente, através dela, sua primazia como grande escritor3. Ora, sem dúvidas Arriano demonstrava certo interesse pelos acontecimentos da expedição de Alexandre, o Grande, da mesma forma que também sabia o quanto tal trabalho contribuiria na projeção de sua imagem, enquanto grande pensador, em seu próprio tempo. Mas, em grande parte, isso é o que o próprio autor comenta em sua narrativa. De fato, se compreendermos nosso trabalho investigativo como uma mera reprodução daquilo que o próprio autor comentou em sua obra estaríamos previamente “condenados” a entender a mesma pergunta através sempre da mesma resposta. Portanto, para problematizar os possíveis interesses, pessoais ou políticos, que levaram Arriano à composição de sua obra desenvolvemos uma linha de raciocínio em torno de três categorias históricas básicas de análise: o autor, a obra e seu contexto. É na relação que devemos estabelecer entre esses três aspectos que poderemos compreender os possíveis interesses do autor na realização de sua obra, pois seu ato de escrita somente ganha inteligibilidade quando entendida como uma forma de interação do indivíduo para com a sociedade de seu tempo – demonstrando aquele que seria o seu grau de consciência dentro dela. Passemos então, como primeira etapa de nosso estudo, a conhecer melhor o personagem histórico Arriano de Nicomédia. Nascido em Nicomédia, na província romana da Bitínia-Ponto, Lucius Flavius Arrianus possuía o estatuto de cidadão romano – honra comum para aqueles que compunham o grupo de maior projeção social nas cidades gregas da Ásia Menor. Após ter iniciado seus estudos em sua cidade natal, Arriano viajou para Alexander as Homer had Achilles”. In: STADTER, P. A. Op. cit., p.89. 3

BOSWORTH, A. B. From Arrian to Alexander: Studies in Historical Interpretation. Oxford, 1988. p.33-34. Observamos que o argumento de Bosworth praticamente seguiu o de Stadter: “The relationship between him and Alexander will be comparable to that between Homer and Achilles. This claim is based on his established literary renown. His works have made him a household name and mean everything to him. On that score he considers himself the literary counterpart of Alexander, competent to do for him what nobody has done before”. In: BOSWORTH, A. B. Op. cit., p.34-35.

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Nicópolis, na Grécia, para estudar filosofia com o filósofo estóico Epicteto. Conforme aponta Stadter, a cidade de Nicópolis pode ser considerada como um centro de grande importância naquela época, tornando-se um ponto de referência no afluxo de pessoas no sentido Roma / Oriente.4 Sem dúvidas a estadia de Arriano nessa cidade teve grandes efeitos no sentido de colocá-lo em contato não apenas com homens de conhecimento, mas inclusive com personagens que faziam parte do ambiente político de Roma – tratava-se de um espaço de forte integração. De fato, Arriano soube aproveitar bem esse tempo de aprendizagem, sendo prova de sua motivação a escrita da obra Dissertationes, através da qual legou o pensamento de seu mestre, Epicteto. No que se refere à vida pública de Arriano, carecemos de maiores informações acerca de como ela teve seu início. No entanto sabemos que ele, pelo menos nos estágios finais de sua carreira, seguiu normalmente o cursus honorum senatorial: assumiu as funções de proconsul na Hispania Baetica, cônsul suffecto (129/130 d.C) e legado imperial na Capadócia (131 - 137 d.C). Independente de qualquer especulação sobre o assunto, verificamos em Arriano um personagem que avançou com grande mérito em sua carreira política, tornando-se um dos primeiros homens, oriundos do leste, a se integrarem e assumirem posições de poder no ambiente político do Império Romano5. A que se deve tamanho sucesso na vida pública? São dois os aspectos referenciais para tratarmos do assunto: as qualidades que o próprio Arriano possuía, e que ele teria demonstrado progressivamente; e a possível ajuda de amigos e patronos. De fato, apenas alguém com grande experiência política e militar seria designado para o governo da Capadócia, região fronteiriça e sob riscos de ataques externos6. Nesta província o 4

STADTER, P. A. Op. cit., p.4.

5

STADTER, P. A. Op. cit., p.8.

6

O historiador ingles Anthony Birley reforça tal perspectiva ao afirmar que “the retention of Arrian for six years as governor of Cappadocia, from 131–7, twice the standard term of the office, may indicate Hadrian’s concern that Rome’s eastern frontier should be in experienced hands”. BIRLEY, A. B. Hadrian to the Antonines. In: The Cambridge Ancient History. Volume XI. The High Empire, A.D. 70–192. London: Cambridge University Press, 2008. p.146.

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grego de Nicomédia realizou inspeções de segurança7 e, no ano de 135 d.C., repeliu com sucesso uma tentativa de invasão dos bárbaros alanos8. Do ponto de vista de suas relações, sabemos que Arriano manteve contato com um dos mais proeminentes senadores da época de Trajano, C. Avidius Nigrinus. Cônsul em 110 d.C. e posteriormente governador da Dácia, Nigrinus nutria, como toda sua família, grande interesse nos assuntos gregos, especialmente pela filosofia. Outro personagem de destaque com quem Arriano teria se relacionado foi o futuro Imperador Adriano. Este, inclusive, teria estudado com Epicteto também – fato que, se não contribuiu para uma oportunidade de encontro naquele momento, ao menos demonstrou um ponto de interesse compartilhado por ambos. No entanto, não era apenas o gosto pela filosofia que poderia aproximar os dois, mas também a prática da caça, tendo em vista a devoção de Arriano e Adriano por tal atividade9. Em suma, devemos compreender que a manutenção de uma amizade com membros de destaque no cenário político, como foram Nigrinus e Adriano, poderia realmente ter contribuído para a inserção, promoção e continuidade de Arriano no cenário político romano10. Após seu governo na Capadócia não encontramos mais evidências concretas acerca da carreira militar de Arriano. 7

O relato dessa expedição recebeu o nome de Periplus Ponti Euxini.

8

Reflexo desse momento de glória, Arriano compôs a obra Ectaxis contra Alanos, Ars táctica e Alanica, todas abordando a questão do enfrentamento dos alanos.

9

Sobre o tema Arriano compôs a obra Cynegeticus, sem data específica de composição. Adriano, por sua vez, teria inclusive batizado uma cidade de Hadrianotherae, “as caçadas de Adriano”.

10 Segundo a historiadora Renata Venturini, “no modelo político romano, as candidaturas e a busca de apoio político se faziam por meio da recomendação de um indivíduo à carreira pública. Tratava-se de uma relação de caráter pessoal que dependia de um ‘patrono-amigo’.” In: VENTURINI, Renata Lopes Biazotto. Amizade e política em Roma: o patronato na época imperial. Acta Scientiarum. Maringá, 2001, p.215. Disponível em http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ ActaSciHumanSocSci. Bosworth, partindo do pressuposto da relação muito próxima de Adriano com Arriano, comenta que a “promotion was the direct result of the friendship, and we may assume with some confidence a fairly deep acquaintance before Hadrian’s accession […] Hadrian’s accession brought quick promotion, as Arrian attests.” In: BOSWORTH, A. B. Op. cit., p.20.

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Interessante é perceber que sua possível saída da vida pública, em 137 d.C., praticamente coincide com a morte de seu amigo, o Imperador Adriano, em 138 d.C. O que de fato sabemos é que, após oito anos de seu governo provincial, o encontramos por volta do ano de 145/46 d.C. vivendo em Atenas. Esta é a ultima informação segura que possuímos acerca de Arriano, não sendo possível também estabelecer uma data exata para sua morte. Mas e quanto à obra Anábase de Alexandre Magno, objeto aqui de nosso estudo, ela teria sido escrita em qual momento da vida de Arriano? Enfim, o que teria motivado o autor a escrevê-la? Pois bem, no que se refere ao período de escrita da Anábase de Alexandre Magno, não dispomos de qualquer referência específica para a data dessa composição. Diante desse quadro inicial de incerteza, ressaltamos como ponto de apoio um pressuposto que certamente pode nos auxiliar na busca de uma solução para tal problema: compreender que a Anábase de Alexandre Magno, ainda que possua importantes informações sobre determinados acontecimentos do passado de Arriano (nesse caso, a história da expedição de Alexandre, o Grande), é uma obra filha de seu tempo, podendo assim também nos relevar muito acerca do seu contexto de produção. Tendo em vista tal perspectiva, poderíamos iniciar uma reflexão no seguinte sentido: o pensamento de Arriano, em determinado momento de sua vida, o direcionou para o estudo de um personagem em específico, contemplando um momento especial de sua trajetória. De um modo básico, cabe a nós pensarmos no ambiente de possíveis interesses do autor para com o seu trabalho em um dado momento em que viveu. Mas para que justamente possamos discorrer sobre essa questão e mesmo apontar possíveis perspectivas para ela, devemos antes caracterizar e debater o modelo narrativo escolhido por Arriano para contar sobre esse passado que ele escolheu resgatar. Partimos, portanto, do pressuposto de que o seu interesse na obra e o objetivo que almejava através dela estariam intimamente relacionados ao modo por ele escolhido para contá-la, ou seja, as características do discurso adotadas pelo autor em sua composição. Uma análise do prefácio da obra é nosso primeiro passo, pois se trata do momento no qual o autor dispõe, diretamente, seus objetivos mais básicos com aquele seu escrito. No trecho a seguir vemos um Arriano preocupado com a observância, por parte do

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leitor, de alguns dos aspectos inerentes ao trabalho que compôs: Considero y transcribo yo como verdaderos todos aquellos relatos en que coinciden Tolomeo, hijo de Lago, y Aristóbulo, hijo de Aristóbulo, historiadores ambos de Alejandro, hijo de Filipo; pero de aquellos en que divergen, he seleccionado los que me parecían, al tiempo, más fidedignos y más interesantes para ser narrados. Ya otros han escrito sobre Alejandro (no hay, en efecto, nadie sobre quien lo haya hecho mayor número de historiadores, o de manera más discordante entre sí), pero Tolomeo y Aristóbulo, a mi parecer, son los más dignos de crédito; Aristóbulo, por haber participado en la expedición junto el rey Alejandro; Tolomeo, además de por eso mismo, porque falsificar los hechos habría sido para él, por ser rey, más vergonzoso que para ningún otro. Por otra parte, dado que Alejandro ya había muerto cuando uno y otro escribieron, ambos estaban por igual al margen de hacerlo de modo distinto a como los hechos ocurrieron, por no estar cohibidos ni esperar de él recompensa alguna. Sobre Alejandro hay también una infinidad de relatos, compilados por otros historiadores, que, por parecerme dignos de narrarse y no del todo increíbles, voy a transcribir sólo con valor de tradición11.

Como podemos inferir do texto, Arriano realizou uma seleção de fontes para a escrita de sua obra. Esta seleção teve por base critérios que viabilizariam um objetivo inerente ao seu texto: contar a verdade. Essa “necessária” busca pela verdade talvez seja a principal característica que nos permita afirmar, desde esse primeiro momento, que Arriano pretendeu estabelecer um discurso histórico em sua obra, tendo em vista tal elemento distinguir esse tipo de narrativa sobre o passado12. De fato, essa preocupação com a confiabilidade das fontes utilizadas aponta a dimensão crítica que Arriano desejava atribuir à sua pesquisa, 11 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Tradução de Antonio Guzmán Guerra. Madrid:

Editorial Gredos, 1982, p. 117.

12 Temos em vista que “a regra na qual repousava o modelo historiográfico estabelecido com Heródoto e Tucídides, era atribuir ao historiador o dever de dizer a verdade sobre os acontecimentos que julgava digno relatar. A veracidade do discurso era considerada, portanto, como um elemento constituinte da história”. In: CADIOU, François; et al. Como se faz a história: historiografia, método e pesquisa. Tradução de Giselle Unti. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 19.

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transmitindo ao leitor um sentimento de segurança em relação às informações por ele apresentadas ao longo de sua obra13. Portanto, o relato de Arriano, enquanto declaradamente verdade, se aproximaria de um discurso histórico. Mas no que exatamente isso incorreria para o nosso entendimento da obra em seu tempo? O que o discurso histórico possuía que o diferenciava, qualitativamente em sua função, de outros possíveis relatos sobre o passado? Na tradição historiográfica grega, vemos o discurso histórico assumir uma importante função: servia de amparo aos homens que, no presente ou no futuro, deveriam lidar com situações semelhantes ou iguais àquelas já ocorridas14. Nesse sentido, ele assume uma inteligibilidade especial, que poderíamos resumir através das seguintes palavras de Arnaldo Momigliano: O historiador grego quase sempre acredita que os acontecimentos passados têm uma relevância para o futuro. Na verdade, eles não seriam importantes se não ensinassem alguma coisa para aqueles que lêem a seu respeito. A história relatada tem sempre que prover um exemplo, constituir uma lição, servir de referência para os desenvolvimentos futuros dos negócios humanos15.

Nesse pensamento, o discurso histórico deteve uma importância muito maior do que outros possíveis discursos relacionados ao passado, pois nele encontraríamos os exemplos a serem seguidos e praticados constantemente pelos bons cidadãos, homens partícipes da vida pública. Por isso, ao propor a composição de uma obra que se valesse do discurso histórico, o escritor deveria avaliar o seu tema de escrita para que as pessoas (leitores ou ouvintes) consentissem da importância, a nível social e político, 13 Para Arnaldo Momigliano, “todos os historiadores gregos lidam com um número restrito de temas que consideram importantes e todos estão preocupados com a confiabilidade dos dados que deverão usar [...] e nunca acreditam que poderão fazer seus relatos sem história, sem pesquisa”. In: MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Trad. de Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru/SP: EDUSC, 2004, p. 37. 14 Cf. TUCÍDIDES. Historia de la guerra del Peloponeso: libros I – II. Trad. Juan José Torre Esbarranch. Madrid: Gredos, 1990, pp.164-166.; Cf. POLÍBIO. Historias: livros V-XV. Trad. de Manuel Balasch Recort. Madrid: Gredos, 1981, p. 503. 15 MOMIGLIANO, Arnaldo. Op. cit., p. 38.

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do seu trabalho. Arriano, naquilo que seria a continuação de seu prólogo, fez justamente isso: Al subir Alejandro a Ilión, Meneceo su timonel impuso sobre sus sienes una corona de oro; otro tanto hizo luego el ateniense Cares, que había venido con algunos hombres desde Sigeo, de los cuales unos eran griegos y otros indígenas *** [lacuna no texto original] Dicen unos que Alejandro impuso una corona sobre la tumba de Aquiles, y según otros también Heféstión hizo lo propio sobre la tumba de Pátroclo. Según se cuenta, Alejandro felicitó a Aquiles por haber tenido en Homero un heraldo que perpetuara eternamente su recuerdo, y por ello Aquiles podía considerarse en opinión de Alejandro el más afortunado de los hombres. En cambio a él le había quedado en su vida el vacío de que sus hazañas no iban a ser relatadas ante los hombres de una manera suficientemente digna (el vacío se refería exclusivamente a esto, y no al resto de su fortuna), pues nadie, ni en prosa ni en verso, le hizo composición digna; es más, ni siquiera se había compuesto en su honor ningún canto coral como los que tuvieron Hierón, Gelón, Terón y muchos otros, hombres que en nada habían sido comparables con Alejandro. De todo ello se derivaba que las hazañas de Alejandro eran mucho menos conocidas que las más insignificantes que le precedieron16.

Segundo o grego de Nicomédia, o próprio Alexandre já demonstrava certa preocupação em relação ao modo como a memória de seus feitos seria resguardada: teria de ser uma composição digna. Aquiles, um dos heróis da Guerra de Tróia, teria sido para o rei macedônio o mais afortunado dos homens, pois tivera em Homero um arauto para perpetuar sua memória. Da mesma forma Hierón, Gelón e Terón, dentre outros homens, também já teriam sido honrados com a realização de cantos em homenagem a eles – enquanto Alexandre ainda nada recebera. Em suma, o que Arriano desejava neste momento era chamar a atenção para o fato de que, em relação ao rei macedônio, não existia um relato à altura dos fatos narrados, e isso estava prejudicando a memória dos feitos de Alexandre – tornandoos menos conhecidos que outros acontecimentos, muito mais insignificantes na perspectiva do autor. Para fortalecer seu argumento, Arriano estabeleceu uma comparação qualitativa 16 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Op. cit., p.151.

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entre a expedição que ele narrava e outra do mesmo tipo, militar, ocorrida no século IV a.C.: Cuando tuvo lugar la Anábasis de los diez mil que marcharon con Ciro contra el rey Artajerjes; los sufrimientos de Clearco y de sus compañeros al ser capturados; y el regreso al mar de aquellos mismos conducidos por Jenofonte; todos éstos fueron hechos que alcanzaron entre los hombres mayor importancia debido al relato de Jenofonte, que la que habían obtenido Alejandro y sus hazañas. Y eso que Alejandro no había organizado su expedición acompañando a nadie, ni domeñó sólo a quienes se opusieron a su marcha hacia el mar porque él huyera del rey persa; nada de eso. Es más, no ha habido hombre alguno, ni griego ni bárbaro, que haya realizado tantas ni tan grandes hazañas, ni por su número ni por su magnitud17.

Etimologicamente, o termo grego “anábase” significa uma expedição que se realiza a partir do litoral (da costa) em direção ao continente. Foi o título da obra composta pelo ateniense Xenofonte (431-350 a.C.) no século IV a.C., onde este narrou a trajetória de uma expedição militar composta de mercenários gregos (os chamados “Dez Mil”) que partiu da Grécia em direção à Pérsia para apoiar Ciro, o Jovem, contra seu irmão e na época rei persa, Artaxerxes II. Ao final, após a morte de Ciro, o Jovem, o exército mercenário realizou uma penosa e difícil, mas sucedida, retirada do reino persa, sendo o próprio Xenofonte eleito um dos líderes para empreender tal retorno. Arriano, nesse momento de sua obra, resgatou a memória dessa expedição citando dois importantes e dramáticos momentos dela: o sofrimento de Clearco, junto a seus companheiros, após serem capturados; e o regresso desses homens ao mar, conduzidos por Xenofonte. Para o grego de Nicomédia, tais feitos teriam alcançado entre os homens importância maior do que havia obtido Alexandre com suas realizações. Diante disso, Arriano desqualificou, ironicamente, a possível comparação dos feitos da expedição de Xenofonte para com a de Alexandre, ressaltando a importância singular deste último pela grandeza incomparável daquilo que ele fez – seja em termos quantitativos ou qualitativos. Mas se Alexandre teria feito tudo isso, em maior escala e importância, por que não lhe era 17 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Op. cit., p.152.

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dado o devido valor? Para Arriano, a importância que assumiu a expedição de Xenofonte fora devido ao fato dela ter sido devidamente relatada – nesse caso pelo próprio Xenofonte. O autor, praticamente, expressou uma incoerência que necessitaria ser “corrigida”, ou seja, os feitos de Alexandre precisavam ser narrados, mas de modo digno, como ele mesmo afirmou logo em seguida: Confieso que es esto por lo que yo me he embarcado en esta narración, bien que no me reconozca capaz de exponer ante los hombres de modo claro las hazañas de Alejandro. Quienquiera que yo sea, debo anotar esto a mi favor: no necesito poner en cabeza mi nombre, por no ser del todo desconocido entre los hombres; tampoco mi patria, ni mi familia, ni si desempeñe en mi patria alguna magistratura; pero sí voy a escribir esto: que mi patria, mi familia, mis magistraturas no son sino estas narraciones mías, y que lo fueron ya desde mi juventud. Y por ello no en vano puedo reclamar para mí mismo la primacía entre los escritores en lengua griega, toda vez que realmente Alejandro la tuvo entre los que practicaron el ejercicio de las armas18.

Arriano, portanto, assumia a responsabilidade de escrever uma digna obra sobre Alexandre, o Grande. O autor, ao legar sua pretensa “incapacidade” para realizar tal feito, demonstrava ao público muito mais o grau de dificuldade do que iria fazer e o respeito que se deveria nutrir por tal tarefa – tratava-se de uma grande realização. Por isso, logo em seguida, fez um discurso enfático acerca de si próprio, no qual assegurou seu prestígio, valor e capacidade para realizar tal feito, ressaltando que sua qualidade enquanto escritor seria a mesma que teve Alexandre como militar. Basicamente, o que se demonstra fundamental na perspectiva histórica de Arriano é o seu elemento qualitativo, ou seja, algo importante teria necessariamente de ser relatado; no entanto, deveria também possuir um caráter universal e ser inteligível aos contemporâneos da obra, tendo em vista sua opinião de que não haveria “pueblo, ni ciudad actual, ni un solo hombre a quien no haya alcanzado la fama de Alejandro”19. Enquanto algo 18 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Op. cit., p.152. 19 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Tradução de Antonio

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importante e universal, narrado dignamente, o fazer histórico de Arriano ganhava seu preceito de utilidade, como ressaltou o autor ao final de seu trabalho: Ésta es mi historia de Alejandro, en la que he reprobado algunas de sus acciones, aunque no me avergüenzo de confesar mi admiración por él, ya que si afeé algunas acciones suyas fue en honor a mi verdad y por servir de alguna utilidad a la humanidad. Fue por ello por lo que yo mismo me decidí a escribir esta historia, no sin el concurso de la divinidad20.

Foi justamente quando alegou honrar a verdade, a despeito de sua admiração por Alexandre, que Arriano conferiu à sua narrativa o principal elemento constituinte do discurso histórico. Enquanto narrativa historiográfica, ela deveria ser de alguma forma útil à humanidade. Tal utilidade, em nossa opinião, estaria basicamente vinculada à pertinência do tema da obra (e os exemplos que ela apresentava) frente às circunstâncias vividas pelo autor no seu tempo. Mas quais bons exemplos ela poderia fornecer? Acreditamos que eles estariam fundamentalmente relacionados ao modelo de governante que era Alexandre, incluindo as ações e comportamentos apresentados por ele durante sua expedição. De fato, todas as qualidades demonstradas pelo rei macedônio tornavam-se elementos indicativos e comprobatórios de sua posição tão relevante no poder. Nesse sentido, podemos pensar que as diferentes características do monarca macedônio, quando projetadas no presente de Arriano, tornar-se-iam um parâmetro para qualificar o bom e legítimo governante; conseqüentemente vemos por parte do autor um ímpeto de discussão teórica em relação às características daquele que deveria reger o Império Romano. Tal discussão, aliás, não é alheia ao seu tempo: após um século no qual a instituição Principado manteve o poder centralizado na pessoa do princeps, ganhava intensidade o debate acerca do suposto comportamento despótico e tirânico que muitos desses governantes foram acusados de adotar, quando não desde o começo, ao longo de seu comando. A historiadora Guzmán Guerra.

Madrid: Editorial Gredos, 1982, p.255. 20 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Op. cit., p.255.

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María José Hidalgo de la Vega aponta para essa problemática sendo abordada pelos pensadores da época: El tema de la naturaleza del poder, de su legitimidad, conectada con la oposición al tirano, junto con el de la acción política era objeto de debate en las escuelas de filosofía y de retórica, dando origen a tratados y libros al respecto. Estos tratados se configuraron a partir de la propia perspectiva de la legítima oposición al tirano, que todo filósofo debe tener, incluso hacia el legítimo soberano, cuando éste adquiere las actitudes y prácticas odiosas del tirano. De esta forma se va modelando la ideología del “buen príncipe”, que será presentado como modelo de gobernante ideal y con el que contrastarán sus juicios sobre los emperadores y sus comportamientos con respecto a los temas ya indicados. Esta teoría estaba destinada a tener más éxito que la sucesión dinástica, fenómeno que no es ajeno a la propia renovación del sector senatorial, cuyos nuevos representantes eran más propensos a asumir la ideología del optimus princeps21.

Fundamentalmente era o grupo social dos senadores que fortalecia toda essa discussão, tendo em vista que sua participação no poder ficava cada vez mais reduzida frente a um governo autocrático. Para eles, não bastava o personagem ter sido aclamado pelas legiões22 e ter recebido o primeiro voto de confiança do grupo senatorial: era preciso estar a todo o momento em consonância com o pensamento deles, governando para eles, comprometendose a manter o ordenamento do estatuto social. Em outras palavras, apenas os melhores e mais comprometidos cidadãos, a saber, os próprios senadores, governariam apropriadamente, sendo os 21 HIDALGO DE LA VEGA, María José. El intelectual, la realeza y el poder político. Salamanca:

Ediciones Universidad de Salamanca, 1995, p.55.

22 Renan Frighetto esclarece que “ao fim e ao cabo o poder imperial estava associado ao efetivo controle do mando militar através de um dos mais importantes e significativos símbolos da auctoritas do princeps, a aclamatio imperii, aclamação das forças legionárias sem a qual nenhum pretendente ao poder supremo, que traduzimos por império, poderia manter-se”. FRIGHETTO, Renan. Imperium et orbis: conceitos e definições com base nas fontes tardo-antigas ocidentais (séculos IV-VII). In: Andréa Doré; Luís Filipe Silvério Lima; Luiz Geraldo Silva. (Org.). Facetas do Império na História: Conceitos e métodos. 1ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2008, p. 159.

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legítimos detentores do poder. Portanto, a imagem de Alexandre, quando construída e, conseqüentemente, utilizada23 para referencial, assumia todas as características do governante ideal inerente ao universo mental do grupo senatorial. Ou seja, ocorria o resgate de uma história por meio de aspectos que criavam a idéia de continuidade entre o passado e o presente, entre a tradição helenística e o Principado, visando justamente adaptar um modelo político às transformações inerentes ao processo histórico. Caso Arriano agisse ao contrário em sua obra, o caráter de exemplo que a própria escrita histórica deveria fornecer acabava perdendo muito de sua utilidade e efeito legitimador em relação ao poder em sua época. Nesse sentindo, assumindo uma função instrumental, as concepções teóricas que Arriano apresentou em sua obra estabelecem, necessariamente, um paralelo histórico para com o seu presente: como não comparar o ontem com o hoje? Seria esse governante do passado, um exemplo por suas ações, tão bom quanto aquele que governa no tempo de Arriano? Tendo por base a inevitabilidade desse paralelo, podemos agora sugerir quem seria esse governante do presente: um velho amigo de Arriano, o 23 Houve uma tendência crescente, a partir de Augusto, no emprego e “utilização” do mito alexandrino a título de comparação e referência no ambiente de poder do Império Romano. Segundo Alejandro Bancalari Molina, “Con el advenimiento y la consolidación paulatina del régimen imperial, la aemulatio o imitatio Alexandri llegó a ser para muchos una verdadera añoranza. Ésta se presenta en una cuádruple perspectiva, es decir, Alejandro como modelo para cada mortal; para los monarcas de cada época; para otros grandes generales griegos y romanos y además en su calidad de visionario y constructor de un imperio universal. Con anterioridad al ascenso de Octavio Augusto, la imitación a Alejandro poseía una larga tradición que va desde Pirro, pasando por Escipión el africano, Lúculo, Pompeyo, Marco Antonio y Julio César, encarnándose en este último el modelo conquistador y político. Será a partir de Augusto que se consolida un clima favorable entre políticos, militares e intelectuales en la percepción de Alejandro como arquetipo a seguir, como conquistador del orbe, dueño del mundo civilizado (kosmokrátor) y creador de un nuevo orden. El ejemplo de su figura fue importante y ella se convirtió en un referente casi obligado para los escritores romanos de épocas imperiales”. In: BANCALARI MOLINA, Alejandro. Orbe Romano e Império Global. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 2008, p. 243244.

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Imperador Adriano. Levando em consideração a trajetória de vida de Arriano e as relações que manteve ao longo dela, levantamos aqui a hipótese de que a Anábase de Alexandre Magno fora uma construção histórica que visava projetar a imagem de um grande monarca do passado, Alexandre, no princeps que acabou auxiliando e mantendo relações muito próximas com Arriano, Adriano. Os efeitos dessa projeção seriam positivos para Adriano, legitimando e fortalecendo sua imagem e posição no poder durante o seu governo. Nesse aspecto, tal proposta de comparação visava especialmente o grupo senatorial24, o qual se manteve em conflito com Adriano desde sua ascensão e que, por isso, precisava ser convencido das qualidades desse novo governante possivelmente por meio de algumas estratégias, dentro das quais a escrita da história compunha parte importante também. De fato, desde sua ascensão ao principado no ano de 117 d.C., Adriano enfrentou muitas dificuldades em sua busca de fortalecimento no poder. Filho de um senador da Bética e parente de Trajano, ele poderia ser considerado no seu próprio tempo como um dos mais fortes candidatos para a posição de novo princeps – tendo em vista a tutela recebida de Trajano e o grande prestígio e experiência militar que possuía na época. No entanto, o que desperta nossa atenção é o fato dele não ter sido nomeado oficialmente como sucessor de Trajano. Após a morte deste, teria sido a imperatriz Plotina quem divulgara o suposto desejo de Trajano, em seus últimos momentos de vida, no que se referia à adoção de Adriano. Tal fato acabou despertando uma grande desconfiança por parte do Senado em relação à legitimidade de Adriano como novo princeps, tendo em vista a obscuridade dessa nomeação. Além disso, a mobilização de Adriano fora demasiado rápida, como aponta o historiador Arcadio del Castillo: [Adriano] comunicó inmediatamente al Senado la muerte del 24 Stadter reitera nossa proposta no que se refere ao campo de recepção da obra de Arriano ao afirmar que “a book like the Anabasis was addressed to the elite of the Roman empire – those administrators, senators, officers, and intellectuals who could appreciate the restrained classicism of his style, the careful reconstruction of military operations, the interest in Alexander’s moral development. […] the intended audience […] is much more knowledgeable and refined”. In: STADTER, P. A. Op. cit., p.168.

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emperador, su adopción – la emperatriz había escrito ya al Senado para comunicarle la adopción –, la elección por las legiones, sus excusas por haber tomado los títulos imperiales antes de ser ratificado por ese organismo y su solemne promesa de que respetaría todos los privilegios senatoriales, por lo que el Senado le confirió igualmente el poder imperial.25

O discurso de Adriano viria, portanto, no sentido de estabelecer uma continuidade entre o principado de Trajano e o seu, principalmente naquilo que se referia à manutenção dos privilégios senatoriais26. No entanto, como apontou Gonzalo Bravo, “ni la condición de ‘adoptado’ de Trajano ni el apoyo del influyente Acilio Atiano fueron suficientes para que Adriano fuera aceptado emperador por el Senado sin reservas”27. Portanto, fica presente a idéia de que havia naquele momento certa resistência, por parte do grupo senatorial, em relação ao novo princeps. Essa reticência acabou gerando a necessidade, por parte de Adriano, de se fortalecer no poder e conter qualquer questionamento ou problema mais sério que ameaçasse sua posição. Logo ao início de seu principado já podemos presenciar uma clara demonstração do que Adriano seria capaz de fazer para conter qualquer ameaça à sua pessoa e posição no poder. No entanto, a forma escolhida por ele foi a violência, fato que apenas contribuiu em um sentido negativo para a percepção de sua imagem frente ao grupo senatorial. O acontecimento a que nos referimos foi a execução, realizada 25 ROLDÁN, J. M.; BLÁZQUEZ, J. M.; DEL CASTILLO, A. Historia de Roma. Tomo II: El Imperio Romano (siglos I-III). Madrid: Ed. Cátedra, 1989, p.206. 26 Segundo Anthony Birley, naquele conturbado momento da ascensão de Adriano “se acuñaron en Roma diversas monedas una de las cuales mostraba a Trajano como emperador en el anverso y a Adriano con el nombre de ‘Hadrianus Traianus Caesar’ en el reverso; la otra presentaba a Adriano como emperador, ‘Traianus Hadrianus’, con los títulos de Trajano: ‘Optimus Germanicus Dacicus’, y, en el reverso, la leyenda ‘Adoptio’, con Trajano y Adriano dándose la mano y la denominación de este como Pater Patriae, además de otros títulos, y como hijo del deificado Parthicus Traianus. Es manifista la necesidad de proclamar la legitimidad de la sucesión”. In: BIRLEY, A. Adriano. Trad. José Luis Gil Aristu. Madrid: Editorial Gredos, 1997, p.112. 27 BRAVO, Gonzalo. Historia del mundo antiguo: una introducción critica. Madrid: Alianza Editorial, 1998, p.447.

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por Acilio Atiano, prefeito do pretório, de quatro senadores vinculados a Trajano e de grande projeção política na época: L. Publilio Celso, Lusio Quieto, Cornélio Palma e C. Avidio Nigrinus. Este último, lembramos, manteve contato próximo com Arriano. De acordo com Gonzalo Bravo, essa série de execuções realizadas “sin juicio previo violaba la normativa vigente y sentaba en peligroso precedente contra los privilegios de la institución senatorial”28. Nesse sentido, o assassinato desses quatro senadores, possivelmente também candidatos à posição de princeps, demonstra uma atitude de contestação séria e suficientemente forte29. Ao mesmo tempo, considerando as conseqüências tal questionamento, percebemos que Adriano não hesitaria em romper qualquer privilégio do grupo senatorial – fato que comprovava, da pior forma possível, as expectativas mais pessimistas dessa instituição em relação ao novo princeps. Esse clima de desavença para com o Senado, no entanto, não foi característico apenas do início do principado de Adriano: aumentou ao longo de seu governo devido às várias decisões políticas e administrativas que tomou. Os historiadores Jean Marie Engel e Jean Remy Palanque apontam para as seguintes propostas de Adriano que, gradativamente, o tornaram ainda menos reconhecido pelo Senado: [Adriano] reorganizou o conselho imperial, nomeado por um ano, reunido regularmente e que, pela competência dos seus juristas, fazia concorrência com o Senado. Reformou as repartições públicas, eliminando delas os libertos para colocar no seu lugar cavaleiros. Criou novos funcionários, escolhidos entre os consulares, para despachar mais rapidamente os 28 BRAVO, Gonzalo. Op. cit., p.448. 29 De acordo com Arcadio del Castillo, “las circunstancias tan absolutamente particulares por las cuales Adriano había llegado a detentar el poder imperial debieron de sorprender a muchos, pero desde luego contrariaron a algunos, sobre todo a aquellos que se encontraban muy próximos a Trajano y que gozaban de la confianza de este emperador, en parte porque naturalmente aspiraban a obtener la sucesión […] en concreto, se ha apuntado que Lusio Quieto había preparado una atentado contra el emperador, que se llevó a efecto durante una cacería en Asia Menor y que los otros tres [Celso, Quieto e Nigrino] habían presionado a Trajano en un intento de evitar la adopción de Adriano”. In: MANUEL ROLDÁN, José; MARIA BLÁZQUEZ, José; CASTILLO, Arcadio del. Op. cit., p.207.

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negócios da Itália aliviando assim a jurisdição senatorial. Isto era como que morder as atribuições da Cúria. Fixou definitivamente a carreira eqüestre, com seus escalões e títulos, pois tinha uma preferência acentuada pelos cavaleiros. Somando as suspeitas relativas a sua tomada do poder, o terror provocado pela execução, em 118, dos quatro marechais de Trajano que conspiravam, as crueldades do fim da sua vida e as suas falhas de caráter, compreende-se por que o Senado o detestava30.

As atitudes que Adriano adotou em relação à política externa também não contribuíram para que o grupo senatorial deixasse de lado o tom fundamentalmente crítico em relação a ele. Tão logo no poder, buscou inverter a política externa de Trajano, preferindo a paz para com os partos31. Dentre aqueles senadores militaristas que desejavam a guerra, seja como aporte financeiro ou moral e que se viram prejudicados com tal atitude, o descontentamento foi crescente. Não podemos, no entanto, confundir a postura “defensiva” de Adriano como simplesmente sinônimo de uma posição “pacifista”; tal interpretação crítica é também defendida por Gonzalo Bravo, segundo o qual “en Mauritânia y Britania, al principio, en Judea, al final de su reinado, hubo guerras que ponen en entredicho el pretendido ‘pacifismo’ de este emperador”32. Isso posto, o que podemos pensar é que Adriano adotou um pensamento mais pragmático ao se decidir por uma postura mais defensiva para o Império, buscando reorganizar seu território. Nesse sentido, a idéia de união, coesão e fortalecimento entre as diferentes partes do orbis romanorum ganhava força, tornando-se 30 ENGEL, J. M.; PALANQUE, J. R. O Império Romano. São Paulo: Atlas, 1978, p.100. 31 Segundo Michael Grant, “Without delay, he [Adriano] decided – as his predecessor may well have decided already – that the newly occupied eastern territories were untenable, and so, unwilling for adventures when he needed to consolidate his own power, he abandoned all that was left of Trajan’s temporary conquests and withdrew the Roman frontiers to the Euphrates again”. In: GRANT, M. History of Rome. Nova York: History Club Book: 1997, p. 302. A. Birley comenta que Adriano justificou-se “citing the policy of the elder Cato, ‘who declared the Macedonias free because they could not be protected’”. BIRLEY, A. Hadrian to the Antonines. In: The Cambridge Ancient History. Op. cit., p. 134. 32 BRAVO, Gonzalo. Op. cit., p.519.

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uma necessidade para sua subsistência. O exército, por sua vez, aparecia como o instrumento essencial para a estabilidade da situação – fato que Adriano consentia, tendo em vista seu projeto de reorganização do exército e aprimoramento de suas táticas e armamentos. Além disso, deu atenção especial ao limes, a linha fortificada que servia de defesa ao Império, construindo diversas estruturas defensivas. Dentre as linhas de demarcação artificial que planejou, sem dúvida é a Muralha de Adriano, na Britânia, a mais conhecida. Percebemos então uma lacuna na autoridade de Adriano que, no âmbito prático e teórico, deveria ser preenchida para a garantia de sua permanência no poder. A realização de uma narrativa que aproximasse a figura histórica de Alexandre àquela de Adriano pode ser considerada, assim, uma dentre as propostas para satisfazer esse âmbito teórico de busca por legitimidade. A escrita da história, no sentido que entrevemos na Anábase de Alexandre Magno, demonstrou-se, portanto, movida por interesses políticos, especialmente relacionados ao âmbito do poder e da esfera de legitimação de determinados personagens no mesmo. Mas de que modo e no que, especificamente, Alexandre se tornaria exemplo? Como exatamente ocorreria esse paralelo histórico, a comparação passado-presente/Alexandre-Adriano, e de que forma isso poderia colaborar na projeção política de Adriano? Devemos então empreender uma análise que identifique essa concepção teórica estabelecida por Arriano em sua narrativa historiográfica, mesmo que ela esteja implícita ou esparsa ao longo do texto, para em seguida analisar seu teor e validade frente à época de Adriano. Diante das várias possibilidades de objetos que surgem para análise a partir da perspectiva levantada, optamos por estudar na fonte a seguinte formulação teórica: o que tornava determinado personagem um digno e legítimo governante detentor do poder. Tal escolha não foi arbitrária, pelo contrário, pois tem em vista que busca inserir a obra dentro daquele conjunto maior de debates que comentamos anteriormente e que caracterizaram o final do primeiro século: a intensa reflexão em torno do poder, especialmente no que se refere a quem deveria assumi-lo e como se deveria exercê-lo perante a sociedade política. Mas para que possamos justamente compreender e caracterizar o objeto teórico proposto acima, buscando entrever de que modo se estabeleceria

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a comparação Alexandre/Adriano, não podemos fundamentar nossa interpretação do documento com base em apenas um ou outro momento que o autor apresentou dado comportamento em Alexandre. O que de fato devemos fazer é localizar e analisar circunstâncias que apontem para regularidades na conduta do rei macedônio, as quais justamente expressem qualidades recorrentes nele. Desse modo, saímos da esfera do “acaso” e atentamos para os padrões inerentes à narrativa de Arriano, ou seja, para aquilo que o autor desejava constantemente e intencionalmente destacar no personagem por ele estudado, e que pudesse exercer um efeito prático de compreensão, inteligibilidade, frente ao ouvinte/leitor da obra. Acerca de nosso objeto específico de investigação, buscamos então na fonte as características que demonstravam Alexandre como um homem merecedor de sua posição, ou seja, aquilo que o tornava um legítimo governante. De fato, quando estava à frente de seu exército, o rei macedônio demonstrava-se muito apto na liderança: esbanjava um conhecimento tático que só poderia ocasionar o sucesso de cada novo movimento. Citemos, a seguir, alguns exemplos. Logo ao início da obra temos a batalha no Monte Hemo, instante no qual Alexandre se viu ameaçado por rebeldes trácios que, a partir de ponto alto numa montanha, jogavam carros de guerra sob o exército macedônio. Graças às suas prevenções e recomendações, o exército macedônio soube comportar-se adequadamente: evitou o ataque inimigo e passou para a ofensiva, ou seja, contornou uma dificuldade para cumprir o objetivo da vitória33. A travessia do rio Istro foi outro momento de grande exaltação na narrativa de Arriano: Alexandre orientou seu exército para uma manobra estratégica de ataque surpresa aos inimigos rebeldes da Trácia, demonstrando um controle constante da situação e desenvolvendo planos de ação praticamente impecáveis34. A conquista da “Rocha Sogdiana”, uma praça forte construída em cima de uma montanha e que era tida como “inconquistável” pelos persas sogdianos, foi outro trunfo que apenas o gênio singular de Alexandre poderia dar conta: sempre agindo ponderando as dificuldades e coordenando 33 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Op. cit., p.122. 34 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Op. cit., p.127.

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as ações corretas de conquista35. Em suma, diante de todas essas circunstâncias, constatamos um rei macedônio que não agia de modo negligente, pelo contrário: demonstrava consciência e competência para compreender cada circunstância e avaliar a melhor ação. No entanto, não é apenas no relato de batalhas que Arriano encontra espaço em sua narrativa para exaltar as qualidades de Alexandre enquanto governante. Na Anábase de Alexandre Magno ocorrem também vários diálogos entre personagens cujo objetivo, a despeito de sua importância no encadeamento causal do texto, era projetar o rei macedônio como um homem diferenciado. Seja em narrativa direta ou indireta, os diálogos que Alexandre mantém com Parmênio são exemplos dessa construção teórica de Arriano. Vejamos assim alguns desses momentos. Pouco antes da batalha de Granico, Parmênio buscou aconselhar o rei macedônio sobre possíveis opções táticas de ataque contra os persas, as quais foram prontamente rebatidas e desqualificadas por Alexandre – o qual sempre possuía a melhor e mais consciente opção de ação36. Outra situação similar ocorreu no diálogo que debate a conquista da cidade de Mileto: Parmênio sugeriu um ataque imediato e de surpresa a essa cidade, acreditando na vitória baseado-se em um augúrio. A resposta de Alexandre? Pois bem, para este, Parmênio simplesmente se equivoca e dava interpretações nada razoáveis sobre os augúrios. Em seguida, como de práxis na narrativa de Arriano, Alexandre desqualifica os argumentos de Parmênio através de considerações táticas, técnicas e mesmo psicológicas37. Mas é outro diálogo, em especial, que merece nossa atenção. Ocorreu entre o rei dos Persas, Dario, e o eunuco de sua mulher. Segue o relato nas palavras do próprio Arriano: A propósito, se cuenta un relato, según el cual, poco después de la batalla que tuvo lugar entre Alejandro y Darío en Isso, el eunuco de la mujer de Darío había conseguido escaparse y pasarse al campamento de Dario. Al verse éste le preguntó, en primer lugar, si seguían vivas sus hijas, su mujer y su madre. Se enteró por él de que seguían vivas y que se las seguía llamando 35 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Op. cit., p.48-49. 36 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Op. cit., p.155-156. 37 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros I-III. Op. cit., p.167-168.

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y tratando según su propio rango de familia real, al igual que cuando vivían en la corte de Darío; tras lo cual preguntó si su mujer le guardaba fidelidad. A la respuesta afirmativa del eunuco, volvió a preguntarle Darío si no había tenido que ceder por fuerza ante la intransigencia de los deseos de Alejandro. Bajo juramento dijo el eunuco: “Soberano mío, tu mujer está tal cual tú mismo la dejaste, y Alejandro es el mejor hombre y de mayor templanza del mundo”38.

Na ocasião, o eunuco da mulher de Dario tinha fugido do acampamento de Alexandre em direção ao encontro do rei persa. Este, vendo o eunuco, demonstrara preocupação, perguntandolhe acerca do tratamento recebido por sua mãe, mulher e filhas – tendo em vista que elas se encontravam sob a tutela de Alexandre. Dario também perguntou acerca da fidelidade de sua mulher, temeroso de que Alexandre tivesse agido de modo intransigente para com ela. Realçando a verdade de suas palavras, o eunuco garantiu o bem estar da mulher de Dario, afirmando que Alexandre era o melhor homem, aquele de maior temperança no mundo. O rei persa, por sua vez, demonstrou admiração por tal comportamento de Alexandre: Ante tales palabras, Darío alzó sus manos al cielo, así rogando: “Soberano Zeus, con potestad para arbitrar los asuntos de los reyes entre los hombres, presérvame ante todo el poder sobre medos y persas, ya que tú mismo me lo diste. Pero, si no he de ser yo el rey de Asia por más tiempo, no entregues a ningún otro mortal que a Alejandro mi poder”. Hasta tal punto las acciones virtuosas merecen el reconocimiento incluso de los propios enemigos39.

O que Arriano demonstra aos leitores através desse diálogo vem no sentido de fortalecer a imagem de Alexandre como um homem diferenciado, que não agia de modo intransigente – ou seja, que era consciente acerca do que fazia. Alexandre foi qualificado, diretamente através das palavras do eunuco, como o melhor dos homens, aquele que apresentava a maior temperança. De fato, são atribuições que projetavam na imagem de Alexandre o rol de virtudes necessárias que o governante deveria possuir. 38 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Op. cit., p.52. 39 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Op. cit.,p.52-53.

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Inclusive, suas reflexões e ações corretas poderiam mesmo ser consideradas “conseqüências” diretas e indicativas de todas essas qualidades que o rei macedônio possuía enquanto homem. Portanto, demonstra-se aqui a seguinte relação: Alexandre, por ser o melhor homem, seria o mais legítimo detentor do poder. Tal reconhecimento apresentava um tom de característica universal, tendo em vista que o próprio rei dos persas, Dario, compartilhava e aceitava essa prerrogativa ao poder. Também encontramos tal perspectiva teórica em relação ao poder nos discursos presentes na obra de Arriano. Citemos aquele proferido por Calístenes, o historiador oficial da expedição macedônio. Questionando a prática da proskýnesis40, adotada pelo rei macedônio durante sua campanha na Ásia, Calístenes apresentou uma idéia muito interessante em relação à natureza do poder de Alexandre: Alejandro es, y así se le considera además con toda razón, el mejor de los hombres, el más regio rey, y el general más valeroso de todos los generales. Y era a ti, antes que a ningún otro, Anaxarco, a quien correspondía ser el promotor de estas reflexiones y censor de las contrarias, ya que asistes a Alejandro como sabio consejero y asesor. Inoportuno es que tú hayas encabezado una tal propuesta, en vez de recordar que no asistes ni aconsejas a un Cambises o un Jerjes, sino al hijo de Filipo, descendiente de Heracles y de Eaco, cuyos antepasados vinieron de Argos a Macedonia, donde reinan ininterrumpidamente desde entonces, no por la fuerza, sino de acuerdo con leyes justas41.

Calístenes definiu o que realmente tornaria Alexandre digno de sua posição no poder: ele seria o melhor dos homens, o mais régio rei e o general mais valoroso de todos os generais. Essa tríade conceitual que Arriano estabeleceu como inerente ao rei macedônio vem exatamente no sentido de justificar sua legitimação no poder. Tais características, por sua vez, estariam de acordo com os princípios de leis que seriam justas, distinguindo 40 Antigo costume persa segundo o qual todas as pessoas, na presença do rei, deveriam se prostrar à sua frente. Por sua vez, gregos e macedônios se posicionavam contra tal prática, tendo em vista que apenas à divindade era digno de se prostrar. 41 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Op. cit., p.34-35.

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essencialmente o governo de Alexandre daquele de outros reis persas – os quais, através da força, buscavam o seu consentimento no poder. Chegando ao final de sua narrativa, no exato momento que comentou acerca da enfermidade e morte de Alexandre, o autor reforça a perspectiva que já assinalamos:



[…] Alejandro poco después murió, pues esto era ya ‘lo mejor’. Después de esto, ni Aristóbulo ni Tolomeo continúan su relato, aunque otros historiadores añaden que los Compañeros le preguntaron a Alejandro a quién desea su reino, a lo que él había contestado: “Al más capaz”42.

Arriano não encontrou tal situação seja na obra de Aristóbulo ou na de Ptolomeu, ou seja, suas principais fontes de informação. No entanto, tal como já havia deixado claro no prefácio de sua obra, iria sim buscar na tradição e escrever em seu trabalho tudo aquilo que achasse digno de menção sobre a história da expedição de Alexandre, o Grande. De fato, o impacto de tais palavras não expressa apenas um acontecimento de grande importância, a morte de Alexandre, mas também indicam um elemento teórico de caráter pragmático que não poderia passar despercebido: o mais apto, ou seja, o melhor seria um digno sucessor. A legitimidade do homem que iria suceder a Alexandre residia, portanto, em sua dita superioridade. Mas o que tornaria um determinado personagem o “melhor”? Foi o que exatamente podemos constatar durante nossa análise da Anábase de Alexandre Magno, no exemplo de Alexandre: um homem consciente, que possuía o controle das circunstâncias e situações atenuantes; controle que advinha do seu raciocínio apurado, que o levava a considerar e compreender todas as variáveis (técnicas, morais e mesmo psicológicas) de uma dada ação, junto às suas conseqüências, para sempre agir corretamente em momentos decisivos. Acreditamos que todas essas características positivas que Alexandre assumiu podem ser resumidas em termos de poucas palavras: Alexandre teve uma formação especial, educacional, a qual lhe conferiu uma determinada personalidade. Essa personalidade o demonstrava como um homem perspicaz e de grande conhecimento, ou seja, 42 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Op. cit., p.250-251.

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paidéia. Sendo aquele mais bem preparado e educado, Alexandre tornava-se o legítimo governante. Portanto, a partir de nossa análise, o que pudemos notar foi a construção e valorização de uma determinada perspectiva teórica acerca do poder, pautada na utilização da história de Alexandre, a qual relacionava formação educacional e conhecimento (paidéia) como pressupostos inalienáveis ao governante. O que Arriano fez, nesse sentido, foi resgatar aos seus contemporâneos uma perspectiva teórica acerca do poder apoiando-se em uma tradição grega e helenística de governo, a qual se apresentava coerente e inteligível em seu próprio tempo43. Assim, entre o pensamento grego/helenístico e o romano percebemos um fator de interação – sejam eles, por exemplo, de caráter político, social ou religioso44. A demanda em torno de uma boa educação por parte do governante foi aqui demonstrada como um desses elementos compartilhados, um ideal que teve continuidade no tempo. Por isso, e tendo sempre em mente as transformações, adaptações, 43 María José Hidalgo de la Vega comenta que “las principales categorías políticoideológicas de esta teoria sobre la basiléia se habían ido gestando en el mundo helenístico y de ese escenario se proyectarán, de forma renovada, en el Império Romano en el marco de su helenización”. In: HIDALGO DE LA VEGA, María José. El intelectual, la realeza y el poder político. Op. cit., p.52. Segundo Claude Mossé, Arriano em sua obra “relata um período importante que viu nascer uma forma nova de monarquia, herdada pelo mundo romano”. In: MOSSÉ, C. Alexandre, o Grande. Trad. de Anamaria Skinner. São Paulo: Editorial Estação Liberdade, 2004, p. 184. Segundo Domingo Plácido Suárez, “La ideología imperial se apoya en una larga tradición de reconocimiento de la cultura griega como propia”. PLÁCIDO SUÁREZ, Domingo. Un Siglo de cambios. In: CORTÉS COPETE, J. M.; MUÑIZ GRIJALVO, E (Eds.). Adriano Avgvsto. Sevilla: Fundacion Jose Manuel Lara, 2004, p. 26. 44 Segundo Pierre Grimal, “Quando começa o principado, é no mesmo mundo imaginário que mergulham os espíritos, na Grécia e em Roma. Este mundo está sempre presente, na literatura e na decoração das casas, nas pinturas que ornamentam as paredes e cujos temas se inspiram na mitologia. Esta impregnação cultural começara pelo menos dois séculos antes do tempo de Augusto. Não devemos dizer que os Romanos ‘copiaram’ os Gregos, mas que, neles e por eles, o helenismo continuara a viver, retomara um vigor que parecia fazer-lhe falta depois do florescimento dos séculos V e IV”. In: GRIMAL, Pierre. O Império Romano. Trad. Isabel Saint-Aubyn. Lisboa: Edições 70, 1993, p.106.

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adequações e inerentes ao processo histórico, a importância do presente estudo reside em apontar um aspecto teórico de forte caráter legitimador para o poder que demonstrava, segundo a narrativa de Arriano, grande importância no cenário político romano em pleno século II d.C. Seguindo esse pensamento, poderíamos dizer, no que se refere ao ambiente de poder do Império Romano de inícios do século II d.C., que tal pressuposto de uma formação necessária por parte do governante encontrava sua utilidade quando direcionada como elemento de reivindicação por parte do grupo senatorial em relação à escolha de quem seria o princeps. De fato, essa questão remontava, como vimos anteriormente, aos constantes conflitos entre o grupo senatorial e o princeps durante o primeiro século depois de Cristo: o Imperador era muitas vezes acusado de despótico e tirânico, ou seja, um homem que governava sem dar ouvidos à instituição que representava o Senado. Em suma, para os membros deste, não seria qualquer um que poderia almejar tal posição no poder. Dentre aqueles que poderiam, estariam exatamente os senadores. Estes defendiam a prerrogativa da tradição política que eles representavam, ressaltando o critério teórico de uma formação retórica45 que eles adquiriam e, no âmbito prático, o cumprimento do cursus honorum – aspectos que lhes garantiriam a experiência necessária para o exercício de uma boa liderança. Portanto, enquanto parte do universo mental do grupo senatorial, a proposta teórica de Arriano vem no sentido 45 Para Pierre Grimal, a retórica [...], tanto na Grécia como em Roma, tornara-se o instrumento por excelência da educação e da cultura. Forma o espírito das elites”. In: GRIMAL, Pierre. Op. cit., p. 106. Armando Plebe comenta para a época, inclusive citando Elio Aristides, uma “exaltação do valor social da retórica, sobre o que, a partir dos estóicos, já tanto se insistira”. In: PLEBE, Armando. Breve História da Retórica Antiga. Trad. de Gilda Naécia Maciel de Barros. São Paulo: EPU, 1978, p.80. Compreendemos também o papel desempenhado pela retórica seguindo o pensamento de Antônio Lopez Eire: uma disciplina escolar (surgida na Grécia Clássica, mas com plenos efeitos na Roma Antiga) cujo propósito era em torno de uma educação moral e ética, visando sempre, através da assimilação da Paidéia, o aperfeiçoamento do homem em sua vertente política de atuação na sociedade. Cf.: LÓPEZ EIRE, Antonio. La influencia de la Retórica sobre la Historiografia desde el Helenismo a la Antigüedad Tardia. Talia Dixit, Salamanca, nº3, 2008. Disponível em http://dialnet.unirioja.es/servlet/ articulo?codigo=2921644.

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de reforçar um demanda em relação ao poder: os mais bem preparados deveriam governar, sendo os legítimos detentores do poder para o bem de todos. Adriano, frente a tal perspectiva, encontrava um ponto positivo para sua imagem e, conseqüentemente, fortalecimento no poder. De fato, este Imperador, enquanto filho e neto de senadores romanos, tivera uma formação que o colocava dentro das perspectivas de exigência que o grupo político senatorial requeria aos seus membros. Ou seja, que fizesse parte e consentisse do universo mental deles, compreendendo seus anseios, atitudes e demandas em torno do poder. Foi sob a tutela de Trajano, mas principalmente de Acilio Atiano (prefeito do pretório), que o jovem Adriano fora levado para Roma, pois segundo Bernard W. Henderson: There only could the boy receive his fitting education. Hadrian stayed in the city until his fifteenth birthday was past, and it was these few years which colored the whole of his life hereafter. A “literary education” which ends by fifteen is not wholly wasted on an enthusiastic boy who is willing and eager to work46.

Adriano estava se encaminhando para adentrar um mundo repleto de expectativas, no qual cada homem que desejasse um futuro promissor na política deveria se destacar frente aos seus, tornando-se único por suas qualidades superiores. A imagem em torno de um homem bem educado e que demonstrava grande apreço pela cultura grega fora preservada para Adriano. Reforçando essa mesma idéia e recordando-se do grego de Nicomédia, Stadter reitera que: […] like Arrian, Hadrian found pleasure and stimulation in philosophy and literature. He was said to have know Epictetus, as well as prominent figures of the world of belles letters such as Polemon and Favorinus. He himself wrote poetry, including a famous piece to his own soul, supposedly composed on his deathbed47. 46 HENDERSON, B. The Life and Principate of the Emperor Hadrian, A.D. 76-138. London: Methuen, 1923, p.14. “Dada su condición de hijo de senador y, por tanto, de futuro senador, se esperaba que tomase como maestros a oradores destacados”. In: BIRLEY, A. Adriano. Op. cit., 1997, p. 47. 47 STADTER, P. A. Arrian of Nicomedia. Op. cit.; p.10. Segundo Érica Cristhyane M. Silva, os membros da elite romana demonstravam grande interesse pela

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Desse modo, ademais do aspecto de verdadeiro interesse que Adriano possuiria pela sua aprendizagem e aperfeiçoamento, compreendemos que o universo mental do grupo senatorial, de pensamento estóico e ansioso na busca de um representante digno às suas exigências, detinha tal perspectiva da educação como um elemento capaz de possibilitar e legitimar ascensão política – fato que ele, Adriano, e seus tutores certamente tinham consciência e procuraram fortalecer. Por isso, desde quando ainda criança, verificamos essa preocupação e cuidado constantes em torno de sua formação. No entanto, foi justamente quando já havia se tornado imperador e, devido aos acontecimentos do período de ascensão, passou a sofrer sérios questionamentos por parte do grupo senatorial, que o ato de reforçar tal perspectiva teórica acerca da importância da paidéia enquanto fator legitimador tornava-se ainda mais importante para ele. Nesse sentido, a comparação Alexandre/Adriano, possibilitada pela construção narrativa de Arriano, pode e deve ser considerada um paralelo realmente benéfico para esse princeps – um mecanismo que intencionalmente resgatava, aos olhos senatoriais, uma tradição assimilada e transformada por eles, a qual certamente contribuiria para qualificar e legitimar o personagem Adriano no poder. A tarefa que desempenhou Arriano, quando entendida desse modo, poderia ser considerada de grande valia ao seu amigo Adriano. No entanto, essa “amizade” não pode ser compreendida tendo por base o significado atual da palavra; dentro do que já afirmamos antes, consideramos a relação Adriano/Arriano como a de um patrono/cliente – ou seja, que pressupunha também certo apoio e troca de favores no ambiente político. Nesse sentido, o benefício que recebeu Arriano foi justamente sua ascensão política. Além disso, ainda que consideremos o personagem Arriano e sua obra como singulares e específicos na história, aprendizagem da língua grega, por isso buscavam freqüentar os principais centros culturais na Hélade; a adoção do grego como segunda língua da elite demonstraria a influência da paidéia grega na sociedade romana, tornando-se a língua grega um instrumento imprescindível no que se refere a formação do “bom” homem (mais especificamente, do cidadão). SILVA, E. C. M. A helenização de Roma: convergências e impasses. In: Gilvan Ventura da Silva. (Org.). Grécia, Roma e o Oriente. Vitória-ES: Flor&Cultura, 2009, v. 6, p. 139-161.

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o papel que o presente autor desempenhou veio no sentido e caracterizou uma espécie de “fundo político” do movimento da Segunda Sofística. A historiadora María José Hidalgo de La Vega, em obra intitulada El intelectual, la realeza y el poder político em el império romano (1995), definiu a categoria de “intelectual” 48 para tais homens que se envolviam na vida pública através da defesa de certas concepções teóricas sobre o poder: Estos intelectuales griegos, que a su vez son muy romanos, no solo tratan de escribir sobre el pasado cultural griego sino que se implican en la política concreta de las ciudades y se erigen en consejeros de los emperadores, y elaboran un discurso políticoideológico, en el límite de la conflictividad, que servirá de apoyo y de crítica al poder imperial49.

De fato, nossa análise acerca da Anábase de Alexandre Magno trouxe como perspectiva exatamente esse caráter teórico da composição de Arriano, através da qual ele buscou apresentar aspectos legitimadores do bom governante. Portanto, poderíamos pensá-lo também dentro dessa categoria de “intelectual” tão característica do século II d.C. O que essencialmente distinguiu Arriano de personagens como Dión de Prusa ou Élio Aristides foi muito mais o modo encontrado por ele para desempenhar essa tarefa de discussão teórica sobre o poder: através da composição de uma obra essencialmente histórica. Na potencialidade que o discurso histórico assumia, Arriano apresentou, como fruto de seu trabalho, perspectivas teóricas enquanto exemplos através de uma narrativa que destacou a importância, singularidade e universalidade de Alexandre enquanto modelo ideal de governante. De fato, o grego de Nicomédia empenhou-se na construção de 48 Buscando contornar qualquer paralelo anacrônico, a autora afirma que “en la antigüedad el término se aplica a un sector minoritario de hombres de un origen social elevado, que frecuentaba las escuelas de retórica y de filosofía, al tiempo que poseía unas cualidades indispensables para la comunicación tanto literaria como oratoria de cara a su influencia hegemónica en la sociedad”. In: HIDALGO DE LA VEGA, María José. El intelectual, la realeza y el poder político. Op. cit., p.49. 49 HIDALGO DE LA VEGA, María José. Algunas reflexiones sobre los límites del oikoumene en el Imperio Romano. Revista Gerión, Madrid, 2005, v.23, n.1. pp. 283284. Disponível em http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=1233731.

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um personagem histórico que se apresentasse como um ideal, como realmente o melhor em todos os sentidos. O desejo por parte do autor em fixar tal perspectiva foi reforçado por ele ao final de sua obra, momento em que designou Alexandre como: […] el hombre de más bello cuerpo, más amante del esfuerzo y de mente más aguda, el más valeroso y amante de la gloria y de los peligros, así como el más piadoso con los dioses. El de mayor templanza con los placeres del cuerpo y, respecto a los placeres del espíritu, jamás se saciaba su afán de gloria. El más capaz de comprender lo necesario en medio de la mayor oscuridad y el más feliz en conjeturar lo verosímil cuando todo era meridianamente claro. Era también el más experto en organizar, equipar y ordenar un ejército. Como nadie sabía levantar el ánimo de sus soldados y colmodarlos de buenas esperanzas, así como eliminar la sensación de miedo en los peligros por su propio desconocimiento de lo que es el miedo; el más noble hombre en todos los asuntos. Cualquier cosa que hubiera que hacer en situaciones difíciles, él lo realizaba con el mayor arrojo; y cuando había que arrebatar algo, adelantándose al enemigo, era el más capaz en anticiparse, antes de que nadie temiera que esto fuera a ocurrirle. De total fiabilidad en guardar lo pactado y convenido, el más astuto en no caer en las trampas de los embaucadores; económico al máximo con el dinero invertido en su propio placer, y muy generoso en beneficiar a los demás50.

Arriano, refletindo sobre o que escreveu em sua obra, considerou Alexandre como um grande exemplo, um ideal de governante que, por meio de seu escrito, ressurgia de modo digno à luz de seu tempo. O presente estudo caracterizou justamente esse potencial teórico que uma obra assumia ao se valer do discurso histórico, através do qual o passado retornava ao presente para instruir e orientar os homens em suas escolhas, ações e comportamentos. Na Roma do século II d.C. um trabalho como esse teria forte impacto entre os círculos de poder, sendo apresentado perante os homens num clima de forte exaltação e expectativa. Através de nossa análise da Anábase de Alexandre Magno, vimos que tal resgate teve uma intencionalidade própria, visando estabelecer um 50 ARRIANO. Anábasis de Alejandro Magno: libros IV-VIII. Op. cit., p.252-253.

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paralelo e comparação entre o governante do passado, Alexandre, e o governante do presente, Adriano. Este, por sua educação e preparo, seria projetado aos olhos da comunidade política como melhor dos homens, ou seja, o melhor e legítimo governante – tal como exatamente o rei macedônio fora no passado. A obra de Arriano de Nicomédia, nesse sentido, estabeleceu os preceitos teóricos de uma meritocracia baseada na idéia de formação do homem.

XI Sofistas gregos e poder imperial romano: reflexões sobre o testemunho de Flávio Filóstrato (século III d.C.)

A

Semíramis Corsi SILVA1

partir da análise de uma obra biográfica intitulada Vida dos Sofistas, escrita por Flávio Filóstrato em meados do III século d.C., este texto objetiva compreender as relações que se desenvolveram entre os sofistas e o poder imperial romano no período da Segunda Sofística, cujo arco cronológico é definido por este mesmo escritor.2 Consideramos o testemunho de Filóstrato como contendo claras intenções retóricas. Por esse motivo, colocaremos em questão as intenções deste sofista biógrafo na construção destas relações e na descrição dos sofistas 1 Doutoranda, Mestre e Graduada em História pela UNESP/Franca. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal para o Ensino Superior – CAPES. 2

Filóstrato situa uma diferença de nomenclatura entre a sofística praticada na Hélade Clássica das póleis - a Antiga Sofística - e a sofística praticada sob o Império Macedônico e depois sob o Império Romano - a Segunda Sofística (VS, I, 481, 507). No entanto, a grande maioria de sofistas citados pertence aos três primeiros séculos do Império Romano.

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por ele selecionados para biografar. Percebemos que o próprio autor era um sofista e, em sua própria definição, sofistas eram oradores públicos e professores de retórica que para receber este título necessitavam basicamente de algumas características como: estilo ornamentado, sucesso em improvisações, versatilidade, boa resposta, atitude política, força e vigor no discurso, técnica panegírica em elaborar esquemas de discurso (VS, I, 484-486). Muitos sofistas viajavam constantemente pelas cidades do Império pronunciando conferências e receberam grande prestígio da sociedade aristocrática no Império Romano. Na obra em questão, Filóstrato retratou, portanto, seu meio cultural, projetando o que achava correto ou não como função para seu grupo nas relações de poder dentro do Império Romano. Quando mencionamos o termo “dentro” do Império Romano, estamos já delimitando o espaço de circulação dos sofistas filostratianos em nossa análise: apenas as relações destes com o que fazia parte da administração interna deste Império na visão do autor da Vida dos Sofistas. Portanto, não trabalharemos aqui aspectos que dizem respeito a estes sofistas e as relações do Império Romano com povos que não faziam parte do orbis romanorum. O conceito de Poder, conforme a definição de Mario Stoppino,3 significa, em linhas gerais, a ação ou a capacidade de agir de um homem sobre outro homem. Portanto, é a capacidade de uma pessoa produzir os efeitos desejados por ela, determinando o comportamento de outras pessoas. Também podemos considerar que há dois tipos de poder. O primeiro tipo seria o ato efetivamente exercido (ato concreto) evidenciado pelo exercício de domínio e influência. O segundo é o potencial (possibilidade de agir), a representação que uma pessoa ou um grupo de pessoas projetam em alguém devido a aptidões que esta possua. Neste texto, consideraremos poder como o potencial que Filóstrato demonstra terem os sofistas, buscando afirmá-lo aos seus leitores. Também consideraremos como poder, a relação de administração dos romanos sobre suas províncias e, portanto, a 3 STOPPINO, Mario. Poder. In: BOBBIO, Norberto (et al). Dicionário de Política. Tradução de Luís Guerreiro Pinto Cacais (et al). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1909, pp. 933-936.

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pretensa capacidade que Filóstrato atribui ao seu grupo de exercer atividades na organização e ordem do Império. Antes de iniciar nossa análise da documentação propriamente, cabe levantar algumas considerações sobre Flávio Filóstrato. Sabemos que nosso sofista nasceu provavelmente entre 160 e 175 na ilha grega de Lemnos, parte do território ateniense, filho de ricos membros da ordem senatorial, recebeu uma educação voltada aos interesses dessa camada social.4 Foi sofista e fez parte em Roma do grupo de artistas e intelectuais apoiados pela Imperatriz Julia Domna, esposa de Septímio Severo (193-211), ele mesmo nos relata isso em uma passagem de uma de suas obras: A mim, que fazia parte de seu círculo, pois elogiava e admirava todos os discursos retóricos, me encarregou de redigir estes ensaios e me ocupar de sua publicação [...] (FILOSTRÁTO, Vida de Apolônio de Tiana, I, 3).

Filóstrato desenvolveu boas relações com a Imperatriz, chegando a escrever uma carta para ela, a Carta 73 de sua coleção de Cartas, e a acompanhá-la em diversas viagens.5 Não havendo, contudo, nenhum documento que ateste alguma posição formal de Filóstrato nestas possíveis viagens.6 Indicações epigráficas mostram que Filóstrato ocupou o cargo de general hoplita em Atenas e foi representante do governo de sua cidade. Conforme as hipóteses de Jaap-Jan Flinterman7, tais cargos foram ocupados, 4

Sobre Filóstrato, além de informações remetidas pelas suas próprias obras e demais livros sobre História de Roma, utilizaremos indicações de estudiosos e tradutores de seus textos.

5 BOWIE, E. Philostratus: the life of a sophist. In: BOWIE. E. ELSNER, J. Philostratus. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 20. FLINTERMAN, J. J. Power, Paideia & Pythagoreanism: Greek identity, conceptions of the relationships between philosophers and monarchs and political ideas in Philostratus’ Life of Apollonius. Amsterdam: J. C. Gieben, 1995, p. 20. 6

WHITMARSH, T. Prose literature and the Severan dynasty. In: SWAIN, S. HARRISON, S. ELSNER, J.. SWAIN, S. (edits.) Severan Culture. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 36.

7

Ibidem, p. 20.

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provavelmente, antes e depois de sua estadia na corte de Júlia Domna em Roma. Ewen Bowie8 nos indica que no curso de sua carreira, Filóstrato parece ter combinado alguns cargos de política local em Atenas com a atividade de sofista. O que aconteceu na vida de Filóstrato após a morte de Júlia Domna ainda é algo obscuro, havendo autores que acreditam que ele foi embora de Roma para a cidade fenícia de Tiro e outros que defendem que ele passou a viver em Atenas, escrevendo seus textos, exercendo atividades como sofista e ocupando cargos públicos. Não há nenhuma indicação documental que mostre que ele continuou vivendo em Roma. Entre as obras de Filóstrato está a coleção de biografias que nos propomos tratar neste texto, Vida dos Sofistas,9 uma série de relatos sobre intelectuais de prestígio e fama na época do Império Romano.10 A seguir, destacaremos alguns aspectos importantes da obra em questão, fundamentais para o tratamento documental da mesma dentro de nossa proposta de análise neste texto. Considerações acerca da Vida dos Sofistas, de Flávio Filóstrato A VS, de Filóstrato, está dividida em dois livros, contendo informações sobre sessenta intelectuais classificados como filósofos que desenvolveram atividades de sofistas,11 sofistas da Antiga Sofística12 e sofistas da Segunda Sofística.13 São listados 8

Ibidem, p. 20.

9

Iremos abreviar o título da obra Vida dos Sofistas por VS, conforme regras de abreviatura de nomes de autores e de obras clássicas utilizadas pelo Oxford Classical Dictionary.

10 Utilizamos o termo intelectual para referirmos àquelas pessoas cuja principal atividade é o devotamento sistemático ao conhecimento. O pesquisador, tal como concebe nossa cultura ocidental, é um intelectual porque suas disciplinas de trabalho são eminentemente cognoscitivas. SILVA, S. C. Magia e Poder no Império Romano. A Apologia de Apuleio. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2012, p. 131. 11 Seis filósofos da chamada Antiga Sofística e dois filósofos da época da Segunda Sofística. 12 Nove sofistas. 13 Quarenta e três sofistas.

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vinte sofistas de cada geração, um número muito pequeno diante da quantidade de sofistas que existiu, o que nos indica a escolha deliberada de Filóstrato sobre quais sofistas biografar. Embora trate de biografias é muito diferente da Vida de Apolônio de Tiana, conhecida biografia também de autoria de Flávio Filóstrato em relação ao estilo.14 As biografias aqui tratadas são curtas e talvez apenas algumas Vidas possam ser de fato consideradas biografias por serem relatos de trajetórias de personagens históricos, outras são breves comentários como uma espécie de catálogo de nomes de sofistas e a apreciação de Filóstrato sobre os mesmos. A maior biografia da VS, e que de fato tem uma expressão de biografia propriamente, é a de Herodes de Atenas (Livro II). Simon Swain15 acredita que mesmo Eunápio de Sardes, também biógrafo de sofistas, tendo considerado a VS de Filóstrato como βίος - Bíos, para ele, a obra é bem diferente das tradicionais biografias do Principado, sendo uma mistura de biografia e doxografia.16 O título Vidas dos Sofistas talvez não seja o original. Com exceção das vidas de Herodes de Atenas e Polemão, as demais biografias não se enquadram no que se constituía este gênero na época. A biografia escrita por Filóstrato é bem sui generis, pois está polarizada de informações sobre a profissão sofística e juízos de estilo, em detrimento das notícias biográficas propriamente. De acordo com Flinterman,17 uma série de biografias da VS mostra o próprio meio cultural do autor. Jas’ Elsner18 acredita que a VS é baseada nos modelos da obra Vidas Ilustres de Suetônio, mostrando os sofistas como heróis. Ainda conforme este autor, Filóstrato mudou o gênero das biografias para uma história cultural do que ele realmente considerava importante no período. 14 Ainda que haja mais de um autor com nome de Filóstrato, sabemos que a autoria destas duas obras é do mesmo Filóstrato por este mesmo mencionar como de sua autoria o texto Vida de Apolônio de Tiana na obra Vidas dos Sofistas (II, 570). 15 SWAIN, S. The reability of Philostratus’s “Live of the Sophists”, Classical Antiquity, vol. 10, n. 01, 1991, p. 150. 16 Espécie de relato de ideias de um autor interpretadas por outro. 17 Ibidem, p. 29. 18 ELSNER, J. A Protean Corpus. In: BOWIE. E. ELSNER, J. Philostratus. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 08.

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É uma defesa dos sofistas como provedores da cultura, da retórica e da educação, na qual a filosofia pode ser incluída e a formulação de uma cultura grega está claramente citada. Para Wilamowitz,19 a retórica não é o interesse central da VS, nesta obra Filóstrato não quer apenas expor um tipo de orador, mas um grupo distinto que possui valores sociais, culturais e políticos. Concordamos com Wilamowitz sobre a VS ser importante para percebermos o universo cultural do autor e acrescentamos que por estas razões esta obra é fundamental para compreendermos os valores de nosso autor e a analisaremos como uma autoexaltação à sua categoria de sofista dentro do Império Romano. Entretanto, discordamos que há não há elementos retóricos na VS. Em linhas gerais, não compreendemos retórica como mera literatura, mas como uma arte de persuasão com técnicas especializadas, muito típica aos sofistas e que certamente fez parte da escrita da VS e das outras obras de Filóstrato. Há dois Filóstratos citados como sofistas na VS: Filóstrato, o egípcio (VS, I, 486) e Filóstrato de Lemnos (VS, II, 623). Na Introdução de sua tradução da VS, María Concepción Giner Soria20 comenta que Filóstrato, o egípcio, não possuía relações com a família do autor. Já Filóstrato de Lemnos certamente era um parente de nosso Filóstrato. Soria21 acredita que esta obra foi escrita em Atenas, pois Filóstrato escreve sobre as cidades da Ásia, as viagens dos sofistas e suas atuações com a perspectiva de um habitante de Atenas. Não concordamos que por ele escrever com tal perspectiva signifique que ele estivesse em Atenas no momento de escrita das biografias, informação que não temos dados para confirmar ou negar, apenas podemos perceber que ele se posiciona como um ateniense, o que de fato Filóstrato era. A tradutora Soria22 ainda infere que a obra interessava a artífices do discurso contemporâneos do autor, aos alunos de 19 Apud SWAIN, Ibidem, p. 149. 20 SORIA, M. C. G. Introducción. FLÁVIO FILÓSTRATO. Vidas de los Sofistas. Introducción, traducción y notas de María Concepción Giner Soria. Madrid: Editorial Gredos, 1982, pp. 07-61. 21 Ibidem, pp. 09-11. 22 Ibidem, p. 10.

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retórica de Filóstrato e a pessoas que gostavam de literatura e oratória. Enfim, pessoas que se formavam em escolas onde a retórica era objeto central de estudo e pessoas familiarizadas com os nomes principais da arte retórica. Sendo que o interesse na produção do texto, de acordo com a tradutora, foi de informar, mostrar habilidades de narrador do autor e também mostrar sua agudeza crítica. Sobre a datação de escrita da VS, em uma passagem da biografia de Heliodoro (VS, II, 626-627), após mostrar os favores que este sofista recebeu do imperador, que pela cronologia do próprio documento, era Caracala, Filóstrato menciona o que fez Heliodoro após a morte do imperador, nos deixando já entender que a VS foi escrita após a morte deste. Há segurança também em afirmarmos que a obra foi escrita após o governo de Heliogábalo, talvez durante o governo de Severo Alexandre ou um de seus sucessores, já que Heliogábalo é citado na biografia do sofista Eliano de maneira negativa. Elaborou um discurso de acusação contra Gínnide, pois assim denominou o tirano que acabava de ser executado [...] (VS, II, 624).

Não acreditamos que Heliogábalo estivesse vivo na época de escrita da VS já que, assim sendo, dificilmente Filóstrato escreveria negativamente sobre ele. O próprio Filóstrato nos remete a tais conclusões quando cita, nesta mesma passagem sobre Heliogábalo, que Filóstrato de Lemnos admirava um homem que escreve depreciando um imperador, estando este vivo.23 Encontrou-lhe Filóstrato de Lemnos em uma ocasião, tendo, entretanto, nas mãos um escrito que lia com voz irada e tonante, e lhe perguntou em que se ocupava; ele respondeu: “Elaborei um discurso de acusação contra Ginmide – pois assim chamo ao tirano que acaba de ser justiçado, porque cobriu Roma de tirania de todo tipo”. E replicou Filóstrato: “Eu te admirarei, se acusar um tirano em vida.” Pois atacar a 23 Sobre as recorrentes visões negativas e condenatórias de Heliogábalo por parte dos grupos privilegiados da elite romana, sugerimos a leitura de: GONÇALVES, A. T. M. Heliogábalo: culto oriental e oposição senatorial, História, São Paulo, 17/18, 1998/1999, p. 147-158.

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um tirano vivo é coisa de homens fortes, insultá-lo quando morto, coisa de qualquer um (FILÓSTRATO, VS, II, 624).

Talvez a VS tenha sido escrita no governo de Severo Alexandre (222 - 235), já que seu antecessor Heliogábalo é citado negativamente. De acordo com o Suda, léxico medieval bizantino, Filóstrato viveu até o período de Felipe, o árabe (244 - 249). Se tomarmos como certa a informação deste léxico, portanto, a VS poderia ter sido escrita também após Severo Alexandre, o que achamos pouco provável por dois motivos. O primeiro motivo diz respeito à idade de Filóstrato. Se tomarmos como provável data de nascimento do autor os anos entre 160 e 170, como atualmente os estudiosos têm acreditado ser o período mais provável para seu nascimento, então ele teria mais de setenta anos. O segundo motivo é que acreditamos que talvez Filóstrato, como outros de seus contemporâneos, possa ter visto no jovem Severo Alexandre uma possibilidade para o Império ter novamente um bom governante após os considerados mal sucedidos governos de Caracala e, especialmente, de Heliogábalo, mostrados por estes mesmos escritores contemporâneos de nosso autor e por nosso autor também.24 Sendo assim, acreditamos que a obra VS contenha elementos retóricos que buscam convencer um imperador, no qual o autor depositava suas esperanças de bom governante, sobre os atributos e funções dos sofistas perante o poder imperial romano. Ou seja, a obra, analisada à luz da reflexão histórica, nos parece repleta de informações de como os sofistas podem se relacionar com a política e serem, de certa forma, úteis na organização do Império Romano. Desta forma, para nós, um dos públicos ao qual Filóstrato direciona sua obra é a própria família imperial e o imperador. Além destas informações, podemos inferir que certamente a obra foi escrita antes de 238, quando Gordiano se torna imperador, já que a mesma é dedicada a este e na dedicatória Gordiano não é mencionado como Imperador. Portanto, temos como hipótese para a datação de escrita da VS o período de governo de Severo 24 As críticas de Filóstrato a Caracala e a Heliogábalo estão em: Carta 72, VS, II, 607, 623, 624. Sobre as críticas de autores contemporâneos de Filóstrato a Heliogábalo, Dião Cássio e Herodiano, ver: GONÇALVES, Ibidem.

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Alexandre. Nossa leitura é apenas uma possibilidade de análise desta obra já bem conhecida e trabalhada. Não acreditamos que a pretensão de Filóstrato ao escrever este texto seja fazer uma espécie de manual sobre os sofistas e suas funções, também não acreditamos que nosso objeto seja o único possível de análise na obra, mas achamos que tais elementos aparecem com certo destaque em diversas biografias, o que buscaremos mostrar a seguir. Sofistas e Poder Imperial Logo no início de cada biografia, Filóstrato mostra a origem social do biografado. Os sofistas escolhidos por ele são, em grande parte, membros das famílias abastadas financeiramente do Império Romano. Filóstrato não deixa de mencionar que alguns sofistas, como Polemão (VS, I, 530), Herodes de Atenas (VS, I, 545), Antíoco de Egas (VS, II, 568) e Hermócrates, (VS, II, 597) tinham antepassados ilustres na política imperial romana, homens que ocuparam o Consulado. Outros sofistas, embora não mencionados como descendentes de cônsules, eram de famílias com alta dignidade, tais como: Pólo de Agrigento (VS, I, 497), Evodiano de Esmirna (VS, II, 596), Damiano de Éfeso25 (VS, II, 605), Antípatro de Hierápolis (VS, II, 607) e Heraclídes de Esmirna (VS, 612). Contudo, alguns sofistas não são de famílias financeiramente abastadas, o que também é mencionado, como nos casos de Dionísio de Mileto (VS, I, 521), que não descendia de antepassados ilustres e que passou a ser membro da ordem equestre por favores do imperador Adriano; Segundo de Atenas, que era filho de um carpinteiro (VS, I, 544); Rufo de Perinto, que Filóstrato menciona não ter vindo de uma família de cônsules (VS, II, 597) e Quirino da Nicomédia, cuja família não era nem ilustre, nem desprezível (VS, II, 621). Sendo assim, discordamos de Bowie26 que afirma que os sofistas 25 Em Damiano de Éfeso percebemos claramente como as ordens sociais e a ligação destes sofistas com o poder romano eram importantes para Filóstrato, nesta biografia ele menciona que Damiano de Éfeso teve muitos antepassados e descendentes que mereceram as honras de figurarem no Senado (VS, II, 605). 26

BOWIE, E. “The Importance of Sophists”, Yale Classical Studies, vol. XXVII, 1982, p. 54.

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filostratianos são apenas homens das camadas abastadas. Como percebemos, há sim menções a alguns sofistas que não seguem esse padrão. O próprio Filóstrato cita que apenas mencionará os pais dos seus biografados quando esses forem personagens notáveis (VS, I, 479), ou seja, há também os que vieram de famílias menos abastadas. Como podemos ler, há uma menção explícita aos cargos ocupados pelos familiares destes sofistas na política imperial. Nem todos sofistas da VS descendiam dos grupos privilegiados do Império, mas o biógrafo só menciona suas ascendências no caso de terem familiares ocupando importantes cargos. Podemos, com isso, perceber o valor positivo e valorizado que tais cargos tinham na visão de Filóstrato sobre os sofistas. Os sofistas empregavam seus discursos na vida cotidiana, proferiam declamações quando as cidades recebiam importantes visitantes em embaixadas e ocupavam cargos na administração das regiões de língua grega do Império. Grande parte dos sofistas da VS ocupou as cadeiras de retórica de Atenas e de Roma.27 De acordo com Filóstrato (VS, II, 588) ocupar a cadeira de retórica, tanto a municipal de Atenas, como a imperial de Roma, significava ser encarregado da educação dos jovens. Há ainda vários outros sofistas mencionados como professores, tendo suas escolas de retórica,28 e outros ocupando cargos sacerdotais.29 Em funções administrativas nas cidades, Filóstrato nos relata sobre Antifonte que foi estratego (VS, I, 490); Esquines, que 27 Dos sofistas biografados, ocuparam a cadeira de retórica em Atenas: Loliano de Éfeso (VS, I, 526), Teodoto de Atenas (VS, II, 566), Adriano, o fenício (VS, II, 587), Pólux (VS, II, 593), Hipódromo da Tessália (VS, II, 618), Filisco da Tessália (VS, II, 621). Sobre a cadeira de retórica de Roma, Filóstrato menciona que foi ocupada pelos seguintes biografados: Filagro (VS, II, 580), Pausânias (VS, II, 594), Aspásio de Ravena (VS, II, 627) e Evodiano de Esmirna (VS, II, 596). 28 Como Iseu (VS, I, 513), Dionísio de Mileto (VS, I, 522), Marcos de Bizâncio (VS, I, 528), Crestos de Bizâncio (VS, II, 591), Atenodoro (VS, II, 594), Onomarco de Andros (VS, II, 589), Apolônio de Atenas (VS, II, 600), Proclo (VS, II, 604), Damiano de Éfeso (VS, II, 606), Heraclídes da Lícia (VS, II, 613). 29 Favorino foi proclamado sumo sacerdote (VS, I, 490); Escopeliano foi sumo sacerdote da Ásia, como seus antecessores familiares (VS, I, 515); Evodiano de Esmirna, pela dignidade de sua família, chegou a ser sumo sacerdote (VS, II, 596); Apolônio de Atenas foi sacerdote sagrado, hierofante no templo de Elêusis (VS, II, 600) e Heraclídes da Lícia foi sumo sacerdote na Lícia (VS, II, 613).

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foi nomeado pelos atenienses como delegado de um conselho (VS, I, 508); Heraclídes, que foi magistrado em Esmirna (VS, II, 613); Polemão, que presidiu os Jogos Olímpicos (VS, II, 530) e Apolônio de Atenas, que prestou serviços considerados de grande importante em Atenas (VS, II, 600). Outra menção recorrente na VS é sobre o sofista enquanto agente político dos interesses da sua cidade em relação às demais cidades gregas e ao Império Romano. Neste sentido, os sofistas aparecem na VS como oradores públicos defendendo os interesses de sua cidade e como negociadores frente aos imperadores romanos. O primeiro sofista mencionado em situação de negociação é Leão de Bizâncio, que convence Felipe da Macedônia a não conquistar sua cidade, Bizâncio, por meio de sua boa oratória. Ou seja, o fato de ser bom orador aparece aqui sendo destacado por Filóstrato como elemento nas negociações de guerra e paz do mundo antigo. Nesta mesma passagem da VS, aparece o sofista Demóstenes convencendo os atenienses sobre a liberdade de Bizâncio. Temos também o sofista Leão em missão em Atenas a favor de Bizâncio. Leão de Bizâncio ouviu as lições de Platão quando ainda era jovem. Quando adulto foi chamado de sofista por ser versado em todas as modalidades de oratória e persuasivo nas respostas. Assim, foi ao encontro de Felipe quando este comandava uma ação militar contra Bizâncio e lhe perguntou: - Diga-me, Felipe, por que motivo começa essa guerra? E este lhe respondeu: - Sua cidade, por ser a mais bonita das cidades, me induziu a amá-la e, por isso, venho às portas de minha amada. Respondendo, disse Leão: - Não devem ir com espadas à porta de sua amada aqueles que merecem ser correspondidos, pois os apaixonados não precisam de instrumentos bélicos, e sim musicais. E Bizâncio se tornou livre, depois que Demóstenes dirigiu longos discursos aos atenienses e Leão poucas palavras a Felipe. Este mesmo Leão foi como emissário a Atenas quando, há muito tempo, a cidade se debatia em discórdias e se regiam normas diferentes das tradicionais, ao apresentar-se ante a assembléia provocou uma risada geral por seu aspecto, pois estava gordo em excesso. Mas, sem ligar para as risadas, disse: - Do que riem, atenienses? Perguntou. – Por acaso é porque sou obeso? Tenho uma mulher muito mais gorda e quando estamos bem, temos espaço suficiente na cama, mas se estamos em discórdia nem a casa nos

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basta. O povo de Atenas voltou à harmonia, apaziguados graças a Leão, que improvisou magistralmente em concordância com a ocasião (VS, I, 485).

Hípias de Élide serviu em várias missões em nome de sua cidade, conseguindo riquezas para a mesma: Como representante de Élide, fez parte de embaixadas mais do que qualquer grego, e em nenhum lugar prejudicou a boa fama com seus discursos oficiais ou dissertações, ao contrário, conseguiu riquezas e foi inscrito entre as tribos das cidades pequenas e grandes (VS, I, 495).

Pródico também serviu em missões em nome de Atenas (VS, I, 496) e Esquines foi em embaixada até Felipe da Macedônia (VS, I, 508). Heliodoro da Arábia foi designado para defender o interesse de sua região na terra dos celtas (VS, II, 625). Em relação aos imperadores romanos, temos citações de Marcos de Bizâncio em missão, em nome dos bizantinos, frente ao imperador Adriano (VS, I, 530). Polemão defende Esmirna para Adriano (VS, I, 531, II, 536). Alexandre Peloplatão defende Selêucia para Antonino Pio (VS, II, 570). Apolônio de Atenas preside, nos dizeres de Filóstrato, embaixadas mais graves, estando frente ao imperador Septímio Severo (VS, II, 600). É importante percebermos, como nos mostra María José Hidalgo de la Vega,30 que os diversos estatutos que as cidades recebiam sob o Império Romano podiam mudar conforme as relações que as mesmas estabeleciam com o imperador. Sendo assim, a função destes sofistas para sua cidade perante a organização imperial era extremamente importante. Assim, também concordamos com Hidalgo de la Vega31 quando afirma que os sofistas eram espécie de porta-vozes dos interesses de suas cidades frente ao Império Romano. Na análise da visão filostratiana acima exposta é isso que nos fica claro. Da mesma forma, acreditamos que estes sofistas eram importantes para a própria organização imperial romana, o que certamente Filóstrato 30 HIDALGO DE LA VEGA, M. J. Ciudades griegas en el Império Romano. La mirada de los sofistas. Stvdia Historica, 20, 2002. p. 77. 31 Ibidem, p. 78.

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sabia e buscou ressaltar na VS indicando as funções de seus biografados. Houve sofistas que adquiriram altas posições na administração do Império. Dionísio de Mileto foi nomeado sátrapa por Adriano (VS, II, 523). Na biografia de Dionísio de Mileto (VS, II, 524), Filóstrato menciona o sofista Céler, que foi secretário imperial. Antípatro também foi secretário imperial de Septímio Severo, figurou na lista dos cônsules e foi governador da Bitínia, este sofista também foi nomeado preceptor dos filhos de Septímio, os futuros imperadores Geta e Caracala (VS, II, 607). Alexandre Peloplatão foi chamado por Marco Aurélio para ser seu secretário imperial em assuntos gregos (VS, II, 571). O sofista Quirino foi advogado do fisco (advocatus fisci), cargo que o próprio imperador o incumbiu (VS, II, 621). Caracala colocou o sofista Heliodoro frente ao mais importante órgão de advogados públicos de Roma, como homem especialmente adequado para tribunais e litígios (VS, II, 626). Muitos sofistas foram bem próximos dos imperadores romanos e destes receberam honras e favores. Filóstrato menciona que o imperador Trajano levou Dião de Prussa para Roma e devido às capacidades de bom orador, o imperador o fez subir no carro triunfal que desfilavam os imperadores após as guerras (VS, I, 488). Favorino teve um problema com o imperador Adriano, mas este não lhe fez nenhum mal (VS, I, 489).32 O imperador Nerva buscou defender o sofista Nicetes quando esse teve um desentendimento com um cônsul (VS, I, 499). Dionísio de Mileto recebeu honras das mãos do próprio imperador, que o inscreveu na ordem equestre, o nomeou sátrapa de povos muito importantes

32 Favorino foi exilado, pelo que tudo indica, devido aos problemas com o imperador Adriano WHITMARSH, T. Greece is the world: exile and identity in the Second Sophistic. In: GODHILL, S. Being Greek under Rome. Cultural identity, the Second Sophistic and the Development of Empire. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 296. No entanto, para nós, essa informação é ocultada da VS, provavelmente de forma consciente por Filóstrato, a fim de não denegrir a imagem de seu biografado. Filóstrato também nega que a estadia de Dião de Prussa entre os getas (VS, II, 488) foi motivada por um exílio. Sobre o exílio de Favorino e Dião de Prussa ver WHITMARSH, Ibidem.

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e o fez inscrito nas listas dos mantidos pelo Museu33 (VS, I, 524). Marco de Bizâncio foi admirado por Adriano por ocasião de uma embaixada frente ao imperador. Polemão foi conselheiro de Adriano e recebeu deste imperador e de Trajano isenções de pagamento de impostos (VS, I, 532). Herodes, o ateniense, é apresentado mantendo ótimas relações com o imperador Marco Aurélio, os dois trocam cartas e Filóstrato cita que o imperador mandava tantas cartas a Herodes que houve ocasiões de chegarem três portadores de cartas em um mesmo dia na casa do sofista (VS, II, 562). Herodes emprega, segundo as palavras de Filóstrato, sua inteligência a serviço de seu imperador (VS, II, 563), o que podemos compreender como um ato de lealdade na visão filostratiana. Marco Aurélio teve vontade de escutar Hermógenes de Tarso, que obteve fama como sofista ainda muito jovem (VS, II, 577). O sofista Aristides chorou ante Marco Aurélio a destruição de Esmirna, ele é citado como o fundador da cidade por Filóstrato, pois conseguiu dinheiro deste imperador para reconstruir a cidade destruída por um terremoto (VS, II, 582). Quando Marco Aurélio visitou Atenas, para iniciar-se nos Cultos de Mistérios, colocou entre seus afazeres importantes conhecer o sofista Adriano, que ocupava a cadeira de retórica de Atenas nesse período (VS, II, 588). Filóstrato conta também que o sofista Antípatro, preceptor dos filhos de Septímio Severo, desejava casar sua feia filha com o sofista Hermócrates, este negou o matrimônio, mas voltou atrás e aceitou o casamento quando Septímio Severo o chamou até o Oriente e lhe deu a jovem como esposa. Severo ouviu Hermócrates declamar e lhe rendeu muita admiração, lhe concedendo favores, que, porém, não foram aceitos por Hermócrates, alegando já ter recebido como herança de seus antepassados, pedindo apenas incenso ao imperador (VS, II, 611). Embora o imperador Caracala, chamado pelo seu nome Antonino, seja apresentado negativamente por ter retirado a isenção de impostos concedida aos sofistas que ocupavam a cadeira de retórica de Atenas e ter desmerecido os discursos de Favorino, em outro momento do texto, ele é apresentado também positivamente, já que concedeu 33 De acordo com Filóstrato (VS, I, 524), está lista é a do Museu de Alexandria, na qual estavam escritos pesquisadores e intelectuais mantidos às expensas públicas.

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isenção de serviços públicos para Filóstrato de Lemnos (VS, II, 623). Ainda sobre a boa relação dos sofistas com os imperadores, Filóstrato escreve que Aspásio de Ravena “foi a muitas regiões da terra acompanhando o imperador” (VS, II, 627), que segundo Soria34 era, possivelmente, Caracala. Alguns sofistas ocuparam a posição de ab epistulis graecis. Esta função, espécie de secretário imperial, era exercida por aqueles que se encarregavam das correspondências imperiais.35 Filóstrato menciona sofistas ocupando tal posição na burocracia imperial em várias partes da VS: Alexandre Peloplatão sob o governo de Marco Aurélio (VS, II, 571), Adriano de Tiro sob Cômodo (VS, II, 590), Antípatro de Hierápolis sob Septímio Severo (VS, II 607) e Aspásio de Ravena sob Severo Alexandre (VS, II, 629). Antípatro de Hierápolis é um caso paradigmático de sofista que esteve próximo aos imperadores de Roma na época severiana. Filóstrato nos descreve os cargos por ele ocupados, como já mencionamos, e sua proximidade como tutor dos filhos de Septímio Severo, o recebimento do grau consular e o governo da Bitínia (VS, II, 607). Além do testemunho filostratiano, uma inscrição encontrada em Éfeso, datada de 200 e 205, mostra uma resposta de Caracala para uma missão diplomática dos efésianos. De acordo com Bowersock,36 nesta inscrição, há uma referência aos membros do consilium do princeps, incluindo Antípatro, “meu amigo, professor e ab epistulis”. Portanto, a relação entre sofistas e imperadores é positiva e afirmada na VS. Os sofistas servem ao poder romano como conselheiros imperiais, secretários, preceptores dos futuros imperadores, ocupando cargos públicos e também negociando em nome de suas cidades. Diante do que pudemos perceber na análise da VS, não 34 Ibidem, p. 248. 35 Nos século II e início do III, a posição de ab epistulis para as correspondências gregas era monopolizado por sofistas e retóricos do Oriente greco-romano. Em alguns documentos a designação ab epistulis não aparece sempre precisamente, como no caso da VS de Filóstrato. Tal posto poderia ser uma oportunidade de ascensão de ordem social. BOWERSOCK, G. W. Greek Sophists in the Roman Empire. Oxford: Clarendon Press, 1969, p. 50. 36 Ibidem, p. 55.

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concordamos com as teses de Reardon37 e de Bowie38 quando estes estudiosos afirmam que os sofistas estavam voltados para ações pedagógicas simplesmente e não eram comprometidos com a política imperial. Pelo menos não foi essa a imagem que nosso autor buscou passar sobre sua categoria. Em Filóstrato vemos claramente os sofistas ocupando cargos na administração de suas cidades e do Império Romano, além de muitos deles terem contatos bem próximos com os Imperadores de Roma. Não podemos afirmar que isso era comum entre todos os sofistas, para isso precisaríamos analisar as obras de outros autores do período e documentação epigráfica, o que não é nosso objetivo neste texto. Contudo, dentro das possíveis intenções filostratianas de afirmação do grupo do qual ele fazia parte, percebemos que os sofistas eram para Filóstrato comprometidos com a política de suas cidades e do Império Romano, como já destacou Bowersock.39 Além disso, não podemos concordar com a separação que Reardo40 e Bowie41 fazem de cultura e política. Para nós, as ações pedagógicas eram as formadoras dos futuros homens engajados nas ações políticas de suas cidades e do Império como um todo, era por meio dessa formação, a Paideia que os jovens das camadas abastadas do período do Principado recebiam valores para seu futuro na política. Feitas essas observações sobre os sofistas filostratianos e o poder imperial, precisamos analisar como Filóstrato trata na VS a cultura grega de seus biografados, algo que também aparece com certo destaque conforme nossas leituras. No livro The Second Sophistic, Grahan Anderson42 comenta que a Segunda Sofística, termo que aparece pela primeira vez 37 Apud SWAIN, S. The reability of Philostratus’s “Live of the Sophists”, Classical Antiquity, vol. 10, n. 01, 1991. 38 BOWIE, E. “The Importance of Sophists”, Yale Classical Studies, vol. XXVII, 1982. 39 Ibidem . 40 Ibidem. 41 BOWIE, E. “The Importance of Sophists”, Yale Classical Studies, vol. XXVII, 1982. 42 ANDERSON, G. The Second Sophistic. A Cultural Phenomenon in The Roman Empire. Londres: Routledge, 1993.

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na documentação filostratiana (VS, I, 481, 507) para definir este momento e o grupo de intelectuais que fazia parte dele, foi um “Renascimento grego” de intelectuais gregos ligados à elite romana.43 Não concordamos com este historiador por dois motivos. Primeiramente achamos que Anderson posiciona os intelectuais gregos e a elite romana como duas coisas diferentes. Em segundo lugar, percebemos que Anderson tem uma ideia de elite como algo homogêneo em termos de camada social e classifica os sofistas como membros de uma elite grega diferente da romana. Interpretamos os sofistas de Filóstrato como membros de um grupo privilegiado do Império. E, embora Filóstrato defenda a educação grega de seus biografados, como percebemos em diversas passagens, os elementos desta educação não eram fixos e coerentes no século III, mas hibridizados. Há sim uma excessiva valorização da cultura grega em Filóstrato. Mas falar em um “Renascimento grego” é desconsiderar a junção destes intelectuais aos valores imperiais, não os percebendo dentro da estrutura do Império Romano e não percebendo esta valorização como afirmação filostratiana de um papel para os que possuíam a Paideia. No entanto, mesmo perante essa relação positiva dos sofistas com o poder Romano e sua integração nas estruturas imperiais, Christopher Jones44 nota que uma visão muito comum em alguns trabalhos recentes sobre a Segunda Sofística mostra que ser grego e ser romano eram atitudes opostas neste período. Uma afirmação que tem sido feita intensamente é que ser grego nesse período era ser hostil ao controle de Roma. Como exemplo destas análises, Jones45 indica a visão de Paul Veyne sobre Dião de Prussa. Jones46 acredita que o debate sobre a marcante helenidade nos 43 Na documentação filostratiana lemos o termo δευτέραν para se referir a Segunda Sofística, em oposição aos termos ἀρχαία  σοφιστικὴ que se referem à Sofística Antiga (VS, I, 481). Em VS, I, 507, novamente temos a expressão δευτέρας σοφιστικῆς como Segunda Sofística. 44 JONES, C. P. Multiple identities in the age of the Second Sophistic. In: BORG, B. (edit.) Paideia: The world of the Second Sophistic. Berlim/Nova Ioque: Walter de Gruyter, 2004. 45 Ibidem, p. 14. 46 Ibidem, p.14.

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textos dos escritores da Segunda Sofística é muito vago em alguns estudos. Concordamos com Jones em relação aos estudos sobre nosso autor, pois como vemos, muitos estudiosos ressaltam a preocupação das obras filostratianas em mostrar a cultura grega, mas não analisam profundamente o significado que isso tem.47 O suposto patriotismo helênico é, para Jones, uma verdadeira quimera, sendo a real identidade dos πεπαιδευμενοι- pepaideuménoi48 mais complexa do que uma simples oposição de gregos versus romanos. Novamente concordamos com Jones e pontuamos que a identificação dos sofistas deve ser, então, analisada como constituída de multicamadas, da qual ser heleno é apenas uma parte. Diante do exposto, pensamos que um fator fundamental a ser considerado na análise da relação dos sofistas com o poder romano é a trajetória de cada autor analisado. Tim Whitmarsh49 nos dá um interessante exemplo da diferença neste sentido, analisando a relação de três escritores da Segunda Sofística, a partir da reflexão sobre a origem de cada um e sua inserção nas estruturas de poder romanas. Musônio, Dião de Prussa e Favorino são os autores estudados neste ensaio de Whitmarsh. O próprio Veyne parece rever seu posicionamento e em O 47 Como fazem os seguintes autores: WHITMARSH, T. Prose literature and the Severan dynasty. In: SWAIN, S. HARRISON, S. ELSNER, J.. SWAIN, S. (edits.) Severan Culture. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 2951; BOWIE, E. Philostratus: the life of a sophist. In: BOWIE. E. ELSNER, J. Philostratus. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, pp. 19-32; SWAIN, Simon. Culture and nature in Philostratus. In: BOWIE. E. ELSNER, J. Philostratus. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 33-46. 48 Homens considerados instruídos, que haviam recebido a Paideia. A Paideia é considerada a forma de diferenciação destes sofistas em uma sociedade claramente dividida entre educados (honestiores) e ignorantes (humiliores), no grego: instruídos (πεπαιδευμενοι - pepaideuménoi) e não instruídos (ιδιώηαι - idiotai ou απαιδευτοι, aquele que não recebeu a Paideia). Podemos ver em Filóstrato que pepaideuménoi é aquele que recebeu a Paideia grega (VA, III, 43). Este fator também era o que estes homens instruídos sentiam diferenciá-los dos “bárbaros” (βαρβαροι - barbaroi). 49 WHITMARSH, T. Greece is the world: exile and identity in the Second Sophistic. In: GODHILL, S. Being Greek under Rome. Cultural identity, the Second Sophistic and the Development of Empire. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, pp. 269-305.

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Império greco-romano,50 trabalho posterior ao citado por Jones,51 afirma que “era possível, ao mesmo tempo, desprezar Roma, orgulhar-se de ser grego e apoiar a ordem imperial. Ser xenófobo, helênico patriota, e ‘colaborador’. De fato essa era a posição majoritária.” Neste mesmo trabalho, este historiador também escreve que muitos gregos faziam carreira senatorial e equestre, “assumiam aquilo que chamamos de nacionalidade imperial, isto é, reuniam em sua pessoa a cultura helênica e o poder romano.”52 Portanto, para nós, os traços identitários gregos para Filóstrato não são uma questão étnica, nem definida em termos da geografia de nascimento. Ser grego, para Filóstrato, é ter recebido a Paideia e, especialmente, falar a língua grega, compartilhando de valores greco-romanos. Isso tudo não negava sua inserção na política e administração romana. Ser grego para Filóstrato não negava outras identificações que eram articuladas nesta época. Assim, Filóstrato nos dá como exemplo Ptolomeu de Naucratis (Egito), que extraía seus temas da história ática, recordando com frequência temas do passado grego (VS, II, 595). Favorino, nascido na Gália, também é um exemplo de escritor não grego de nascimento, mas que possuía a “mentalidade grega” (VS, I, 489). Eliano mesmo sendo romano de nascimento e não tendo o grego como língua natural, é admirado por Filóstrato por se expressar em ático como os atenienses do interior. Portanto, Eliano é admirado por ter adquirido um “grego puro” em sua linguagem (VS, II, 624). Conforme Veyne53 a busca pelo passado grego é vista em alguns estudos modernos como uma forma de compensação destes autores em relação ao presente de dominados, interpretado como escapismo de sua opressão. Este historiador vê estas atitudes como uma forma de nostalgia, mas não um escapismo, pois desde muito antes da era imperial, os escritores gregos tinham seu passado como referencia permanente e tema literário. Acreditamos que essa exaltação da helenidade nas obras de Filóstrato devem ser vistas mais como valorização da Paideia e dos que a possuíam, do 50 VEYNE, P. O Império Greco-Romano. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. 51 Ibidem, p. 14. 52 Ibidem, p. 83. 53 Ibidem, pp. 99-100.

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que como escapismo e negação diante dos romanos. Como vimos, grande parte dos sofistas que Filóstrato escolheu para biografar são ligados às estruturas administrativas romanas. Além disso, em uma passagem da biografia de Dião de Prussa (VS, I, 488), Filóstrato mostra que durante um discurso para soldados, quando estes se sublevavam pedindo o assassinato do imperador Domiciano, Dião de Prussa explicou aos mesmos que era melhor eles serem sensatos e acatarem as decisões dos romanos, mostrando, explicitamente como a VS situa sofistas em ações de negociação em favor do poder imperial. Conferimos que o discurso de Dião não seria, certamente, citado por Filóstrato se ele não concordasse com a ideia expressa. Por outro lado, Soria54 conclui que Filóstrato ignora na VS, deliberadamente, o mundo romano e por isso não trata sobre o tempo em que o sofista Herodes esteve em Roma, que foi um período longo, tratando apenas do período que este viveu na Grécia e os cargos que ali ocupou. Entretanto, notamos que Filóstrato não deixou de indicar que ele mesmo esteve junto à corte imperial, vivendo, provavelmente, um tempo em Roma (VA, I, 3). Além disso, na biografia do sofista Aristócles (VS, II, 567), Filóstrato menciona que este ouviu as lições de Herodes em Roma.55 Estas informações nos levam a acreditar que a conclusão de Soria pode ser questionada e a omissão do período no qual Herodes viveu em Roma tenha outras razões, que, contudo, não nos caberia responder nesta pesquisa, mas que não devem ser interpretadas como uma rejeição aos romanos como acreditou esta estudiosa. Não queremos afirmar com isso que Filóstrato se percebia como um romano propriamente, pois em várias situações da VS ele indica que existiam gregos e romanos.56 No entanto, ressaltamos que os traços identitários, para nós, são fluidos e dependem de determinadas situações, interesses e em relação ao que está se 54 Ibidem, p. 156. 55 Há outras passagens de sofistas que viveram em Roma, como em VS, II, 596, ou sobre sofistas que proferiram discursos na capital do Império, como em VS, II, 589 e mesmo sobre sofistas romanos, como Eliano (VS, II, 624). 56 Como em: VS, I, 486; I, 493; I, 494; I, 495; I, 502 para os gregos. E VS, I, 488; II, 613; para os romanos.

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tratando. Como vimos, Filóstrato foi um homem de um grupo privilegiado economicamente, próximo dos altos círculos de poder do Império Romano, essa sua origem e formação aos moldes da Paideia não deixa de ser facilmente percebida nas suas obras. No entanto, ele se posicionou e posicionou seus biografados como gregos e parte da elite administrativa e intelectual do Império Romano.57 Neste sentido, discordemos da afirmação de Veyne sobre as hostilidades de Filóstrato em relação a Roma e também da conclusão geral que este historiador nos aponta sobre os escritores gregos do período imperial. Veyne considera que as atitudes dos escritores gregos eram um misto de patriotismo e “colaboração”, sendo que havia variações de reação conforme as escolhas pessoais. Muitos gregos da elite política e intelectual preferiram fazer os papéis de “colaboradores” do poder romano para não perderem seus privilégios de camada social abastada. Assim como criticamos a opinião expressa por Anderson; de que a Segunda Sofística era um “Renascimento grego” de intelectuais ligados à elite romana, por separar os gregos dos romanos; achamos que Veyne também separa gregos de romanos ao propor que os gregos colaboravam com os romanos, não percebendo que as identificações não tinham limites tão precisos quando se tratava da inserção nas esferas do poder imperial. Considerações finais Após nossa análise, acreditamos que na VS, Filóstrato demonstrou o valor de seu grupo e o ethos sofístico em relação ao restante da sociedade em termos de Paideia, a educação por eles recebida para ocuparem cargos político-administrativos e se relacionarem com o poder político em suas cidades e na estrutura 57 No texto já mencionado, Jones nos atenta para não ignorarmos as cidades destes autores em seus discursos, pois a ideia de uma identidade grega, tão presente nos estudos acerca dos intelectuais da Segunda Sofística, possuía conotações diferentes em relação às diferentes cidades de onde estes autores eram. Vemos que em Filóstrato a valorização de Atenas, da cultura ática e do aticismo falado nesta região é constante, como em: VS, II, 568. Além disso, em Filóstrato temos uma diferenciação entre a língua grega usada por um escravo indiano que fala mal o grego e a pura língua grega ática (VS, I, 490). A primeira citada como motivo de riso pelos sofistas Herodes e Favorino. Também em VS, I, 503 temos uma oposição entre aticismo e “coisa de bárbaro”.

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administrativa imperial. Também interpretamos a forte presença e valorização da cultura grega na formação destes sofistas, como uma forma de obtenção de status para os que recebiam a Paideia grega. Neste sentido, para nós, Filóstrato buscou defender na VS que existia um grupo social homogêneo, identificado a partir de sua formação aos moldes da cultura grega e inserção políticosocial tanto no que tange às relações entre suas cidades com o poder imperial romano, como no que tange às estruturas político-administrativas do Império. Não obstante, pensamos que esse grupo podia não ser tão homogêneo assim e que nem todos sofistas tinham o mesmo grau de influência que Filóstrato defendeu para seu grupo, tendo a obra claras intenções retóricas. Portanto, dentro de seus ideais na escrita desta obra, em nossa leitura, estaria o de afirmar quais papéis estes sofistas podiam desenvolver dentro da estrutura político-administrativa do Império como um todo, que seriam, como vimos: ocupar cargos nas regiões do Império de língua grega, servirem como professores, servirem aos interesses de suas cidades perante o imperador e serem secretários dos próprios imperadores.

XII Cristo como doulos. Relación de poder y la controversia por la imagen del Dios sufriente en los dos primeros siglos del cristianismo

C

Mariano SPLÉNDIDO1

uando hacia mediados del siglo II los marcionitas cuestionaron la exégesis proto-católica lo hicieron a fin de negar rotundamente la carnalidad de Cristo, desvinculándolo del mundo material, producto decadente del Demiurgo. Esta postura se volvió un desafío para los líderes episcopales ya que negar la encarnación efectiva de Jesús suponía descartar los vínculos con el judaísmo y, por lo tanto, perder el basamento escritural (el AT) que los jerarcas cristianos intentaban presentar como base para su legitimidad frente a los paganos. Marción puso en jaque la construcción del poder institucional de las iglesias a partir de su diteísmo pesimista, razón por la cual todos los escritores cristia1 Doctorando en Historia bajo la dirección del Dr. Carlos G. García Mac Gaw. Centro de Estudios de Historia Social Europea, IdIHCS- CONICET- (FAHCEUNLP). E-mail:[email protected].

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nos de la segunda mitad del siglo II se dedicaron a denostar sus postulados, asumiendo definitivamente la noción de Cristo como un ser de dos naturalezas. La carnalidad de Cristo se volvió una noción básica para la organización de una ética comunitaria de sumisión y control que intentaba aparecer como solidaria con los parámetros civilizatorios grecorromanos. Muchas comunidades proto-católicas representaron la encarnación de Jesús con la metáfora de la esclavitud, destacando la importancia del cuerpo en el esquema de la salvación. Privilegiar una cristología sufriente anclada en una idea de rebajamiento divino se volvió un recurso discursivo provechoso que, no obstante, no todos los proto-católicos avalaban. Para ciertos sectores Cristo siempre fue un kyrios exaltado y cuya carnalidad solo se comprendía en tanto medio para cumplir las profecías. El objetivo de este trabajo es observar cómo apareció y se desarrolló la imagen del Cristo-esclavo en las primeras comunidades cristianas entre los años 50-150. Nos concentraremos en los debates acerca del uso de esta metáfora y las implicancias sociales que suponía para las comunidades. Para este fin partiremos del análisis de la Epístola a los Filipenses (Flp) de Pablo y continuaremos con la 1 Epístola de Pedro (1Ped), la Epístola a los Hebreos (Heb). Luego nos centraremos en el Evangelio de Juan (Jn), El Pastor de Hermas, el Segundo Apocalipsis de Santiago (2ApSg), el Apocrifón de Santiago (ApocrSg) y Diálogo con Trifón (Dial) de Justino. Pablo de Tarso fue quien introdujo la metáfora del Cristo-doulos en tanto elemento discursivo clave en su doctrina. La alienación y la violencia que caracterizan al sujeto de estatus esclavo se volvieron elementos apologéticos de Pablo y su misión. Los paulinos asociaron la carnalidad de Cristo con la esclavitud a partir de tres elementos presentes en el himno de Flp 2.5-11: la humillación, la obediencia y la muerte en la cruz.2 El Cristo paulino es presentado 2

- Flp 2.5-11.  

     

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como un sufriente sujeto a obediencia, no como un kyrios en su gloria. La realidad material del esclavo se vuelve el punto básico de la cristología de Pablo y de su legitimación apostólica. El Jesús de Pablo es una construcción ideológica funcional al esquema misionero dirigido a los gentiles. Cristo se humilló por obediencia, pese a ser Dios se adaptó a la naturaleza humana; Pablo es el apóstol que se amolda a las comunidades a fin de promover la fe de la mayoría.3 Esta retórica de la condescendencia puede haber estado dirigida a los fieles en estado de esclavitud, pero en sí su objetivo fundamental era asociar la “forma de esclavo” de Cristo con el hecho de que asumió la forma humana.4 La muerte en la cruz tiene significado escatológico para los paulinos y se vuelve el centro de su soteriología, opuesta a la cristiano-nomista que minimiza la ejecución infamante. Cristo obedeció el plan del Padre y fue humillado y ejecutado con un suplicio propio de esclavos. La cruz señala la salida de Cristo de Israel y el inicio del período mesiánico. La humillación de Cristo es exaltada y magnificada porque legitima la humillación paulina, base de su tipo de apostolado cuestionado por los notables nomistas de Jerusalén.5 La esclavitud en este caso es una categoría positiva, pues se la vincula con la humildad y el sometimiento, en última instancia     3 - 1Cor 9.19-23. 4 - ORTIZ, Pedro. Filipenses. En: FARMER, William, LEVORATTI, Armando, MAC AVENUE, Sean, DUNGAN, David. (eds.), Comentario bíblico internacional. Estella: Verbo Divino, 1999, p. 1539. Díaz Rodelas interpreta este pasaje como un contraste entre la humildad de Cristo y la pretensión de Adán que quiso ser igual a Dios. Gupta promueve una exégesis centrada en la noción de abajamiento y muerte. DÍAZ RODELAS, Juan Miguel. Cristología. En: FERNÁNDEZ RAMOS, Felipe (dir.). Diccionario de San Pablo. Burgos: Editorial Monte Carmelo, 1999, p. 346-351; GUPTA, Nijay. K. To whom was Christ slave (Phil 2, 7)? Double agency and the specters of sin and death in Philippians, Horizons in Biblical Theolog y 32 (1), 2010, p. 1-16. 5 - Pablo plantea que los apóstoles son esclavos, servidores de las comunidades; de igual manera se presenta a Cristo, sometido a los circuncisos: 1Cor 4.9-13; Rom 15.7-9.

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con la impureza, característica del doulos y del gentil. La carnalidad de Cristo se asoció al discernimiento pero también a la obediencia hacia un proyecto superior; en estos aspectos presentaba Pablo el ideal de liderazgo comunitario. Luego de la Guerra Judía (66-70) las comunidades cristianas se vieron compelidas a avanzar sobre el espacio doméstico, generando códigos de comportamiento que permitieran crear un poder organizador y administrador. El oikos se volvió el eje de la asamblea al deteriorarse la relación con la sinagoga y al desplazarse a un futuro indefinido la parusía. De esta manera las comunidades paulinas asiáticas se volcaron a codificar las prácticas domésticas en base a una ética fuertemente patriarcal. En este proceso la metáfora del Cristo esclavo no tiene lugar, sino que se la intercambia por la del amo escrutador. El código doméstico de la Epístola a los Colosenses (Col) enumera las obligaciones de tres pares de miembros del hogar: esposa-esposo,6 hijos-padres,7 y esclavos-amos.8 En ningún momento se les pide discernimiento a los subordinados, sino obediencia a la “cabeza” que, en última instancia, es Cristo;9 no la Ley, no las prácticas ascéticas.10 El oikos 6

- Col 3.18-19.

7

- Col 3.20-21.

8

- Col 3.22- 4.1.  

         9

- Col 1.18; 2.10 y 19.

10 - Col 2.9-23 deja en claro que los gentiles convertidos de la comunidad no se circuncidan ni se rigen por prácticas ascéticas o legalistas. Martin T. ha propuesto que las prácticas aquí criticadas eran las realizadas por los cristianos de Colosas. El autor las menciona para marcarlas como impropias de la asamblea de los santos. MARTIN, Troy. But let everyone discern the body of Christ (Colossians 2:17), Journal of Biblical Literature 114 (2), 1995, p. 249-255.

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cristianizado de las comunidades paulinas de Asia Menor supone un primer declive del poder carismático al proponer fuertemente la adscripción de los subordinados a la fe. En Col no hay mención del Espíritu Santo, representante del discernimiento e impulsor de los carismas para Pablo.11 El autor paulino de Col silencia esto porque sabe que el carisma es peligroso para la imagen externa, pues altera a la asamblea y crea inestabilidad en el movimiento. Ahondar en la idea de Pablo sobre el Espíritu podría generar conflictos con los esclavos y otros subordinados domésticos, ahora plenamente cristianizados, los cuales podrían malinterpretar la idea de libertad promovida a nivel eclesial. Es por esto que en Col no se habla de libertad en Cristo,12 sino de “unión a la cabeza”.13 El eje para el autor de la epístola no es el individuo, sino la comunidad como un todo, agrupada en los núcleos domésticos. Los paulinos apelaron al esquema patriarcalista, anclado en el esposo-padre-amo y propietario diligente. A este se le pide en la Epístola a los Efesios (Ef) que forme a sus hijos en el Señor y que sea el reflejo de la experiencia divina para su esposa y esclavos.14 El cristianismo romano de fines del siglo I retomó la imagen del Cristo esclavo en medio de un conflicto jerárquico acuciante. Esto puede verse principalmente en dos textos: 1Ped y Heb, producidos por un grupo emergente de presbíteros rectores. En 1Ped encontramos gran influencia de los códigos domésticos paulinos de Asia Menor (Col, Ef). Sin embargo las admoniciones en 1Ped proponen una perspectiva distinta de la obediencia.15 El código 11 - Hemos visto en el capítulo 1 que el poseedor del Espíritu era para Pablo un individuo con capacidad de discernimiento y acción; por esto mismo los esclavos no eran considerados miembros plenos de las asambleas. DUNN, James D. G. The theolog y of Paul the apostle. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1998, p. 434439. 12 - Lo que si ocurría en las cartas originales de Pablo: Gal 5.1 y 13; Rom 8.21. 13 - Col 1.18; 2.10,19. 14 - Ef 5.21-33; 6.4, 9. 15 - 1Ped 2.18-20.  

  

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doméstico de esta epístola se centra en el sufrimiento obediente.16 Balch evalúa esto desde el punto de vista externo, es decir que los esclavos deben tolerar el sufrimiento injusto a fin de evitar críticas a la fe cristiana. Según él, varios siervos cristianos eran propiedad de amos no cristianos, lo cual provocaba tensiones domésticas peligrosas.17 Esto bien puede tomarse como verosímil y asociado a la idea del Cristo sufriente y obediente que promueven los presbíteros romanos. En 1Ped y en Heb el Cristo terrenal sufrió y aprendió la obediencia, llegando a la perfección y volviéndose causa de salvación y modelo a imitar;18 el esclavo y la mujer en dependencia de un amo-esposo pagano han de sufrir injustamente y demostrar su fe con su obediencia discreta y apologética a fin de evitar peligros a la comunidad,19 la cual se identifica cada vez menos con la sinagoga. La iglesia no puede intervenir en los oikoi no cristianos con ninguna herramienta (manumisión, admoniciones), pues eso sería alterar las instituciones humanas y alentar la rebeldía.20 Sin embargo las prescripciones a esclavos dan una visibilidad intrigante al conflicto de los cristianos con    16 - Cfr. CAZOTTO TERRA, Kenner R. A comunidade apocaliptica de 1 Pedro: o sofrimento como anúncio consolador escatológico. En: REIMER, Haroldo y DA SILVA, Valmor (orgs.) Libertacao- Liberdade. Novos Olhares. Contribuicoes ao II Congresso Brasileiro de pesquisa bíblica. Goiania: Oikos, 2008, p. 219-227. 17 - BALCH, David. Let the wives be subbmisive. The domestic code in 1 Peter. Ann ArborMichigan: Scholars Press, 1981, p. 81-116. Crf. NELSON, Richard Donald. ´He offered himself´. Sacrifice in Hebrews, Interpretation 57 (3), 2003, p. 251-265; CARTER, Warren. Going all the way? Honoring the emperor and sacrificing wives and slaves in 1 Peter 2.13-3.6. En: LEVINE, Amy Jill and ROBBINS, Maria Mayo (eds.) A feminist companion to the catholic epistles and Hebrews. ClevelandOhio: The Pilgrim Press, 2004, p. 14-33; AAGESON, James. W. 1 Peter 2.11-3.7: slaves, wives and the complexities of interpretation. En: LEVINE, Amy Jill and ROBBINS, Maria Mayo (eds.) A feminist companion to the catholic epistles and Hebrews. Cleveland-Ohio: The Pilgrim Press, 2004, p. 34-49. 18 - 1Ped 2.21-25; Heb 5.7-10. 19 - 1Ped 2.15-16; 3.14-17. 20 - 1Ped 2.13-14; Heb 10.34.

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deberes de lealtad ineludibles para con la sociedad pagana. Esto podría estar sugiriendo que esta era una situación bastante común en Roma y también en Asia Menor.21 El doulos creyente con un amo pagano es tolerado como miembro siempre y cuando se amolde al precepto de obediencia a la autoridad que lo limita y lo posee; no se cuestiona la pureza del esclavo o la mujer en tanto su sacrificio puede mover a piedad al amo-esposo y, a la par, proteger a la asamblea. A diferencia de Col y Ef, que asimilaban a Cristo al amo,22 1Ped lo asemeja al siervo por el carácter propiciatorio mismo que atribuye al sufrimiento.23 Con esta ideología los presbíteros romanos buscan institucionalizar su poder por medio de la domesticación del Espíritu: ya no se pide discernir la voluntad de Dios, sino que se subraya que la voluntad divina es obrar el bien,24 entendido como las prescripciones presbiterales. El concepto de obediencia vertebra la noción de “bien” y se opone a la agitación y la sedición, características atribuidas a los opositores de los presbíteros.25 Cristo fue el primero en obedecer según estos escritos, y con esa sumisión sufrida atrajo la salvación. Hacia la década de 110 la comunidad juanina, ya instalada en Asia Menor, postuló una cristología distante de aquella de rebajamiento y sufrimiento propia de los paulinos. Los juaninos debaten acerca de la manifestación cristológica, ya que si bien Jesús es descripto como quien da el ejemplo y lava los pies de los discípulos,26 por otro lado es un rey en su gloria aún durante el suplicio.27 La metáfora cristológica del esclavo no aparece directamente en Jn porque la esclavitud es sinónimo de ignorancia e inestabilidad en este evangelio. El autor contrapone a los esclavos, que no saben lo que hace su señor, con los amigos.28 La 21 - Se ve en Ignacio, A Policarpo 4.3, con el tema de la manumisión de esclavos por parte de la comunidad. 22 - Col 3.24; Ef 6.5. 23 - 1Ped 2.21. 24 - 1Ped 2.15. 25 - 1Clem 3.3-4;14.1; 47.5-6. 26 - Jn 13.1-15. 27 - Jn 18.33-37. 28 - Jn 15.15.

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amistad con Dios se basa en un conocimiento de la procedencia de Cristo. El esclavo no sabe de donde proviene y por tanto no puede justificar su misión;29 Jesús viene del Padre y reproduce las actitudes del Padre, por lo cual nunca podría comparárselo con un doulos. El Cristo juanino que da el ejemplo de servicio lo hace para marcar una actitud condescendiente del líder, no para alimentar la metáfora cristológica servil ya que ese servicio es una señal de grandeza, no de sufrimiento. Diferente es la situación que plantea hacia el año 125 El Pastor, texto producido en la comunidad romana por un tal Hermas. En este documento se recupera la cristología de kenosis esclava de una manera bastante insólita.30 La historia de Hermas, protagonista del Pastor, es la de un liberto exitoso venido a menos en sus negocios y en su posición dentro de la iglesia. Hermas era originalmente un esclavo nacido en el hogar y vendido por su dueño a una mujer llamada Roda,31 la cual presumiblemente fue quien lo manumitió (aunque el texto es muy vago en este aspecto)32. Ya como 29 - Jn 8.35. 30 - Respecto a El Pastor ha habido varios temas, de los cuales el más acuciante ha sido su unidad literaria. Muchos analistas han propuesto una redacción en etapas para este documento, en la cual intervinieron tres o cuatro autores distintos. WILSON, William Jerome. The career of the prophet Hermas, Harvard Theological Review 20, 1927, p. 50-51; GIET, Stanislas. Hermas et les Pasteurs. Les trois auteurs du Pasteur d´Hermas. Paris: Presses Universitaires de France, 1963, p. 10-23; OSIEK, Carolyn. The genre and function of the Shepherd of Hermas, Semeia 36, 1986, p. 114. Otros ven unidad redaccional. HENNE, Philippe. Un seul Pasteur, un seul Hermas, Revue Theologique de Louvain 23, 1992, p. 482-488; MARTÍN, José Pablo. El Pastor de Hermas en el siglo II: de la apocalíptica a la historia, Circe, de clásicos y modernos 11, 2007, p. 175-176. En base a estas teorías, cada investigador ha propuesto dataciones diversas, que en general apuntan a la primera mitad del siglo II. WHITE, Michael L. De Jesús al cristianismo. El Nuevo Testamento y la fe cristiana. Un proceso de cuatro generaciones. Estella-Navarra: Verbo Divino, 2007, p. 428-429. 31 - Hermas, El Pastor Vis 1.1.  



32 - Cfr. WILSON, William Jerome. The career of the prophet Hermas, Harvard Theological Review 20, 1927, p. 21-24; OSIEK, Carolyn, MACDONALD, Margaret Y. and TULLOCH, Janet. H. El lugar de la mujer en la iglesia primitiva. Salamanca: Sígueme, 2007, p. 69-72.

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liberto Hermas desarrolló una actividad comercial y formó una familia. No se dice cuándo Hermas se convirtió al cristianismo, sino que se asume que al menos desde su manumisión adoptó esa fe.33 Como varios autores han propuesto,34 El Pastor puede comprenderse como un itinerario espiritual enmarcado en medio de una polémica de parte de un grupo de libertos acaudalados, al que pertenece el autor, con los líderes jerárquicos. El personaje de Hermas posee capacidad económica pero se le critican sus imperfecciones en el aspecto ético. Como miembro pudiente, Hermas se desentendió de su familia en pos de los negocios, y los pecados de los suyos culminaron por repercutir en su propio proyecto. Por este motivo el Pastor, personaje encargado de guiar a Hermas, y la Anciana, representación de la Iglesia, le reclaman que asuma activamente el rol patriarcal y recomponga su prestigio frente a la comunidad.35 Curiosamente los pecados por los que Hermas hace mea culpa nos conectan con los reclamos de las Epístolas Pastorales, contemporáneas al Pastor, en relación a los líderes: que sepan gobernar su casa, que sometan a hijos y esposa, que tengan una buena reputación.36 Hay un nuevo límite de pertenencia comunitaria que exige que los benefactores que aspiran a líderes adopten una ética económica y social comprometida con la asamblea. Ahora bien, que Hermas (el personaje) sea un liberto no es un dato al azar, pues nos habla de un sujeto que ha ascendido socialmente y que manifiesta signos de una personalidad calculadora. Esto se percibe en su deseo por su antigua dueña, en su comportamiento fraudulento 33 - Henne entiende que en el texto la esclavitud es sinónimo de paganismo, pues Hermas esclavo considera a su ama como una diosa. Bañándose en el Tíber, Roda recordaría a la antigua Roma pagana. La manumisión de Hermas supondría entonces su conversión. La escena del Tíber ocurre cuando Hermas ya es cristiano y está casado, por eso se le advierte de su pecado. Las faltas de su periodo de esclavitud no se le contabilizan al personaje. HENNE, Philippe. Un seul Pasteur, un seul Hermas, Revue Theologique de Louvain 23, 1992, p. 485-486. 34 - HENNE, Philippe. Un seul Pasteur, un seul Hermas, Revue Theologique de Louvain 23, 1992, p. 486-487; AYÁN CALVO, Juan José. Hermas. El Pastor. Madrid: Ciudad Nueva, 1995, p. 25. 35 - Hermas, El Pastor Vis 1.3,1-2; Vis 2.2,3; Comp 7.1-4. 36 - 1Tim 3.2-5; Tit 1.6-8.

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en los negocios y en la desatención de su familia.37 El autor no critica la movilidad social de Hermas ni su condición de liberto, sino que quiere corregir ciertos aspectos de su ética relacional, base para la aspiración jerárquica. Así se ve en la Comparación quinta, en la que Hermas está ayunando solo en un monte y el Pastor lo reprende por no conocer la forma de ayunar que es agradable a Dios.38 Esta forma de ayuno consiste en practicar la justicia tanto en la mente, evitando los malos deseos, como en el cuerpo, absteniéndose de alimento voluntariamente y dando el importe equivalente a los necesitados;39 este ayuno crea un vínculo económico que evita la enajenación. Asociado a este asunto aparece el relato del esclavo y la viña.40 El mismo cuenta la historia de un esclavo fiel que, ordenado por su amo, cava la viña propiedad de este. Como el amo no regresa, el esclavo realiza el cercado de la viña. Cuando el señor vuelve y ve que el esclavo había hecho más que lo que originalmente le pidiera, consulta con su hijo y unos amigos consejeros y decide hacer al oiketes coheredero con su hijo. Luego organiza en honor del siervo fiel un banquete. Durante el mismo, el esclavo come lo suficiente y el resto de su porción lo reparte entre sus compañeros de esclavitud. Estos se alegran por el gesto y se lo cuentan al señor, quien se regocija aún más por su decisión. Esta parábola no solo ejemplifica el correcto modo de ayuno, o sea hacer un sacrificio mayor, sino que refleja la situación de Hermas en la medida en que el mismo protagonista es un liberto. No obstante, el ascenso de dicho liberto en la historia se da por su fidelidad y su utilidad, no por una astucia oportunista. Otro nivel posible de lectura del texto es el cristológico, y así lo explica el Pastor al confundido Hermas: el señor es el Padre, el esclavo es el Hijo de Dios, el hijo es el Espíritu, los amigos consejeros son los ángeles y la viña es el pueblo cristiano.41 Que Cristo esté representado 37 - Hermas, El Pastor Vis 1.2,4; 3,1; Vis 2.3,1; Mand 3.2-5. CLARK, Kenneth Willis. The gentile bias and other essays. Leiden: Brill, 1980, p. 34-47. 38 - Hermas, El Pastor Comp 5.1,1-4. 39 - Hermas, El Pastor Comp 5.3,5-8. 40 - Hermas, El Pastor Comp 5.2,2-11. 41 - Hermas, El Pastor Comp 5.5,2-3.  

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en esta parábola por un esclavo es lo que cimenta y justifica la postura del Pastor en relación a la jerarquía. Se asocia la carnalidad de Cristo con el sufrimiento y las fatigas, con el trabajo arduo de un esclavo, en resumen: con el sufrimiento.42 Esta metáfora, que recupera tímidamente la tradición paulina del rebajamiento,43 tiene por objetivo codificar ideológicamente el rol de los líderes comunitarios: el líder es quien soporta el mayor sufrimiento pues es el que más da, el que experimenta muchas penas. Claramente el líder es el que más puede dar a nivel material, pero esto ya no es suficiente. El verdadero dirigente, aquel realmente apto, debe ir más allá y tomar un compromiso con la comunidad que deje en segundo plano sus relaciones paganas, asumiendo una postura que puede acarrearle padecimientos.44 Aparece así una justificación jerárquica basada no solo en lo económico, sino también en el sufrimiento, signo de legitimación del líder.45 Luego de la Segunda Guerra Judía (132-135) algunos conventículos cristiano-nomistas de Siria-Palestina habrían            42 - Hermas, El Pastor Comp 5.5,5-6,8. 43 - Flp 2.6-9. 44 - Esto no supone el martirio necesariamente, sino probablemente una postergación económica y social por parte del mundo pagano. MEEKS, Wayne A. The origins of christian morality. The first two centuries. New Heaven- London: Yale University Press, 1993, p. 46-47; STOOPS Jr., Robert F. `If I suffer…´ Epistolary authority in Ignatius of Antioch, Harvard Theological Review 80 (2), 1987, p. 161-178. 45 - Ya Ignacio se había acercado a esto al presentarse como un esclavo y un condenado, legitimando su discurso con su sufrimiento: Ef 3.1; Mag 12; Tral 4.2; Rom 2.2; 4.3; 5.1; Esm 4.2. El Pastor apuesta al mismo tipo de justificación directiva: Vis 3.1,9- 2,1; Comp 9.28,1-3.

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experimentado un acercamiento a ciertas doctrinas gnósticas como respuesta a la desmembración de la iglesia madre de Jerusalén. Aparecen así dos textos, el Segundo Apocalipsis de Santiago (2ApSg) y el Apocrifón de Santiago (ApcrSg), producidos a inicios de la década de 150. Ambos retoman la figura del hermano de Jesús como líder ideal en medio de la crisis de identidad que sacude a los cristianos-nomistas. Santiago es presentado como mártir y receptor de revelaciones particulares y encarna un ideal de rebajamiento modelo, claramente asumido con fines polémicos.46 En 2ApSg y ApcrSg la idea de servidumbre aparece asociada a Cristo, imagen del justo sufriente que ha soportado una kenosis de su divinidad con fines ejemplares.47 El eje temporal de las ficciones que proponen estos relatos es el periodo post-resurrección, etapa de revelaciones divinas directas y no en parábolas.48 El énfasis en la muerte servicial y ejemplar de Cristo resalta una necesidad de elección personal que, según ApcrSg, se orienta a enfrentar un mundo hostil.49 La imagen del servidor sufriente aparece con trazos 46 - 2ApSg recoge dos relatos sobre Santiago, hermano de Jesús: la aparición que recibió de Cristo resucitado, y un raconto de su martirio. Santiago aparece como un líder y mediador que debe acceder a la gnosis para perfeccionarse. Cfr. BROWN, S. Kent. Jewish and Gnostic elements in the Second Apocalypse of James (CG V, 4), Novum Testamentum 17 (3), 1975, p. 226; FUNK, Wolf-Peter. The Second Apocalypse of James. En: SCHNEEMELCHER, Wilhelm. (ed.) New Testament Apocrypha. Vol 1. Gospels and related writings. Louisville-London: Westminster John Knox Press, 2003, p. 331. ApcrSg puede dividirse en dos partes, una epistolar y otra de revelaciones. En la parte epistolar Santiago hace recomendaciones a un didáskalos sobre como usar los escritos que le ha enviado para instruir a los fieles. En la parte siguiente Santiago se une a Pedro y los apóstoles para recibir revelaciones del Cristo resucitado. Cfr. PERKINS, Pheme. Johannine traditions in Ap. Jas. (NHC 1,2), Journal of Biblical Literature 101 (3), 1982, p. 404; KIRCHNER, Dankwart. The Apocryphon of James. En: SCHNEEMELCHER, Wilhelm. (ed.) New Testament Apocrypha. Vol 1. Gospels and related writings. Louisville-London: Westminster John Knox Press, 2003, p. 287-289. 47 - 2ApSg p.46-47; ApcrSg p.8-9 y 13. KIRCHNER, Dankwart. The Apocryphon of James. En: SCHNEEMELCHER, Wilhelm. (ed.) New Testament Apocrypha. Vol 1. Gospels and related writings. Louisville-London: Westminster John Knox Press, 2003, p. 290-291. 48 - Cfr. 2ApSg p.50; ApcrSg p. 2,7 y 8. 49 - ApcrSg p. 5-6.

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gnósticos, pues su revelación se da en el sufrimiento. Con ese fin se retoma la tradición sobre el martirio de Santiago, verdadero dirigente.50 El líder no puede sentirse “lleno” con el testimonio carnal (sufrimiento), sino que requiere una sabiduría espiritual que se da progresivamente a fin de crecer en la comprensión de lo divino.51 Este cristianismo nomista-gnóstico propone un sincretismo doctrinal que exige la gnosis junto al padecimiento (y martirio) como elementos legitimadores. Es esta una curiosa unión de fe con obras, de lo carnal con lo pneumático. Que se exalte el sufrimiento como elemento complementario a la gnosis es una señal de polémica con los proto-católicos, a quienes se les critica que cimenten el poder jerárquico en lo económico y en los alegados padecimientos de los líderes que se exaltan a nivel discursivo. El cisma marcionita estalló en la comunidad romana en el año 144. Marción, un acaudalado naviero proveniente del Ponto se afincó en la capital imperial hacia 139.52 Allí se volvió un pujante didáskalos que atrajo con su doctrina diteísta radical a muchos creyentes. Su planteo fundamental era que existían dos dioses diferentes: el Dios creador-Demiurgo por un lado y el Dios supremo manifestado en Cristo por otro.53 En base a esto, Marción y sus seguidores concebían que todo lo material dependía del Demiurgo creador, dios inferior manifestado a los 50 - 2ApSg p.61-62. Este relato de la muerte de Santiago puede compararse con el que hace Hegésipo para la misma época. Pese a ser un converso del judaísmo (Eusebio H.E. 4.22,8) Hegésipo revalora el testimonio de Santiago como parte de una crítica al pueblo judío. Eusebio, H.E. 2.23,3-19. 51 - 2ApSg p. 51; ApcrSg p.4. Cfr. BROWN, S. Kent. Jewish and Gnostic elements in the Second Apocalypse of James (CG V, 4), Novum Testamentum 17 (3), 1975, p. 226; FUNK, Wolf-Peter. The Second Apocalypse of James. En: SCHNEEMELCHER, Wilhelm. (ed.) New Testament Apocrypha. Vol 1. Gospels and related writings. Louisville-London: Westminster John Knox Press, 2003, p. 331. 52 - Ireneo, C.H. 3.4,3; Tertuliano, Sobre la prescripción de los herejes 30; Contra Marción 4.4 y 9; 5.1; Epifanio, Panarion 42. HARNACK, Adolf Von. Marcion. The Gospel of the alien God. Eugene-Oregon: Wipf & Stock, 2007 [1920], p. 15-20. 53 - Ireneo, C.H. 1.27,2; Tertuliano, C. Marción 1.2. Cfr. ORBE, A. Cristología gnóstica. Introducción a la soteriología de los siglos II y III. Tomo 1. Madrid: La Editorial Católica, 1976, p. 56-57.

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judíos a través de las Escrituras y los profetas. En cuerpo y alma todos los seres humanos pertenecían a esta divinidad que los esclavizaba y solo la venida de Cristo como revelador del Dios supremo y absoluto proveyó la salvación.54 Marción posiblemente pensara a la esclavitud material como un concepto relativo, como una perversa acción atribuida al Demiurgo. En relación al tema es interesante observar cómo procedió el didáskalos del Ponto en su afán de depuración escritural al toparse con la metáfora cristológica paulina sobre la kenosis esclava. En Flp 2,6-8 Pablo describe la kenosis divina con la adopción por parte de Cristo de la forma de un doulos y sus sufrimientos consiguientes. Marción corrige esta sección aclarando que Cristo fue hallado como hombre por la figura, no por la substancia, o sea la carne.55 Como Cristo no adopta la carne humana según el marcionismo, su salvación solo se aplica a las almas con fe; el cuerpo va a la muerte y a la disolución, sin expectativa de resurrección ni para creyentes ni para no creyentes. Esa disolución corporal anula la posibilidad de un juicio final que separe a los santos de los pecadores. Como las obras no cuentan a la hora de la salvación, ningún juicio es posible pues el Dios supremo no puede juzgar y castigar aquello que no creó.56 La esclavitud material es de esta manera desestimada en tanto categoría jurídica, ya que el sujeto en servidumbre es otra víctima de los perversos manejos del Demiurgo. El concepto de douleias aparece a nivel discursivo como totalmente negativo. Hacia la década de 160 Justino, un filósofo oriundo de Siria convertido al cristianismo, reorientó la metáfora de la esclavitud divina con fines de delimitación comunitaria. Justino se había afincado en Roma y dirigía un didaskaleion que nucleaba a fieles de diverso estatus, incluidos ciertos esclavos y libertos imperiales.57 Si bien se alineaba con la doctrina proto-católica, la escuela de 54 - Tertuliano, C. Marcion 1.13. Cfr. BIANCHI, Ugo. Marcion: theologien biblique ou docteur gnostique?, Vigiliae Christianae 21 (3), 1967, p. 141-143. 55 - Tertuliano, C. Marción 5.20. 56 - Ireneo, C.H. 1.27,3. Cfr. BLACKMAN, Edwin Cyril. Marción And his influence. London: S. P. C. K, 1948, p. 101-102; FERNÁNDEZ, Samuel. La salvación sin mediaciones según Marción y la respuesta de Tertuliano, Teología y Vida 42 (1-2), 2001, p. 50-73. 57 - Martirio de Justino A 4.3-5 y 8; B 4.3-4.

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Justino parece haber mantenido cierta tensión con el círculo del obispo Aniceto. Justino intenta presentar al cristianismo como una filosofía moral, aspecto que no parece haber sido bien visto por los jerarcas episcopales,58 quienes relacionaban la filosofía con el paganismo. El filósofo cristiano intenta mostrar que la cultura pagana posee elementos cristianos, fruto de una verdad esparcida y fragmentada que solo la fe cristiana logró unificar y comprender.59 En la obra de Justino aparece una clara caracterización cívica, social y económica de los cristianos que le debe mucho a trabajos apologéticos previos como Epístola a Diogneto y Apología de Arístides,60 pero también al cisma marcionita y a la influencia de otras escuelas que aún Justino no reconoce como desviadas, la carpocratiana y la valentiniana. Con ellas comparte una misma perspectiva básica en cuanto al valor igualador de la fe cristiana, aunque no en los medios para lograr esa igualación. Justino recupera fuertemente la noción de parusía no como algo inmediato, pero si en tanto evento final destinado a juzgar el libre arbitrio de los humanos. Así como su Cristo es carnal, nacido, muerto y resucitado, la resurrección final necesariamente implicará también la carnalidad tanto para el galardón como para el castigo. El cuerpo es una instancia decisiva en el esquema de Justino, no en tanto obstáculo, sino en cuanto espacio de disputa entre la razón y los demonios. Los demonios

58 - Quienes también habrían cuestionado la creencia de Justino en el milenio. Justino, Dial 80.5; 81.4. Sin embargo Barnard analiza que Justino adapta sus perspectivas escatológicas según su público receptor. La idea del milenio, el colapso del poder terrenal, no aparece en las apologías porque no sería bien recibida por un público pagano. BARNARD, Leslie William. Justin martyr´s eschatology, Vigiliae Christianae 19, 1965, p. 92-95. 59 - Justino, 1Apol 44.9-10; 46.2-4; 2Apol 10; 13.3. VOGEL, Cornelia J. de. Problems concerning Justin martyr: did Justin find a certain continuity between greek philosophy and christian faith?, Mnemosyne 31 (4), 1978, p. 360-388; DANIÉLOU, Jean. Mensaje evangélico y cultura helenística. Siglos II y III. Madrid: Ediciones Cristiandad, 2002 [1961], p. 48-56; RIVAS, Ezequiel Gustavo. El martirio del filosofo: Sócrates en los escritos de san Justino mártir, Cuadernos de Teología 22, 2003, p. 279-294. 60 - Epístola a Diogneto 5.1-6.10; Arístides, Apología Gr 15.39- Sir 15.5(7)-8(10).

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arrastran a aquellos que no trabajan por su salvación.61 El Cristo que Justino presenta en su obra Dialogo con Trifón (Dial) es el redentor-igualador preanunciado por los profetas y cuyos actos se predijeron de forma alegórica en la historia de Israel.62 Justino concibe a Cristo como un ser carnal y divino. Con esto se critica fuertemente a las vertientes cristianas que niegan alguna de estas substancias. Los que rechazan la parte divina estarían atentando contra el concepto de preexistencia, lo cual no ayudaría a reclamar el control sobre el AT. Negar la parte humana supondría, como ocurría con los marcionitas y valentinianos, desvalorizar las obras y el peso ético del cristianismo. El Cristo de Dial es un Cristo humano que apareció “sin belleza” y que experimentó una vida de trabajo.63 En este sentido Justino recupera la idea de kenosis divina, pues se subraya que Jesús desempeñaba el oficio de carpintero. Los productos del trabajo de este Cristo artesano, arados (árotra) y yugos (zugá), son señalados como símbolos de justicia.64 El cristianismo de Justino apelaba a un auditorio de intelectuales con capacidad económica, versados en el AT e imbuidos en las disputas sectarias, pero también a comerciantes y artesanos, a un ambiente popular que veía en el dios sufriente una consigna identitaria definitiva. El Cristo de Justino vino a llamar a la penitencia, institución proto-católica por excelencia, por eso adoptó la forma de un doulos sacrificado. A nivel alegórico esta realidad se explica para nuestro filósofo en base a la historia del patriarca Jacob, de la cual toma tres episodios: su enfrentamiento con su hermano Esaú, su periodo de servidumbre bajo su tío Labán y sus matrimonios e hijos con diversas mujeres. La enemistad entre Jacob y Esaú se identifica como la oposición 61 - Justino, 1Apol 14.1. 62 - Justino, Dial 114.1. DANIÉLOU, Jean. Mensaje evangélico y cultura helenística. Siglos II y III. Madrid: Ediciones Cristiandad, 2002 [1961], p. 208-215. 63 - Justino, Dial 88.8. 64 - Ambos instrumentos remiten a Is 2.3-4. Desde esa perspectiva son considerados instrumentos de paz y, además, símbolos de la cruz (1Apol 55.3-6) y del cambio de vida (Dial 110.3). Se exalta así un ideal de vida urbana artesanal que pondera el trabajo manual. DANIÉLOU, Jean. Les symbols chrétiens primitifs. Paris: Éditions du Seuil, 1996 [1961], p. 95-107.

Mariano Spléndido • 287

judaísmo-cristianismo, dos vertientes procedentes de un mismo tronco.65 Si bien se subraya la condición fraterna como eje de la vinculación, se marca que Esaú odiaba a su hermano, justificación escritural para la separación de caminos. En el caso de Jacob y Labán, la servidumbre de Jacob se presenta como pago por los ganados manchados que poseía su tío materno.66 Justino asocia esta actitud servil del patriarca con la douleia de Cristo en la cruz, que ganó con su sangre a “todos los hombres de todo linaje”. El significado de esta tipología sería el rol intercesor de Cristo, expresado en una subordinación opuesta a su divinidad. Por último es el tema de los casamientos de Jacob lo que concentra la mayor atención, pues el patriarca no solo engendró hijos de las hermanas Lía y Raquel, sino también de sus respectivas esclavas, y todos fueron considerados de “igual honor”.67 Pese 65 - Justino, Dial 134.6. 66 - Justino, Dial 134.5.  

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67 - Justino, Dial 134.2-3.  

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288 • Cristo como doulos. Relación de poder y la controversia por la imagen del Dios sufriente en los dos primeros siglos del cristianismo

a esto, la preferencia de Jacob por Raquel vuelve a marcar la diferencia y a favorecer la apologética cristiana. Raquel robó los dioses de Labán y los escondió, lo cual se asocia con el rechazo cristiano de la idolatría; Lía tenía los ojos enfermos, prefiguración del embotamiento judío a la hora de la comprensión.68 Justino afirma que en los matrimonios de Jacob se preanunciaba que Cristo recibiría a libres y esclavos como herederos por igual. El filósofo identifica así a su audiencia como híbrida, una mezcla de intelectuales libres, artesanos, comerciantes, mujeres y esclavos domésticos. La elección de Jacob como figura cristológica no es inocente, pues este patriarca es considerado el padre del pueblo judío a partir de su descendencia, las doce tribus; Cristo marca un nuevo inicio a partir de sus doce apóstoles. Todos los hombres son considerados integrantes de una fe e igualados a nivel soteriológico y en la práctica de las virtudes, cosa que no ocurría según Justino bajo la Ley, que excluía por género y procedencia.69 Según este esquema, la revelación de Cristo se dio por medio de una manifestación sufriente y esforzada. Justino    Justino, Dial 140.1.             68 - Justino, Dial 134.5. DANIÉLOU, Jean. Mensaje evangélico y cultura helenística. Siglos II y III. Madrid: Ediciones Cristiandad, 2002 [1961], p. 205-206. 69 - Justino, (Dial 23.5) critica fundamentalmente la diferencia de género que establece la Ley, pues las mujeres no pueden circuncidarse. SIKER, Jeffrey S. Desinheriting the jews. Abraham in early Christian controversy. Louisville- Kentucky: Westminster- John Knox Press, 1991, p. 165-170.

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recurre a esta idea no solo como ejemplo de subordinación, sino como justificación para la noción de universalidad que promueve el proto-catolicismo: Cristo redimió a todos los hombres y por tanto todos poseen la misma capacidad de penitencia y virtud. La penitencia tiene un tiempo y depende de la adscripción al marco comunitario proto-católico, donde se otorga; la Ley también llama a la penitencia y a la obediencia, pero a través de un conocimiento incompleto. La metáfora cristológica servil fue un elemento discursivo central en la construcción del poder jerárquico en las comunidades de los siglos I y II. Sin embargo, la idea de kenosis divina, coronada por el suplicio de la cruz, no fue adoptada inmediatamente ni monolíticamente por todas las iglesias. El mismo proceso histórico de conformación de las comunidades fue empujando a las perspectivas cristológicas ya sea hacia la imagen del esclavo, ya sea hacia la imagen del kyrios. La humillación que Pablo siente hacia su proyecto de apertura a la gentilidad es la que refleja su Cristo rebajado que “siendo de condición divina, no codició el ser igual a Dios”. De la misma manera los presbíteros romanos de 1Ped y Heb apelaron a la humillación de Jesús como un recurso destinado a fortalecer la obediencia comunitaria. El Pastor de Hermas, 2ApSg y ApcrSg consideran que el sufrimiento al estilo servil es una de las características que legitiman a los líderes y perfecciona su capacidad de acción. Justino apela al Cristo doliente y sacrificado para resaltar los beneficios de su acción salvadora, prefigurada en las acciones del patriarca Jacob, y establecer un parámetro de integración comunitario que aparece como opuesto al del círculo del obispo Aniceto. El marcionismo provocó que el proto-catolicismo adoptara como distintivo la imagen del Dios hecho hombre padeciente y esforzado. Frente a los cuestionamientos a la realidad física de Cristo y la puesta en jaque del valor de las acciones corporales para la salvación, la idea de rebajamiento divino aparece como un recurso apologético central, ironicamente destinado a justificar la jerarquización.

XIII In hoc signo vinces: Constantino e a cristianização do exército romano (306-337)

E

Raphael Leite TEIXEIRA1

ntre 235 e 284, o Império Romano permaneceu uma entidade política poderosa que se estendia da Hispânia ao Mar Negro e Mesopotâmia, das ilhas britânicas à África do norte. Mas nesse quase meio século uma crise o abalou tão profundamente que muitas de suas consequências seriam irrversíveis. Conhecida como a “anarquia militar”, ela foi caracterizada pela instabilidade política, por golpes de Estado, guerras civis, crise econômica, incursões bárbaras, dentre outros problemas. Naturalmente, os problemas não atingiram uniformemente as províncias, e alguns imperadores conseguiram imprimir alguma estabilidade. Esse período turbulento terminou com Diocleciano (285-305), o “imperador dos quartéis.” Ele criou um sistema de governo partilhado conhecido como tetrarquia. A tetrarquia promoveu transformações política, sociais, econômicas e a mais cruel perseguição contra os cristãos, entre 303 e 313. Assim, suas reformas fizeram com que, no Baixo Império romano (284-476), o Estado, a sociedade e o exército se tornassem quase irreconhe1 Mestre em História Antiga pela Universidade de Lisboa. Email: rleiteixeira@ gmail.com

292 • In hoc signo vinces: Constantino e a cristianização do exército romano (306-337)

cíveis a um cidadão do século I. Após Diocleciano, o imperador mais inovador do Baixo Império foi Constantino (306-337). Ele encerrou a perseguição anticristã nos territórios em que governava através do famoso Édito de tolerância de Milão (313). Além disso, adotou o cristianismo como religião pessoal e passou a promovê-la, o que tornou possível seu estabelecimento como religião oficial do Império sob Teodósio. Sua “revolução silenciosa” constituiu um ponto de viragem no mundo antigo, e representou um verdadeiro marco na Antiguidade Tardia. Muito já se debateu sobre a conversão e o reinado de Constantino. Este trabalho não pretende oferecer uma nova versão sobre esse tema. O objetivo será explicar como a gradual cristianização do exército contribuiu para fortalecer seu potencial bélico e, consequentemente, o poder de Constantino. Para esclarecer o contexto militar dos primórdios do século IV, será oferecido um panorama sobre a mudança estratégica e as transformações da organização do exército tardio. A seguir, será tratado o processo de dissolução da tetrarquia e a gradual afirmação de Constantino como imperador único. Simultaneamente a esse processo de afirmação de seu poder, será descrito como Constantino se converteu ao cristianismo e promoveu-o no exército. Por fim, será explicado como a cristianização forneceu uma importante fonte de motivação aos soldados que lutavam sob os estandartes de Constantino. Novos tempos: mudança estratégica e reestruturação do exército romano Segundo Zósimo, até Diocleciano o território romano teria sido protegido por fronteiras nas quais os soldados rechaçavam qualquer investida bárbara. A historiografia denominou tal sistema como “sistema de defesa impeditiva”. Segundo a fonte em questão, Constantino teria extinguido esse sistema defensivo ao remanejar as forças para o interior do Império, nas cidades.2 Assim, entre 312 e 325 se desenvolveu e consolidou um exército 2

ZÓSIMO. Nueva Historia. Introducción, traducción y notas de José Mª Candan Morón. Madrid: Gredos, 1992, 2.34.

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de manobra e uma defesa escalonada em profundidade.3 O novo sistema não pretendia bloquear os invasores no limes, que era pontuado por uma série de castra e castella ocupados por tropas denominadas ripenses. Estas não tinham por objetivo vencer o inimigo em sua incursão inicial, como ocorria até então. A ideia passou a ser a de desgastar as forças invasoras durante seu avanço pelo Império, através de sucessivas forças defensivas, localizadas em pontos estratégicos. A essas forças se aliavam pequenas unidades táticas que atuavam por meio de escaramuças e emboscadas. Após cortar as linhas de comunicação e suprimentos do inimigo, e reduzir e exaurir os seus efetivos, uma reserva central do exército romano – os comitatenses – arrastaria essa minguada força invasora para uma batalha campal.4 A historiografia mais recente, no entanto, ressalta que, pelo menos no Oriente, os soldados estavam dispersos e não rigidamente divididos entre o exército móvel e as tropas fronteiriças.5 Autor abertamente hostil a Constantino, Zósimo não explicou que, enquanto as forças fronteiriças se enfraqueceram, os comitatenses se fortaleceram ao ponto de se tornarem o elemento militar mais importante. Ele apenas criticou o facto de as fronteiras terem sido abandonadas aos ataques bárbaros, enquanto que as cidades foram sobrecarregadas pelo peso da hospitalidade concedida aos soldados. Os militares, supostamente atraídos pelos prazeres urbanos, teriam se tornado indisciplinados.6 O que se passou foi mais complexo e, na realidade, a iniciativa de Constantino resultou não de um plano prévio, e sim de circunstâncias conjunturais, com a necessidade de reforçar os efetivos particulares com tropas 3

REZENDE FILHO, C. de B. Mudança de conceito estratégico e manutenção de padrão tático: a desagregação militar do Ocidente romano sob a pressão bárbara. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1993, p. 175.

4

Idem, p. 142 e 246.

5

CAMERON, A. El Bajo Imperio romano, 284-430 d.C. Madrid: Ediciones Encuentro, 2001, p. 154.

6

ZÓSIMO. Op. cit., 2.34. A literatura antiga, quase em sua totalidade produzida por civis das camadas privilegiadas da população, está repleta de críticas à suposta indisciplina dos soldados. É notório que tal percepção originava-se de um preconceito plurissecular: Salústio (86 a.C. – 34 a.C.) já estava impregnado por ele. Portanto, tais acusações devem ser analisadas com as devidas ressalvas.

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retiradas das fronteiras para vencer as guerras civis pós-312. Outra inovação notável no âmbito militar foi a separação inédita entre as carreiras civil e militar. O magister peditum (comandante da infantaria) e o magister equitum (comandante da cavalaria), militares profissionais, passaram a comandar o exército de manobra de forma completamente destacada da administração civil. Essas funções poderiam ser controladas por um único oficial, o magister militum, o chefe supremo de todas as secções do exército. Os critérios para a promoção passaram a se basear apenas na experiência militar. Consequentemente, ao longo do século IV e V muitos bárbaros alcançaram altos postos de comando.7 Não se pretende aqui discutir em detalhes todas as implicações da reforma estratégica de Constantino. Em resumo, as características dominantes da organização militar por ele criada foram a flexibilidade e o profissionalismo, bem como uma maior aproximação com o espaço cívico. Contudo, estas se combinaram com ineficiência, corrupção, e outras falhas da natureza humana.8 Novos tempos: o início da cristianização do exército romano De alguma forma, a cristianização do exército romano é quase tão antiga quanto a origem do cristianismo. Na verdade, João Batista, o precursor de Jesus, já havia pregado aos soldados, aos quais simplesmente aconselhou a não cometerem extorsões, não fazerem denúncias falsas e a se contentarem com o soldo que recebiam (Lc. 3, 14). Jesus, o fundador da religião cristã, não só esquivou-se de condenar a carreira militar em si mesma, mas também exaltou a fé do centurião de Cafarnaum (Lc. 7, 9), que bem pode ter sido um dos primeiros militares conversos à nova fé. A conversão do centurião Cornélio, varão “temente a Deus”, anos depois, também é conhecida (At. 10). A partir daí, segue-se um longo período sem referências documentais a cristãos no exército romano, até que são identificados, por volta de 173, na Legio XII Fulminata.9 Nos séculos III e IV, as perseguições anticristãs 7

REZENDE FILHO, C. de B. Op. cit., pp. 178 e ss.

8

ELTON, H. Warfare and the military. In: LENSKI, N. (ed.). The Cambridge companion to the Age of Constantine. New York: Cambridge University Press, 2006, p. 343.

9

Cf. CASSIUS DIO. The Roman History. With an English translation by Earnest

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atingiram as legiões, provando não só a existência de soldados cristãos, mas também que o seu número poderia ser significativo. No entanto, não será esse o processo que será analisado aqui. O objetivo será explicar a origem do esforço de cristianização do exército romano por parte da autoridade imperial, e como ela, sem que tivesse planejado ou previsto, foi beneficiada pela iniciativa. A fim de compreender esse processo, um nome surge quase que espontaneamente: Constantino. Seu pai foi Constâncio, tetrarca que governou como César (293-305) e depois Augusto (305-306) nos territórios mais ocidentais. Não se sabe muito sobre os primeiros anos de Constantino ou seu meio familiar. Por ocasião do início da Grande Perseguição (fevereiro de 303), ele se encontrava na corte de Diocleciano.10 Nessa altura já era grandemente estimado pelos soldados, o que, desde o século III, era um elemento muito importante para os “candidatos” ao trono. Em 305, os Augustos abdicaram e o posto deles foi ocupado por Constâncio e Galério.11 As vagas de Césares foram ocupadas por Flávio Severo (305-307) e Maximino Daia (305308), ambos impostos por Galério. O espanto foi geral: esperavase que Constantino recebesse uma das nomeações.12 Uma guerra civil ou pelo menos um assassínio político se anunciavam. Constantino percebeu a crescente hostilidade na corte oriental e fugiu para junto do pai, na Grã-Bretanha. Preocupado com a sua sucessão, pouco antes de morrer, em 306, Constâncio reuniu os seus soldados. Perante eles transmitiu o poder a Constantino. O exército em questão, formado por Constâncio sobretudo a partir do recrutamento na Britânia e na Gália, foi ampliado por Constantino a partir de refugiados, prisioneiros de guerra e voluntários germânicos. Eles foram reunidos dentro de novos auxiliaria, os batalhões de tropas de Cary. London: William Heinemann, 1969, vol. 9, 72. 8-10 e HELGELAND, J. Christians and the Roman Army A. D. 173-337. Church History, vol. 43, nº 2 (jun. 1974). Disponível em . Acesso em 05 de maio de 2011, p. 157. 10 LACTÂNCIO. Sobre la muerte de los Perseguidores. Introducción, traducción y notas de Ramón Teja. Madrid: Gredos, 1982, 18.10. 11 Galério governou como César entre 293-305, e como Augusto entre 305-3011. 12 LACTÂNCIO. Op. cit.., 19.

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choque do exército romano tardio. Disso tudo depreendese que as tropas comandadas por Constantino eram bastante heterogêneas, étnica e culturalmente, mas essencialmente pagãs. No campo político, a primeira medida do novo imperador foi proclamar a restauração da liberdade de culto aos cristãos. Seu maior rival, Galério, agia numa direção totalmente oposta, o que pode ter aumentado ainda mais o seu ódio contra o novo colega imperial. Contudo, sem condições de fazer-lhe frente, relutantemente acabou por lhe conceder o título de César.13 Após ter recebido esse título, Constantino começou a associarse ao culto solar em suas diferentes formas (especialmente Hélio e Sol Invicto). Este culto era sincrético, aglutinador, adaptável e a meio caminho entre o politeísmo e o monoteísmo, além de estar afinado com as tendências monoteístas pagãs da corte neoplatônica. Mas Constantino não optou pelo culto solar motivado por uma estratégia de adaptação aos cultos romanos, combinada com a interrupção das medidas anticristãs. Também é um erro achar que as fontes sobre Constantino passam a imagem de que a religião não foi sua prioridade, e que ela teria sido antes um “importante mecanismo de legitimidade.”14 Na verdade, o papel desempenhado pela religião na vida de Constantino foi de grande importância, sobretudo após a primeira década do século IV. Os tempos eram de mudanças. Após o afastamento de Diocleciano, a implosão da tetrarquia mostrou-se inevitável. Maximiano, ao que tudo indica, abdicou a contragosto, pelo que apoiou o filho, Maxêncio (306-312), que usurpou o governo da Itália, instalando-se em Roma como imperador. Com a finalidade de preservar o sistema tretárquico, Flávio Severo foi enviado para derrubá-lo. No entanto, seus homens debandaram para o lado do usurpador, obrigando-o a fugir com um grupo reduzido para Ravena. Ali foi sitiado por Maximiano. Sem saída, Severo rendeuse e suicidou-se pouco depois (fins de 306 ou início de 307).15 A seguir, Maximiano procurou organizar-se militar e 13 Idem, 24 e 25. 14 CASTELLANOS, S. Constantino – crear un emperador. Madrid: Sílex, 2010, pp. 105106. 15 LACTÂNCIO. Op. cit.., 26.

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diplomaticamente, tentando granjear o apoio de Constantino. A fim de frustá-lo, Galério invadiu a Itália. Todavia, ao alcançar Roma, viu-se sem condições de cercá-la. Para piorar, parte de seus homens desertaram para o lado de Maxêncio. Aflito, Galério bateu em retirada e, em represália, autorizou a pilhagem e destruição do que fosse encontrado pela frente, para a tristeza de Lactâncio.16 Maximiano vencera seus inimigos externos. No entanto, como entrou em desacordo com o filho, acabou expulso de Roma. Refugiou-se então na Gália e de lá rumou para a corte de Galério, na Panônia. Ali, no ano de 308, uma conferência pretendia restaurar a ordem institucional da tetrarquia. Diocles17 e Licínio, o indicado por Galério para ocupar a vaga do falecido Severo, também participaram do encontro. Seguindo o que fora acordado, Maximiano abandonou suas pretensões imperiais e, após a conferência, voltou à Gália. Possivelmente ele foi enviado a fim de convencer Constantino a abandonar o título de Augusto. Esperava-se assim que o sistema tetrárquico fosse restaurado. O que se seguiu é obscuro; parece que o ambicioso Maximiano aproveitou-se de uma oportunidade para encetar um golpe de Estado contra Constantino. Mas acabou frustrado e morto.18 Nesses anos, Constantino provavelmente procurou uma vinculação especial a Apolo. A numismática mostra que, a partir de 311-312, há alusões a deuses tradicionais e uma associação ao Sol, deidade distinta de Hércules, Júpiter ou Marte, os preferidos pelos tetrarcas.19 Não se sabe porque Constantino interessou-se por esse culto não tão tradicional. Provavelmente ele moveu-se por suas convicções pessoais, uma vez que os imperadores romanos fundamentavam a legitimidade de seu poder no mos maiorum20, e não na distinção com relação aos seus colegas imperadores. 16 Idem, 27. 17 Trata-se de como Diocleciano passou a ser chamado após a abdicação. 18 LACTÂNCIO. Op. cit., 29-30. 19 CASTELLANOS, S. Op. cit., p. 109. 20 “Os Romanos tinham como suporte fundamental e modelo do seu viver comum a tradição, no sentido de observância dos costumes dos antepassados, mos maiorum” (...)”(ROCHA PEREIRA, M. H. Estudos de História da cultura clássica, II volume – Cultura Romana. 4ª edição revista e actualizada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 457).

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A postura independente de Constantino deve ter abalado a tetrarquia. Mas o princípio da virtual dissolução desse sistema de governo se deu após a ascensão de Licínio ao posto de Augusto. A fim de acalmar os ânimos de Daia, Galério determinou que ele e Constantino não seriam mais “Césares”, e sim “filhos dos Augustos.” Não foi suficiente e, logo a seguir, uma assembleia militar proclamou Daia como Augusto, elevando ao máximo o risco de uma guerra civil. Finalmente, o atrapalhado Galério acabou por ordenar que os quatro se resignassem com o título de imperador.21 Era o ano de 310, a perseguição ainda assolava a Igreja no Oriente, e Constantino passava a opor-se mais abertamente aos princípios da tetrarquia. Fica claro que governo partilhado entre quatro soberanos não eliminou a instabilidade política, como pretendia seu idealizador, mas acabou mesmo por potenciá-lo. Nos anos finais da tetrarquia, a pouca energia e os malabarismos infrutíferos de Galério provavelmente derivavam de uma grave doença que o acometeu entre 310 e 311. Essa enfermidade talvez o levou também a desistir de sua política anticristã. Assim, em 311 ele promulgou o Édito de tolerância, transcrito ipsis verbis tanto por Eusébio22 como por Lactâncio.23 Após a morte de Galério, instalou-se no Oriente a tensão entre Licínio e Maximino Daia. Este revogou o Édito de tolerância nos territórios sobre os quais possuía jurisdição, embora não tenha retomado a perseguição com o extremismo de outrora. Daia também selou secretamente um acordo com Maxêncio, que finalmente saiu de seu isolamento político. No entanto, este não obteve qualquer apoio quando enfrentou o exército de Constantino, em 312. Apesar disso, como possuía mais homens, Maxêncio pôde se impor no começo da luta. Mas o carismático general Constantino conseguiu elevar o ânimo de suas tropas e as levou até à Ponte Mílvia, nas cercanias de Roma. O que se seguiu é bastante conhecido. Constantino teria sido 21 LACTÂNCIO. Op. cit.., 32. 22 EUSÉBIO DE CESAREIA. História eclesiástica. Tradução das monjas beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo, introdução e notas de Roque Frangiotti. São Paulo: Paulus, 2000, 8.17. 23 LACTÂNCIO. Op. cit.., 34.

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advertido em visão e em sonho que devia inscrever nos escudos o signo celeste de Deus, as iniciais gregas do nome de Cristo, Chi (χ) e Rho (ρ). Segundo Eusébio, ἀμφὶ μεσημβρινὰς ἡλίου ὥρας, ἤδη τῆς ἡμέρας ἀποκλινούσης, αὐτοῖς ὀφθαλμοῖς ἰδεῖν ἔφη ἐν αὐτῷ οὐρανῷ ὑπερκείμενον τοῦ ἡλίου σταυροῦ τρόπαιον ἐκ φωτὸς συνιστάμενον, γραφήν τε αὐτῷ συνῆφθαι λέγουσαν· τούτῳ νίκα. θάμβος δ’ ἐπὶ τῷ θεάματι κρατῆσαι αὐτόν τε καὶ τὸ στρατιωτικὸν ἅπαν, ὃ δὴ στελλομένῳ ποι πορείαν συνείπετό τε καὶ θεωρὸν ἐγίνετο τοῦ θαύματος. καὶ δὴ διαπορεῖν πρὸς ἑαυτὸν ἔλεγε, τί ποτε εἴη τὸ φάσμα. ἐνθυμουμένῳ δ’ αὐτῷ καὶ ἐπὶ πολὺ λογιζομένῳ νὺξ ἐπῄει καταλαβοῦσα. ἔνθα δὴ ὑπνοῦντι αὐτῷ τὸν Χριστὸν τοῦ θεοῦ σὺν τῷ φανέντι κατ’ οὐρανὸν σημείῳ ὀφθῆναί τε καὶ παρακελεύσασθαι, μίμημα ποιησάμενον τοῦ κατ’ οὐρανὸν ὀφθέντος σημείου τούτῳ πρὸς τὰς τῶν πολεμίων συμβολὰς ἀλεξήματι χρῆσθαι.24

Constantino seguiu a orientação atribuída a Cristo. Então, “o exército, protegido com este emblema, toma as armas.”25 Esse crisma não tinha finalidade mágica, como já se afirmou, mas era, sim, uma profissão de fé.26 Mas a imagem que para ele e tantos outros era cristã pode não o ter sido para todos: o símbolo era suficientemente abstrato para ser percebido distintamente por diferentes audiências. O Chi-Rho é bastante parecido com 24 Em las horas meridianas del sol, cuando el día comienza a declinar, dijo que vio con sus proprios ojos, en pleno cielo, superpuesto al sol, um trofeo en forma de cruz, construindo a base de luz y al que estaba unido uma inscripción que rezaba: com éste vence. El pasmo por la visión lo sobrecogió a él y a todo el ejército, que ló acompañaba em el curso de uma marcha y que fue espectador del portento. Y decía que para sus adentros se preguntaba desconcertado que podría ser la aparición. Em esas cavilaciones estaba, embargado por la reflexión, cuando le sorprende la llegada de la noche. Em sueños vio a Cristo, hijo de Dios, com el, signo que apareció en el cielo y Le ordenó que, uma vez se fabricara uma imitación del signo observado en el cielo, se sirviera de él como de um bastión em las batallas contra los enemigos (EUSEBIO DE CESAREIA. Vida de Constantino. Introducción, traducción y notas de Martín Gurruchaga. Madri: Gredos, 1994, 1.28.2-29). 25 Quo signo armatus exercitus capit ferrum (LACTÂNCIO. Op. cit., 44.5). 26 VEYNE, P. Quando o nosso mundo se tornou cristão. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Texto & Grafia, 2009, p. 58.

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um símbolo de um deus-Sol da região do Danúbio da qual os antepassados de Constantino eram originários. De igual modo, já foi argumentado que também é semelhante ao ankh egípcio, um símbolo pagão da vida. Mas seria difícil um cristão educado não reconhecer nas duas letras as iniciais do nome de Cristo. Neste aspeto e em outros, Constantino teve habilidade em empregar símbolos e linguagem vagos, que poderiam ecoar bem em múltiplas audiências. Seus filhos, por outro lado, acentuaram muito mais a interpretação cristã de suas imagens.27 Diferentemente do que sugere Robert Frakes, se a ambiguidade do Chi-Rho favoreceu a Constantino, deve ter sido mais como consequência. O que realmente importa é que naquele momento (e depois) seus soldados foram incentivados independentemente de suas inclinações religiosas. Mas pela primeira vez introduziu-se num exército romano um elemento cristão, assim identificável ao menos para os cristãos que soubessem a língua franca da época, o grego. É possível também que o imperador tenha partilhado o seu sonho a alguns de seus homens. Assim, o confronto que se deu na Ponte Mílvia opôs mais do que dois exércitos. O choque ali foi violento, e Maxêncio, que a princípio havia permanecido em Roma, foi morto após o desbaratamento de suas forças. Constantino creditou sua vitória arrasadora ao Deus dos cristãos. O monumento da vitória, o “Arco de Constantino”, ilustra com clareza a parte mais trágica da batalha: o afogamento de Maxêncio e sua cavalaria armada no rio Tibre.28 Nesse Arco, contudo, não figura nenhum escudo com o ChiRho. Esta omissão pode ter sido deliberada, uma vez que o Senado e o Povo de Roma reconhecia apenas uma genérica “inspiração divina” na vitória de Constantino. Além disso, infelizmente, não se conservaram escudos do século IV. Mas foram encontradas representações mais ou menos autênticas. Uma das mais explícitas está num prato de prata encontrado na Crimeia. Ele retrata Constâncio II (337-361) num cavalo, acompanhado por 27 FRAKES, R. M. The dynasty of Constantine down to 363. In: LENSKI, N. (ed.). Op. cit., p. 104. 28 TOMLIN, R. S. O. Christianity and the Roman Army. In: LIEU, S. N. C. & MONTSERRAT, D. (editores). Constantine, history, historiography and legend. London: Routledge, 1998, p. 25.

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um oficial da guarda e pela Victoria. O oficial da guarda germânico porta um escudo circular com uma orla decorada e um grande Chi-Rho central (ver imagem abaixo). No fim do século IV e no século V o motivo tornou-se comum.

Imagem 1: Constâncio II (no centro) foi retratado nesse prato de prata encontrado na Crimeia. Note, à sua esquerda, seu oficial germânico (caracterizado pelo cabelo comprido) com seu escudo redondo com o Chi-Rho no centro. Fonte: LENSKI (2006: fig. 39).

Uma importante fonte denominada Notitia Dignitatum29 contém muitas informações sobre as unidades, a composição e os equipamentos do exército romano tardio. Ricamente ilustrada, 29 La Notitia Dignitatum. Nueva edición crítica y comentario histórico de Concepción Neira Faleiro. Madrid: Taravilla, 2005.

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nela constam escudos geométricos que, em alguns casos, incluem faces ou figuras de seres divinos, imperadores ou animais. No entanto, em parte alguma o Chi-Rho foi aludido. Não se sabe quais soldados portavam o escudo Chi-Rho no século IV, mas evidentemente não foi o exército em sua totalidade. A julgar pelo prato de prata de Constâncio II, o Chi-Rho só foi utilizado pelos guarda-costas pessoais dos imperadores cristãos, os quarenta candidati selecionados pela schola. Pouco se sabe sobre eles. O lugar real do Chi-Rho na arte militar tardia de Roma foi no labarum.30 À primeira vista, causa estranheza a total ignorância de Vegécio31 com relação ao labarum. Mas ele era um burocrata civil, e não era perito em questões militares. Isso somado à sua falta de experiência militar direta pode ter sido determinante para que conhecesse apenas o vexillum, e não o labarum. De qualquer forma, está claro que, pelo menos inicialmente, o impacte da nova religião no exército foi leve em muitas áreas.32 Lactâncio limitou-se a dizer que Constantino teve o sonho e mandou gravar o que viu nos escudos. Mas, muitos anos após a batalha da Ponte Mílvia, Eusébio escreveu que o imperador jurou-lhe que a visão havia sido partilhada por todo o exército. Para Tomlin, se isso foi mesmo verdade, aparentemente os esforços imperiais de evangelização teriam sido desnecessários.33 Não é possível confirmar se todo o exército partilhou a visão. No entanto, mesmo que tenha visto, é claro que não seria suficiente para convertê-lo. A mentalidade ainda era fortemente arraigada pelo politeísmo tradicional, e uma religião com algum nível de complexidade como a cristã exige mais de seus candidatos ao batismo do que a simples vontade de experimentá-lo. Além disso, como já foi mencionado, o Chi-Rho era ambíguo: para alguns poderia ser um símbolo pagão. 30 Trata-se do novo estandarte de batalha, desenvolvido por Constantino a partir do antigo vexillum. 31 Cf. VEGÉCIO. Compêndio da arte militar. Estudo introdutório, comentários e notas de João Gouveia Monteiro. Tradução de João Gouveia Monteiro e José Eduardo Braga. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009. 32 GOLDSWORTHY, A. The complete Roman Army. London: Thames & Hudson, 2003, p. 212. 33 TOMLIN, R. S. O. Op. cit., pp. 25-26.

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Além de ser uma profissão de fé, Eusébio sugere que o ChiRho carregasse consigo algum efeito milagroso também. Mas mais importante que o efeito desestabilizador sobre os inimigos foi o efeito revigorante sobre os próprios soldados de Constantino: Ἔνθα δ’ οὖν ἀνεφάνη τοῦτο, φυγὴ μὲν τῶν ἐναντίων ἐγίνετο, δίωξις δὲ τῶν κρατούντων. ὃ δὴ συνιδὼν βασιλεύς, τοῦ οἰκείου στρατοῦ εἴ που τι τάγμα κεκμηκὸς ἑώρα, οἷόν τι νικητικὸν ἀλεξιφάρμακον ἐνταυθοῖ τὸ σωτήριον τρόπαιον παρεῖναι διεκελεύετο, ᾧ παραυτίκα συνέφαινεν ἡ νίκη, ἀλκῆς καὶ ῥώμης σὺν θείᾳ τινὶ μοίρᾳ δυναμούσης τοὺς ἀγωνιζομένους.34

Nota-se claramente, na primeira parte da citação, o exagero do historiador. É possível que os mais supersticiosos se impressionassem com o labarum, sobretudo após as primeiras vitórias de Constantino com ele. Mas o símbolo por si só não garantia a vitória, e talvez não possuísse um efeito tão arrasador como aí se diz. Mais adiante (2.9.2-3) o elemento milagroso do labarum é destacado: sua haste, embora finíssima, protegia os porta-estandartes de dardos e flechas. Graças a esse facto, que extrapolava “os limites do extraordinário”, jamais um portaestandarte (que somavam cerca de cinquenta homens) havia morrido no desempenho de suas funções. Não entrarei no mérito dessa informação, que também deve conter algum exagero. Importa apenas observar que existiu, naquela altura, a crença de que o labarum era abençoado, capaz mesmo de produzir milagres. Para que essa fé existisse, provavelmente existiu alguma verdade nas colocações de Eusébio. À parte disso, o mais significativo e plausível é o efeito de fortalecedor do moral que o estandarte cristão parece ter surtido entre os soldados de Constantino. Como este lhes assegurava que o crisma teria sido revelado por Deus – ou algum deus – para sua vitória, é bem possível que acreditassem em seu general e 34 Pues donde éste hacía acto de presencia, se producía la fuga de los enemigos, la presecución de los vencedores. No escapó el hecho a la vista del emperador y se veía que alguna unidad de su próprio ejército flaqueaba, ordenaba que allí mismo, cual triunfante talismán, se hiciera patente el salvífico trofeo, con lo que instantaneamente afloraba la victoria; y es que un vigor y una energia, por algún designo divino, robustecia a los combatientes (EUSEBIO DE CESAREIA. Op. cit., 2.7). Negritos acrescentados.

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se revigorassem com essa esperança. Constantino era um líder carismático e seu encontro com o cristianismo o favoreceu ainda mais neste aspeto. Mas nem todos estão convencidos quanto à conversão de Constantino. Para José Martínez – que segue a linha cética de Castellanos – nenhum “historiador sério” da atualidade acredita que ele tenha dito a verdade sobre a revelação antes da batalha contra Maxêncio. Constantino teria divulgado a notícia da visão possivelmente com a intenção de angariar a simpatia dos já numerosos habitantes cristãos de Roma daquela altura. Anos antes, Maxêncio havia tentado o mesmo, só que com outras medidas.35 Sob essa ótica, a alegada visão não passaria de uma jogada política com objetivo camuflado de obter o apoio de um grupo expressivo de romanos durante a guerra civil contra Maxêncio. Essa posição comporta inúmeros problemas. À época era normal, quer em meios não-cristãos, quer em círculos cristãos, que certas pessoas afirmassem ter recebido a ordem de um deus num sonho (que se confundia com a ideia de “visão”).36 Portanto, é descabido acreditar que Constantino teria inventado a versão da revelação que recebeu para manipular os cristãos de Roma. Seja lá qual fosse a quantidade deles, o certo é que eram uma minoria, e, tendo em conta que seu exército então acabara de derrotar o do seu oponente, o controle da capital estava mais que garantido. Ferdinand Lot está em um meio termo entre os céticos e os que acreditam na conversão sincera de Constantino. Ele observou acertadamente que os cristãos eram uma minoria dos habitantes do Império, pelo que, se Constantino quisesse manipular a religião para fins políticos, deveria ter procurado se apoiar no paganismo e em seus seguidores. Teria feito mais sentido que Galério ou Maximino Daia adotassem o cristianismo, visto que governavam o Oriente, onde essa religião possuía muito mais força. No entanto, esses imperadores foram os piores inimigos dos cristãos. 35 MARTÍNEZ, J. M. B. Constantino el Grande y la Iglesia. Antigua: Historia y Arqueología de las civilizaciones. Disponível em < http://descargas.cervantesvirtual.com/ servlet/SirveObras/antig/12371956448017188532624/014934.pdf?incr=1>. Acesso a 10 de outubro de 2010, p. 80. 36 VEYNE, P. Op. cit., p. 64.

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Mas para o imperador do Ocidente, converter-se ao cristianismo com alguma motivação política seria um perfeito absurdo. O maior risco partia do exército, vastamente não-cristão e dedicado ao culto do Sol. Com todos esses argumentos sensatos, seria esperado que Lot concluísse que a conversão de Constantino teria sido sincera. Mas esta teria sido “o ato de um supersticioso”. Para emitir esse juízo, ele se baseou na ideia de que, uma vez que o Deus cristão havia lhe concedido a vitória sobre Maxêncio, ele não mais podia voltar atrás.37 Para o historiador a conversão do imperador teria sido como o selamento de uma aliança irrevogável. No entanto, não existe nenhuma prova que sustente essa pressuposição. Assim, ambas as visões historiográficas estão distorcidas. Um “cérebro político” não procuraria o apoio dos cristãos. Não podia desconsiderar que adorar outra divindade diferente da adotada pela maioria dos súbditos e da elite dirigente e governante não era um meio ideal de firmar-se no poder. Constantino escreveu muitos documentos – leis, sermões, éditos, cartas. Eles constituem prova da convicção que ele tinha de sua missão, e derrubam a acusação de que ele seria um “supersticioso”. Além disso, tais textos são testemunho inequívoco de seu cristianismo ortodoxo e de uma teologia que, em partes, é ingênua, mas em momento algum é confusa. A “viragem constantiniana” instalou a Igreja no Império e deu ao trono uma nova função, a de favorecer o cristianismo, que assim um dia pôde se tornar uma das grandes religiões mundiais. Embora talvez nunca se saiba exatamente como se deu a visão e/ou o sonho de Constantino, considerando os motivos acima, o facto foi sua conversão foi sincera. Isso é consenso entre os historiadores da atualidade,38 o que é também defendido aqui. Ao ser movido por sua fé pessoal e desinteressada, Constantino pôs o trono ao serviço da Igreja, e não o contrário. Mais uma vez deve ser ressaltado que se o Estado se beneficiou de alguma forma, foi mais como consequência. O Ocidente foi unificado, portanto, sob o poder inconteste 37 LOT, F. O fim do mundo antigo e o princípio da Idade Média. Tradução de Emanuel Godinho. Lisboa: 70, 1980, p. 44. 38 VEYNE, P. Op. cit., pp. 55 e ss.

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de Constantino. No Oriente, todavia, dois imperadores pagãos disputavam o controlo. Por um lado, Maximino Daia, fez um voto a Júpiter: se vencesse, erradicaria o nome dos cristãos. Por outro, Licínio, não-perseguidor, teve um sonho no qual um “anjo de Deus” (angelus dei) o aconselhou que, se quisesse vencer, que elevasse uma prece a um “Deus supremo” (deum summum). A prece, recitada a um notário no dia seguinte, era a seguinte: “Summe deus, te rogamus, sancte deus, te rogamus. Omnem iustitiam tibi commendamus, salutem nostram tibi commendamus, imperium nostrum tibi commendamus. Per te vivimus, per te victores et felices existimus. Summe, sancte deus, preces nostras exaudi; bracchia nostra ad te tendimus, exaudi sancte, summe deus.”39

Cópias da oração foram enviadas aos oficiais e tribunos a fim de que os soldados a aprendessem. Adolf Harnack define-a como “a primeira composição militar cristã que nós possuímos, a origem de todas as músicas cristãs de exército e combate.”40 Paul Veyne, por outro lado, é mais cauteloso e lembra que Lactâncio esquivase de mentir e de fazer de Licínio um cristão. A existência de um deus supremo seria um ponto de consenso entre cristãos e nãocristãos, e nele cada um poderia enxergar o seu deus preferido.41 O mensageiro da oração, um “anjo de Deus”, nas palavras de Lactâncio, mostra que o sonho teria partido do Deus cristão, segundo o autor. É claro que isso não tornou Licínio cristão, como o próprio Constantino poderia ainda não o ser após ter sonhado com o labarum. O que mais interessa aqui é que muitos devem ter encarado a composição ao “Deus supremo” como uma composição cristã. 39 “Dios supremo, a Ti rogamos, Dios santo, a Ti rogamos: a Ti encomendamos toda la justicia, a Ti encomendamos nuestra salvación, a Ti encomendamos nuestro Imperio. Gracias a Ti vivimos, gracias a Ti alcanzamos la Victoria y la felicidad. Dios supremo, Dios santo, escucha nuestras plegarias. A Ti extendemos nuestros brazos: escúchanos Dios santo, supremo.” (LACTÂNCIO. Op. cit., 46.6). 40 HARNACK, A. von. Militia Christi: the Christian religion and the military in the first three centuries. Translated by David McInnes Gracie. Philadelphia: Fortress Press, 1981, p. 102. 41 VEYNE, P. Op. cit., p. 13.

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Afinal, Licínio havia interrompido as medidas anticristãs e a prece possuía traços cristãos, como a alusão à salvação. Além disso, com se verá mais à frente, as atitudes do imperador após vencer constituem um forte indicativo de que Harnack tem mesmo razão e de que a prece seria cristã. E o efeito mais surpreendente dela foi psicológico: “Crevit animus universitis victoriam sibi credentibus de caelo nuntiatam.”42 Assim fortalecidos, os soldados de Licínio, quando estavam cara a cara com o inimigo, fincaram os escudos no solo, retiraram os capacetes (um gesto de devoção), elevaram as mãos aos céus tendo à frente seus oficiais, e, precedidos pelo imperador, recitaram a prece. O exército inimigo ouvia o murmúrio, o que deve ter abalado o seu moral. Os homens recitaram a oração por três vezes, e então, com o espírito fortalecido, tornaram a cobrir as cabeças e a segurar os escudos. Estavam prontos para a batalha. Um acordo antes da batalha fracassou. Daia pensava que os homens do oponente debandariam para o seu lado sem a necessidade de combate.43 Ou ele era um estrategista extremamente presunçoso, ou as forças de Licínio apresentavam sinais de desgaste e inclinação à deserção. Se este foi o caso, o que parece mais provável, o sonho e a prece revelados ao seu comandante-chefe tiveram um resultado eficaz. Fizeram com que um exército esmorecido tomasse alento e ignorasse as ofertas do general inimigo, atacando-o implacavelmente. Assim, foi do aterrorizado exército de Maximino Daia que metade dos soldados desertaram ou fugiram, o que seu próprio general não tardou em fazer. Vitorioso, Licínio entrou em Nicomédia. A 13 de junho de 313 emitiu uma circular sobre o restabelecimento da Igreja. Nela reconhecia como as forças divinas haviam atuado a favor de si e dos seus subordinados. Os últimos versos do documento reafirmam o objetivo de eliminar qualquer aparência de restrição a algum culto ou religião. Os cristãos receberiam a restituição de suas propriedades. Por tudo isso, parece claro que Licínio encarou a prece que lhe foi revelada como uma dádiva do Deus cristão para a sua vitória. Todos os indícios mostram isso, muito embora, 42 “Todos elevaram seu ánimo, na crença de que desde o céu se lhes havia sido anunciado a vitória” (LACTÂNCIO. Op. cit., 46.7). Tradução livre. 43 Idem, 46. 10-12.

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como colocou Paul Veyne, esse milagre não o tocou ao ponto de se converter ao cristianismo. Assim, o Oriente passou a ser governado por um único imperador, Licínio, um pagão. O Ocidente estava unido sob filo-cristão Constantino. Logo se colocou a rivalidade entre os dois, e a explicação sobre qual teria demonstrado ambições primeiro varia de fonte para fonte, conforme esta é pagã ou cristã. Provavelmente ambos nutriram pretensões de se tornar imperador único. O antagonismo entre os dois era fomentado pelas diferenças religiosas. Cada vez mais Constantino promovia os interesses da Igreja. Esta, por sua vez, o apoiava desde, pelo menos, 314, como atesta o cânone III do Concílio de Arles: “De his qui arma proiciunt in pace placuit abstineri eos a communione.”44 Por essa decisão a Igreja em Arles não só desaprovava a deserção por parte de soldados cristãos em consideração à sua fé mas chegou ao ponto de fixar a temível punição de excomunhão para coibila. A Igreja assim selou e proclamou a plena união do Estado e imperador com a Cristandade na esfera militar. Mas, talvez, um entendimento ainda fosse possível. Assim, em 317, Licínio e Constantino firmaram um acordo de paz. Segundo a aliança, o filho de Licínio, Liciniano, e os filhos de Constantino, Constantino II e Crispo, tornaram-se Césares.45 Contudo, o equilíbrio logo se desfez, e as diferenças e a intolerância religiosa provavelmente foram determinantes para o rompimento da trégua. Licínio, mais radical, expulsou os cristãos de sua corte. A seguir, ordenou o licenciamento e privação da dignidade do posto de cada soldado que não aceitasse sacrificar aos deuses. Mais uma vez as medidas de intolerância começavam por serem aplicadas na corte e no exército, onde o campo de ação do soberano era mais eficaz. A seguir, Licínio atacou os bispos e as igrejas foram novamente arrasadas.46 Isto foi a gota d’água para que o defensor da Cristandade, Constantino, preparasse seu exército para enfrentar seu último adversário. 44 “Aqueles que lançam fora suas armas em tempo de paz devem ser excluídos da comunhão” (HARNACK, A. von. Op. cit., p. 100). Tradução livre. 45 Crispo, no entanto, seria assassinado em 326, talvez por ordem do pai (ZÓSIMO. Op. cit., 29.1). 46 EUSÉBIO DE CESAREIA. Op. cit., 10.8.

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Uma vez que a guerra foi declarada, ambos os imperadores procuraram se cercar das defesas espirituais que acreditavam que os levariam à vitória. Assim, o antagonismo entre eles e suas forças se acentuava, e a guerra adquiriu contornos de um embate entre o cristianismo e o paganismo. Conforme consta na Vida de Constantino, Εὐχῶν δ’ εἰ καί ποτε νῦν αὐτῷ δεῖσθαι καλῶς ἐπιστάμενος τοὺς τοῦ θεοῦ ἱερέας ἐπήγετο, συνεῖναι τ’ αὐτῷ καὶ παρεῖναι ὥσπερ τινὰς ψυχῆς ἀγαθοὺς φύλακας τούτους δεῖν ἡγούμενος. ἔνθεν εἰκότως ὁ τὴν τυραννίδα προβεβλημένος, πυθόμενος Κωνσταντίνῳ τὰς κατ’ ἐχθρῶν νίκας μηδ’ ἄλλως ἢ τοῦ θεοῦ συμπράττοντος πορίζεσθαι, συνεῖναί τ’ αὐτῷ καὶ παρεῖναι διὰ παντὸς τοὺς εἰρημένους, καὶ τό γε τοῦ σωτηρίου πάθους σύμβολον αὐτοῦ τε καὶ τοῦ παντὸς καθηγήσασθαι στρατοῦ, ταῦτα μὲν γέλωτος ἄξια ὑπελάμβανεν εἶναι, χλευάζων ἅμα καὶ βλασφήμοις αὐτὰ διασύρων λόγοις, αὐτός τε θεοπρόπους καὶ μάντεις Αἰγυπτίων φαρμακεῖς καὶ γόητας θύτας τε καὶ προφήτας ὧν ἡγεῖτο θεῶν περὶ ἑαυτὸν ἐποίει, κἄπειτα θυσίαις οὓς δὴ ᾤετο θεοὺς μειλισσόμενος, διηρώτα ὅπῃ αὐτῷ τὰ τῆς ἐκβάσεως τοῦ πολέμου χωρήσειεν. οἱ δ’ ἀμελλήτως ἐχθρῶν νικητὴν ἔσεσθαι καὶ πολέμου κρατήσειν συμφώνως αὐτῷ μαντείαις μακραῖς ἐπῶν τε καλλιεπείαις τῶν ἁπανταχοῦ χρηστηρίων [προίσχοντο], οἰωνοπόλοι δὲ διὰ τῆς τῶν ὀρνίθων πτήσεως σημαίνεσθαι αὐτῷ τὰ αἴσια προὔλεγον, καὶ θύται τὰ ὅμοια τὴν τῶν σπλάγχνων αἰνίττεσθαι κίνησιν ἐδήλουν. ἐπαρθεὶς δῆτα ταῖς τούτων ἀπατηλαῖς ἐπαγγελίαις σὺν πολλῷ θράσει προῄει ταῖς [βασιλέως] παρεμβολαῖς, ὡς οἷός τε ἦν, παρατάττεσθαι.47

Essa medida de Constantino representou mais um avanço na 47 Sabiendo bien que ahora más que nunca necesitaba de oraciones, se trajo sacerdotes, pues pensaba que era preciso que lo acompañaram y estuvieran presentes como buenos custodios de su alma. Desde entonces, el tirano, no sin razón, cuando advirtió que las victorias contra los enemigos le eran deparadas a Constantino no por otros medios que los de la cooperación divina, y que lo acompañaban y asistían permanentemente los de que antes hemos hablado, y que el símbolo de la pasión redentora ló guiaba a él y a todo el ejército, se lo figuro todo como uma ridiculez, mientras hacía comentários mordaces, al tiempo que lo ponía em solfa con expresiones de blasfemia. El, por su parte, hízose circundar de advinos y vates egipcios, de hechiceros, brujos y profetas de los dioses en que creia; después, em su búsqueda por captarse con sacrificios a los que reputaba como dioses, preguntaba por qué vias le saldrían bien las tornas de la guerra (EUSEBIO DE CESAREIA. Op. cit., 2.4).

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cristianização do exército. No lugar dos antigos harúspices pagãos, clérigos cristãos passaram a acompanhar o exército. Os símbolos sagrados aliados aos sacerdotes reforçavam a impressão de que Deus se fazia presente no combate, uma autêntica teomaquia.48 É verdade que Eusébio dá a entender que os religiosos em questão se assemelhavam mais a sacerdotes pessoais do imperador do que a capelães militares. De facto, não existe prova de que estes tenham existido antes do princípio do século V.49 No entanto, é bem possível que nessa espécie de “assessoria religiosa imperial” fundada por Constantino estivesse a gênese das futuras capelanias militares. O cristianismo pode ter influenciado as guerras de Constantino ainda noutros aspetos. Segundo Eusébio, o imperador sempre colocava Deus à frente de sua própria vida, pelo que buscava a salvação dos seus não mais que a de seus inimigos. Exortava então aos seus homens a tratarem os vencidos com moderação, concedendo mesmo donativos em ouro àqueles que os capturavam vivos. Assim, pela bondade de Constantino, “inumeráveis bárbaros” foram poupados.50 Parece claro que essa posição foi sustentada por uma motivação cristã sincera por parte de Constantino. Para o imperador cristão o mandamento “não matarás” pode ter adquirido grande importância.51 Mas é possível que, associado a esse sentimento humanitário de Constantino coexistissem outros, mais pragmáticos. A época em que viveu foi marcada por dificuldades de recrutamento militar junto dos cidadãos romanos, pelo que os bárbaros foram cada vez mais aproveitados, individualmente ou em unidades inteiras, para a defesa do Império. Assim, Constantino seguia sua 48 Quando os exércitos de duas cidades se enfrentavam na Antiguidade Clássica, seus respectivos deuses tomavam parte na luta. Em tais situações, os homens de então acreditavam sinceramente que os deuses combatiam ao lado dos soldados. Assim, tanto uns quanto outros podiam ser detestados, injuriados, agredidos e até presos (FUSTEL DE COULANGES, N.-D. A cidade antiga. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 1998, p. 176). 49 TOMLIN, R. S. O. Op. cit., p. 27. 50 EUSEBIO DE CESAREIA. Op. cit., 2.13. 51 ELTON, H. Op. cit., p. 335.

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consciência e garantia o fornecimento de novos recrutas ao seu exército, simultaneamente. Estes poderiam ser convertidos ao catolicismo, o que fortalecia sua aliança com a Igreja. Portanto, tal compaixão pelos vencidos pode ter constituído grande fonte para a propaganda de um basileus clemente e cristão. Obviamente, grande parte do contingente do exército não devia partilhar dos sentimentos piedosos de seu imperador. O preço de ouro que este teve que pagar aos soldados evidencia isso. Se possuíssem a mesma disposição cristã de Constantino, não precisariam ser pagos para poupar as vidas dos inimigos derrotados. Fica claro assim quão incipiente estava o processo de cristianização do exército, instituição na qual a mentalidade conservadora e agressiva não podia ser facilmente modificada. É notório que as transformações no exército não acompanharam a rapidez das mudanças da política imperial. Em 312, o cristianismo era uma religião tolerada. Mas, após a vitória final de Constantino na batalha de Crisópolis (324), o mundo romano foi reunificado sob seu governo único. A política religiosa então se inverteu, e o paganismo tornou-se a religião tolerada. A cristianização do exército e do Império se acelerou. Várias medidas foram tomadas nesse sentido. O dies solis, o domingo, se afirmou como um dia de santificação, com rituais a serem observados por civis e militares. O próprio imperador comparecia perante seus soldados para conduzir as preces: τὴν δέ γε σωτήριον ἡμέραν, ἣν καὶ φωτὸς εἶναι καὶ ἡλίου ἐπώνυμον συμβαίνει, τὰ στρατιωτικὰ πάντα διὰ σπουδῆς τιμᾶν διδάσκων, τοῖς μὲν τῆς ἐνθέου μετέχουσι πίστεως ἀκωλύτως τῇ ἐκκλησίᾳ τοῦ θεοῦ προσκαρτερεῖν μετεδίδου σχολῆς, ἐφ’ ᾧ τὰς εὐχὰς μηδενὸς αὐτοῖς ἐμποδὼν γινομένου συντελεῖν,  τοῖς δὲ μήπω τοῦ θείου λόγου μετασχοῦσιν ἐν δευτέρῳ νόμῳ διεκελεύετο τὰς κυριακὰς ἡμέρας ἐν προαστείοις ἐπὶ καθαροῦ προιέναι πεδίου κἀνταῦθα μεμελετημένην εὐχὴν ἐξ ἑνὸς συνθήματος ὁμοῦ τοὺς πάντας ἀναπέμπειν θεῷ. μὴ γὰρ δόρασι χρῆναι, μηδὲ παντευχίαις, μηδ’ ἀλκῇ σωμάτων τὰς ἑαυτῶν ἐξάπτειν ἐλπίδας, τὸν δ’ ἐπὶ πάντων εἰδέναι θεόν, παντὸς ἀγαθοῦ καὶ δὴ καὶ αὐτῆς νίκης δοτῆρα, ᾧ καὶ τὰς ἐνθέσμους προσήκειν ἀποδιδόναι εὐχάς, ἄνω μὲν αἴροντας εἰς οὐρανὸν μετεώρους τὰς χεῖρας, ἀνωτάτω δ’ ἐπὶ τὸν οὐράνιον βασιλέα τοὺς τῆς διανοίας παραπέμποντας ὀφθαλμούς, κἀκεῖνον ταῖς εὐχαῖς νίκης δοτῆρα καὶ σωτῆρα φύλακά τε καὶ βοηθὸν ἐπιβοωμένους. καὶ τῆς εὐχῆς δὲ τοῖς

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στρατιωτικοῖς ἅπασι διδάσκαλος ἦν αὐτός, Ῥωμαίᾳ γλώττῃ τοὺς πάντας ὧδε λέγειν ἐγκελευσάμενος·   «σὲ μόνον οἴδαμεν θεόν, σὲ βασιλέα γνωρίζομεν, σὲ βοηθὸν ἀνακαλούμεθα, παρὰ σοῦ τὰς νίκας ἠράμεθα, διὰ σοῦ κρείττους τῶν ἐχθρῶν κατέστημεν, σοὶ τὴν τῶν προυπαρξάντων ἀγαθῶν χάριν γνωρίζομεν, σὲ καὶ τῶν μελλόντων ἐλπίζομεν, σοῦ πάντες ἱκέται γιγνόμεθα, τὸν ἡμέτερον βασιλέα Κωνσταντῖνον παῖδάς τε αὐτοῦ θεοφιλεῖς ἐπὶ μήκιστον ἡμῖν βίου σῶον καὶ νικητὴν φυλάττεσθαι ποτνιώμεθα.» τοιαῦτα κατὰ τὴν τοῦ φωτὸς ἡμέραν ἐνομοθέτει πράττειν τὰ στρατιωτικὰ τάγματα, καὶ τοιαύτας ἐδίδασκεν ἐν ταῖς πρὸς θεὸν εὐχαῖς ἀφιέναι φωνάς.52

A iniciativa acima foi mais uma no sentido de promover o cristianismo no exército romano. Aliada a esse iniciativa, a medida procurava reforçar o senso de lealdade dos soldados ao seu chefe supremo, Constantino, e à sua dinastia. O imperador parecia bastante zeloso na promoção desses valores. Por outro 52 Como impartiera instrucciones para que todo el ejército guardara com empeño el día salvífico, que deriva su nombre de la luz y del sol, a los que comulgaban com la fe divina concedióles tiempo libre para que atendieran sin trabas los servicios religiosos y se entregasen a sus rezos sin cortapisa alguna; para los que, por conta, no comulgaban aún com la divina doctrina, ordenó por uma segunda ley que los dias dedicados al Señor formaram frente a la ciudad en un espacio despejado, y que allí, a um señal, todos juntos elevaram a Dios uma plegaria previamente ansayada. Pues, opinaba, no se necessitaban lanzas ni armamentos, ni dependiam las proprias esperanzas de la robustez física; por el contrario, reconocía al Dios universal, dador de todo bien, y más aún, de la misma Victoria, al que estaban obligados a responder com las oraciones prescritas, elevando em alto al cielo las manos, y más alto aún los ojos Del espíritu hacia el Rey de los cielos, y a él proclamando, entre súplicas, de la Victoria, Salvador, Custodio y Valedor. El mismo emperador em persona enseño a todos la recitaran em latín, de la seguinte manera: ‘Sólo a Ti te conocemos como Dios, - a Ti te invocamos como Valedor, - de ti obtenemos las victorias, - por Ti somos superiores a los enemigos, - a Ti damos las gracias por los pasados benefícios, - em Ti también confiamos como de los venideros, - de Ti todos somos suplicantes, - rogamos seános conservado el tiempo más largo posible, a salvo y victorioso, nuestro emperador Constantino, aí como sus piadosos hijos.’ Tal fue lo que legislo que hicieron el día de la luz los batallones de sus tropas, y tales fueron las palabras que enseño a pronunciar em las plegarias a Dios (EUSEBIO DE CESAREIA. Op. cit., 4.18-20). Negrito acrescentado.

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lado, o imperador não perseguiu os pagãos e os rituais de sua religião tradicional não foram banidos dos acampamentos. O conservadorismo e a lealdade às tradições que integravam o âmago da cultura militar foram obstáculos à política religiosa imperial. Isso é revelado num episódio datado de 324, após a derrota de Licínio. Nessa altura, Constantino compareceu perante seus veteranos, que o aclamaram nos termos que se seguem: IDEM A. cum introisset principia et salutatus esset a praefectis et tribunis et viris eminentissimis, adclamatum est: Auguste Constantine, dii te nobis servent: vestra salus nostra salus: vere dicimus, iurati dicimus 53

Eram, como se nota, soldados não-cristãos, que ainda evocavam os deuses em benefício do imperador. São prova da lenta cristianização do exército romano, processo esse que, como foi acima referido, esbarrou no forte tradicionalismo dos militares. O paradoxo é que esse mesmo tradicionalismo – sobretudo no que toca à reverência aos estandartes militares – pode ter constituído um ponto a favor das medidas de Constantino. Isso porque a recitação regular de orações e a familiaridade com símbolos cristãos por parte dos militares não pode ser desprezada.54 De igual modo, não deve ter sido difícil aos soldados pagãos que se convertiam ao cristianismo compreender que passavam a defender um Império de Cristo confiado ao seu vigário na Terra, o basileus. Isso porque os exércitos republicano e alto-imperial também eram milícias celestes que protegiam fronteiras sagradas.55 53 When he had entered the imperial headquarters of the army and had been saluted by the military prefects and tribunes and by the Most Eminent men, the acclamation arose: ‘Augustus Constantine! The gods preserve you for us! Your salvation is our salvation. In truth we speak, on our oath we speak.’ (The Theodosian Code and Novels and the Simordian Constitutions. A translation with commentary, glossary and bibliography by Clide Pharr, in collaboration with Theresa Sherrer Davidson and Mary Brown Pharr, with an introduction by C. Dickerman Williams. Volume I. New Jersey: Princeton University Press, 1952, 7.20.2). Negrito acrescentado. 54 LEE, A. D. War in Late Antiquity. Oxford: Blackweel Publishing, 2007, p. 182. 55 BOHEC, Y. L. El ejército romano. Traducción de Ignacio Hierro. Barcelona: Ariel, 2004, pp. 332-334.

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Apesar da tolerância geral manifesta por Constantino, algumas de suas medidas podem ter escapado à regra, sobretudo após 324. Nessa altura ele condenou o culto a Apolo e censurou os soldados que sacrificaram a Júlio Capitolino na cerimônia de seus uicennalia, em 326.56 Mas talvez a mais famosa de suas medidas de intolerância tenha sido a ordem de destruição do templo do deus Asclépio, na Cilícia. O edifício foi arrasado pela ação militar.57 O episódio é emblemático da viragem da política religiosa imperial: no início do século os soldados destruíam igrejas; cerca de duas décadas depois o alvo eram os templos pagãos. É possível que Constantino tenha pretendido ensinar ao exército a inutilidade das superstições pagãs através da destruição de seus símbolos materiais. A verdade é que, a partir de então, o exército foi um instrumento dos basileis cristãos, mesmo na execução de medidas mais extremas. Em seu leito de morte, Constantino se deixou batizar. A prática era comum – pensava-se o batismo em tal situação seria uma purificação final da alma e eliminaria qualquer obstáculo à entrada no paraíso. Pode ser que ao adiar essa decisão ele quisesse também evitar certos constrangimentos ao exercício pleno do poder imperial. No que toca à cristianização do exército romano, ele deixou fundamentos sólidos que os seus sucessores, à exceção de Juliano, o Apóstata (361-363), iriam ampliar. Mesmo sem preconceber, Constantino iniciou um processo de conversão dos soldados que, ao mesmo tempo, deu-lhes novo vigor para o combate e reforçou a ligação consigo e com sua dinastia. Considerações finais Os éditos de tolerância de 311 e 313 foram fundamentais para criarem um ambiente propício ao avanço do cristianismo no exército romano. A partir deles os cristãos poderiam voltar tranquilamente ao serviço militar e fazer apologia à fé que prefessavam (embora até então isso provavelmente não ocorria de forma intensa no exército). Vale lembrar, contudo, que até que Constantino se impusesse como imperador único, em 324, 56 LOT, F. Op. cit., pp. 47-48. 57 EUSEBIO DE CESAREIA. Op. cit., 3, 56.2.

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as perseguições continuaram a ocorrer em zonas das províncias orientais. Além dos éditos, outra medida imperial de importante significado para a cristianização das forças militares romanas foi a adoção do Chi-Rho, que posteriormente foi incluído no novo estandarte, o labarum. O símbolo desestabilizava os inimigos ao mesmo tempo em que fortalecia os soldados de Constantino. Embora, inicialmente, o Chi-Rho pudesse servir igualmente a cristãos e pagãos, depois as medidas pró-cristãs de Constantino esclareceram as suas posições religiosas, pelo que as citadas iniciais acabaram por ser um baluarte simbólico do cristianismo no exército romano. E a Igreja logo apoiou o braço armado do Estado, como atesta a decisão que tomou em Concílio em 314, apenas dois anos após a visão do imperador. A oração que Licínio transmitiu aos seus soldados, a primeira composição cristã militar que se conhece, também funcionou como forte apoio moral da tropa. Mas Licínio permaneceu pagão, e anos depois teve que enfrentar uma guerra civil contra Constantino. Enquanto este se cercava de religiosos cristãos, aquele rodeavase de feiticeiros e bruxos: o antagonismo não poderia ser maior. Assim, o confronto com forças marcadamente pagãs aceleraram a cristianização no exército ocidental. A identidade se forma a partir da oposição. A vitória final de Constantino assegurou a gradual extensão da evangelização para a totalidade do exército. Os interesses espirituais e terrenos coexistiam, como mostrou a iniciativa de Constantino ao conceder uma recompensa àquele soldado que capturasse vivo o inimigo. Assim, sua imagem de imperador piedoso se fortalecia ao mesmo tempo em que os soldados eram estimulados a copiarem os seus princípios. Além disso, ao invés de cadáveres, ele passaria a contar com futuros combatentes para a sua militia Christi. As medidas se completariam com os rituais cristãos celebrados em um dia especial: o dies solis (domingo). Constantino o promoveu como dia de santificação a civis e militares. Estes, mesmo que não fossem batizados, se reuniam fora da cidade, e comandados pelo imperador em pessoa, recitavam uma prece que haviam decorado. Assim, do efeito visual do Chi-Rho à repetição de orações, tudo contribuiu para a cristianização do exército. Essa cristianização foi fortalecida pelo início da repressão ao paganismo que começou a

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se delinear a partir de 324. A mensagem era clara: ao imperador cristão só interessava um exército e um Império igualmente cristãos.

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I VICTOR AC TRIUMFATOR. Tradição, poder e administração no governo de Teoderico I Amálo (c. 493 – 526)

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deposição e a abolição de uma figura imperial no trono da Itália, no famoso ano 476, pelas mãos do chefe federado Odoacro, trouxeram um repentino revés político e social para o mundo romano. Por um lado, a tomada da capital latina e a deposição do imperador-criança Rômulo Augustulo indicavam, para o líder da pars orientalis Zenão, o real poder militar e a capacidade de mobilização de Odoacro e, grosso modo, dos grupos ditos “bárbaros” que, cada vez mais, moldavam os andamentos políticos e sociais daquele contexto; por outro, apontava para os graves problemas de autoridade que repousavam sobre o Ocidente, já que o imperador de iure daquela região, Julio Nepos, refugiado na Dalmácia, tentava firmar a inócua força de sua posição agarrado a um fiapo de controle emanante de Constantinopla. Independente das tentativas de institucionalização da Púrpura ainda pretendidas por Zenão diante das vicissitudes do século V, 1 Doutorando em História pela University of Leeds. Bolsista CAPES / Membro discente do NEMED. Email: [email protected]

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o comandante ocidental de facto era Odoacro – e essa posição fica evidente quando este reconhece como imperador apenas o dominus oriental, aparentemente ignorando a posição de Julio Nepos. 2 A liderança estrangeira na Península Itálica (local definido como a égide da glória e do passado romano) simbolizava o esgotamento de uma política de autoridade imperial e de autocracia centralizada no Ocidente. Os encaminhamentos políticos passavam a ser designados por chefes bárbaros sob o distante auspício do cetro oriental; é inegável que os tempos mudavam, e a realidade mediterrânica transformava-se com uma velocidade impressionante. Este contexto flutuante, porém, não precipita, de forma alguma, a queda ou a ruptura total do Império Romano, como propõe uma historiografia mais tradicional 3. Ele ressalta, sim, a extinção do aspecto bicéfalo do Império (em teoria, depõe-se a Púrpura no oeste em favor de uma co-regência entre um rei federado e um único trono romano, residente na capital de Constantinopla) e atesta a maturação do poder e da acomodação de grupos “bárbaros” e estrangeiros nos alicerces da pars occidentalis. A situação torna-se muito mais complexa, porém, quando a documentação passa a atestar a sobrevivência de toda uma estrutura e uma jurisdição romana sob (e sobre) o pulso firme da nascente figura do rex italiae 4: independente da geopolítica do momento, do afastamento ou proximidade do imperador e da categoria institucional da autoridade na região, todo um aparato burocrático (e de definição e hierarquização social consequentes) 5 mantém-se como um verdadeiro motor da práxis política do 2

CAMERON, Averil. The Mediterranean World in Late Antiquity: AD 395 – 600. Londres & Nova Iorque: Routledge, 2001, p. 34.

3

A percepção de um fim para o Império Romano, ainda que mais antiga, tem início enquanto paradigma epistemológico a partir da monumental obra do inglês Edward Gibbon. Cf. GIBBON, Edward. The Decline and Fall of the Roman Empire. III vol. Nova York: Modern Library, 1977.

4

“Oduacro Italiae Regi […]”. Vic. Vit. Hist. parsec. I, 14. A idéia do rex italiae, aqui, provavelmente indica a situação real de um personagem com poderes monárquicos sobre um séquito estabelecido na região. No caso de Odoacro, esta perspectiva não implica, necessariamente, numa situação jurídica ou institucional legitimada e reconhecida.

5

“A administração pública tornou-se amplamente burocratizada em virtude da

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momento 6, e a aceitação senatorial por parte da regência de Odoacro ressalta essa questão. 7 O bom funcionamento da paraphernalia 8 romana se mantém, pós-476, como uma preocupação constante do imperador em Constantinopla. Enquanto a pars orientalis segue com uma cada vez mais forte e intrincada rede burocrática, os olhos orientais ainda entendem o ocidente, e em especial a Península Itálica, como um membro vivo do Império, e o mando de Odoacro permanece em foco. Assim, quando passam a ocorrer levantes godos na região da Trácia e da Ilíria, por volta de 483, Zenão compreende a possibilidade de lidar com dois problemas de uma só vez e oferta a regência da Itália ao chefe dos ostrogodos (e cabeça dos enfrentamentos gótico-romanos supracitados) Teoderico I Amálo em detrimento de Odoacro. Dessa forma, o Imperador submeteria novamente a administração italiana ao seu mando e aliviaria a tensão gótica nas fronteiras ao leste. É curioso, porém, que antes de incitar Teoderico contra Odoacro, Zenão ofereça ao criação de uma forte hierarquização na formação do corpo de funcionários, responsável pelo surgimento de uma aguda consciência de posição social e prestígio político entre as distintas categorias de serviços estatais: vir perfectissimus, clarissimus, spectabilis, illustris, títulos atribuídos a indivíduos que eram igualados socialmente aos membros da ordem senatorial pelo fato de exercerem algum tipo de atividade administrativa. Outro elemento fundamental para o processo de burocratização característico do Baixo Império foi a crescente especialização das funções”. In: SILVA, Gilvan Ventura da & MENDES, Norma Musco. “Diocleciano e Constantino: A Construção do DOMINATO”. In: SILVA, Gilvan Ventura da & MENDES, Norma Musco (orgs.). Repensando o Império Romano: Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural. Rio de Janeiro & Vitória: MAUAD & EDUFES, 2006, p. 203 6

EVANS, James Allan. The Emperor Justinian and the Byzantine Empire. Westport & Londres: Greenwood, 2005, pp. 1 – 5.

7

HUMPHRIES, Mark. “Italy, A.D. 425 – 605”. In: CAMERON, Averil; WARDPERKINS, Bryan & WHITBY, Michael (edits.). The Cambridge Ancient History XIV – Late Antiquity: Empire and Successors, A.D. 425 – 600. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2008, p. 528.

8

Palavra que vem do grego παράφερνα e indica um bem ou um aparato inalienável e pertencente a uma pessoa jurídica. Neste caso, numa apropriação entre o sentido clássico e o moderno, o termo indica uma estrutura reconhecida da administração romana.

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primeiro os títulos de Magister Militum, em 483, e de Cônsul em 484 – a concessão de títulos militares e administrativos, assim, parece conter um grau suficiente de prestígio para aplacar mesmo os potenciais inimigos de Roma e aproximá-los de um modus vivendi desejado para a manutenção de certa autoridade romana 9 . De qualquer maneira, as vicissitudes orientais e italianas são de ordem externa, baseadas em dificuldades diplomáticas e formalizações políticas – seria inocente pensar que, durante a década de 480, as regiões itálicas houvessem caído em total descontrole 10. A documentação do período atesta problemas de trato entre o imperador e o rei godo de Ravena 11, mas não parecem indicar maiores crises internas 12. A administração no mundo (pós)romano continuava plenamente operante, a despeito da efervescência do momento. Uma percepção mais firme acerca da situação burocrática e governativa da Itália pode ser obtida a partir de 493. Teoderico I Amálo, fomentado pelo trono em Constantinopla, leva a cabo suas campanhas na Península, depõe Odoacro e torna-se chefe efetivo da região. O novo dominus romano oriental, Anastácio I, mantém suas negociações com o rei godo comedidas e cautelosas; diferentemente de seu antecessor, Zenão I (morto em 491), Anastácio não reconhece de imediato a co-tutela imperial de Teoderico, apesar das tentativas deste de obter legitimidade 13 . Somente quatro anos depois, em 497, é que Coroa oriental 9

CAMERON, Averil. Op. Cit., p. 31.

10 O’DONNELL, James. The Ruin of the Roman Empire. Nova Iorque & Londres: HarperCollins, 2008, p. 105. 11 Principal capital do Império desde o século V. Temos como testemunhos desta realidade, em especial, as obras dos romano orientais Procópio e Conde Marcelino (que escreveu em latim). 12 Walter Goffart, em obra clássica, busca compreender o sistema de acomodação de grupos estrangeiros na Itália. Longe de embates militares, o processo de assentamento e assimilação pode se ter dado de forma quase burocrática, com divisões de terras e concessão de propriedades por meios administrativos (e não combativos). In: GOFFART, Walter. Barbarians and Romans: A.D. 418 – 584, the Techniques of Accommodation. Nova Jersey: Princeton Univ. Press, 1980, pp. 162 – 175. 13 Cassiodoro afirma, em sua primeira carta, que aos ostrogodos cabe “buscar a

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reconhecê-lo-ia como Rei dos godos e romanos (Rex gothorum romanorumque) e aceitaria a regência ostrogótica na Itália14. O relato do Anônimo Valesiano nos concede importantes informações acerca desta relação entre Constantinopla e Ravena quando diz que “a paz foi feita com o imperador Anastácio por meio de Festo [enviado de Teoderico] (...) e Anastácio devolveu todo o ornamento do palácio que Odoacro enviara para Constantinopla” 15. Diferentemente de Odoacro, Teoderico assume a Coroa na Itália imbuído de certa legitimidade (mesmo simbólica, com o retorno das insígnias) e relativo consentimento constantinopolitano, tendo como contrapartida o respeito à legislação, às tradições, às instituições e às aristocracias romanas. Naturalmente que este era um horizonte idealizado para a diplomacia godo-romana, ainda que o monarca provavelmente entendesse que sua potestade dependia de alguma harmonia entre os elementos romanos (ocidentais e orientais), entre os membros de seu grupo e ainda entre os súditos remanescentes de Odoacro 16 . Assim, o panorama sociopolíticopolítico da Península Itálica, à aurora da sexta centúria, longe de ser caracterizado por uma “substituição do Império pelo mando ostrogótico”, era um amálgama populacional e institucional, símbolo material de um desenrolar Tardo-Antigo: o velho se agrega ao novo num processo de readequação, releitura e transformação. 17

paz, clementíssimo Imperador, já que entre nós não existe motivo para ódio” ( portet nos, Clementissime Imperator, pacem quærere, qui causas iracundiæ cognoscimur non habere). Cass. Var. I.1. Mais sobre Cassiodoro à frente. 14 WOLFRAM, Herwig. Die Goten: Von den Anfängen bis zur Mitte des sechsten Jahrhunderts. Munique: Beck, 2001, p. 284. 15 “Facta pace cum Anastasio imperatore per Festum (...) et omnia ornamenta palatii, quae Odoacar Constantinopolim transmiserat, remittit” Anom. Val. Chron. II, 64. 16 COLLINS, Roger. “The western Kingdoms”. In: CAMERON, Averil; WARDPERKINS, Bryan & WHITBY, Michael (edits.). Op. cit., pp. 127 – 128. 17

Cf. FRIGHETTO, Renan. “A longa Antiguidade Tardia: problemas e possibilidades de um conceito historiográfico”. In: VII Semana de Estudos Medievais, 2010, Brasília : Casa das Musas, v. 1, p

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Mapa 4: Dimensão aproximada dos domínios de Teoderico I Amálo em sua maior extensão, incluindo sua regência sobre a Coroa dos visigodos, a partir de 508 d.C. Fonte: AMORY, Patrick. People and Identity in Ostrogothic Italy, 489 – 554. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2003, p. I.

Tendo em vista esta concepção, podemos perceber as estratégias de manutenção do poder e da sociedade gótico-romana sob o cetro teodericiano. Como nota Walter Goffart, a situação políticoadministrativa em questão dependia de métodos acomodativos: do ponto de vista prático, havia a necessidade de literal assentamento dos grupos seguidores de Teoderico em terras e villae pertencente aos altos funcionários e aos membros senatoriais instalados ainda em tempos imperiais; do ponto de vista teórico, a acomodação exigida era identitária e representativa, dependia de um aporte ideológico que combinasse o “nacional” e o “estrangeiro”, que atribuísse o lócus político tanto do godo quanto do romano. Neste sentido, elabora-se no período uma específica definição de civilitas – na pena de Cassiodoro, funcionário romano sob o comando de chefes góticos e nossa principal testemunha do período 18, o termo 18 Cassiodoro foi um personagem que assumiu importantes cargos administrativos

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conceitua uma concórdia civilizacional, um respeito ao aparato e à jurisdição romana por parte de uma autoridade gentilícia, legitima e soberana 19. Historiograficamente, esta perspectiva ganha forma na tradicional proposição de que, para materializar esta política de civilitas, Teoderico institucionalizou uma divisão funcional entre romanos e godos, mantendo para os primeiros os ofícios administrativos e para os últimos a atribuição militar, o exercitus gothorum 20. Amory argumenta que esta separação profissional existia num campo ideológico, e que seria um engodo tomá-la como reflexo de uma realidade 21. Naturalmente que tal divisão dependeria de uma noção, como diz Amory, de etnicidade, ou seja, da clara noção do que definiria um “ostrogodo” enquanto uma categoria política, cultura e social. O problema reside na falta de informações documentais e no excesso de inferências modernas referentes ao assunto: fontes antigas carecem de apontar o que claramente constitui um “godo” enquanto tal, sendo a identidade uma atribuição flutuante, podendo depender de religião, de status social, de status econômico, de lealdades, et cetera. A busca por identidades estanques é um pecado da historiografia tradicional, e na busca por matizá-las, Amory parece esquecer que esta preocupação deveria estar ausente na ordem cultural dos séculos V e VI (pelo menos não nos mesmos termos em que, hoje, procuramos definir identidades) e as problematiza de forma excessivamente “contemporânea”. Assim, concordamos que a durante a vigência do reinado ostrogótico na Itália. Com o andamento das campanhas de Justiniano, Cassiodoro organizou e compilou a correspondência e o material que escreveu durante seus ofícios e publicou num trabalho chamado de Variae. Cf. O’DONNELL, James. Cassiodorus. Berkeley; Los Angeles; Londres: California Univ. Press, 1979. 19 Cass. Var, VII.3. Para uma problematização da idéia de civilitas no período ostrogótico, ver AMORY, Patrick. Op. cit., pp. 43 – 50; ZIMMERMAN, Odo John. The Late Latin Vocabulary of the Variae of Cassiodorus, with Special Advertence to the Technical Terminolog y of Administration. Hildesheim: Georg Olms, 1967, pp. 88, 179. 20 Cf. WEIßENSTEINER, Johann. “Cassiodor / Jordanes als Geschichtsschreiber”. In: SCHARER, Anton & SCHEIBELREITER, Georg (edits.). Historiographie im frühen Mittelalter. Viena: Oldenbourg, 1994, p. 319. 21 AMORY, Patrick. Op.cit., pp. 44 – 45.

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distinção profissional entre determinados grupos operava num plano ideológico, mas não nos parece que, apesar das dificuldades de definir etnograficamente personagens neste contexto, isso fosse empecilho para certa transposição prática desta política: ainda que seja infrutífero que definamos identidades de forma canônica, podemos perceber a transcendência administrativa e burocrática de personagens que se relacionam com um passado imperial, como Enódio, Boécio, Libério, Símaco ou Cassiodoro. 22 Grosso modo, este debate apresenta os problemas da generalização. Parece-nos salutar tomar, na discussão, o lugar do meio: não podemos entender a orientação ideológica da bicefalia gótico-romana como uma transposição direta da práxis política, mas também é incabível analisar essa construção como uma elucubração sem qualquer tipo de influência pragmática. Percebemos, dessa forma, que alguns membros de provável extração gótica assumiam, contra a lógica retórica, ofícios administrativos, como um certo Vilia, conde dos patrimônios 23, ou Triwa, suposto prepósito do cubículo sagrado 24. Contudo, o peso político de certos personagens como aparecem na documentação (citando, por exemplo, as pomposas famílias romanas dos Décios e dos Anícios) 25 e sua vinculação ao mundo burocrático do momento indicam algum tipo de efetividade ou valoração da civilitas de Teoderico, no sentido de agregar e acomodar. A preocupação retórica, independente de seu grau de efetividade, com o aparato burocrático romano no seio da governação ostrogótica demonstra, acima de tudo, a importância de um suporte administrativo para a existência daquela realidade. Cassiodoro, funcionário romano e mecanismo basilar para a engrenagem chancelar de Teoderico, talvez seja nossa melhor testemunha no que se refere à burocracia régio-imperial. Dos 12 livros de suas Variae – a compilação autoral de cartas e chancelas escritas durante a ocupação de seus ofícios administrativos – Cassiodoro concede a totalidade de dois deles (o livro 6 e o livro 7) para a apresentação de formulae administrativas. Nestas, ele elenca 22 Cf. AMORY, Patrick. Op.cit. 23 Cass. Var. V.18. 24 Anom. Val. Chron. XIV.82. 25 WOLFRAM, Herwig. Op. cit. p. 357.

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uma série de funções, cargos, títulos e nomeações específicas, evidenciando as especificidades da burocracia nos tempos de Teoderico, como perceptível nas tabelas abaixo:

26 Os ofícios descritos na tabela são referente somente às formulae presentes no livro 6 das Variae de Cassiodoro. Apesar de não representarem a totalidade dos cargos administrativos da Itália ostrogótica, são um importante indicativo da preponderância e da necessidade de esquemas e hierarquias burocráticas aos moldes imperiais.

TABELA 1: VARIARUM LIBRI VI – FORMULAE 26 CARGO INSÍGNIA FUNÇÃO REFERÊNCIA Cônsul Illustris Civil: máxima posição do VI.1: Consulatus conselho senatorial Patrício Illustris Civil: distinção VI.2: Patriciatus sociopolíticapolítica perpétua Prefeito do Pretório Illustris Civil/Judicial: juiz e VI.3: Præfectus Prætorius segunda liderança (atrás apenas do Imperador / Rei) Prefeito da Urbe Illustris Civil/Judicial: juiz e VI.4: Præfectus Urbis administrador de Roma Questor Illustris Civil/Judicial: revisão VI.5: Quæstura de leis e contato com embaixadores Mestre dos Ofícios Illustris Civil: chefe da VI.6: Magisteria administração civil Dignitatis Conde dos Bens Illustris Civil: administração da VI.7: Comitiva Sacrarum Sagrados economia Conde dos Bens Illustris Civil: administração das VI.8: Comitiva Privados terras reais Privatarum Conde dos Illustris Civil: administração dos VI.9: Comitiva Patrimônios bens reais Patrimonii

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Conde de Siracusa

Reitor

Conde dos médicos reais Consular

Prefeito da Annona

Notariais Referendários

Vigário de Roma

Mestre dos Escritórios Senador

Spectabilis

Spectabilis

Clarissimus

Clarissimus

Spectabilis

Spectabilis Spectabilis

Spectabilis

Clarissimus

Spectabilis

Spectabilis

Conde de Nápoles

Civil: produção escrita burocrática Civil: conselho senatorial Civil: agente submetido e próximo ao Prefeito da Urbe Civil: secretários do rei Civil/Judicial: redação judicial em nome da Corte Civil: administração das provisões populares Civil: organização e chefia dos médicos Civil: funcionário do Cônsul Civil/Judicial: arbitragens legais Civil/Judicial: administração e jurisdição de Siracusa Civil/Judicial: administração e jurisdição de Nápoles

VI.13: Magister Scrinii

VI.14: Referendis in Senatu VI.15: Vicarius Urbis Romæ

VI.16: Notarii VI.17: Referendarii

VI.18: Præfectus Annonæ VI.19: Comes Archiatrorum VI.20: Consulares

VI.21: Rector Província

VI.22: Comitiva Syracusanæ

VI.23: Comitiva Neapolitanæ

FUNÇÃO Militar: punição de condenados e defesa Perfectissimus Civil: semelhante ao consular e ao retor Illustris Militar/Judicial: juiz e defensor de assuntos entre godos e romanos Spectabilis Militar: defesa da província raeciana Spectabilis (?) Civil: cuidado do palácio e / Nobilissimus de seus funcionários (oriente) Spectabilis Civil: administração dos aquedutos Spectabilis Civil/Militar: defesa e vigília da cidade de Roma Spectabilis Civil/Militar: defesa e vigília da cidade de Ravena Spectabilis Civil: administração dos portos da cidade de Roma Spectabilis Civil: administração do entretenimento público Clarissimus ( ?) Civil/Militar: defesa e fixação de preços Spectabilis (?) Civil/Militar: semelhante ao Defensor de Cidade

INSÍGNIA Spectabilis

27 Idem à nota anterior, mas agora com referência ao livro 7.

Tribuno dos Espetáculos Defensor de [qualquer] Cidade Curador da Cidade

Conde dos Aquedutos Prefeito da Vigília de Roma Prefeito da Vigília de Ravena Conde do Porto

Curador do Palácio

Duque da Raécia

Conde dos Godos

Praeses

CARGO Conde de Província

VII.6: Comitiva Formarum Urbis VII.7: Præfectus Vigilum Urbis Romae VII.8: Præfectus Vigilum Urbis Ravennatis VII.9 : Comitiva Portus Urbis Romæ VII.10: Tribunus Voluptatum VII.11: Defensor cujuslibet Civitatis VII.12: Curator Civitatis

VII.3: Comitiva Gothorum per singulas Provincias VII.4: Ducatus Rætiarum VII.5: Cura Palatii

REFERÊNCIA VII.1: Comitiva Província VII.2: Præsidatus

TABELA 2: VARIARUM LIBRI VII – FORMULAE 27

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Arquitetos Públicos

Conde de Ravena

Conde de Roma

_________

Spectabilis

Spectabilis

_________

Conde das Ilhas Spectabilis Curritana e Celsina Prepósito do Spectabilis (?) Calcário Armeiros

Spectabilis da Spectabilis (?)

Vigário do Porto Príncipe Dalmácia

Condes de Segunda Clarissimus Ordem Guardião dos Clarissimus ( ?) Portões [de qualquer cidade]

VII.29: Custodiendis Portis Civitatis

VII.26: Comitiva Diversarum Civitatum

VII.24 : Princeps Dalmatiarum

VII.18 : Armorum Factores VII.23 : Vicarius Portus

Militar/Judicial: chefe de VII.13: Comitiva defesa e jurisdição de Romana Roma Militar/Judicial: chefe de VII.14: Comitiva defesa e jurisdição de Ravennatis Ravena Civil: manutenção das VII.15: Architectus edificações Publicorum Judicial: legislação insular VII.16: Comitiva Insulæ Curritanæ et Celsinæ VII.17 : Præpositus Calcis Civil: administração da extração e da distribuição de Calcário Militar: fundição e forja de armas Civil: cuidado dos portos e dos barcos Civil/Judicial: chefia administrativa e legal da província (submetido ao conde) Civil/Judicial: legislação e cuidado provincial (submetido ao conte de 1a ordem) Militar: cuidado dos portões e dos ingressos nas cidades



Mestre Cunhagem

de Spectabilis (?)

Tribuno de Spectabilis Províncias Príncipe de Roma Spectabilis (?) Civil: indeterminada função civil Civil: chefe dos ofícios e da administração civil (submetido ao conde) Civil: administração da cunhagem de moedas VII.32: Moneta Committitur

VII. 30: Tribunatus Provinciarum VII.31: Principatus Urbis Romæ

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As tabelas acima estruturam tão somente os cargos e funções citadas nos livros de Formulae de Cassiodoro. Não podemos pensar que fossem os únicos ofícios presentes na Itália de Teoderico 28 – apesar de sua ausência nas Formulae 29, existe, por exemplo, o escritório do Sajo, uma espécie de guarda e executor dos mandatos reais e detentor da insígnia pouco distintiva de vir devotus 30. Fica claro, também, que Cassiodoro menciona em especial os elementos burocráticos de maior status, e não seria inconsequente pensar que, como no período imperial, ao serviço destes altos funcionários estivessem empregados personagens de menor (ou nenhuma) titulação, como os viri perfectissimi, os viri devoti. Dois elementos importantes emergem após análise deste panorama burocrático. Em primeiro lugar, notamos a transcendência de um aparato administrativo que se perpetua desde os séculos IV ou V (em especial) na Península Itálica. Os cargos e funções presentes nas Variae, independente do “caráter étnico” dos personagens que os assumem, são próximos ou idênticos aos que encontramos no Codex Theodosianus ou na Notitia Dignitatum. Alguns se mantêm mesmo em grau de importância, como no caso do Prefeito do Pretório, do Questor ou do Mestre dos Ofícios. Thomas Hodgkin, tradutor e sumarizador da chancelaria cassiodoriana, nota as semelhanças e diferenças, por exemplo, do officium Pretoriano entre o mundo romano, ostrogótico e constantinopolitano do século VI como disposto na seguinte tabela:

28 Mantinham-se cargos como o de, por exemplo, Prepósito do Cubículo Sagrado. Demais funções ainda presentes no períodos incluíam: “Sub dispositione viri spectabilis primicerii sacri cubiculi (...)” XIV; “Sub dispositione viri spectabilis vicarii urbis Romae (...)”. XIX, not. dig. in par. occ.. 29 A carta 42 do livro VII, porém, menciona a estruturação formulaica para que um questor delegue a proteção de um Sajo a outro personagem. Contudo, ela não diz respeito ao cargo em si. 30 Cass. Var. XII,3.

Primicerius Exceptorum Sextus Scholarius Praerogativarius Commentariensis Regendarius Primicerius Deputatorum Primicerius Augustalium Primicerius Singulariorum

31 HODGKIN, Thomas. The Letters of Cassiodorus being a Condensed Translation of the Variae Epistolae of Magnus Aurelius Cassiodorus Senator. Londres: Henry Frowde, 1886, p. 95.

Subadjuva Cura Epistolarum Regerendarius Exceptores Adjutores Singularii –––––––––– ––––––––––

TABELA 3: OFFICIUM PRETORIANO 31 NOTITIA DIGNITATUM CASSIODORO –––––––––– Princeps Cornicularius Cornicularius Primiscrinius Adjutor Scriniarius Actorum Commentariensis Cura Epistolarum Ab Actis Scriniarius Curae Militaris IV Numerarii –––––––––– –––––––––– –––––––––– II Commentarisii II Regendarii II Curae Epistolarum Ponticae –––––––––– Singularii

JOÃO DA LÍDIA –––––––––– Cornicularius II Primiscrinii –––––––––– –––––––––– ––––––––––

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Em segundo lugar, podemos notar, a partir deste debate, as transformações e originalidades burocráticas ocorridas no seio da administração teodericiana. Talvez a mais chamativa fique a cargo do alto ofício criado pelos ostrogodos, o Comes Gothorum. Este personagem, o dito Conde dos Godos, detinha uma magistratura de grande autoridade, sendo responsável pela mediação civil e legal entre assuntos que competiam a godos (ou a godos e romanos, nunca somente a romanos). Ao que aponta a formula de Cassiodoro, a Comitiva Gothorum era ocupada necessariamente por um personagem de extração ostrogótica: Com o auxílio de Deus sabemos que os godos habitam convosco [romanos], e afim de evitar que nasça a discórdia [indisciplinatio] entre os parceiros [consortes], julgamos necessário enviar para vós o Conde X, varão sublime, de comprovados bons costumes e que, segundo nossos editos, deverá encerrar questões entre dois godos; se qualquer negócio surgir entre um godo e um romano de nascimento, ele poderá juntar-se a um jurisprudente romano e arbitrar com razão. Porém, num debate entre dois romanos [de nascimento], dirigiremos a situação aos juizes romanos de província [cognitores], de modo que cada qual se sirva de sua lei, e que sob uma diversidade de direitos uma única justiça abarca nosso universo (...) ouçam, ó dois povos que amamos: vós [godos] tendes aos romanos como vizinhos em vossas terras, que eles vos sejam ligados pela caridade; vós também, romanos, tendais aos godos com cuidadosa diligência, pois eles levam a paz às vossas numerosas populações e defendem, na guerra, a totalidade da República [Res Publica]32.

32 “Cum deo iuvante sciamus Gothos vobiscum habitare permixtos, ne qua inter consortes, ut assolet, indisciplinatio nasceretur, necessarium duximus illum sublimem virum, bonis nobis moribus hactenus comprobatum, ad vos comitem destinare, qui secundum edicta nostra inter duos Gothos litem debeat amputare, si quod etiam inter Gothum et Romanum natum fuerit fortasse negotium, adhibito sibi prudente Romano certamen possit aequabili ratione discingere. inter duos autem Romanos Romani audiant quos per provincias dirigimus cognitores, ut unicuique sua iura serventur et sub diversitate iudicum una iustitia complectatur universos (...) audiat uterque populus quod amamus. Romani vobis sicut sunt possessionibus vicini, ita sint et caritate coniuncti. vos autem, Romani, magno studio Gothos diligere debetis, qui et in pace numerosos vobis populos faciunt et universam rem publicam per bella defendunt”. Cass. Var. VII, 3.

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A formula apresenta, além de um cargo administrativo marcado pelo traço gótico, a reiteração da perspectiva ideológica de um civilitas de concórdia. Ao menos no plano teórico, portanto, Cassiodoro valora o aporte burocrático e nota como a existência de um determinado ofício permite que a legislação romana seja seguida (e, naturalmente, a partir dela, que se mantenha um tipo de tradição). Neste sentido, é interessante notar que, pari passu com a elaboração ideológica, o mecanismo administrativo de Teoderico funciona também num plano pragmático, sendo a criação desta nova função uma forma de trabalhar a efetividade da burocracia tanto com relação ao sistema romano herdado quanto em relação às contingências apresentadas pelo momento e pelos anseios de grupos estrangeiros, independente do grau de eficácia deste cargo. Além da oficialidade de uma comitiva gothorum, sob o cetro do rei Amálo nasce ainda uma segunda função marcada pela égide ostrogótica, o já citado Sajo. Idealizado como uma espécie de “guarda-costas” real, o cargo já carrega em sua semântica o passado germanizado 33, e provavelmente era destinado aos soldados e guerreiros deste extrato. É interessante notar que, apesar da pouca expressividade dentro de uma lógica de status burocrático, os Sajones eram tidos como funcionários próximos ao rei, viri devoti, defensores e executores de seu mando 34. Sua proximidade régia e sua aparente importância destacam o Sajo (assim como o Comes Gothorum) como um fundamental acréscimo 33 Por germanizado, aqui, entende-se aquilo que advém de uma tradição tribal (e eminentemente ancestral) de grupos que dividem uma árvore linguistica considerada germana, ou seja, advinda em algum momento do norte da Europa. Entre estes grupos constamos os godos, os francos, os burgúndios, os lombardos, os frísios, os saxões, turíngios, os suevos, entre vários outros. Cf. POHL, Walter. “Spuren, Texte, Identitäten. Methodische Überlegungen zur interdisziplinären Erforschung frühmittelalterlicher Identitätsbildung”. In: BRATHER, Sebastian. Zwischen Spätantike und Frühmittelalter. Ergänzungsbände zum Reallexikon der Germanischen Altertumskunde. Vol. 57. Berlim & Nova Iorque: Walter de Gruyter, 2008, pp. 13 – 27 & KÖNIG, EKKEHARD; VAN DER AUWERA, Johan (Edit.). The Germanic Languages. Londres & Nova Iorque: Routledge, 1994. 34 Para mais sobre as gradações militares entre os godos e suas implicações ideológicas e práticas, cf. BURNS, Thomas. A History of the Ostrogoths. Bloomington & Indianápolis: Indiana Univ. Press, 1991, pp. 177 – 181 & WOLFRAM, Herwig. Op. cit. pp. 290 – 294.

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dos godos num plano administrativo altamente romanizado. A monumentalidade da chancelaria legada por Cassiodoro – e seu imbricamento com o universo burocrático da Itália ostrogótica –, como já vimos, é nosso mais rico testemunho acerca da administração neste contexto 35. Sua produção, contudo, é imbuída de um forte elemento retórico direcionado 36 , e sua análise, como aponta Amory, depende de uma noção ideológica acerca daquele aparato. Esta tensão epistemológica entre a teoria burocrática e a práxis administrativa fomentou e ainda fomenta, entre historiadores do período, um intenso debate acerca da natureza da paraphernalia gótico-romana. Para alguns, ela se estabeleceu como uma real presença político-administrativa, matizando o cetro “bárbaro” com toda a tradição assessoral e funcionarial dos romanos. Assim, as fórmulas, funções e cargos herdados do Império exerceriam verdadeiro peso sobre o encaminhamento efetivo do reino, e a separação étnica ocorria numa certa dicotomia entre funções civis / funções militares, 35 Existem outras documentações, naturalmente, que lidam com um panorama jurídico-administrativo no reinado. Ao lado das Variae, tem-se, por exemplo, o Edictum Theoderici, uma espécie de compilação gótica de antigos códigos romanos, como aquele emitido por Teodósio II (o Codex Theodosianus), e cuja preocupação é eminentemente jurídica. Porém, existe certa controvérsia com relação ao seu lócus de produção e sua datação: não se sabe ao certo se o Edictum Theoderici foi resultado direto das ordens de Teoderico I Amálo por volta do ano de 500 d.C. ou foi fruto do arbítrio de Teoderico II dos visigodos, emitido na segunda metade do século V. Apesar de sua importância para a ideologia jurídica ou política dos reinados federados que se estruturavam a partir do século V, a incerteza de sua autoria dificulta uma análise mais verticalizada e detalhista no contexto dos ostrogodos. In: BURNS, Thomas. Op. cit., pp. 126 – 127; LAFFERTY, Sean. Law and Society in the Age of Theoderic the Great: A Study of the Edictum Theoderici. Cambridge: Cambridhe Univ. Press, 2013 (no prelo); MOUSOURAKIS, George. The Historical and Institutional Context of Roman Law. Hampshire: Ashgate, 2005, p. 381 & WOLFRAM, Herwig. Op. cit., p. 199. 36 Uma vez que o trabalho foi concebido, arranjado, revisado, organizado e publicado pelo próprio Cassiodoro, propõe-se alguma motivação autoral, uma posição política que engendraria este esforço e colocaria um propósito para o trabalho, de forma que suas linhas seriam direcionadas por uma retórica pensada e específica. Cf. BJORNLIE, Michael Shane. “What Have Elephants to Do with Sixth-Century Politics?: A Reappraisal of the ‘Official’ Governmental Dossier of Cassiodorus”. In: Journal of Late Antiquity. Vol. 2. No. 1, 2009, pp. 143 – 171.

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respondendo tanto à presença do passado como à inovação do presente 37. Para outros, a burocracia ostrogótica era um elemento de cunho eminentemente ideológico 38, e sua realidade era distante do planejado, recaindo sobre o mando pessoal do Rex e estruturando-se a partir de balizas típicas das instituições germanas 39. Como é de praxe nos domínios da história, nosso acesso ao pretérito repousa ao lado dos (com)textos discursivos, e o epitáfio da documentação é, por excelência, nossa realidade do passado. Assim, a resolução deste debate não depende de um esclarecimento que se aproxime de uma efetividade do período, mas sim de uma clarificação das fontes e de rejuvenescidas perspectivas de análise, ou seja, do redesbravamento de nossos velhos caminhos. É basilar, assim, para que tenhamos o pano de fundo da burocracia ostrogótica, compreender que teoria e prática não representam uma separação fundamental de dois aspectos historiográficos, mas são manifestações de um mesmo processo, uma tentativa de estruturação política e de acomodação na legitima tradição romana. A persistência de aparatos latinos na administração de Teoderico representa, afinal, a perenidade de ideias e ações que remontam ao Império, e seu funcionamento, seja retórico ou seja pragmático, aponta para uma situação transformada e continuada. A sexta centúria, como estruturada na Itália dos ostrogodos, não é a ruptura com práticas e instituições anteriores, mas é a acomodação de novas práticas e de novas instituições num contexto que não apaga, esquece ou ignora seu predecessor – se contextos puderem ser entendidos, didaticamente é claro, como uma constante sucessão e transformação. O que é a administração ostrogótica, portanto? Como 37 Cf. MOORHEAD, John. Theoderic in Italy. Oxford: Sandpiper, 1997; HODGKIN, Thomas. Op. cit.; O’DONNELL, James. “Liberius the Patrician”. In: Traditio, n.37, 1981, pp. 31 – 72; SCHMIDT, Ludiwg. “Die Comites Gothorum: ein Kapitel zur ostgotischen Verfassungsgeschichte”. In: Mitteilungen des Instituts für Österreichische Geschichteforschung, n.40, 1925, pp. 127 – 134. 38 Cf. AMORY, Patrick. Op. cit.; WOLFRAM, Herwig. Op. cit. & WOLFRAM, Herwig. The Roman Empire and its Germanic People. California: Univ. of California Press, 1997. 39 BURNS, Thomas. Op. cit..

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ressaltamos anteriormente, é o mecanismo pelo qual novos grupos adaptaram-se ao (e adaptaram o) ambiente romano; é a edificação, retórica e efetiva, de uma paraphernalia que visava a manutenção da legitimidade imperial ao mesmo tempo em que aplicava e materializava o poder, a autoridade e a ordem dos godos na Península. A burocracia de Teoderico e seus sucessores, portanto, atuava em dois níveis: o do funcionamento e o do símbolo. Nível de funcionamento porque, apesar de qualquer lógica retórica que amparasse tal estrutura, ela invariavelmente existia também por sua dimensão prática, e ainda que não fosse tida exatamente como queriam as vozes de Cassiodoro ou de João da Lídia, ela deveria possuir algum tipo de ascendência efetiva – uma máquina administrativa que não suprisse suas tarefas quotidianas dificilmente angariaria prestígio e importância, como o fez a máquina dos godos; e nível simbólico porque, funcionante ou não, marcada fosse por godos, fosse por romanos, epítome de identidade ou de hierarquização social, a burocracia ostrogótica era a continuidade, a transformação e a novidade, era o elo legítimo entre aquele grupo e a Púrpura que tanto brilhava no Oriente (e que brilhara no Ocidente). A burocracia atuava como uma espécie de “orgulho” para os personagens que a viviam, como depreendemos da documentação e de seus testemunhos. A ideologia burocrática, ou seja, o enobrecimento social da oficialidade civil, gestada nos séculos IV e V 40, mantinha-se como insígnia social, como insígnia profissional e como insígnia cultural. Seu peso e sua gravidade, diante de todas as mudanças, funcionamentos e reestruturações do século VI, não se alteram em consonância, mas perpetuam um aspecto socioadministrativo fundamental para que entendamos sinais e elementos da práxis política do contexto. Esse lócus epistemológico, ou seja, a moderação historiográfica na análise deste período, pode beneficiar o historiador com um duplo funcionamento para todo este aparato; antes de ser teórico ou prático, ele é dotado de particularidades teóricas e de especificidades práticas. É fundamental que adotemos esta 40 Cf. KELLY, Christopher. Ruling the Later Roman Empire. Cambridge;

Massachusetts & Londres: Belknap Press, 2004.

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orientação porque, além de significar de forma interessante todo o universo burocrático romano e gótico dos séculos IV, V e VI, ela fornece o combustível necessário para que nossa hipótese acerca da valoração cassiodoriana da administração faça sentido contextual. Entendemos que, para Cassiodoro, a burocracia atinge este duplo nível, e tanto faz funcionar o reinado de Teoderico (e dos reis subsequentes) quanto ideologiza as bases legítimas da autoridade gótica na Itália, relacionando-a com a existência (e persistência) romana. Dito isso, podemos notar que toda sua construção retórica e sua produção literária funcionam para valorar e divulgar esta percepção. A administração dos godos, em Cassiodoro, é a emulação do passado sob novas cores e, por isso, ganha espaço preponderante em seus escritos.

II O pensamento político nos reinos bárbaros: uma avaliação da perspectiva de P. D. King

N

Letícia Sousa Campos da SILVA1

o contexto de renovação teórico-metodológica do domínio da História das Idéias Políticas ocorrida na década de 80, P.D.King publicou um capítulo sobre as idéias políticas dos reinos bárbaros no primeiro de dois grandes volumes sobre a história do pensamento político medieval organizado por J.H.Burns2. O objetivo deste artigo é discutir a validade da contribuição de King, analisando as bases interpretativas sobre as quais ele estruturou sua perspectiva e verificando suas hipóteses em relação às informações que se tem sobre um dos reinos cotejados por ele, o Regnum Francorum.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, orientada pelo Prof. Dr. Edmar Checon de Freitas. Email: [email protected]. 2

KING, P.D. Les royaumes barbares. In: BURNS, J. H. (Org). Histoire de la Pensée Politique Médievale. Paris: Presses Universitaires de France, 1993 [1988], p. 118 – 147.

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Por uma História do Pensamento Político Medieval Entre as diversas dimensões historiográficas nas quais se têm fracionado a realidade social a fim de compreendê-la, por muito tempo uma vertente específica da História Política, centralizada na caracterização do Estado-nação – o que incluía principalmente a descrição de suas instituições, realizações, aparelhos e dirigentes3 –, permaneceu como o enfoque mais tradicional. No início do século XX, contudo, historiadores ligados principalmente à ‘Escola dos Annales’ e ao materialismo histórico, preocupandose em colocar em primeiro plano as questões socioeconômicas, acabaram por conduzir a História Política ao ostracismo, embora ela nunca tenha saído totalmente de cena. No que tange à História das Ideias Políticas, domínio desenvolvido a partir da História Política, a conjuntura não destoa muito. De acordo com Marco Antonio Lopes, a história das ideias políticas nunca conheceu na França dias de glória. Ultrajada pelo mesmo tribunal que levou ao desprestígio quase completo de sua irmã maior, a história política, foi caracterizada por Lucien Febvre – em seus artigos mortais na revista dos Annales, que resultariam mais tarde nos Combates pela história – como ‘história de pernas curtas’, ‘história que não é nossa’, entre tantos outros epítetos tão ou menos encorajadores4.

Foi então nítido o início de um processo de revisionismo nesta área promovido nas décadas de 70 e 80 e os fatores para tal empreitada foram diversos. Por um lado, pode-se notar o quanto houve uma ampliação do diálogo entre a História e outras disciplinas, sobretudo a Sociologia e a Antropologia. Decorre daí a importação de algumas temáticas como a noção de poder como objeto de estudo. Além disso, segundo Carlo Ginzburg, a “consciência pesada do colonialismo se uniu à consciência da opressão de classe” de modo a se reconhecer uma maior 3

FALCON, F. História e Poder. In: CARDOSO, C; VAINFAS, R. Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, p. 65.

4 LOPES, M. A história do pensamento político: dos Grands Doctrinnaires à história social das idéias. Tempo social,  São Paulo,  v.14, n.2, Oct.2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010320702002000200006&script=sci_arttext.

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participação popular no curso dos acontecimentos da História5. Isso estimulou uma História Política e, por conseguinte, uma História das Idéias Políticas cada vez menos focada nas questões do Estado e nos grandes personagens e mais voltada para as associações entre as teorias estudadas e seus contextos históricos de produção, circulação e consumo. Foi sob a égide da renovação deste campo que se desenvolveu a monumental obra organizada por J.R.Burns. Consciente da complexidade de seu objeto, na introdução dessa obra ele discute os problemas inerentes à abordagem do tema do político e das idéias políticas para o Medievo. Segundo Burns, o pensamento político no sentido original grego não existiu no período medieval, a despeito das influências de origem grega neste período, tais quais o neoplatonismo e a “revolução aristotélica” do século XIII. Ele adverte também sobre a impossibilidade de se encontrar na Idade Média um pensamento político sistematizado referente ao Estado à moda dos grandes pensadores modernos, uma vez que este seria um aspecto pós-medieval. O autor afirma que on peut aisément proposer des arguments pour ou contre l’idee d’une émergence réelle et conceptuelle d’une sorte d’ dans l’Europe médievale (...). Cepedant, même si l’on donnait une réponse affirmative à cette question, il demeurerait risqué d’attribuer à aucun auteur médieval une , au sens moderne classique donné à ce terme, du moins par une certaine tradition.

Diante de tantas restrições, como, pois, deveriam ser caracterizadas as idéias políticas medievais? Uma resposta formulada a esta questão foi elaborada por Walter Ullmann, estudioso austríaco que dedicou cerca de 40 anos de sua vida à História, sobretudo no que refere ao pensamento político medieval. De acordo com este autor, o que deve ser entendido como o traço fundamental e distintivo do pensamento do Medievo é o seu sentido de totalidade, visto que neste período histórico não haveria uma distinção entre os diferentes domínios, a saber: a religião, a política, a moral, etc., já que esta divisão seria 5

GINZBURG, C. O queijo e os vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (1976). p. 12.

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um dos aspectos instaurados pelos juízos modernos6. Entretanto, Burns declina esta ideia, visto que alega identificar o mesmo traço na Antiguidade e ainda na Modernidade. Para ele, “une théorie du groupe familial fait partie intégrante de la ‘théorie politique’ d’Aristote” e “la pensée de Boudin ou de Montesquieu comporte des aspects ‘sociologiques’”7. A solução então encontrada por Burns é tomar como ponto de partida uma posição mais ampla do que seria o âmbito do político, tal qual aquela fornecida por Michael Oaskeshott: “Politics I take to be the activity of attending to the general arrangements of a set of people whom chance or choice have brought together”8. Sendo a política uma atividade relacionada às questões diárias da organização social e sabendo-se que a maneira como as pessoas se estabeleceram na Idade Média diferiu dos modos antigo e moderno, deve-se encarar o pensamento político medieval como algo singular. De acordo com o autor, “les lettres de créance de la ‘pensée politique médievale’ ne sont donc pas mises en cause par le fait de reconnaître que sa matière touche des sujtes qui, en d’autres périodes et chez d’autrez penseurs, pourraient sembler étrangers au discours strictement politique”9. E tamanha autenticidade residiria no fato desse pensamento ser teocêntrico e teocrático, de modo que “une présentation de la pensée politique médievale inclura donc nécessairement plus de théologie et d’ecclesiologie que ce ne sera le cas, par la suite, à l’époque moderne”10. Como um efeito deste horizonte teórico, quanto ao método analítico para este objeto específico, Burns desconsidera a utilidade de um exame histórico que priorize apenas alguns ‘pensadores políticos’ isolados já que poucos autores medievais poderiam ser considerados formalmente sob este rótulo. Ao invés 6

ULLMANN, W. Historia del pensamiento politico en la Edad Media. Barcelona: Editora Ariel, 1999 [1965], p. 16.

7

BURNS, J. H. Introduction. In: _______. (Org). Histoire de la Pensée Politique Médievale. Paris: Presses Universitaires de France, 1993 [1988], p. 2.

8

OAKESHOTT, M. Rationalism in Political and Other Essays. Methuen, 1962, p. 122. APUD BURNS Op. Cit., p. 2.

9

BURNS, Op. Cit., p. 2.

10 Ibidem, p. 3.

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disso, ele sugere uma abordagem temática e conceitual dos temas julgados mais importantes e é assim que procede na organização de seu livro. Por esta razão, o trabalho fruto da iniciativa de Burns certamente deve ser considerado um marco para os estudos sobre as idéias políticas medievais de maneira mais abrangente. Contudo, quando se recorta ainda mais este tema, objetivandose tratar especificamente da Alta Idade Média, novas questões surgem. Afinal, a história do pensamento político neste período inicial do Medievo é altamente dependente da visão que se tem dele. Recortando ainda mais: as especificidades da Alta Idade Média De modo geral, os esforços explicativos dos integrantes da ‘Escola dos Annales’, sobretudo aqueles de sua terceira geração, caminharam na direção de tentar apagar o estigma, forjado no final do século XV por alguns que se queriam proclamar modernos em contraposição aos séculos anteriores, de um período medieval obscuro e improdutivo. Assim, por meio de propostas de novos problemas, abordagens e objetos, diversos estudiosos procuraram dotar de racionalidade as práticas medievais. Entretanto, a despeito do sentimento de débito para com tal movimento, Marcelo Candido da Silva, ao promover um curto balanço de seus resultados, concluiu que a inovação trazida pelos annalites ficou bastante restrita à Baixa Idade Média e pouca tinta foi gasta para se discutirem as especificidades da Alta Idade Média. Segundo o autor, é possível perceber na atualidade análises que tão somente se focam no que os autores identificam como sendo os traços de barbárie deste período e, por outro lado, há também aquelas que, sob um entendimento evolutiva, encaram os primeiros anos do Medievo como uma fase de gestação de fenômenos cujos desdobramentos nos períodos posteriores é que devem de fato serem estudados11. Um exemplo evidente de tal prática é encontrado numa obra de Jerôme Baschet que tem sido bastante considerada entre os historiadores. Apesar dos alcances positivos que ela disseminou, 11 CANDIDO DA SILVA, M. Entre Antiguidade Tardia e Alta Idade Média. Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 12, n. 2/n.3, 2008b, p. 56.

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ela parece corroborar tanto a tese da barbárie quanto a do evolucionismo medieval. Ao estilo de uma grande síntese, essa obra tem como finalidade defender a tese de que a conquista do Novo Mundo no século XVI teria sido apenas um desdobramento do dinamismo do feudalismo, sistema em que a Igreja não apenas era a instituição dominante como também o motor da sociedade. Para alcançar esta visão, o autor não apenas se colocou ao lado de historiadores de inspiração marxista como Perry Anderson e Eric Hobsbawn quanto à consideração da Europa no século XVI – eles compreendem as mudanças deste momento, tal qual a ideia de Estado absolutista, como apenas algumas inovações dentro do feudalismo –, mas se utilizou principalmente da concepção de longa Idade Média proposta por seu mestre Le Goff. De acordo com este ponto de vista, a ruptura entre o Medievo e a Modernidade é demarcada somente no século XVIII quando da instauração da lógica de mercado e de economia e da ideia de ciência e de razão em oposição à fé�. Bem como indicado no título, seu recorte cronológico concentra-se na Idade Média Central (a partir do ano mil), período em que Baschet observa a seguinte reversão de tendência: passa-se de uma época desigual marcada por crises e recuos a um período de expansão e rápido crescimento. Entretanto, o primeiro capítulo do livro trata dos primeiros séculos medievais. Embora ele se oponha à postura tradicional de qualificar a Alta Idade Média como um tempo de declínio e barbárie, ele admite alguns momentos obscuros e afirma que neste período não se atingiu a síntese segura e altamente criativa da Idade Média Central12. Especialmente no tocante às estruturas de poder, ele observa que um dos efeitos da fragmentação da unidade romana quando da desestruturação do Império foi o desaparecimento do Estado. E, embora reconheça uma intensa atividade de codificação jurídica por parte dos reis germânicos, tal atitude – que ele encara como um frenesi jurídico13 – é compreendida enquanto um desdobramento da ausência do poder real efetivo, uma vez que a explicação para a força dos reis germânicos é sua associação aos laços pessoais. Além disso, os germanos são caracterizados como aqueles que 12 Ibidem, p. 96. 13 Ibidem, p. 53.

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frequentemente confundiam a coisa pública com a privada, o que leva Baschet a classificar sua concepção de governo como patrimonialista. Embora se perceba uma visão mais positiva em relação ao governo dos carolíngios, sobretudo quando se tem a intenção de pensar as origens da dominância da igreja, o autor encara o fim do governo dos descendentes de Carlos Magno, representado oficialmente pelo Tratado de Verdun em 843, como resultado de um mesmo processo14. Esta produção, embora bastante atual, reflete um debate historiográfico mais que centenário. É possível identificar desde o final do século XIX entre os historiadores duas visões hegemônicas contrárias sobre a natureza dos reinos germânicos. Patrick Geray explica que until quite recently, virtually all of this specialist writing was being done in German and, to a lesser extent, French. Thus the dominant understanding of this crucial period continues to be that formulated over fifty years ago under the twin influences of nostalgia for the high cultural tradition of antiquity and of modern nationalistic fervor fanned by the fires of FrenchGerman hostilities15.

De um lado, a supervalorização do legado dos povos bárbaros configura aquilo que se denomina de “escola germanista”, ainda que na visão francesa prevalecesse a crença no assassinato da sociedade clássica por meio da ação desses bárbaros, enquanto os alemães percebiam a vitalidade e a renovação trazida pelos jovens bárbaros quando de seu encontro com um império decadente. Deste modo, na maioria das análises sobre este prisma, tinha-se a compreensão de que a autoridade dos novos líderes germanos provinha de sua conquista militar. Por outro lado, desenvolveuse a “escola romanista”, a qual insistia na perenidade da herança imperial. Desdobra-se daí, por exemplo, a possibilidade de entendimento do poder real de povos germânicos como uma transposição de Roma que nada tinha a ver com o mundo germânico, já que os germanos teriam utilizado do aparato 14 Ibidem, p. 77. 15 GEARY, Patrick. Before France and Germany. The creation and transformation of the Merovingian  world. New York: Oxford University Press, 1988, p. ix.

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romano sem nem ao menos conseguirem compreender aquilo que faziam16.            No século seguinte, houve algumas tentativas de se romper com a clivagem romanismo/germanismo, tais como os trabalhos de Ferdinand Lot (1866 – 1956) que apresentam certos reinos romano-germânicos como sistemas políticos originais17. Contudo – e é neste ponto em que se pode retornar à obra de Baschet – até muito recentemente, pode-se perceber uma aparente vitória das teses germanistas. Persistem análises que reiteram ideias como o terror das invasões bárbaras e a instalação da lógica da barbárie decorrente desta ação nas novas formações pós-imperiais. André Vauchez, embora não seja um especialista do mundo franco, no início dos anos 80 afirmou que “o rei merovíngio era, realmente, um déspota que recebia o seu poder do sangue. Seu arbítrio só era limitado pela guerra civil, pelo assassinato e pelo temor supersticioso de Deus e dos santos”18. Já Michel Rouche fez as seguintes afirmações: Os bárbaros não podem compreender a res publica, a coisa pública, noção que requer certa capacidade de abstração. Não existe Estado bárbaro, pois a barbárie – noção subjetiva que não engloba forçosamente todos os germanos, mas pode também abranger os celtas da Bretanha e galo-romanos depravados – convém a soldados que estremecem à menor injúria e só conhecem sentimentos violentos. São de uma grosseria brutal, embriagam-se com facilidade, empanturram-se até vomitar e principalmente fazem pilhagens e a sua volta só deixam terra desnuda.19 16 CÂNDIDO DA SILVA, M. A Realeza Cristã na Alta Idade Média. Os fundamentos da autoridade pública no período merovíngio (séculos V – VIII). São Paulo: Alameda, 2008a., p. 18 – 22.   17 Ibidem, p. 24. No entanto, na mesma página, Marcelo Cândido da Silva acrescenta que “o sentido negativo que F. Lot atribui essa originalidade é bastante explícito: da mesma maneira que N.D. Fustel de Coulanges, ele descreve o Regnum Francorum como a propriedade do soberano”. 18 VAUCHEZ, A. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995 (1980). p. 17 – 18. 19 ROUCHE, M. Alta Idade Média Ocidental. In: ARIÈS, P.; DUBY, G. (Orgs.) História da vida privada. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 (1985). p. 408.

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Compartilha-se, portanto, ainda hoje de uma visão subestimadora dos reinos germânicos baseada não apenas na ideia da existência entre os germanos de uma concepção patrimonialista de poder como também no ponto de vista de que sua conversão ao cristianismo tenha sido superficial. Deste modo, compreende-se estes organismos políticos como reinos caracterizados por um poder real absoluto fundado sobre a força, no qual o cristianismo representaria mais uma crença supersticiosa do que uma consciência religiosa. Paralelamente, pode-se identificar hoje um movimento de revisitação dos temas que revelam alterações de concepções teóricas. Para Peter Brown, a tão terrível “crise do século III”, momento em que houve grande incorporação de contingentes bárbaros para o interior do limes – a fortificação que complementava a barreira natural constituída pelos rios Reno e Danúbio nos arredores do território romano – e em que alguns de seus dirigentes conseguiram alcançar altos postos de governo, é encarada como uma “última revolução romana”, uma vez que a aristocracia senatorial foi excluída dos comandos militares20. Ademais, consoante novas tendências interpretativas, os reinos germânicos procuraram estabelecer uma continuidade com a política romana. Consoante Geary, the Germanic world was perhaps the greatest and most enduring creation of Roman political and military genius. That this offspring came in time to replace its creator should not obscure the fact that it owed its very existence to Roman initiative, to the patient efforts of centuries of Roman emperors, generals, soldiers, landlords, slave traders, and simple merchants to mold the (to Roman eyes) chaos of barbarian reality into forms of political, social, and economic activity which they could understand and, perhaps, control. The barbarians themselves were for the most part particularly eager to participate in this process, to become ‘authentic’ peoples, that is, to achieve structures which made sense within the seductive orbit of classical civilization.21

Entretanto, Marcelo Candido da Silva adverte que não se 20 BROWN, P. O fim do mundo clássico. De Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Editorial Verbo,1972, p. 26. 21 GEARY, Op. Cit., p. vi.

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pode ignorar os limites destas apropriações: qualquer associação com a romanidade estava sujeita a uma utilização adaptada ao contextos sociais específicos. A instalação dos bárbaros levou a um rearranjo de forças que conduziu à constituição de um mundo ainda marcado pela influência da romania porém, ao mesmo tempo, profundamente autêntico. De tal sorte, os primeiros séculos da Idade Média devem ser encarados como “um locus de reinvenção da herança clássica, um espaço da construção de fenômenos específicos e originais, por exemplo, no domínio literário, o latim ‘altomedieval’, no domínio da história política, a Realeza Cristã, e, no domínio da economia rural, o ‘Grande Domínio’”22. P. D. King e o pensamento político dos reinos bárbaros No artigo em questão, P. D. King parece estar bem sintonizado com estas novas perspectivas de qualificação dos anos iniciais da Idade Média como o produto autêntico de uma série de sínteses. De tal sorte, ele inicia o texto apresentando uma descrição provável do mapa político da pars occidentalis em cerca de meados do século V, período da desorganização do Império Romano e da estruturação dos reinos bárbaros. Ele em seguida conclui que, embora o poder e a função imperial estivessem desaparecendo no Ocidente, a autoridade imperial teria sobrevivido na medida em que muitos dos reis bárbaros independentes de fato continuavam mantendo a reverência tradicional ao Império e considerando seus territórios na qualidade de integrantes desta entidade universal. Entretanto, apesar de identificar este ideal de unidade como uma das principais heranças de Roma, o autor argumenta que, na prática, predominava neste período uma pluralidade política: além das características e estruturas internas específicas de cada um destes organismos políticos, o germanismo, a Romanitas e o cristianismo os teriam influenciado de forma distinta. Em linha de raciocínio análoga, King adota o argumento de uma diversidade significativa quando procura analisar especificamente o domínio do pensamento político. Todavia, pretendendo realizar um levantamento de alguns traços comuns entre as ideias políticas presentes nos reinos bárbaros, o medievalista destaca três características nucleares, a saber: a constância e a ubiquidade 22 CANDIDO DA SILVA, M, Op. Cit., 2008b, p. 57; 61.

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de princípios fundamentais; a dependência generalizada de fontes e atitudes correntes no Ocidente romano na época tardia, isto é, basicamente de uma matriz romano-cristã renovada; a falta de contribuição proveniente de ideias geralmente associadas ao que se entende por germânico. A partir desta exposição introdutória, ainda que não haja nenhuma indicação explícita neste sentido, encara-se o texto seguindo fracionado em duas grandes seções. Na primeira, para comprovar esta tese da persistência de modo metamorfoseado de alguns preceitos de origem romana e cristã nas idéias políticas dos reinos bárbaros, ele passa a examinar em sentido cronológico uma série de documentos, dentre os quais alguns não são usualmente considerados como fontes para o pensamento político, o que demonstra um alinhamento com a postura renovadora de J. H. Burns sobre a singularidade do político na Idade Média. A primeira das fontes analisadas é o epistolário de Sidônio Apolinário, aristocrata galo-romano do século V que se tornou bispo. De acordo com King, Sidônio era “en tout um Romain23” e os bárbaros não lhe interessavam muito, afirmação em que se rejeita a proposição de S. Teilleit de que o galo-romano seria um propagandista inspirado pela concepção de uma nação romanogótica24. Deste modo, ao invés disso, ele interpreta o elogio que o aristocrata faz do rei visigodo Teuderico II (453 – 466)25 – no qual foram priorizados diversos valores de nobreza moral, tais como a civilitas, a regia gravitas, a disciplina e a severitas – tão-somente como uma percepção elevada da realeza. Este texto é então encarado como um indício importante da reabilitação da qual foi objeto a figura do rex após a primeira época romana, uma vez que se tornou bastante associada a um modelo de cidadão-imperador. Em seguida, ele apresenta uma situação semelhante para o caso 23 KING, P.D. Les royaumes barbares. In: BURNS, J. H. (Org). Histoire de la Pensée Politique Médievale. Paris: Presses Universitaires de France, 1993 [1988], p. 121. 24 TEILLEIT, S. Des Goths à La nation gotique. Les origines de l’idee de nation en Occident du Ve au VIIe siècle. (), Les Belles Lettres, 1994, p. 189. APUD KING, Op. Cit., p. 121. 25 As datas referidas entre parênteses neste texto seguem o seguinte critério: no caso dos reis, marca-se apenas seu período de reinado; nos outros casos, marca-se os prováveis nascimento e morte.

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vândalo por meio das contribuições do bispo africano Victor de Vita em sua Historia Persecutiones (484). De acordo com P.D.King, a visão do bispo sobre este regnum é a de une monarchie souveraine, romaine et chrétienne en ses fondements, qui se révèle. Il n’existe pas aucune trace d’une assemblée populaire, d’aucune autre limitation constitutionelle à l’exercice de la volonté royale, d’aucun domaine d’activités échappant au contrôle royal. De même que l’empereur exerçait l’autorité en matiere religieuse en convocant des conciles, en décidant quel credo ses sujeits devaient suivre, en persécutant des dissidents – car, qu’est-ce qui est plus conforme au bien public que de chercher à se rendre Dieu propice par un juste culte ? – de même en était-il du roi vandale arien26.

Isso parece para o autor um testemunho antecipado das ocorrências de imitatio imperii que seriam frequentes em todos os regna mais tarde. Além disso, através da reprodução inclusa neste mesmo livro de uma declaração de Hunerico, Rex Wandalorum et Alanorum entre 477 e 484, de que suas províncias teriam sido concedidas por Deus, King infere que a crença no favor divino como princípio essencial para o estabelecimento do governante devia ser um pensamento político recorrente nestes reinos. A principal consequência disso, que ele denomina de concepção de instituição divina do dirigente, para a formação do pensamento político foi a gestação das ideias de imunidade sobre a terra (ninguém deve resistir ao governante), de autoridade soberana (o dirigente deve governar sobre tudo e sobre todos) e de governo responsável (Deus dá o poder para o objetivo do bem estar do povo e por isso o governante deve ser responsável). Para o autor, entender este aspecto é tão importante porque il corcernait tous les domaines de la vie ; au Moyen Âge, il était sous-jacent à des nombreuses institutions (comme l’ordalie) et attitudes (comme le peu de propension à rechercher les lois physiqies), et il engendrait un fatalisme – si Dieu dispose porquoi l’homme devrait-il même s’embaarrasser de proposer ? – et un remarquable sens de l’enterprise chez ceux qui mettaient leur confiance dans l’alliance divine. Comme tout le reste, el pouvoir politique existait en vertu de la volonté de Dieu et ceux 26 KING, P. D., Op. Cit., p. 122.

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qui l’exerçaient occupaient leur poste par sa faveur27.

Avançando um pouco no tempo, o medievalista destaca as obras dos contemporâneos Cassiodoro (c. 485 – 580) e diácono Enódio (c. 474 – 521), julgadas como responsáveis pela criação de uma imagem positiva do reino ostrogodo e, sobretudo, de Teodorico o Grande (493 – 526). Segundo King, para garantir a perpetuação de seu controle diante do fato de que os bárbaros eram uma minoria dominante no território, este rei procurou marcar e manter certas diferenças entre os godos e a massa da população, resultando em um Estado duplo, fundado no princípio do desenvolvimento separado de dois povos. Consoante o autor, Cassiodoro, considerado aqui um “ministre d’une loyaté sans dicernement”28, ao mesmo tempo em que insiste na separação dos dois grupos, tenta construir a ideia da necessidade de colaboração entre eles, dado o caráter único da comunidade que eles formavam sob um mesmo rei. Tacitamente, o que se deduz daí é uma proposta de preservação da Romanitas e há, inclusive, evidências do uso do vocábulo imperium para exprimir o governo e reino de Teodorico. Em relação a algumas composições do diácono Enódio, observa-se este mesmo entendimento, ainda que em proporções menores. Aparentemente, em suas obras revela-se um universo mental, no qual imperadores e reis estão no mesmo patamar. Porém, contrariamente à Cassiodoro, ele se mostra menos interessado na dualidade dos povos que na singularidade política do imperium ou regnum da Itália. Em poucas linhas, P. D. King cita também a posição dos bispos Avito de Viena (c. 450 – 525) e Remígio de Rheims (c. 437 – 533) em relação a Clóvis. Em seus elogios ao rei franco merovíngio, ambos se utilizam de associações outrora empregadas por Agostinho (c. 354 – 430) e Ambrósio (c. 340 – 397) em referência aos imperadores. O bispo Gregório de Tours (c. 539 – 594) parece ir mais longe ao descrever este mesmo rei como um “novo Constantino”, expressão exibida também pelo bispo João de Biclaro (c. 540 – 621) para o rei visigodo Recaredo (586 – 601). Ainda sobre o caso franco, para além de uma ótica 27 Ibidem, p. 123. 28 Ibidem, p. 126.

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provida por lideranças da igreja, analisa-se também o édito do rei Gontrão (561 – 592). Neste documento jurídico, “on laisse un univers de pensée qui peut encore être reconnu comme romain par certains de ses caractéristiques, pour entrer dans un univers òu dominent les caractéristiques chrétiennes”29. De acordo com este monarca, a autoridade celeste teria lhe confiado a função de governar, o que ele deveria fazer com justiça para que o favor de Deus pudesse trazer tranquilidade à terra. King considera que o édito em questão é tão somente um exemplo do quanto os temas cristãos são dominantes nas concepções de autoridade e de governo do reino merovíngio da época tardia, dos quais o modelo de Davi – e, algumas vezes, até o de Salomão – como o ideal de príncipe cristão é bastante recorrente. Uma atenção maior é dada à conjuntura visigoda. Se por um lado, isso pode ser justificado pelo fato deste ser um recorte espaço-temporal especialmente prezado pelo autor30, por outro, supõe-se que tal atitude se faz porque a obra do bispo Isidoro de Sevilha (c. 570 – 636), aproxima-se bastante daquele modelo padrão de teoria política sistematizada filosoficamente, sendo assim de menção contínua nos tratados que pretendem fornecer panoramas mais gerais do pensamento político medieval. Apesar de identificar a influência tanto do estoicismo quanto da patrística – mormente de Agostinho e de Gregório Magno –, fontes filosóficas altamente dissociadas por alguns especialistas31, P. D. King considera a orientação do pensamento isidoriano bastante clara. As duas concepções sobre a qual o bispo se baseia são a de Cristo como rei e pai eternal, e da Igreja como sendo seu corpo, na 29 Ibidem, p. 130. 30 P. D. King já havia escrito os livros Law and Society in the Visigothic Kingdom (1972) e The Alleged Territoriality of Visigothic Law (1980). 31 De acordo com Mário Carvalho, muito desta ideia se deve às afirmações do historiador português Oliveira Martins em análise sua obra clássica O Helenismo e a Civilização Cristã (1898). De acordo com Carvalho, a conclusão a que o historiador chega é “arbitrariamente dedutiva, a-histórica e trai algum maniqueísmo interpretativo a acentuação da diferença entre estoicismo e neoplatonismo, a propósito da Patrística, tal como O. Martins a sustenta. Cf: CARVALHO, M. Oliveira Martins em Alexandria. A Patrística em . Coimbra: Revista da Universidade de Coimbra, 1999, v. 38, p. 311.

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qual e pela qual sua realeza e sacerdócio se manifestariam, donde se depreende que Cristo seria o rex ecclesiae e a Igreja formaria um único regnum. Entretanto, tamanho foco na unidade e na universalidade da Igreja não parece estender-se ao governo temporal: “alors qu’Isidore accepte la primauté du pape parmi les sacerdotes du rouyame universel du Christ, rien n’indique qu’il reconnaise même un semblant d’honneur à l’empereur parmi les principes”32. Ao menos no que diz respeito aos príncipes, o autor destaca uma provável concepção teológica de seu papel. Porque no interior dos reinos terrestres, os quais constituiriam a matéria celular do corpo da Igreja, Isidoro previa a ação complementar entre as autoridades clerical e laica, mas de modo que esta última se submetesse à disciplina religiosa. Deste modo, indica-se que o nome rei não deveria ser de livre desempenho, todavia aplicado àquele que tivesse uma conduta justa. Porém, os reis tiranos, por sua vez, encarados como produto de um povo mau, deveriam ser respeitados por possuírem poder transmitido por Deus. Segundo King, a recusa do universalismo político em Isidoro está relacionada ao fato de que naquele período cada vez mais o império estava se tornando “une chose grecque”33 e sua identificação com a ortodoxia foi se perdendo paulatinamente. Por isso, esta que encaro como a parte primeira do texto é então finalizada por uma rápida tentativa de explicar as condições para o despertar de um ideal universalista no plano terrestre algum tempo após o contexto de Isidoro: o período carolíngio. Finalizados os comentários sobre a ótica de Isidoro de Sevilha, o texto toma outro rumo. Nesta segunda seção, para a qual o autor reserva apenas poucas páginas, apresenta-se uma discussão sobre a questão do ‘pensamento político germânico’. Conforme King, há dois pressupostos básicos sobre esta matéria: a ideia de que os germanos possuiriam uma identidade comum de modo análogo à Romanitas, e que essa identidade teria permanecido por séculos. Decorreria então da aceitação desses pressupostos o posicionamento entre uma das seguintes proposições acerca das concepções políticas germânicas: a tese ‘populista’, na qual se 32 KING, P.D., Op. Cit., p. 136. 33 Ibidem, p. 139.

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percebe a autoridade como residente no povo e, em vista disso, o poder real como sendo restringido por esta atuação política popular; a tese da sacralidade, que defende a idéia de que a partir do direito de sangue, o rei, sagrado, participaria de alguma maneira na natureza divina. P.D. King não apenas rejeita as ideias basilares como também as suas consequências interpretativas. De acordo com o autor, a palavra ‘germano’, uma vez utilizada pelos gauleses para designar as pessoas que habitavam além do Reno, passou a ser aplicada pelos romanos para descrever sua ameaça em termos comuns. Contudo, o fato de os germanos se organizarem em agrupamentos geográficos distintos e destacados um dos outros seria uma prova da inexistência de um suposto sentimento ‘pangermânico’. O argumento é o seguinte: Car Il y eut aussi diversité dans l’espace : en effet, puisque les forces entraînant le changement ne se sont pas fait sentir partout avec la même intensité, nous pouvons être sur que, même en admenttant l’idée d’un Germanentum uniforme dans le passé le puls reculé, au moment où les Germains apparaissent confusément à notre regard, leur compositions est déjà hétérogène34.

Além disso, King encara os principais documentos usualmente evocados por serem fontes importantes de informações sobre estes grupos – os escritos de César, de Tácito (século II), de Amiano Marcelino; a Vida de Lebuíno (século VIII, sobre os saxões) e a Vida de Ankar (século IX, sobre os dinamarqueses) – como não sendo convincentes já que estariam todos muito distantes temporalmente do período em que se deu o encontro entre os germanos e o Império Romano (séculos IV e V)35. Deste modo, o autor supõe que, caso as teses populista e sacralizante pudessem ter sido correntes entre os germanos antes de sua 34 Ibidem, p. 142. 35 No tocante aos documentos jurídicos germânicos elaborados no período entre os séculos IV e VII, tais como o Breviário de Alarico dos ostrogodos, a Lex Salica dos francos e o Édito de Rotário dos lombardos, ele já havia criticado em páginas anteriores a tentativa de se encontrar neles um direito ‘germânico’, uma vez que eles possuiriam aspectos diversos, sendo “une mélange des traditions des gentes et d’innovation”. Cf: KING, P.D., Op. Cit., p. 132.

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penetração no Ocidente, o encontro com a autoridade imperial e a conversão ao cristianismo provavelmente teriam minimizado estas concepções de poder. Afinal, a suposer que les conceptions populistes aient étè effectivement courantes chez les Germains avant leur pénetration en Occident, il n’est pas difficile de comprendre comment elles ont disparu. Lequel des chefs barbares n’aura pas ressenti une intensification de ses tendances monarchiques en face de l’autorité resplendissante et englobante de l’empereur romain et n’aura pas été incité à l’imiter ? En ce qui concerne les sujets, l’effet dissolvant des bouleversements migratoires et colonisateurs sur les attitudes traditionnelles, la composition mouvante des gentes, l’inévitable recours à la force et au commandement unique lorsqu’on était confronté au choix entre la vie ou la mort, de même que l’influence romaine, y compris le respect de celle-ci pour la royauté, doivent être gardés à l’esprit. (...) Quelles que soient les raisons pour lesquelles les divers groupes de Germains ont adopté le christianisme, celui-ci, une fois adopté, les exposait à des postulats et à des exigences, au sujet du gouvernement, qui contrastaient fortement avec les conceptions populistes ; au surplus, il s’appuayit sur l’autorité divine36.

Se é aceito um ponto de vista baseado em algumas teorias linguísticas da atualidade as quais entendem que em cada fala individual há sempre explícita ou implicitamente uma dimensão polifônica e dialógica mais ampla37, deve-se então inferir que dentre os muitos diálogos possíveis presentes no texto de King, o principal deles é certamente com Walter Ullmann, posição que o autor assume mais abertamente na penúltima página. Ullmann, já mencionado aqui, sustentou nos anos 60 em uma obra que posteriormente se tornou um clássico sobre o pensamento político medieval o argumento de que a “historia de las ideias politicas en la Edad Media es en gran medida la historia de los conflictos entre estas dos teorías del gobierno”38, a saber: a concepção ascendente de 36 Ibidem, p. 145. 37 Mikhail Bakthin, Roland Barthes e Michel Foucault – sendo os dois primeiros principalmente críticos literários e o terceiro da área da filosofia –, ao colocarem em questão a autoria e a unicidade do sujeito, não obstante cada um fazê-lo à sua maneira, trouxeram à tona a ideia de uma fala forjada coletivamente. 38 ULLMANN, W. Op. Cit.¸ p. 15.

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poder (ou teoria popular de governo) proveniente das tribos germânicas, nas quais o poder residiria no povo e os governantes teriam sua atuação limitada pela ação da comunidade; a concepção descendente de poder (ou teoria teocrática), na qual o poder emanaria de um ser supremo, que com o predomínio do Cristianismo passou a ser identificado com o Deus cristão. Procurando qualificar a maneira como esta interação conflituosa teria ocorrido, ele sustentou que a consecuencia de la todopoderosa influencia del Cristianismo, los pueblos germánicos adoptaron la concepción inherente a la doctrina cristiana – que era casi por completo de naturaleza latinorromana –, y la teoría ascendente fue, por así decirlo, enterrada para no volver a emerger como posición teórica hasta fines del siglo XIII. A partir de entonces, la teoría descendente de gobierno desapareció progresivamente de la superficie de la vida política hasta tal punto, que en la actualidad tan sólo quedan algunos restos39.

Por muito tempo, esta hipótese soou uníssona entre os especialistas, porém nos dias de hoje já se reconhece o quanto este medievalista priorizou demasiadamente o direito e as fontes oficiais como se as normas tivessem a capacidade de explicar o funcionamento da sociedade sem que fosse necessário questionar sua penetração social e eficácia40. Contudo, a ideia de se considerar um conflito entre concepções diferentes de autoridade e poder como um traço característico da Idade Média não deve ser descartado de todo, ainda que uma ‘teoria popular de governo’ própria das tribos germânicas seja questionável. Quando se pensa a organização do mundo social, independentemente do período cronológico a ser contemplado, segundo a lógica da diferenciação, percebendo, deste modo, a luta constante pela dominação41, passa-se a duvidar da possibilidade de qualquer cosmovisão ser perene, sem que seja desafiada por outra(s). 39 Ibidem, p. 15. 40 SANTANA, D. O pensamento político dos reis – Análise das concepções políticas veiculadas por D. Pedro e D. Duarte (Portugal – século XV). Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010, p. 21. 41 BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 142 – 144.

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A análise promovida por P. D. King falha ao não levar em consideração este aspecto dinâmico do mundo social. Primeiramente, o autor parece tão somente preocupado em demonstrar os casos comprovadores da existência de uma concepção dominante de instituição divina do dirigente na Alta Idade Média que não se incomodou em apontar as situações desviantes deste padrão estabelecido. Certamente poderá se argumentar, em defesa de King, que o limite de páginas foi um fator determinante para esta atitude42. Todavia, uma das consequências imediatas deste modo de agir é que fica perceptível o quanto essa análise supervaloriza o legado romano-cristão em detrimento de um possível legado germânico, a despeito da menção no início do texto à hipótese da tríplice influência do cristianismo, da Romanitas e do germanismo sobre os reinos romano-germânicos. É extremamente interessante perceber que, justamente quando o autor minimiza o traço ‘bárbaro’ nas ideias políticas das novas formações sociais, durante a maior parte do texto ele sequer problematiza a expressão ‘reinos bárbaros’, que inclusive dá nome ao trabalho em questão. Marcelo Cândido da Silva argumenta que, apesar da tese da invasão bárbara do século V estar amplamente difundida ainda hoje, os bárbaros causaram apenas um pequeno impacto demográfico: eles representavam, em média, cerca de 5% da população da Gália (no máximo 10% no Norte dessa região)43. É pela mesma razão que Daniela Bibiani e Moisés Tôrres indicam o termo “reinos romano-germânicos” como o nome mais adequado para caracterizar essas novas formações políticas, já que, mesmo que o poder tenha ficado efetivamente sob o controle de um rei de origem germânica, suas populações eram fundamentalmente de etnia e cultura galo-romana, hispanoromana, ítalo-romana44. Além disso, essa análise denota uma posição muito 42 E esta é uma defesa da qual o autor se utiliza ao final do texto para dispensar comentários acerca da questão do caráter sagrado do governo germânico no contexto da conversão ao cristianismo. 43 CÂNDIDO DA SILVA, M.Op. Cit., 2008b, p. 58. 44 BIBIANI, D.; TÔRRES, M. A evolução política da Alta Idade Média na Europa Ocidental: Da pluralidade dos reinos romano-germânicos à unidade carolíngia. Brathair, v. 2, n. 1, 2002. p. 8.

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conservadora do que seja o domínio da política. Embora tenha sido omitido acima quando da apresentação sumária do texto, deve-se mencionar que o autor o finaliza com a afirmativa em sua última nota de que “récuser la conception germanique d’un gouvernement à caractère sacré ne signifie pas, naturellement, (...) nier la religiosité germanique45”. Mesmo única, não se deve ignorar esta afirmação. Diante da linha que King segue por todo o trabalho, de negar uma homogeneidade entre os germanos, parece incoerente agora trabalhar com a ideia de uma ‘religiosidade germânica’. Caso fosse admissível pensar em uma religiosidade germânica comum antes da penetração dos diversos povos germânicos no Ocidente, o questionamento que se deve fazer é por que o contato estabelecido com os romanos foi capaz de influenciá-los no tocante às ideias políticas, porém não em relação aos aspectos religiosos? Seria o campo da cultura uma esfera autônoma do mundo social? Diante destas lacunas, o que se pretende defender aqui é uma perspectiva que apenas em parte ratifique a posição de King. Certamente não se conta atualmente com uma base documental sólida para que se possa defender a existência de um ‘pensamento político germânico’ rigidamente sistematizado. Entretanto, também não se pode negar certa influência política dos germanos nas organizações políticas pós-imperiais. Rejeitar esta posição seria recusar as posturas interpretativas que valorizam o dinamismo da realidade social, bem como os alcances mais recentes dos teóricos das correntes pós-coloniais em seus estudos sobre os contatos culturais entre os diversos povos46. Para tentar provar esta hipótese, deve-se recorrer ao caso merovíngio, principalmente no período entre os séculos V e VI, objeto particular de estudo, uma vez que se percebem claramente alguns mecanismos não necessariamente 45 KING, P.D., Op. Cit., p. 147, nota 2. 46 De acordo com o crítico literário Homi Bhabha, principal representante das correntes teóricas pós-coloniais dos estudos culturais, quando duas matrizes culturais diferentes entram em contato, gera-se um processo complexo denominado hibridização ou ‘tradução cultural’, no qual pode haver combinação, assimilação, fusão, repulsão ou exclusão cultural. Cf: SOUZA, L. M. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In ABDALA JR. (Ed.), Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo e outras misturas. São Paulo: BoiTempo., 2004. p. 7 – 8.

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vinculados a uma origem romano-cristã no funcionamento de seu organismo político, o Regnum Francorum. O caso do Regnum Francorum A partir do estabelecimento do limes no século I, os choques entre os germanos e os romanos pareciam ter sido minimizados. Todavia, em fins do século III, alguns destes grupos entraram novamente em rota de colisão com o Império Romano, reavivando uma série de conflitos. As relações que foram sendo estabelecidas com o povo romano eram bastante plurais. “De povos subjugados e mantidos a uma distância boa e segura, boa parte deles passou a integrar à vida romana, dominando os exércitos imperiais, mantendo-se como aliados ou surgindo como invasores”47. Os visigodos foram os primeiros bárbaros a formalmente instalaremse no Império Romano, o que ocorreu diante da pressão dos hunos, em 376. A princípio, lhes foram concedidas as regiões da Trácia e da Dácia, mas, paulatinamente, moveram-se à Itália e à Aquitânia. O reino visigodo desenvolveu relações muito instáveis com os romanos, oscilando sempre entre a amizade e a hostilidade. Os alanos, a quem coube a Valência e a Gallia Ulterior, respectivamente, em cerca de 440 e 442, foram o segundo grupo. Nesta mesma década, houve também a negociação da entrada dos burgúndios em outras porções da Gália. Os francos já tinham aparecido nas fontes históricas relacionadas às invasões bárbaras no século III, porém é apenas no século seguinte que eles parecem ter se tornados aliados imperiais. Somente com o reinado de Clóvis (481 – 511), da dinastia merovíngia, que a história deste povo parece se tornar relevante de acordo com as fontes48. A partir daí os merovíngios podem ser distinguidos um pouco dos outros grupos não apenas por terem governado uma das formações bárbaras de maior duração (481 – 751), mas por sua conversão precoce ao cristianismo católico quando da decisão deste rei em detrimento da tendência ariana – a rejeição da crença na divindade plena de Cristo – professada na maioria dos outros reinos. 47 FREITAS, E. Entre a Gallia e a Francia. Brathair, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, 2008, p. 51 e 53.  48 WOOD, Ian. The Merovingian kingdoms. London: Longman, 1994, p. 35 – 36.

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Embora as informações sobre os francos sejam um pouco desencontradas antes de Clóvis, sabe-se que até sua ascensão, este povo já tinha praticamente o domínio de todo o norte da Gália até o rio Somme. Segundo Gregório de Tours49, depois da morte de Childerico, seu filho Clóvis o substituiu no trono. No início de seu governo, mais precisamente em seu quinto ano de reinado, o novo rei teve em Soissons um combate vitorioso contra Syagrius, chefe do último baluarte romano50. Em cerca de 20 anos, ele apoderou-se de toda a região ao norte do Loire através de expedições guerreiras contra povos vizinhos como os alamanos, burgúndios e visigodos51. Neste ínterim, forjou com a Igreja nicena galo-romana uma forte aliança que teve início quando se casou com Clotilde, uma princesa burgúndia católica, e foi reforçada no momento de sua conversão e batismo antes de uma batalha importante 52. Ele não apenas unificou todos os francos, como também recebeu o título de cônsul ou augusto do próprio Imperador Anastásio I (491 – 518)53. Para Marcelo Candido da Silva, este seria apenas um de vários indícios que evidenciam o quanto o Regnum Francorum, a entidade política fundada por Clóvis, buscava uma continuidade imperial. Este rei fundador buscou avidamente por títulos e honrarias oriundas de Constantinopla, a representante do Império após a queda de Roma. Tais atitudes, ao invés de serem frutos de uma vaidade desmedida dos francos, segundo argumentam alguns, seriam uma prova de que o uso da integração na hierarquia imperial de dignidades podia se converter em um instrumento de governo54. A mesma é a compreensão que subjaz da análise de Jean 49 Georgius Florentius Gregorius (c. 539-594), que se tornou mais tarde aquele que se conhece hoje por Gregório de Tours, foi bispo desta região até a sua morte. Os Decem Libri Historiarum (DLH), uma coletânea de 10 livros contando a história desde a criação do mundo até a época da realeza merovíngia, geralmente são encarados como o principal legado desse bispo por suas informações bastante úteis para uma história da Gália neste período. 50 DLH 2:27. 51 DLH 2:30; 32 ; 33 e 37. 52 DLH 2:28 ; 31. 53 DLH 2:38 ; 40; 41; 42. 54 CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo.Op. Cit, 2008a., p. 64.

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Barbey, que observa que “le roi conserve seulement des élements du décor romain : port du sceptre, du manteau et du diadème et titulares ou marques de respect (...). En verité, la distance n’est pas si grande entre empire romain et royauté mérovingienne (...)55. Entretanto, por mais que se admita o quanto Clóvis e seus descendentes eram frutos de uma cultura política altamente romanizada e cristianizada, no que diz respeito à questão da transmissão de poder parece haver certos precedentes francos. Se por muitos anos, Clóvis fora o único rei do Regnum Francorum, as sucessões merovíngias que se seguem a partir de 511 foram altamente complexas. Após sua morte, ele deixou 4 filhos, sendo 3 deles da rainha Clotilde (Clodomiro, Childeberto e Clotário) e o outro de uma esposa não oficial (Teuderico). De acordo com Gregório de Tours, “após a morte do rei Clóvis, seus quatro filhos, isto é, Teuderico, Clodomiro, Childeberto e Clotário, ampararam-se de seu reino e dividiram-no entre si mantendo um igual equilíbrio”56. Conforme o mapa, nota-se que, a despeito dos comentários de Gregório, as porções do reino dividido são bastante desiguais. Aparentemente, Clotário I parece ter ficado com um número menor de cidades, enquanto Teuderico herdou partes em duas regiões diferentes, tanto na Astrásia quanto na Aquitânia. Assim, não parece prevalecer um padrão geográfico nem quantitativo. O comentário de Gregório de que os filhos de Clóvis ‘ampararam-se de seu reino’ e a percepção da desigualdade física da divisão são o núcleo do argumento do caráter patrimonial e absolutista da realeza franca, já que “as partilhas levariam em conta apenas as conveniências pessoais dos herdeiros”57.

55 BARBEY, J. Être roi. Le roi et son gouvernement em France de Clovis à Louis XVI. Paris : Fayard, 1992, p. 114. 56 “Defuncto igitur Chlodovecho regi, quattuor filli eius, id est Theudoricus, Chlodomeris, Childeberthus, atque Chlothacarius, regnum eius accipiunt et inter se aequa lantia dividunt.”. DLH 3: 1. 57 CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo.Op. Cit, 2008a., p 143.

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Imagem 1: A partilha de 511. Fonte: CANDIDO DA SILVA (2008a).

Consoante Candido da Silva, apesar destas supostas evidências da força das vontades dos príncipes francos, a concepção patrimonial não procede porque as regras que presidiam a divisão dos bens pessoais, tais como descritas no Pactus Legis Salicae, não orientavam a divisão do reino. De acordo com o código, o direito à herança dos bens parentais cabia primeiro aos filhos ou filhas, depois aos avôs ou avós, aos irmãos ou irmãos e aos tios e tias. Todavia, neste mesmo título, as mulheres eram excluídas do direito à herança da terra alodial, isto é, dos ancestrais58. Porém, segundo Regine Le Jan, na prática as mulheres acabavam herdando a terra porque no Édito de Chilperico, um adicional à Lei Sálica, havia a possibilidade de isso acontecer na ausência de um homem59. Entretanto, em hipótese algumas as mulheres 58 Ibidem, p. 147. 59 LE JAN. R., Familie et pouvoir dans le royaume franc. Paris: Publications de la

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podiam herdar formalmente o reino. “Tomando como parâmetro a discrepância entre as regras da sucessão alodial previstas pela Lei Sálica e as regras de sucessão dinástica vigentes no Reino dos Francos, pode-se afirmar, então, que a sucessão real não era ordenada pelas regras da sucessão alodial, mas possuía uma lógica própria”60. Além disso, as divisões não parecem fruto do acaso, já que o maior indício para isso é o fato de que o reino não se dividiu em numerosas identidades políticas independentes. Candido da Silva explica: na partilha de 511, a proximidade territorial das capitais escolhidas – Paris, Reims, Soissons e Orléans, a partição do reino em dois blocos, ao sul e aos norte do rio loire, a presença de enclaves territoriais, assim como a escolha de Paris como capital comum, mostram que havia entre os francos uma política de união, e mais do que isso, o sentimento da preservação da integridade do Regnum Francorum61.

Uma outra possibilidade é levantada por Michel Rouche. De acordo com o autor, coexistiam tanto entre os francos, como entre os burgúndios, alamanos, bávaros, anglo-saxãos, lombardos e turíngios, dois sistemas concorrentes de herança: a sucessão matrilinear (o direito aos filhos) e a tanistry (o direito aos irmãos, cada um à sua vez), sendo o segundo aparentemente o costume mais antigo62. Apesar das diferenças de execução, a mulher estava no centro do dispositivo nos dois casos. Isso porque havia a crença de que a união de um homem e de uma mulher misturava seus sangues e seus descendentes se tornavam um mesmo grupo ligado pela vida. Como a união carnal constituía o casamento, não eram necessárias cerimônias públicas. Disso decorria a exigência da virgindade da mulher. A paternidade era considerada somente uma ligação simbólica. Uma vez comprovada a pureza feminina, o casamento assegurava a paz e a conservação dos patrimônios devido à expectativa de uma descendência autêntica. Além disso, Sourbonne, 1995 APUD CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo.Op. Cit, 2008a., p 147. 60 CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo.Op. Cit, 2008a., p 147 61 CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo.Op. Cit, 2008a., p 152. 62 ROUCHE, M. Clovis. Paris: Fayard, 1996, p. 236 e 237.

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a mulher recebia ‘la Morgengabe’(o dom da manhã) oferecido pelo marido, detinha as chaves dos cofres, dirigia o domicílio e comandava seus descendentes legítimos. Contudo, isso não impedia a existência de esposas de segundo nível, as quais não tinham estes mesmos direitos e cujos filhos não eram reputados como legítimos63. Segundo Rouche, o diferencial na situação de Clóvis é que seu casamento teria representado um caso hipergâmico, ou seja, quando a condição social da esposa é superior a do esposo. Face au prestigieux clan des Amales qui dominait l’Occident avec Théodoric et remontait quatorze générations plus haut, que pesait la quatrième génération mérovingienne de Clovis ? Rien. Il avait besoin d’un mariage hypergamique. (...) Le roi cherchait une épouse de premier rang, de lignée royale. Puisqu’elle descendait d’Athanaric, roi des Wisigoths, elle représentait la sixième génération des Balthes. (...) Clotilde représentait pour Clovis le parti ideal s’il voulait se hisser au niveau des grandes puissances du temps64.

O casamento com Clotilde foi bem-sucedido. Não somente colaborou para o fortalecimento da autoridade de Clóvis, como também, segundo Gregório de Tours, este ato foi fundamental para que alguns milagres ocorressem em sua vida: ela lhe concedeu filhos e ainda foi um exemplo para o rei ao orar por um deles, pedindo a Deus por sua cura65. Mas antes de todos estes arranjos políticos, Clóvis já havia se envolvido com uma mulher renana e Theuderico era uma prova viva desta relação. Para Ian Wood, a prática de ‘monogamia em série’ dos reis, além de ter tido implicações para as rivalidades entre seus herdeiros, pode ter impedido a ocorrência de um padrão único e simples de sucessão66. Mediante esta compreensão das coisas, o argumento de Rouche para explicar esta primeira sucessão merovíngia é o de que para conservar a paz, era provável que Clóvis desejasse que todos os seus filhos lhe sucedessem. Ele explica: 63 Ibidem, p. 230; 236; 237. 64 Ibidem, p. 241 – 242. 65 DLH 2: 29. 66 WOOD, I., Op. Cit., p. 59 e 60.

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Si l’on avait pratique la tanistry á la manière de Genséric, Thierry, le fils aîné, âgé alors d’au moins vingt et un ans, aurait seul dû recevoir le titre de roi et diriger en laissant successivament le pouvoir à chacun de ses demi-frères, Clodomir, Childebert et Clotaire. Mais c’eût été consideré comme un affront fait à Clotilde que de reléguer au second plan les enfants du marriage officiel au profit du rejton d’une union antérieure de second rang. La tanistry fut simultanée. (...) Pour Thierry, les choses étaient quasiment faites, en raison du droit de la mère.67

E a releitura dos costumes não pararia por aí. Rouche alega um rearranjo do mesmo tipo por trás da divisão dos territórios de Clodomiro em 524, mas, no caso em questão, haveria uma combinação de tanistry e de sucessão matrilinear68. Após a morte de Clodomiro, seus filhos foram reunidos por sua avó Clotilde, que aparentemente esperava presidir a divisão do reino de seu filho entre seus netos. Entretanto, Childeberto e Clotário resolveram dividir o reino com um igual equilíbrio entre si e, apesar da intervenção de sua mãe, livraram-se de seus sobrinhos69. Para além deste momento, com a morte de Clotário I em 561, uma nova sucessão ocorre, nos moldes desta primeira: seus 4 filhos, sendo Cariberto, Gontrão, Sigeberto filhos de Ingunda e Chilperico filho de Aregunda, recebem cada qual sua porção. Entretanto, segundo Gregório de Tours, esta divisão legitima só ocorreu porque, como Chilperico teria pretendido se apoderar da maioria da herança paterna, seus irmãos opuseram-se a tais atos70. Em capítulo sobre a estrutura do reino merovíngio no sexto século, Ian Wood também percebe claramente na partilha de 511 um arranjo político entre Clotilde e seus filhos com Teuderico71. Marcelo Candido da Silva discorda da parte em que Wood defende a participação dos grandes do reino e dos bispos neste acordo. Para aquele, as partilhas foram especialmente favoráveis aos poderes reais, sem que necessariamente levassem em conta 67 ROUCHE, M.Op. Cit, p. 350. 68 Ibidem, p. 360 – 361. 69 DLH 3: 18. 70 DLH 4: 22. 71 WOOD, I., Op. Cit., p. 56 e 57.

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os interesses da Igreja, afinal muitas dioceses foram separadas de suas províncias com a movimentação dos reis e isso levou a alguns conflitos dentro da hierarquia católica72. Entretanto, se a releitura de concepções do costume germânico antigo associadas à questões políticas explica em parte a complexidade das sucessões e talvez até o número de herdeiros beneficiados, isso não evidencia a razão para o desequilíbrio territorial e geográfico das diversas porções do reino. Pode-se adicionar um outro fator que deixará a explicação mais completa. Para Candido da Silva, a unidade do Regnum Francorum “resultou do fato de que essas partilhas constituíam um arranjo estrutural, de natureza política, e cujo objetivo era o de constituir uma autoridade pública eficaz”, encarada como sinônimo de uma administração civil e de um exército forte. Tal fim só seria concretizado se os reis tivessem meios próprios para manter este aparato. Portanto, é necessário levar nesta análise em conta a importância das civitates como unidades fiscais do reino73. Ian Wood corrobora esta hipótese, já que identifica a divisão em civitates, base do sistema administrativo romano, como o modo de organização que permanece central nos reinos merovíngios. More likely the intention was to give brothers portions which provided equal incomes. This was almost certainly the decisive factoring the division of Aquitaine. The basis for assessment, therefore, would have been administrative records such as tax registers, providing evidence of the value to the monarch of individual civitates, which had been the basic units of government in the later Roman Empire. When a city and its territory was divided between two kings we should understand that it was their revenues that were at stake, although certain cities also had a strategic importance, which may also have been a matter of concern74.

Conjugadas, as colaborações de Michel Rouche, Marcelo Candido da Silva e Ian Wood, possibilitam uma visão de conjunto acerca da problemática do prosseguimento monárquico da dinastia merovíngia. Como visto acima, nas sucessões reais deste grupo 72 CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo.Op. Cit, 2008a., p 151. 73 Ibidem, p. 161. 74 WOOD, I., Op. Cit., p.60.

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de francos, parecia confluir uma série de fatores que vão desde questões econômicas e políticas a aspectos culturais. Contudo, se por um lado se pode relacionar estas partilhas à busca por civitates rentáveis, herança organizacional romana, e, por outro já é válido mencionar os costumes de transmissão outrora compartilhados por diversos povos germânicos, há de se considerar que tais traços não mais apresentam seus elementos originais, sendo agora mediados por um novo contexto político. Considerações finais Este trabalho, mesmo que ciente de suas limitações – as fontes primárias não foram cotejadas em sua totalidade, já que Gregório de Tours não é o único documento relevante sobre o assunto, e muito da bibliografia encontrada não estava disponível –, esperou contribuir para uma discussão em relação às idéias políticas nos reinos romano-germânicos. O texto de P.D. King, embora tenha discursado sobre o ponto de vista de uma tríplice influência sobre as novas formações sociais, acabou por minimizar além da conta as possibilidades germânicas. Novamente ratifica-se aqui a posição deste autor sobre a rejeição de um ‘pensamento político germânico’ formal. Contudo, ainda que não se tenham esgotado nem de perto os comentários que poderiam ter sido efetuados sobre o Regnum Francorum com ênfase na partilha de 511, pôde-se perceber o quanto, nesta entidade política, ao lado de uma lógica do equilíbrio fiscal típica do pensamento romano, confundia-se também um costume antigo e conflitante de herança. Não seria este um indício da influência de uma cosmovisão franca neste universo político? É necessário que um estudo sobre qualquer aspecto da Alta Idade Média esteja atento para este caráter dinâmico e multidimensional da realidade social.

III “Novo Davi”: a ascensão de Heráclio (c. 575641) ao poder e o triunfo do Imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário (†c. 660)

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ompilada na Gália merovíngia, a Crônica de Fredegário (ou “Pseudo-Fredegário”) relata a “história universal” até meados do século VII. Da mesma forma que os Decem Libri Historiarum (“Dez Livros de História” [c. 575-591]), do historiador galo-romano e bispo Gregório de Tours (c. 540-594), a fonte é considerada uma narrativa fundamental sobre a história dos merovíngios. A obra (escrita em latim)2 foi redigida por um au1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis). Bolsista CAPES. Orientador: Prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho. E-mail: [email protected]. Editor da Revista Roda da Fortuna (www.revistarodadafortuna.com). 2

Na opinião de Ferdinand Lot, “Fredegário faz esforços desesperados para

374 • “Novo Davi”: a ascensão de Heráclio (c. 575-641) ao poder e o triunfo do Imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário (†c. 660) tor anônimo, mas convencionalmente o chamamos de Fredegarius (“Fredegário”), terminologia estabelecida no Renascimento.3 Na opinião de alguns pesquisadores, dois ou três autores escreveram a obra,4 embora essa hipótese seja cada vez menos aceita atualmente, inclusive pela edição na qual nos baseamos. De qualquer forma, as informações biográficas de Fredegário são mínimas; o pouco que sabemos sugere que ele morreu por volta de 660 e que era possivelmente originário da Borgonha (Burgundia). Diferentemente de Gregório de Tours, Fredegário não se interessa tanto pela história eclesiástica, mas isso não faz dele um membro do “partido laico”, em oposição ao bispo galoescrever em latim. A sua língua, a dos diplomas e das cartas, dos formulários e das vidas de santos [...] é de uma barbaridade quase cómica” – LOT, Ferdinand. O fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1985, p. 332. Para os pesquisadores contemporâneos, a expressão “latim bárbaro” pode ser aplicada caso for uma referência ao latim usado pelos germanos e caso não tiver nenhuma conotação pejorativa; trata-se, efetivamente, de um “latim corrompido” – DEVILLERS, Olivier; MEYERS, Jean. Introduction. In: FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations). Texte latin, traduction, introduction et notes par Olivier Devillers et Jean Meyers. Turnhout: Brepols, 2001, p. 43. 3 DEVILLERS, Olivier; MEYERS, Jean. Introduction. In: FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., p. 05-06. 4

Como nos informa Walter A. Goffart, são três as proposições para a questão do(s) autor(es) da Crônica: a teoria do alemão Bruno Krusch, lançada pela primeira vez em 1882, na qual defende que a Crônica é o resultado da composição de três autores que trabalharam em períodos diferentes; a teoria de outro alemão, Siegmund Hellmann (1934), apoiada mais tarde pelo inglês John Michael WallaceHadrill (1960), argumentando que, embora a maior parte da obra seja o trabalho de um homem, um segundo autor escreveu uma porção do Livro IV; finalmente, a ideia de uma única autoria, trazida à tona pelo francês Ferdinand Lot (1914) – GOFFART, Walter A. The Fredegar Problem Reconsidered. In: GOFFART, Walter A. Rome’s Fall and After. London: Hambledon Press, 1989, p. 320. Desde a década de 1960, as edições e os estudos preferem indicar apenas um autor para a Crônica: Walter A. Goffart (1963), Alvar Erikson (1965), Andreas Kusternig (1982) e Alexander Callander Murray (1999), por exemplo. Para a perspectiva de WallaceHadrill, ver WALLACE-HADRILL, John Michael. Fredegar and the History of France. In: WALLACE-HADRILL, John Michael. The long-haired kings and other studies in frankish history. London: Butler & Tanner Ltd, 1962, p. 73-74.

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romano, membro do “partido episcopal”.5 Para a presente pesquisa, empregamos o Livro IV, também conhecido como Sexta Crônica. Nesse texto estão descritos acontecimentos entre 584 e 642, embora também constem alguns fatos do final da década de 650. As fontes (principalmente listas cronológicas) que Fredegário usou para escrever os três livros anteriores são citadas no Prólogo: [...] analisei com a máxima atenção as crônicas de São Jerônimo, de Idácio, de um sábio anônimo, aquela de Isidoro, como também a de Gregório, desde a origem do mundo até o declínio do reino de Gontrão6 Os três primeiros livros narram os fatos da época de Adão ao reinado de Gontrão (561-592). A partir do Livro IV, a Crônica apresenta uma redação original, sem a intertextualidade precedente. Escrita de forma factual, a obra tem a intenção, como o próprio autor salienta, de expor “os atos dos reis e as guerras conduzidas pelos povos”.7 Semelhante a outras fontes da Idade Média, a Crônica recebeu “continuações”, que progrediram sua redação até 768, ano em que se iniciou o reinado de Carlos Magno (c. 742-814) e Carlomano (c. 751-771). É praticamente certo que Fredegário não foi testemunha ocular dos eventos que descreveu, mas isso não torna sua obra 5

MAZETTO JUNIOR, Milton; SILVA, Marcelo Cândido da. A realeza nas fontes do período merovíngio (séculos VI-VIII), História Revista (UFG), vol. 11, n° 1, 2006, p. 98.

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FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 59. Todas as traduções são de minha autoria. As fontes mencionadas são: a Chronicon, de São Jerônimo (c. 347-420) que, por sua vez, é baseada na Chronicon, de Eusébio de Cesareia (c. 265-339); a Crónica, de Idácio de Chaves (c. 395-468); o Liber generationes, de Hipólito de Roma (c. 170-235), autor chamado no Prólogo de “sábio anônimo”; as cronologias de Isidoro de Sevilha (c. 560-636); e um resumo dos seis primeiros livros dos Decem Libri Historiarum, de Gregório de Tours. Sobre as fontes que Fredegário usou para compilar os três primeiros livros, ver GOFFART, Walter A. The Fredegar Problem Reconsidered. In: GOFFART, Walter A. Rome’s Fall and After. London: Hambledon Press, 1989, p. 322-329; e WALLACEHADRILL, John Michael. Fredegar and the History of France. In: WALLACEHADRILL, John Michael. The long-haired kings and other studies in frankish history, op. cit., p. 72-78.

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FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 61.

376 • “Novo Davi”: a ascensão de Heráclio (c. 575-641) ao poder e o triunfo do Imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário (†c. 660) menos importante. Diferentes fontes – arquivos reais, clericais e de embaixadores que viajaram para o Oriente – repassaram as informações que nosso autor recolheu.8 O texto segue uma ordem cronológica na qual o cronista merovíngio relata acontecimentos políticos e governos dos séculos VI-VII. A chegada de informações sobre Heráclio (c. 575-641) aos olhos e ouvidos de Fredegário foi resultado do contato (direto ou indireto) dele com embaixadores que percorreram o Oriente. Para escrever a obra, o autor “filtrou” as informações que recebeu; nesse processo, Fredegário enfatizou certos fatos e negligenciou outros. Com efeito, “ler, olhar ou escutar são, efectivamente, uma série de atitudes intelectuais que [...] permitem na verdade a reapropriação, o desvio, a desconfiança ou resistência”.9 A ascensão de Heráclio ao poder e a invasão persa sassânida Fredegário inicia seu comentário sobre Heráclio ao descrever o retorno (em 629 ou 630) de uma embaixada enviada pelo rei merovíngio Dagoberto (c. 603-639)10 a Constantinopla. Nessa viagem, os dois legados merovíngios – Servatus e Paternus – tinham efetuado uma pacem perpetuam (“paz perpétua”)11 com 8

Para compor o Livro IV, Fredegário recolheu informações “des annales bourguignonnes, des écrits relatifs aux affaires d’Italie, d’Espagne et de l’Empire d’Orient, des privilèges épiscopaux de fondation d’abbaye, des exemplaires de pactes et de traités, des correspondances (comme celle du roi Sisebut), des Vies de saints (celle de saint Colomban, peut-être aussi celle de saint Didier), et sans doute pour les derniers événements, des témoignages oraux et des souvenirs personnels” – DEVILLERS, Olivier; MEYERS, Jean. Introduction. In: FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., p. 24.

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CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 59-60.

10 Rei franco da Austrásia (623-634), da Borgonha (629-639) e da Nêustria (629639). 11 Segundo Herrera Cajas, “esta expresión significa justamente lo contrario de lo que generalmente se ha entendido por tal, es decir, se trata de una paz a la cual el gobierno imperial no le asigna un plazo fijo de validez, esto es, una ‘paz sin límites’ más exactamente; en efecto, el Emperador estima que, en cualquier momento, puede revocar la situación generada o aceptada por el tratado [...] Todo tratado era tan sólo la aceptación momentánea de una realidad que debía ser orientada, tarde o temprano, hacia el reconocimiento de la autoridad indiscutible

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o soberano bizantino.12 Mas a importância de Heráclio na Crônica de Fredegário restringiu-se apenas ao fato de o basileus13 ter participado de relações diplomáticas com Dagoberto? Rapidamente percebemos que não, pois o cronista merovíngio logo assinala que é impossível permanecer em “silêncio diante das ações extraordinárias que foram feitas por Heráclio”.14 De fato, a repercussão da vitoriosa campanha do Imperador contra os persas sassânidas15 (622-628) foi tão grande que, segundo o cronista bizantino Teófanes, o Confessor (c. 760-818), o principal soberano indiano, Harsha (c. 606-647), “enviou para Heráclio congratulatórios presentes pela vitória sobre os persas: pérolas e um número de pedras preciosas”.16 Da Gália aos rincões da Índia, ou seja, por todo o mundo conhecido na época, a fama del Imperio Universal” – HERRERA CAJAS, Hector. Dagoberto y Heraclio. Un capítulo de historia diplomática. In: HERRERA CAJAS, Hector. Dimensiones de la Cultura Bizantina. Arte, Poder y Legado Histórico. Santiago: Coed. de la Universidad de Chile y la Universidad Gabriela Mistral, 1998. 12 FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 153. As relações de cooperação entre bizantinos e francos merovíngios existiam desde o século VI, diplomacia notada tanto pelos bizantinistas quanto pelos alto-medievalistas. Ver VASILIEV, A. A. História del Imperio Bizantino: de Constantino a las Cruzadas (324-1081). Tomo Primero. Barcelona: Ibéria-Joaquin Gil, Editores, S. A, 1946, p. 212; e WOOD, Ian. The Merovingian Kingdoms, 450-751. London: Longman, 1999, p. 167. 13 O título de basileus (Βασιλεύς), “nos anos mais recentes [ao governo de Heráclio] só havia sido dado ao rei da Abissínia, quando lembrado, e ao grande rival do imperador e seu modelo como autócrata, o rei Sassânida da Pérsia. E é significativo que o título de Basileus comece a ser usado pelo imperador em 629, exatamente após a derrota final dos persas” – RUNCIMAN, Steven. A Civilização Bizantina. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p. 52-53. 14 FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 153. 15 A dinastia persa sassânida controlou o Planalto Iraniano e a Mesopotâmia entre 227 e 649. Para mais sobre os sassânidas, ver CLARAMUNT. Salvador. El Oriente Próximo del siglo IV al VII. El Imperio sasaní. In: CLARAMUNT. Salvador et allii. Historia de la Edad Media. Barcelona: Ariel, 1995, p. 45-52. 16 TEÓFANES, O CONFESSOR. The chronicle of Theophanes: an English translation of anni mundi 6095-6305 (A.D. 602-813). Tradução de Harry Turtledove. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1982, p. 36.

378 • “Novo Davi”: a ascensão de Heráclio (c. 575-641) ao poder e o triunfo do Imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário (†c. 660) de Heráclio era admirável. Após indicar brevemente a importância do basileus, a redação de Fredegário retorna cronologicamente para expor a ascensão de Heráclio ao poder em Constantinopla. Ao assinalar que o soberano “era o patrício de todas as províncias da África”,17 provavelmente Fredegário confundiu Heráclio com o pai dele, Heráclio, o Velho (†610), nessa época o governante do Exarcado de Cartago, ou “da África”,18 como mencionou o cronista merovíngio. Em seguida, Fredegário relata o assassinato do Imperador Maurício (582-602) e a tirania do usurpador Focas (602-610), que “reinou da pior maneira e, como um louco, atirou os tesouros ao mar, dizendo que os enviava em oferenda a Netuno”.19 O governo de Focas foi, na opinião de Steven Runciman, “o mais selvagem reinado de terror em toda a história bizantina”,20 e o período no qual o tesouro imperial esgotou-se devido às extravagâncias do Imperador. Na visão de Fredegário, tais fatos justificaram a ascensão de Heráclio ao poder, sempre com o aval do Senado. Nesse meio tempo, aproveitando-se das discórdias e desuniões entre os bizantinos, uma antiga e poderosa rival de Roma e de Bizâncio ressurgiu no Oriente: a Pérsia.21 Com o argumento de que a aliança entre bizantinos e sassânidas havia sido rompida pelo assassinato de Maurício, antigo proponente da paz, o soberano 17 FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 153. 18 Sobre a África bizantina no tempo de Heráclio, ver BELKHODJA, Khaled. L’Afrique byzantine à la fin du VIe et au début du VIIe siècle, Revue de l’Occident musulman et de la Méditerranée, n° 8, 1970, p. 55-65. 19 FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 153. Aqui, Fredegário critica Focas diretamente, pois para o cronista merovíngio era um absurdo que um cristão (católico ou ortodoxo) realizasse uma oferenda a um deus pagão, no caso Netuno, deus romano dos mares (inspirado em Poseidon, deus grego). 20 RUNCIMAN, Steven. A Teocracia Bizantina. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, p. 49-50. 21 Para a secular guerra entre Roma/Bizâncio contra a Pérsia, ver DRIJVERS, Jan Willem. Rome and the Sasanid Empire: Confrontation and Coexistence. In: ROUSSEAU, Philip (ed.). A Companion to Late Antiquity. Malden/Oxford: WileyBlackwell, 2009, p. 441-454.

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persa Cósroes II (591-628) iniciou a ofensiva contra Bizâncio. A dinastia sassânida pretendia imitar – mais de um milênio depois – a glória dos antigos aquemênidas (sécs. VI-IV a.C.).22 De acordo com Fredegário, O ataque dos persas contra o Império, no tempo dos Imperadores Maurício e Focas, tinha devastado muitas províncias. [Os ataques] Tornaram-se frequentes e, novamente, o Imperador dos persas insurgiu-se com um exército contra Heráclio. Os persas, enquanto assolavam as províncias do Estado, chegaram à cidade de Calcedônia, não muito longe de Constantinopla. [...] Eles se aproximaram de Constantinopla, a sede do Império, com a intenção de destruí-la23

De fato, a investida persa havia tomado das mãos de Bizâncio a Síria-Palestina (Antioquia [611], Damasco [613], Jerusalém [614]), a Anatólia (Tarso [613], Calcedônia [616]) e o Egito (Alexandria [619]). Apesar disso, estranhamente Fredegário não relata a queda da cidade santa de Jerusalém!24 Nesse episódio, com a ajuda dos judeus, os persas massacraram milhares de cristãos, raptaram o Patriarca Zacarias (609-631) e levaram a relíquia da Santa Cruz25 para Ctesifonte. Era a primeira vez – desde que o Império Romano oficializou o cristianismo (séc. IV) – que Jerusalém não pertencia 22 BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clássico. De Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 180. 23 FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 155. 24 Inversamente, a perda de Jerusalém foi relatada pelo monge ortodoxo Antíoco Estrategos (sécs. VI-VII), que lamentou profundamente o fato: “caímos sob o domínio da abominável tribo dos persas, que fizeram conosco o que quiseram (…) lamentação e terror se estenderam por Jerusalém [...]” – ANTÍOCO ESTRATEGOS. The Capture of Jerusalem by the Persians in 614 AD. Tradução da versão georgiana para o inglês de F. C. Conybeare. English Historical Review 25, 1910, p. 502-517 (tradução nossa). Ver também VALLEJO GIRVÉS, Margarita. Miedo bizantino: las conquistas de Jerusalén y la llegada del Islam, IV Simposio Internacional de la SECR (Sociedad Española de Ciencias de las Religiones). Milenio: Miedo y Religión. La Laguna: Universidad de La Laguna, 2000. 25 Trata-se da Cruz em que Jesus Cristo foi crucificado. De acordo com a tradição cristã, em sua viagem à Terra Santa, Helena (c. 250-330), mãe do Imperador Constantino (c. 272-337), encontrou a Cruz através de uma revelação.

380 • “Novo Davi”: a ascensão de Heráclio (c. 575-641) ao poder e o triunfo do Imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário (†c. 660) a um governo cristão. Ameaçando a sede do Império, Constantinopla, os persas deveriam ser detidos. Assim, “Heráclio, com um exército, saiu ao encontro deles”.26 Enquanto o efetivo heracliano estava no Oriente, os ávaros, juntamente com aliados persas e eslavos, sitiaram (em 626) Constantinopla e, se não fosse o poderio naval de Bizâncio e a ajuda miraculosa da Virgem Maria (conforme a crença dos bizantinos), provavelmente a cidade teria sido tomada.27 O combate singular do formidável guerreiro Heráclio, um “novo Davi”

A campanha empreendida por Heráclio, que comandou pessoalmente as tropas, iniciou-se em 622, quando o Imperador marchou para recuperar os territórios perdidos e subjugar a Pérsia. Após se deparar com o exército sassânida na região do Cáucaso, por intermédio de embaixadores, Heráclio propôs ao Imperador dos persas, chamado Cósroes, que eles dois, os Imperadores, enfrentassem-se em um combate singular [...]. Aquele a quem a vitória seria concedida pelo Altíssimo receberia o Império daquele que fosse vencido e, assim, seu povo sairia sem perdas28

O “combate singular” (singulare certamine), ou seja, o embate entre Heráclio e Cósroes, era o resultado de um acordo proposto pelo Imperador. Fredegário explorou ao máximo esse episódio, pois o cronista era proveniente da cultura guerreira germânica e, portanto, apreciava a coragem do líder na batalha. Este tipo combate já era registrado na obra Germânia, do romano Tácito (c. 55-120): Existe ainda outra espécie de auspício, por meio do qual buscam saber previamente a consequência das guerras mais importantes. Sequestram, de qualquer modo, um prisioneiro de nação inimiga e o obrigam a combater com um dos seus melhores guerreiros. Ambos os adversários se batem, cada qual com as armas de sua

26 FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 155. 27 RICE, David Talbot. Os Bizantinos. Lisboa: Editorial Verbo, 1970, p. 50. 28 FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 155.

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nação. O triunfo deste ou daquele é o prognóstico do futuro29

“Tradição antiga e quase universal”, nas palavras de John Keegan,30 o combate singular era praticado em alguns reinos romanogermânicos da Alta Idade Média. Tratava-se de um ordálio bilateral encontrado não só entre os burgúndios e francos, mas entre os alamanos, bávaros, lombardos, dentre outros povos.31 Contudo, gradativamente o combate singular foi condenado pelos clérigos e, no IV Concílio de Latrão (1215), formalmente proibido pela Igreja. No caso indicado por Fredegário, o duelo seria decidido pelo Altíssimo. Segundo a concepção da época, somente o lado que tivesse a justiça verdadeira sairia vitorioso do campo de batalha. Deus sempre demonstrava escolher um lado, o lado da verdade; assim, Ele decidiria com Sua justiça a questão. Antes de Fredegário, Gregório de Tours havia apontado o campo de batalha como o principal local das decisões divinas quando, por exemplo, relatou o discurso do rei Gundobaldo (561-566): “Deus julgará então, quando nos encontrarmos na planície de um campo de batalha, se eu sou ou não o filho de Clotário”.32 O mundo bizantino também realizou ocasionalmente a prática do duelo. Em 971, projetou-se um combate entre o basileus João I Tzimisces (c. 925-976) e Sviatoslav (c. 942-972), príncipe de Kiev, com o objetivo de solucionar um problema político e poupar a vida dos soldados.33 No Ocidente medieval, a ideia de se realizar um duelo entre soberanos para a resolução de uma querela ainda 29 TÁCITO. Germania. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press; London: W. Heinemann, 2006, Cap. X. 30 KEEGAN, John. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 70. 31 MAJZOUB, Milene Chavez Goffar. Juízos de Deus e justiça real no direito carolíngio: estudo sobre a aplicação dos ordálios à época de Carlos Magno (768-814). Campinas: Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Dissertação de Mestrado, 2005, p. 48-56. 32 GREGÓRIO DE TOURS. Histoire des Francs. Traduit du latin par Robert Latouche. Paris: Les Belles Lettres, 1996, p. 109. 33 CONTAMINE, Philippe. La guerra en la Edad Media. Barcelona: Editorial Labor S. A, 1984, p. 330.

382 • “Novo Davi”: a ascensão de Heráclio (c. 575-641) ao poder e o triunfo do Imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário (†c. 660) foi registrada no final da Idade Média, como indicou brevemente Marc Bloch na clássica obra Os Reis Taumaturgos.34 Fredegário também apresentou outros combates singulares decididos por Deus, como o que Bertoaldo (†604), “mordomo do palácio” (majordomus) da Borgonha, propôs (em 604) a Landry (†613), “mordomo do palácio” da Nêustria. De acordo com o cronista, Landry, com o seu exército, cerca Orléans; ele grita a Bertoaldo para lutar. Bertoaldo, do alto das muralhas, responde: ‘nós dois, enfrentar-nos-emos, se você está determinado a esperar por mim, num único combate; deixaremos o restante de nossas tropas à distância e encontrar-nos-emos para a luta; que o Senhor nos julgue35

A seguir, em uma passagem carregada de significado, Fredegário declara que, “como um novo Davi, ele [Heráclio] partiu para guerrear em um combate singular”.36 De fato, o pensamento analógico medieval, perspectiva baseada em correspondências e similitudes entre os seres e as coisas, retirava arquétipos frequentemente da Bíblia, o livro por excelência da Idade Média. Neste caso, a noção do simbolismo tipológico foi empregada para estruturar a narrativa do combate singular que envolveu Heráclio e o guerreiro persa. Segundo Jacques Le Goff, tal perspectiva era comum na Idade Média, período no qual os autores procuravam formular um programa ideológico que, “A cada personagem, a cada acontecimento do Velho Testamento, corresponde uma personagem e um acontecimento do Novo Testamento [ou do mundo contemporâneo]”37. A partir de Santo Agostinho (354-430), bispo considerado o “pai de toda a simbólica medieval”,38 o combate singular entre Davi 34 BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 41. 35 FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 89. 36 Ibidem, IV, p. 155. 37 LE GOFF, Jacques (dir.). O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 27. 38 PASTOUREAU, Michel. Símbolo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, JeanClaude (coords.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Bauru, São Paulo:

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e Golias foi cristianizado numa associação paradigmática: “Em Davi encontra-se Cristo”.39 Ao mesmo tempo, a obra agostiniana demonizou a imagem do gigante filisteu que, antes do combate contra Davi, estava “soberbo”, e “se gabava e presumia de si”.40 Na Gália merovíngia, os cronistas ligavam cada evento contemporâneo deles ao antecedente bíblico pertinente. Este era o caso de Gregório de Tours que, para escrever os Decem Libri Historiarum, encontrou no Antigo Testamento uma fonte fértil de similes.41 Na obra do bispo de Tours, a construção da imagem do rei merovíngio Clóvis tinha como referência o modelo “ConstantinoDavi”. Apesar de não existir uma associação davídica explícita com o rei franco,42 em outro ponto o bispo de Tours comparou diretamente Clotário I (511-561), filho de Clóvis, ao rei bíblico.43 Além disso, o rei Gontrão foi representado no relato gregoriano semelhante à Ezequias, filho de Davi.44 A partir do século VII, a influência do Antigo Testamento é ainda mais nítida. Para o autor anônimo do Liber Historiae Francorum (séc. VIII), Dagoberto (“rei pacífico”) era um “novo Salomão”; os carolíngios, por sua vez, consideravam-se protótipos dos reis de Israel,45 principalmente desde que Pepino, o Breve (751-768), tinha recebido (em 752) a unção real à maneira de Saul e Davi. Carlos Magno (c. 742-814), por exemplo, comumente era chamado de

EDUSC, 2006, p. 495. 39 SANTO AGOSTINHO. Comentário aos Salmos. São Paulo: Paulus, 1998, p. 985. 40 Ibidem, p. 986. 41 HEN, Yitzhak. The uses of Bible and the perception of kingship in Merovingian Gaul, Early Merovingian Europe, v. 7, 1998, p. 277. 42 FREITAS, Edmar Checon de. O Rei Clóvis visto por Gregório de Tours, Dimensões – Revista de História da Ufes. Vol. 11, jul/dez, 2000, p. 207-209. 43 FREITAS, Edmar Checon de. Gontrão: rei, sacerdote, santo, Mirabilia. Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval, v. 7, 2007b, p. 75. 44 FREITAS, Edmar Checon de. Dos reis cabeludos ao rei santo: monarquia e religião na Gália merovíngia, Brathair, v. 1, 2007a, p. 158. 45 RICHÉ, Pierre. La Bible et la vie politique dans le haut Moyen Age. In: RICHÉ, Pierre; LOBRICHON, Guy (dirs.). Le Moyen Age et la Bible. Bible de tous les temps. Paris: Editions Beauchesne, 1984, p. 387-400.

384 • “Novo Davi”: a ascensão de Heráclio (c. 575-641) ao poder e o triunfo do Imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário (†c. 660) “novo Davi”.46

Imagem 1: O combate singular entre Davi e Golias. Manuscrito carolíngio iluminado (c. 820-830). The Stuttgart Psalter. SaintGermain-des-Prés. Cod. bibl. 23, folio 158v. Stuttgart, Württembergische Landesbibliothek.

De acordo com André Vauchez, embora muitos historiadores destaquem os aspectos mais espetaculares da relação entre a Cristandade da Alta Idade Média e o Israel bíblico, a influência do Antigo Testamento na religiosidade ocidental foi muito mais profunda do que se imagina. O prestígio dos grandes reis e sacerdotes vétero-testamentários exercia um fascínio especial sobre os monarcas e eruditos romano-germânicos do ainda 46 FAVIER, Jean. Carlos Magno. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 424.

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superficialmente cristianizado Ocidente.47 O Antigo Testamento oferecia um passado que era familiar aos membros de uma sociedade guerreira formada por comunidades tribais. Mas voltemos à narrativa de Fredegário sobre Heráclio. O exemplo bíblico evocado pelo cronista merovíngio relacionava o duelo entre o Imperador e o soberano persa ao famoso combate travado entre Davi e o filisteu Golias.48 O Primeiro Livro de Samuel (17, 4) registra tal episódio: Saiu das fileiras dos filisteus um grande guerreiro. Chamava-se Golias, de Gat. A sua estatura era de seis côvados e um palmo. [...] [Ele propôs aos israelitas] Escolhei entre vós um homem, e venha ele competir comigo. Se me dominar e me ferir seremos vossos escravos; se, porém, eu o vencer e ferir, vós sereis nossos escravos e nos servireis [...]

A identificação “Heráclio-Davi” compilada por Fredegário atribuía uma dimensão cristológica ao Imperador, pois no Novo Testamento Jesus era “filho de Davi”, ou seja, proveniente da linhagem davídica.49 Por sua vez, o Antigo Testamento assinala que Davi era o “rei-guerreiro” que havia lutado para defender a Terra Prometida dos idólatras. Foi no Oriente que se realizou a primeira identificação davídica em um governante cristão, quando o Imperador Marciano (450-457) foi aclamado no Concílio de Calcedônia (451) sob o título de “novo Davi”.50 Quanto ao Imperador Heráclio, o cronista bizantino George de Pisidia (†c. 632) retomou uma série de heróis míticos e bíblicos para associálos ao basileus: Hércules, sobretudo, mas também Moisés (pois combateu um “novo Faraó”), Perseu, Orfeu, Elias e o próprio 47 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p. 12-13. 48 O combate singular entre campeões ainda aparece em outras passagens do Antigo Testamento: 2Sm 2, 12-17; 21, 15-22; 23, 20-21. Tais duelos foram comparados aos combates singulares da Ilíada, poema épico grego atribuído a Homero, que atualmente é entendido como um nome coletivo – A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1985, p. 446, nota b. 49 A genealogia de Jesus Cristo é exposta no Evangelho de Mateus (1, 1-17) e no Evangelho de Lucas (3, 23-38). 50 RICHÉ, Pierre. La Bible et la vie politique dans le haut Moyen Age, op. cit., p. 385-386.

386 • “Novo Davi”: a ascensão de Heráclio (c. 575-641) ao poder e o triunfo do Imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário (†c. 660) Cristo.51 Curiosamente, em 1902 os arqueólogos encontraram moedas bizantinas em Chipre que os numismatas identificaram gravada a representação do combate entre Davi e Golias. Existe uma vertente interpretativa que, ao analisar as moedas, concluiu que elas foram cunhadas em Constantinopla entre 613 e 629/630, ou seja, durante o governo de Heráclio, e que existia nelas um paralelo entre os reinados de Heráclio e Davi.52 O historiador da arte Steven H. Wander confessa a surpresa que sentiu ao encontrar essa relação na Crônica de Fredegário.53 Antes de principiar o duelo, Fredegário indica que Cósroes percebeu que “um de seus patrícios se distinguia pela bravura em combate; conforme o acordo, ele o enviou para combater Heráclio em seu lugar”.54 Foi então que o confronto teve início. Por um descuido do guerreiro persa, que virou a cabeça para ver quem vinha atrás dele, Heráclio esporeou violentamente o seu cavalo, desembainhou uma kandjar e cortou a cabeça do patrício dos persas55 51 BRÉHIER, Louis. La Civilizacion Bizantina. México, D. F.: Editorial Hispano Americana, 1955, p. 267; WHITBY, Mary. George of Pisidia’s presentation of the Emperor Heraclius and his campaigns: variety and development. In: REININK, Gerrit J.; STOLTE, Bernard H. (eds.). The reign of Heraclius (610-641): crisis and confrontation. Leuven: Peeters, 2002, p. 157-158. 52 WANDER, Steven H. The Cyprus Plates: The Story of David and Goliath, Metropolitan Museum Journal, vol. 8, 1973, p. 89; 103-104. 53 WANDER, Steven H. The Cyprus Plates and the Chronicle of Fredegar, Dumbarton Oaks Papers, vol. 29, 1975, p. 346. 54 FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 155. 55 Ibidem, IV, p. 157. De acordo com Wallace-Hadrill, o termo em latim para a arma de Heráclio é “uxus”, palavra usada anteriormente uma vez por Fredegário (e apenas por Fredegário) no sentido de uma espada ou punhal. Trata-se de um termo provavelmente derivado do persa “ākus”, que significa cinzel ou faca – WALLACE-HADRILL, John Michael. Fredegar and the History of France. In: WALLACE-HADRILL, John Michael. The long-haired kings and other studies in frankish history, op. cit., p. 89. Segundo Olivier Devillers e Jean Meyers, o termo persa escolhido – kandjar – preserva o sentido de exotismo que a palavra uxus carrega – FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit.,

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Vitorioso contra o combatente sassânida, Heráclio fez com que Cósroes e o exército persa se retirassem do campo de batalha. Logo depois, Fredegário indica que “Cósroes foi morto por seu próprio povo, de acordo com os seus métodos tirânicos”.56 Heráclio então “embarca em um navio; ele entra na Pérsia com o exército e a submete [...]”. Em seguida, o Imperador toma “numerosos tesouros” e, por “cerca de três anos, a Pérsia é devastada [...]”.57 Na realidade, Fredegário resumiu ou recebeu poucas informações sobre as etapas da campanha, que se estendeu por alguns anos. A primeira vitória bizantina ocorreu na batalha de Issus (622), na Anatólia; a última e decisiva aconteceu próximo às ruínas de Nínive (627), na Mesopotâmia. A seguir, os bizantinos saquearam o palácio de Cósroes e obtiveram, como Fredegário descreveu, enormes tesouros. Enquanto isso, o soberano sassânida havia fugido para Dastgerd, onde foi deposto e assassinado pelos próprios persas entre 25 e 29 de fevereiro de 628. Logo a Pérsia capitulou. Modelo a ser seguido, Heráclio era um Bellator Rex (“reiguerreiro”) fiel a Deus, um “novo Davi” triunfante perante os persas. Na descrição da aparência e personalidade do Imperador, Fredegário enfatiza os atributos físicos e a bravura de Heráclio: O Imperador Heráclio tinha uma bela aparência, um rosto gracioso, era imponente devido à sua grande altura, mais corajoso do que os outros e um formidável guerreiro. Com efeito, ele frequentemente matava leões na arena e, em lugares desertos, [matava] vários animais isolados58

Ademais, em meio à descrição bíblica do duelo entre Davi e Golias, consta uma curiosa história (1Sm 17, 34-37) que pode ter influenciado Fredegário na redação do fragmento acima. Quando Saul, primeiro rei de Israel, questionou a capacidade guerreira de IV, p. 156, nota 504. 56 FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 157. 57 Ibidem, IV, p. 157. 58 Ibidem, IV, p. 157.

388 • “Novo Davi”: a ascensão de Heráclio (c. 575-641) ao poder e o triunfo do Imperador contra os persas sassânidas no Livro IV da Crônica de Fredegário (†c. 660) Davi, este respondeu: ‘Quando o teu servo [Davi] apascentava as ovelhas de seu pai e aparecia um leão ou um urso que arrebatava uma ovelha do rebanho, eu o perseguia e o atacava e arrancava a ovelha de sua goela; e, se vinha contra mim eu o agarrava pela juba, o feria e matava. O teu servo venceu o leão e o urso, e assim será com esse incircunciso filisteu, como se fosse um deles, pois desafiou o exército do Deus vivo’. Davi acrescentou mais: ‘Iahweh que me livrou das garras do leão e do urso me livrará das mãos desse filisteu’

A passagem bíblica supracitada pode ter sido lembrada por Fredegário quando este compilou a associação entre Davi e Heráclio, pois no relato do cronista o Imperador venceu leões em arenas no norte da África e, depois, derrotou o guerreiro persa no já mencionado combate singular. É mais provável, no entanto, que Fredegário tivesse se referido à tradição secular da região norteafricana em que homens lutavam contra animais selvagens em arenas, como os mosaicos no Museu do Bardo em Túnis (antiga Cartago) atestam.59 É verdade também que o enfretamento de leões era praticado em território armênio, possivelmente o local de origem da dinastia heracliana. Além de Heráclio, Fredegário exaltou em sua Crônica outros monarcas como o rei visigodo Sisebuto (612-621), enaltecido na Hispânia por Isidoro de Sevilha (c. 560-636).60 A descrição do rei visigodo assemelha-se à forma com que o cronista merovíngio apresentou o Imperador. Segundo Fregedário, Sisebuto era “um homem sábio, coberto de louvores por toda a Hispânia e inteiramente piedoso. Com efeito, ele até combateu valorosamente [os bizantinos]”.61 No caso de Heráclio, percebemos que Fredegário representou o Imperador como um admirável soberano que era respeitado 59 KAEGI, Walter Emil. Heraclius, emperor of Byzantium. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 27. 60 ORLANDIS, José. Historia del reino visigodo español: los acontecimientos, las instituciones, la sociedad, los protagonistas. Madrid: Ediciones Rialp, 2003, p. 91. 61 FREDEGÁRIO. Chronique des temps mérovingians (Livre IV et Continuations), op. cit., IV, p. 97.

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devido ao porte físico, espírito belicoso e habilidades marciais. Da mesma forma que o bíblico Davi, “rei-guerreiro” por excelência, Heráclio defendeu a Terra Santa dos “inimigos da fé” e não ascendeu ao trono pela linha sucessória, mas para destruir uma tirania; por Golias, entendam-se Focas ou ainda Cósroes.62 Ao derrotar os sassânidas, o Imperador era considerado um verdadeiro “campeão da ortodoxia”, o responsável por aquilo que Fredegário chamou de “acta veru miraculi”.

62 REGAN, Geoffrey. First Crusader. Byzantium’s Holy Wars. New York: Palgrave Macmillan, 2003, p. 56. Para tal relação nas fontes bizantinas, ver ALEXANDER, Suzanne Spain. Heraclius, Byzantine Imperial Ideology, and the David Plates, Speculum. A Journal of Medieval Studies, vol. LII, n° 2, abril, 1977, p. 229.

IV Power and weakness: Hamburg-Bremen in the ninth and eleventh centuries

I

Tim BARNWELL1

n 845 a group of Danes sailed down the Elbe at night, took up positions around the small fortress town of Hamburg, and laid siege to it. The prefect was absent and the resident bishop lacked either the will or the authority to organise the defence of the wooden fort which dominated the town. The clergy and citizens of the town fled, abandoning whatever they couldn’t carry to the Northmen. Some were captured, to be killed or sold into slavery, but most escaped into the surrounding countryside. The fort, containing the town’s church and monastery, was burnt to the ground, never to be rebuilt. But the suburbs of the town survived, and the archaeological evidence suggests they were quickly reoccupied once the Danes had left.2 For the Danes were not 1 PhD student at the University of Leeds. Advisor: Professor Ian Wood. Email: [email protected] 2 KNIBBS, Eric. Ansgar, Rimbert and The Forged Origins of Hamburg-Bremen. Ashgate, Farnham, 2011 p. 127,128; Most of the archaeological work on Hamburg’s early history was carried out by Reinhard Schindler in the 1940s and 1950s. Summaries of his findings can be found in: BUSCH, Ralf. Stadtarchäologie in Hamburg –

Eine Bilanz im Jahre 1995. In: GLÄSER, Manfred (ed.) Lübecker Kolloquium

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invaders but merely the survivors of a failed raid on Saxony, seeking plunder on their way home. With Louis the German distracted by an Obrodite rebellion and Saxony still shaken by the Stellinga uprising (841-843), the East Frankish realm had appeared vulnerable. But the Saxon nobility had defeated the Danes and Louis the German had mastered the situation, extracting peace and tribute from both the Obodrites and Danes.3 In this context, the sack of Hamburg, a minor fort on the edge of Louis’ territory, was of little importance. The Danish king promised to restore the treasure and captives taken by the Danes, and the inhabitants of Hamburg returned home, restoring and expanding the town over following decades. Yet this is not the story told by the historians of Hamburg’s church. The sack of Hamburg became central to the identity which Hamburg’s bishops and clergy developed for themselves over the following years. With their church destroyed, the clergy did not return home, but instead ‘wandered here and there taking with them the holy relics; and nowhere did they find rest, owing to the devices of the wicked one.’4 This is according to Rimbert, for whom the destruction of Hamburg provided one more example of the patient endurance of his hero Ansgar. Setting aside such tales of heroism, Rimbert’s account suggests that the clergy, led by Ansgar, fled first to Bremen before turning back towards Hamburg and settling at the monastery of Ramelsloh, around fifteen miles south of the town itself. Nowhere were they welcomed with open arms. In the eleventh century the clergy zur Stadtarchaologie im Hanseraum, 1: Stand, Aufgaben und Perspektiven. Lübeck: Verlag Schmidt-Römhild, 1997. p.171-180; LOBBEDEY, Uwe; Northern Germany. In: BARLEY, Maurice. European towns: their archaeolog y and early history. London: Published for the Council for British Archaeology by Academic Press, 1977. p.127-130. 3 GOLDBERG, Eric J. Struggle for Empire: Kingship and Conflict under Louis the German, 817–876. Ithaca: Cornell University Press, 2006. p.133-135 4 RIMBERT, Vita Anskarii. In. (ed.) WAITZ, Georg. MGH SRG 55.Hannover: Hahn, 1977, c.17; translated by ROBINSON, Charles H. Anskar, The Apostle of the North, 801-865, translated from the Vita Anskarii by Bishop Rimbert his fellow missionary and successor. London: SPCK, 1921. c.17. References to the ‘Life of Ansgar’ will be by chapter number, which correspond in Waitz’s edition and Robinson’s translation.

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at Bremen held that Ansgar had been driven from the town by Bishop Leuderich, ‘who envied him for his learning and virtues.’5 Meanwhile, the settlement at Ramelsloh provoked the ire of the bishops of Verden, who objected to the presence of Hamburg clergy within their diocese. This was the beginning of a dispute which would drag on for over a century.6 Contrary to later traditions, the bishops of Verden and Bremen were probably not antagonised by Ansgar’s piety per se. But neither should we imagine that there was any clear distinction between Ansgar’s personal ambition and his sense of religious devotion. In practice, defending his church meant defending his own position, and he did so at the expense of his neighbours. Even before 845 Ansgar and his supporters had been tampering with a privilege of Louis the Pious, revising its claims to suggest that Charlemagne himself had reserved all the land across the Elbe for a missionary diocese.7 This was land which the bishops of Bremen and Verden could justifiably claim as their own, but more than this, the forgery asserted the existence of a diocese centred at Hamburg. As Eric Knibbs has shown, few people beyond the small circle of clergy surrounding Ansgar took such a diocese seriously at this time.8 As far as the bishops of Bremen and Verden were concerned, their dioceses were threatened by the ambitions of a missionary bishop who had strayed far beyond his mandate. It is understandable if they did what they could to 5 ADAM OF BREMEN, Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum. In: (ed.) TRILLMICH, Werner; BUCHNER, Rudolf. Quellen des 9. und 11. Jahrhunderts zur Geschichte der hamburgischen Kirche und des Reiches. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1961, p.137-500; translated by TSCHAN, Francis Joseph; REUTER, Timothy. The History of the Archbishops of Hamburg-Bremen, Chichester: Columbia University Press, 2002. Book 2 c. xxiii (25). References to the ‘Deeds of the Archbishops of Hamburg-Bremen’ will be given in terms of the book and chapter, which correspond in Trillmich and Buchner’s edition and the translation by Tshan and Reuter. 6 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 2, c. xlv (43) and scholia 33 (34); LAPPENBERG, Johann Martin. Hamburgisches Urkundenbuch. Hamburg: Perthes, Besser & Mauke, 1842, p.16 7 KNIBBS, op cit., p.117-124 8 KNIBBS, op cit., p.131 133

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oppose Ansgar’s ambitions. Ansgar’s position was precarious. Although he certainly was a bishop, he was a bishop without a diocese, consecrated to convert the Danes as part of a wider mission to the north initiated by Ebo of Rheims. But the results of his mission were modest at best; most Scandinavians were not hostile to Christianity as such, but Scandinavia would convert on its own terms, not as result of pressure from the south.9 With the division of the realm in 843 Ansgar had lost the support of the monastery of Torhout, which had a devastating effect on the community in Hamburg. As Rimbert would later write to the monks of Corbie, ‘Thus it came about that your brethren who were with him here at that time returned to your society and many others also left him on the ground of poverty. He, however, continued to live as best he could with the few who remained with him; and though he was very poor, he would not abandon the task that had been assigned to him.’10 While Rimbert optimistically presents Louis the German as distressed by this loss, he did little to remedy it. So far as missionary work was concerned, the Christianisation of the Saxon peasantry and the Slavs along the long eastern frontier appeared far more urgent than a mission to the more inaccessible Danes and Swedes.11 Such was Ansgar’s situation in 845. Few sources mentioned him or his mission, even when his town burned, for, in the scheme of things, it didn’t seem very important. Glance forward two hundred years to the archiepiscopate of Adalbert of Hamburg and these events looked rather different. For Adam of Bremen, the scholar commissioned by Adalbert to write Hamburg’s history, the Ansgar who fled Hamburg in 845 was the first archbishop of Hamburg who could claim authority over the whole northern world; Danes, Swedes and Norwegians as well as the Slavs all fell under his jurisdiction, as did Greenland, Iceland, and the mysterious Vinland. The sack of Hamburg was 9 WINROTH, Anders. The Conversion of Scandinavia: Vikings, Merchants and Missionaries in the Remaking of Northern Europe. New Haven, CT: Yale University Press, 2012. p.102-121 10 RIMBERT, op cit., c.21 11 GOLDBERG, op cit., p. 135 fn. 73

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traumatic, certainly, but it had led to the unification of HamburgBremen, with the richer and safer Bremen supporting Hamburg in its mission to the north. This basic narrative was repeated not only in the charters and histories of Hamburg-Bremen, but also in papal letters and by its critics.12 Hamburg-Bremen had become a fact, even a fact which could be hated. Adalbert was both rich and ambitious. The wealth of Hamburg-Bremen, and the extent to which this translated into power is difficult to quantify, not least because of the lack of charter evidence and the difficulties of interpreting what little we have. But even if we disregard Adam of Bremen’s testimony, other sources confirm his depiction of Adalbert as one of the most powerful men of his time.13 With this power came wealth. Already the church of Hamburg-Bremen in the eleventh century was incomparably richer than Ansgar’s mission station of the ninth, but Adalbert was able to add to this both through his own wealth and through his proximity to two kings: Henry III and Henry IV.14 Even though Adalbert’s final years were dogged by a series of catastrophes, he could still comfort himself on his deathbed with the thought that he had added ‘more than two thousand manors’ to his church, or at least, so Adam claims.15 At any rate, Adam and his contemporaries were in agreement about the extent of Adalbert’s ambition. He desired to be greater than all the German bishops, particularly the archbishops of Mainz and Cologne.16 But his ambition went further than this; seeing the desire of the Scandinavian kings to establish their own archbishoprics, he hoped to raise Hamburg-Bremen to the status of a patriarchate so that its dominion over the north would not be diminished. It is perhaps an indication of how far Hamburg12 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 2 c. xb (17) – xlii (44); For example,

LAPPENBERG, op cit., p.9, 21, 31, 34, 36; KNIBBS, op cit., p.212-223

13 cf. BRUNO OF MERSEBURG, De Bello Saxonico. In: (ed.) HOLDER-EGGER, Oswald. MGH SRG, Hannover: Hahn, 1889. p.3, 4; LAPPENBERG, op cit., p.76-99 14 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 c. xlvi. (45), lxix (68); LAPPENBERG,

op cit., p.85-94

15 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 c. lxix (68) 16 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 c. xlvi. (45).

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Bremen had come that his contemporaries took his aspirations seriously. Outline of paper It is not the purpose of this paper to describe how Ansgar’s idea of a Nordalbingian diocese developed into an institution capable of producing an archbishop like Adalbert, who claimed to have turned down the papacy in favour of his ‘second Rome’ in the north.17 Eric Knibbs has done much to unearth the early history of Hamburg-Bremen, and this paper is heavy indebted to his work, but the picture which he has uncovered suggests that anything but the most incoherent narrative of Hamburg’s progress would be misleading. It is almost preferable to deny any connection between Ansgar and Adalbert, than to create a narrative which reinforces the sense of inevitability and anachronism which has been associated with the diocese since the time of Ansgar. Instead, I would like to take these two moments in the history of an institution as the starting point for an analysis of power in the ninth and eleventh centuries. None of the issues raised are intended to be particularly controversial, particularly for those familiar with scholarship on power in social science or the humanities. But its unorthodox origins and ambitions, together with the remarkable literature produced there, make Hamburg-Bremen particularly well suited for exploring the issues of inevitability and world-view in the way in which we think and write about power. So far as I know, no one has yet approached these sources in such a way. The paper can be broken into two main strands. The first is an argument against inevitability; the suggestion of inevitability is a sound method of insinuating power, but a poor method of understanding it. Ansgar was in a weak position for much of his career; he had many rivals, most of them stronger than him. His own efforts should not be ignored, but neither should they be over-emphasised. The archdiocese of Hamburg-Bremen came into existence largely through events outside of Ansgar’s control; his rivals had a tendency to die off at fortuitous moments, and Lothar II’s refusal to abandon Waldrada provided an unlikely 17 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 c. vii (7), xxiv (24), lxxiii.

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opportunity for Angar’s archdiocese to gain political acceptance. By setting Ansgar’s career and ambitions against those of Adalbert we can make the argument that, while the foundation of an archdiocese at Hamburg was unlikely, its development into a patriarchate was a feasible, even natural, development. That the opposite occurred is no reason to regard the outcome as inevitable, or even reasonable. Ansgar and Adalbert were both ambitious and energetic archbishops, and yet their failures and successes had relatively little to do with their own actions. The second strand of this paper explores the primary way in which Adalbert and Ansgar were able to were able to shape the world around their ambitions, by creating a vision of world in which Hamburg-Bremen was central. Our sources for Ansgar’s and Adalbert’s own efforts to do so are relatively slight, but we do have two remarkable texts produced shortly after their deaths; Rimbert’s ‘the Life of Ansgar’ and Adam of Bremen’s ‘the Deeds of the Archbishops of Hamburg-Bremen’. Rimbert was Ansgar’s successor, whose mythologising of Ansgar’s career was an attempt to uphold his own position as Archbishop of Hamburg-Bremen. Writing two hundred years later, Adam of Bremen was reflecting on his church’s history following the tumultuous reign of Archbishop Adalbert. Both works will be analysed as attempts to reshape their audiences’ perception of Hamburg-Bremen, and by doing so, how they acted towards it. It will be emphasised that the first audiences of these texts were not the kings and popes who could legitimise the authors’ ambitions, but the clergy of the diocese itself. Learning to see themselves and their diocese differently was the prerequisite for demanding that others do so too. Ansgar and Rimbert were successful where Adam and Adalbert were not, but all began in the same way, by imagining a world in which Hamburg-Bremen might exist and flourish. One final point must be made. This paper is only concerned with an extremely small group of people. The world described in our sources is one of priests, monasteries, kings and nobles. It is unclear how far Hamburg-Bremen even existed for the majority of those living within its boundaries. It took around two generations before the Saxon nobility really began to engage with the episcopate after the conquest, but the process was probably

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far slower for the majority of people.18 The issue not one of class; many of the archbishops came from relatively modest backgrounds, and neither Rimbert nor Adam of Bremen were particularly impressed with nobility for its own sake.19 But they were looking at the world in such a way that a small group of actors were privileged at the expense of all others. Some of these excluded groups, such as Ansgar’s political rivals, have been emphasised in this paper. There are others, like those chastised by Archbishop Unwan for superstitious behaviour, of which more needs to be said.20 But of the vast majority we can say nothing, and in this, as in so much else, our subject matter is dictated by our sources. For to write about Hamburg-Bremen is to continue the myth, begun by Ansgar and perpetuated in the works of Rimbert and Adam of Bremen, that such an archdiocese might exist to be discussed. When the idea was first proposed in the middle of the ninth century, it seemed preposterous. Ansgar 845-847: Leuderich and Waldgar Ansgar’s initial attempts to recover from the sack of Hamburg in 845, and the crippling loss of Torhout in 843, ended in failure. As we have seen, Adam later claimed that Bishop Leuderich had driven him away from Bremen, while his occupation of the monastery at Ramelsloh led to conflict with the bishop of Verden, within whose territory the monastery, and indeed Hamburg, fell.21 Possibly in response to these troubles, Ansgar seems to have tried to shift his mandate further south along the Elbe, which offered better prospects for his new diocese, by falsifying two existing privileges. As far as we can tell, these attempts were unsuccessful.22 But then, and not for the last time, the would-be archbishop 18

CARROLL, Christopher, The bishoprics of Saxony in the first century after Christianization, Early Medieval Europe, 8, 1999, p.229.

19 cf. ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 lxviii (67), Book 4 xviii (18). 20 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 2 xlviii 46 p.87 21 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 c. xxiii (25), Book 2, c. xlv (43)

and scholia 33 (34); RIMBERT, op cit. c.22; KNIBBS, op cit., p.133; LAPPENBERG, op cit., p.16 22 KNIBBS, op cit., p.102, 103

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of Hamburg had a stroke of luck. Towards the end of 845 Bishop Leuderich of Bremen died, not to be replaced until 847 because of tensions between Louis the German and Archbishop Otgar of Mainz.23 The see of Verden may also have been without a consecrated bishop for a time, although it is unclear precisely when Bishop Haligad died.24 As the only consecrated bishop in the area, Ansgar seems to have been able to extend his influence into these neighbouring sees, expanding his Hamburg diocese at their expense.25 Between 845 and 847 the bishop of Hamburg must have appeared an increasingly relevant figure to people in this area, as the significance of the bishops of Bremen and Verden decreased. The role of Ansgar’s personal charisma in this process should not be underestimated. The intensity of his personal devotion and his sense of mission can hardly be doubted, and we should not dismiss Rimbert’s claim that in his appearance and manner of speaking Ansgar was an imposing figure, able to cow to the greatest of lords.26 For the people of Verden and Bremen between 845 and 847, did it truly matter that the dioceses of Bremen and Verden were founded canonically, while Hamburg was based on Ansgar’s mission to the Danes and a spurious tale about Charlemagne’s (forgotten) intentions to found a diocese there?27 At what point would Ansgar’s myth make more sense of the present reality than the claims of now dead bishops? Nonetheless, whilst Ansgar’s position as the only consecrated bishop in his area must have made it easier for him to expand his power, he could not do so unopposed. As Timothy Reuter has argued, the power of a bishop lay not so much in land holdings or material possessions, but in his position at the centre of a local network of social exchanges. So much of what a bishop did acted to reinforce this position. Church ceremony, monastic foundations, feasting, gift giving, and the exchange of land all acted 23 KNIBBS, op cit., p.128 24 ROBINSON, op cit., claims that Haligad died in 845, but I can find no evidence to support this assertion. 25 RIMBERT, op cit. c.22 26 RIMBERT, op cit. c.37. 27 KNIBBS, op cit., p.117, 196-7, 210.

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to maintain a social world orientated around the local bishop.28 Even though the bishops of Bremen and Verden were dead and their successors not yet consecrated, the day-to-day activities of bishops over the preceding fifty years would have encouraged their diocesans to invest in an institution which outlived them. The self-styled bishop of Hamburg could perhaps fulfil some of the duties of a bishop in their absence, but reorientating the network around his imagined diocese was a more difficult matter. There are hints of resistance to Ansgar’s authority in our sources, although nothing from which we can build a coherent narrative. Rimbert writes that at the time of Ansgar’s consecration as bishop of Bremen in 847, ‘the greater part’ of Ansgar’s Hamburg diocese had been claimed from the diocese of Bremen.29 We have little evidence to examine this claim, although it appears plausible enough. Yet understanding why Ansgar was able to establish his authority over large parts of the diocese of Bremen, while only being able to claim a small part of the diocese of Verden, is more problematic. Both seemed to have lacked bishops, although the sources are barely adequate to establish even this with any certainty. Nonetheless, some of the factors at work in Ansgar’s attempts to build a diocese for himself between 845 and 847 can be posited. Firstly, it is possible to infer that Ansgar himself had a personal preference for expanding his influence over the diocese of Bremen. Rimbert tells us that Ansgar experienced a vision in which his future consecration as bishop of Bremen was revealed to him. Significantly, Rimbert tells us that this dream occurred ‘three years before he was invited to rule over the Church at Bremen.’30 This would be in 844, the year before Leuderich of Bremen’s death. Ansgar was already impoverished by the loss of Torhout, and looking for means to expand his diocese, so it is 28 REUTER, Timothy. Property transactions and social relations between rulers, bishops and nobles in early eleventh-century Saxony: the evidence of the Vita Meinwerci. In: (eds.) DAVIES, Wendy; FOURACRE, Paul. Property and power

in the early Middle Ages. Cambridge : Cambridge University Press, 1995. p.193,194

29 RIMBERT, op cit. c.22 30 RIMBERT, op cit. c.36

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possible that he already had ambitions of claiming Bremen at this time. It is certainly suggestive that Ansgar chose to travel to Bremen following the attack on Hamburg.31 The desire for safety and sustenance alone would be a reasonable explanation for this move, but with Leuderich dead or dying, Ansgar’s ambition may also have been at work. Adam’s claim that Ansgar was driven away from Bremen by Leuderich suggests that Ansgar was viewed as more than a mere exile. While we should not place too much weight on the details of this story, for Adam tended to dramatise events, and who else but Leuderich could he have associated with pre-Ansgarian Bremen, the core elements should be taken seriously. Adam’s institutional memory could be extremely accurate, and his claims find support in the ‘Life of Ansgar’.32 Not only does Rimbert imply that Ansgar was interested in Bremen by 844, he explicitly states that Ansgar faced hostility from some of the clergy in Bremen. He describes this in the context of Ansgar’s consecration in 847, but Ansgar must have been known to the clergy there for many years, so it would be strange if this hostility was not already present between 845-847. Thus the little evidence we have suggests that Ansgar’s ambitions were directed towards the diocese of Bremen, but that he met resistance from some of the clergy in the town itself. We may also posit a connection between Ansgar’s interest in the diocese of Bremen and his success claiming parts of its territory, with his eventual appointment as bishop there. Having established himself in the area, he may have been the obvious candidate when Louis the German sought to fill the vacancy in 847. If the bishop of Verden was appointed on the same basis, then we may be able to account for Ansgar’s lack of success annexing parts of the diocese of Verden. Bishop Waldgar of Verden seems to have been consecrated around the same time as Ansgar acquired the diocese of Bremen, and the ‘Life of Ansgar’ presents him as a staunch defender of Verden’s rights at the synods of Mainz in 847 and 848.33 But it is possible to infer that he was already performing this role prior to these synods. The stand-off between 31 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 c. xxiii (25) 32 cf. WINROTH, op cit., p.110 33 RIMBERT, op cit. c.22

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Louis the German and Otgar of Mainz seems to have prevented any replacement being appointed for Leuderich of Bremen, and the same is probably true of Haligad of Verden, but there were other ways to claim a bishopric.34 Ansgar would appoint his own successor, and the clergy and people of a diocese could also claim a right to elect their bishop.35 It is therefore intriguing that a letter purporting to be a confirmation of Ansgar’s right to Ramelsloh shortly after the attack on Hamburg names Waldgar as the bishop of Verden. Much, if not all, of the letter is likely to have been forged during the later conflicts between the bishops of Hamburg and Verden, as referred to by Adam of Bremen.36 The reference to Waldgar may therefore merely be an anachronism introduced by the forger; such mistakes were not uncommon. But it is also possible that the forger was working from an original letter, an equally common occurrence, or that some memory of the events of 845-847 remained. But, given the evidence, we can go no further than to suggest that if Waldgar was performing the role of the bishop of Verden from 845 to 847, this would fit with his appointment to this role in 847 and Ansgar’s relative lack of success expanding his diocese into Verden. Taken together these fragments hardly suggest a satisfactory picture. But it is important to raise the question of Ansgar’s position between 845 and 847, for Rimbert’s narrative leads us all too easily from the sack of Hamburg in early 845 to Ansgar’s consecration as bishop of Bremen in the summer of 847. Rimbert must have decided that whatever Ansgar had done in this period did not fit comfortably alongside the saint and the diocese he was trying to depict. Thus he excised the period from his work, and framed it rather fittingly as a period of exile.37 We are limited by our sources, and it may be that the most significant factors that shaped Ansgar’s progress from 845 to 847 are hidden from view. We have no means of reconstructing the thoughts of the local 34 GOLDBERG, op cit., p.158, 159; KNIBBS, op cit.,p.128 35

VITA RIMBERTI. In. (ed.) WAITZ, Georg. MGH SRG 55.Hannover: Hahn, 1977 c.11, 12; ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 xxxiv (36)

ADAM OF BREMEN, op cit., Book 2 xlv (43) and scholia 33/34; LAPPENBERG, op cit., p.16 37 RIMBERT, op cit., c.16, 17 36

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priests and monks, the Saxon nobility and their tenants. But there is just enough in our sources to belie the sense of inevitability which Rimbert cultivates. From the works of Rimbert and Adam, together with early privileges, it seems that Ansgar was attempting to expand his position at the expense of his neighbouring bishops, even before 845.38 His occupation of Hamburg and its neighbouring churches had come as a loss for Verden, although this may have been negotiated as part of Ebo’s mission. With the loss of Torhout Ansgar’s need to acquire more territory became urgent; Hamburg cannot have possessed the kind of foundation endowments which sustained the the other Saxon bishoprics, for it was a product of Ansgar’s imagination, not royal policy.39 The sack of Hamburg, while not the cause of this crisis, compounded it with the loss of Ansgar’s cathedral and monastery, together with most of his movable wealth. The timely death of Leuderich allowed Ansgar to pursue his ambitions of extending his diocese into the territory of Bremen, but he appears to have been unable to claim the town itself because of the hostility of the cathedral clergy.40 He was less successful in his attempts to expand into the territory of Verden, potentially because Waldgar was already acting as bishop there. Two points must be emphasised. Firstly, Ansgar was seeking control over what must have been relatively limited resources; authority over a small number of churches, and nominal control over the modest landholdings of Bremen and Verden. Christianity was still young in Saxony and its bishoprics were poor. Royal endowments were rare after the original foundations, and this neglect was exacerbated by the stand-off between Louis the German and Otgar of Mainz.41 Secondly, Ansgar was competing against other interests, and he was by no means the obvious winner in 845-847. Without the death of Leuderich it is hard to imagine how the diocese of Hamburg could have come into 38 RIMBERT, op cit., c.22; ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 xxiii (25);

KNIBBS, op cit., p.102, 103

39 cf. CARROLL, op cit., p.227, 230 40 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 c. xxiii (25); RIMBERT, op cit., c.36 41 cf. CARROLL, op cit., p.227, 230, 231; GOLDBERG, op cit., p.158, 162, 164;

KNIBBS, op cit., p.128

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existence, and even with the Leuderich’s death Ansgar was not strong enough to claim his diocese alone. 847- 848: The Bishop of Bremen At the synod of Mainz in 847 Ansgar was finally able to secure the diocese of Bremen. But his own ambitions seem to have played only a minor, if crucial, role in events. Once again, the death of a fellow clergyman provided Ansgar with the opportunity to improve his position. This was the death of Archbishop Otgar of Mainz on April 21st 847. Otgar had been a lifelong opponent of Louis the German, supporting first Louis the Pious and then Lothar I against him. Even after the treaty of Verdun in 843 hostility between the two continued, leaving ecclesiastical affairs throughout much of Louis’ kingdom in limbo, as each tried to undermine the other.42 Hence when Leuderich of Bremen died in 845, he could not be replaced due to the ongoing rift between ruler and archbishop. This stand-off ended with the appointment of Raban Maur as Otgar’s successor. Raban Maur was well connected within the east Frankish church, and his appointment was in itself an act of conciliation by Louis. Further attempts at reconciliation were made by Louis at the synod held at Mainz, in the summer of 847.43 It is in this context that Ansgar was made bishop of Bremen, a lesser suffragan of the church of Mainz.44 As Eric Knibbs has shown, Rimbert seems to have struggled to make his account of this synod fit neatly alongside his narrative of the destruction of Hamburg leading to the unification of

42 GOLDBERG, op cit., p.158, 162, 164; KNIBBS, op cit., p.128 43 GOLDBERG, op cit., p.159; DE JONG, Mayke. The Empire as Ecclesia:

Hrabanus Maurus and biblical historia for rulers. In: HEN, Yitzhak, INNES, Matthew (eds.) The Uses of the Past in the Early Middle Ages, Cambridge: Cambridge University Press, 2000. p.208-210

44

His position at this synod is well illustrated by the list of subscribers to the council’s proceedings. Following subscriptions by the king and the pope, the new archbishop of Mainz listed his suffragans; two thirds of the way through this list, after his fellow missionary bishop Gauzbert and his neighbour Waldgar of Verden, we find Ansgar’s name. LAPPENBERG, op cit., p.20; KNIBBS,

op cit., p.129-133

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the two sees.45 Writing twenty years later he seems to have been constrained by memories of the event, and a close reading of his account of the synod of Mainz suggests that the emphasis was on restoration rather than innovation. Having endured the civil war and Stellinga uprising, years without consecrated bishops, and the loss of land to the Saxon nobility, the dioceses of Verden and Bremen were in disorder. The aim of the synod of Mainz was therefore to restore the situation which had existed under Louis the Pious. Rimbert writes, ‘they decided that, as there had been the two dioceses of Bremen and Verden in the time of the Emperor Louis these should be restored.’46 Thus Ansgar received Bremen while Waldgar was given Verden. Taking this together with the charter evidence, Knibbs concludes that no one at the synod of Mainz took Ansgar’s idea of a diocese of Hamburg particularly seriously, despite Ansgar circulating a dossier of forged privileges supporting his claims.47 Indeed, the decision to restore previous arrangement could easily be construed as rebuke of Ansgar’s efforts. After all, at least some of the disruption was a result of Ansgar’s presence in the area; both Bremen and Verden had lost territory to Ansgar’s notional diocese. Nonetheless, that Ansgar was appointed to the bishopric at all suggests that he was taken seriously, even if his dreams of a great northern diocese were not, and that there was a degree of recognition that Ansgar had developed a claim of sorts on the area. Ansgar’s campaigning had not been in vain, but neither he did he acquire the Nordalbingian diocese he desired. Indeed, he seems to have risked losing control of Hamburg itself for a time, which was recognised as lying within the diocese of Verden; something which even Rimbert could not quite conceal.48 It was only by forfeiting control of parts of the diocese of Bremen to Waldgar in 848, that Ansgar was able to retain control over his missionary station of many years. Drӧgereit and Knibbs have both connected Ansgar’s determination to keep Hamburg with the archaeological evidence of continued settlement there; 45 KNIBBS, op cit., p.130 46 RIMBERT, op cit., c.22 47 KNIBBS, op cit., p.131, 210 48 RIMBERT, op cit., c.22

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that far from being derelict it remained worth fighting over.49 But we can also connect Hamburg with Ansgar’s dream of a Nordalbingian diocese based there, from which the north could be converted. Ansgar had already invested a number of years of his life pursuing this idea and we should consider the possibility that Ansgar may have wanted to retain Hamburg, even if it had remained an abandoned shell. Gauzbert Despite Ansgar’s later reputation as the ‘Apostle of the North’, largely derived from the accounts of Rimbert and Adam of Bremen, the mission to Scandinavia did not originate with him, and it is likely that he and his church played a relatively minor role in the conversion of Scandinavia. The mission had been founded by Louis the Pious and Archbishop Ebo of Rheims in 822, reaching a high point with the baptism of Harald Klak and his companions in 826.50 Neither Rimbert nor Adam of Bremen two centuries later were able to ignore Ebo’s legacy in their accounts, much as they tried, and it was Ebo’s mission rather than Ansgar’s which was regarded as noteworthy by contemporary authors.51 Ansgar had joined this mission in 826 as a teacher for Harald Klak and his companions, and it was only in 831, when Ebo began to play a less direct role in the mission, that 49 KNIBBS, op cit., p.133; GLÄSER op cit.,, p.171-175; LOBBEDEY op cit.,

p.127-130.

50 PALMER, James. Rimbert’s Vita Anskarii and Scandinavian Mission in the Ninth Century. Journal of Ecclesiastical History, 55 (02), 2004, p.235-256; WINROTH,

op cit., p.102-121; FLETCHER, Richard A. The Conversion of Europe: from Paganism to Christianity, 371-1386. London: HarperCollins, 1997. p.374; WOOD, Ian. The missionary life: saints and the evangelisation of Europe, 4001050. Harlow: Longman, 2001. p.123-137. 51 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 c. xvi (18), xxii (24) xvii (19); RIMBERT, op cit., c.33, 34; PALMER, 2004, p.236; ANNALES REGNI

FRANCORUM. In: KURZE, Friedrich (ed.) MGH SRG 6, Hannover, Hahn, 1895. c.6 p.163; ANNALES XANTENSES ET ANNALES VEDASTINI. In: SIMSON, Bernard von (ed.) MGH SRG 12. Hannover, Hahn, 1909. c.12 p.6; ERMOLDUS NIGELLUS, Carmina in honorem Hludovici Christianissimi Caesaris Augusti. In:  DÜMMLER, MGH PLAC (II). Berlin, 1884, p.62-70.

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Ansgar himself was given a legation by Gregory IV.52 Even then, Ansgar’s mission was not to the whole of the north, but only to the Danes, with Ebo’s nephew Gauzbert taking responsibility for the Swedish mission. Nor had Ansgar yet been consecrated a bishop, as Rimbert tries to suggest. Indeed, it was only in 834, after Ebo had been deposed for his denunciation of Louis the Pious, that Ansgar was consecrated as his replacement.53 These were not ideal circumstances for promotion. With the loss of Torhout in 843 Ansgar’s mission stalled. Although Rimbert distracts his readers with his dramatic account of the sack of Hamburg, he does not overlook the importance of the loss of Torhout, writing, ‘when the necessary funds were no longer available they left these peoples, and the mission to them... ceased: even the metropolis, Hamburg, was well nigh deserted.’54 Doubtless there is an element of exaggeration here; Rimbert’s claim that Hamburg was almost deserted is only plausible if we ignore everything beyond the walls of monastery and cathedral. Yet the crippling consequences of the loss of Torhout have been emphasised by a number of scholars, and it seems reasonable to accept Rimbert’s claim that missionary work only restarted after Ansgar was appointed to Bremen as more or less accurate.55 Ansgar was not alone in renewing his missionary work in 847. At the same time as Ansgar was given Bremen, Gauzbert had been appointed to Osnabrück, which had also lacked a bishop for some time.56 The works of Rimbert and Adam of Bremen, centred as they are on Hamburg-Bremen, have sufficiently undermined Gauzbert’s role in the mission that he is easily overlooked by modern scholars. For example, Anders Winroth recently contrasts Gauzbert ‘who appears to have had no particular wish to return to Sweden’, with Ansgar, who zealously continued the mission to the Danes.57 Yet the difference between their situations was 52 KNIBBS, op cit., p.210-212. 53 Ibid. 54 RIMBERT, op cit., c.23 55 RIMBERT, op cit., c.24; KNIBBS, op cit., p.11, 119, 127, 200. 56 WINROTH, op cit., p.107; KNIBBS, op cit., p.135 57 WINROTH, op cit., p.107

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perhaps not so great. True, Gauzbert appears never to have returned to Sweden after being driven out in 845, but there is evidence that his career continued to run parallel to Ansgar’s.58 The difference was primarily a matter of timing; Gauzbert died first, leaving Ansgar and Rimbert to begin the long process of defining his memory in terms Hamburg-Bremen, a story in which Gauzbert could only ever be a peripheral character. Had Ansgar died first, it is entirely plausible that it would be Gauzbert, or his uncle Ebo, who would now enjoy the title of ‘Apostle of the North.’ Indeed, before Gauzbert’s death and even after it, he must have appeared the likelier candidate for such a title, had it occurred to anyone to use it. Over the course of his career Gauzbert’s position often appears rather stronger than that of Ansgar. Rimbert tells us that Gauzbert was driven out of Sweden around the same time as Hamburg was sacked in 845, and we have little reason to doubt his word.59 This allows Rimbert to introduce the lack of missionaries in Sweden to his audience, a problem which his hero can subsequently resolve. But it also suggests that Gauzbert still had the means to fund missionary work in 845, something which Ansgar seems to have lacked following the loss of Torhout in 843. On his appointment Gauzbert had received the village and monastery of Welanao (now Münsterdorf), ‘to serve as a place of refuge, in order that the performance of his task might be rendered permanent and secure.’60 Established by Ebo in 822 as his own base of operations, Welanao was located near the Danish border by the fort of Itzehoe. Arguably better placed to launch missions into Scandinavia, it may also have provided Gauzbert with the resources to continue his missionary activities when Ansgar was forced to end or scale back his own work after the division of 843. Gauzbert was also at least as well connected as Ansgar. He had received donations from Louis the German following his consecration in 847, which Ansgar had not, and Osnabrück’s immunities had been guaranteed in 848 by the king and the local 58 KNIBBS, op cit., p.134, 135 59 RIMBERT, op cit., c.17 60 RIMBERT, op cit., c.14

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count.61 As a relative of Ebo of Rheims – Adam of Bremen says nephew – he was in a better position to pose as the heir to Ebo’s mission and exploit Ebo’s many contacts.62 His acquisition of Ebo’s missionary station at Welanao may suggest that Ebo himself thought of Gauzbert as his heir. But Ebo’s name was no guarantee of favour; he was often mocked for his lowly origins and he had made many enemies during his career, so an association with him was at best a mixed blessing, and one shared by Ansgar to some extent.63 In the same way, although he had links with the Saxon aristocracy, these were not always to his benefit. For example, although Count Cobbo had agreed to protect Osnabrück’s immunities, he had also taken advantage of the absence of a bishop to divert the tithes of the church to the monastery of Corvey and the convent of Herford. This was done for the benefit of his siblings who ran these institutions.64 Seemingly appointed at the instigation of Cobbo, Gauzbert does not seem to have been in a position to alter this situation, yet even being the junior partner in this relationship may have opened up possibilities for him. Both Herford and Corvey were rich, and Corvey already had links with the northern mission. They were also two of the few Saxon institutions with strong connections to the royal court.65 Furthermore, it was Count Cobbo who had negotiated Horik’s submission following the failed attack on Saxony 845.66 If Gauzbert wished to continue his Scandinavian mission after 847, he was in a good position to do so. We have good reasons to believe that Gauzbert did wish to continue his legation after his appointment as bishop of Osnabrück. The most intriguing piece of evidence for our 61 62 63

64 65 66

GOLDBERG, op cit., p.160; SCHANNAT, Johann Friedrich, HARTZHEIM, Joseph. (ed.) Concilia Germaniae, 2. Cologne: 1760. p.164 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 xvii (19); WOOD, 2001, p.124 PALMER, 2004, p.235-256; THEGAN, Gesta Hludowici imperatoris. In: (ed) TREMP, Ernst. MGH SRG 47. Hannover, Hahn, 1995. c.44; ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 c. xxii (24) WEDEKIND, Anton Christian. Noten zu einigen Geschichtschreibern des Deutschen Mittelalters, 2. Hamburg: 1835. p.381. GOLDBERG, op cit., p.158 HEIRIC OF AUXERRE, Miracula sancti Germani. In: PL 124, c.14-15.

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purposes is a privilege identified by Eric Knibbs, which claims that both Ansgar and Gauzbert were given the pallium by Gregory IV.67 Ansgar’s attempts to claim the title of an archbishop are well known, although he almost certainly did not receive the pallium until 864.68 But what this privilege suggests is that even while Ansgar was forging and altering privileges to claim the title of archbishop, Gauzbert was doing something very similar. At the very least, the text reveals an author thinking about Ansgar and Gauzbert in the same way. That Gauzbert is often treated as a minor figure in Ansgar’s story must be attributed to Rimbert’s ‘Life of Ansgar’. Yet a close reading the text suggests that Rimbert knew that this was precisely what Gauzbert was not. Rimbert’s aims are well known. On the one hand he was making the case for Ansgar’s sanctity, whilst on the other he was seeking to legitimise the existence and unification of Hamburg-Bremen, in the wake of Ansgar’s death.69 Neither aim required that he should consider the role of Ansgar’s fellow missionary bishops at length, and an excessive interest in the activities of Ebo and Gauzbert would detract from his presentation of Ansgar as the defining figure in the northern mission. Ebo was long dead by the time Rimbert was writing, although he was widely acknowledged as the founder of the mission to the north. But it was easy enough for Rimbert to present Ansgar as Ebo’s legitimate heir, fulfilling and enlarging the task which Ebo had only begun.70 Gauzbert’s legacy was more problematic. In many ways his career seems to have run parallel to Ansgar’s, even surpassing it at times. Like Ansgar, Gauzbert seems to have claimed the title of missionary archbishop. Rimbert could not ignore Gauzbert’s legacy; he had died only a few years earlier and was probably well known to Rimbert’s audience at the monastery of Corbie. Rimbert was aware that his work was only one of the many sources of information about the

67 KNIBBS, op cit., p.135 68 KNIBBS, op cit., p.210 69 WOOD, 2001, p.125, 126; KNIBBS, op cit., p.204-206 70 RIMBERT, op cit. c.13, 14, 34; PALMER, 2004, p.250, 251

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mission available to his audience.71 Yet while he did not simply excise Gauzbert from the history of the mission, he could, and did, reorientate this history around his own hero and institution. Nonetheless, if we strip away the interpretation that Rimbert tries to put on events, something of Gauzbert’s career can be reconstructed. After being appointed bishop of Osnabrück he maintained an interest in the mission, continuing to consecrate priests to work amongst the Swedes.72 When Ansgar attempted to widen his activity to include the Swedes, he could only do so very tentatively, seeking Gauzbert’s permission and working in conjunction with Gauzbert’s own priests; an admission which undermines Rimbert’s claims that Ansgar was Gauzbert’s metropolitan.73 It was only after Gauzbert’s death that Ansgar and Rimbert could begin the task of reinterpreting Gauzbert’s role in the mission, from being Ansgar’s equal to being his subordinate. This moment is well reflected in Rimbert’s ‘Life of Ansgar’. Rimbert tells us that upon hearing of the death of Gauzbert, Ansfrid, Gauzbert’s priest in Sweden, hurried home, only to die at Bremen. It is intriguing to wonder why Ansfrid chose this moment to leave Sweden. A Dane by birth, he was an experienced missionary, trained by Ebo, and had run the Swedish mission for three or four years.74 With Gauzbert styling himself as a missionary archbishop, Ansfrid would have been his obvious choice of heir. Indeed, Ansfrid’s background and experience were remarkably similar to Rimbert’s at the time when he succeeded Ansgar. But with Gauzbert and Ansfrid dead, Ansgar was able to claim ownership of the Swedish mission, by dispatching his own priests to Sweden to replace Ansfrid. But it was more difficult to change memories to fit this new arrangement, and much of Rimbert’s descriptions of the northern mission can be understood in terms of his attempt to wrest legitimacy from Ansgar’s deceased rival. This would make sense of Rimbert’s decision to focus so much of his attention 71 RIMBERT, op cit. c.10, 35 72 RIMBERT, op cit. c.27, 33 73 RIMBERT, op cit. c.25, 14, 17, KNIBBS, op cit.,p.168, 169 74 RIMBERT, op cit c.33

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on Swedish matters, despite Ansgar’s mandate being for work amongst the Danes. He describes Ansgar’s relatively modest successes amongst the Swedes at length, all the while emphasising the tragic lack of priests sent by Gauzbert.75 He also insists on Ansgar’s divine mandate to work amongst the Swedes, revealed to Ansgar through a vision of Adalhard, his former abbot.76 It was only in the final years of Ansgar’s life that he was able to operate amongst the Swedes without Gauzbert’s approval, and even then, being able to send a few priests to Sweden was the not the same as securing wider recognition of his right to do so. In his descriptions of Gauzbert and the Swedish mission Rimbert was trying to present this novel and questionable arrangement as something established and inevitable. Writing shortly after Ansgar’s death in 865, Rimbert was only really beginning the process of redefining Gauzbert’s memory. The decision to write a vita of Ansgar was in itself political, privileging one perspective on the northern mission over many others. But Rimbert went beyond this, deliberately misrepresenting and undermining Gauzbert’s work whilst emphasising Ansgar’s achievements in an area which had long been claimed by Gauzbert. Yet there are enough hints in Rimbert’s work to reconstruct the legacy Rimbert was arguing against. Gauzbert’s career had been similar to Ansgar’s own. He had worked on the same mission, claimed the same status, and been tied into many of the same networks as Ansgar. It was Rimbert’s task to make his audience forget this, recasting Gauzbert into a minor and ultimately forgettable character in the story of Ansgar’s mission. In the long term at least, he was largely successful. 864: An archbishop in Hamburg In 864 Ansgar was finally recognised as an archbishop. As with his acquisition of Bremen in 847, his own actions, while crucial, were not the decisive factor effecting this change. Rather, for a brief moment political circumstances created a space in which an archbishop in Bremen could make sense beyond the small circle of clerics gathered around Ansgar there. For the first time 75 RIMBERT, op cit c.9, 10, 13, 14, 20, 25, 29, 30, 32, 33 76 RIMBERT, op cit c.25

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in his career Ansgar found an audience sympathetic to his claims. These claims and how he presented them do not seem to have changed much, but the political situation had. So we must look to his audience to understand why it was only that why it was only in 860s that his claims were recognised. Knibbs places Ansgar’s promotion in the context of Lothar II’s divorce case.77 Shortly after after inheriting his father’s kingdom in 855 Lothar had married Theutberga, a member of a powerful Lotharingian family. But by 857 he had begun looking for a way to renounce her and replace her with his former concubine Waldrada, who had already given him a son, Hugh. The affair was not only scandalous, but also deeply political, pulling in Lothar’s uncles Charles the Bald and Louis the German, together with two popes and countless bishops and nobles.78 With such divergent powers involved and Lothar determined to renounce the childless Theutberga, the issue dragged on until Lothar’s death in 869, at which point his kingdom was annexed by his uncles. The possibility of Ansgar being recognised as an archbishop came in 863/ 864, at a time when Lothar was making concessions to his uncles in hope of gaining their support. Although the archbishops of Mainz had effectively annexed Hamburg and Bremen since 847, Anno of Cologne could still claim them as his rightful suffragans. Promoting Ansgar to archbishop further removed Hamburg-Bremen from Cologne’s influence, something which Louis the German was eager to do, and Lothar was willing to accept. But it was only the very peculiar circumstances of the moment which persuaded Pope Nicholas I to support the move and rendered Anno of Cologne unable to oppose it. A vocal supporter of Lothar, Anno had travelled to Rome in 863 to confirm to Lothar’s divorce, only to find himself deposed by Nicholas I who condemned the divorce and Anno’s part in it.79 This created a brief moment in which the two kings and the pope were willing to support Ansgar’s claims, and in 864 Nicholas I sent the pallium to Ansgar. Rimbert acknowledged 77 KNIBBS, op cit., p.168-172 78

AIRLIE, Stuart. Private bodies and the body politic in the divorce case of L othar II. Past and Present, 161, (1), 1998, p.3-12

79 AIRLIE, op cit., p.9

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that Anno would have opposed the move had he been able to, but suggested that he later gave his consent, a claim belied by other sources.80 Instead, Ansgar only became an archbishop following the deposition of his metropolitan, who would not be replaced until 870. Rimbert also fails to mention that although Ansgar had become an archbishop, Hamburg-Bremen itself was not raised to the status of an archdiocese. Ansgar’s promotion seems to have been envisaged as an additional duty distinct from his role as bishop of Bremen, similar to Boniface’s position in Mainz, or Willibrord at Utrecht.81 Yet even before a new archbishop of Cologne could object to the diminution of his authority, the idea of there being an archbishop in Bremen faced challenges. The political situation was extremely fluid, so that when Ansgar died in 865, only a year after his consecration, Nicholas and Louis seem to have been reluctant appoint a successor. With Lothar agreeing to take back Theutberga in early 865, the conditions which had encouraged them to support Ansgar’s claims had evaporated. Although Rimbert was eventually recognised as an archbishop, the pallium was sent to Hamburg, not Bremen. This supported the notion of a diocese centred at Hamburg which was becoming accepted at this time, but it also weakened Rimbert’s claims over Bremen against those of the archbishops of Cologne. It was in this context that Rimbert wrote his ‘Life of Ansgar’, legitimising his position through a reinterpretation of Ansgar’s legacy. The initial impact of the work outside of the (arch)diocese was minimal. The idea of an archbishop based at Hamburg appeared sporadically at the end of the ninth century, but we have to wait until the first half of the tenth century before we find Rimbert’s notion of a dual archdiocese of Hamburg-Bremen being taken seriously.82 Yet ultimately, Rimbert’s version of events would become widely known and accepted, shaping the actions of popes and emperors. As time passed, many of the voices and memories of Rimbert’s rivals faded away, leaving few alternatives to his narrative. Even in 865 it was no longer so obvious that 80 KNIBBS, op cit., p.172 81 KNIBBS, op cit., p.156 82 KNIBBS, op cit., p.212-219

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the territory beyond the Elbe ought to be divided between the dioceses of Bremen and Verden to the exclusion of Hamburg, as it had been in 847. But the most important factor may have been that his narrative provided a way understanding something which was increasingly real. In his own day, Rimbert’s claims were controversial; Ansgar’s sanctity and the existence of the archdiocese of Hamburg-Bremen were simply not self-evident. But in the centuries following his death his work appeared less as a vision of how things ought to be, than as an explanation for how they already were. Literary strategies Both Rimbert and Adam of Bremen were writing in response to crises: Rimbert to shore up his position as archbishop of a diocese being undermined by the claims of the archbishops of Cologne and attacks by the Northmen; Adam in response to the death of Archbishop Adalbert and the disasters of his pontificate. The differences between them should not be understated. Hamburg-Bremen was a fundamentally different institution when Adam wrote; its archbishops had, for a time at least, been amongst the most powerful men in the realm; they had land, wealth and men, and the north was increasingly Christianised, lending new relevance to their claims to have ecclesiastical authority there. There were also cultural differences. At a distance of two centuries Adam could not help but see the world slightly differently to Rimbert. The same words had come to mean different things, and there are passages of the ‘Life of Ansgar’ which Adam seems incapable of reading in the way Rimbert intended.83 Yet for the purposes of this paper the ‘Life of Ansgar’ and ‘the Deeds of the Archbishops of Hamburg-Bremen’ will be viewed as attempting to do fundamentally the same thing. Other perspectives can and must be taken, but this paper will concentrate on these works as attempts to lead their audiences to a view of the world in which the existence and the claims of Hamburg-Bremen appeared natural and inevitable. Neither were attempting to create a whole new world-view. On the surface they cultivated the appearance 83 cf. RIMBERT, op cit., c.24, 31, 32; ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1

xxv (27), xxviii (30), xix (31)

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of doing quite the opposite, supporting and reaffirming their audiences’ beliefs and expectations, stating nothing but the truth.84 But underneath they were discretely grafting their views of Hamburg-Bremen onto their audience’s fundamental assumptions, so that Hamburg-Bremen could appear as natural as a healthy contempt for barbarians, the vulnerability of widows, or authority of the written word. Adam and Rimbert tried to show their audiences the world they expected, only slightly readjusted so that Hamburg-Bremen was at the centre, a ‘second Rome’ from which one looked out onto the world.85 It is significant that in the first instance they were both writing to audiences they could expect to be sympathetic. Rimbert was writing the monastery of Corbie, Ansgar’s old monastery which had long supported his mission, while Adam was writing to Liemar, the new archbishop of his diocese. Both authors were also intensely aware of the clergy in their own diocese, and sensitive to their views.86 We are familiar with the notion of power as something which is projected outwards, imposing itself on others through propaganda, public-relations, or advertising, and yet at their inception these texts seem to be doing slightly different. It is unlikely that either Liemar or the monks of Corbie entirely shared the views of Adam or Rimbert, and yet neither can we describe them as outsiders. Corbie had established ties to Hamburg’s mission, ties which Rimbert was trying to renew, and while Liemar was a newcomer to Hamburg-Bremen he had been archbishop for three years by the time Adam dedicated a copy of his work to him.87 It is worth considering Rodney Barker’s suggestion that an ongoing concern of the powerful is to legitimise their power to themselves.88 At their inception, these 84 ADAM OF BREMEN, op cit., preface. 85 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 c. vii (7), xxiv (24), lxxiii. 86 RIMBERT, op cit., 1, 6, 9, 33, 34, 35; ADAM OF BREMEN, op cit., preface, Book 3 c. I (1), iii(3), Xxiii (22), Xlvi (45), lvii (56); SCIOR, Volker. Das Eigene und das Fremde: Identität und Fremdheit in den Chroniken Adams von Bremen, Helmolds von Bosau und Arnolds von Lübeck. Berlin: Akademie, 2002. p.24, 25, 39, 40, 47, 50, 86-88 87 RIMBERT, op cit., c.1; ADAM OF BREMEN, op cit., preface. 88 BARKER, Rodney. Legitimating Identities: The Self-Presentations of Rulers and Subjects.

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texts may have been more about legitimising Hamburg-Bremen in the eyes of its own clergy and supporters than proclaiming its rights to others. Both Adam and Rimbert were writing what can we reasonably describe as institutional histories, but they saw this institutional past primarily in terms of individuals. Few figures had done as much to define and re-define Hamburg-Bremen as Ansgar and Adalbert, and their deaths must have been traumatic for the clergy there, opening up new questions about the diocese. Both Adam and Rimbert addressed these questions, reaffirming the importance of the diocese’s mission and setting out a vision for its future. For the clergy of Hamburg-Bremen this was not merely a matter of scholarly interest, but an ongoing concern in their day-to-day lives. How they understood their institution affected how they saw themselves and each other. To accept these authors visions of Hamburg-Bremen was, for all intents and purposes, to be a different person and live in a different world. It is important to recall this initial audience when considering the success of these texts. These works also travelled beyond Hamburg-Bremen and had an impact on the outside world. Both Ansgar’s forgeries and Rimbert’s ‘Life of Ansgar’ ultimately shaped how others perceived Hamburg-Bremen, and therefore how they acted towards it. While Rimbert’s narrative was more widely accepted, Adam’s ‘Deeds of the Archbishop’s of Hamburg-Bremen’ seems to have had a wider audience, particularly in Scandinavia. Adam’s insistence on the rights of Hamburg-Bremen could not simply be ignored, and it was the task of the first Scandinavian historians and others to try and counter the world-view which Adam had set out.89 This section examines just a few of the ways in which these authors tried to persuade their audiences to adopt their visions of Hamburg-Bremen. In doing so I am not seeking to emphasise the role of intention in the acquisition or exercise of power. As has been argued, human intention was hardly the most important Cambridge: Cambridge University Press, 2001. p.1-40 89 SAWYER, Peter, SAWYER, Birgit. Adam and the Eve of Scandinavian History. In: (ed.) MAGDALINO, Paul. Perception of the Past in Twelfth-Century Europe, London: 1992, p. 39, 40, 48.

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factor in the history of Hamburg-Bremen. Rather, I would like to emphasise an interpretation of power as something enshrined in the way we perceive and interpret events. To relabel the world is to change how we interact with it.90 To persuade others to see the world differently was an act of power. When Ansgar claimed the title of archbishop, he placed a moral demand on others to act accordingly. In 845 few people accepted his claims to be an archbishop, and so few people treated him like one. But in 864 his claims were publicly recognised by two kings and pope, and so most people treated him differently. Ansgar had not changed, and if we say that he became an archbishop in 864, it can only be as a shorter way of saying that when Ansgar acted like an archbishop in 864, the people around him began, for the first time, to join in with his performance.91 In considering the literary strategies of Adam and Rimbert, we are concerned with their efforts to persuade their audiences to see Hamburg-Bremen differently, and act accordingly. Authority To write was in itself a truth claim, far more than is the case today. The mere fact of being written down, irrespective of genre or author, gave a text a certain authority.92 Adam’s work in particular cannot be understood without reference to this attitude towards literary authority. His work is drenched in literary citations and allusions, which identified him as a continuator of these authoritative traditions. It was not simply that Adam regarded some sources as being more reliable than others, although he 90 Cf. SEDERBERG, Peter C. The Politics of Meaning : Power and Explanation in

the Construction of Social Reality. Tucson: University of Arizona Press, c1984; DOUGLAS, Mary. How Institutions Think. London: Routledge & Kegan Paul, 1987 p.100; HACKING, Ian. Making Up People. In: The London Review of Books, vol. 28 (16), 17 August 2006.

91 Cf. GOFFMAN, Erving. The presentation of Self in Everyday Life. London:

Penguin, 1990, 1959. p.81 ‘A status, a position, a social place is not a material thing... it is a pattern of appropriate conduct, coherent, embellished, and well articulated.’

92 For example, LEWIS, Clive Staples. The Discarded Image. Cambridge: Cambridge University Press, 1964, repr. 2009. p.11

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does privilege the most mundane of his literary sources over the most reliable eyewitness account.93 His respect for the authority of past literature constrains him. There are some things which he must write about, others which he could not conceive of writing about (though he might jest about them as soon as he puts down his pen.) In his role as an author he is ancillary to the medium and the genre; even his aims are subordinated to mimicking the words of past authorities, regardless of whether he he knows these to be inaccurate.94 For it is not Adam’s aim to reveal the truth as he sees it; for he does not derive truth from what he has seen, but from the words which he has read. His vision of the world is mediated by books. And from these books he has learnt to interpret the physical world in terms of higher truths, and to present these holy truths ‘beneath a modest veil of allegory.’95 He would prefer to cite Virgil to describe a Slavic temple than his own eyewitnesses; to use Tacitus to describe the people living around him; and his highest term of praise for an eyewitness is to say that they had a memory like a book.96 In all this Adam is constrained by his respect for past authority and his knowledge of what it means to write literature, but his audience, similarly constrained, cannot deny that what he has written is literature, and are forced into conflict with their own ideas of truth and literature before they can dismiss his claims as false. Pre-eminent amongst both authors’ sources was the Bible. Both used it as a prism through which to interpret their worlds, and as a means of imparting an sense of legitimacy and inevitability 93 For example, ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 xlix (51), Book 4 x (10) 94 For example, ADAM OF BREMEN, op cit.,Book 4 x (10), xi (11)

Cf. ADAM OF BREMEN, op cit., preface; MACROBIUS, Commentary on the Dream of Scipio. Translated by STAHL, William Harris, London : Columbia University Press, 1952 p.83-85; SCIOR, op cit., p.70, 71; MERRILLS, Andrew H. History and Geography in late antiquity. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p.5, 11, 23, 25, 27, 33; LOZOVSKY, Natalia. The Earth is Our Book: Geographical Knowledge in the Latin West ca. 400-1000. Ann Arbor, Mich. : University of Michigan Press, c2000 p.5, 100, 103, 138, 140, 152, 154. 96 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 c. iv (4) – vii (8), Book 2 c. xxi (18), xliii (41). 95

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to their visions of Hamburg-Bremen. Much could be written on this, but only one example from each text will given here. The influence of apocalyptic and eschatological thought on Rimbert’s work has been emphasised by a number of scholars, particularly by James Palmer.97 These arguments are important for understanding Rimbert’s work and the context within which he wrote, but they do require some qualification. Crucially, while many aspects of the ‘Life of Ansgar’ can be usefully described as eschatological or apocalyptic, there is little evidence that he felt that the day of judgement itself was imminent. What we do see is Rimbert using biblical language and imagery to frame the mission in authoritative and familiar terms. It was natural for him to associate Scandinavia, the geographic end of the earth, with the day of judgement and the end of time. With ideas of geography and history so closely entwined, such an association was aesthetically pleasing, and the ends of the earth had been associated with the end of time in both Old and New Testaments.98 Furthermore, by time Rimbert was writing the Northmen had already been explicitly connected with biblical descriptions of divine judgement, such as Jeremiah’s description of God’s wrath being poured out from the north like water from boiling cauldron.99 Paschasius Radbertus had gone so far as to interpret the attacks on Paris and the foundation of churches in Scandinavia as a sign of the last days, and Rimbert could find a similarly apocalyptic interpretation of northern peoples in Gregory the Great’s Homilies and Dialogues, both of which had a profound influence on his work.100 97 PALMER, 2004, p.244, 249; WOOD, 2001, p.133, 134 98

Matthew 24:14; MERRILLS, op cit., p.1, 2, 23, 27; LOZOVSKY, op cit., p.5, 6, 72, 81, 100, 106, 107, 138, 153; WOOD, 2001, p.133, 134; FRAESDORFF, David. The Power of Imagination: The Christianitas and the Pagan North during Conversion to Christianity (800-1200), The Medieval History Journal, 5, 2002, p.327; PALMER, 2004, p.244, 249

99 Jeremiah 1:11-14; COUPLAND, Simon. The Rod of God’s Wrath or the People of God’s Wrath? The Carolingian Theology of the Viking Invasions. Journal of Ecclesiastical History, 42 (4), 1991, p.538. 100

PALMER, 2004, p.244; PASCHASIUS RADBERTUS, Expositio in Matthaeum. In: PL, 120, col. 306B–7A, 801B–C, 805C–D0801C;

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Had Rimbert chosen to portray the Northmen in the language of Jeremiah like so many other ecclesiastical writers, he would have found a receptive audience. But while Rimbert was willing to exploit the image of the Northmen as bloodthirsty barbarians at times, it did not suit his purposes to maintain this depiction throughout the whole of his work. Hamburg-Bremen’s claims were tied up with the missionary identity Ansgar and Rimbert had established for it, and it was therefore crucial that the Northmen appeared redeemable. But to ignore the eschatological connotations of the north was not only a lost opportunity, but risked undermining the legitimacy of the work by straying too far from established ideas. Rimbert himself may have struggled to write about the north without reference to its eschatological connotations. Rimbert’s solution, derived partly from Ansgar, was to frame the mission in the language of Isaiah forty-nine. He does this by describing a vision experienced by Ansgar before his second mission to the Swedes, in which Ansgar was commissioned by Abbot Adalhard to preach to the Swedes and promised the martyrdom he desired.101 Adalhard paraphrases the words spoken to the suffering servant at the beginning of Isaiah forty-nine: He (the prophet) looked upon him and said immediately: “Hear, O islands, and give ear ye peoples from afar. The Lord hath called thee from the womb and from thy mother’s belly; he hath remembered thy name and he hath made thy mouth as a sharp sword and bath covered thee with the shadow of his hand and hath made thee like a choice arrow. He hath hidden thee in his quiver, and hath said unto thee, ‘ Thou art my servant, for in thee I will be glorified.’ “ [Isaiah xlix, 1-3] Having said this he stretched out his arm and lifted his right hand to him. When Anskar saw this he advanced to his knees hoping that he would be willing to bless him. But he added these words, “Now saith GREGORY THE GREAT, XL homiliarum in Evangelia libri duo. In: Patrologia Latina, 76. Homily 17, cols. 1138D-1149; GREGORY THE GREAT, Dialogorum Libri IV de Vita et Miraculis Patrum Italicorum et de Aternitate Animarum. In: PL, 77, Book 3 c.38; (trans) ZIMMERMAN, Odo John. Dialogues. Saint Gregory the Great. Washington, D.C. : Catholic Univ. of America Press, 1959. p.186, 187, 236, 251 101 RIMBERT, op cit., c.25

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the Lord that formed thee from the womb to be his servant, I have given thee to be a light to the Gentiles that thou mayest be unto them salvation even to the end of the earth. Kings shall see and princes shall rise up together and they shall worship the Lord thy God, even the Holy One of Israel, for He shall glorify thee.” [Isaiah xlix., 5-7] God’s servant, having beheld this vision long before he set out on his journey, was assured that he was summoned by a divine command to go to those parts, and specially by the word that had been spoken “ Hear, O islands,” because almost all that country consisted of islands ; and by that which had been added, “ Thou shalt be unto them for salvation, even unto the end of the earth,” because in the north the end of the world lay in Swedish territory. Finally the word changed from the end of Jeremiah’s: “For He shall glorify thee,” encouraged his eager desire, as he thought that this referred to the crown of martyrdom that had once been promised to him.102

Much could be said about this passage, but only a few issues will be highlighted here. Most importantly, it provided a biblical foundation for the mission which acknowledged contemporary ideas by associating the north with the geographical and temporal ends of the earth, without making the Northmen appear irredeemable. By demonstrating the mission’s divine mandate, and by locating it within sacred history, Rimbert was conferring on it a sense of inevitability. It is worth recalling Richard Fletcher’s observation that the value of missionary work was not always self evident. Ansgar’s mission, lacking any substantial political or military pressure to support it, was a particularly novel undertaking; it required justification.103 Ansgar’s vision provided a familiar and authoritative text through which to interpret the mission. To accept Rimbert’s account was to see the world differently; the efforts of a few forgotten priests scattered across the north took on a cosmic significance. This was the world in which Ansgar, Rimbert and a small number of others lived much 102 Isaiah 49: 1- 7; RIMBERT, op cit., c.25. Altering Robinson’s translation of

commutatum est from ‘quoted’ to ‘changed’, a more literal rendering which helps make sense of Rimbert’s use of the prophetic verbum. For both Isaiah and Rimbert were altering Jeremiah’s prophecy. 103 FLETCHER, Richard A., 1997, p.1-6

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of their lives. Ansgar’s vision did not simply justify Ansgar’s mission, but justified it in opposition to something else. Rimbert placed this vision between his account of Ansgar’s second mission to the Swedes and his description of Ansgar’s efforts to gain Gauzbert’s consent for this mission. Writing shortly after Gauzbert’s death to an audience familiar with the mission, Rimbert could not simply omit Gauzbert from his history. Gauzbert had claimed authority over the mission to the Swedes and Rimbert was forced to acknowledge this fact, even as he tried to undermine it. Rimbert shows Ansgar acting canonically by requesting Gauzbert’s consent, but he does now allow this brief recognition of Gauzbert’s authority to extend into his account of Ansgar’s mission. It would have been antithetical to his aims to suggest that the Swedish mission had been legitimised by Gauzbert, so he places his description of Ansgar’s vision immediately after his account of Ansgar’s negotiations with Gauzbert. This separates the negotiations from Rimbert’s subsequent description of the mission, replacing Gauzbert’s authority with a divine mandate mediated by Ansgar’s former abbot. To claim that Ansgar had been appointed as God’s servant in Sweden was at least as much a statement about what Gauzbert was not, as what Ansgar had become. The use of Isaiah forty-nine extends beyond this passage. It re-emerges on a number of occasions when Rimbert echoes the language of Isaiah 49:6, writing prophetically of the ‘ends of the earth.’104 It also shaped the descriptions of the kings in Rimbert’s work. In his vision Ansgar was promised that he would worship alongside kings and princes, and this theme of cooperation between secular rulers and the suffering servant is developed throughout the rest of Isaiah.105 Accordingly, Rimbert went to great lengths to ensure that the kings in his work conformed to this single model of kingship, which led him to ignore such anomalies as the elder Horik’s role in the sack of Hamburg, and 104 RIMBERT, op cit., c.25, 34, 38. 105

Isaiah 49:23, 49:3, 60:3, 60:10-11, 62:2. Significantly, Rimbert also quotes Proverbs 21:1, ‘the heart of the king is in the hand of the Lord.’ RIMBERT, op

cit.,c.22

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his son’s hostility towards the Christianity.106 Palmer has suggested that Rimbert was attempting to rehabilitate the reputation of Scandinavian kings after the disappointment of Harald Klak, in order to encourage potential missionaries.107 This is plausible, but it must be emphasised that it is only the kings’ attitudes which are whitewashed so enthusiastically, and often at the expense of making their peoples appear more hostile to the mission. Rimbert not only records the setbacks of the mission, but seems to go out of his way to emphasise Ansgar’s personal suffering. This emphasis can be connected with Rimbert’s insistence that Ansgar should be regarded as a martyr on account his suffering in life, rather than the manner of his death. Being one of the strongest themes in the work, it has often been commented upon.108 Isaiah forty-nine provides a framework through which we can understand Rimbert’s desire to emphasise Ansgar’s suffering even while distancing the northern kings from it. By shaping his description of kings around Isaiah forty-nine, Rimbert reinforces his vision of the mission as something divinely ordained to succeed. For the kings to have unanimously supported the mission is a partial fulfilment of the prophecy, acting to legitimise it in the present and pointing towards its ultimate fulfilment in the conversion of the north. Adam of Bremen captured the sense of this passage when he came to summarise it two centuries later. He reduced Gauzbert’s role even further and framed Ansgar’s mission to the Swedes in a similarly prophetic terms by quoting Ezekiel thirty-nine, ‘“and I will send” says the Lord, “a fire on Magog, and on them that dwell confidently in the islands.”’109 Following Rimbert’s reasoning, he applies this verse to Ansgar’s mission on the basis that Sweden was spread across many islands. Like the use of Isaiah which it references, Adam’s use of Ezekiel gives the mission an air of familiarity and inevitability through the use of a well-known and authoritative text. But Adam develops Rimbert’s sense of 106 RIMBERT, op cit., c.24, 25, 26, 31, 32 107 PALMER, 2004, p.252 108 RIMBERT, op cit., c. 3, 16, 17, 29, 42; WOOD, 2001, p.128; KNIBBS,

op cit., p.188-194

109 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 xxvi (28); Ezekiel 39:6; cf Isaiah 49:1-9

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the sacred history of the mission into something more nuanced. Rimbert merely argues that the mission, being divinely ordained, would ultimately succeed, although he acknowledges that there would setbacks along the way.110 With the benefit of hindsight Adam was able to develop this into a more complex scheme, interpreting the mission in terms of four apostles. Rimbert had only hinted that Ansgar was comparable to the apostles, but Adam identifies Ansgar, Rimbert, and Unni as the three apostles of the north; these were the archbishops of Hamburg-Bremen who had journeyed to Scandinavia to convert the pagans.111 Developing the work of Anne Kristensen, Volker Scior and Idlar Garipzanov have argued that large sections of Adam’s work should be seen as envisaging Archbishop Liemar becoming the fourth and final apostle, by travelling to the north and completing its conversion.112 With references to Gog and Magog and the monstrous peoples at the ends of the earth, Adam tied his vision of the future into the eschatological status of the north.113 Hamburg-Bremen’s identity had been bound up with the north since Ansgar, in myth if not reality, and Adam takes this symbiosis to its natural conclusion; Hamburg-Bremen would flourish only when it fulfilled its mission to the north. Rimbert’s narrative Adam’s reduction of the history of Hamburg-Bremen into a succession of four apostles did not have the effect he desired; Liemar never travelled to Scandinavia, although the archbishops of Hamburg-Bremen would continue to define their role in terms of their mission to the north. A far more successful narrative 110 RIMBERT, op cit., c.34 111 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1, xv (17), xxxiii (35), xxxvi (38), xlii

(44), especially Book 3 lxxii; cf RIMBERT, op cit., c. 14, 33, 36, 42 112 GARIPZANOV, Ildar H. Christianity and paganism in Adam of Bremen’s Narrative. In: (ed.) GARIPZANOV, Ildar H. Historical narratives and Christian identity on a European periphery: early history writing in Northern, East-Central, and Eastern Europe (c. 1070-1200). Turnhout: Brepols, 2011.p.21, 23; SCIOR, op cit., p.64-69. 113 GARIPZANOV, 2011, p.24-27; SCIOR, op cit. p.120, 124; FRAESDORFF, op cit. p.327

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was Rimbert’s account of the origins of Hamburg-Bremen. Large sections of the ‘Life of Ansgar’ are taken up with a more or less explicit defence of Hamburg-Bremen; its unification, its archiepiscopal status, its right to exist in the form Rimbert which desired. Rimbert used a wide range of methods to address these issues; even the layout of the text was an argument defending the unification of his diocese.114 But arguably his most effective tool for setting out his vision of Hamburg-Bremen was the creation of a simple narrative to explain its history. For when scholars, both medieval and modern, have discussed Rimbert’s work they do not begin with his arguments, but with his narrative. The dangers of applying modern concepts of narrative onto a medieval text are real, but almost every author to have dealt with the ‘Life of Ansgar’ seems have to come away with a remarkably similar vision of the development of Ansgar’s mission.115 Whether they criticise this narrative or praise it is not the point; the issue is that a standard sequence of events consistently stands out from the work as significant and, more importantly, memorable. The narrative is simple, which is part of its appeal. We learn that Ansgar was a missionary working amongst the Danes and Swedes. All goes well until disaster strikes without warning when the Northmen attack in 845. Hamburg is destroyed and Ansgar barely escapes with his life. With his diocese in ruins Ansgar is given the diocese of Bremen to support his mission, which steadily grows from then on.116 That is all. The short scenes which constitute this narrative represent only a small part of the ‘Life of Ansgar’, and are inadequate in many 114 WOOD, 2001, p.126 115

Nancy Partner. FOOT, Sarah. Finding the Meaning of Form: Narrative in Medieval Annals and Chronicles. In: (ed.) PARTNER, Nancy. Writing Medieval History. London : Hodder Arnold, 2005 p.91-102; For example, LAPPENBERG,

op cit., p.34, 43, 58, 60, 71, 74; DEHIO, Georg. Geschichte des Erzbistums Hamburg-Bremen bis zum Ausgang der Mission. Berlin: W. Hertz, 1877; ODELMAN, Eva. Ansgar’s Life - a Piece of Carolingian Hagiography. In: ANDRÉE, Alexander; KIHLMAN, Erika (eds.) Hortus troporum: florilegium in honorem Gunillae Iversen. Stockholm: Acta Universitatis Stockholmiensis, 2008, p.290-296; KNIBBS, op cit., p.221, 222 116 RIMBERT, op cit., c. 7, 15, 22.

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respects. Rimbert ignores most of the major events of Ansgar’s lifetime, and the moments he does describe are of doubtful accuracy.117 But they were memorable, and Rimbert seems to have designed them this way. In the whole of his work Rimbert explicitly mentions the sack of Hamburg only once, whereas he references the loss of Torhout three times.118 To those familiar with the work, this may come as something of a surprise, for the sack of Hamburg looms large in any recollection of the ‘Life of Ansgar’. But Rimbert crafted his description of the attack on Hamburg with a sense of drama and urgency, and the scenes he describes – the villagers panicking at the sudden arrival of the Northmen, Ansgar forced to flee the town without even a cloak have been enthusiastically reproduced by historians ever since.119 The drama of Rimbert’s account makes the eventual unification of Hamburg-Bremen appear natural and inevitable, and distracts from fact that Rimbert leads his audience seamlessly from the sack of Hamburg in 845 to his appointment to Bremen in 847 by ignoring everything which occurred in between. Rimbert’s narrative seems to rise above the rest of the work, catching the eye and forming a pleasing pattern of connections. Rimbert himself contradicts it at times, but it doesn’t seem to matter. His story provides a satisfying and memorable means of understanding Hamburg-Bremen, which has not yet lost its appeal. The narrative does not simply direct us to the events which Rimbert would have his audience remember, it leads us to a fundamentally different view of the world. When Rimbert is more or less explicitly making an argument the concepts he is focusing on become malleable; they become questionable and open to examination. When Rimbert tells us that the diocese of Hamburg is justified because it was envisaged by Charlemagne, he is taking a very great risk.120 For however convincing his case may 117

WOOD, Ian. Christians and Pagans in Ninth-Century Scandinavia. In: SAWYER, Birgit; SAWYER, Peter; WOOD, Ian. (eds.) The Christianization of Scandanavia: report of a symposium held at Kungälv, Sweden / 4-9 August 1985. Alingsås: Viktoria Bokförlag, 1987. p.46, 47, 50; KNIBBS, op cit., p.176, 177

118 cf. RIMBERT, op cit., c.16; RIMBERT, op cit., c.21, 23, 36 and c.12, 15 119 For example, WINROTH, op cit., p.107 120 RIMBERT, op cit., c.12

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be, by making the diocese of Hamburg the subject of debate he allows us to see its existence as debatable. When he tells us that Gunthar of Cologne was persuaded to withdraw his objections to an archbishop at Bremen, he reveals the possibility that the archbishop might be objected to.121 The issue is not so much that Rimbert risked his claims being scrutinised, but that by setting out his claims as an argument he presented them as something which could be scrutinised. When he was writing narrative history he took no such risks. As the subject of a narrative these concepts became stabilised; solid points on which the narrative could rest. When Rimbert tells us that Ansgar fled Hamburg without his cloak he gives us no room to doubt Ansgar’s importance. When he tells us that Ansgar spent his time working in his diocese and amongst the Danes, these things become real, with no suggestion they might be questionable. The concepts of a gens Danorum or a Nordalbingian diocese were particularly ambiguous, they had only the most tenuous relation to reality.122 But by enclosing them within his narrative Rimbert invites his audience to see them as self-evident. Rimbert’s narrative is not only aesthetically pleasing, it also frames his key concepts in a fundamentally different way to his explicit discussions of these matters; as solid, enduring and unambiguous. His most powerful argument is to deny there is an argument to be made. Stereotypes Adam and Rimbert were not trying to create a whole new world-view, but to integrate their visions of Hamburg-Bremen into existing habits of thought. Anything which elicited a sense 121 RIMBERT, op cit., c.23 122 RIMBERT, op cit., c.15; GARIPZANOV, Ildar H. Frontier Identities:

Carolingian Frontier and the gens Danorum. In: GARIPZANOV, Ildar H; GEARY. Patrick; URBAŃCZYK Przemyslaw (eds.) Franks, Northmen, and Slavs: Identities and State Formation in Early Medieval Europe. Turnhout: Brepols, 2008. p.115-118; FRIED, Johannes. Gens und Regnum: Wahrnehmungs- und Detungskategorien politischen Wandels in früheren Mittelalter: Bemerkungen zur doppelten Theoriebindung des Historikers. In: (eds.) MIETKE, Jürgen, SCHREINER, Klaus. Sozialer Wandel im Mittelalter:Wahrnehmungsformen, Erklärungsmunster, Reglungsmechanism. Sigmaringen: Thoerbecke, 1994. p.73-80; KNIBBS, op cit., p.127, 128.

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of the familiar, which seemed not to require any questioning or qualification, could support them in this task. We can think of such norms, whether they were reflected in mere phrases and clichés or in the physical form of the works, as cognitive shortcuts.123 Everything from sentence structure to the repetition of well known stereotypes acted as tools for thinking with, or more accurately, tools which reduced the need to think. More established categories, like concepts of paganism or women, could suggest complex and contradictory concepts while requiring very little effort by the thinker. They appeared as fundamental and timeless; the building blocks of common sense. It is the authors’ use of such categories we are concerned with here. Many examples could be given, but we will restrict ourselves to Rimbert’s account of Northmen and Adam’s use of juxtaposition in his account of Adalbert’s reign. Both Rimbert and Adam were unusual in the amount of attention they dedicated to the northern peoples. Scandinavians feature heavily in both works and Adam goes into great detail describing the Slavs and other Baltic peoples. In both cases we can tie this into the the authors’ concern to present HamburgBremen as a missionary see; the unification of Hamburg-Bremen and its status as an archbishopric rested on its claim to have a unique role in the conversion of the north, hence these peoples were a necessary feature of any narrative seeking to legitimise it. This need to view the northern peoples as potential converts caused both authors a number of problems. Foremost was the need to reconcile such an approach with their audience’s expectations of how such pagans and barbarians ought to appear in works of literature. Carolingian authors showed little interest in the Northmen beyond their immediate impact on the Frankish world, and when they did discuss them they rarely strayed beyond a limited set of topoi centred around the terms ‘pagan’ and ‘barbarian’, and a basic ethnology dividing the Northmen into Danes and Swedes.124 This has led some modern commentators 123 DOUGLAS, op cit. p.63 124

ANDERSON, Theodore. The Viking image in Carolingian Poetry. In: GRAVIER, Maurice (ed.) Les Relations littéraires franco-scandinaves au Moyen Age: actes du Colloque de Liège, avril 1972. Paris: Société d’édition Les Belles lettres,

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to suggest that Carolingian authors were simply unable to think beyond the crude stereotypes they used.125 While the existence of such an argument is suggestive of the kind of attitudes which characterised the Carolingian approach to the north, it goes too far. Some texts, including the ‘Life of Ansgar’, went beyond these stereotypes, but we must nonetheless locate them within the prevailing atmosphere of hostility towards the north. We have already noted Rimbert’s use of Isaiah, which allowed him to frame the north in missionary terms without appearing to stray too far from established ways of thinking about the north. Having legitimised a missionary perspective of the north in such a way, he then went on to describe Ansgar’s missionary activities in in unusually restrained language.126 He writes of ‘Danes’ and ‘Swedes’, yet he is not constrained by these clumsy simplifications, he can appreciate shifting regional identities underlying them.127 He knew that the pagan gods were demons, but the pagans themselves were not inhuman, and Rimbert’s work is distinctive for its celebration of sympathetic pagans. Figures like the Danish king Horik, who wanted the Christian God’s favour while remaining pagan, or the Swedes who acknowledged the Christian God as greatest amongst many gods, sat uncomfortably alongside the established dichotomy of Christianity and its pagan antithesis.128 These figures seemed to occupy a middle ground which was rarely explored in Carolingian literature. That Rimbert chose to do so reflects a number of factors; Rimbert’s own missionary experiences, his desire to give the monks of Corbie a practical depiction of the mission he hoped they would support, 1975. pp.218-242; NELSON, Janet L. ‘A King across the Sea’: Alfred in

Continental Perspective. Transactions of the Royal Historical Society, Fifth Series, Vol. 36, 1986, p.46, 47. See footnote 122. 125 FRIED, op cit. p.73-80; FRAESDORFF, op cit. p.315; PALMER, James. Anskar’s imagined communities. In: (eds.) ANTONSSON, Haki; GARIPZANOV, Ildar H Saints and their Lives on the Periphery. Turnhout: Brepols Publishers, 2010, p.182. 126 WOOD, 2001, p.129-132 127 For example, RIMBERT, op cit., c.30; WAITZ, op cit.,p.27, 36. 128 RIMBERT, op cit., c.24, 30, 31, 32. cf. PALMER, James. Defining paganism in the Carolingian world. Early Medieval Europe, 15, (4), 2007. p. 402–425

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and the need to present the north as redeemable as part of the legitimation of his see. Rimbert does not maintain this stance throughout his work. When describing events within the Carolingian world he resorts to more conventional depictions of the Northmen as cruel, barbaric and ‘other’. This allows him to reinforce his two major themes, Ansgar’s piety and the legitimacy of the unification of HamburgBremen. For example, Rimbert describes Ansgar rescuing those who had fled the captivity of the Danes only to be recaptured and enslaved by the Nordalbingians.129 Rimbert underlines Ansgar’s sanctity by emphasising the severity of the crime. To do so he exploits the sense of the pagans as ‘other’, juxtaposing the terms ‘Christian’ and ‘pagan’ throughout the passage to evoke a sense of fundamental difference, only to reveal the disturbing truth that the Christians had momentarily acted as if no such difference existed. Rimbert also evokes the idea of a pagan ‘other’ in those passages where he is concerned to defend the unification of Hamburg-Bremen.130 We can see this in his dramatic account of the destruction of Hamburg, and the image of the Northman as a hostile and predatory neighbour reoccurs whenever he seeks to legitimise the existence of Hamburg-Bremen. This is no coincidence, for Rimbert needed his audience to accept that the Northmen were violent and dangerous if they were to accept that Hamburg needed the support of Bremen to survive in the face of such a threat. Hence the Northmen in the ‘Life of Ansgar’ were both the predatory barbarians Rimbert’s audience was likely to expect, and the humane proto-Christians they probably did not. Rimbert used both models to defend his view of HamburgBremen and was able to do so, at least in part, because he presented both models as fundamental and authoritative views of the world. Adam was similarly flexible in his use of stereotypes, describing the same group in many different ways according to his needs. But whereas Rimbert only occasionally explored the sense of tension between such opposites as ‘Christian’ and ‘pagan’, 129 RIMBERT, op cit., c.38 130 See especially the cluster of references in the central chapters. RIMBERT, op

cit., c.22, 23.

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Adam dedicated the third book of his work to exploring such contradictions. Adam used this book to describe the pontificate of archbishop Adalbert, analysing his reign for the benefit of his successor. Adam took the extremely unusual decision to emphasise the contradictions in Adalbert’s character and reign. For Adam, Adalbert was both the greatest and worse of archbishops. We are left not with a sense of mild ambiguity, but of extreme and unresolved tension. This sense is epitomised in Adam’s accounts of Adalbert’s death; at one moment he describes Adalbert dying deluded and unrepentant, but just a few passages later he provides another vision of Adalbert’s final moments in which he appears as a good and repentant man, who had enriched his church.131 Adam does not merely present Adalbert himself as paradoxical, but assesses his reign in terms of such contradictions. Thus when wished to praise Adalbert, he tells us that he was loved by the poor and humble, but despised by the rich. Conversely when he wished to criticise Adalbert’s follies, he complained that the tithes meant for widows and orphans went instead to bandits and prostitutes, and that Adalbert impoverished his church to gain the service of rich men. Such juxtapositions continue throughout the book, intensifying towards the end when Adam develops the image of Adalbert as an inversion of his former self, dabbling with the sorcery he had once condemned, and abandoning the truth to listen to fables.132 Adam’s decision to deal with his subject in such a manner undoubtedly reflects something of the divisions and controversies created by Adalbert’s reign. Adam makes it clear that Adalbert was a man of extremes, but he leaves room for his audience to find their own interpretation within his work, he does not try to provide a definitive analysis of Adalbert’s reign. It may be that such an approach was the only one acceptable to all of HamburgBremen’s clergy. Scholars have been charmed by Adam’s account of Adalbert’s reign, and Stephen Jaeger summed up the appeal of Adam’s work well when he wrote that, ‘it is the peculiar gift of Adam of Bremen that he fills conventional schemata and categories 131 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 lxv (64), lxix (68) 132

ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 ii (2), xxiv(23), xlix (48), lxii(6l).

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of judgement with life. He is not ‘original’ in the modern sense, but the topoi and conventions with which he operates are imposed on a reality that is observed, experienced, and above all felt.’133 Few scholars turn down the opportunity to quote, or at least paraphrase Adam when describing Adalbert’s reign.134 He seems to capture the essence of events in a way which cannot be surpassed, and we can attribute this to his use of such basic and enduring categories of thought. The contrasts between masculine and feminine, civilized and barbaric, rich and poor are as compelling and apparently self-explanatory as ever; even if we know that the actual concepts underlying these terms remain shifting and contradictory. Yet we must be careful about adopting Adam’s imagery too enthusiastically. If the history he wrote was emotive and entertaining, this was at least in part a means of pursuing his aims. Adam was writing with a serious purpose; not only was he dealing with the legacy of a controversial figure, he was also looking to the future. Setting out Adalbert’s reigns in such extreme terms allowed Adam to illustrate both what a good bishop ought to do, and what he should not.135 But it also allowed him to present his vision of Hamburg-Bremen’s past and future in terms which were at once innocuous and compelling. Adam barely acknowledges that he is doing anything but presenting his audience with a series of self-evident truths. Yet as surely as pagans were wicked and widows were vulnerable, Adam’s audience was led to a certain understanding of what Hamburg-Bremen and its bishops should be.

133 JAEGER, Stephen C. The origins of courtliness: civilizing trends and the formation

of courtly ideals, 939-1210. Philadelphia : University of Pennsylvania Press, 1985. p.69

134 For example, JOHNSON, Edgar N. Adalbert of Hamburg-Bremen: A Politician of the Eleventh Century. Speculum, 9 (2), 1934, p.147-179; BISSON, Thomas N. Princely Nobility in an Age of Ambition. In: (ed.) DUGGAN, Anne J. Nobles

and nobility in medieval Europe : concepts, origins, transformations. Woodbridge, Suffolk: Boydell Press, 2000. p.105 135 GARIPZANOV, 2011, p.13-15; SCIOR, op cit., p.55

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Weakness Both Rimbert and Adam consistently appeal to a set of virtues and traits which can be loosely categorised under the heading of ‘weakness’. This is exemplified by Rimbert’s efforts to paint Ansgar as a lifelong martyr, by accentuating Ansgar’s suffering throughout his work. The poor, the alien, the widow and the orphan are all regular characters in both works, providing opportunities for Adam and Rimbert’s protagonists to demonstrate such virtues as charity and humility, both through their dedication towards these groups and affection felt by these groups towards them.136 Two levels of analysis can be distinguished here. Insofar as we are dealing with the authors’ exploitation of established categories the issue is fairly straightforward. Ansgar, or at least Rimbert, is empowered by Ansgar’s suffering precisely to the extent that the self-renunciation expressed by his suffering is esteemed by his audience. Thus Rimbert relates Ansgar’s suffering not only to that of the martyrs, but also to that of Christ. In his use of Isaiah forty-nine Rimbert made Ansgar the subject of a prophecy more commonly associated with the Messiah.137 Rimbert develops this image when he describes a vision in which Ansgar accompanies Christ on the night of the crucifixion, using his own body to shield him from the beatings he received.138 The more closely Ansgar could be shown to imitate such models of Christian virtue, the more seriously his legacy had to be taken. Thus Ansgar’s weakness and suffering could legitimise Rimbert’s claims. To the extent that Rimbert’s description of Ansgar’s weakness persuaded his audience to see the world differently, it can be described as an act of power. The same approach can be taken to attempts by Adam and Rimbert to portray their heroes as humble and charitable through their relations with the poor and the weak. Such dealings were often framed in biblical terms and furthered their author’s argument by appealing to established 136

For example, RIMBERT, op cit., c.3, 16, 17, 29, 35, 42; ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 xxx (32), xli(43), xliv (46), lxiii (65), Book 2 lxiii(6l), Book 3 xxiv(23), Book 4 xxxi (30)

137 NORTH, Christopher R. The Suffering Servant in Deutero-Isaiah: An Historical and Critical Study. London: Oxford University Press, 1956. p.1, 23-27 138 RIMBERT, op cit., c.29

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norms. In all this we are not so far from Nietzsche’s assertion that the virtues of weakness, ‘the slave morality’ as he labelled it, were a means to power for those who lacked more overt means.139 Nor is this analysis qualitatively different from the suggestion that Adam and Rimbert pursued their aims by exploiting their audience’s assumptions about literature and genre, or women and barbarians. All this is to interpret power in terms of what Bourdieu called cultural or symbolic capital.140 But such an analysis operates only at the level of language and categorisation. At such a level it is hard to escape Foucault’s dictum that ‘power is everywhere’ for language entails interpretation, and interpretation implies power.141 Yet unless we assume that language bears no relation to reality at all, we can explore this issue of weakness on another level. One advantage of attempting to do so is that it provides a healthy reminder of the limits of power. For while almost anything can legitimately analysed in terms of power, such an analysis, however comprehensive, can never be complete. We might say that Adam of Bremen’s preoccupation with viticulture was an expression of the dominant ideas about what of it meant to be Christian and civilized current in his day, but a fuller analysis would also we need to note that he probably enjoyed drinking wine.142 All this is to say that when we when hear of Ansgar’s suffering or Adalbert’s charity, it is worth remembering that there really existed suffering and charity, in all their complexity, independent of labels attached to them and their integration into strategies of power. But we can go further than this. For many of the virtues which Adam and Rimbert appealed to, cynically or otherwise, suggest not just the absence of power, but its opposite. We are 139 LUKES, Steven. Power: a Radical View. Basingstoke : Palgrave Macmillan, 2005 2nd ed. p.132, 133 140 SCOTT, John. Power. Cambridge : Polity, 2001. p.13 141

FOUCAULT, Michel. The History of Sexuality, Volume One. (trans.) HURLEY, Robert. New York: Random House, 1978. p.93; SEDERBERG, Peter C. The

Politics of Meaning : Power and Explanation in the Construction of Social Reality. Tucson: University of Arizona Press, c1984. p. x, 2 142 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 1 i (1), Book 2 lxix (67), Book 3 xxxvii (36), Book 4 xxxix(38); JOHNSON, op cit., p.152, 153

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not here concerned with cultural trappings of charity and self denial; the diet, the mannerisms, the sackcloth and ashes through which he holy man indicates his sanctity to his audience. Nor are we concerned with the ‘smoke of spices and the glittering of lights and the resounding of deep sonorous voices’ which Adalbert introduced to his cathedral to evoke the majesty of God as he appeared on Mount Sinai.143 Instead we are interested with the non-rational moments and relations which these categories try to indicate; which lurk somewhere beneath the layers of categorisation and language which obscure them even as they try to describe them. The kind of suspension or failure of categories inherent wonder as described by Descartes and Spinoza.144 The subject is barely within the realms of historical discourse, so only two approaches to this vast subject will be noted here. Perhaps most the familiar to historians is Rudolf Otto’s description of the numinous. In his description of the Mysterium Tremendum he tried envisage a sense of holiness isolated from any system of morality. For him this was the sense evoked at Sinai, and the unifying element in all religions. His theme was the weird and uncanny, a sense of mystery and awe and an Old Testament fear of God. Crucially, he described this sense as non-rational and as momentarily leading the person away from the self. Although he described this numinous feeling as having a power of sorts, he insisted that it was only after the feeling had passed that this power could be schematized and integrated into existing systems of knowledge.145 Something similar can be found in Søren Kierkegaard’s writings on virtue, although their positions were by no means the same. He argued that the virtues of faith and love were fundamentally absurd in their ideal forms, placing the individual into a relation in which power and knowledge played no part.146 Hence when Rimbert tells us of 143 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 xxvii (26). 144 GREENBLATT, Stephen. Marvelous possessions: the wonder of the new world. Oxford: Clarendon Press, 1991. p.20 145 OTTO, Rudolf. The Idea of the Holy. Translated by HARVEY, John W. London: Oxford University Press, 1924. p.xiii, 2, 6, 7, 12, 13, 20, 21, 25, 26, 30. 146 KIERKEGAARD, Søren. Fear and Trembling. Translated by HANNAY, Alistair. London: Penguin, 2005. p.16, 39, 40, 52, 61, 81, 91, 138-139,

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Ansgar’s living martyrdom and his ecstatic vision of heaven, or when Adam describes the humility of Lievizo and the charity of Adalbert, we are observing more than the integration of cultural norms into their arguments; we are observing a paradox. The authors call to mind moments which are antithetical to power and knowledge and invert them; turning Ansgar’s self-denial into a source of power, the incomprehensibility of his visions into a coercive knowledge, and Adalbert’s love for the weak into a legitimation of strength. For both Adam and Rimbert weakness could be a source of strength. The Patriarchate of Hamburg-Bremen This paper has approached Rimbert and Adam of Bremen as trying to do essentially the same thing in their works. Both used a variety of techniques to persuade their audiences to share their view of Hamburg-Bremen’s past and future. Adam seems to have been more widely read, and yet Rimbert’s work can be said to have been successful. While Adam and Rimbert approached their tasks slightly differently, the answer to this discrepancy is not to be found in the texts themselves. Hamburg-Bremen was not inevitable, far from it. It came into existence against the odds and in competition with many others who appeared far likelier to succeed. It succeeded, not so much because of the ambition and fortitude of its archbishops but because, at crucial moments in its history, circumstances outside of the archbishops’ control made the existence of an archbishop at Bremen appear plausible and even desirable to the kings and popes who could legitimise such a thing. In many ways Ansgar’s progress could not have been predicted. Were it not for the timely deaths of Leuderich of Bremen, Haligad of Verden, and Otgar of Mainz; for Ebo’s fall from grace in 834, Gunthar’s deposition in 863 and Gauzbert’s traumatic expulsion from Sweden in 845; or for the excruciating mess of Lothar II’s divorce case, it seems unlikely that Hamburg-Bremen would ever have existed outside the head of Ansgar and his small group of followers. In 845 Ansgar was the bankrupt partner in a mission that had lost any political relevance. With the destruction of the fort at Hamburg Ansgar lost his last means of support, and his only option was to begin claiming rights for himself and his notional diocese through

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forgeries and by annexing parts of the neighbouring dioceses. His visions of the ultimate triumph of his mission and his see must have appeared futile, if not ridiculous. In contrast, during Archbishop Adalbert’s lifetime and even afterwards the development of Hamburg-Bremen into a Patriarchate of the North must have appeared rather plausible. Adalbert was amongst the most powerful and ambitious men of his time, ‘man who had no superior among the high German clergy of his generation and knew that he had none.’147 A close advisor of both Henry III and Henry IV, his intense loyalty had allowed him to acquire increasing wealth and power for his archbishopric. As well as a steady stream of royal grants of land, he claimed secular lordship over most of the counties in his diocese and was able to acquire possession of the great monasteries of Lorsch and Corvey, although monks there resisted his rule.148 Adam writes that, ‘elated by his success in these affairs and because he beheld the pope and Caesar disposed to do his will, the metropolitan worked with great zeal to establish a patriarchate in Hamburg.’149 According to Adam, Adalbert was motivated out of concern that the Danish king might establish his own archdiocese, undermining Hamburg-Bremen’s claims over the north and, implicitly, its right to exist.150 Adam attributes Adalbert’s failure to three deaths; those of Leo IX and Henry III in 1054 and 1056, and Adalbert’s own demise in 1072. He tells us that both Henry III and Leo IX had already subscribed to Adalbert’s plan, and were only waiting on Adalbert’s consent to create his new patriarchate at the time of their deaths. Similarly, he presents Adalbert as spending his final years in anticipation of the fulfilment of all his desires through the favour of Henry IV.151 With the benefit of hindsight Adam could present Adalbert as tragically deluded, but there are reasons to be cautious about adopting this view. 147 JOHNSON, op cit., p.147. 148 JOHNSON, op cit., p.169; MOMMSEN, Theodor E., MORRISON Karl F. (trans.) Imperial lives and letters of the eleventh century, New York : Columbia University Press, 1962. p.140; LAPPENBERG, op cit., p.91, 92, 95. 149 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 xxxiii (32). 150 Ibid. 151 Ibid. and ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 lx (59), lxi (60).

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Adam was a complex and subtle writer and his statements must always be handled with care; he was more interested in providing meaningful interpretation than strictly accurate reports. Writing after the event, he was trying to account for Adalbert’s failures as a means of advising his successor. He picked out Adalbert’s vainglory and his obsession with the court as two of his greatest vices, and much of his description of Adalbert’s plans for the patriarchate was bound up with this moralising interpretation of Adalbert’s career. But Adam does allow us glimpses of how Adalbert’s plan for patriarchate may have appeared during his episcopate, before hindsight and changing circumstances required a re-evaluation of his ambitions. By taking these glimpses together with other evidence from Adalbert’s lifetime, and comparing his career to that of Ansgar and Diego Gelmírez of Santiago de Compostela, we can begin to see Adalbert’s as a real possibility, rather than as a symptom of Adalbert’s delusions.152 Adalbert was able to rely on royal and papal support for much of his career; Henry IV was willing to grant him the monasteries of Corvey and Lorsch despite personal reservations, and Adalbert was able to elicit papal letters confirming his authority over the north.153 Whether this support extended to his vision of a patriarchate is less clear. Certainly the Salian kings may have had reason to consider such an undertaking; an extension of Adalbert’s power was, in theory, an extension of their own.154 While the popes may have had fewer reasons to support Adalbert’s plans, neither did they have any insuperable objections to them; whatever Adalbert envisaged, it was not the great separatist church imagined by nineteenth century German scholars.155 Yet it appears that Adalbert’s initial efforts to persuade Leo IX to support his plan were graciously rebuffed. During his tour north of the Alps in 1053 Leo IX confirmed many of Adalbert’s claims; 152

For example, WEINFURTER, Stefan. The Salian Century. Main Currents in an Age of Transition. Translated by BOWLUS, Barbara M. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999. p. 128- 130

153 See footnote 148, LAPPENBERG, op cit., p.71-99

JOHNSON, op cit., p.158, 159; THOMPSON, James Westfall. Feudal Germany. Chicago : University of Chicago Press, 1928. p.413 155 JOHNSON, op cit., p.159 154

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he recognised his position as papal legate in the north and his right to ordain bishops within his vast missionary field, and he also granted him special dispensation to wear the Roman mitre and don the pallium on three additional feast days, including his birthday.156 But of the patriarchate there was no mention. We can usefully compare Leo IX’s response to Paschal II’s dealings with Diego Gelmírez of Santiago de Compostela. Diego was determined to have his diocese elevated to an archbishopric, but it took many years of campaigning before he was finally appointed as archbishop and papal legate on St. James’s Day 1120. In 1104 Paschal II had responded to his requests by allowing him to wear the pallium on certain occasions, and in 1115 he allowed him to wear the tunic and stole at non-liturgical occasions.157 In the case of Diego Gelmírez it is easy to interpret Paschal II’s response as a prelude to further concessions, as we know that Diego was ultimately successful. Given Adalbert’s ultimate failure, it is tempting to interpret Leo IX’s actions in the opposite way, as a indicating Leo’s opposition to Adalbert’s plan. But at the time neither gesture was anything like so definite. Both Adalbert and Diego were recognised as having a unique status, while the act of defining what this status actually meant was deferred. Adalbert himself seems to have believed his patriarchate was a practical possibility, and made plans accordingly. According to the Pseudo-Isidorean decretals a new patriarchate could be established, provided that an institution was required to coordinate a large number of missionary bishops at a great distance from Rome. With a growing number of bishops in Scandinavia HamburgBremen could easily be made to fit this definition; this had already been its raison d’être for two centuries. But Pseudo-Isidore also required that a patriarchate should have twelve suffragans. This seems to have been common knowledge in the twelfth century, and presented more of a problem.158 Adam tells us that Adalbert 156 LAPPENBERG, op cit., p.74 JOHNSON, op cit., p.160 FLETCHER, Richard A. Saint James’s Catapult: the Life and Times of Diego Gelmírez of Santiago de Compostela. Oxford: Clarendon Press, 1984. p.194-200. 158 JOHNSON, op cit., p.159; FUHRMANN, Horst. Provincia constat duodecim episcopatibus. Zum Patriarchatsplan Erzbischof Adalberts von 157

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planned to break up his existing suffragans to provide the requisite number. Writing a century later in the diocese of Oldenbourg, Helmold of Bosau described this is as an ‘absurd and witless’ act, but he also seems to suggest that this process was actually begun, as he laments that his own diocese was divided into three parts.159 References to Adalbert’s plans also exist in works from the monasteries of Corvey and Stablo, again suggesting that Adalbert’s plan existed outside of his own imagination.160 If nothing else, the group of courtiers gathered around Adalbert addressed him as ‘patriarch’, or so Adam claims.161 Adam makes this statement easy to dismiss, as he encloses it within a diatribe against the sycophants who gathered around Adalbert and the false promises they made to him. But Adam is writing in the tragic mode; he knows what will happen. While Adalbert was still alive, the words must have sounded different. It is tempting to compare Adalbert’s title of ‘patriarch’ amongst his followers with Ansgar’s title of ‘archbishop’ amongst his. Both were claiming titles in advance of being given them. But, at least at the beginning of his career, Adalbert did so from a position of strength; his resources were growing, his influence was increasing, he had reason to be optimistic. In contrast, Ansgar claimed the title of ‘archbishop’ from a position of weakness and desperation. Of the two, it was Adalbert who seemed likely to succeed and Ansgar who seemed likely to fail. Where do we fit Rimbert’s ‘Life of Ansgar’ and Adam’s ‘Deeds of the bishops of Hamburg-Bremen’ into this picture? Both were written after the deaths of their respective archbishops, and both can be seen as acts of power, insofar as they had the potential to reshape the world-view of their audiences. It is worth returning to the question of who these texts were for, and therefore how we ought to judge their success. Both Adam and Rimbert Hamburg-Bremen. Studia Gratiana, 11, 1967, p.389-404 HELMOLD OF BOSAU, Helmoldi presbyteri Bozoviensis Cronica Slavorum, In: (ed.) SCHMEIDLER, Bernhard, MGH, SRG 2nd edn., (1909); translated by TSCHAN, Francis Joseph. The chronicle of the Slavs by Helmold, priest of Bosau, New York: Octagon Books, 1935. Book 1, c.22. 160 JOHNSON, op cit., p.159 fn.3 161 ADAM OF BREMEN, op cit., Book 3 xxxix (38) 159

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undoubtedly had many different audiences in mind when they wrote their works, and ultimately gained many more which they did not anticipate. Yet the first audiences were the authors, the clergy at Bremen, and those closely associated with them; the monks at the Corbie and the new archbishop. With so few sources beyond these texts it is hard to gauge the success of these works within this small network, and so we are forced to rephrase the question in a way which leads us back towards the comparison of Ansgar and Adalbert; could Adalbert have existed without Rimbert? Or we could phrase the question slightly differently again and ask whether it is conceivable that Archbishop Unni would have travelled to Sweden as a missionary and died there, were it not for model established by Rimbert? To an extent Rimbert only continued the myth-making which had characterised so much of Ansgar’s career, but without his ‘Life of Ansgar’ there would be no Ansgar as he was remembered by Adam and so many other historians.162 He would be a figure like Gauzbert, Waldgar, or Ansfrid, to be mentioned in passing, if at all. Rimbert and Adam were not attempting to write with scholarly detachment, but to write a truth which they expected to have an impact. In their works the memory of Ansgar and others like him was a matter of how one viewed the world, and therefore a matter of how one acted. There were a very limited number of situations in which it mattered how outside figures like the king and pope saw Hamburg-Bremen. At crucial moments kings and popes could aid the ambitions of the archbishops, as they did in 864, or stall them, as they did to Adalbert’s plans for a patriarchate. But such moments were rare. Yet for the clergy of Hamburg-Bremen, knowing what Hamburg-Bremen was and what it stood for was a matter of profound urgency. Each day they had to enact what it meant to be a part of their church, for themselves and each other. They did so surrounded by the rites and monuments of dead archbishops, and in the face of periodic hostility by the Northmen, Saxon dukes and neighbouring clergy. The deaths of Ansgar and Adalbert brought great uncertainty. To describe the 162 RÖPCKE, Andreas. Pro Memoria Rimberti. In: (eds.) RÖPCKE, Andreas et al. Rimbert der Nachfolger Ansgars. Hamburg: EB-Verlag, 2000. p.30, 49, 50

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history Hamburg-Bremen to this audience was to give meaning to a large part of their day-to-day life. Put differently, the ‘Life of Ansgar’ and the ‘Deeds of the Archbishops of HamburgBremen’ provided a script for the clergy and archbishops of Hamburg-Bremen to perform. Thus we return to Adalbert’s madness. Most modern scholars have tended to use Adam’s hyperbole to dismiss Adalbert’s ambitions to create a patriarchate, seeing it as a symptom of his delusional ego.163 But to do so is to ignore an important aspect of power and to misunderstand one of the more striking characteristics of Hamburg-Bremen’s own history. It was not Ansgar that persuaded Louis the German and Nicholas I to recognise him as archbishop; political circumstances did that. But Ansgar may have persuaded himself. From the surviving evidence we have little reason to doubt Ansgar’s sense of mission. This self-belief, this synthesis of piety and ambition, allowed him to continue dreaming of an archdiocese of Hamburg when the prudent thing to do was to settle down as bishop of Bremen. His ambitions were unreasonable, and had he failed we might call him mad, if we called him anything at all. The term ‘madness’ is unhelpful in many ways, but does capture the psychological aspect of the issue. Hamburg-Bremen first existed in the minds of Ansgar and his small group of clergy, who then tried to enact this idea which they shared. Later on others, including various kings and popes, decided to join in with the performance, largely for reasons of their own. Enough people incorporated broadly similar ideas of Hamburg-Bremen into routines that historians generally agree that Hamburg-Bremen existed, and struggle to pinpoint the precise date on which it began. The Patriarchate of the North first existed in the mind of Adalbert and a rather larger group of clergy and hangers on, who began to act according to this notion and to take steps to persuade others to believe in it too. Unfortunately, after Adalbert’s death no one could be found to continue the performance and it was written off as a bad idea, most vocally by those who had been destined to have the worst parts had the performance continued for much longer. The key issue is belief. Ansgar stumbled across a brief moment in which 163 For example, WEINFURTER op cit., p. 128- 130

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his ideas could take hold in a wider audience, whereas Adalbert did not. Adam and Rimbert can be seen as trying to persuade their audience to see the world as they did. Their works would have many different audiences, but their first and most important audience was the small group of clergy required to maintain the social reality of Hamburg-Bremen by enacting in their day-today lives. On this basis Unni had died a missionary in Sweden, Adalbert could claim a patriarchate, and his successors would launch crusades around the Baltic. Conclusion Historians face the peculiar danger of knowing the outcome of events in advance, even if we’re not sure what actually happened. The challenge all too easily becomes one of making the outcome appear reasonable and comprehensible. But reality is neither reasonable nor comprehensible. Ultimately of course, all social reality is constructed at a distance from reality, and often in spite of it. It is a ‘construction in the face of chaos’ and ‘a shield against terror.’164 This is not to say that our constructions bear no relation to reality at all, merely that they will always be flawed to a greater or lesser extent. The best explanation can only ever be almost right, illuminating the problem from a number of perspectives, but never all of them. The development of HamburgBremen was unreasonable. To pick out any series of events or individuals is to make its past appear more comprehensible than it actually was. So much about Ansgar’s career was chaotic and unpredictable. But to suggest that the shape of Waldrada’s nose may have done more for Ansgar’s ambitions than all his efforts to be taken seriously seems flippant somehow, as if such a statement strays beyond the bounds of legitimate historical explanation. Yet there are reasonable grounds for making such claims. Time and again Ansgar benefited from the misfortune of his rivals and circumstances outside of his control. We might see Adalbert’s career as the inversion of this situation, with his relative strength being undermined by unforeseen setbacks like the the deaths of the Henry IV and Leo IX, and his own end before Henry 164

BERGER, Peter, LUCKMANN, Thomas. The Social Construction of Reality. A Treatise in the Sociolog y of Knowledge. London: Penguin, 1991. p.119, 121.

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IV’s struggles with the Gregory VII and the Saxon dukes made the case of a northern patriarchate more compelling. We can compare Adalbert to a figure like Gauzbert, whose claim to be the missionary archbishop of the Swedes might have been recognised if only he had survived until 864, when such an arrangement became politically desirable. As with so many arguments which draw upon the language of social constructionism, this paper is an argument against inevitability.165 I have argued that HamburgBremen was not destined to turn out like it did; Ansgar’s success was unreasonable, Adalbert’s failure unlikely. The sense of inevitability surrounding the development of Hamburg-Bremen was born with Ansgar and found its most compelling expression in the works of Rimbert and Adam of Bremen. The idea of Hamburg-Bremen as something natural and inevitable, which could be described and understood in reasonable terms, was their creation- it was not self-evident. Rimbert and Adam used a range of literary strategies to integrate their visions of Hamburg-Bremen into the dominant ideas of their times, tying their ideas into existing notions geography, literature, and the right order of the world. Even the weakness of Hamburg-Bremen and its saints was used to support these claims. These texts were and are acts of power insofar as they have the potential to alter how their audiences see the world. Explanation is a form of power, and to accept their arguments was to live in a different world.166 Yet in the first instance these texts were not directed at those outside the diocese; the kings and popes who could support it, or the many rivals who threatened to oppose it. Certainly the authors hoped to disseminate their claims as widely as possible, but in the first instance these texts were about how the archbishops and clergy of Hamburg-Bremen saw themselves. More than anyone else, it was the clergy of Hamburg-Bremen who needed to know what their diocese stood for. The idea of an archdiocese was no more natural or less ephemeral than the notion of a patriarchate. Both rested on beliefs which needed regular reaffirming, rehearsing and revision. It was on the basis 165 HACKING, Ian. The Social Construction of What? Cambridge: Harvard University Press, 1999. p.2, 6, 7, 12, 16, 19, 20, 38, 47. 166 SEDERBERG, op cit., p.x, 2..

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of such beliefs that Ansgar claimed his archdiocese and Adalbert claimed his patriarchate. Ansgar was no less mad than Adalbert. Both spent their careers pursuing visions of world which barely existed for anyone else. The only difference is that Ansgar’s vision, through an unlikely series of events, came to be accepted as fact. Abbreviations: MGH: Monumenta Germaniae Historica SRG Scriptores Rerum Germanicarum in Usum Scholarum Separatim Editi. PLAC Poetae Latini Aevi Carolini. PL: Patrologia Cursus Completus, Series Latina.

V The economic aspects of political power. A commentary to Egils saga, chapter 10

T

Santiago BARREIRO1

he relationship between wealth and political power is a major issue for the social sciences. It has received large amounts of attention, and yet it continues to fascinate (and puzzle) researchers. Studies of medieval Scandinavian societies are no exception to this, and there are plenty of works that either relate directly or touch on the subject. In a rather exceptional situation for the medieval studies, Icelandic literary sources are particularly useful for the study of the cultural and social aspects of this relationship. Most íslendingasögur2, the sagas in the Sturlunga compilation, and some sagas of ecclesiastic interest (excluding those of strongly hagiographic nature) are the most useful sources, given their verisimile style and plausible, worldly plots. But even some of 1 PhD Student at Universidad de Buenos Aires/CONICET. Email: [email protected] 2

The translation of the term to English has been a problematic issue, as neither the traditional “Family sagas” or the literal “Sagas of Icelanders” are precise. “Sagas about early Icelanders” is more accurate, as the sagas in this group tell about the first generations of settlers, covering the period c.870-1050, with few exceptions.

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the fornaldarsögur and Eddic poems might be highly relevant; Gautreks saga, Hávamál or Rígsþula, to name a few, provide insights into social norms which are of prime relevance for the historian. Legal and historical texts are also of primary utility, even if their depiction of social interaction is far sketchier compared to what is found in the sagas, and they have to be approached in a different way as they are not works of literature. Among the íslendingasögur, the early (c. 1220-1240) Egils saga Skalla-Grímssonar3 is often celebrated as one of the major works of the subgenre, and of medieval Icelandic literature in general. The impressive poetic skill of Egill and the authenticity of his poems, the depth and charm of its major characters, and the issue of authorship of the saga have attracted the attention of scholars for the last two centuries. In spite of this (or possibly because of this), Egla has not been subject to much detailed attention from a socioeconomic point of view. The saga provides a wealth of information on economic matters, especially on circulation, but to a lesser degree also on consumption and it even glimpses on production. By contrast, its ideological-political stance has been discussed in depth. Particular emphasis has been placed on the question on how the saga depicts the relationship between kings and subjects, and whether it is anti-monarchic or not. Nevertheless, these discussions do not go deeply into an analysis of how the saga links political power and economic activities. This seems at least partly to be the result of the way the saga has been read. A reading of Egla against the background of the konungasögur, and as a depiction of the political and cultural situation in early XIIIth century Iceland can be quite different of a reading of Egla in terms of a general illustration of a certain attitude, mentality or structure of a more widespread nature. Literary scholars will generally approach the problem in the first 3

Icelandic authors will be quoted by “PATRONYM, Name” instead of the more usual “Name PATRONYM” for the sake of uniformity. All references to Egils saga will be given in parenthesis in the main text, following the model “(Egils saga, chapter: pages)”. References correspond to NORDAL, Sigurður (ed.). Egils Saga Skalla-Grímssonar, Íslenzk Fornrit II. Reykjavík: Hið Íslenzka Fornritafélag, 1933. I will keep direct quotations to a minimum if possible, referring only to paragraphs where the vocabulary is particularely interesting or difficult to translate precisely.

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way, while the “anthropological” view (which is in fact quite often held by historians more than by professional antrhopologists) tends towards the second. Both are perfectly valid and useful approaches, and in fact they are most often complementary4. I will emphasize the second alternative in this text, as my goal is to use a specific story inside Egla to illustrate how medieval Icelanders imagined a realistic path a man can use wealth to acquire political power and political power to acquire wealth. In the conclusion, I will briefly comment on Egils saga as a literary piece wrtitten in a very specific context and associated with a specific group with clear political ambitions. The Economic aspects of Power: a brief theoretical survey The relationship between economic activity and political power is to be found, directly or indirectly, in almost all the major works of social science. It is of crucial importance to define very broad approaches to understand social change. For instance, traditional Marxism assumed that political power structures are determined ultimately by socioeconomic factors, where the French historical Annales school had often an approach based on the interrelation between factors with no single defining factor derived from Durkheim. These differences reflect larger issues, such as the precise meaning of “economy”, “politics” or “power” and their applicability to different contexts. I will assume that political power means the ability to have a certain will be obeyed by other people without the need to enforce it violently, even if the threat of violence is latent. This is akin to the Weberian notion of authority or domination (Herrschaft), and has the main advantage of being applicable to almost any kind of institutional or historical context. While the debates on the specific applicability and reach of political power have been important5, they generally involve some minimal agreement on 4

A good example of a literary approach that successfully combines more social elements is ANDERSSON, Theodore. Political Ambiguities: Egils saga Skallagrímssonar. In; ANDERSSON, Theodore. The Growth of the Medieval Icelandic Sagas. Ithaca and London: Cornell University Press, 2006.

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For a useful discussion of the main approaches, see the useful ISAACS, Stuart and SPARKS, Chris (eds.). Political Theorists in Context. London and New York:

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the basic element under discussion. The reach of the field “economy” is a more problematic topic, as there has been strong disagreement about its precise meaning and even about its existence for non-capitalist societies6. For those that mean that economy is ultimately the study of the allocation of scarce resources to different (and infinite) ends, as for instance a marginalist economist or an Anthrpological formalist, the economy can be analysed in every possible sociohistorical context without much problem using the same fundamental conceptual tools. On the other hand, those assuming that economy studies provisioning and it is not independent from institutional settings, will assume that economy as a separate field only applies to modern market societies and that the tools developed by modern economists are not useful to analyze non-capitalist institutions. The economic object thus defined is still recognizable in all societies, but it needs separate methods in different contexts; here we recognize the position held originally by Substantivists, and also by early historicist economists. More radical are certain culturalist approaches, which might well deny the validity of any type of economic analysis for some cultures and emphasize alterity. Lastly, we might understand economy as the study of the control and appropriation of resources and means by different groups in a specific setting of contradictory social relationships, without denying the validity of some of the analytical tools provided by classical economics7. This is broadly speaking how Routledge, 2004, and ISAACS, Stuart and SPARKS, Chris (eds.). Contemporary Political Theorists in Context. London and New York: Routledge, 2009; their discussion relies basically on philosophers and sociologists. A good overview of anthropological perspectives is KURTZ, Donald. Political Anthropolog y: Power And Paradigms. Boulder: Westview Press, 2001 6

Most introductions to Economic anthropology are useful as introduction to these different approaches, while introductions to Economics tend to blur diversity and prefer a more pragmatic approach. Especially useful, as it references both anthropological and economical schools, is CLIGGET, Lisa and WILK, Richard, Economies and Cultures: Foundations of Economic Anthropolog y. Boulder: Westview Press, 2007

7

This often requires the creation of concepts to understand the specific nature of different types of non-capitalist societies. But these are very often thought with reference (either by parallel or contrast) to the categories used to analyze capitalist

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Marxism (and other “political economy” schools) approached the problem8. Iceland in the thirteenth century was obviously different from a modern, industrial society based on the market. To name a few obvious differences, there was nothing like a state to protect fully the right of private property and contractual obligations, prices were not primarily determined by supply and demand but fixed by authority and custom, and the idea of labour as a commodity independent of the worker’s person did not yet develop. The problem is if we have to understand these differences as a matter of quantitative underdevelopment or as a matter of qualitative difference. This is reflected in an article by Gunnar Karlsson9 that echoes the long debate held between him and Helgi Thorláksson during the late seventies and early eighties in the Saga historical journal. One of the aspects discussed in that debate and directly echoed in the aforementioned article is the link between political and economic power in medieval Iceland, revealing how much of their different approaches derives in fact from opposed theoretical stances. Gunnar answered to Helgi’s substantivist (or as he calls the approach, raunhyggja “empiricism”), approach pointing out that the irrationalities in the behavior concerning livestock value displayed by medieval Icelandic farmers do not derive from a different mentality, but from lack of precise knowledge. He does therefore does not deny the validity of economic theory for premodern times, but links it to the degree of advance of each era in an evolutionary way. That is just an illustration of a common tension in approaches to the economy of pre-modern societies, commonwealth-era Iceland included. But up to a certain point, I think we face a false dilemma: we can assume both progress and qualitative difference if we adopt an approach which allows us to explain economies by Marx, which in turn closely resemble those of Classical economists. 8

These differing approaches in turn affect specific concepts in economic analysis. A good example is value theories. The different approaces to it (and his own proposal) can be found in GRAEBER, David. Toward An Anthropological Theory of Value: The False Coin of Our Own Dreams. New York: Palgrave, 2001

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KARLSSON, Gunnar. Um hagfræði íslenskra miðaldamanna : athugun á búfjárverði og búfjárleigu. Ný Saga 06, 1993, pp. 50-61

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how certain qualitative changes, which are taken for granted or assumed to derive from cultural patterns (of undisclosed origin), come instead from the main dynamics of the economic process. This is a position that echoes refined substantivist approaches10 and much of neo-Marxism, and has been carefully argued for by, for instance, Maurice Godelier11. Such approach is to a certain degree evolutionist. It is true that evolutionary approaches to economic problems do often wear the taint of the Eurocentric and rigid schemas of ninteenthcentury evolutionary thought, whose most influential exponent was Lewis Morgan12. But it is imperative to make a distinction between such an approach and modern explanations about social evolution. In our view, the main advantages of such approach is that they allow us to think of the economy as both a process of change and at the same time, as a culturally embedded function of society. Moreover, it allows us to better explain social change without recourse to teleological reasoning, one of the main problems with classical evolutionism and much orthodox Marxism. Moreover, this approach seems particularly fit for the conditions of commonwealth Iceland, as some of the most influential explanations of this type13 are concerned with socities on the verge of State formation, a problem that has recently been the focus of scholarly attention for our context14. 10 Expressed, for example, by Marshall Sahlins, Kåre Lunden, or even by the founder of the school, Karl Polanyi. 11 GODELIER, Maurice. The mental and the material. New York: Verso, 1996 12 I refer mainly to MORGAN, Lewis. Ancient Society. Chicago: Charles Kerr & Co., 1877. Other of his works, such as MORGAN, Lewis. Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family. Washington: Smithsonian Institution, 1871 have a more descriptive nature, and are indeed the basis of almost all anthropological work on kinship. 13 Such as SAHLINS, Marshall. Stone Age Economics. London: Routledge, 1974; EARLE, Timothy. How chiefs come to power. Stanford: Stanford University Press, 1997; SERVICE, Elman. Origins of the State and Civilization: The Process of Cultural Evolution. New York: W.W.Norton, 1975 14 JAKOBSSON, Sverrir. The Process of State Formation in Medieval Iceland, Viator 40 (2), 2009, pp. 151-170

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Egils saga, chapter 10: Þórólfr Kveld-Úlfsson makes a name for himself The tenth chapter of Egla is part of what scholars often call Þórólfs saga, a story arc that occupies the first third of the saga, and acts as a prequel (or even as prefiguratio) to the main narrative, centred on Egill, Þórólfr’s nephew15. The first part is often an illustration of the complex relationship between an expansive monarchy and local prominent men, often those with aristocratic backgrounds. A very recurrent theme in the sagas, it often centres around political communication and ritualized gestures16. In this chapter the focus is different, and centres in the material aspect, the provisioning and management of resources. Þórólfr acquired his main estate in northern Norway in the early chapter of the saga (Egils saga, IX: 24). He is the son of a prominent man, Kveld-Úlfr, who neither opposes nor supports king Haraldr hárfagri in his campaigns to unify Norway under his banner (Egils saga, V: 15). The acquisition of Þórólfr’s state has a particularly complex story. Originally it belonged to Bjǫrgólfr, a powerful, wealthy landowner (Egils saga, VII: 16-18). He had three sons, a legitimate one called Brýnjólfr and two others whom he had with what seems to be a concubine17, a commoner woman named Hildiríðr. Brýnjólfr inherits his father alone, and nothing of his inheritance is given to his two half-brothers. Brýnjólfr is granted status and the right to the collection of tribute from the Sami18 by the king, while his son Bárðr becomes a royal retainer 15 SAND SØRENSEN, Jan. Komposition og Værdiunivers i Egils saga, Gripla 4, 1980, pp. 260-272 16 PÁLSSON, Viðar 2010. Power and Political Communication. Feasting and Gift-Giving in Medieval Iceland. Unpublished PhD. dissertation. Berkeley: University of California, 2010. For a recent overview on the link between hospitality, feasting, gifts and friendship in medieval Iceland and Norway, see SIGURÐSSON, Jón Viðar. Den Vennlige Vikingen: Vennskapets Makt i Norge og på Island 900-1300. Oslo: Pax, 2010. 17 The legitimacy of Bjǫrgólfr´s union with Hildiríðr is a very interesting issue, and a major driving force in the narrative, as it sets the ultimate background to the clash between her sons and Þórólfr, which ultimately leads to his downfall. Further analyisis of this scene is to be found below in section 2. 18 The saga calls them Finns, a common name given to most speakers of Fennic

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(Egils saga, VIII: 19). At the same time, Þórólfr arrives at the court and becomes a retainer of the king, and a close ally to Bárðr. Both men are related also by kinship ties: Þórólfr’s great-grandfather and ancestor of the lineage of the Hrafnistumenn, Úlfr inn óargi, was also the great-grandfather of Bárðr’s mother Helga. The link is relatively weak, and requires a strong bilateral idea of kinship: the line to the common (male) ancestor involves a men and a woman for Þórólfr and two men and a woman for Bárðr. Bilateral kinship suggests a flexible use of kinship ties for social bonding and legitimation, providing a channel for strategic use of ties more than a rigid framework of obligations. Þórólfr and Bárðr become comrades in arms and they fight for the king in the last battle against men opposed to Haraldr’s ambition. It results in a sound victory, but Bárðr is wounded to death, so he asks the king permission to transfer his estates and the responsibilty over his wife and child to Þórólfr, “my fellow and kinsman” (félagi minn ok frændi. Egils saga, IX: 24). The king agrees, and by this procedure Þórólfr inherits Bárðr´s property and then marries his widow. He also acquires the right to extract tribute from the Sami that was held by both Brýnjólfr and Bárðr, as lendr menn (landholders) of the king. Upon departure to his newly acquired lands, the king grants him a fully equipped ship. Þórólfr organizes a large feast when he arrives, and invites many prominent farmers and other high-ranking men from the area, and he keeps a large retinue in his house. The saga says that the year (or season, ár) was good (Egils saga, IX: 26), and this hints towards the origin of the surplus needed to both maintain his retinue and organize the feast. At the end of the ninth chapter, Þórólfr obtains the inheritance from his father-in-law, a prominent man named Sigurðr. It is at this point that the chapter that concerns us begins (Egils saga, X: 27-28). Þórólfr organizes the tribute collecting expedition to the Sami lands. He gathers a large following for the expedition, which is probably to be associated with his success as a host and his role as a centre on redistributive network. The expedition successfully manages to collect a large amount of tribute, and languages.

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also to trade with the Sami. It is not said what he does with that wealth, but it is highly likely that he kept it as we are told that after coming back home he orders the construction of a magnificently equipped ship, which obviously requires large expense. It is also said he sends his men to fish and accumulate reserves of fish, seals and eggs in Halogaland. He is said to be very generous with gifts and holds feasts for the important men of the district. He keeps a retinue of one hundred19 free men in his farm; these are most likely beneficiaries of the feasts and generosity as much as the local leaders, even if they are political subordinates and lest important for the politically-driven saga narrative and therefore might be concealed (or just taken for granted) in the narrative. He is said to have made himself a powerful man, and to be often concerned with having ships and weapons. We therefore have these channels of wealth circulation that are managed by Þórólfr: 1. Tax collection in the name of the king. Þórólfr is here just an intermediary between the payers (the Sami) and the ultimate benefitiary (the king). It is very likely that this also implies that part of the payment is kept by the collector himself, at least to cover his expenses. 2. As a consequence of tax-collection, trade between Þórólfr and the Sami occurs; this benefits Þórólfr directly, as he acquires goods that can also be resold. Later in the saga, he sends one of his men to England with that purpose20. 3. Extraction of surplus value from the men of his own household as they work hunting and fishing. 4. The resources acquired are stocked; some also might be exchanged into other types of good or produced. This is not mentioned by the saga, but implied by need. Feasting required drinking alcohol, which needs grain and brewing; the saga does not mention how Þórólfr acquires this. 19 Probably a long hundred, meaning 120 men. 20 The historical account of Ohtere (Óttar), who told king Alfred the great about his homeland in Northern Norway, is remarkably similar. The account is to be found in SWEET, Henry (ed.). Kings Alfred´s Orosius. London: N. Thubner & Co, 1883. pp. 17-18.

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5. Distribution by feasting. Feasting induces sociability, which is in turn one of the reasons for the expansion of Þórólfr’s retinue, which enlarges the possibilities to acquire more goods.

Of the activities contributing to his wealth, it is important to distinguish two types. Fishing, sealing, egg-gathering and other implied activities (such as brewing or livestock raising) are direct production, where Þórólfr controls the labourers and therefore the product of their work. Trading and tax-collection are instead circulation activities in which the benefits are obtained by acting as a middle-man. In the case of trading it is important to note how important are personal ties for this trade: Þórólfr seems to be more successful as trading not because of any specific commercial knowledge, but because he has men he can trust, either to follow him and impress the Sami or to act in his name and trade abroad in England; only local trading, if it was important (the saga does not mention it), could have been managed directly by Þórólfr. Still, in such case, the benefit is as an intermediary between producers. In the case of the tribute collection, the king is extracting the Sami a value which he will not reciprocrate by any means, not even symbolic ones. This relationship is imbalanced and based ultimately on the threat of violence, which is the reason the size of Þórólfr’s retinue is so meaningful for the success of the operation. Þórólfr’s efforts to collect a large sum benefit him, but they benefit the king even more, even if the king does not have any risk or work to do once the collecting privilege is granted. Here production is one-sided, as the relationship is fundamentally an extractive one. The accumulation of resources is fundamental as stocking is a neccesary stage before distribution, and Þórólfr was obviously successful at it, which implies he was a good estate manager. It is a trait often mentioned in the saga in association with the men of his family. His father Kveld-Úlfr is said to be a good farm manager (Egils saga, I: 4), as is his brother Skalla-Grímr (Egils saga, XX: 50). His nephew and namesake dies leaving much accumulated wealth in his farm (Egils saga, LV: 147), and his other nephew, Egill, is also competent as a manager and very zealous about property

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(Egils saga, LVI: 151). Closing the cycle, consumption appears here in the politically meaningful form of feasts. Feasting is a type of redistribution which requires broad economic margins as it involves large expense. This makes it both an often exclusive and impressive social instance21, and is one of the key machines in the hand of the ambitious men who want to achieve power among men in many societies where competitive exchange provides a channel for social status. Limits to the Þórólfr’s ambitions It is hard to imagine a more straightforward description on the way rising into power is conceived in a saga and this looks like a model narrative. As we have seen, Þórólfr obtains wealth by diverse means, and translates those means into both political and military strength. In turn, this allows him to keep his central position unchallenged. But the saga shows where is the main limit to Þórólfr’s ambition: all his local splendour is both dangerous and powerless against the king’s will. The downfall of Þórólfr is illustrative in this aspect. When he arrived to the northern lands, Bárðr’s half-brothers approach him and reclaim part of the inheritance, which was denied to them in first place by Brýnjólfr (Egils saga, VII: 17-18). When they insist on the matter, Þórólfr’s answer is that they are not entitled to any inheritance, as her mother was bought by Bjǫrgólfr and taken forcefully; he is equating them to the sons of an enslaved concubine. They on the other hand insist the marriage was valid (Egils saga, IX: 26). Both views clash somewhat with the way the episode is told in the saga narrative, where the situation is described in ambiguous terms. Bjǫrgólfr saw their mother, Hildiríðr, when attending a feast, where her father, Hǫgni was also a guest. Hǫgni was a man of lowbirth family, but made himself wealthy, and rose to some prominence, at least enough to be hosted by men of higher birth. Bjǫrgólfr wished the girl, and he visits Hǫgni after the feast (Egils saga, VII: 16-17). The whole scene shows the fully contradictory 21 On the exclusivity of Feasting in medieval Iceland, see PÁLSSON, Viðar, Op. cit., Chapter 4.

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nature of relationships based on hospitality, akin to the logic of the gift, as it has to appear voluntary while its threatening aspects are at the same time concealed and evident for the parts involved. Bjǫrgólfr and his retinue appear in Hǫgni’s farm, in a mood that demands hospitality or risks aggression. Hǫgni, which is clearly the weaker part, hosts them. In this forcefully friendly ambient, Bjǫrgólfr asks Hǫgni for Hildiríðr, and the farmer concedes, and the guest pays for her. The scene masterfully shows the gap between what ideally happens in balanced reciprocal social activities and how real in fact can be the imbalance between parts. Yet it is interesting to note that Bjǫrgólfr at least keeps the forms; he had little material impediment to just kidnap and enslave Hildiríðr. Domination here is clear, so violence is never enacted; Hǫgni obviously understands his inferior position and concedes to Bjǫrgólfr’s higher power. The ambiguity of marriage arrangements including bridewealth, where both the potentially unsociable exchange of money in rather commercial terms and the highly sociable element of fictive kinship play a role at the same time is here present. For Þórólfr, all that happened was commerce, and Hildiríðr was bought, commodified and desocialized. For her sons, kinship by alliance happened instead, and this should rightfully lead to the right of inheritance derived from it: both are just partially right. But Þórólfr is more powerful beyond the arguments, so the sons concede. The sons of Hildiríðr react, and they start to defame Þórólfr in front of the king (Egils saga, XII: 29-30, XIV:37, XV: 37-38). Their agenda is clear: making Þórólfr seem to want political equality, or even superiority, with the king and to turn himself into a king. This is slander, but Haraldr is all too eager to listen to it, as his unifying process was just a recent (and therefore weak) achievement. And his contribution to Þórólfr’s rise was significant: he allowed Bárðr’s unconventional inheritance arrangement and gave Þórólfr the lucrative Sami trade. Þórólfr’s own growth dynamics clash against his own interests, as it fuels the suspicion of the king and the intrigues of the sons of Hildiríðr. In analytical terms, the saga shows the possibilities for personal upward social mobility, which are exemplified by both Þórólfr and earlier (in a less explicit form) by Hǫgni, and even by king Haraldr himself, in three different social strata. It also explains the limits and risks

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inherent to such expansion. Hǫgni has to face the overbearing attitude of Bjǫrgólfr, and Þórólfr has to endure the king, while the king has to worry about independent-minded men far from his control. But while it is clear in the presentation of the saga that the king is less than virtuous in his actions againt Þórólfr, Hǫgni’s fate is not seen in specially symphatetic terms. We can detect here the particular agenda of the saga author, who is all too ready to give the benefit of doubt to higborn men, a position much in line with what is often held for Heimsrkingla, and which reinforces the impression that it shares an author (in Snorri) with Egils saga. Yet, Þórólfr main weakness cannot be reduced to the fact that he is involved in a political network. Other big landowners manage to deal with the kings successfully, even while they act against his wishes: A good example in the saga is Þórir, the landowner who openly hosts Þórólfr’s nephew, Egill, against the explicit will of the royal couple (Haraldr´s son Eíríkr and his wife, queen Gunnhildr) and still manages to not only remain unharmed, but keep his position. The same can be said about his son, Egill’s friend Arinbjǫrn, who successfully manages to keep his links with the both the monarch and Egill, who are mutually hostile. But it should be noted that both Þórir and Arinbjǫrn are landowners before entering into agreements with the king. Þórólfr is weak precisely because his position is dependant on the benefits given to him by the king: he is not a power of his own. It is a structural dependence, with strong economic overtones, as the cycle of growth which enabled Þórólfr to achieve a prominent social stature is grounded on its initial steps on royal grants. In other words, Þórólfr could not have managed to achieve his position without the help of Haraldr, and the king obviously knows this. At the crucial moment in the narrative when he has to chose between loyalty to the king and his position as a lord in the north, he chooses the second (Egils saga XVI: 3940). Unsurprisingly, it is not long till the king decides to dismantle Þórólfr powerbase and he succeeds easily, and Þórólfr is finally killed in a futile attempt to resist.

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Which type of leadership? The context of production and its effect on the narrative Social scientists have developed a number of ideal types to describe political leadership. Before achieving Statehood (under diverse political forms), societies might fall into diverse types of personalized leadership of more or less stable nature. Chiefdoms and big man systems are two frequently mentioned models, and these appear often in discussions about medieval Iceland. The main difference between a chief and a big man is that the power of the chief is taken for granted as long as he is able to manage it properly; chiefs are often perceived as inherently superior to common men. Big men, on the other hand, need to constantly (re-)produce their preminence, usually by manipulating personal links and resources into their own benefits. In economic terms, a chief is often the centre of an established redistributive network, while a big man establishes the same network himself. And while the chief reciprocates his subjects often in symbolic ways, the big man needs to reciprocate his allies in much more material terms. Big men are therefore more unstable leaders, as their position depends heavily on their ability to acquire resources and enlarge their network of influence. This same broadening base places a constantly heavier burden on the need to distribute goods to the big man; and this usually makes his network collapse and his prominence fade away22. This is but a contrast between ideal types and reality is by definition never fully represented by this schematic division. Medieval Scandinavian leaders are rather more complicated and nuanced than this simple dual model; moreover, the ideology sustaining them varied considerably over time, as Hanne Monclair has shown in great detail23. Somewhere else24, I studied 22 The classic account for this contrast is SAHLINS, Marshall. Poor Man, Rich Man, Big-man, Chief: Political Types in Melanesia and Polynesia, Comparative Studies in Society and History 05 (03), 1963, pp. 285-303. This is but an ideal type and reality is by definition never fully represented by this schematic division. 23 MONCLAIR, Hanne. Lederskapsideologi på Island i det trettende århundret. En analyse av gavegivning, g jestebud og lederfremtoning i islandsk sagamateriale. Oslo: Universitet i Oslo, 2003 24 BARREIRO, Santiago. Big Men During the Icelandic Commonwealth.

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Icelandic politically-ambitious men from both the íslendingasögur and the sagas in Sturlunga saga, and concluded that while they show many traits of Big Men, an ideology which gives some families (from the highest layer of the free farmers upwards) an innate prominence that separates them from commoners both limits the group where leading men can appear, and at the same time provides a frame for a stabilization of such power and the creation of chiefdoms. Þórólfr is described in a similar way to other prominent ambitious men. He has a prominent lineage (his father is presented as of coming from a lineage of landowners. Egils saga, I:4) which often provides chiefs with a certain aura of authority, but also the entrepeneurship and good management of give-and-take that characterizes big men. Þórólfr behaves in a way which is close to what the Icelandic heads of a ríki (“domain”) do in the Sturlung age. Snorri, or whoever was the author of Egla, did not need to look much further to see ambitious men trying to fund themselves into a position of power by managing men and force, land and wealth. Þórólfr’s concern with weapons might mirror an militarization of power which was on the increas in the Sturlung age, in which fortresses and permanent armed retinues seem to have appeared in Iceland for the first time. How accurate is the picture for the time of action in the ninth century is impossible to tell, but this is not of much importance here. What matters in our view is that the depiction of Þórólfr’s raise should have been higly verisimile for the public of the saga in the first half of the XIIIth century in Iceland; and might have well functioned as a self-legitimation tool by the men behind its composition, showing how men like them (and possibly his own ancestors) were endowed inherently to lead and dominate other men. The picture here is complicated by the raise of a monarchic power that attempts to consolidate territorial power beyond his strictly personal reach by way of assigning men functions to act in his name, such as tribute-collection or administration of estates; in other words, by promoting statehood25. King Haraldr Unpublished MA dissertation. Reykjavík: Háskóli Íslands, 2010. 25 I follow BAGGE, Sverre. From Viking Stronghold to Christian Kingdom: State Formation in Norway, c. 900-1350. Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 2010.

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represents this in the narrative, and it is not complicated to see this as mirroring the efforts of Hákon Hákonarsson at the time of composition of the saga. The relationship between kings and their subordinates, especially those of high ranking is a recurrent concern for the sagas, and its most obvious manifestation is the konungasögur. This literary interest mirrors a concern for kings and kingship that existed in the social life of Icelandic elite families during the first half of the XIIIth century, and which disappeared once Iceland became part of a the Norwegian kingdom26. Egla is often seen as closely related to the konungasögur due to this shared interest. The point here is that personal ambitions in such kingdom depend always on the good will on the king; and if the king’s will is turned against one, there is little chance to keep power. Greed might be a topic here, and Egla can be well-read as criticism of personal greed, but in my view this applies more to Egils saga proper than to Þórólfs saga; Egill is openly greedy and far from a role model, but his uncle is seen under a more virtuous light. Instead, a possibility here is that the story has a moral against kings who heed lesser men against the (inalienable) rights of highborn men. But also might be read as a warning against those highborn men that mingle too much with commoners (and with their daughters) and complicate the transfer of their patrimony to the next generations, and the reproduction of their social group. Therefore, Þórólfr’s story might not only serve as an illustration of the way to achieve political power by economic means; it might also be a declaration of political identity for an elite that should not forget that kings stand above them and commoners below.

Cf. ORNING, Hans Jacob. Unpredictability and Presence: Norwegian Kingship in the High Middle Ages. Leiden: Brill, 2008. 26 JAKOBSSON, Ármann. Í leit að konungi: Konungsmynd íslenskra konungasagna. Reykjavík: Háskólaútgafan, 1997, pp. 288-304.

VI Representação guerreira e disputas da realeza norueguesa na Era Viking: análises dos conflitos políticos no Heimskringla

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presente capítulo tem como objetivo fazer uma breve análise das representações guerreiras e os discursos acerca da realeza norueguesa na literatura escandinava do século XIII, em específico a compilação conhecida como Heimskringla. Nosso intuito é apontar diferentes perspectivas ideológicas nas representações sobre a realeza norueguesa em um período que compreende os séculos IX à XI, parte da chamada Era Viking, um recorte cronológico próprio para o medievo es1

Mestrando em História dos Espaços pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), linha de pesquisa “Cultura, Poder e Representações Espaciais”, onde desenvolve a pesquisa Guerra e Identidade: um estudo da marcialidade no Heimskringla sob orientação da Profa. Dra. Maria Emilia Monteiro Porto. Membro do Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (NEVE – www.nevevikings. tk) E-mail para contato: [email protected] e [email protected].

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candinavo. A idéia é alternarmos reis que estão sendo julgados pelas narrativas medievais pela sua colaboração ou conflitos sobre os quais reinam. Estaremos, assim, sempre na balança entre uma cooperação legal das assembléias e os deveres guerreiros que essas chefias assumem. O primeiro dos reis a ser analisado, Haraldr Hárfagri, ou Cabelos-belos (como pode ser traduzido), foi um rei da região das Upplönds. Ao que tudo indica, ele foi filho do rei Hálfdan Svarta, ou Negro. A Haralds saga Hárfagra conta que com a morte do seu pai, ele teve de retomar suas antigas posses, que passaram a ser assediadas pelos reis vizinhos. Em aliança com as chefias do Norte, ele passa a assolar os diversos reinos menores, e a tomar as terras de vários distritos e regiões do Sul e Leste da Noruega. Ele domina o território norueguês após a Batalha de Hafrsfjórðr. Haraldr reinou nos fins do século IX à 931/932. Passaremos então para Hákon Góði, ou Hákon, o Bom, rei norueguês que reinou na Noruega durante 933/34 – 960, filho de Haraldr Haraldr Hárfagri. Foi criado na corte do rei Æthelstan (daí o fato dele ser conhecido como Aðalsteinsfóstri, filho de criação de Æthelstan). Em troca da devolução das terras, o rei Hákon consegue o apoio dos seus súditos, que apoiaram sua solicitação do trono. Seu reinado foi marcado por querelas com os seus sobrinhos e cunhada, os filhos de Eiríkr Blóðøx e Gunnhild Ozursdóttir, que eram apoiados pela realeza dinamarquesa. Passaremos então para Magnús inn Góði, ou o Bom, um rei que assumiu o trono ainda jovem, sendo acompanhado por um conselho de homens composto pela facção que previamente havia lutado contra seu pai, o santo Óláfr. Ele reinou efetivamente entre 1035 – 1047, após a morte de Knútr inn Ríki (o Grande), reinado esse que foi marcado por acordos de paz com Hörðaknútr da Dinamarca e conflitos com Sveinn Úlfsson, que assume a liderança da Dinamarca depois da morte de Hörðaknútr. Haraldr Harðraða, ou o Tirano, foi um rei norueguês que reinou entre 1046 e 1066 (chegando a dividir o trono com seu sobrinho, Magnús Óláfsson). Segundo a Haralds saga Sigurðarssonar, ele era irmão de santo Óláfr e o acompanhou na Batalha de Stiklarstaðir, onde foram derrotados. Haraldr fugiu para o Oriente e integrou a guarda Varegue, vigiando as rotas marítimas bizantinas. Ele dividiu o reino da Noruega com o seu sobrinho, o rei Magnús inn Góði, enquanto se dedica ao

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saque viking, principalmente na Dinamarca. Em uma aliança com o jarl Tóstig, ele se aproveitou dos momentos de instabilidade entre os ingleses e tentou dominar a Inglaterra, vindo a morrer na batalha da ponte de Stamford. Monarquias Norueguesas – equilíbrio entre a guerra e as leis Houve um momento de expansão e germinamento do reino da Noruega com Haraldr Hárfagri: a Haralds saga Hárfagra conta-nos como este monarca fora desafiado por uma mulher que incitava os homens a se tornarem grandes, como o foram os rei Gorm da Dinamarca e Eiríkr da Suécia. A saga transmite o cenário político da unificação e centralização dos reinos escandinavos. Levado por esse desafio, o rei Haraldr Hárfagri decidiu não cortar o cabelo (recebendo a alcunha de Lúfa, ou Emaranhado) até que tivesse subjugado toda a Noruega, no século IX2. ... muita gratidão pela sua resposta – diz ele. Ela lembra-me muitas coisas, que, para mim, agora parece estranho que eu não tenha pensado antes, e novamente ele disse: esse voto eu faço, e isso devo perante Deus. Aquele que me fez e que tudo mantém: nunca devo cortar meus cabelos e nem penteá-los, antes que eu tome posse de toda a Noruega com suas taxas, impostos e administrá-la-ei, ou morrerei tentando. Por essa fala, o chefe Guthormr agradeceu muito e falou que é tarefa do rei cumprir sua palavra (Haralds saga Hárfagra, 4)3. 2 O pesquisador Claus Krag afirma que a consolidação da Noruega como reino só realmente acontece durante o século XI, principalmente com o fortalecimento do cristianismo, que oferece aparatos burocráticos e administrativos que são suficientes para a sua solidificação. O rei Haraldr Hárfagri realmente iniciou algum processo de conquista dos distritos e reinos vizinhos aos seus, mas essa conquista foi efêmera, em escala muito menor aquela relatada na saga e fragmentada com a divisão dessas posses entre seus filhos (KRAG, Claus. The Creation of Norway. In: BRINK, Stefan; PRICE, Neil. The Viking World. Nova York: Routledge, 2008, p. 645-651). 3

“... mikla þökk fyrir orð sín – hon hefir mint mik þeira hluta, segir hann, er mér þykkir nú undarligt, er ek hefi eigi fyrr hugleitt, ok enn mælti hann: þess strengi ek heit, ok því skýt ek til guðs, þess er mik skóp ok öllu ræðr, at aldri skal skera hár mitt né kemba, fyrr en ek hefi eignazk allan Nóreg með sköttum ok skyldum ok forráði, en deyja at öðrum kosti. Þessi orð þakkaði honum mjök Guthormr

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Durante suas campanhas, torna-se atrativo servir ao rei. Além disso, os jarlar e os hersir são apontados da seguinte maneira: um jarl para cada distrito, administrando a lei, justiça e a coleta de taxas, mantendo para si um terço dessa coleta e das penas aplicadas, para a sua manutenção. Devem ser indicados ainda quatro ou mais hersar nos distritos e cada hersir deve ter 20 marcas de renda. Os jarlar devem entregar ao rei sessenta guerreiros e os hersar vinte (Haralds saga Hárfagra, 6). Ao fornecer boa parte do contingente guerreiro ao rei Haraldr, essas lideranças guerreiras são atraídas cada vez mais por esses benefícios. Haraldr Hárfagri também oferece aos reis a opção de se incorporarem aos seus jarlar, como acontece com o rei Hrollaug, de quem a saga descreve a submissão em um episódio envolvendo a entrega de seu próprio assento ao rei, sendo o título entregue enquanto Haraldr lhe arma com espada e escudo (Haralds saga Hárfagra, 8). Na ocasião da batalha de Sóskel, o jarl Rognvalðr lhe havia jurado fidelidade: Rögnvaldr, o jarl de Mœr, filho de Eystein Glumra, no verão então se fez homem (aliado) do rei Haraldr. O rei Haraldr o colocou como chefe de dois distritos, Mœr do Norte e Raumsdál, e conseguiu para ele competente apoio de ambos os magnatas e bóndi, assim como força naval para defender a terra de hostilidades futuras. Ele era chamado Rögnvaldr inn Ríki (o Poderoso), bem como o Rico, e dizem os homens, que ambas as duas [denominações] eram autênticas. O rei Haraldr foi ancorar em Throndheim, no inverno (Haralds saga Hárfagra, 10)4.

Para que Haraldr Hárfagri possa dar prosseguimento a sua empreitada, ele submete os outros reis à sua autoridade e toma o direito dos antigos proprietários às suas terras, o Óðal5. A hertogi ok let þat vera konungligt verk at efna orð sín”, tradução nossa. 4

“Rögnvaldr Mœra-jarl, sonr Eysteins glumru, hafði þá of sumarit görzk maðr Haraldz konungs. Haraldr konungr setti hann höfdingja yfir þessi ii. fylki, Norð-Mœei ok Raumsdal, ok fekk honum þar styrk til bæði af ríkismönnum ok bóndum, svá ok skipakost at verja landit fyrir ófriði. Hann var kallaðr Rögnvaldr inn ríki eða inn ráðsvinni, ok segja menn, at hvártveggja væri sannefni. Haraldr konungr var um vetrinn aptir í Þrándheimi”, tradução nossa.

5

O “Óðal” é uma extensão de terra possuída e administrada por uma família, não podendo ser vendida ou dividida sem o consentimento de toda a porção masculina da mesma (CHRISTIANSEN, 2002, p. 48). É curioso notar como a

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campanha de unificação da Noruega, como narrada na saga, causa a emigração de vários desses proprietários para novas terras, que fogem para novas terras entre elas Helsingjaland, Jamtaland, ilhas Órcades e Faroés, Shetlands e Islândia. Durante os conflitos guerreiros os homens só têm duas opções: se aliar ao rei Haraldr ou fugir para colonizar outros lugares. Entre as várias lideranças guerreiras que se opuseram ao seu projeto de unificação da Noruega, queremos destacar Sölvi Klofi, quem oferece a principal resistência à sua campanha de organizar os outros reis a batalhar juntos contra Haraldr Hárfagri. Sölvi Klofi era filho de Húnþjófr, rei do distrito de Mœr; ambos são descritos como grandes homens-da-guerra, mikli hermenn (Haralds saga Hárfagra, 10). Ele sobreviveu a uma batalha contra o rei Haraldr, nela perdendo seu pai e tio, passando a atacar os domínios de Haraldr, pilhando e matando seus homens, seja em expedições vikings ou conspirando junto a outros reis. É o caso da batalha de Sólskel, quando Sölvi Klofi apela para que o rei Auðbjorn, do distrito de Fjorðr, se junte a ele, onde é preferível morrer em batalha que virar escravo de um homem de nascimento não superior ao deles. Segue sua fala: Todos nós avistamos claramente o bom resultado, que nos levantemos todos contra o rei Haraldr; nós vamos ter força suficiente, e o destino vai determinar a vitória, ou outra opção, e isso não é aceitável pelos homens, que não são menores em porte (posição social), se tornarem escravos de Haraldr. Meu pai seguiu sua escolha, melhor cair em batalha em seu reino do que se tornar inferior ao rei Haraldr (Haralds saga Hárfagra, 11)6.

defesa da terra continuava sendo feita pelos fazendeiros e os possuidores de terra, logo o rei precisava do seu apoio permanente, sendo o jarl um mediador entre esses gêneros sociais. 6

“Öllum er oss sjá kostr nú auðsær, at vér rísim allir upp móti Haraldi konungi; munu vér þá hafa gnógan styrk, ok mun þá auðna ráða sigri, en hitt er ella, ok er þat engi kostr þeim mönnum, er eigi eru ótígnari at nafni, en Haraldr, at gerask þrællar hans. Þótti föður mínum betri sá kostr, at falla í bardaga í konungdómi sínum, en gerask undirmaðr Haraldz konungs”, tradução nossa. Em BOULHOSA, 2005b, encontramos uma tradução do mesmo discurso de Sölvi Klofi, presente na Egils saga Skallagrímssonar, onde as ações de Haraldr Hárfagri atingem todos os homens transformando-os em escravos, e não apenas os homens “bem-nascidos”.

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Nessa mesma batalha temos a descrição de um rei que luta furioso, junto com os seus guardas, que abordam os navios inimigos, agindo ensandecidos em uma onda de fúria e ira (óðr ok reiðr). O rei e sua guarda avançaram com tanto ímpeto que os guerreiros da embarcação que guardara o rei Arnviðr tiveram de recuar e se compactar atrás da linha do mastro: eles morreram acuados pelas investidas desses guerreiros. A saga constrói representações de atos marciais nas quais o rei nunca age sozinho, ainda que ele seja o personagem central dessa narrativa: a cada passo das suas batalhas, os guerreiros que faleceram e sobreviveram foram citados. Os guerreiros não batalham sozinhos, mas atuam em circunstâncias nas quais a ação de seus líderes é fundamental. Haraldr Hárfagri é um formidável líder guerreiro, na medida em que reúne um corpo guerreiro em torno de si, oferecendo meios e ganhos que possam compensar a sua aliança, a qual se fortalece na perseguição e violação de antigos costumes. Depois da batalha de Hafrsfjorðr, onde ele consolida seu poder, inicia-se o conflito entre seus filhos e os guerreiros a quem ele anteriormente havia concedido benefícios. Concluido seu projeto de unificação, a saga nos fala de um período de instabilidade entre seus subordinados e de fraticídio entre seus filhos, que é fruto dos seus excessos e da falta de moderação dos atos reais. Há outra aprovação que deve ser buscada pelo rei que não a valentia, mas que está diretamente ligada à honra, que é a da Þing e das leis que a circulam. Na Noruega, temos notícia de pelo menos quatro diferentes sistemas legais de cunho regionais: a Gulaþing, que acontecia em Gulen, nas redondezas do fiorde de Sogne. Tal localidade e os distritos que dela participavam (principalmente da Noruega Ocidental) sugerem que essa assembleia teve iniciativa advinda do rei e não da população que vivia nessa região. Frostaþing, por outro lado, era uma assembléia formada por uma região mais homogênea, em torno do fiorde de Throndheim, onde a população pode tê-la organizado por si. A Noruega Oriental dispunha da Heiðsævisþing, organizada pelo rei Óláfr, o santo, uma assembleia que cobria as áreas internas, principalmente Eidsvoll. Borgarþing, por fim, foi a mais nova das assembleias, pode ter sido criada como resultado direto da divisão da diocese de Oslo, e abrangia os dois lados do fiorde de Oslo. Os encontros

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aconteciam em Sarpsborg7. As leis dessas assembleias foram escritas entre os séculos XI e XII, e apenas os textos das duas primeiras supramencionadas foram legados à posteridade, figurando entre as mais antigas da Escandinávia. Quais os conteúdos dessas leis, já que aquilo a que temos acesso é tardio, situado no século XIII, e mesmo as suas primeiras formas escritas se deram no fim do período Viking? O que pode se supor da dinâmica entre oralidade e escrita para essas sociedades escandinavas? Duas posições principais podem ser detectadas. A primeira é que a lei escrita é baseada em uma lei oral existente ou numa tentativa de codificar costumes existentes, os quais na prática, entretanto, podem implicar em um acréscimo de legislação nova. A segunda opinião considera a lei escrita como expressão dos interesses do(s) legislador(es) na época em que a lei foi promulgada enquanto os costumes existentes são irrelevantes, seja porque eles eram considerados como garantidos, sendo desnecessários a sua escrita, seja porque eles eram deliberadamente abolidos8 (BAGGE, 2010, p. 181 – 182).

Nenhuma das posições acima elimina a possibilidade de um expressivo conjunto de leis orais distribuidas em assembléias regionais na Escandinávia. Existem algumas pistas sobre os indícios mais antigos das leis escandinavas preservadas nos primeiros códigos legais escritos, como as Grágás da Islândia, a Hednalagen da Suécia e a Witherlogh da Dinamarca. O Baugatal, uma seção legal presente nas Grágás (versões mais antigas preservadas em manuscritos da metade do século XIII, o Konungasbók e o Staðarhólsbók), são as leis que regulavam a conduta e o dever das 7 _____________. From Viking Stronghold to Christian Kingdom – state formation in Norway, c.900-1350. Copenhagen: Museum Trusculanum Press, 2010, p. 179-180. 8 “Two main positions can be detected. The first is that the written law is based on an already existing oral law or is an attempt to codify existing custom, which in practice, however, may imply a certain amount of new legislation. The second opinion regards the written law as the expression of the interests of the legislator(s) at the time the law was issued, whereas existing customs are irrelevant, either because they are taken from granted and it is thus unnecessary to write them down, or because they are deliberately abolished”, tradução nossa.

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compensações em caso de lesões físicas. Essa seção fora escrita com palavras mais arcaicas que o corpo escrito no geral, levandonos a crer que seja uma seção anterior à formulação desse código legal9. A Hednalagen encontra no seu título a pista de sua antiguidade, podendo ser traduzida como “Lei Pagã”: ela discute e regula a einvígi, o processo de disputas por lutas, sendo algumas de suas frases construídas, também, de forma relativamente arcaica para um manuscrito do século XIII, que é onde ela se encontra. A Witherlogh, lei que penaliza a hirð do rei, é tomada como pertencente ao período de Knútr, o grande (rei que dominou, Dinamarca, Noruega e Inglaterra e partes da Suécia no início do século XI, de 1018/1019 até 1035). A posterior codificação e edição desse material nos códices dos séculos XII-XIV acabam por adotar parte da cultura continental (leis, jurisprudência e conhecimento legal) para um corpo novo de leis, conseguindo ainda manter o antigo conteúdo, que previamente fora preservado oralmente. Na Hákonar saga Góða, 11, encontramos uma breve descrição da disposição do rei Hákon, de sua ênfase nas leis, de como concebe as leis de Gulaþing e Frostaþing com a ajuda de seus súditos, mas mantém as leis de Heiðsævis10, que foram concebidas previamente por Halfdan, o Negro11. A paz era abundante para ambos os fazendeiros e mercadores: ninguém transgredia as propriedades alheias. A saga conta sobre certo Ketil Jamti que junto ao seu povo funda um distrito chamado Jämtland. Seu neto funda outro distrito chamado Helsingjaland; o povo desse distrito 9

Peter Foote, em seu trabalho “Reflections on Landabrigðisþáttr and Rekaþáttr in Grágás”, de 1987, analisa outras sessões do mesmo código legal, concluindo que pelo menos mais duas sessões são anteriores ao manuscrito, provavelmente do século XI ou situados dentro do período pré-cristão! (BRINK, 2008, p. 27).

10 No original como Gulaþingslög, Frostaþingslög e Heiðsævislög. 11 O próprio Hálfdan Svarta está representado no Heimskringla como um rei legislador: “Hálfdan konungr var vitr maðr til jafnaðar ok setti lög ok helt sjálfr, ok lét aðra halda, svá at eigi mætti ofsi steypa lögunum; hann gerði ok sjálfr saktal ok skipaði bótum hverjum eptir sínum burð ok metorðum” “O rei Hálfdan foi homem sábio, verdadeiro e justo, instaurou leis, as manteve, deixou outros observando-as, para que não crescesse forte a tirania onde se fazem as leis; ele mesmo acertou as penalidades e compensações segundo o nascimento e a distinção de cada um” (Hálfdanar saga Svarta, 7), tradução nossa.

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se identificavam como suecos (svíar). No reinado de Hákon, o povo de Jämtland passa a fazer trocas e a amizade cresce junto às chefias de ambos os distritos (Helsingjaland e Jämtaland), até que eles se submetem ao rei norueguês. Nessa ocasião percebe-se que os dois distritos estão separados, um pertencente ao território norueguês e outro ao território sueco, mas que a submissão ao poder real norueguês é justificada pelo parentesco entre os fundadores dos respectivos distritos. Referências a Jämtland como parte da Noruega são mais tardias que esse episódio relatado na Hákonar saga Góða. Sabemos que as fronteiras com a Suécia sempre foram limitadas pela Kjöl, uma cadeia de montanhas que corta esses territórios, do extremo Norte em Finnmark até o Sul, próximo à região do lago Vaenir, e que vários distritos passam para o domínio de ambos os lados. É dito na saga que muitas pessoas fugiram para esses distritos durante as campanhas de Haraldr Cabelos-belos, que sabemos ter sido um período de elevado êxodo a partir da Noruega. O que nos interessa é a atitude do rei Hákon (atestada nas fontes), que estabeleceu leis para esses povos (talvez no mesmo sentido da Gulaþing e Frostaþing). Curiosamente foram diferentes leis para diferentes povos.. Em nenhum momento as sagas se posicionam contra a instituição real12, mas ao mesmo tempo que tornam Haraldr Hárfagri um modelo de grande rei, celebrado pelas suas conquistas, também apontam negativamente a sua perseguição e ganância. Na saga do rei Hákon Góði (Hákonar saga Goða), podemos ver como as atitudes de Haraldr são reprovadas pelos seus súditos: em certa situação o rei Hákon leva uma proposta para a Frostaþing para aceitem o cristianismo. Os fazendeiros não esconderam sua revolta pelas propostas apresentadas: todos deveriam se deixar batizar e acreditar em apenas um Deus e em Cristo, filho de Maria. Eles deveriam ainda abster-se de todos os sacrifícios feitos aos deuses pagãos, jejuar e manter santo o sétimo dia da semana. Na descrição da saga, as propostas do rei Hákon 12 Theodore M. Andersson escreveu um capítulo fazendo comparações diversas entre algumas Konungasögur e a Egils saga Skallagrímssonar, focando principalmente nas relações políticas da Noruega e Islândia e a recepção dessas sagas pelo público ouvinte (ANDERSSON, 2006, p. 102-118).

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foram reprovadas por todos na assembléia: 1) ... aquilo era falta de caráter do rei Hákon, como de seu pai e da sua família, que eram desagradáveis com a comida, mesmo que eles fossem generosos com o ouro13 (Hákonar saga Góða, 15). 2) Mas se você tomou tal discurso com grande rispidez, trazendo querela e tirania14 contra nós, então nos tornamos um bœndr fracamente disposto, colocando-nos todos contra ti e levaremos conosco alguns outros chefes que sustentem isso por nós, por outro lado, a liberdade de nossa crença prontamente apoiaremos15 (Hákonar saga Góða, 15).

É impossível dissociar a imagem de Hákon da imagem de Haraldr Cabelos-belos. O impacto das mudanças políticas feitas pelo seu pai, durante as suas campanhas de dominação que privaram os diversos fazendeiros de seus direitos as propriedades agrárias, fizeram com quem os seus súditos o questionaram em relação as suas ambições de poder. Hákon é um dos três reis missionários da Noruega. Apesar de ter falhado em instalar o cristianismo na Noruega16, sua força e contingência deriva parcialmente dessa popularidade, ao contrário de Óláfr Tryggvason e Óláfr Haraldson. Tanto Tryggvason quanto Haraldson tiveram uma vida de vikings e guerreiros, e puderam 13 “...þat var skaplöstr Hákonar konungs ok föður hans ok þeira frænda, at þeir váru illir af mat, svá þótt þeir væri mildir af gulli” tradução nossa. 14 Grifos nossos. 15 “En ef þér vilið þetta mál taka með svá mikilli freku, at deila afli ok ofríki við oss, þá höfum vér bœndr gört ráð várt, at skiljask allir við þik ok taka oss annan höfðingja, þann er oss haldi til þess, at vér megim í frelsi hafa þann átrúnað, sem vér viljum” tradução nossa. 16 O Ágrip af Noregkonungasögum, diz que o rei Hákon se arrepende, na ocasião da sua morte, de ter vivido em diversos aspectos, como um pagão, merecendo um enterro pagão (pede a Deus que lhe aceite no pós-vida). A Historia Norwegiæ diz que ele preferiu um reino terrestre efêmero, a um reino celeste eterno, se tornando um apóstata e idólatra. Essas fontes apontam para o fato de que Hákon não conseguiu implantar o cristianismo e que teve de se submeter as assembléias para governar.

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desde cedo acumular homens, armas e riquezas. Hákon baseou-se em promessas, no apoio de seu pai adotivo e de seu aliado mais sólido, o jarl Sigurðr. Hákon parece ser o rei ideal, ainda mais do que os dois Óláfr, os principais reis missionários. Óláfr Tryggvason tinha parte do carisma de Hákon, mas ele era acusado por sua crueldade. Óláfr, o Santo, foi um grande herói, se tornando santo em torno do fim da sua vida, mas ele foi teimoso em [não] apaziguar as chefias e foi deposto por seu próprio povo17 (BAGGE, 2004, p. 205).

Hákon participava de um jogo de poderes necessários à sua fixação entre as lideranças norueguesas. Ele vencera uma disputa contra o seu irmão, Eiríkr Blóðøx, quando prometera a devolução das terras que seu pai havia tomado. O mesmo rei foi ameaçado de perder os apoios recebidos ao tentar impor o cristianismo entre os noruegueses. A relação apresentada nesse caso, entre cristianismo e paganismo, pode ser vista como uma disputa de espaços – a própria Noruega, onde as fronteiras colidem na autoridade das chefias regionais. Hákon, caso triunfasse em instaurar o cristianismo, seria autoridade única, inquestionável como promotor da nova religião, enquanto os chefes pagãos teriam sua autoridade enfraquecida por serem muitos. O que se manifestou na Frostaþing foi a demanda de poderes paralelos ao do rei, que por sua vez deveria provar-lhes ser fiel, participando dos ritos pagãos, como beber o sangue e comer carne de cavalo sacrificado. Mais que isso, a Frostaþing queria o sacrifício porque seu pai assim o fazia, além de ser o dever de todo chefe tomar parte desse rito. Essa comparação entre as sagas que diz respeito às atitudes entre pai e filho pode nos informar muito sobre a instituição real e as relações marciais: enquanto Haraldr Hárfagri unificou várias regiões em torno de seus poderes e distribuiu a administração 17 “Hakon seems to be the ideal king, more so than the two Olavs, the main missionary king. Olav Tryggvason has some of Hakon’s charisma but is blamed for his cruelty. St Olav is a great hero, becoming a saint towards the end of his life, but is too stubborn to placate the chieftains and is deposed by his own people”, tradução nossa.

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delas entre sues seguidores, Hákon Góði teve que negociar com seus súditos para o aceitarem como líder e correu o risco de ser rejeitado. Posteriormente, se não acatasse as decisões da assembleia, provavelmente enfrentaria um período turbulento de conflitos. Seu pai se arriscara numa empreitada de conquistas, para as quais não negociou com a assembleia, composta pelos bændr e os homens-livres em geral, mas precisou reposicionar todo corpo administrativo, redimensionando os poderes dos antigos reis para os novos jarlar e hersir. Quando terminou seu projeto, ele não possuia forças suficientes para impedir um confronto interno entre os seus filhos e os administradores que havia designado18. Hákon Góði devolveu os antigos direitos referentes à posse de terra e implementou um sistema de recrutamento e defesa chamado leiðangr. No entanto, a dependência do suporte legal disposta na saga pode obscurecer o seu caráter bélico, sendo necessário a introdução da figura de um velho mentor (advindo da época de seu pai). Se por um lado os reis e as chefias podem ser desafiados nas assembleias, no conflito eles devem ser firmes; a noção geral de chefia guerreira está metamorfoseada aqui sob a figura do bando, representadas no Heimskringla e correm o risco de serem irredutíveis a elas mesmas. Hákon, em dúvida se deveria fugir dos inimigos em momentos antes da batalha de Fræðaberg, precisou ser admoestado por um velho guerreiro, que deve ensinar ao rei o verdadeiro papel de um líder: Eu estive em algumas batalhas com o rei Haraldr, vosso pai; ele estava lutando algumas vezes contra muitas hostes, algumas vezes contra poucas; ele sempre obteve vitória; eu nunca o ouvi procurar um conselho, que seus seguidores saibam quando fugir. Rei, nós devemos, e não você, controlar esse saber [o de fugir], nisso nos parece termos um líder vivaz; você deveria ter, e têm, nosso apoio (Hákonar saga Góða, 23)19. 18 O sucessor de Haraldr Hárfagri foi seu filho, Eiríkr Blóðøx. 19 “Var ek í nökkurum orrostum með Haraldi konungi, feðr yðrum, barðisk hann stundum við meira liði, stundum við minna; hafði hann jafnan sigr; aldri heyrða ek hann leita þess ráðs, at vinir hans skyldu kenna honum at flýja. Munum vér ok eigi þér þat ráð kenna, konungr, þvíat vér þykkjumk eiga höfðingla röskvan; þer skuluð ok eiga trausta fylgð af oss”, tradução nossa.

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Esse é um velho guerreiro irredutível, de fato. Podemos notar nas sagas a coexistência entre o que Gilles Deleuze e Felix Guattari costumam chamar de Nomadismo e Estado, encapsulados nesse pequeno momento entre o rei Hákon e esse Egil Ullserk (Camisa-de-algodão)20. O rei Hákon faz parte de uma monarquia que tenta cada vez mais estabilizar e burocratizar seus poderes, uma monarquia que vai se tornar cristã e adquirir feições similares ao feudalismo da Europa Central (mudanças que não se completam na Era Viking21). Hákon, como primeiro rei cristão, já poderia anunciar nas narrativas as mudanças que viriam para a centralização do poder e a burocratização do Estado; entretanto, ele não pode escapar aos mecanismos guerreiros nos quais baseia seus próprios poderes. É sintomático que a morte de Egil Ullserk seja similar à morte de Hákon Góði: “Por isso eu [esperei] por um tempo impacientemente, pois essa paz foi muito extensa, que eu fosse morrer de velhice em minha palha (cama); porém eu prefiro cair em batalha e seguir meu líder; sei que agora deve ser esse o caso” (Hákonar saga Góða, 23)22. 20 “Os descendentes de Héracles, Aquiles, depois Ajax, têm ainda força suficiente para afirmar sua independência frente a Agamenon, o homem do velho Estado, mas nada podem contra Ulisses, o nascente homem do Estado moderno, o primeiro homem do Estado moderno. E é Ulisses quem herda as armas de Aquiles, para modificar-lhes o uso, submetê-las ao direito de Estado, não Ajax, condenado pela deusa a quem desafiou, contra quem pecou” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 16 – 17). 21 Sverre Bagge (2010, p. 379 – 387) argumenta que apesar das transformações que começam a ocorrer em relação a organização das monarquias norueguesas de 900 em diante, as transformações necessárias no campo dos corpos guerreiros, legais e religiosos, só vão estar concluídas no período de guerra civil entre 1130 – 1240. No campo guerreiro, nós temos a continuidade de um sistema baseado no recrutamento do povo, complementado por uma elite guerreira, baseada na infantaria e não na cavalaria, como acontece na Europa Central, onde a Cavalaria se torna uma elite guerreira profissional. A mudança religiosa e o fortalecimento da igreja é responsável pela organização da burocracia que contribui para a centralização do poder monárquico e das riquezas em terra, além de oferecer novos modelos políticos para os reis, principalmente no campo legal, onde o direito romano que compete com os antigos sistemas legais regionais. 22 “þat óttuðumk ek um hríð, er friðr þessi inn mikli var, at ek mynda verða ellidauðr inni á pallstrám mínum; en ek vilda heldr falla í orrostu ok fylgja

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Egil morre em batalha e é enterrado em um barco, junto as suas armas e aos seus companheiros guerreiros. De maneira parecida, preparando-se para a batalha de Fitjar (norte de Stórð), o rei veste sua cota-de-malha, embainha sua espada Kvernbítr (moinho-mordedor), coloca seu elmo brilhante na cabeça, uma alabarda na mão e o escudo ao seu lado, se posicionando junto aos seus guardas e fazendeiros apenas para assumir um maior risco durante o conflito, quando o rei joga fora sua armadura no começo da batalha e um dos seus poetas joga um capuz sobre o rei para que seu elmo não chame atenção; abandonando até mesmo seu escudo, ele usa sua espada com ambas as mãos enquanto responde aos chamados dos inimigos e é alvo de uma flecha que vem a lhe matar no fim da batalha (não sem antes, claro, afugentar seus inimigos). No poema elegíaco Hakonarmál encontramos o líder desfrutando a alegria da batalha junto aos guerreiros que lhe juraram aliança: “Se despiu de suas proteções,/atirando ao campo sua armadura,/senhor dos valorosos,/pronto para lutar apropriadamente./Divertiu(-se) com os chefes jurados,/a terra deveria proteger/o senhor disposto,/pôs-se embaixo do elmo dourado”23 (Hakonarmál, 4). O rei Hákon foi enterrado apenas com seu equipamento guerreiro, sendo a glória conservada pelo poema, sua única riqueza que sobrevive após sua morte. Fizemos uma rápida análise de duas sagas do Heimskringla; nelas o rei Haraldr Hárfagri é uma figura conquistadora, abusiva e impiedosa, enquanto seu filho, Hákon Góði, reina pressionado pelos seus súditos. Ambos não possuem nenhuma autoridade que não seja a negociação com seus seguidores, Haraldr com seus guerreiros e Hákon com seus súditos (ainda que eles não atinjam extremos, paralelarmente ambos são reis guerreiros e legisladores; o que ocorre é a exacerbação dessas facetas em cada representação). A maneira como eles conduzem essas negociações é matéria de julgamento nas sagas: o primeiro de maneira negativa e o segundo de maneira positiva. A bondade de Hákon diz respeito justamente aos seus ajustes com o povo sobre höfðingja mínum; kann nú vera, at svá megi verða”, tradução nossa. 23 “Hrauzk ór hervôðum,/hratt á völl brynju/vísi verðungar,/áðr til vígs tœki./ Lék við ljóðmögu,/skyldi land verja/gramr enn glaðværi,/stóð und gollhjalmi”, tradução nossa.

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o qual reina: para nós há uma oposição de representações entre os dois reis, que se repete novamente nas Konungasögur de Magnús inn Góði (Magnúss saga ins Góða) e Haraldr Harðraða (Haralds saga Sigurðarssonar). Magnús inn Góði foi filho do Santo Óláfr e reinou após a revolta que culminou na Batalha de Stiklarstaðir, na qual prevalece a facção dos bændr, liderada por Kálfr Árnason, Þórir Hundr e Hárekr de Þjótt. Sendo aconselhado pelos vitoriosos dos conflitos que destronaram seu pai, o rei Magnús teve o suporte de sua madrasta, a rainha Ástríð, para ir reclamar o trono da Noruega. Sendo aceito na Eyraþing, em Kaupang (próximo a Níðaros), o rei Magnús seleciona sua hirð. Quando começa o recrutamento de homens e navios, percebemos sua boa aceitação. Seu opositor era o rei Sveinn Álfífuson, que para tentar reduzir a crescente influência do jovem rei Magnús, passa a recrutar em Hörðaland, mas por sua vez não consegue alcançar um bom número frente a popularidade de Magnús. Sem apoio para a sua empreitada guerreira, seu rival decide ir para a Dinamarca, onde divide o trono com o rei Hörðaknútr. À revelia daquilo que é relatado sobre sua infância, sabemos que um conselho formado pelos vencedores da Batalha de Stiklarstaðir fora formado para governar junto ao rei, que deveria ter entre dez e onze anos24; acreditamos que esse mesmo conselho tenha sido responsável pelo apoio ao trono, já que depois da morte do rei Óláfr, quem passara a governar, de fato, eram esses homens, entre eles os líderes da facção dos bændr (em especial Kálfr Árnason e Hárekr de Þjótt): “ [O fato de ] que o rei Magnús tomou o reino conforme a boa vontade popular. Inicialmente ele causou muita angústia, pois reinou tiranicamente por causa da sua juventude e a ganância dos conselheiros”25 (Ágrip af Norégskonungasögum, 35). Para se livrar dessa limitação, o rei Magnús entrega seu próprio machado e incita um certo Ásmundr Grankelsson a assassinar 24 Podemos encontrar referências à idade do rei Magnús na ocasião da sua chegada na Noruega no Ágrip af Norégskonungasögum e na Historia de Antiquitate Regum Norwagiensium. 25 “En Magnús konungr tók við ríki með alþýðu þokka of síðir, þóat með margs angri væri fyrst, þvíat hann hóf ríki sitt með harðræði fyr œsku sinnar sakar ok ágirndar róðuneytis” tradução nossa.

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Hárekr (o que mais tarde torna-se uma vendetta entre ambas as famílias envolvidas)26. Kálfr, temendo alguma retaliação por ter tomado parte na revolta contra o santo Óláfr, foge da Noruega, indo saquear a Escócia, Irlanda e as Hébridas27. Logo Magnús passa a perseguir todos os que haviam participado da mesma revolta, aliados à facção dos bændr: O rei Magnús tomou Vigg como sua, que era propriedade de Hrútr, e Kvistaðr, que era propriedade de Þorgeirr, bem como Egg com todas as finanças que previamente pertenciam a Kálfr, e muitas outras grandes propriedades ele tornou assentamentos reais, que até então haviam pertencido às hordas bóndi que lutara em Stiklarstaðir. Ele [assim] fez e impôs pesadas penalidades para os homens que lutaram contra o rei Óláfr naquela batalha, alguns ele expulsou da região e de alguns ele tomou compensação financeira; de outros ele cortou o gado. Assim os bœndr começaram a discutir e falar entre eles: que planeja esse rei, violando as leis em nós, as quais o rei Hákon, o Bom, apontara? Não deve ele saber, que nós nunca toleramos injustiça? Ele tomará o mesmo destino que seu pai e outros chefes, os quais nós levamos à morte, quando nos cansamos de tanto autoritarismo e ilegalidade28 (Magnúss saga ins Góða, 15).

26 Magnúss saga ins Góða, 12. 27 Na Magnúss saga ins Góða, 14, é dito que o rei Magnús começara a tratar Kálfr friamente e depois de uma visita a Stiklarstaðir, o rei passa a desconfiar que o algoz de seu pai fora o próprio Kálfr, daí a razão da fuga deste. 28 “Magnús konungr kastaði eigu sinni á Viggju, er Hrútr hafði att, ok Kviststaði, er Þorgeirr hafði átt, svá ok á Eggju ok á alt þat fé, er Kálfr átti eptir, ok margar aðrar stórar eignir lét hann þá falla í konungsgarð, þær er þeir höfðu átt, er fallit höfðu á Stiklarstöðum í bónda liði; hann gerði ok við marga þá menn stórar refsingar, er í þeiri orrostu höfðu verit í mót ólafi konungi, suma rak hann af landi ok af sumum tók hann stórfé; fyrir sumum lét hann bú höggva. Þá tóku bœndr at gera kurr ok mæltu sín í milli: hvat mun konungr þessi fyrir ætla. er hann brýty lög á oss, þau er setti Hákon konungr inn góði? Man hann eigi þat, at vér höfum jafnan eigi þolat vanréttit? Mun hann hafa farar föður sín eða annarra höfðingja þeira, er vér höfum af lífi tekit, þá er oss leiddisk ofsi þeira ok löglausa”, tradução nossa.

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A bondade de Magnús ocorre quando ambas as partes, o rei e os bændr, fazem suas pazes: ouviu conselhos de “homens sábios”, incluindo o escaldo Sigvatr Þórðarson, que através do poema Bersöglisvísur, o qual dava exemplos dos reinados de antigos reis noruegueses, convence o rei Magnús a agir pelas leis, o que ele faz escrevendo um código que fora mantido em Throndheim e é chamado Grágás; é essa ação que o faz popular entre os seus súditos. Depois da morte de Hörðaknútr, Magnús recruta os homens e prepara seus navios para tomar posse da Dinamarca, uma vez que os dois reis entraram em acordo como herdeiros mútuos em caso de morte do monarca vizinho. Sendo aceito formalmente na Dinamarca, mais tarde ele tem de lutar contra um súdito, Sveinn Úlfsson, neto de Sveinn Tvéskegg. Na batalha da Charneca de Hlýrskóg, onde o rei luta contra os Wends29, é dito que o rei joga fora sua armadura e empunha o machado do seu pai, Hel, com as duas mãos, golpeando enquanto avança à frente de todos os seus companheiros30. Na Batalha de Árós, o rei com sua guarda real, reforça a parede de escudos durante o conflito naval, para depois abordar o navio de Sveinn Úlfsson, movimento que lhe garante a vitória. Haraldr Harðraða segue uma ideia de realeza deveras diferente. Fugindo da Batalha de Stiklarstaðir, ele se torna chefe dos guardas de Garðaríki, servindo o rei Jarizleif. Depois de algum tempo, Haraldr ingressa como mercenário na guarda Varegue31, onde faz 29 Nome dado aos povos eslavos ocidentais, estes que viviam na costa sul do mar Báltico, entre o rio Oder e o Elba (HOLMAN, Katherine. The A to Z of The Vikings. Toronto: Scarecrown Press, 2003, p. 289). 30 Arnórr Jarlaskáld, diz no seu poema que o rei trocara sua proteção, por “orgulho em batalha” (Magnúss saga ins Góða, 28). 31 Podendo ser também chamados de “Varangos”. “A origem do termo “varangos” (em nórdico antigo Væringjar; em grego Βάραγγοι [Bárangói]) não é certa; uma forte possibilidade é que o termo designasse, no princípio, um grupo que jurara aliança e fidelidade. Os gregos do medievo, denominavam os bárbaros do norte, normalmente russos ou tauroscitas, sem uma distinção étnica clara e, a partir do séc. X, a palavra Βάραγγοι passa a ser aplicada em geral aos guerreiros mercenários vindo do norte, vindo da Escandinávia e Rússia” (MOOSBURGER, Théo de Borba. Os Varangos nas Sagas Islandesas. Brathair, v. 9, n. 1, 2009, p. 120).

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sua fortuna, saqueando as costas do Mediterrâneo. Seu sucesso na guarda se dá na maneira como ele luta, sempre apaixonadamente32, já que deveria um homem deveria vencer ou morrer na batalha. Seus seguidores mal esperavam o ímpeto régio: na saga, quando é narrado um cerco a uma cidade fortificada (não é especificada qual seria, nem sua localização), o rei decidiu esperar por uma oportunidade que lhe desse vantagem para a invasão, mas seus homens, frustrados pela ânsia da batalha, iniciaram o ataque sem o aval régio. Nessa ocasião, Hálldorr, guerreiro fiel ao rei, responde que nenhum homem iria segurar o estandarte de um rei tímido33. Além desses saques, Haraldr, como parte da guarda Varegue, tem acesso ao pólútasvarf, tesouro que os mercenários podiam tomar quando um imperador morria. Ao contrário de Magnús, que teve como base de seu reinado o acordo com os bóndi, Haraldr utilizou essas riquezas para financiar sua lealdade. Um acordo é arranjado para a divisão do reino da Noruega, na medida em que é dividido também o tesouro de Haraldr com Magnús34. Depois da morte de Magnús, o caráter imperioso de Haraldr Harðraða começa a ameaçar novamente os bóndi; ele prepara armadilhas para os seus opositores e negligencia acordos com seus súditos. O ápice da discórdia entre o poder dos fazendeiros e o poder real está representado pelo assassinato de Einar 32 A palavra é Yfir. 33 Haralds saga Sigurðarsonar, 9. 34 Haralds saga Sigurðarsonar, 21. Esse acordo é descrito nos capítulos 20 à 25, da seguinte maneira: no capítulo 20 sabemos dos atributos físicos e financeiros de Haraldr e de como ele possuía um tesouro majestoso que jamais havia sido visto na Noruega; no capítulo 21 o acordo é mediado entre o rei Magnús e Haraldr, com a proposta da divisão do território e do tesouro; no capítulo 22, Haraldr corta suas relações de amizade com Sveinn Úlfsson, este que sendo acusado de traição, tenta assassinar Haraldr enquanto acampavam juntos, tentativa frustrada pois Haraldr havia previsto tal ação; no capítulo 23, em um banquete, Magnús distribui presentes e armas aos homens de Haraldr, lhe entrega o título de rei (conservando para si, algumas prioridades e regalias) e eles partem em boas estimas um pelo outro; no capítulo 24, eles dividem o tesouro, mas Haraldr não deixa passar a oportunidade de declarar a sua superioridade financeira sobre Magnús; no capítulo 25, é narrado que começaram a haver adversidades entre os dois e que alguns homens maliciosos se apressaram em “plantar más ideias” entre os reis.

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Þambarskelfi e seu filho Einðriðr35. As ações do rei Haraldr eram contestadas por Einar, que representava os homens de Throndheim, homem que detinha um grande conhecimento das leis. Como consequência de sua oposição, Einar tinha de andar sempre com uma larga companhia de homens e em navios preparados para a guerra. Utilizando-se de um caso que envolvia um homem ligado a Einar, o rei o atrai para o salão real36, e sua companhia assassina pai e filho, fazendo com que os bóndi percam sua liderança. Ao contrário das revoltas que aconteceram anteriormente, Haraldr agia por premeditação: ele impedia os levantes contrários ao seu reinado atacando diretamente seus líderes e conseguindo acordos de paz com os chefes distritais37. Haraldr Harðraða é um rei representado sempre de maneira talentosa para o combate, dono de feitos marciais notáveis dentro das sagas. No entanto, sua relação com o poder real se dá da mesma maneira que Haraldr Hárfagri, numa cooptação dos poderes administrativos, com exceção do financiamento para a aquisição de seus poderes, enquanto Hárfagri conquistou-os a força, desafiando sua oposição, que em última instância acabava sendo morta. No combate, as descrições da vida de Haraldr são ricas e detalhadas. Em suma, a saga descreveu o rei como um guerreiro impetuoso e inteligente em batalha: “O rei Haraldr jamais fugiu da batalha, mas ele frequentemente procurou tomar precauções contra forças esmagadoras que ele havia de enfrentar” (Haralds saga Sigurðarsonar, 99)38. Em certo combate, protegido por um grupo confiável de guardas, o rei assistiu a cavalaria inglesa ser repelida pelos guerreiros noruegueses, que rechaçam as investidas inglesas com lanças plantadas no chão, enquanto um aliado que estava junto ao bando auxilia seus guerreiros a manter a posição. Parte da hoste que ficou para trás, por sua vez, marcha de maneira acelerada para reforçar a parede de escudos, que deveria prevalecer 35 Haralds saga Sigurðarsonar, 43 e 44. 36 Konungasgarð. 37 Nesse caso em particular, seu cunhado, Finn Árnason, promete ajuda em troca do perdão de Kálfr Árnason, antigo líder dos bóndi que fugira do rei Magnús. 38 “Haraldr konungr flýði aldrigi ór orrostu, en opt leitaði hann sér farboða fyrir ofrefli liðs, er hann átti við at eiga”, tradução nossa.

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frente aos ataques daqueles “homens orgulhosos em seus cavalos armadurados”39. No dia anterior, desafiado dentro das paredes de York, Haraldr debate com seus homens se deveria avançar contra o inimigo e abreviar o conflito apesar da desvantagem numérica ou recuar para junto de seus barcos (esta a última ideia dada por seu aliado Tostig Godwinsson, irmão e inimigo do rei inglês). Ao retornar, ele contaria com as fileiras de maneira integral, ou seja, os homens estariam bem armados e protegidos pelos barcos. Haraldr Harðraða, após refletir sobre o tema, decidiu enviar mensageiros, convocado a hoste que ficou protegendo os barcos noruegueses nessa invasão ao reino inglês, enquanto aqueles que estavam em York iriam se dirigir para o que ficou conhecido como a Batalha da Ponte Stamford (1066). Subitamente, parte da parede de escudos falha, e o rei avança para compensar a lacuna. Tomado por um frenesi guerreiro40, ele avança sobre os inimigos, golpeando com ambas as mãos; nenhum escudo ou armadura aguentava tais golpes. Lutando freneticamente, o rei tomba por uma flecha inglesa, seus reforços chegam cansados, lutam com igual êxtase apenas para tombarem exaustos ou pelos golpes inimigos que miram em suas arruinadas armaduras, pois em sua loucura, eles esquecem de sua própria proteção com seus escudos. Quando perguntados por rendição, eles bradam que deveriam morrer com seu chefe, tombando em batalha após a queda do estandarte real. Nessa breve descrição das situações que ocorrem e precedem a Batalha da Ponte de Stamford, podemos observar a execução da marcialidade, o exercício guerreiro, bélico, parte integrante da vida desses homens, que se expressam dentro de uma miríade de relações e símbolos diversos: a recusa em recuar, quando isso se apresenta como opção mais segura, a aparente imobilidade de uma parede de escudos, que é, no entanto, movida pelas hostes auxiliares de Tostig Godwinsson, ou pelo rei, que avança furioso, repondo o guerreiro ausente (há uma mobilidade, mesmo na imobilidade) ou os guerreiros que acompanham seu rei, tombando em batalha, negando a rendição. Em ambas as sagas são relatados milagres e intervenções do 39 Como Haraldr chama os guerreiros de Harold Godwinsson. 40 O termo aqui utilizado é “Óðr”, indicando loucura.

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santo Óláfr: sabemos que o conhecimento desses milagres se espalhou por toda Escandinávia41, sendo um dos motivos de que Magnús fora aceito na Dinamarca. Após a batalha da Charneca de Hlýrskóg, com a benção do Santo Óláfr, doze homens passaram a aplicar curativos nos guerreiros, salvando a vida dos feridos; no mesmo capítulo é declarado que Magnús não pode ser vencido em combate, pois seu próprio pai o protegia no combate42. Haraldr é solto de seu cativeiro por um milagre, pois havia uma capela na mesma rua em que ele estava preso e uma mulher que fora agraciada pelo santo socorreu o varegue43. Magnús sonha com seu pai, que lhe dá uma escolha: reinar como o maior dos reis na terra, mas com poucas possibilidades de expiar pelos seus pecados, ou segui-lo44. pouco depois de acordar, Magnús morre para seguir seu pai. Guthormr, por sua vez, pede ajuda a Deus e a santo Óláfr para vencer a batalha contra o rei irlandês Margaðr45. Certo conde dinamarquês não quis manter santo o dia de Óláfr e mandou sua criada preparar pão: enquanto ela chorava, o pão virou pedra e o conde ficou cego46. Um aleijado que ficava sentado na ponte de Londres recebeu a visita de um estranho que lhe fez andar e o acompanhou até certo ponto, vindo a desaparecer depois (sendo ele o próprio Óláfr)47. Por fim, Haraldr sonha com a cidade de Níðarós e nela Óláfr declamou um poema sobre a diferença entre a morte santa no lar e a morte pela sua ganância, que não é culpa divina48. Parece-nos interessante como o santo protege a ambos, mas sua predileção é clara pelo filho. A proteção em batalha foi entregue a Magnús, tornando-o invencível na batalha contra os Wends. Qualquer ambição de recuperar os antigos domínios de Knútr, o Grande (Inglaterra e Dinamarca), foi abandonada, 41 Magnúss saga ins Góða, 20. 42 Magnúss saga ins Góða, 28. 43 Haralds saga Sigurðarsonar, 14. 44 Haralds saga Sigurðarsonar, 28. 45 Haralds saga Sigurðarsonar, 55. 46 Haralds saga Sigurðarsonar, 56. 47 Haralds saga Sigurðarsonar, 57. 48 Haralds saga Sigurðarsonar, 82.

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pois Deus havia lhe provido apenas com a Noruega. Tendo o reconciliamento como papel principal de sua política, Magnús entrega a Dinamarca para Sveinn: já Haraldr, falhando em reconquistá-la após a morte do sobrinho, volta seu olhar para a Inglaterra, depois do convite de Tóstig para tomar parte da revolta contra Harold Godwinsson. Deste modo, as sagas não só narram as vidas dos reis, mas selecionam um conteúdo que os caracteriza de maneiras diferentes, elevando a figura de Magnús, um rei disposto a negociações com seus súditos e buscando uma harmonia política, em oposição a Haraldr, um monarca aventureiro, malicioso, que eleva sua autoridade em oportunidades escusas e reina com perfídia. Haraldr sucumbiu pela sua própria ganância: é exatamente a harmonia entre a conquista e a divisa que as sagas procuram promover e que buscamos apontar nas oposições Haraldr Hárfagri x Hákon Góði e Magnús inn Góði x Haraldr Harðraða49. Conclusão Observamos que as sagas criam juízo de valor sobre a vida dos reis que narram; são bons e tiranos na medida em que escolhem como vão exercer o seu poder. Mas uma das justificativas do exercício de seus poderes depende amplamente das oportunidades guerreiras e dos ganhos possíveis a partir dessas situações, sendo a maior parte delas relacionadas à Dinamarca. Ao prestarmos atenção ao Haraldskvæði, poema contemporâneo às conquistas de Haraldr Hárfagri e presente na saga que narra a vida do mesmo rei, veremos que a Batalha de Hafrsfjörðr é travada contra oponentes que estão localizados na parte Oriental da Noruega, mas não de chefias independentes na região Ocidental, como a saga nos leva a crer, e que devem ter tido apoio das chefias dinamarquesas que controlavam ou tinham influência política na região costeira do Sudoeste norueguês (KRAG, 2008, p. 647). A saga de Haraldr Hárfagri concentra sua narrativa nos conflitos entre as chefias 49 Theodore M. Andersson (2006, p. 86 – 101) escreveu exatamente sobre a existência de uma oposição entre o rei Magnús e Haraldr em uma saga do Morkinskinna. Ainda que haja diversas diferenças com a nossa fonte, nos parece que o sentido é o mesmo, o da promoção de diferentes ideologias sobre a monarquia norueguesa, sendo preferível a política conciliatória do primeiro.

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norueguesas e suas batalhas internas, mas ignora a presença e a participação dinamarquesa, que foi importante no financiamento e fornecimento de guerreiros para impedir o avanço do rei sobre as regiões de domínio dinamarquês. Na Hakonar saga Góða, caps. 6-8, o rei Hákon repeliu os vikings dinamarqueses para Halland e a Jutlândia, passando a saquear esses territórios na perseguição desses homens. O rei Hákon Góði passou boa parte de seu tempo saqueando a Dinamarca. Suas medidas de defesa foram pensadas para proteger o reino contra os chefes dinamarqueses, além do amparo nos conflitos contra os seus sobrinhos. Estes parentes, por sua vez, pediram envolvimento dinamarquês, uma vez que forneceram o apoio necessário para que os filhos de Eiríkr Blóðøx pudessem lutar. Deste modo, a saga crie um cliché em torno da belicosidade ferrenha dos noruegueses: na Batalha de Fræðaberg, todos os dinamarqueses fogem, deixando que o conflito seja resolvido entre os noruegueses50. Posteriormente, nos momentos anteriores à Batalha de Fítjar, o rei Hákon pergunta aos seus súditos se deveriam lutar: “Então quando os homens consideraram compreender, aquilo que é desejo do rei, então muitos responderam, disseram, que preferiam perecer com honra, a fugir desses fracos dinamarqueses; disseram, que repetidas vezes eles obtiveram vitória, mesmo quando estiveram lutando contra muitas hostes”51 (Hákonar saga Góða, 28).

A vida de Magnús também foi permeada por conflitos semelhantes. Quando jovem, um acordo de paz mútua com o rei dinamarquês Hörðaknútr foi arranjado. Quando ele tomou o domínio da Dinamarca, Sveinn Úlfsson fez-se rei e liderou uma rebelião que levou ao saque e reides mútuos de ambos os territórios. Entre a Batalha de Aarhus e a Batalha de Helganess, (Magnús saga íns góða, 30-33), Magnús arrasou a Zelândia, Scania e Funes, terras que se rebelaram e que deram suporte ao rei Sveinn. 50 Hákonar saga Góða, 24 – 25. 51 “En er menn þóttusk skilja, hversu konungr vildi vera láta, þá svöruðu margir, sögðu, at heldr vildu falla með drengskap, en flýja fyrir Dönum at óreyndu, sögðu, at opt höfðu þeir sigr fengit, þá er þeir höfðu barizk við minna lið”, tradução nossa.

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Contudo, as narrativas do rei Haraldr Harðraða que receberam uma maior promoção guerreira. Haraldr saqueia a Dinamarca junto com Magnús e tentou retomá-la do controle de Sveinn, o que não conseguiu por não ter apoio interno suficiente das chefias dinamarquesas, que preferiam entregar seu auxílio à Sveinn, um rei que já os acompanhava há mais tempo. Ele chegou a liderar expedições saqueadoras (Haralds saga Sigurðarsonar, 35), mas foi com a campanha na Inglaterra que ele deve ter oferecido maiores oportunidades belicosas aos seus seguidores (Haralds saga Sigurðarsonar, 83-93). Mas não só a guerra devia ser feita em companhia: também a conquista depende do conjunto. Quando Tóstig Godwinsson procura a ajuda de Haraldr, falou exatamente sobre a necessidade de se obter apoio para conquistar: Então falou o jarl: se você não me fala, isso eu direi a você; o rei Magnús tomou para si a Dinamarca, pois os chefes locais lhe ajudaram, mas por você não se movimentarão, pois todo povo dessa terra está contra você; o rei Magnús não tomou para si a Inglaterra, porque todos os líderes queriam ter Eduardo como rei. Para [você] se apropriar da Inglaterra, o que eu posso fazer, e aliar a maioria das chefias da Inglaterra [junto a] seus homens, à você; para enfrentar Harold, meu irmão, me falta apenas o título de rei. Que todos os homens vejam, como nenhum guerreiro como você já aparecera na Noruega, e isso me parece esquisito, que você estivesse lutando quinze invernos pela Dinamarca, mas você não quer a Inglaterra, que agora depende de vós para possuir52 (Haralds saga Sigurðarsonar, 79).

Nesse exemplo do seu caráter guerreiro, o que a saga nos transmite é a representação de um rei que não foge das adversidades. A melhor categoria na qual podemos pensar é a de “reis guerreiros”, Hérkonungar, ou seja, é pela marcialidade que 52 “Þá mælti jarl: viltu eigi mér segja, þá mun ek þér segja; því eignaðisk Magnús konungr Danmörk, at þarlandzhöfðingjar veittu honum, en því fektu eigi, at alt landzfólk stóð í móti þér; því barðisk Magnús konungr eigi til Englandz, at allr landzlýðr vildi hafa Eatvarð at konungi. Viltu eignask England, þá má ek svá gera, at meiri hlutr höfðingja í Englandi munu vera vinir þínir ok liðsinnismenn; skortir mik eigi meira við Harald, bróður minn, en konungsnafn eitt. Þat vitu allir menn, at engi hermaðr hefir slíkr fœzk á Norðrlöndum sem þú, ok þat þykki mér undarligt, er þú barðisk xv. vetr til Danmerkr, en þú vill eigi hafa England, er nú liggr laust fyrir þér” tradução nossa.

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esses guerreiros promovem sua autoridade e são representados. Todos eles assumem uma posição dominadora no campo de batalha, estão à frente de seus homens, negam a proteção do escudo e da armadura e demonstram seu furor bélico, chocam-se triunfantes contra seus inimigos. Quando perecem em combate, levam consigo quantos puderem. A poesia escáldica é enfática nas atribuições guerreiras dos reis, insistindo sempre na generosidade com seus seguidores, na hostilidade àqueles que ameaçam seus domínios, gentileza com cúmplices e crueldade com os rivais: “Como os sucessores de grandes fortunas dos negócios, de hoje, esses reis tinham de ser vistos como vitoriosos em competições, mesmo que não fossem”53.

53 Rather like inheritors of great business fortunes nowadays, these kings had to be seen as victors in competition, even if they were not” (CHRISTIANSEN, Eric. The Norsemen in The Viking Age. Oxford: Blackwell Publibshers, 2002, p. 142. tradução nossa).

VII Representação política e debate institucional na Catalunha da Baixa Idade Média

Q

Rogério Ribeiro TOSTES1

ue se conceda uma breve generalização de entrada dizendo que as recuperações da memória histórica são alimento das representações do imaginário social. E assim, digamos que sua reposição seja infinita, que nesse contínuo agir sobre si mesmo se revelem os significados cuja superfície de verdade a convenção veio chamar de fatos da história. Denunciada essa estratégia de fundo, é lícito que se tome outra via interpretativa, nova ou mais conciliadora. Agora, mostrando sua humildade, o historiador anseia fortalecer a credibilidade de sua perspectiva. Mas nem mesmo assim seus problemas terminam. Uma vez que se prefira revelar a engrenagem de fantasmagorias movida pela representação histórica, também se está decidindo abrir mão de certos meios de racionalização. Resta notar que, refletindo através dessa linha de ideias, se acaba criando um novo problema, que é o da incisão, ou do limite entre o realismo e a permanente suspeição quanto àquilo que se afirma em domínio factual. Integrada ao ramo familiar das outras humanidades, a 1 Doutorando em História Medieval pela Universitat de Lleida, Espanha, sob a direção do Dr. Flocel Sabaté. Email: [email protected]

história tem por isso uma feição própria, que levara Foucault a chamá-la de a “ciência da reduplicação”2. Ora bem, esse impasse não é mais sobre a realidade do objeto que se investiga; na verdade, faz certo tempo que ele se voltou contra um dado que representa a própria realidade – agora, vemos melhor, o problema se tornou epistemológico3. Se se tomar o caso de uma historiografia com complexidades próprias, a área catalanista não deixa muitas dúvidas sobre a utilidade de refletir essa mesma condição. Um segundo dado de partida: se o engajamento das primeiras gerações que vieram após a guerra civil espanhola adensou a imprecisão da autenticidade do registro histórico, depois, o trabalho revisionista, que acompanhou o início da redemocratização e se prolonga até hoje, luta pela fixação de um lugar simbólico particular. Considerandose marginal à vista de tradições historiográficas mais divulgadas, as sucessoras do catalanisme polític perseveram, buscando o ponto endógeno de sua significação, ou algo que Homi Bhabha viria denominar como o “horizonte exegético da diferença”4. Ao mesmo tempo, atulhada entre o anseio de reparar os exageros dos divulgadores da história nacional, como o foram Antoni Rovira Virgili e Ferran Soldevila, permanece nestas últimas gerações de historiadores a necessidade de avivar uma certa vigência temática, com o que se manteria a vitalidade de muitas das questões já trazidas nos precursores da essencialidade catalanista. Não é fácil definir estas filiações, mas, esquematicamente, poderíamos detectar três vertentes principais que trabalham em suas frentes de pesquisa e divulgação. Trata-se de uma primeira, que relativiza o tom particularista dos que reclamam por uma fonte primigênia do catalanismo, inclusive a ponto de limitar a originalidade do modelo de estado tardo-medieval5. Por outro lado, seguem quase 2

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. 8ª ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 503.

3

LEBRUN, Gérard. A ideia de epistemologia. In: A filosofia e sua história. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 134.

4

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p. 59.

5

À guisa de discussão temática, cfr. AURELL, Jaume. La formación del imaginario

paralelamente verdadeiras linhagens interpretativas que esclarecem os “sentidos históricos” de figuras da proeminência de Jaume Vicens Vives6, enquanto outras ainda mantêm uma oposição mais radical, negando as imagens criadas pelo catalanismo dos anos 1930, 40’ e 50’, e assim mesmo fiéis ao argumento particularista7. Esse registro conflituoso, que não é de modo algum exclusividade dos catalães, abre espaço para sua indefinida manifestação de historicidade. Faz bem pouco que, por exemplo, se assistiram as comemorações dos seiscentos anos do Compromisso de Caspe (1412-2012). E como é de se esperar nas celebrações de centenários históricos, nestas também viriam as costumeiras invocações e controvérsias sujeitas a revisionismo. A fatualização desse evento, dentro e fora de uma historiografia especializada, dão provas dos exemplos bem acabados da imprecisão da representação histórica. Diante dos muitos colóquios, seminários e congressos a respeito das celebrações, mais uma vez se viriam rediscutir posições que assinalavam uma trajetória continuísta da catalanitat (atrelada, por sua vez, a valencianos e aragoneses), e uma presença histórica precisa, tal qual avalizam os discursos oficiais. Para o historiador, aqui resta a procura de uma manifestação contrária: denunciando histórico del nacionalismo catalán, de la Renaixença al Noucentisme (1830-1930). Historia contemporánea, 22, 2001, p. 257-288. E, sobre o problema do modelo estatal: SIMON, Antoni. Catalunya en la construcció de l’estat modern espanyol (s. XVI-XVII) Lectures historiogràfiques. In: ALCOBERRO, Agustí. CATTINI, Giovanni C. (orgs.). Entre la Construcció Nacional i la Repressió Identitària. Actes de la Primera Trobada Galeusca d’Historiadores i d’Historiadors (Barcelona, 10 i 11 de desembre de 2010). Barcelona: Museu d’Història de Catalunya, 2012, p. 73-87. 6

Cfr. MUÑOZ LLORET, Josep Maria. Jaume Vicens i Vives (1910-1960): una biografía intel·lectual. Barcelona: Ediciones 62, 1997. SERRA, Eva. Ferran Soldevila: la persona i l’historiador. Butlletí de la Societat Catalana d’Estudis Històrics, 6, 1995, p. 9-17. Ou: SERRA, Eva. La historiografia catalana: del segle XIX a la segona república. Butlletí de la Societat Catalana d’Estudis Històrics, 19, 2008, p. 249257. E finalmente, um trabalho mais extenso sobre o engajamento intelectual: CASASSAS, Jordi. Els intel·lectuals i el poder a Catalunya. Materials per a un assaig d’història cultural del món català contemporani (1808-1975). Barcelona: Proa, 1999.

7

BALCELLS, Albert. Catalunya Contemporània. In: Història de Catalunya. Barcelona: L’esfera dels llibres, 2006. RIQUER PERMANYER, Borja. Apogeo y estanciamiento de la historiografía contemporánea catalana. Historia Contemporánea, 7, p. 117-134.

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os prejuízos dessa interpretação do passado, ele alude ainda a via “desmistificadora” para ir contra o anseio presentista dessas tópicas narrativas. No final das contas, talvez se pondere que o melhor a fazer é deixar de lado as questões meta-históricas –com todo o panfletarismo embutido na voz política– e seguir para os acervos documentais convicto de que o partido mais adequado é o do juiz imparcial. Como censurar aqueles que o fazem tão serenamente? Entretanto, como defendo uma posição diferente, estou convencido de que tal elucubração não possa ser reputada inútil. Já não há porque negar a existência de uma relação entre a vontade prático-ideológica e os discursos assinaladamente teóricos. Em apoio a isso, a memória histórica se mostra como material imprescindível da agenda ideológica do Estado. É exemplar assim que no complexo cenário político das autonomias espanholas a recordação pública do Compromisso merecesse investimentos significativos8. Ali, na vila de Caspe, se reuniram os dirigentes dos governos de Aragão, Valência, Catalunha e Baleares, desejosos por ligarem sua ancestralidade junto aos despojos de uma comum instituição primitiva –novamente, sob a ideia ao “espírito confederado”–, a mesma que remete a uma realidade institucional do tempo histórico, quando esses territórios se viam na coesão dinástica da Casa de Barcelona. Essas intenções ficam muito explícitas com o que expusera o então presidente de honra dessas novas cortes, que mui oportunamente “ha alabado que aquel espíritu de 1412 es un ejemplo de una actitud de ‘sentido de Estado’” e abre meios para uma atualização das valências nacionalistas por meio das quais se enfrentaram a crise que agora assola o país espanhol9. 8

Foram destinados, segundo o Heraldo Noticias, cerca de 1,6 milhões de euros para o restauro quase completo da fortaleza medieval da vila de Caspe, a mesma que, até então estivera em ruínas por anos e nunca chegara a merecer grandes atenções do poder público espanhol.

9

No mesmo salão em que se firmaram os termos que elegia a sucessão de Ferran de Antequera, foi assinado no dia 28 de junho de 2012 um documento em conjunto pelos representantes parlamentares aragonês, valenciano, catalão e balear, à guisa de homólogos dos reinos da antiga Coroa de Aragão. Cfr. Heraldo Noticias, cuja matéria está apontada pelo artigo de 28 de junho, “El Compromiso de Caspe

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Nada disto deveria ser tomado como banal pelo historiador, porquanto é mediante a invocação desse espírito que se situará algo de elementar na hipostasiação do passado histórico. Finalmente, é através dele que falam alto os protagonistas do anseio particularista, os mesmos que se emparentam das instituições representativas baixo-medievais. Ao mesmo tempo, esse espírito tão convergente e pluralista justificaria a “oposição natural” que os catalães sentem desde muito contra o autoritarismo de seus vizinhos do ocidente peninsular –ou seja, já quando viriam os prenúncios de l’hegemonia castellana de l’estat. Ou dizendo mais explicitamente, como há pouco escrevera um biógrafo de Ferran de Antequera, fazendo repetir uma antiga imagem dos monarcas como portadores das virtudes libertárias, típicas do espólio catalão. Assim, um soberano como Pere el Cerimoniós já regia seus estamentos segundo idêntico sentimento histórico, o qual ainda lhe permitia lutar “contra la noció assimilacionista castellana”10. Opondo o sentimento anacrônico de emancipação e liberdade política, também se aloja o rancor pela derrota ou pelo fracasso histórico simbolizado com a chegada da dinastia castelhana. É neste tom que se queixara Ramon d’Abadal, concluindo que o curso da história não galardoaria o Principado da Catalunha com um conjunto político suficientemente forte a resistir ao assimilacionismo das primeiras monarquias nacionais: “el moment en què en el nostre món occidental es tendeix a l’enfortiment de les monarquies, (...) el Principat català accelera el seu curse en contra del corrent de la Història”11. É feito eco as conclusões fatalistas, que insistem em pôr o particularismo institucional à raiz das culpas históricas, culminando na perda de suas liberdades patrióticas. Não quero parecer excessivamente presentista, nem salientar demais o caso das autonomias ante a composição das diferentes Recupera Identidad”. Disponível em: , consulta feita em 20 de julho de 2012. 10 GARRIDO, David. Ferran I ‘el d’Antequera’, un rei de conveniência. València: Edicions Tres i quatre, 2011, p. 42. 11 ABADAL, Ramon d’. Pere el Cerimoniós i els inicis de la decadència política de Catalunya. Trad. Xavier Fort i Ramon Pinyol. Barcelona: Edicions 62, 1987, p. 287 (1ª edição de 1968, na Historia de España, vol. XIV, dir. por Ramón Menéndez Pidal).

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discursividades que representam o histórico. Entretanto, se inicio por aqui minha intervenção sobre esse evento, é porque considero essa contextualidade mais que mera contingência de interesses identitários. Logo veremos que o próprio recorte do tema não ultrapassa esta marca, e aquilo que encaramos como derivações do conteúdo originário jamais cessa de vir nos resgates de algo que está no passado12. Como repeti noutras vezes, o quinhão dessa inventividade identitária também concede a própria vocação institucional de uma cultura política determinada. Os catalães, tão bem conhecedores de seu próprio inventário político, tratam de afiançar uma base de legitimidade correspondente. O mesmo invencionismo que anima as tradições dos pensamentos políticos francês ou inglês com seus “affairs of state”13, ganham correspondentes sobre aqueles que pensam a Catalunha medieval. Na sua apologética essencializante, se reconduz a razão histórica a um tempo em que todo o povo catalão “era lliure i constituïa una característica organització democràtica”14. Se bem observada, essa transmissão semântica é facilitada graças a um argumento continuísta que mantém seu espaço aberto para os conceitos do laboratório político moderno, conjugando democracia e estatalismo às necessidades dessa representação. Assim, ao se falar de participação política, soberania e pactismo jurídico, se avança mais que à mera problematização do testemunho histórico. Neste aspecto, e se pode dizer que em mais de um deles, o monumental volume de estudos dedicados às Corts catalãs refletem o caráter complexo do itinerário assumido por essas instituições, cujo nome remetia às assembleias estamentais dos territórios governados pelos reis aragoneses. Trata-se de um verdadeiro repertório histórico que se alinha pelo menos desde o 12 Para uma discussão panorâmica sobre a representação da memória histórica e seus aportes revisionistas, faço menção ao que expusera em TOSTES, Rogério R. A historiografia catalanista e seus repasses institucionais: um estudo de caso sobre revisionismo e memória histórica. jul. 2012, a publicar. 13 MAITLAND, Frederic W. Selected historical essays of F.W. Maitland. CAM, Helen M. (chosen and intr.). Cambridge: Cambridge University Press, 1957, p. 63-95. 14 VALLS, Ferran, SOLDEVILA, Ferran. Història de Catalunya. Vol. II. Barcelona: Publicacions de l’Editorial Pedagógica Associació Proctetora de l’Ensenyança, 1923, p. 139.

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século XIX e por todo o século XX15. A relação desses estudos, sua fortuna crítica ou o rumo tomado pelas interpretações sobre seu protagonismo orgânico jamais se dissociaram da narrativa de si mesmos16. No que toca ao funcionalismo discursivo dessas assembleias estamentais, há algumas coisas que se poderiam detalhar. Se salientariam questões controversas, como as que foram levantadas pelo desenvolvimento desse aparelho consultivo a partir de finais do século XII, se aprofundando nas transformações políticas do XIV. Esta sequência viabilizará na centúria seguinte argumentos de participação, dos quais emerge o do “pactismo” político, tomado por modelo fundamental dos reinos e dos territórios governados pela dinastia barcelonesa17. Logo, a evolução da aparelhagem representativa destaca essa valoração endógena de um discurso institucional, pois fora com ela que as oligarquias investiriam um organismo centralizador, atuando tanto como poder jurisdicional irradiante, como aquele que acabaria controlando as fontes fiscais que a monarquia não pudera implantar de maneira geral. Desde a orientação difundida pelo mesmo Ramon d’Abadal, o tema das cortes faria concluir uma extensa compreensão sobre o tipo de variedade das forças estamentais que se iam desagregando através das linhas de pressão que vinham impor. Professava-se que os estamentos reunidos nas cortes jamais teriam consumado um discurso homogêneo, nem que ele fosse capaz de representar uma ideologia política linear, o que, ainda na visada de Abadal, seria indispensável para o estabelecimento de um aparelho de estado em sentido estrito. Com tal interpretação, se concluía que os discursos estamentais não teriam podido legar o sentimento de voluntariedade política capaz de fazer as vezes da voz institucional. Entretanto, repassados os argumentos junto ao que se sabe a 15 CREIXELL, Joan. FERRÉ, Xavier. Revista La España Regional. Un exemple de la historiografia romàntica. In: Les Corts a Catalunya, Actes del Congrés d’Història Institucional. Barcelona: Generalitat de Catalunya, 1991, p. 97-103. 16 Cfr. SERRA, Eva. Butlletí bibliogràfic sobre les corts catalanes. Arxiu de Textos Catalans Antics, vol. 26, Institut d’Estudis Catalans/Facultat de Teologia de Catalunya, 2011, p. 663-738. 17 LALINDE, Jesús. Las instituciones catalanas en el siglo XIV (panorama historiográfico). Anuario de Estudios Medievales, 7, Madrid, 1970-71, p. 623-632.

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respeito do estamento burguês, é possível avançar na percepção de uma finalidade política dessas cortes em consórcio com a gestão dos recursos fiscais, abrindo aí desencontros com a abordagem abadaliana. Com a transmissão dinástica que, em 1412, entronizava em Aragão um príncipe da cepa castelhana dos Trastâmara, ficava clara a profundidade da participação dos próceres urbanos catalães. Então vitorioso na disputa sucessória, Ferran d’Antequera provaria mais tarde o reverso da aliança com os burgueses, uma aliança que não lograria grande duração. No dizer de Thomas Bisson, aconteceu que, assim que as cortes de 1413 interpusessem os tradicionais recuos à coroa, o novo rei sentiria a mudança de posição, deixando de ser o “rico príncipe castelhano” para se tornar o “pobre conde-rei” dos catalães, intuindo que esta não era uma monarquia mas um regime de procuratio18. De passagem pelo século XIV, especialmente após os eventos bélicos da sua segunda metade, a força exercida por meio das cortes permitiria uma profunda releitura das tradições políticas e jurídicas do principado, com a qual se promoveriam novas significações sobre a posição do titular soberano. Do modo como se idealizava no século XII, a finalidade da sede monárquica já não poderia ser naturalizada na centralidade da persona maiestatica19, mas dependia de uma adesão consentida de seus membros corporativos. Dando continuidade ao raciocínio de seus antecessores, Tomàs de Mières enunciava no século XV a sua ideia sobre a participação soberana nas cortes, no momento em que esta poderia criar o direito, se acercando de um conceito muito próximo: “quia Princips in 18 BISSON, Thomas N. The Medieval Crown of Aragon: A Short History. New York: Oxford University Press/Claredon Paperbacks, 1986, p. 139. 19 Este conceito deve uma proximidade com os aparatos da dignidade régia elaborados pelo Liber Augustalis no reino da Sicília, à época do imperador Frederico II, de quem os reis catalano-aragoneses descendiam. Nesses aparatos, surge a proposição de iura maiestatica, que no limte pretendera situar a origem da lei ao suporte último do soberano –“igitur Cesarem fore iustitie patrem et filium, dominum et ministrum, patrem et dominum in edendo iustitiam et editam conservando” (Konst., I, 31, Monumenta Germaniae Historica, p. 185). Sobre a relação da dinastia catalã com os Hohenstauffen, v. AURELL, Martin. Messianisme royal de la Couronne d’Aragon. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 52, 1, EHESS, 1997, p. 119-155.

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hac patria non potest facere generalem constitutionem sine consensus generalis curie”20. Assim os demais conceitos de fundação da soberania política, como a tradicional ideia de corpo místico, vigente nas origens das monarquias medievais, assumem outros significados na transposição de vocabulários institucionais reutilizados nas batalhas retóricas das cortes. Ali, o rei deixa de ter o controle da enunciação da Lei para ser seu instrumentalizador e ministerial. O aparecimento e a consolidação das assembleias estamentais catalãs Ainda à espreita das particulares questões da historiografia catalã, passo para a elaboração dos recuos discursivos que permitiram uma sedimentação do aparato de poder. E uma última nota metodológica: primeiro, é preciso situar seu espaço, depois, o processo de criação semântica do vocabulário institucional com o qual chegavam as disputas estamentais e a forma de seus argumentos21. Ao fim e ao cabo, marcando passo em torno destas proposições, recuamos aos elementos da análise contextual como abertura metodológica que extrapole as suas primeiras questões de fundo. Como espaço de reelaboração discursiva, portanto, as assembleias estamentais conjugaram os vértices de um debate político que apurara e filtrara os valores da tradição, a ponto de viabilizar uns novos significados sobre a fundação da lei, a sociedade como reflexo do corpo místico e a própria potestade monárquica, que deixa sua pretensão soberana para se tornar presa à ideia de bem comum. Assim, as Corts representam um lugar simbólico da deliberação sobre os sentidos ajustados sobre o esquema dos intérpretes medievais. Logo, existem dois topoi que são considerados no dado fundamental, um primeiro, que extrai o conteúdo argumentativo, e um outro, que reflete parte dos eventos factualizados durante o século XIV. Acompanhando a documentação curial desse período é possível especificar a 20 Tomàs de Mières. Apparatus super Constitutionibus Curiarum, Collatio X, cap. 25, 10. 21 Pare uma discussão preliminar sobre a constituição desses debates instiucionais, v. a proposta epistemológica da antropóloga Mary Douglas, in: DOUGLAS, Mary. Como as Instituições Pensam. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Ed. USP, 2007.

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destinação desses argumentos em relação às bases de justificativa que visavam propor. Reunindo-se esses pontos, a tese-guia desta interpretação documental dará enfoque a um tipo de lugar, o qual denominamos “coletivo de pensamento” institucional, e que servirá à instância mediadora dos signos adotados pela ideologia política dos discursos estamentais do período. No horizonte formativo, cabe recordar algumas linhas da configuração fundamental da qual falamos. Atribuída aos finais da época condal, está o aparecimento das matrizes do esquema denominado pactista. Aqui, o território que futuramente se chamará Catalunha viceja suas organizações políticas num fragmentado espaço de disputa, que, entre ocupação muçulmana e domínio carolíngio, se mantém desgarrado de qualquer ascendência jurídica imediata. Assim, se constituindo na dispersão de uma zona fronteiriça, se fundaram as pequenas dinastias condais22. E fora apenas no século XII que começaria um estreitamento definitivo das unidades condais, ligadas através das sucessivas uniões matrimoniais e por vínculos vassálicos, até o momento de destaque que assinalava um protagonismo posterior do condado de Barcelona, com a hipotética promulgação de seus Usatges, ou a compilação dos costumes e dos arbítrios jurídicos emanados pela corte condal23. Entretanto, se for preciso justificar melhor esse protagonismo (para ainda diferenciá-lo de rasgos teleológicos que idealizam projetos unificadores fora de lugar24), deve-se bem acrescentar o desempenho das assembleias de paz e trégua. Na sua absorção aos interesses da cúpula condal, deixaria-se de representar a prevalência eclesiástica para congregar poderes

22 ABADAL, Ramon d’. Dels visigots als catalans. La formació de la Catalunya Independent: La Hispania Visigótica i la Catalunya Carolongia. Barcelona: Edicions 62, 1969. 23 IGLESIA, Aquilino. De Usaticis Quomodo Inventi Fuerunt. Initium, Revista Catalana d’Història del Dret, 6, Associació Catalana d’Història del Dret “Jaume de Montjuïc”, Barcelona, 2001, p. 25-212. 24 SARASA, Esteban. La expansíón de los reinos y condados pirenaicos y mediterráneos hasta la unión de Aragon y Cataluña: Guerra y sociedad feudal (1035-1134). In: IRADIEL, Paulino, et alii. Historia Medieval de la España Cristiana. Madrid: Cátedra, 1995, p. 263-306.

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políticos laicos junto a um esforço de “união territorial”25. Passando de Ramon Berenguer IV às medidas desempenhadas por Alfons I el Cast (1164-1174), que é efetivamente o primeiro da dinastia a ocupar o trono de Aragão, se abria caminho para um desenvolvimento funcional dessas instituições representativas em passo continuo com a reivindicação monárquica26. Ora bem, das cognominadas reuniões de Pau i Treva até os decisivos acontecimentos das Corts Generals de 1283, no momento mais crítico do reinado de Pere el Gran, se desvelaria uma linha de singuralizações no rastro do modelo parlamentar catalão com o qual se firmariam os instrumentos das cortes régias do XIII em diante, quando já se introduziriam os problemas mediterrânicos nos assuntos permanentes desses debates estamentais a partir dos reinados de Alfons II e de Jaume II27. Mas junto das variantes de tipo político e jurisdicional, cresciam os centros urbanos e as capitalidades mercantis. Seguindo um desenvolvimento do denominador municipal, igualmente marcante noutras regiões da península ibérica ou no avanço das instituições comunais italianas, os institutos jurídicos burgueses matizavam os vínculos de jurisdição estritamente feudais28, permitindo que se implantassem novos regimes de cessão 25 SABATÉ, Flocel. Catalunya Medieval. In: BALCELLS, Albert (org.). Història de Catalunya. Barcelona: Esfera dels Llibres, 2006, p. 259-264 26 Nas assembleias de 1173, sediadas em Fondarella, Alfons I afirma diante dos demais condes catalães a sua elevada condição real e as atribuições que dela decorrem, por meio de uma constitutio: “Divinarum et humanarum rerum tuicio ad neminem magis quam ad principem pertinet, nichilque tam proprium debet esse nobi ac recti principis quam iniurias propulsare, bella sedare, pacem stabilire et informare, et informatem subditis conservadam tradere, ut de eo non incongrue dici et predicari possit, quod a principe regum dictum est: per me reges regnant et potentes scribunt iusticiam”, Constitucions de Pau i Treva de Catalunya (segles XI-XIII), p. 76. 27 MARTÍN, José Luis. La actividad de las Cortes Catalanas en el siglo XIV. In: Les Corts a Catalunya, Actes del Congrés d’Història Institucional. Barcelona: Generalitat de Catalunya, 1991, p. 147-149. 28 FONT, Josep Maria. Cartas de Población y Franquicia de Cataluña, vol. II. Estúdio, apendice al vol. I. Madrid/Barcelona: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, CSIC, 1983.

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dominial a vez pactuados por contratos em caráter de enfiteuse29. Bem, graças a tais formas de exploração do domínio (já que ainda não caberia falar de “propriedade”), também emergiria uma nova categoria social enriquecida e interessada em participar no quadro de decisões mantido em mãos dos poderes senhoriais30. Incluída há pouco nos esquemas hierárquicos estamentais, a elite citadina toma frente nas reinvindicações de seus direitos corporativos. Após os eventos críticos da cruzada albigense e a consequente morte do rei Pere el Católic em Muret, esse estatuto jurídico seria referido pela primeira vez nas reuniões de Lleida de 1214, em que eram presentes “civibus, burgensibus, castrorum et villarum habitatoribus, et aliis pluribus tocius Cathalonie”31, os quais viriam a integrar o chamado estamento ou “braço real”, que, junto aos barões e às autoridades eclesiásticas, juravam fidelidade ao rei em caráter de súditos. Ainda, se criavam ali mecanismos de representação da sua jurisdição, como os veguers e os paers, incumbidos de sediar a justiça naquelas cidades que faziam parte do território reguengo –“omnes venientes ad curiam domini regis, et nostram, et procuratoris Cathalonie, et omnes quos diocesani episcopi, pro facto pacis et bono terre vocare constiterit”32. Evolui, então, a primazia jurídica dessas assembleias, seguindo perto as pretensões monárquicas de reduzir a autonomia baronial dentro de suas capitalidades, de maneira a já interferir nas punições que estas mantinham aos servos pela invocação do ius maletractandi, uma inteferência que garantiria a atuação dos veguers e a salvaguarda da justiça régia como exclusivas do encargo soberano –“per me reges regnant et potentes scribunt iusticiam”. De igual modo, o 29 I.e. figuras de direito relativas ao ius rerum, no ramo de direito privado romano. Cfr. BROCÁ, Guillem Maria de. Historia del Derecho de Cataluña, especialmente del Civil, y Exposición de las Instituciones del Derecho civil del mismo territorio en relación con el Código civil de España y la Jurisprudencia. Vol. I. Barcelona: Generalitat de Catalunya, 1985 [1a edição 1918]. 30 SABATÉ, Flocel. Oligarchies and Social Fractures in the Cities of Late Medieval Catalonia. In: ASENJO-GONZÁLEZ, María (ed.). Oligarchy and Patronage in Late Medieval Spanish Urban Society. Studies in European Urban History. Turnhout: Brepols, 2009, p. 1-27. 31 Constitucions de Pau i Treva de Catalunya (segles XI-XIII), p. 134. 32 Idem, p. 135.

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reconhecimento dos novos “lugares corporativos” dos vindouros estamentos, e a complexa aliança entre burguesia e poder real, permitira uma prefiguração das primeiras cortes catalãs segundo essas atribuições legislativas e um poder enunciatário fundamental para a instituição. Naturalmente a busca do rei por esses instrumentos representativos não correspondia a nenhuma liberalidade regalista, mas tinha sua razão de ser nas dependências concretas de suporte político e, principalmente, de meios financeiros que ele não poderia obter sozinho dada sua parca fonte de recursos fiscais33. Em busca de alternativas, o rei se veria obrigado a mediar acordos para conseguir chegar à punção fiscal que lhe faltava, ainda que estivesse consciente de que no fim esses acordos lhe imporiam partilhas pouco desejáveis sobre a verticalidade jurisdicional que pretendia tonar exclusiva. Logo, à medida que a política da Coroa se inclinasse para os interesses mediterrânicos, se criava a permamente fidelização do soberano aos anseios mercantis das oligarquias catalãs e valencianas. Essa participação fora flagrante nas reuniões de 1228, que Jaume I convocaria a fim de angariar recursos financeiros e militares para a conquista maiorquina, uma conquista que desde sua primeira idealização contou com o apoio das cidades e vilas reais.34 Se por um lado o expansionismo às zonas marítimas forneceria as engrenagens dessa constituição política, por outro, viria o aporte da integração institucional. Com ele fora possível manter uma estrutura administrativa um tanto linear que, para além dos domínios peninsulares, mantinha a soberania dos domínios que iam das Ilhas Baleares até o ducado de Atenas, incluindo os reinos de Sicília e Sardenha, e consulados catalães em Egito, Tunísia e Síria35. Na dinâmica trecentista, essa formação político-mercantil 33 SÁNCHEZ, Manuel. El naixement de la fiscalitat d’Estat a Catalunya (segles XIIXIV). Trad. Marita Viscarro. Barcelona: Eumo Editorial/Universitat de Girona/ Estudis Universitaris de Vic, 1995. 34 MARTÍN, José Luis. Privilegios y cartas de libertad en la Corona de Aragón. In: Economia y sociedad en los reinos hispánicos de la Edad Media. Vol. 1. Barcelona: Ed. El Albir, 1983, p. 188. 35 Cfr. DEL TREPPO, Mario. Els mercaders catalans i l’expansió de la Corona catalanoaragonesa al segle XVI. Trad. Jaume Riera i Sans. Barcelona: Curial, 1976.

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da monarquia catalano-aragonesa é decisiva para os desfechos dos acordos e, sobretudo, nas capitulações infligidas ao titular régio. Por isso, esta sedimentação dos vértices estamentais, tanto em Catalunha como em Valência ou Aragão –muito embora com particularidades no caso deste último–, reiteraram como horizonte político uma instrumentalização contínua dos mecanismos jurídicos da participação nas cortes, uma participação mediada num modelo de governo que designariam de “forma pluralista coordenada”36. Em coerência com a tradição dos acordos e das concessões de donativos para as campanhas mediterrânicas praticada nos reinados de Jaume II e Alfons III, o longo período de governo exercido por Pere el Cerimoniós (1336-1387) aprofundaria essa dependência até consequências irreversíveis. Após um curto destacamento de suas pretensões centralizantes (sufocando rebeliões baroniais37, firmando acordos com Castela38 e reintegrando os antigos domínios maiorquinos à Coroa39), Pere III provaria, contrariado, as imensas reduções sobre a infinida voluntat pretendida pela sua dignidade real. Então, os argumentos que justificavam tal poder logo enfrentariam retrocessos, de base teórica, através das oposições estamentais que reinterpretariam as expansões mal-determinadas da figuração monárquica. Assim entra em cena um maquinário de linguagem (linguageiro) MELONI, Giuseppe. Mediterraneo e Sardegna nel Basso Medioevo. Pisa: Consiglio nazionale, Istituto sui Rapporti Italo-iberici, 1988. COULON, Damien. Barcelone et le grand commerce d’Orient au Moyen Âge. Un siècle de relations avec l’Egypte et la Syrie-Palestine (ca. 1330-ca. 1430). “Bibliothèque de la Casa de Velázquez”, vol. 27. Madrid/Barcelona: Casa de Velázquez /Institut Europeu de la Mediterrània, 2004. 36 LALINDE, Jesús. Las instituciones catalanas en el siglo XIV (panorama historiográfico). Anuario de Estudios Medievales, 7, Madrid, 1970-71, p. 623-632. 37 MARTÍN, José Luis. Cartas de Liberdad en la Corona de Aragón, op. cit., p. 235. 38 FERRER, Maria Teresa. Causes i antecedents de la Guerra dels dos Peres. Boletín de la Sociedade Castellonense de Cultura, 63 (4), 1987, p. 445-508. 39 RIERA, Antoni. El Regne de Mallorca: la inviabilitat d’un estat petit, dispers i insuficientement legitimat. Ruptura i legitimació dinàstica a l’Edat Mitjana. Càtedra d’estudis medievals del Comtat d’Urgell, XVII Curs d’Estiu, Balaguer, juliol, 2012. Lleida: Pagès (en premsa).

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devido à discussão formulada pelos debates de cortes. Por meio desta, se dá curso às transições de sentido que reposicionariam um enorme lastro do vocabulário político de sua época. Através dessas transições é que se repassam os recursos institucionais convocados pela interlocução curial, apresentados como “repositório tradicional”, tal qual os preceitos jurídicos do tempo condal, os argumentos elaborados de pouco por meio da dogmática jus-romanista, e ainda um suporte tomista para a adequação do aristotelismo medieval. Por baixo disso aparecem umas possibilidades discursivas que apontam sentido e consistência à direção retórica dos partidos em litígio nesses codicilos. O soberano e o estamento real nas corts: o us. Princeps namque As coisas mudariam tanto que, do começo ao final do século XIV, as pretensões de um poder real centralizador escorregariam das mãos do soberano para serem reclamadas pelos vetores municipais. Das fórmulas jurídicas constituintes da soberania aos fundamentos manifestos em proveito da terra, foi conferida junto aos referendos das cortes uma extensa colocação de valores. Dentro de todos os atos solenes que a envolve –passando da convocatória, proposição de abertura feita pelo rei, demanda e satisfação dos protestos (greuges), até a fase legislativa e o termo de donativo e a cloenda40– se veem motivações práticas sobre a interpretação e a fixação de precedentes. O us. Iudicum in curia datum41 seria recebido como um dos fundamentos mais recorrentes para assegurar a posição suprema das cortes como o “lugar em que se diz o direito”. Essa função judiciária tinha seu curso na interposição dos protestos e dos agravos elevados a competência do soberano. Por isso, ao passo que sua atuação jurisdicional se adensava (iudem atque curia), também vinha tomar posto o conjunto de mecanismos de controle e representação protocolar que ordenavam os atos formais das assembleias, uma vez que, por extensão, o demarcador jurídico permeava todos os atos instrumentais das negociações travadas pelo rei e por seus 40 OLEART, Oriol. Organització i atribuicions de la Cort General. In: Les Corts a Catalunya, Actes del Congrés d’Història Institucional. Barcelona: Generalitat de Catalunya, 1991, p. 15-24. 41 Usatici, 81.

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três braços estamentais. A participação das cortes, por outra parte, implica em estabelecer sua periodicidade –pois as convocatórias eram de prerrogativa exclusiva do rei–, junto a seu lastro competente de decisão. Como insistimos atrás, a vigência desses mecanismos de reunião servem aos interesses reais que tentam um fortalecimento da sua posição, compensando a pulverização jurisdicional e os recuos definidos contra os vegueres reais, impedidos de interferir nos domínios baroniais e eclesiásticos42. A incapacidade de se constituir uma fiscalidade direta, contra as “jurisdiccions infranqueables” de nobres, eclesiásticos e municípios, força a necessidade de se recorrer às representações das cortes, onde o rei demanda donativos que os representantes vão lhe outorgar em caráter gracioso –justamente para que se evite precedentes para uma futura obrigação fiscal–, cedidos a vez que a coroa também cedesse privilégios, franquias e competências de jurisdição local43. O reinado de Pere III marca a consolidação deste processo, iniciando um rechaço ao alastramento régio desde os acordos firmados em 1283, até a culminação dos estalecidos quase um século depois, com as cortes gerais de todos os reinos da coroa, em 1382. Apesar da resistência inicial do rei Pere, que nos primeiros vinte anos de seu reinado pratica uma política de verticalização, a imperiosa falta de recursos fiscais diretos do período subsequente (notadamente, após a guerra com Castela) obriga-o a recorrer com mais assiduidade a requisições parciais44 ou gerais dos donativos ofertados por seus súditos. Então, pela posse desses meios financeiros, os estamentos avançam nas formas de controle e gestão do patrimônio –criando o General de la Diputació, a partir de 135645. E conseguem mais que isso, pois seria desde esse 42 SABATÉ, Flocel. Oligarchies and Social Fractures in the Cities of Late Medieval Catalonia, op. cit., p. 43 SABATÉ, Flocel. Municipio y monarquía en la Cataluña bajomedieval. Anales de la Universidad de Alicante, Historia Medieval, 13, 2000-2002, p. 255-282. 44 TOSTES, Rogério R. Relações estamentais durante os Parlamentos Catalães: Pere el Cerimoniós e o braç reial nas convocações de 1366-1367. In: SANTOS, Bento Silva, COSTA, Ricardo da (orgs.). Anais do VIII Encontro Internacional de Estudos Medievais (2009, Vitória). Cuiaba: Ed. UFMS, 2009, v. 2, p. 391-399. 45 FERRER, Maria Teresa. Les Corts de Catalunya i la creació de la Diputació del

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ponto de tensão que se negociariam os significados da potesdade monárquica e os instrumentos que coordenariam o seu exercício. Precisamente, é onde entra o terceiro aspecto de meu topus temático. Compreendida desta maneira, a vigência das cortes passa a existir como um espaço de articulações de sentido, onde primeiro se toma os repertórios da tradição e de seu sentido comum, para depois ultrapassá-lo, impondo-lhe uma forte ressignificação dos esquemas de classificação institucional. Fora assim que o usatge Princeps Namque46 deixaria de simbolizar o clamor do conde de Barcelona aos imediatos da terra, para ser interpretado na segunda metade do XIV como justificativa fiscal ao controle das cortes47. Recordando as discussões levantadas durante as cortes de Perpinyà –possivelmente, as que aconteceram em 1351, em vista dos conflitos com a comuna de Gênova48–, o jurista Guillelm Vallseca depois glosaria este usatge, matizando tais sentidos na aplicação construída pelas reinterpretações seguintes. Em sua glosa se testemunhavam as discordâncias latentes dessa interpretação: “videtur michi quod salvo honore tanti consilii hec determinacio sit contra istum usaticum et verba ad mentem General en el Marc de la guerra amb Castella (1359-1369). Anuario de Estudios Medievales, 34 (2), Madrid, 2004, p. 875-938. 46 Usatici, 68, De obcesione potestatis: “Princeps namque si quolibet casu obcessus fuerit vel ipse idem suos inimicos obcessos tenuerit vel audierit quemlibet regem vel principem contra se venire ad debellandum et terram suam ad sucurrendum sibi monuerit tam per litteras tam per núncios vel consuetudines quibus solet amoneri terra videlicet per fars omnes homines tam milites quam pedites qui habent etatem et posse pugnandi statim ut hoc audierint vel viderint quam cicius poterint ei succur/ /rant. Et si quis ei fallierit de juvamine quod in hoc sibi facere poterit perdere debet in perpetum cuncta que per illum habet. Et qui honorem per illum non tenuerit emendat ei falimentum et desonorem quem ei fecerit cum avere et sacramento manibus propris jurando quoniam Nemo debet fallere ad principem ad tantum opus vel necessitatem.” 47 V. PACHECO, Francisco Luis. El Usatge “Princeps Namque”: las cortes y los juristas. Initium. Revista Catalana d’Història del Dret, 10, Associació Catalana d’Història del Dret “Jaume de Montjuïc”, Barcelona, 2005, p. 225-246. SÁNCHEZ, Manuel. La convocatória del usatge Princeps namque en 1368 y sus repercusiones en la ciudad de Barcelona. Quaderns d’Història, 4, Barcelona, 2001, p. 79-107. 48 Crònica de Pere el Cerimoniós, cap.V, 40-42.

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ejusdem cum a verbis et sentencia ipsius non sit discendendum”49. Na disputa ideológica mantida entre o soberano e os estamentos, definir o sentido sobre o “interesse comum” se tornava um dos argumentos capitais. Por isso Pere III insistiria tanto no tom defensivo da invocação fiscal que viria implantar, tratando-a afinal na necessidade da coisa pública, a que simboliza o chamamento dos naturais da terra, “terram suam ad sucurrendum”. Assim, a interpretação dos juristas reais indicava um sentido práticoanalógico com o qual se inferia que todos os súditos deveriam estar a postos, direta ou indiretamente, às conveniências do seu mando. Conta para isso com o embasamento de seus jurisconsultos, que como o próprio Guillem de Vallseca insistira na teoria do poder supremo da potestade condal, recuperada nas linhas de aproximação romanista do velho axioma rex in regno suo est imperatur 49 Usatici, 68, gl. adicionadas 8, Real Monasterio de El Escorial, ms. lat. Z-I-3 (transcrição e aparato crítico de Aquilino Iglesia Ferreirós*), p. 203: “(...) domino rege Petro et curia in villa Perpiniani (...) / cancellario ipsius existente cum esset dubium an homines ecclesie Gerunde citati per vicarium regium Gerunde ut occurrerent usque maritimum contra novem gáleas Janiensium inimicorum domini regis illi autem noluerunt ire queritur an incidant in penam istius usatici et fuit per majorem partem jurisperitorum consilii regii determinatum (...) / extranee gentes de quibus esset verisimile dampnum posse inferre in aligqua parte Cathalonie sive per terram sive per mare venientes more hostili utpote dicte galee januencium vel aliarum gencium magnum posse habencium vel eciam immi(/.) non nimis dum tamen possent terram dampnificare nisi eis resisteretur fuit tamem visum / (...) quod loca et instrumenta sufficiant (verosimiliter) ad deffendendum partem terre quam gentes extranee conantur invadere non debeant alios homines fatigare a parte que invade specialliter multa remota seu larem foventes eos citando ut illuc vadant non tamen necessário habent abstinere dicti officiales quin citent vel moneant per modum insertum in hoc usatico si facere voluerint archiepiscopus. Sed videtur michi quod salvo honore tanti consilii hec determinacio sit contra istum usaticum et verba ad mentem ejusdem cum a verbis et sentencia ipsius non sit discendendum. Guillermus de Valle Sicha.”

(*) Há uma edição incunábula dessas glosas, a qual não pude consultar; entretanto, é possível encontrar um exemplar no acervo da Biblioteca Nacional de Madrid, titulado Antiquiores Barchinonensium leges: quas vulgus Vsaticos appellat. Glossae in aliquos Vsaticos Barcinonenses D. Peguera, G. de Vallesicca, P. Catani et aliorum Impressum Barchinonae: per Karolum Amorosum Prouensal: impensis. Mercatorum Raphaelis dauder et Iacobi Laceras vibliopolarum Ciuium Barchinonae, 1544.

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e suas consequentes derivações acursianas50. A origem sobre essa prestação repousa, primeiro, num argumento soberanista que era apropriado nas pragmáticas reais, em julgamentos proferidos pela cúria e noutros vestígios que indicam os labores dessas interpretação, tal qual repercutidos nos pareceres atribuídos a Pere Albert51. Enquanto senhor natural, todos os membros da corporação ou universitas real lhe devem suporte, pois é através desse suporte que seu encargo se completa e que se justificam todos os seus atributos. Com efeito, o chamamento popular invoca em sua figura o título de príncep e senyor das terras catalãs52. Logo, a difusão do corpo dos usatges53 se converte em marco legal para a generalidade do principado, mantendo uma “continuação” sobre os capítulos de corte e as constituições da Catalunha, com as quais se acrescentavam o próprio conjunto das “regalias”54. Com elas, estava se sedimentando um repertório de dispositivos técnicolegais que subscrevia a coisa pública por debaixo da voluntas regis, porquanto dela derivaria a legitimidade da corporação, reduzida ao arbitramento da justiça e da intelligas da Lei55. 50 “Omnia que sunt intra fines regni sui sint domini Regis, saltim quoad protectionem et altam jurisdictionem et dominationem et etiam quantum ad proprietatem omnium singularium rerum […] quas dominus Rex donare, recipere et consumere potest, ex causa publice utilitatis de deffensionis regni sui […] Item quod dominus Rex sit imperator in regno suo et imperare possit terre et mari et omnes populi regni sui eius regantur imperio.” Recolhido por PENNINGTON, Kenneth. The Prince and the Law, 1200-1600: Sovereignty and Rights in the Western Legal Tradition. Los Angeles: University of California Press, 1993. 51 Cfr. introdução às Commemoracions: FERRAN, Elisabet. El jurista Pere Albert i les Commemoracions. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 2007. 52 SABATÉ, Flocel. Discurs i estratègies del poder reial a Catalunya al segle XIV. Anuario de Estudios Medievales, 25 (2), Barcelona, 1995, p. 622, cit. Provisions, l. 8, fl. 43-v, Arxiu Històric Comarcal de Tàrrega. 53 IGLESIA, Aquilino. The Birth of the Usatici. Imago Temporis. Medium Aevum, vol. 5, 2011, p. 119-134 54 SÁNCHEZ, Manuel. El naixement de la fiscalitat…, p. 76-80. 55 PACHECO, Francisco Luis. “Non obstante”. “Ex certa scientia”. “Ex plenitudine potestatis”. Los reyes de la Corona de Aragón y el principio “princeps a legibus solutus est”. El Dret Comú i Catalunya. Actes del VII Simposi Internacional

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Encontramos parte do aspecto temporal deste encargo explicado no cerimonial das Ordinacions. Falando da coroação, se declara que “con corona portar en lo cap se pertanya a la dignitat reyal (...) a significança que en lo seu cap lo rey port ab intenció infinida voluntat de fer bones obres, e en special en regir lo poble a ell comenat en agualtat e en justícia”56. Enquanto vértice da universalidade do reino, converge em seu corpo regimental o ideal do interesse público, ideal que supõe identificar a condição do mandato ex plenitudo potestatis e o exercício jurisdicional de pleno e mixto imperio57. Entrementes, a mesma proposição sobre a coisa pública poderia ser reinterpretada a fim de proceder a outras conotações. Atentando-se aos escritos do frade menorita, Francesc Eiximenis, que foi um grande expoente das oligarquias urbanas catalãs e valencianas, temos como detectar essas direções. Para especificar o que prentendia dizer com “proveito” da comunidade –profit de la cosa pública–, Eiximenis remetia às noções escolásticas para enunciar seus modelos de governo (regiment) sobre a república cristã, determinando os vínculos de serviço e de obrigação imprescindíveis para seu exercício. Em tanto, o soberano é encarado como servidor da comunidade, atalaia da justiça, guardião da prosperidade moral e material dos seus súditos. Evolui sob essa via de argumentações uma inferência do vínculo pactista que ultrapassa o do resíduo senhorial na definição do titular régio58; porquanto a sua posição é outorgada por uma sociedade que “no alagí senyoria per amor del regidor, mas elegí regidor per amor de si matexa”59. Firmes nesta ideia, é natural que toda decisão, investidura ou representação da autoridade política tenha de se (Barcelona, 23-24 de maig de 1997). Barcelona: Fundació Noguera, 1998, p. 103115. 56 Ordinacions de la Casa i Cort de Pere el Cerimoniós, II.1, p. 243. 57 SABATÉ, Flocel. La pena de muerte en la Cataluña bajomedieval. Clío & Crímen: Revista del Centro de Historia del Crimen de Durango, 4, 2007, p. 119-126. 58 BOUREAU, Alain. Pierre de Jean Olivi et l’émergence d’une théorie contractuelle de la royauté au XIIIe siècle. In: BLANCHARD, Joel (org.) Représentation, pouvoir et royauté à la fin du Moyen Age. Paris: Picard éditeur, 1995, p. 165-75. 59 Francesc Eiximenis. Dotzè del Crestià. Lo Crestià, cap. 156, p. 337.

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justificar mediante a utilitas publica60; inclusive a posição do ente monárquico, pois “en la cosa pública havia cap, e aquest és aquell qui ha lo regiment o senyoria”61. Este fundamento último da comunidade civil constrange os partícipes do cos místic a uma coerência orgânica com o aperfeiçoamento ético da sociedade –aliás, uma questão bastante elaborada na mística franciscana, mantida na excrecência das doutrinas espirituais como as de Ubertino de Casale62. Deste modo, todos os homens, inclusive o próprio soberano, devem satisfações ao regimento e às direções do fisco. Certamente esses princípios constituem algo que seria tratado como autêntica ética de governo, e que se alargaria em modo de corolário político dos soberanos aragoneses ao longo do século XV. No posto de conselheiro régio, Eiximenis enviara uma carta ao infante Martí, o futuro Martí el Humà, assim que retomara o reino da Sicília, lembrando-o dos principais valores inerentes ao encargo político e da prestança daqueles súditos que financiaram sua vitoriosa campanha: seyor molt alt, avetz feta obra maraveyllosa e de la qual avetz guayat nom perpetual, de la gran proferta que avetz feta al seyor rey per pasar en Sardeya; e avetz-lo animat apasar, e per occasió d’açò trob ya, segons que og, que li fa proferta de mile-cinccens bacinetz. Guarda[tz] açí quant hic ha que dir pensant lo servey poch que avem aüt, ab tanta cortesia que enseyatz a la terra63. 60 EVANGELISTI, Paolo. Credere nel mercato, credere nella res publica. La comunità catalano-aragonese nelle proposte e nell’azione política di un esponente del francescanesimo mediterraneo: Francesc Eiximenis. Anuario de Estudios Medievales, 33 (1), Madrid, 2003, p. 88. 61 Francesc Eiximenis. Regiment de la Cosa Pública, cap. I, p. 41-42. 62 Cfr. WEBSTER, Jill R. Els Menorets: The Franciscans in the Realms of Aragon From St. Francis to the Black Death. Toronto: Pontifical Institute for Medieval Studies, 1993. 63 Francesc Eiximenis. València, 12 mar. de 1396, Arxiu de la Corona d’Aragó, Autògrafs, II-A.8. Transcrito por Cfr. também uma recente edição diplomática, in: MARTÍ, Sadurní. Les cartes autògrafes de Francesc Eiximenis. Estudi General, Revista de la Facultat de Lletras de la Universitat de Girona, 22 (2), 2002, p. 238:

¶.t(em) seyor molt alt auetz feta obra maraueyllosa / e delaq(ua)l auetz guayat nom p(er)petual dela gran p(ro)f(er)ta

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Eiximenis não falava sozinho, já que de fato essas ponderações seguiam muito de perto as exigências que os estamentos manifestavam nas cortes. O seu escrito Regiment de la Cosa Pública data de 1376, e as primeiras partes do Dotzè del Crestià são contemporâneas às cortes gerais de Montsó. Essa consonância entre a ideologia eiximeniana ainda se reforçava na relação direta dos seus escritos junto aqueles leitores, pois podiam ser encontradas cópias de fragmentos dos seus tratados em bibliotecas particulares das grandes famílias burguesas de Barcelona64, e em Valência havia um exemplar do Regiment para a consulta dos jurados da cidade65. Nas alternativas de um discurso favorável aos estamentos, o aparato da tradição jurídica ainda encontrava correspondências positivas, elegendo um repertório textual próximo ao incorporado pelas elocubrações pró-monárquicas. Fundamentavam-se nele prerrogativas do estamento burguês, como o exercício da instituição fiscal e o controle dos procedimentos de arrecadação e distribuição dos donativos concedidos ao soberano. O acompanhamento da fiscalidade, administrada pelo General de la Diputació, também imporiam novas formas de tributação enquanto começava a questionar a validade das antigas regalias. Neste passo, o Princeps namque pudera ser submetido às contestações do segmento burguês, e deslocado, digamos, de suas demarcações ex plenitudo potestatis. Ao lado das requisições exclusivas do soberano, como as tributações decorrentes de maridatge e fogatge, q(ue) auetz feta alseyor rey p(er) pasar en sardeya / e auetz lo animat apasar / e p(er) occasio daço trob ya se go(n)s q(ue) og q(ue) li fa p(ro)f(er)ta de mjl eci(n)ccens bacinetz / gua(r)da.. açi qua(n)t hic ha q(ue) dir pe(n)sa(n)t lo s(er)uey poch que auem aut / ab ta(n)ta co(r)tesia q(ue) enseyatz alat(er)ra

64 HERNANDO, Josep. Obres de Francesc Eiximenis en biblioteques privades de la Barcelona del segle XV. Arxiu de Textos Catalans Antics, 26, 2007, p. 385-567. 65 EVANGELISTI, Paolo. I pauperes Christi e i linguaggi dominativi. I francescani come protagonisti della costruzione della testualità politica e dell’organizzazione del consenso nel bassomedioevo (Gilbert de Tournai, Paolino da Venezia, Francesc Eiximenis). La propaganda politica nel Basso Medioevo. “Atti del XXXVIII Convegno storico Internazionale”, Todi, 14-17 ottobre 2001. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 2002, p. 315-392.

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as arrecadações sobre o Princeps namque estiveram por muito tempo fora do controle da Diputació66. No cumprimento dessas prerrogativas, o rei Pere III instruía seus delegados a avançarem “en los lochs on juredicció no hajam, cor, jassia que d’altres la juredicció sia, empero de tal natura és lo dit usatge, qui és regalía nostra, que en aquells podem fer aquella força que fem en los altres lochs a nostra juredicció sotsmeses”67. Contrariamente, portanto, vinham as manifestações dos braços. No intuito de tolher tal arbitrariedade foram negociadas nas cortes de 1371, e novamente, em 1373, medidas que “suspendessem” o uso indefinido desta prerrogativa arrecadatória. A moeda de troca para obter a aquiescência régia foi, como de costume, a condicional liberação de profertas. Entretanto, sob as sucessivas ameaças das compagnies blanches de Bertrand Du Guesclin que iam de socorro às forças de Enrique Trastâmara68, o monarcar teria de reinvocar repetidas vezes o mesmo usatge interdito. Assim, fora concedido nas cortes de 1368 um donativo de 150 mil libras, depois, 100 mil libras nas assembleias de Tortosa em 137069. No entanto, durante os reunidos de 1373 em Montsó, onde aconteciam cortes gerais para todos os reinos da Coroa, surgiria nova restrição sobre a aplicação do mesmo usatge, conforme firmava o capítulo 56 dos acordos. Nela, os braços faziam assinalar um expresso comprometimento do rei, como medida a garantir que nos próximos anos não se viesse a “convocar ne praticar l’usatge ‘Princeps namque’ ne la 66 Sobre a arrecadação do referido us. 68, tratava-se de uma substituição gradual da obrigação direta “per fars omnes homines tam milites quam pedites qui habent etatem et posse pugnandi statim”, convetendo-a para uma obrigação indireta, com a qual se ofertava a prestação pecuniária no armamento de milícias de defesa. A esta subversão do dever originário se incrementariam outras medidas, consideradas abusivas pelos braços, e combatidas mediante a negociação de novos recuos às intenções soberanistas de En Pere. Ver, a exemplo das motivações geradas pelas convocatórias de 1344 e de 1359, as aplicações dadas ao imposto: Crònica de Pere el Cerimoniós, III, § 194, VI, § 22. 67 ACA, Cancillería, reg. 1520, f. 37v apud SÁNCHEZ, Manuel, op. cit., p. 80. 68 Jean Froissart. Les Chroniques, Livre IIIe, XVI. In: Historiens et Chroniqueurs du Moyen Age, p. 556. 69 Corts, Parlaments i fiscalitat a Catalunya: els capítols del donatiu (1288-1384), docs. XXIII, XXIV e XXV, p. 409-412, 423-424 e 439-443.

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interpretació d’aquell”70. Essas restrições culminam no mesmo impasse que outros pontos já havia levantado sobre a condição de se exercitar o governo. No caso do Princeps namque, suas problemáticas reivindicações seriam tomadas nos arrazoados jurídicos dos séculos séculos seguintes, onde se supunha uma controvérsia dogmática nas interpretações que permitissem invocar e controlar os meios de sua exigência pela potestade real71. Por outro lado, envolvidos nas consequências desses eventos, os estamentos daquelas reuniões tinham uma posição mais radical sobre a legitimidade da requisição régia. Tendo já definido procedimentos para arrecadar o resgate da última convocatória feita pelo rei, os braços intentariam afastar ao máximo possível os riscos de que se assentassem precedentes vagos, a partir de onde o rei pudesse avançar em termos de “autonomia” fiscal. Mesmo com o risco de invasões iminentes pelas companhias mercenárias, os estamentos resistiriam aos argumentos de pressão do rei. Negariam então a obrigatoriedade de se aprestar o resgate, propondo em lugar disso uma interpretação voluntária e convencional –“per ço és necessari ésser feta provisió per vós, senyor, e ajuda per la dita terra de Cathalunya, segons tenor de la dita proposició, ha acordat que per la ajuda dessús dita a defensió de Cathalunya voluntàriament e no per deute, com lo mudament del dit usatge ‘Princeps namque’ sia voluntari”72. Uma notícia deste mesmo debate já havia surgido antes, por volta de 1360, quando o aumento das intrusões mercenárias deixaria evidente a carência de mecanismos de defesa das fronteiras estratégicas do principado73. Fora na mesma época que 70 Corts, Parlaments i fiscalitat a Catalunya: els capítols del donatiu (1288-1384), doc. XXVII, Corts de Montsó 1376, cap. 56, p. 503. 71 Para um planeamento destas disposições em Jaume de Montjuïc, Jaume de Marquilles ou Tomàs de Mières, remeto mais uma vez ao prolixo detalhamento Francisco Pacheco. V. PACHECO, Francisco L. El Usatge “Princeps Namque”, op. cit., passim. 72 Corts, Parlaments i fiscalitat a Catalunya: els capítols del donatiu (1288-1384), doc. XXIV, p. 424. 73

“Sed, quia convocatio ipsius usatici, prout facti experientia multociens demostravit, est multum damnosa gentibus dicti Principatus, pro convocatione

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se fixaram regulamentos sobre a substituição das hostes populares por prestação pecuniária; na sua maior parte esses regulamentos respondem pelos pontos em favor da autoridade monárquica, já que foram elaborados por doutores de direito que representariam os interesses mais ostensivos do soberano; assim mesmo, entre esses juristas também tomavam parte aqueles que iam ao lado dos partidos citadinos, os quais foram os primeiros a incluir uma “possível” voluntariedade da invocação do Princeps namque74. Logo, a intromissão de argumentos próclives a burguesia matizavam os sentidos dominantes de uma centralização autoritária, propondo substituí-los por mecanismos de mediação. Ora, a mera inclusão desses posicionamentos já traziam em si um germe de contestação que soubera se valer das debilidades episódicas do discurso centralizador, impondo-lhe alternativas e vias de acesso às vezes antagônicas. O endossamento jurídico trazido para essas contestações somente adensava o problema. Assim, algumas vilas catalãs de dentro do realengo chegariam a refutar a legalidade do usatge. Em 1385, dentro da vegueria tarraconense, haveria recusa em proceder a novos fogatges –i.e. levantamento censitário dos “fogos” por vila ou cidade75– uma vez que isto se destinasse à arrecadação substitutiva sobre o dever de prestação militar. Se travariam debates jurídicos para que fosse possível adotar uma posição mediadora76. Neste período, o rei intentaria manter longe cuius omnes homines tam equites quam pedites accedere habent nec propter hoc res publica dicti principatus melius deffenditur cum plures qui, pro dicta deffensione, accedunt non sint apti in deffensione nec armati prout decet, immo vastant victualia et depredantur bona subditorum ipsius domini regis.” Cortes de los Antiguos Reinos de Aragón y de Valencia y Principado de Cataluña, III, p. 12. 74 SÁNCHEZ, Manuel. La convocatória del usatge Princeps namque…, op. cit., p. 83, nota 13. 75 Segundo um custo proposto pela delegação real, o censo dos “fogos” serviria ao montante das milícias. Pela razão de 1 combatente por 15 fogos, a partir do censo levantado alguns anos antes. Cfr. Censo de Cataluña ordenado en tiempo del rey Don Pedro el Cerimonioso. BOFARULL, Pròsper de (ed.). Col. de Doc. in. del Archivo General de la Corona de Aragon, vol. XII. Barcelona, 1856. 76 MORELLÓ, Jordi. Las villas del Camp de Tarragona ante la presión fiscal de la Corona durante la Baja Edad Media. In: Fiscalidad de Estado y fiscalidad municipal en los reinos hispánicos medievales, p. 366-367, v. nota 21, sobre os registros do Real Patrimônio (ACA, RP, reg. 2592, f. 1ro-14ro).

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da Diputació a discussão dessas competências de resgate tal como seriam tratadas pelas cortes e, levando a questão mais longe, se propusera interpretar a “defesa do território da Catalunha” nas questões do reino insular da Sardenha77. Essas variações de um demarcador primitivo, simples e aparentemente pouco eficiente para servir a interesses tão diversos, mostram o elastecimento dos conteúdos tradicionais em vista das circunstâncias institucionais de sua invocação. Punha-se em causa a ineficácia dos valores de um fundamento jurídico, mesmo que egresso da época condal, para solucionar os entreveros da afirmação monárquica contra outros setores que litigavam por uma posição afirmativa no contexto das jurisdições fragmentadas. Ao menos tempo, a invocação de uma prerrogativa “puramente monárquica” que pudesse ser mantida a salvo das reclamações dos esquemas de validação das cortes deixava bem enfatizado o teor da ressignificação dos aportes de autoridade política, jurídica e fiscal à disposição dos protagonistas da alta cúpula do principado, passados os anos de ascendência para os de decadência da autoridade régia.

***

De modo mais contundente, essa viragem na paisagem institucional da Catalunha trecentista faz ver o tipo de interpretação que reduz o titular régio à condição de conservador da unitas principatus, destituído agora de qualquer vontade subjetiva para fazer valer sua plenitude de poder, ao mesmo tempo que ele deixa de ser fonte intelectual da lei para assumir o lugar de seu ministerial. Em concreto, convergem para os debates estamentais argumentos de diferentes espécies: (i) os de caráter romanista, cujo estilo operatório serve a formalizar os discursos políticos que ficam à base dos partidos ligados ao debate estamental, e 77 SÁNCHEZ, Manuel. Las Cortes de Cataluña en la Guerra de Arborea. FERRER, Maria Teresa et alii (eds.). La Corona Catalanoaragonesa i el seu Entorn Mediterrani a la Baixa Edat Mitjana. Institució Milà i Fontanals, Departament d’Estudis Medievals. Barcelona: Consell Superior D’Investigacions Cientifiques, CSIC, 2005, p. 361-393.

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que, indo mais longe, conferem eficácia simbólica ao conteúdo de pragmáticas e pactos firmados no âmbito das cortes; eles se complexificam na (ii) evolução de uma consciência de civismo ou de urbanidade citadina, que, atravessando o aristotelismo escolástico e uma intervenção atuante dos minoritas franciscanos, propagam a superioridade dos modelos que legitimam a sede teórica da representação soberana; e, afinal, aparecem como cristalização desses argumentos nos acordos firmados dentro de constituições e capítulos de corte, que refletem o acúmulo de repertórios que foram dando à doutrina da plenitude do poder real um novo sentido de exercício político, que o verticalizava e o diluía sob os pactos curiais. Se por um lado esses argumentos deixam de ser simples teorizações para atingir um ponto de força que corrige –e ressignifica– o discurso de exaltação régia, por outro, eles se materializam na contingência das novas exigências como a de centralização jurisdicional reivindicada pelos síndicos dos municípios catalães; o que se combina com um contexto externo agravado pela precariedade do domínio dinástico catalanoaragonês sobre o mediterrâneo ocidental e na condição imposta a seus soberanos, que dependiam da fiscalidade planejada nos acordos estamentais.

VIII Uma análise do ideal e da prática da Iusticia através do Prólogo da Primeira Partida do rei Alfonso X, o Sábio (1221-1284)

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Elaine Cristina SENKO1

lfonso X tornou-se rei de Leão e Castela em 1 junho de 1252, momento de grande importância e impacto na vida subsequente desse personagem. Considerado pela historiografia medievalista o rei “Sábio”, aos moldes de Salomão, Alfonso X desejava em seu próprio tempo ser considerado um monarca “Justo”. Rei que, inclusive, viveu uma época de intenso movimento legislativo na Península Ibérica no século XIII, participando desse instante no qual as monarquias tornaram-se mais independentes da esfera eclesiástica. Muito embora o poder espiritual permanecesse presente na estrutura real, ela acabaria 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Membro do Núcleo de Estudos Mediterrânicos. Orientada pela Professora Doutora Marcella Lopes Guimarães. Email: elainesenko@hotmail. com

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por sofrer os primeiros abalos de uma monarquia que estava se fortalecendo com a ajuda de sua nobreza e através da feitura de leis seculares. Observando a Península Ibérica do século XIII, verificamos a atuação política por parte dos governantes em busca de uma efetiva organização dos reinos após o agito militar de conquistas dos territórios muçulmanos. No ambiente do reino de Leão e Castela percebemos uma consistente preocupação nesse sentido já com o rei Fernando III (1201-1252), o qual vislumbrou na tarefa legislativa uma política a ser empreendida pelo rei na busca de estabilidade e estruturação ao reino. No entanto será Alfonso X (1221-1284), filho de Fernando III, que levará adiante e concretizará os esforços do pai, tornando-se o responsável por normatizar as leis do reino castelhano em documentos como o Setenário, Fuero Real, Espéculo e, naquele que foi seu maior trabalho, As Siete Partidas. Também no reino de Portugal vislumbramos uma tendência para a ordenação e composição de escritos jurídicos, especialmente sob os reinados de Dom Afonso III (1210-1279) e Dom Dinis (1261-1325). Todo esse conjunto de iniciativas faz com que denominemos esse período como a “época dos reis legisladores ibéricos”. Reis, aliás, cuja prerrogativa estava assentada na defesa da fé cristã, na busca pela paz e unidade do reino e, principalmente, no exercício e cumprimento da justiça. De fato, esse fenômeno legislativo, que estava vinculado ao renascimento do Direito Romano no século XII, tornar-se-á um dos pilares no século seguinte na busca por uma formação identitária por parte do reino de Leão e Castela e do reino de Portugal2. Pois bem, esse período do século XIII na Península 2

De acordo com a historiadora Fátima Regina Fernandes: “Esse renascimento parte da Escola de Bolonha, defensora do partido dos imperiais, que formará uma plêiade de juristas, glosadores e comentadores dos textos justinianeus. Os imperiais armam-se de legistas, capazes não só de ler, mas também interpretar a essência de princípios que forma constituídos numa época bem distante e para uso de jurisconsultos romanos. Defendendo e recuperando a ordem jurídica do Império Romano, os imperiais do século XII afirmavam-se frente ao Papado. E por que se afirmavam? Para compreender isso, é preciso penetrar no espírito que perpassava a obra justiniana. As três grandes compilações de Justiniano (528/534), que darão origem no início do século XII ao Corpus Iuris Civilis, além da função de organização jurídico-legislativa que buscaram promover, tiveram o cuidado de

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Ibérica configura-se como uma época, em relação ao plano externo, de afirmação decisiva do poder régio diante do Império e do Papado; e, em relação ao plano interno, de busca pelo fortalecimento através de trabalhos legislativos, de uma política autônoma e de renovações na administração. Sobre este ultimo aspecto, o plano interno, duas questões principais estiveram de modo muito presente na pauta de preocupações de Alfonso X, urgindo ações imediatas por parte dele: a ordenação de uma sociedade tão diversa que continha grupos de muçulmanos, judeus e cristãos; e, ademais, a necessidade de garantir os privilégios senhoriais da nobreza, mas ao mesmo tempo em que buscando o seu controle. Busquemos então conhecer melhor o monarca Alfonso X, personagem que assumirá tantas responsabilidades sobre o futuro do reino de Leão e Castela. Alfonso X nasceu em Toledo em 23 de novembro de 1221, tendo recebido desde sua infância uma refinada educação artística, bélica e jurídica (seja na corte de Luís IX ou com mestres de sua terra natal)3. Sucedeu a seu pai, o rei de Castela e Leão Fernando III (1217-1252), aos trinta anos de idade, dentro de um ritual de sacralidade militar - em detrimento da consagração litúrgica. abster-se de preservar e aplicar os princípios republicanos, acentuando a figura do governante como Princeps, cuja vontade é lei, aquele que tem a Plenitudo Potestatis”. FERNANDES, Fátima Regina. A recepção do Direito Romano no Ocidente europeu medieval: Portugal, um caso de afirmação régia. Revista História: Questões e Debates. 41, 2004, p.74-75. 3

É salutar destacar aqui a percepção de José Mattoso sobre o estudo do rei Alfonso X: “Afonso X – um mito. Termino com o receio de me ter deixado seduzir demasiado por ele. Simpatia, que depois de terminar esta breve investigação não posso deixar de reconhecer. Terei, então contribuído para o fortalecer, em vez de o reduzir às suas dimensões objetivas? Terei acrescentado à imagem do rei enciclopédico e sonhador, a do político sagaz e respeitador das formações nacionais, na construção de uma comunidade ibérica, pluralista e pacífica? Devo confessar que não me sinto demasiado angustiado por estas dúvidas. No fundo não trocaria facilmente por outro o prazer que me deu navegar um pouco neste mar imenso e cheio de mistérios e surpresas, que é a documentação afonsina. Não trocaria facilmente por outro este prazer de dar vida à mediação que esses documentos constituem para poder dialogar com esse homem fascinante que foi Afonso X, o Sábio”. MATTOSO, José. As relações de Portugal com Castela no Reinado de Afonso X, o Sábio. Estudos Medievais. 7, 1986, p. 91-92.

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Ele era sobrinho do imperador Frederico II (1212-1250) e do rei francês Luis IX (1226-1270), também cunhado do rei Eduardo I da Inglaterra (1272-1307) e, por fim, genro de Jaime I de Aragão (1213-1276). O reino que Alfonso X recebeu estava repleto de novas realidades e circunstâncias atenuantes, as quais urgiam a tomada de rápidas medidas, como assinala Joseph F. O’Callaghan: Alfonso X subió al trono a poco de haberse producido una gran ampliación del territorio del reino como consecuencia de la conquista de Andalucía y Murcia. Ello había supuesto el aumento del prestigio y autoridad de la corona; pero también había creado problemas de no fácil solución. El nuevo rey debía repoblar los territorios recién conquistados; debía preocuparse de la numerosa población musulmana sometida ahora al dominio cristiano; debía hacer frente a la inflación galopante que durante años acosaría al rey y a su reino. Por si fuera poco, Alfonso era un monarca ambicioso que planeaba llevar a cabo la invasión del Norte de Africa proyectada por su padre para controlar la ruta seguida hasta entonces por los ejércitos musulmanes que habían invadido España. Esperaba también conseguir la hegemonía sobre los restantes reinos vecinos resucitando para ello las antiguas pretensiones imperiales de León, y sobre todo estaba decidido a obtener la corona del Sacro Romano Imperio4.

No ano de 1257 o rei Alfonso X, por conta de sua hereditariedade materna ligada ao poder em Constantinopla e aos Hohenstaufen5, entrou na disputa com Ricardo de Cornwall (apoiado pelo partido dos guelfos) e com Rodolfo de Habsburgo (candidato do pontífice Gregório X) pelo ofício de Imperador do Sacro Império Romano Germânico. Tal questão teve seu início no ano de 1250, quando o imperador do Sacro Império Romano Germânico, Frederico II, morreu. Com esse fato, o reino germânico foi legado e dividido entre seu filho Conrado 4

O’CALLAGHAN, Joseph F. El Rey Sabio: El reinado de Alfonso X de Castilla. Traducción de Manuel González Jiménez. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1999, p.25. Cf: AYALA MARTINEZ, Carlos de. Directrices fundamentales de la política peninsular de Alfonso X. (Relaciones castellano-aragonesa de 1252 a 1263). Madrid: Antiqua et Mediaevalia, 1986.

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A mãe de Alfonso X era chamada Beatriz da Suábia ou Isabel Hohenstaufen (1202-1235). Era filha de Irene Angelina, Princesa de Constantinopla e de Filipe, Duque da Suábia e Rei da Germânia e dos Romanos.

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IV (que faleceu em 1254) e William da Holanda (que morreu dois anos depois de Conrado). Este momento é conhecido como o Interregno do Sacro Império Romano Germânico, exato instante em que o monarca Alfonso X pleiteou sua ascensão ao Império. Um fato a seu favor: Ricardo de Cornwall logo faleceu, restando apenas a concorrência de Rodolfo. Com a demora e hesitação pela escolha do novo imperador, Alfonso X foi de encontro ao Papa em Beaucaire, no ano de 1275. Entretanto, a reunião foi um desastre político, pois o Papa Gregório X negou apoio ao rei castelhano, assim enfatizando a escolha de Rodolfo de Habsburgo. Alfonso X renunciou a sua candidatura após esse malogro político. De fato, todo esse longo período (1257-1275) foi de exaustiva busca pelo cargo de imperador, o que desgastou Alfonso X e, consequentemente, alimentou as insurgências internas do reino castelhano. O desentendimento com o Papa Gregório X e a súbita morte do primogênito de Alfonso X, Fernando de la Cerda, ambos fatos ocorridos em 1275, ocasionaram uma grande reviravolta na atitude do rei para com a vida e a política6. Colocando-se como imperador de seu próprio reino, Alfonso X enfatizou cada vez mais sua imagem como “rei justo”, perspectiva para ele essencial e que buscava construir em torno de si (como projeto político) desde os primeiros anos de seu governo, quando propôs e realçou tal concepção teórica naquele que foi seu maior trabalho legislativo, Las Siete Partidas. Devemos, no entanto, recordar que, antes mesmo da grande recolha de tradições e leis realizada por Alfonso X para a composição das Las Siete Partidas, na qual propõe seu conceito de justiça, o mesmo rei já havia anteriormente ordenado a escrita de outros livros de leis, a saber: o Espéculo e o Fuero Real (promulgados juntos nas Cortes de Toledo em 1254)7. O primeiro, Espéculo, escrito na corte de Castela, apresentava um sentido universal das leis e era utilizado pelos juristas castelhanos e pelo rei Alfonso X; já o segundo, o Fuero Real, foi distribuído para as cidades que estavam sob o controle político castelhano, 6

SANCHEZ PEREZ, José A. Alfonso X, el Sabio. Madrid: M.Aguilar Editor, 1944, p.42.

7

Cf: PROCTER, Evelyn S. Curia y cortes en Castilla y León (1072-1295). Traducción de Antonio S. Durán y Salustiano Moreta. Madrid: Cátedra, 1988.

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ou seja, era um documento sintetizado do Espéculo para os nobres, os quais deviam estar atentos também às leis consuetudinárias8. Foi no momento em que se tornou concorrente à coroa do Sacro Império Romano Germânico que o rei Alfonso X ordenou a revisão e ampliação do Espéculo. Entre 1256 e 1265 este trabalho foi revisado pelo scriptorium real e uma nova versão do Primeiro Livro do Espéculo surgiu, descrito como o Libro del fuero de las leyes, no qual o rei deixava claro sua intenção de ser imperador9. Já o Segundo Prólogo era o que conhecemos como Setenário. Apenas no século XIV que o Libro del fuero de las leyes intitulouse, formalmente, Las Siete Partidas. Esta fonte legislativa apresenta sete partes e está disposta por Títulos e Leis em língua castelhana: La Primera Partida demonstra o significado da Lei e diz respeito ao grupo eclesiástico; La Segunda Partida tem como tema o significado de rei e imperador; La Tercera Partida trata da justiça; La Cuarta Partida discute a relação do direito de família e as relações sociais; La Quinta Partida indica as leis do direito de propriedade e sobre a regularização do comércio; La Sexta Partida trata das heranças; e La Séptima Partida finaliza com leis penais. Seguindo a mesma opinião de O’Callaghan, concordamos que Las Siete Partidas, por se tratar de um documento filho de uma revisão do Espéculo, teve sim força de lei na época de Alfonso X10. Ademais, tratava-se de um documento legislativo também muito conhecido no reino de Portugal pelos seus reis, como Afonso III e de Dom Dinis. Entretanto, depois da morte de Alfonso X, seu filho e novo rei, Sancho IV, interrompeu a utilização de Las Siete Partidas por receio de que alguma lei neste documento deslegitimasse sua ascensão ao trono real. Somente com Alfonso XI (1311-1350) as leis de Las Siete Partidas retornaram com aplicabilidade legislativa, 8

O’CALLAGHAN, Joseph F. El Rey Sabio: el reinado de Alfonso X de Castilla. Traducción Manuel González Jiménez. Universidad de Sevilla: Secretariado de Publicaciones, 1999, p.56-60.

9

O’CALLAGHAN, Joseph F. El Rey Sabio: el reinado de Alfonso X de Castilla. Traducción Manuel González Jiménez. Universidad de Sevilla: Secretariado de Publicaciones, 1999, p.61.

10 O’CALLAGHAN, Joseph F. El Rey Sabio: el reinado de Alfonso X de Castilla. Traducción Manuel González Jiménez. Universidad de Sevilla: Secretariado de Publicaciones, 1999, p.62.

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prolongando-se tal uso no reinado seguinte, de Pedro I de Castela (1350-1369), até muito tempo depois. Como prova dessa “longa duração” de uso apontamos a própria edição da fonte aqui utilizada: Las Siete Partidas11 em língua castelhana medieval glosada pelo licenciado Gregorio Lopez do Conselho Real das Índias e publicada em 1555 por Andrea de Portonaris, do Boletín Oficial del Estado em Salamanca (Espanha); edição que, na verdade, foi material republicado a mando da Majestade Real da Espanha e Imperador do Sacro Império Romano Germânico, Carlos I Habsburgo (1500-1558), para ser utilizada no reino e como base da regimentação de leis na colonização da América Espanhola. O trabalho legislativo de Alfonso X pode ser entendido como parte de uma estratégia maior de secularização da sociedade, tendo em vista a idéia de que as relações entre o rei e o povo seriam regidas agora através da aplicabilidade das leis, que deveriam sempre primar pelo bem comum. Tais relações tornar-se-iam mais fortes do que qualquer laço feudal, na medida em que o poder civil buscava distanciar de si qualquer dependência para com os poderes espirituais. O rei, nesse caso Alfonso X, colocava-se acima dos demais nobres e de qualquer outra ingerência, revelando sua posição de mayor12, aliando potestas e auctoritas. Acreditamos que o trabalho legislativo de Alfonso X tinha como pretensão legitimar o seu poder e, conseqüentemente, unir e fortalecer a sociedade em torno da égide de um rei que buscava, no conjunto de suas ações, demonstra-se sempre justo. Trata-se da principal virtude 11 ALFONSO X. Las Siete Partidas (tomo I, II, III). Glosadas por el Licenciado Gregorio Lopez. Salamanca: Boletín Oficial del Estado, versão de 1555. 12 “Alfonso X se consideraba a sí mismo, en su proprio reino, señor sobre todos, tanto los naturales como los que no eran. [...] En cuanto su cabeza, debía soportar el sufrimiento de sus súbditos como si fuesen miembros de su cuerpo; debía amarlos y amonestarlos como si fuesen sus hijos. El rey es la regla mediante la cual se enderezan las líneas torcidas, y se conocen y corrigen los errores. [...] Esta forma de expresarse refuerza la superioridad o soberanía del rey. Aunque el término maiestas, en el sentido de autoridad soberana del governante, fue usada frecuentemente por sus precedecesores, no la encontramos en los escritos de Alfonso X y de sus colaboradores. En el lenguaje alfonsí, esta idea se expresaba mediante palabras tales como mayor o mayoral”. O’CALLAGHAN, Joseph F. El Rey Sabio: El reinado de Alfonso X de Castilla. Traducción de Manuel González Jiménez. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1999, p.49.

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atribuída ao rei, inclusive seria considerada a “mãe” de outras três também muito importantes: a cordura (prudência), a tempranza (temperança) e a fortaleza de corazon. Ademais, ao demonstrar-se justo, o rei assumia a posição de sábio. De fato, no intuito de relacionar o conceito de justiça para com a ideia de manutenção da ordem na comunidade, as perspectivas legislativas elaboradas por Alfonso X encontram suporte no seguinte pensamento aristotélico: “La justicia, en cambio, es un valor cívico, pues la justicia es el orden de la comunidad civil, y la virtud de la justicia es el discernimiento de lo justo”13. Por esse motivo é que percebemos uma constante referência a pratica da justiça ao longo de Las Siete Partidas, pois este era o elemento teórico a ser reforçado. No Prólogo da obra de Las Siete Partidas já temos a sinalização dessa importância do conceito de justiça e rei justo, pois a Iusticia é uma virtude advinda de Deus para os monarcas e serve de modelo de conduta para eles: PROLOGO DEL MVY NOBLE REY DON ALFONSO NOUENO DESTE NOMBRE, SOBRE LA COPILACION DELAS SIETE PARTIDAS: Dios es comienço, e medio, e acabamiento de todas las cosas, e fin el ninguna cosa puede ser: ca por el su poder son fechas, e por el su saber son gouernadas, e por la su bõdad son mantenidas. Onde todo ome que algun buen fecho quisiere començar, primero deue poner, e adelantar a Dios en el, rogandole e pidiendole merced, que le de saber, e voluntad, e poder, porque lo pueda bien acabar. Porende nos don Alfonso por la gracia de Dios Rey de Castilla, e de Toledo, e de Leon, e de Galizia, e de Seuilla, e de Cordoua, e de Murcia, e de Iaen, del Algarue, entendiendo los grãdes lugares q tienen de Dios los reyes enel mundo, e los bienes que del resciben en muchas maneras señaladamente en la muy gran honrra que a ellos faze, queriendo que ellos sean llamados Reyes, que es el su nombre. E otrosi, por la iusticia que han de fazer para mantener los pueblos de que son señores, que es la su obra: e conociedo la muy gran carga, que les es con esto, si bien no lo fiziessen: no tan solamente por el miedo de Dios que es tan poderoso e iusticiero, a cuyo iuyzio han de venir, e de quie se no pueden por ninguna manera asconder, ni escusar: qui si mal fizieren, no ayan la pena que merecen: ma avn porla verguença e la afrenta delas gentes del mundo que juzgan las cosas, mas por voluntad, 13 ARISTÓTELES. Política. Introducción, traducción y notas de Manuela García Valdés. Madrid: Editorial Gredos, 1999, p.53.

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que por derecho. E auiendo fabor de nos guardar destas afrentas e del daño que ende nos puede venir. E otrosi, la muy grande merced que nos Dios fizo en querer que viniessemos del linage onde venimos, e el lugar en que nos puso, faziendonos señor de tantas buenas gentes, e de tan grãdes tierras, como el quiso me ter so nuestro señorio. Catamos carreras porque nos, e los q despues de nos reynassen en nuestro señorio, sopiessemos ciertamete los derechos para mantener los pueblos en Iusticia e en paz. Otrosi, porq los entedimietos delos omes q son departidos en muchas maneras se acordassen en uno, co razo verdadera e derecha, para conoscer primeramete a Dios, cuyos son los cuerpos e las almas q es señor sobre todos, e de si alos señores teporales, de quien rescibe bien fecho en muchas maneras: cadavno ensu estado, segu su merescimieto. Otrosi, q fiziesse aqllas cosas q fuese tenidas por buenas, e de q les viniesse bie: e se guardasse de fazer yerro q les estuviesse mal, e de q les pudiesse venir daño, por su culpa. E porq todas estas cosas no podria fazer los omes cuplidamente, sino conosciesse cada vno en su estado, ql es lo q couiene q faga en el, e de lo q se deue de guardar. E otrosi, delos estados de las otras cosas a q deue obedecer. Poresso fablamos todas las cosas e razones q a esto pertenescen [...]14.

Neste trecho de fonte é sinalizado que Deus é o começo, meio e o fim de todas as coisas, e Ele não pode ter fim em nenhuma outra coisa, pois Ele é que mantém a ordem no mundo. Para o homem poder fazer o bem ele deve avisar a Deus para que o Bem prevaleça totalmente. Em seguida Alfonso X é apresentado pela fonte: Alfonso X, por graça de Deus, rei de Castela, Toledo, Leão, Galícia, Sevilha, Córdoba, Múrcia, Jaén e do Algarve. Depois da apresentação do monarca, verificamos uma forma de explicação da posição dos reis no mundo: estes governam o mundo com a permissão de Deus. De fato, através da justiça os reis mantêm os povos sob seus cuidados, por isso a tarefa de ser rei é de “muy gran carga”. Os reis, nesse sentido, devem obedecer o que advém da justiça de Deus, pois Ele é o Justiceiro. Além disso, devem respeitar o direito mais do que suas próprias vontades. E assim Deus colocou os reis em boas linhagens. O direito serve ao futuro para manter o povo em justiça e em paz. Ademais, cada homem na 14 ALFONSO X. Las Siete Partidas (tomo I, II, III). Glosadas por el Licenciado Gregorio Lopez. Salamanca: Boletín Oficial del Estado, versão de 1555, fólios 3, 3v, 4.

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sociedade recebe seu direito conforme seu estado e merecimento. O entendimento dos homens também deveria seguir uma unicidade, pois os homens são corpos e almas de Deus. Assim é que deveriam agir os señores teporales. Segue o Prólogo: E fezimos ende este libro, porque nos ayudemos nos del e los otros q despues denos viniesse conosciedo las cosas, e oyendo las ciertamete: ca mucho couiene alos reyes e señaladamente alos desta tierra, conocer las cosas segud son, e estremar el de derecho del tuerto, e la metira dela verdad: ca el q no supiere esto, no podra fazer la iusticia bie e cuplidamete, q es a dar a cada vno lo q le couiene cuplidamete, e lo q meresce. E porq las nras getes son leales, e de grãdes coraçones: por esso a menester q la lealtad se matenga co verdad, e la fortaleza de las voluntades con derecho, e con iustitia: ca los reyes sabiendo las cosas que son verdaderas e derechas, fazerlas han ellos, e no consentiran alos otros que passen contra ellas: segud dixo el rey Salomon que fue sabio y muy justiciero, q quando el rey estuviesse en su Cadira de iusticia q ante el su acatamieto se desata todos os males. Ca pues q lo entendiere, guardara a si e alos otros, de daño15.

Neste seguimento vemos o anúncio de que as Las Siete Partidas é um livro que ajudará, principalmente, aos reis, na verificação do que é torto e do que é direito; do que é mentira do que é a verdade, pois quem não souber fazer esta distinção não saberá fazer a justiça bem e adequadamente (que é seguir a máxima “q es a dar a cada vno lo q le couiene cuplidamente” e o que cada um merece). Destacamos que no Prólogo há uma grande ênfase à questão do merecimento que cada homem deve possuir para, enfim, receber seu direito. Ou seja, o direito atinge somente os que caminham na retidão e fazem por merecer suas ações, e por isso são e devem ser reconhecidos pela sociedade. As gentes (o povo) devem ser leais aos senhores, e de “grandes corações”, sendo por isso importante que a lealdade se mantenha ligada à verdade e à fortaleza das vontades com o direito e com a justiça. Seguindo isso, como uma espécie de manual, os reis saberão as coisas que são verdadeiras e direitas e não consentirão que as 15 ALFONSO X. Las Siete Partidas (tomo I, II, III). Glosadas por el Licenciado Gregorio Lopez. Salamanca: Boletín Oficial del Estado, versão de 1555, fólios 3, 3v, 4. Meus grifos.

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coisas erradas aconteçam; ademais, segundo o que disse o rei Salomão, que foi um homem sábio e justiceiro, quando um rei estiver em seu trono da justiça sua ação deve desfazer todos os males. O rei deve guardar a si e aos outros do dano e foi por esta razão que Alfonso X realizou este livro: para que sempre os reis do senhorio se inspirem nele como um espelho e vejam as coisas que devem ser arrumadas e as arrumem. Por isso, acreditamos, que as Las Siete Partidas pode também ser considerada, além de uma fonte legislativa e jurídica filosófica, um espelho de príncipes16. Ao final do Prólogo, verificamos: E por esta razõ fezimos señaladamente este libro: porq siempre los reyes del nuestro señorio se cate enel ansi como en espejo: e vean las cosas q an en si de enmedar, e las enmieden, e segund aquesto q fagan en los suyos. Mas porq tantas razones, ni tan buenas como auia menester para mostrar este fecho, no podiamos nos fablar por nuestro entendito, ni por nro seso, para cuplir tan grand obra e tan buena, acorrimos dela merced de Dios e del bendicto su filho nuestro señor Iesu Christo, en cuyo esfuerço nos lo começamos, e de la virgen santa Maria su madre, qes medianera entrenos e el e de toda la su corte celestial: e otrosi de los dichos dellos. E tomamos de las palabras e de los buenos dichos q dixerõ los sabios, q entendiero las cosas razonadamete, segud natura e delos derechos de las leyes, e de los buenos fueros q fizieron los grãdes señores, e los otros omes sabidores de derecho, enlas tierras q ouierõ de juzgar. E pusimos cada vna destas razones do couiene. E a esto nos mouio señaladamente tres cosas. La primera, el muy noble e bienauenturado rey dõ Fernãdo nro padre q era cuplido de justicia e de derecho, q lo quisiera fazer si mas biuiera: e mãdo a nos q lo fiziessemos: la seguda, por dar ayuda e esfuerço alos q despues de nos reynasse, porq pudiesse mejor sufrir la grã lazeria e trabaio q an de mãtener los reynos, los q lo bien quisiese fazer. La tercera, por dar carrera alos omes de conoscer el derecho e la razon, e se supiesse guardar de fazer tuerto niyerro, e supiesse amar e obedescer alos tros señores q despues de nos viniessen. E este libro fue começado a fazer e a cõponer, vispera de S. Iuan Baptista, a quatro años e xxiij. días andados del comieço 16 A tradição sapiencial oriental e a tradição de espelhos de príncipes do círculo erudito do rei da França Luís IX também poderiam ter afetado a proposta de Las Siete Partidas. Cf. PALACIOS MARTÍN, Bonifacio. El mundo de las ideas políticas en los tratados doctrinales españoles: los “espejos de príncipes” (12501350). Europa en los umbrales de la crisis: 1250-1350. Pamplona, 1995, p.463-483.

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del nro reynado, q começo quando andaua la A Era de Adam en cinco mill e veynte vn años Hebraycos, e dozientos e ocheta e siete dias. E la A Era del diluuio, en quatro mill e trezientos e cinquenta e tres años Romanos, e ciento e cinco dias mas. E la A Era de Nabucodonosor en mill e nouecientos e nouenta e ocho años Romanos, e nouenta dias mas. E la A Era de Felipo el gran rey de Grecia, en mill e quinientos e sesenta e quatro años Romanos, e veynte y dos dias mas. E la A Era del gran Alexandre de Macedonia, en mill e quinientos e sesenta e dos años Romanos, e dozientos e quarenta e tres dias. E la A Era de Cesar en mill e dozientos e ochenta e nueue años Romanos, e ciento e cinqueta dias mas. E la A Era de la Encarnacion en mill e dozientos e cinquenta e vn años Romanos, e ciento e cinquenta e dos dias mas. E la A Era de los Arauigos en seyscientos e veynte nueue años Romanos, e trezientos e vn dias mas. E fue acabado desde que fue començado a siete años cumplidos17.

Como vimos o documento encaminha-se para o final alertando que foi com a ajuda de Deus, de seu filho Jesus Cristo, da medianeira entre nós e a corte celestial Santa Maria sua mãe, e dos sábios em direito, que puderam ser colocadas no livro as razões que convém. E a isto, Alfonso X e seus sábios, acrescentaram três coisas: 1. O rei Fernando III (pai de Alfonso X), que era afeito a justiça e o direito, pediu que Alfonso X fizesse tal obra legislativa; 2. Este livro serviria para os futuros reis do reino de Leão e Castela para ensinar-lhes a dura tarefa de governar suas terras e manter o reino; 3. Para dar oportunidade aos homens de conhecer o direito e a razão, e que soubessem se prevenir do torto e do erro, e que assim soubessem amar e obedecer aos outros senhores no futuro. Pois bem, o início da escrita do documento é cronologicamente demarcado na véspera do dia de São João Batista, quando já há quatro anos Alfonso X era o novo rei, ou seja, em 1256. Além disso, a demarcação da fonte é contada através de outros sinalizadores de tempo: A Era de Adão e dos anos hebraicos; A Era do Dilúvio; A Era de Nabucodonosor; A Era de Felipe, o Grande rei da Grécia; A Era do Grande Alexandre da Macedônia; A Era de César; A Era da Encarnação; A Era dos Arauigos. Portanto, a obra jurídica de Alfonso X, em especial Las Siete 17 ALFONSO X. Las Siete Partidas (tomo I, II, III). Glosadas por el Licenciado Gregorio Lopez. Salamanca: Boletín Oficial del Estado, versão de 1555, fólios 3, 3v, 4.

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Partidas, da qual analisamos seu prólogo, caminha no sentido de apresentar um conjunto de premissas teóricas que visam múltiplas funções, dentre as quais, principalmente, estabelecer uma melhor e mais pacífica convivência entre os nobres/o povo para com a pessoa do rei, este um verdadeiro guia, indicado por Deus, para o governo de todos18. Trata-se, em suma, de uma estratégia política por parte de Alfonso X diante de seu atenuante contexto, marcado por questões de conflito interno no reino de Leão e Castela, no qual destacamos a situação de convivência por vezes conflituosa entre as diferentes religiões, e por suas pretensões na política externa, na qual Alfonso X se envolveu por meio de sua concorrência ao trono de imperador do Sacro Império Romano Germânico, objetivo este fracassado. O aspecto teórico da justiça, em específico, tão enfatizado no trabalho jurídico que analisamos aqui, apresenta-se como um elemento que deve ser característico às ações e comportamentos do monarca; surge, assim, como uma evidência que assegura a legitimidade do rei e de sua tão importante função social. Dessa forma, nossos estudos futuros darão ênfase a uma análise desse conceito de justiça formulado por Alfonso X em seu tempo, o qual acreditamos ser uma peça chave para a compreensão de sua percepção em torno do que seria um digno rei castelhano.

18 Isso é detectado, por sua vez, também em outra obra alfonsina, nas Cantigas de Santa Maria. Cf : SILVEIRA, Aline Dias da. Política e convivência entre cristãos e muçulmanos nas Cantigas de Santa Maria. PEREIRA, Nilton Mullet; ALMEIDA, Cybele Crossetti de; TEIXEIRA, Igor Salomão (organizadores). Reflexões sobre o medievo. São Leopoldo: Oikos, 2009, p.39-59.

IX O ofício do rei em Portugal: A função dos reis de Avis e suas relações com o “Stado Ecclesiastico”

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o longo da Idade Média foram inúmeros os pensadores que se dedicaram a refletir acerca da origem e finalidade do poder temporal e do poder espiritual. Em meio a tais questões, a cristianização das perspectivas aristotélicas abriu espaço para a consideração do Estado, o poder temporal, como um domínio distinto do espiritual, o que favoreceu uma ampliação das funções do poder régio. Nesse processo, é notável que, nos séculos XIV e XV – período marcado por inúmeras transformações –, diferentes reis se identificassem como reformadores da Igreja, posição que se fundamentava no serviço de Deus e no bem do reino. Em meio a esse contexto, analisaremos o caso português quatrocentista, caracterizado pela ascensão da Dinastia de Avis, produtora de um projeto político que também se expressa 1 Doutorando no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Bolsista da CAPES. Orientado pela Prof.ª Dr.ª Vânia Leite Fróes. E-mail: dougmotahistó[email protected]

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na construção de uma teoria política acerca do ofício real. Diferente de outros reinos, em Portugal é notável que os próprios monarcas e membros da família real desenvolvam pensamentos políticos relativos à temática, tanto promovendo traduções, quanto escrevendo obras acerca da função do poder régio. Analisando diferentes fontes, acreditamos poder observar os caminhos variados em que se estabeleciam as relações entre o poder temporal e o poder espiritual na baixa Idade Média, especialmente no caso português avisino, marcado por uma concepção de poder que estabelecia uma redefinição das funções do clero e do rei. O temporal e o espiritual no Ocidente Medieval Ao analisar o desenvolvimento das estruturas políticas ao longo da Idade Média é ponto comum na historiografia a observação de que o crescimento e a afirmação do poder régio, ou o próprio processo de formação do Estado moderno, foi caracterizado por uma ampliação lenta e gradual, mesmo que com altos e baixos, das esferas de atuação do rei. Nesse quadro de intensos debates historiográficos é consenso que os reis medievais foram os grandes promotores da construção do Estado, tanto no desenvolvimento de releituras e novas concepções políticas, quanto na criação de instrumentos e instituições que garantissem o exercício do poder. A fim de avançarmos para a discussão específica do ofício régio em suas relações com o ‘poder espiritual’, convém esclarecer a inserção historiográfica a ser seguida, especialmente no que tange ao quadro de estudos acerca das estruturas políticas do baixo medievo. Compreendemos que a ampliação do âmbito de competência do exercício do poder régio modificou a relação entre os poderes temporal e eclesiástico, contudo questionamos que ‘crescimento do poder do Estado’ coincidiu com um processo de ‘laicização’ e uma delimitação clara de esferas de atuação destes poderes. O período compreendido entre meados do século XII e finais do século XV conheceu a formação de ideias políticas que avançaram em separar a Igreja dos poderes seculares, porém essa realidade não impossibilitou que os mesmos poderes seculares ampliassem suas competências no ‘terreno religioso’, e assim é possível afirmar que as formas políticas tardo-medievais

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expressam uma “resacralização do poder político”2. Nesse sentido concordamos com Nieto Soria ao defender que a secularização do baixo medievo pode ser caracterizada como uma inclusão do eclesiástico no político, inclusão que produz uma aceitação pelo político de que certa parte de sua legitimação reside no reconhecimento de sua parcial, porém essencial, fundamentação religiosa que se traduz em compromissos de cooperação entre as esferas3. Feitas essas considerações é interessante apresentarmos as linhas gerais do pensamento político no Ocidente Medieval, para em seguida observar o caso português. Em grande parte as discussões que confrontaram a Igreja e o Império, e posteriormente a Igreja e as Monarquias, envolveram as delimitações acerca da origem e finalidade de cada poder. Em inícios do medievo é possível notar uma “quase-identificação” entre a Igreja e o Império4, e por mais que o movimento de afirmação do primado papal estivesse presente e fosse reforçado pelas iniciativas do papa Leão I, enquanto a figura imperial se manteve assumindo a posição de Vicarius Christi, a situação da supremacia do papa foi de difícil estabelecimento. A premissa paulina de que todo poder vem de Deus foi interpretada de variadas formas no medievo, e o papado tendeu a estabelecer uma leitura que colocava o pontífice na posição de mediador entre Deus e os homens, quem recebia todo o poder distribuindo-os posteriormente. Essas leituras ofereceram o caminho para a legitimação das intervenções papais nas esferas 2

Estas discussões podem ser acompanhadas de forma mais aprofundada nos seguintes textos: NIETO SORIA, José Manuel. Iglesia y génesis del Estado Moderno en Castilla (1369-1480). Madrid: Editorial Complutense, 1993, p.17-28; SCHMITT, Jean-Claude. Problèmes religieux de la gênese de l’État moderne. In: Etat et Église dans la genèse de l’Etat moderne. Madrid: Casa de Velázquez, 1986, p.55-62.

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NIETO SORIA, José Manuel. Idem, p.21. A questão da colaboração, oposição e compromisso entre a Monarquia e a Igreja encontra-se exploradas nos diferentes textos da coletânea Etat et Église dans la genèse de l’Etat moderne. Madrid: Casa de Velázquez, 1986.

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GOMES, Francisco José Silva. A Igreja e o Poder: representações e discursos. In: RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros (org.). A vida na Idade Média. Brasília: Editora da UnB, 1997, p.39-41.

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ditas ‘temporais’, processo de fortalecimento eclesiástico que se expressa na potestas directa defendida no século XIV, período marcado pela promulgação da bula Unam Sanctam (1302) pelo papa Bonifácio VIII. No entanto, tais ideias, agrupadas como doutrinas hierocráticas, deram espaço para interpretações opostas e condizentes com a causa imperial, que, em grosso modo, defendiam que tanto o papa quanto o imperador recebiam o poder diretamente de Deus5. Em síntese, as doutrinas antihierocráticas podem ser agrupadas em duas categorias: as que contestam as teses teocráticas, mas não separam o domínio temporal do espiritual, e aquelas que reivindicam para o Estado uma base natural, negando ao poder espiritual o papel de causa eficiente e de causa material da potestas civilis6. Na tentativa de estabelecer uma visão de longa duração, acreditamos que as questões brevemente levantadas se condensam na noção de cristandade, que significa um “sistema único de poder e de legitimação da Igreja e do Estado” que se dá na sociedade, noção que congrega as distintas interpretações e a base das disputas políticas entre a Igreja e o Estado. Esta perspectiva, resumida por Francisco Gomes, caracteriza ainda a cristandade medieval como uma “cristandade sacral”, na qual “todas as instituições apresentavam um caráter sacral e oficialmente cristão”7. Desta maneira, notamos que a modalidade medieval de cristandade foi uma espécie de “código de base” através da qual a realeza medieval se desenvolveu, principalmente, em suas funções ministeriais. Em meio a tais funções, formou-se a concepção do rei como Vigário de Deus. A ideia se fundamenta em São Paulo e foi formulada posteriormente por Eusébio, convertendo5

Enfatizamos que esta exposição é apenas uma síntese que não alcança a variedade de leituras acerca da relação entre a Igreja e o Império, e a questão da origem e finalidade de tais poderes. É importante ter em mente a via tomista, que mesmo subordinando o poder temporal ao espiritual dava uma certa autonomia para as realidades terrestres, ou ainda a teoria marsiliana de Império que coloca o imperador como única cabeça da Cristandade.

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ALBUQUERQUE, Ruy de & ALBUQUERQUE, Martim de. História do Direito Português. Vol. I 1140-1415. Lisboa: Pedro Ferreira, 2004, p.470.

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GOMES, Francisco José Silva. Idem, p.33-34, 44.

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se em doutrina recorrente a partir do século IX. Essa temática foi explorada por Manuel García-Pelayo, que indica duas consequências do pensamento. Por um lado, derivava-se o dever de obediência por parte dos súditos, pois resistir ao rei seria resistir à ordem de Deus. Por outro, implicava uma concepção ministerial de poder, sendo a função régia um serviço para a realização, ou melhor, para a restauração da ordem divina quebrada na queda8. Não obstante, convém ter em mente que se o vicariato régio constituía uma fórmula de afirmação e legitimação do poder da realeza, também se configurava como elemento de limitação do poder régio, impondo uma “teologização do poder real”, obrigando que o rei estabelecesse suas ações a partir de cânones de comportamentos com referência divina9. Mais à frente poderemos observar a redefinição da noção do rei como Vigário de Deus com a dinastia de Avis, uma mudança que expressa tanto o fortalecimento das esferas de atuação do poder régio, processo também nomeado de gênese do Estado moderno, quanto às bases em que se sustentou o projeto dinástico de legitimação e afirmação. Antes, cabe notarmos ainda o quadro geral do desenvolvimento da monarquia lusitana e as implicações do contexto cismático dos séculos XIV e XV. Em Portugal a história das relações entre a monarquia e a Roma pontifícia ainda encontra-se com inúmeras lacunas, porém é possível afirmar que no caso em questão existiu um aceite da auctoritas papal. O processo de formação do reino reforça essa ideia, pois D. Afonso I em busca de reconhecimento da ‘independência’ pela Santa Sé ofereceu-se em vassalagem, “uma forma usual de exibição da soberania ao amparo da Sé Apostólica”10. Mesmo com esse quadro, notamos que em Portugal estão representadas todas as doutrinas expostas anteriormente. Um dos vetores que contribuíram no processo de edificação da realeza portuguesa se assenta na ideia de um poder legitimado 8

GARCÍA-PELAYO, Manuel. Los mitos políticos. Madrid: Alianza Editorial, 1981, p.239-240.

9

NIETO SORIA, José Manuel. Fundamentos Ideológicos del Poder Real en Castilla (Siglos XIII-XVI). Madrid: Eudema, 1988, p.56.

10 OCHOA BRUN, Miguel Ángel. História de la Diplomacia Española. Edad Media III. Madrid: Ministerio de Asuntos Exteriores, 2003, p.18-19.

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‘pela graça de Deus’, e esse princípio expressa que desde os inícios da monarquia o poder régio era entendido como incumbência divina. Tal legitimação pode ser notada nos documentos régios11. Durante a Idade Média, em Portugal a fórmula ‘Vigário de Deus’ aparece constantemente ligada a ideia de um fim a cumprir, e assim o poder dos monarcas existe para a execução na Terra da vontade justiceira do Senhor, a quem prestará contas. Acreditamos que nessas definições, ou tentativas de, encontrase o problema central que devemos analisar. Já que o rei é vigário de Deus e d’Ele recebeu o poder, o mesmo é obrigado a prosseguir os fins para que Deus lhe outorgasse o poder, e deve atuar a exemplo do Senhor. Com a ideia do vicariato divino envolve-se a noção de officium, a qual, relacionada com os princípios romanos de auctoritas e potestas, e cristãos de dignitas e officium, se desenvolveu no lento processo de modificação do imaginário do rei e de ampliação de suas funções12. Nesse contexto, formou-se uma pedagogia para a preparação do ofício de rei, bem representada pela proliferação de espelhos de príncipes, e assim o ofício régio torna-se um saber passível de aprendizagem, cabendo ao bom rei exercer, principalmente, a justiça e a paz13. De acordo com Vânia Fróes, “Portugal, ao apropriar-se das imagens ocidentais relacionadas ao poder régio centrou a estrutura imaginária do rei num messianismo”, criando assim, “uma espécie de missão do 11 Judite Freitas assinala que a maioria dos diplomas assinados por Afonso I utiliza a expressão Ego Alphonsus dei gratia rex, e o rei Sancho também fazia uso semelhante com Ego Sanchi dei gratia rex (FREITAS, Judite A. Gonçalves de. O Estado em Portugal. (Séculos XII-XVI). Modernidades medievais. Lisboa: Alêtheia editores, 2012, p.17). Em uma das cartas contidas no Livro da Cartuxa também é possível encontrar o rei D. Duarte mantendo o uso da expressão: “Nos dom eduarte. Pola graça de deus rey de Portugal e do algarue e senhor de çepta” (DOC.15, p.90). Acerca da questão do “rei pela graça de Deus”, Nieto Soria assinala que este foi um dos meios retóricos mais utilizados para comunicar a origem divina do poder real. Diz ainda que “tal vez, en esta fórmula se concentraron todas las concepciones de origen religioso-teológico aplicables a la institución monárquica, resumiéndose en ella la enorme diversidad de imágenes de esta naturaleza que se manejaron en torno al rey y al poder real” (NIETO SORIA, José Manuel. Idem, p.54). 12 LE GOFF, Jacques. Le Roi dans l’occident médiéval. In: Héros du Moyen Âge, le Saint et le Roi. Paris: Éditions Gallimard, 2004, p.1075-1076, 1083. 13 Ibidem, p.1085, 1096.

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reino e do rei”14. Desta forma, as concepções sobre o ofício régio compreendem dois sentidos de difícil separação: uma acepção de ofício laica, o rei como “gestor do Estado”, e uma acepção religiosa, de um ofício designado por Deus, o ministerium do rei15. Como se percebe, as acepções acerca da função do rei estabelecem uma fronteira extremamente tênue entre a defesa de Deus, concretizada na defesa da Igreja, do clero, e da virtude, e os eventuais abusos de jurisdição. Promovendo a justiça, garantia da existência da paz/ordem, o ofício régio agregava uma múltipla realidade, passando pela salvação dos súditos e a vigilância sobre o clero16. Dito isso, cabe observarmos mais detalhadamente, as relações entre a Igreja e o Estado no caso português, destacando o período do Cisma. O contexto do Cisma e a realeza em Portugal No universo das “relações entre a Igreja e o Estado”17, as relações entre a realeza e o clero em Portugal estiveram longe de ser tranquilas. Tais problemas não são encontrados em abundância nas questões disciplinares e teológicas, antes aparecem de forma incisiva na ordem jurisdicional18. Ao passo que os reis ampliavam 14 FRÓES, Vânia Leite. Evolução das representações e da pedagogia do ofício de rei em Portugal medieval. In: Convergência Lusíada. Revista do Real Gabinete Português de Leitura. Nº 15, 1998, p.25. A indicação da autora para o caso lusitano pode ser ampliada, segundo Nieto Soria, para outras partes da Europa (Cf. NIETO SORIA, José Manuel. Idem, p.20). 15 FRÓES, Vânia Leite. Idem, p.31. 16 Cf.: ALBUQUERQUE, Ruy de & ALBUQUERQUE, Martim de. Idem, p.513514; VENTURA, Margarida. Igreja e Poder no século XV. Dinastia de Avis e liberdades eclesiásticas (1383-1450). Lisboa: Colibri, 1997, p.75-78. Margarida Ventura sintetiza esta discussão da seguinte maneira: “E ainda que ambos os poderes [o poder régio e o poder eclesiástico] admitam que o espiritual compete à Igreja e o temporal ao rei, fica por esclarecer o que, no concreto, está englobado nesses dois conceitos, por onde passa a fronteira e quem define sua localização”. 17 Cf.: MARQUES, José. Relações entre a Igreja e o Estado em Portugal no século XV. In: Revista da Faculdade de Letras. Historia, Porto, nº. 11, 1994, p.140. O autor analisa a variedade de relações presentes na expressão referida, indicando como uma das possibilidades as relações entre o episcopado e o monarca, a qual iremos privilegiar. 18 VENTURA, Margarida Garcez. As ‘Leis Jacobinas’. Estudo e transcrição.

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sua intervenção no conjunto do reino, ação que foi marcada pela ampliação, por exemplo, dos oficiais régios, e investiam na justiça e na construção de leis gerais, aumentavam as áreas de conflito entre os poderes. Sendo o ofício régio exercido na constante interação com o poder eclesiástico, senhorial, concelhio, citadino, entre outros, os conflitos jurisdicionais mostram-se como um espaço em que se (re)definia a própria função do rei. Tais conflitos jurisdicionais são paralelos do reforço do poder régio, o qual se deu com uma progressiva diminuição da esfera de atuação da Igreja no domínio temporal. Nesse quadro, o reinado de D. Dinis (1279-1325) mostra-se como um momento significativo, caracterizando o que os historiadores lusitanos chamam de “nacionalização da Igreja”, movimento que se expressa pela presença majoritária de bispos recrutados nos cabidos diocesanos. Outro exemplo se deu na sociedade trecentista, quando no reinado de D. Pedro I (1357-1367) foi promulgado o Beneplácito Régio (1361), que impedia a circulação de documentos pontifícios no reino sem a autorização do poder régio, favorecendo a chancelaria do reino e restringindo os privilégios e imunidades eclesiásticas19. Na passagem do século XIV para o XV a situação apresentada foi acrescida pelo Cisma, divisão da cristandade em duas – chegando a três – obediências. No plano das relações políticas envolvidas no contexto cismático, é comum encontrar na historiografia referências de como as monarquias se favoreceram através da adesão ou ao papado de Roma ou ao de Avignon, e mesmo de como os papas em questão ofereciam privilégios na tentativa de conseguir novos apoiadores entre os monarcas da cristandade. Para o caso português indicamos apenas que no período a realeza conseguiu reafirmar a prática da nomeação de bispos indicados pelo próprio rei, além de legitimar o beneplácito In: Medievalista [Em linha]. N.º 12 ( Julho-Dezembro 2012). Dir. José Mattoso. Lisboa: IEM, p.3. 19 Cf.: FREITAS, Judite A. Gonçalves de. Idem, p.77. Seria ainda interessante retomar os conflitos ocorridos nos reinados de Sancho II, Afonso III e especialmente de Afonso IV, reinado este que estimulou a produção do ‘Espelho dos Reis’ de Álvaro Pais, criticando o monarca português. No entanto, nos limitamos a indicar uma bibliografia geral sobre o tema: MARQUES, A. H. de Oliveira. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Presença, 1986, p.365-391; MATTOSO, José. História de Portugal. Vol. 2. A Monarquia Feudal. Lisboa: Estampa, 1993.

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régio já citado. É importante frisar que em meio ao contexto cismático o reino de Portugal atravessava um momento de crise, a qual foi condensada por uma crise política de sucessão régia que determinou a ascensão da dinastia de Avis (1383/85). Entre muitos fatores, o processo de mudança dinástica envolveu-se diretamente com o Cisma, assimilando a causa de Roma à causa de Portugal, e defendendo a aliança com a Inglaterra, também obediente ao papa romano. Em síntese, o Cisma forneceu o elemento de guerra santa à luta contra o castelhano, e as vitórias do Mestre de Avis afirmaram a sua capacidade frente aos outros pretendentes ao trono e aos outros poderes do reino. Ao observarmos as relações entre D. João I (1385-1433) e o clero, é possível notar a variação ocorrida nos diferentes momentos do reinado. Ao longo dos primeiros anos, marcados pela guerra luso-castelhana, evidencia-se uma cumplicidade na transgressão das disposições canônicas sobre imunidades eclesiásticas, e encontram-se clérigos servindo com seu saber e corpo na guerra. No entanto, o contexto de união sofreu mudanças com a pacificação das relações entre os reinos (1411), e a conquista de Ceuta (1415) – investida militar pregada como tons cruzadísticos –, não foi capaz de manter a mobilização do clero para oferecer apoio econômico20. Os anos seguintes à conquista no norte da África foram marcados pela diminuição da presença clerical na burocracia régia joanina21, aspecto que contrasta com o período inicial do reinado, e pela eclosão do conflito entre a realeza e o clero com a publicação das ‘Leis Jacobinas’ (1419)22. As contendas se mantiveram durante a década seguinte, e contaram ainda com as exortações papais no sentido de garantir 20 VENTURA, Margarida. Igreja e Poder no século XV. Idem, p.81. 21 HOMEM, Armando Luís de Carvalho. Conselho Real ou Conselheiros do Rei? A propósito dos “privados” de D. João I. In: Portugal nos Finais da Idade Média: Estado, Instituições e Sociedade Política. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, p. 221-253. 22 Trata-se de um conjunto de leis, que receberam o nome do desembargador régio que foi encarregado de as publicar, o Doutor Diogo Martins (em latim Jacobus Martini). As leis foram promulgadas a 8 de novembro de 1419 e, segundo o rei, respondiam às reclamações apresentadas pelos súbditos contra os abusos dos prelados. Para maiores detalhes e acesso a transcrição das leis, ver: VENTURA, Margarida Garcez. As ‘Leis Jacobinas’. Estudo e transcrição. Idem.

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as liberdades eclesiásticas, no entanto, somente em 1427 foi possível a assinatura da concórdia entre a realeza e a clerezia. Sem querer estender a apresentação desse contexto português, nos limitamos a indicar que o reinado de D. Duarte (1433-38) – assim como os anos seguintes com a regência e o longo reinado de D. Afonso V – também foi marcado por novas disputas jurisdicionais entre o rei e o clero, conflitos nos quais se pode encontrar a ampliação das intervenções régias frente às imunidades eclesiásticas.Estabelecemos o término do reinado de D. João I para finalizar esse contexto geral, pois foi em torno desse período que as obras que analisaremos a frente foram elaboradas. Porém, antes de concluir o tópico, gostaríamos de retomar algumas questões relacionadas ao contexto cismático e que, desde já, nos oferecem elementos para compor as discussões acerca do ofício régio e da relação entre os reis e o poder espiritual. O primeiro elemento a ser destacado é o documento conhecido como ‘Protesto dos Portugueses’ (Protestatio Portugallensium) que relata uma intervenção dos enviados lusitanos junto ao Concílio de Constança. Eis a declaração dos delegados portugueses: Embora o poder secular esteja sujeito e seja inferior ao espiritual e eclesiástico na governação corrente, basicamente um é distinto do outro; e nenhum deles pode usurpar o que pertence ao outro, nem meter aí a sua fouce, pois que um e outro foi constituído por Deus criador de tudo e orientador de cada qual, um para estar à frente das coisas espirituais, de forma espiritual, e o outro, das coisas corporais e de forma temporal. Por isto mesmo, foi por Deus, dominador de todo o universo, dividido por Reis e por reinos cristãos tudo o que é conhecido, tendo ele a cada Rei entregado a espada executória para castigo dos maus e proteção dos bons, incluindo nisto a proteção dos católicos e da Igreja Santa de Deus. Por isso escreveu o Apóstolo que se deve obedecer ao Rei na sua qualidade de chefe enviado por Deus e por tal razão é devida a honra a qualquer Rei em todo o universo, a qual deve ser prestada de acordo com a sagrada autoridade que diz: Dai a César o que é de César. Daqui se deduz que a honra devida a cada Rei é igual à sua coroa, ao seu domínio e regime ou administração, que não pode descurar sem injustiça e perda de honorabilidade dos outros Reis e do próprio reino e seus habitantes23. 23 NASCIMENTO, Aires Augusto. Apêndice. In: Livro de Arautos. Lisboa: 1977, p.332. O autor publicou alguns documentos acerca da atuação portuguesa no

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Nota-se que o poder secular é descrito como sujeito e inferior ao espiritual, o que aproxima o texto do grande campo do pensamento hierocrático no medievo. Esta relação não se dá na caracterização do papado como mediador entre Deus e os monarcas, nem na defesa do Sumo Pontífice poder atuar diretamente no poder temporal, antes o trecho parece reafirmar a perspectiva de que os fins do poder secular são antecedentes, e por isso inferiores, e que os fins do poder espiritual são finis operantis, superiores em dignidade e relacionados à beatitude celeste. Não obstante, existe um destaque para a distinção dos domínios de atuação de cada poder, temática corrente no pensamento político do período, que na esteira das leituras de Aristóteles passou a dar uma certa autonomia às realidades terrestres. A distinção apresentada no Protesto se inclina à perspectiva de que os poderes, com funções distintas, devem promover os fins para os quais Deus lhes instituiu, e nesse processo se reafirma a caracterização da Igreja enquanto instituição espiritual, que atua de maneira espiritual, e do reino como instituição pautada no poder coercitivo, instrumento de defesa da justiça e da fé. É exatamente na sequência desta definição que o poder régio aparece em tons ‘ministeriais’ e com a posse da “espada executória para castigo dos maus e proteção dos bons, incluindo nisto a proteção dos católicos e da Igreja Santa de Deus”. Desta forma, a função régia, mesmo não podendo “usurpar” o âmbito de ação do poder espiritual e sendo sujeita e inferior a tal poder, reafirma seu papel de defensora da Igreja e dos cristãos, promotora da justiça, noção ligada no medievo às ideias de paz e ordem da sociedade, compondo assim uma esfera de atuação que impele o rei a relacionar-se diretamente com o âmbito da Igreja, seja ela a instituição ou o conjunto dos fiéis. Estas questões estiveram em pauta ao longo da Idade Média e podem ser encontradas nas formulações políticas do período de formação dos reinos germânicos e mesmo no Império Carolíngio, e assim não constituem uma inovação da sociedade quatrocentista. O compromisso assumido pelo poder régio em defender a Igreja historicamente colocou as monarquias em papel de dependência Concílio de Constança. Informa-se ainda que se trata de uma edição bilíngue e utilizamos a tradução do autor para as citações do texto.

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perante o papado, e parece estranho que em inícios do século XV a perspectiva seja encontrada de forma tão explícita nesta proposição. Contudo, acreditamos que o estranhamento inicial pode ser superado pelo contexto em que se dava o discurso em questão – o Concílio de Constança, reunião de clérigos e leigos, a comunidade dos fiéis, dispostos a discutir os caminhos para o extermínio do Cisma e das heresias, a união da Igreja e a reforma do estado eclesiástico na cabeça e nos membros –, e pela própria caracterização da Igreja enquanto instituição espiritual, posição que acaba por delimitar a esfera de atuação da mesma, uma definição que contribuiu para um esvaziamento do universo de intervenção da Igreja. Antes de terminar estes apontamentos cabe recuperarmos outro trecho do mesmo documento: Ora o Rei de Portugal tem os seus reinos, terras e domínios livremente isentos de dependência de qualquer outro vivo sobre a terra, a não ser de Deus, único senhor seu, sobretudo em coisas temporais, tal como os restantes Reis das Espanhas, como dizem e referem as histórias e os gloriosos doutores24.

Esse pequeno fragmento, que aparece no documento na sequência dos protestos dos delegados portugueses contra a forma de votação por nações, é interessante porque reafirma D. João I, rei em busca de legitimação e afirmação, como servo apenas de Deus, o que permite ainda que sua autoridade seja subtraída das possíveis alçadas do papa e do imperador em questões temporais. Através do Protesto se configura um ofício régio que tem sua origem diretamente em Deus, o único senhor do rei português. As finalidades da realeza são traçadas na boa ordenação do reino (“castigo dos maus e proteção dos bons”), o que inclui a proteção dos católicos e da “Igreja Santa de Deus”. Se tais finalidades não constituem novidade, é a definição da Igreja pelo aspecto espiritual, assim como a ênfase na santidade da mesma – temas caros aos movimentos de reforma eclesiástica do baixo medievo –, que abre espaço para a ampliação da esfera de intervenção do poder régio. O segundo elemento que gostaríamos de citar nesse tópico é 24 Idem, p.336.

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mais restrito e está relacionado ao contexto de discussão sobre a legitimidade de uma nova intervenção militar no norte da África já em finais do reinado de D. João I. Desse contexto, recuperamos, por ora, a resposta dada pelo infante D. João, Mestre da Ordem Militar de Santiago, também membro da dinastia de Avis, documento datável entre 1432 e 1433. Analisando se era devido ao rei de Portugal fazer guerra aos mouros, o infante constrói uma longa resposta que questiona as teses que defendem o ataque. Um dos primeiros e mais demorados aspectos levantados será o “serujço de deus”. Criticando que o Senhor e os apóstolos tenham mandado guerrear os infiéis, D. João apresenta uma crítica incisiva ao papado: E quanto as Jndulgençias que o papa pera tal guerra da, non deuemos crer porque por mil dobras que enujemos a hu cardeal, as aueremos muyto mayores, por hua pequena obra de mjsericordia que façamos, Eso mesmo aos milagres que em semelhantes guerras fazem, porque tais açharemos em terra de christãos contra christãos aJnda que seruiço de deus non seJa, esto he porque aquele senhor em cuJa mão som todolos dões dos reynos quando suas sentenças quer dar non lhe praz leuar outra peyta senon conhecymentos e graças as quaes se eujdentes mjlagres non fizese, por a maliçia dos homens mais atribuyrão a sua fortaleza as vitorjas que a deus E pois desserujço deste senhor he çerto e o seu serujço tam duujdoso pela regra Já dita por esta parte tal feito non deuemos Cometer25.

O trecho da resposta do infante expressa os aspectos corruptíveis relacionados à instituição eclesiástica, defendendo claramente que as indulgências que tanto legitimavam os defensores da guerra contra os mouros poderiam ser conseguidas através de doações e pequenas obras. A posição de D. João se torna mais importante pelo contexto vivido pelo papado ainda na década de 30, com os questionamentos das ações do pontífice e com o fortalecimento do movimento reformista26. O conselho do infante, se não trata 25 DOM DUARTE, Rei de Portugal. Livro dos Conselhos Del-Rey D. Duarte. (Livro da Cartuxa). Edição diplomática. Transcrição: João José Aves Dias. Introdução: A. H. Oliveira Marques e João José Alves Dias. Lisboa: Estampa, 1982, Doc. 6, p.44. 26 Caberia ainda citar a manutenção do conciliarismo e mesmo os perigos de um novo Cisma que rondava a Igreja. No entanto, para não alongarmos a discussão,

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diretamente do papel do poder régio e das finalidades de tal poder, assinala o descrédito que a instituição eclesiástica gozava nos círculos avisinos, o que favorecia todo o movimento da monarquia em limitar as esferas de atuação do clero27. Com estes apontamentos gerais acerca das relações entre a realeza e o clero, especialmente no contexto do Cisma e da ascensão e afirmação de Avis, seguiremos para uma reflexão específica sobre o ofício régio, destacando o tema da sacralidade régia e, finalmente, a produção avisina sobre a questão. O ofício régio no Portugal avisino Ao analisar o contexto português de Avis é importante termos em mente que se trata de uma dinastia que ascendeu ao trono por dois caminhos: pela eleição, realizada em Cortes (1385), e pelas armas, com a vitória em Aljubarrota. Chamamos a atenção para esses dois aspectos, pois eles expressam as bases variadas que configuram a afirmação e a legitimação dinástica, e ainda nos permitem notar o contraste entre as teorias políticas da origem do poder, a ascendente e a descendente. Vejamos brevemente esses temas. A Crónica de D. João I descreve o processo que antecede a reunião nos limitamos a indicar um texto base: ÁLVAREZ PALENZUELA, Vicente Angel. La situación europea en época del concilio de Basilea. Informe de la delegación del reino de Castilla. León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”/ Archivo Histórico Diocesano, 1992. 27 É importante fazer duas ponderações. A primeira, diz respeito ao papel do rei no conselho do infante. D. João ao tratar da função dos estados do mundo (“oradores”, “lauadrores” e “defendores”), assinala que a função dos defensores é “que gardemos o noso pouo de mal e Jmpunemos os maos pois por estas pazes o noso pouo do mal alheo he gardado. E o Jmpuniymiento dos maos se parte em duas partes per Justiça e armas, per Justiça hu se põem o remedio que deue, per armas se contra os mouros que verdadeiramente podem ser ditos maos pois que a uerdadejra fe non tem” (DOM DUARTE, Rei de Portugal. Idem, Conselho do Jfante dom Yohão se se faria a guerra ou não aos mouros de benamarym. Doc. 6, p.46). A segunda remete ao fato de a realeza portuguesa manter-se fiel ao papa de Roma em todo o período de Avis e mesmo frente ao conciliarismo. Desta forma, acreditamos que o conselho de D. João reflete uma ‘reserva crítica’ que permeava a corte régia, mesmo não sendo capaz de retirar o apoio avisino ao papado, uma das bases de legitimação das ações da monarquia.

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e as atividades das Cortes de Coimbra (1385) em doze capítulos, os quais demonstram o clima de disputas acerca de quem eram os candidatos legítimos ao trono português. Fernão Lopes apresenta a decisiva atuação do condestável Nuno Álvares e, principalmente, de João das Regras durante os debates ocorridos nas Cortes. Este fez a seguinte defesa da candidatura do Mestre de Avis: E por tamto pois que he serviço de Deos e proll e homrra da Samta Egreja, pera nom seermos destruidos de nossos emmiigos, e ella viinr em maãos de çismaticos, acordemos em huu amor e proposito; (...), nomeemos e escolhamos na melhor maneira que podee seer, este dom Joham, filho delRei dom Pedro, por rei e senhor destes reinos28.

Sem querer alongar a discussão sobre estas Cortes, as recuperamos a fim de observar que o processo da eleição de D. João I como rei de Portugal constrói-se através da reivindicação do “serviço de Deus”, que implica na honra da Santa Igreja e na defesa do reino frente aos inimigos “cismáticos” – os castelhanos obedientes ao papa de Avignon. Podemos dizer que as Cortes de Coimbra expressam as perspectivas da teoria ascendente do poder, a qual defendia que o poder tinha origem na comunidade, no povo identificado como português e fiel ao papa de Roma. João das Regras aparece na crônica argumentando que o trono estava vago, e assim caberia ao povo escolher um novo rei. É interessante que esse momento tão marcante da ascensão de Avis se fundamente em uma teoria distinta da posição que será privilegiada pelos monarcas, isto é, de que a origem do poder régio avisino era a providência divina, perspectiva que se confirma com a vitória contra Castela. Aljubarrota é o desfecho de uma série de confrontos entre as tropas lusitanas e castelhanas desde 1383 – após a morte de D. Fernando e a reivindicação do trono por Juan I, rei de Castela e marido de D. Beatriz, única filha legítima do monarca falecido. A batalha ocorreu em 14 de agosto de 1385 e na historiografia 28 LOPES, Fernão. LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Segundo o códice nº 352 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Introdução de Humberto Baquero Moreno e Prefácio de Antonio Sérgio. Porto: Livraria Civilização, 2 volumes, 1983, p.421.

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lusitana aparece como o marco da manutenção da independência do reino. No entanto, cabe observarmos que antes do confronto D. João I enviou um escudeiro ao rei de Castela para persuadi-lo a não avançar com a guerra. De acordo com a narrativa lopeana, o enviado argumenta que o enfrentamento levaria à perda de muitas vidas, efeito que o rei português queria evitar, e frente à recusa de Juan I, o escudeiro afirma que a guerra ficaria a cargo do juízo divino29. Na Crónica de D. João I encontramos tanto a defesa por parte de D. João I dos preceitos cristãos que fundamentam o poder régio, isto é, a paz e a justiça, quanto observamos uma justificação para o embate, a defesa do reino perante o ataque de um adversário belicoso. Com estas características, a batalha travada em Aljubarrota tornou-se uma decisão da providência divina, e o resultado do conflito, um juízo de Deus. Mais do que reafirmar as teorias descendentes do poder régio, a vitória no campo de batalha confirma D. João I como enviado de Deus para proteger o povo português, o mesmo povo que delegou o poder para o novo rei em Coimbra. Se num primeiro momento Aljubarrota está ligada às capacidades de D. João, posteriormente, com a construção do Mosteiro da Batalha, será a dinastia que passará a relacionar-se diretamente com a vitória militar sob os desígnios divinos. Notamos ainda que Aljubarrota está inserida em uma série de eventos que fundamentaram a elaboração do papel messiânico de D. João I. Nessa temática podemos mencionar as profecias feitas à época de D. Pedro I, as quais projetam que um dos filhos desse rei, de nome João, havia de trazer grande honra ao reino de Portugal30, ou ainda o processo do cerco de Lisboa, acontecimento que ocorreu antes das Cortes de Coimbra. Vejamos esse momento com mais detalhes. Enquanto embates iam ocorrendo pelo reino sob a liderança de Nuno Álvares, Lisboa encontrava-se cercada pelas tropas de Castela desde fins de maio 1384. Mais do que a guerra, era a fome que assolava a cidade. No entanto, uma das marcas dos maus tempos, e não menos um “castigo divino”, pairou sobre os 29 Idem, capítulo XXXIII. 30 Cf.: LOPES, Fernão. Crônica de D. Pedro I. Porto: Livraria Civilização Editora, 2ª edição, 1979, Capítulo XLIII.

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castelhanos, o surto de “pestelença”. Diz o cronista: “prougue Aquelle Senhor, que é Principe das hostes e vencedor das batalhas, (...) que o anjo da morte, estendesse mais a sua mão, e precudisse asperamente a multidão d’aquelle povo”31. A peste descrita por Fernão Lopes teve uma incidência específica, afetando os castelhanos e poupando os portugueses. Como assinala Maria Helena Coelho, o contexto do cerco de Lisboa e de seu desfecho, contribuiu para que as ideias milenaristas presentes na sociedade portuguesa achassem no Mestre de Avis seu representante, o messias que terminaria com o período de tribulações32. A Crônica de D. João I traz ainda uma marcante sobreposição de ideias: “De guisa que, como (...) nomeamos fidalgos alguns, que ao conde D. Henrique ajudaram a ganhar a terra aos mouros, assim (...) diremos uns poucos dos que ao mestre foram companheiros em defender a terra de seus inimigos”. É ainda na sequencia dessa descrição que Fernão Lopes estabelece o “evangelho português”, o qual caberia ao condestável e aos seus companheiros pregar pelo reino. O Evangelho português, o qual era que todos cressem e tivessem firme o papa Urbano ser verdadeiro pastor da Igreja fora de cuja obediência nenhum salvar-se podia e com isto ter a crença que seus padres sempre teveram de gastar os bens e quanto haviam por defender o reino de seus inimigos, e por manter esta fé espargiram seu sangue até a morte33.

Antonio Saraiva observa que o ‘evangelho português’ tem dois componentes: um religioso, a fidelidade ao papa Urbano, vinculado à salvação; e um “não religioso”, que se afirma na defesa do reino. Ainda de acordo com o autor, esse capítulo de Fernão Lopes traz a novidade de equiparar os castelhanos aos mouros através da categoria de “inimigos”, o que permite ao cronista justificar a guerra luso-castelhana como uma “guerra santa”34. Nesses trechos Lopes reivindica a proximidade das ações de D. 31 LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Idem, Capítulo CXLIX. 32 COELHO, Maria Helena da Cruz. D. João I (1357-1433). Lisboa: Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2008, p.69-71. 33 LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Idem, Capítulo CLIX. 34 SARAIVA, António José. O crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1995, p.171-173.

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João com as do conde D. Henrique e, principalmente, aproxima os inimigos coevos, os castelhanos, dos mouros de outrora. Discordamos, em parte, de Saraiva, pois entendemos que ‘a defesa do reino’ também tem contornos religiosos. Por tudo o que temos exposto até o momento, acreditamos estar evidente que ao tratar de ‘reino’, ‘povo’, ‘rei’, entre outras noções, estamos lidando com concepções envoltas em princípios religiosos. Nesse sentido, a divisão proposta pelo autor perde sentido. A fim de avançarmos na discussão é possível concluir que o milenarismo, o messianismo, a providência divina, assim como as concepções acerca do ofício régio, surgem desta forma como elementos que compõem a sacralidade régia dos monarcas avisinos, especialmente de D. João I. Por fim, percebemos que o processo de ascensão de Avis envolve-se e caracteriza-se como uma mescla de princípios políticos da época, principalmente através da articulação entre as teorias ascendente e descendente do poder, ambas as perspectivas que vão reforçar as concepções acerca da realeza portuguesa. A sacralidade régia Pela exposição feita anteriormente, notamos que a sacralidade de D. João I liga-se diretamente aos povos com assento nas Cortes de Coimbra, envolvendo-se ainda com a série de sinais – profecias, vitórias militares, e intervenções divinas – que estão relacionadas à vida e à ascensão do Mestre de Avis. É importante frisar que embora o clero tenha participado da reunião ocorrida em 1385, os mesmo não atuaram como mediadores da instauração do poder régio. Tal fato expressa, segundo a perspectiva de autores como Margarida Ventura, a existência de uma “sacralidade direta”, nunca formalizada pela unção35. O tema da sacralidade régia afirmou-se como objeto de investigação desde os estudos de Marc Bloch, Les Rois thaumaturges (1924), e Ernst Kantorowicz, The King’s Two Bodies (1957), ganhando projeção no movimento da nova história, especialmente com as pesquisas de Georges Duby, Robert Folz, e Jacques Le Goff. Contudo, mesmo com inúmeros acúmulos, é possível notar que tais investigações formularam um conceito de sacralidade régia pautado nas cerimônias de sagração e no ritual 35 VENTURA, Margarida. Igreja e Poder no século XV. Idem, p.81.

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de cura das doenças, associando desta forma o conceito ao caso franco-inglês36. Nesse sentido, os estudos de Nieto Soria para o reino de Castela e de Margarida Ventura para o caso português foram capazes de evidenciar a sacralidade dos monarcas ibéricos, mesmo sem indícios claros das cerimônias de unção e sagração37. Enfatizamos essa discussão porque a sacralidade dos monarcas avisinos tem relações diretas com a forma como a própria realeza se entende e expressa seu poder, além de implicar na maneira como o poder régio se relaciona com o clero. A sacralidade régia configura-se assim como um instrumento importante para a afirmação da realeza perante os demais poderes do reino. Dito isso, é interessante recuperar alguns elementos que compõem o caráter messiânico e de santidade que envolve a dinastia de Avis. A Crônica da Tomada de Ceuta é um desses mecanismos de reafirmação da providência divina na trajetória política de D. João, confirmando que foi Deus quem lhe deu reinos e terras a reger e mandar, dando força para “contrariar” os inimigos38. Colocando a iniciativa militar como serviço de Deus, a crônica escrita por Zurara demarca o primeiro rei de Avis no papel de defensor da Cristandade, rei promotor da paz, porém preocupado em dilatar a fé cristã. Acrescentamos que paralelamente à construção da imagem de D. João I, temos o desenvolvimento de dois personagens ligados à dinastia. O primeiro foi Nuno Álvares Pereira, condestável do reino que no processo de revolução de Avis teve participação decisiva. A sua morte foi seguida pelo louvor das virtudes do falecido, além de ser acompanhada do culto e de tentativas de canonização. Em segundo lugar, mencionamos o martírio de D. Fernando, projetado como mártir da expansão promovida pela dinastia de Avis, o que também favoreceu a imagem de uma 36 Para um balanço, ver: AMARAL, Clínio de Oliveira. O Infante Santo e o projeto político de Avis (1438-1481). Tese de doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2008, p.157-174. 37 Sobre a questão da sagração dos reis portugueses, ver a síntese de Margarida Ventura em: VENTURA, Margarida. Igreja e Poder no século XV. Idem, p.83-86. 38 ZURARA Gomes Eanes de. Crônica da Tomada de Ceuta. Introdução e notas de Reis Brasil. Publicações Europa-América, 1992.

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monarquia sacralizada39. Em síntese, podemos dizer que D. João I teve sua imagem construída como herói e santo, homem que a providência designou para grandes coisas, feitos esses que formaram a herança política que seria seguida pelos futuros reis da dinastia. Enfatizamos o aspecto de construção desse discurso, pois se verifica a existência de um projeto político desenvolvido no reinado de D. Duarte, formulador de uma campanha mitificadora “apostada em fixar uma imagem de D. João I como de ser predestinado, santo, herói, messias de Portugal”40. Enfim, a partir das discussões apresentadas, podemos avançar para a construção do ofício régio segundo a dinastia de Avis. Os conselhos de D. Pedro no Livro da Cartuxa. Antes de analisarmos o Leal Conselheiro e a Virtuosa Benfeitoria, é interessante recuperar outras referências acerca da função régia que aparecem de forma dispersa em alguns conselhos oferecidos pelo infante D. Pedro, duque de Coimbra, e que se encontram no Livro dos Conselhos Del-Rey D. Duarte (Livro da Cartuxa). Primeiramente mencionamos a Carta de Bruges, escrita pelo infante em 1426 durante sua viagem pela Cristandade (14251428). Nesta, oferece conselhos ao irmão D. Duarte acerca de diferentes temas, sendo um deles a situação dos clérigos no reino. Para esse caso, assim argumenta D. Pedro: Muy alto e muyto honrrado prinçipe e muyto prezado senhor porque todo o mundo confessa que todalas merçes e galardões nos vem de deus, e nenhu senhor galardoa ao serujdor per comprymento de sua propia vontade mas por fazer aquelo que a seu seujço pertençe, porem, senhor por vos deus galardoar adereçando bem todolos vosos feytos deueis ter cuydado de encamjnhar aqueles que mais prinçipalmente são seus e estes sem os que pertençem a JgreJa ou a clerezia e porque a bondade dos 39 Sobre a temática, ver: DOM DUARTE, Rei de Portugal. Idem, Sumario que o ifante deu a mestre françisco do que auja de pregar de dom nuno aluerez pereyra. Doc. 61, p.225-229; AMARAL, Clínio de Oliveira. O Infante Santo e o projeto político de Avis (1438-1481). Idem. 40 SOUSA, Armindo de. A morte de D. João I. Um tema de propaganda dinástica. Porto: Fio da Palavra, 2009, p.70.

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prelados faz grande emenda em os súbditos, e estes Jgoalmente não soam feytos em vosa terra senam per uoso consentymento e autoridade, Pareçe me senhor que deueis de ter maneyra como em uossa terra os aJa bons e feytos direitamente, e de como eu entendo que ysto deuja fazer uos leixey hu escrito que fyz per uoso mandado41.

Após expressar tal posição, o infante passa a criticar o número de clérigos que não sabiam latim, assim como os prelados que não ascendiam a ordens sacras e causavam problemas para a justiça régia e para o “serujço de deus”. Em outros trechos da carta, D. Pedro volta a enfatizar o papel do rei em tal temática42, indicando ainda que a realeza deve intervir diretamente na organização do clero43. Antes de avançar “nas cousas temporaes”, assim o duque de Coimbra finaliza a primeira parte da carta: Senhor de uos em estas cousas que a JgreJa pertençem filhardes autoridade se o fizeseis com tyranja ou temporal cobiça eu não seria em conselho e aueria por mal a quem quer que o fizese e se fizerdes com entenção de fazer serujço a deus, e com acordo dos prelados e doutros homens sesudos que a uoso parecer seJam de boa conçiençia, eu entendo que ele uos 41 DOM DUARTE, Rei de Portugal. Idem, Carta que o Jfante dom Pedro emujou a el rey de Brujas. Doc.4, p.28. 42 “Pareçe me senhor que pois por autorjdade do poderio que uos deus deu uos tendes poder de dardes administração de muytas albergarias e capelas que a deueis de dar a tais pesoas que as minjstrasem a serujço de deus, porque eu entendo que uos lhe fareis mor serujço em administrardes e regerdes bem a poder uoso (...). Senhor não deueis esqueçer a muyto prinçipal parte da spritualidade que são os Religiosos e em os quães uos aJnda podeis ser majs prelado que em outros clérigos e se eles não trabalhão por serem entendidos e honestos e sesudos, uos podeis mandar çhamar Seus mayores e dizer lho e se ujrdes que leuam o feyto a de çima e não curão, hu prelado que uos o mandeis tirar dizer ao proujnçal e ministro que asy fareis a ele, ou que não tomais tal cujdado deles senão pela grande affeição que a eles aueis entendo que corregereis bem asaz” (Ibidem, p.30). 43 “Dos frayres, mandar que nenhu frayre não coma em camara, se não for por notauel neçessidade, nem durma senam em comum dormjtorio, e asy doutras cousas das quães algus poderjão Jnformar uosa merçe. (...) Antre os frayres deue ser muy esqujuada a oçiosidade que as oras não são muy grandes pero asaz he ao mançebo de as rezar mas podem escreuer ou se ocupar em outras cousas em guysa que a vila naom seJa tam seguyda de quem não Cumpre” (Ibidem, p.30-31).

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dara por elo bom galardão44.

Através dessa conclusão o infante estabelece o critério central que tanto permite ao rei intervir nas “cousas que a JgreJa pertençem”, quanto deve estruturar todas as ações régias, o serviço de Deus. A atuação em prol de tal objetivo, ou seja, de acordo com a finalidade da função régia, aparece assim como a condição para o monarca alcançar o galardão divino. Percebemos mais uma vez os limites tênues entre o temporal e o espiritual, no entanto assinala-se nesses trechos que o poder do rei, dependendo de suas intenções, engloba e permite intervenções nas áreas de atuação da Igreja, visto que o ofício régio implica que o monarca oriente seus súditos. Em outros documentos D. Pedro reforça a importância da fé enquanto virtude necessária ao rei, perspectiva que pode ser encontrada na ‘Carta do Jfante dom Pedro que mandou a el rey quando em boa ora foy aleuantado por noso rey’. Nesta o infante define a primeira virtude que deve ser seguida pelo monarca: “A Prymeira que o rei seJa catholico e muyto firme na fe e que por cobrar o bem que a fe promete segundo ela manda faça todas suas obras” 45. Por fim, citamos o conselho que trata especificamente do tema dos prelados, no qual D. Pedro afirma novamente as intervenções possíveis ao poder régio: A Maneyra que a mym me pareçe que se deuja ter pera auerem bispos na terra que regessem o pouo em spritualeza seria esta. Prymeiramente os senhores Rey e Jfantes firmemente proporem de non promouer nem darem consentymento a ser promoujdo a episcopal dignjdade alguu per lynhagem nem serujço temporal nem petitórios nem singulares affeições, propoerem mais e muyto firmemente o terem que toda pesoa aJnda que digna pareça se per sy ou per outrem moujdo pera ele requerer bispado que seJa aujdo por non pertençente. (...) onde a Jnleição fose feita com acordo d el rey e dos Jfantes eles desem ao Jnlecto suas suplicatorias e o cabido as suas e a çidade as suas e de razão nem de feyto non serião refusadas per o papa e o prelado que por tal porta entrasse poder se hia çhamar bom 44 Ibidem, p.31 (grifos meus). 45 Ibidem, Doc. 11, p.75.

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pastor e nom roubador e ladrom como os que agora entram per çima das paredes com soadas de grosas peytas ou de rogos Jmportunos46.

A partir do conselho percebemos que o duque de Coimbra visa oferecer ao irmão e rei D. Duarte propostas para que se implementem medidas institucionais no intuito de fomentar bispos capazes de reger o povo “em spritualeza”. Esse elemento deve ser reforçado, pois ao enfatizar os critérios espirituais da ação dos bispos, implicitamente afasta os critérios temporais. O consentimento régio aparece como via institucional capaz de assegurar a virtude dos pastores, o que termina por reforçar a vontade do poder temporal frente à nomeação de bispos no reino. O Livro da Vertuosa Benfeytoria e o Leal Conselheiro Ao iniciar esse último tópico focando nos dois principais livros escritos pelos membros da primeira geração de Avis, começamos a análise pela obra redigida por D. Pedro. Nesta, a sociedade é concebida como uma cadeia hierárquica que liga os inferiores aos superiores através do benefício, ligação esta que conduz a Deus. O benefício, tema que dá título ao livro, é apresentado como algo a ser oferecido de forma gratuita por todos os homens47. O papel 46 Idem, Conselho do Jfante dom pedro que enujou a el rey sobre os prelados. Doc.5, p.40-42. É interessante notar que no mesmo conjunto documental consta um conselho do bispo do Porto, provavelmente escrito na mesma época do conselho de D. Pedro, ou seja, meses após D. Duarte assumir como rei, em que o clérigo reforça a importância do rei respeitar as liberdades eclesiásticas: “senhor honrrareis as JgreJas pesoas e ministros delas, e lhes gardareis suas liberdades e franquezas. E os fidalgos açharom em uos merçes gasalhado e acreçentamento, e os pouos fauores defensom e cryamento” (Idem, Conselho do bispo do Porto. Doc.13, p.85). 47 “Deus, que he geral começo e fim, poendo graaos em as cousas que fez, ordenou per tal guisa o stato dos homees que en cada huu he achada míngua, e nehua condiçom he tanto ysenta que en falicimento non aja sua parte. E por se manteer tal ordenança prougue lhe de poer natural affeyçom per que sse ajudassem as suas criaturas e liou spiritualmente a nobreza dos principes e a obedeença daquelles que os ham de servir com doçe e forçosa cadea de benfeytoria, per a qual os senhores dam e outorgam graadas e graciosas mercees, e os sobdictos offerecem ledos e voluntariosos serviços aaquelles a que per natureza vivem sobjeitos e son

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dos príncipes, caracterizados como “fazedores de bem”48, aparece como um dos temas de maior importância na obra, e dentre as questões levantadas pelo infante, destacaremos o papel da realeza dentro da cadeia de benefícios. Analisando a função dos senhores, D. Pedro oferece uma definição importante, e esta estabelece uma hierarquização política bem clara: Quanto a cousa he mais chegada aa fonte de que procede algua vertude geeral, tanto ela deve aver mayor participaçom das suas vertuosas condiçoões. E, pois os senhores som mais chegados a Deus que os outros homees, e nom entendamos esta chegança en stado natural, en que todos somos yguaaes, nem en stado spiritual, en o qual cada huu he mais perfeyto segundo que mais ama a Deus, mas en o stato moral, que perteece aa governança do mundo, possuuem os principes singular influencia per que ponham en obra os auctos das benfeyturas49.

Esse trecho estabelece os senhores como aqueles que estão mais chegados a Deus, e para tal argumentação o infante desconsidera como fundamento o ‘stado natural’, caracterizado como relação horizontal entre os homens, e, de forma mais significativa, o ‘stado spiritual’, visto como relação de cada homem com Deus, através do amor. O elemento escolhido pelo duque de Coimbra é a moral, ou o ‘stado moral’, apresentado como a ‘governança do mundo’, para a qual ele oferece três razões que justificam a escolha. A primeira, fundada ‘en natureza’, estabelece os principes como pais de seus súditos, os quais eles geram, assim como ‘naturaaes maridos’, “segue.sse que lhes devem fazer ben, acorrendo aas mínguas das suas feyturas”. A segunda razão, também fundada em ‘exemplo de natureza’, assim é exposta:

obligados por o bem que recebem” (DOM PEDRO, Infante. Livro da Vertuosa Benfeytoria. Edição crítica, Introdução e notas de Adelino de Almeida Calado. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1994, L. I, Cap.I, p.13). 48 Idem, L.I, Cap.III, p.18. 49 Idem, L.II, Cap.IX, p.77-78.

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E o sol antre os poetas he chamado rey do ceeo porque todollos planetas e strellas recebem delle claridade, e as cousas temporaaes son geeradas e conservadas per spargimento do seu splendor. Porém, pois que as criaturas que careçem de razom gaançarom nomes de senhorio por ajudarem com suas propriedades as que son a ellas subdictas, muito mais devem os principes partir o que tee, fazendo a todos mercees segundo que devem, que por esto lhe outorgou Deus o regimento, e os homees consentirom que sobre elles fossem senhores, e receberom cousas sobejas aas suas persoas por poderem partir com aquelles que vivem minguados50.

Por fim, a terceira razão aparece com a alusão de que toda razoável criatura deve esquivar o mal contrário a seu “stato e a seu officio”, e é obrigada a seguir o bem. Com menções a Boécio, Cícero e ao apóstolo Tiago, o infante segue argumentando que os príncipes devem trabalhar para serem semelhantes a Deus, e finalizando que “huu soo cuydado devem teer os principes, convem a ssaber, sguardar en todas suas obras o proveito dos subdictos e squeecer os próprios desejos”51. A argumentação de D. Pedro estabelece que Deus oferece os regimentos aos príncipes, senhores que também governam pelo consentimento do povo, e tal universo de vínculos definem uma cadeia de relações solidárias, em que cada qual, em suas diferentes posições hierárquicas na sociedade, reforçam a rede de benefícios. O príncipe, governando em proveito dos súditos, isto é, cumprindo seu ofício, coloca-se em condições de receber o galardão de Deus52. Ao longo do capítulo XVI, o infante volta a analisar a situação dos príncipes na cadeia hierárquica da benfeitoria, dando especial atenção ao tema da obediência. D. Pedro inicia a argumentação defendendo que a sujeição dos súditos deriva do pecado original, perspectiva tradicional da patrística, e assim sintetiza a sua posição: E, como he cousa natural nacermos com peccado, asssy he nossa natureza vivermos en sobjecçom de temporal senhorio, do qual per ley nem per sacramentos nom somos desobrigados 50 Idem, p.78. 51 Idem, p.79. 52 Idem, p.80.

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porque a graça spitirual nom tira a corporal sobjecçom, mas o cativeiro da alma53.

Através desse trecho, é possível observar que na proposta o infante naturaliza a relação de sujeição existente perante os senhores temporais, e essa situação não é passível de desobrigação nem mesmo pelos sacramentos, isto é, nem a Igreja poderia romper os vínculos de sujeição existentes entre os senhores e os súditos. D. Pedro avança na argumentação acerca das relações presentes na comunidade, e como através delas se reafirma o poder dos príncipes, expondo ainda a importância do amor ao reino como forma de honra e salvação54, temática comum no contexto dos séculos XIV e XV, especialmente com o desenvolvimento das noções de ‘pátria’ e dos vínculos de solidariedade relacionados 53 A proposta mais ampla assim é apresentada: “A primeyra he que a ordenança razoada antre os principes e os sogeytos he fundada en natureza e mostra.sse per aquesta guisa: tanto que o peccado desterrou do mundo a original directura, logo hua razoável criatura foy sogeyta a outra (...). Depois desto, crecendo a multidoõe das gentes, trabalharom, os que per entendimento sentiam melhoria sobre os outros, de os reger, dando.lhe ensinanças per que melhor mantevessem sua vivenda. E alguus, deffendendo de seus aversayros, per força, o poboo com que sse ajuntarom, merecerom de seer recebidos por principaaes daquelles a que faziam proveyto. E, usando desto prolongadamente, per tal guisa se assenhorarom dos sobjectos que filharom delles special encarrego per que veeo a sser dereito neccessario de os senhores governarem en justiça e os deffenderem de seus imiigos, ateer morrer por elles. E por este cuydado que elles tee outorgou. lhes o poboo obediente sobjeyçom fazendo vassalagem per que he obrigado a lhe mateer lealdade” (idem, L. II, Cap.XVI, p.102). 54 “conclusom he que o principe e a comunydade tee antre sy special e stremada liança, per cujo aazo som tehudos de acorrerem aas necessidades comuues. E cada hua persoa que vive en a comunydade a esto meesmo he obrigada. (...) Por estes bees proveytosos e honrosos que as comunydades recebem dos principes he razom de elles seerem mais amados que as outras persoas, e com mayor avondança devem seer ajudados en suas neccesidades. E, esguardando esto, os que amam salvaçom e desejam honra do seu reyno ordenam suas aazes per tal modo que possam salvar huu homem e oferecem suas cabeças sem temor, non receando de apresentar os peytos aos golpes de seus aversayros por nom tornarem atras as bandeyras do seu regedor” (Idem, p.103-104).

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aos reinos55. A obediência pregada pelo infante é uma ação que principalmente os cristãos devem zelar, e sustentando-se em citações bíblicas e de São Tomás, assim relaciona o ofício régio com a obediência dos súditos: Toda alma seja sobjecta aos principes mais excelentes, que nom se há poderio que nom proceda de Deus. E as cousas que som, per Deus tee ordenança. E quem resiste ao principe faz resisteença a ordenança de Deus. E os que desto usam gaãçam dampnaçom pera sy meesmos porque os principes nom som receados aos que bem obram, mas aos que fazem mal. Queres nom temer ao principe? Faze ben e averas delle louvor. Elle he ministro de Deus pera sse fazer o bem. Se mal fazeres, teme, que sem razom nom traz a spada. Elle he de Deus ministro vingador en sanha en aquelle que mal faz. E porem per neccessidade seede sobjectos, nom soomente por a sua sanha, mas aynda por consciencia, que ministros som de Deus e en seu officio servem a elle. En aquesto se mostra aos christaãos que sempre devem obedeceer aos principes, nem he scripto en a ley devinal cousa que a esto seja contrayra56.

Talvez esse trecho seja o mais incisivo em reforçar a noção do rei/príncipe como ministro de Deus, ofício que faz o governante seguir o bem dos súditos, combater o mal, e ainda garantir a obediência da comunidade, que enquanto conjunto de cristãos devem obedecer ao rei por amor ao próprio Deus e aos Seus desígnios. Mostra-se através dessas citações que D. Pedro harmoniza ao longo do capítulo as relações naturais que ligam os príncipes aos súditos. Nesse caso, percebemos duas perspectivas, uma que enfatiza o governo através do consentimento do povo, e outra que estabelece as consequências do pecado original e do papel dos reis enquanto ministros de Deus. No entanto, é interessante citar a sequência desses argumentos do infante, pois será a partir das referências citadas que o texto chega à relação de obediência devida pelo “stado ecclesiastico”: E, pois tam afficadamente he mandado aos sobjectos que nos obedeeçam, ssegue.sse que tanto he mandado a nós que 55 Cf. GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV – Os Estados. São Paulo: EDUSP, 1981. 56 DOM PEDRO, Infante. Idem, p.105.

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tenhamos delles todos temporal e político regimento, en outra guisa sem razom nos seriam obrigados. E, pois nenhuu he scusado deste madamento apostólico (...). E, pois o principal membro da nossa comunydade he o stato ecclesiastico e dos oradores, a este devem principalmente acorrer. E, porquanto nom he menor peçonha a que nace dentro en o corpo que outra qualquer que de fora procede, nom devem tirar seus cuydados da governança do membro spiritual, mas trabalharam, com todallas forças da sua consciencia, que o seu bem seja acrescentado e viva en vertuosa paz e antre os sagraaes seja honrado, e dos que son dentro e mantee prelazias nom receba enjurias. (...) E, por entendermos que, manteendo lealmente os sobdictos tal sobjecçom, cobraram os obedientes galardom spiritual, saybhamos que todollos falecimentos naturaes que nós padecemos nacerom do peccado original, do qual per o Nosso Senhor Jhesu Christo fomos abastosamente remiidos, (...). Porém, como antre os outros padecimentos naturaaes seja huu a moral sobjecçom, segue.sse que, en a ssoportando vertuosamente, cobraremos speritual merecimento57.

O ‘stado ecclesiastico’ como membro da comunidade também está relacionado aos vínculos de obediência aos príncipes, sujeição que é reafirmada pela menção ao pecado original, causador dos padecimentos naturais. D. Pedro não oferece uma posição acabada e direta que submete o clero aos príncipes temporais, contudo nesse capítulo podemos notar a construção de uma argumentação que estabelece o rei como principal benfeitor do reino. O rei é fazedor de bem, é misericordioso, é o promotor do bem comum, age em prol dos interesses dos súditos, e não pelos próprios. Nesses termos é possível afirmar que no Livro da Vertuosa Benfeytoria o infante coloca o estado político-moral acima de todos os outros estados, e assim o príncipe aparece como o ponto mais alto da hierarquia terrestre, e por seu ofício deve intervir frente a todos os grupos que compõem a comunidade. Feito esses apontamentos, passaremos a analisar o Leal Conselheiro, escrito por D. Duarte. Assim como o Livro da Vertuosa Benfeytoria, a obra também foi produzida no intuito de promover a vida virtuosa, principalmente dos homens da corte. Trata de diferentes assuntos, dos quais daremos atenção aos aspectos relacionados à função do clero e ao ofício do rei. 57 Idem, p.105-107.

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No que tange o primeiro elemento, destacamos a argumentação de D. Duarte no capítulo IV, tratando das formas de erro na maneira de viver. Quanto aos clérigos diz: Se os oradores querem as riquezas, honras, reverenças, liberdades, segurança de sagral justiça e dos feitos da guerra, usando pouca e fraca oraçom, nom querendo per ofícios e corregimentos honrar a Deos nem suas igrejas, nom ensinando, regendo, ministrando sagramento aos que som obrigados, e a todos dam exemplo de scandalo e de pouca devaçom e mal viver, taes como estes que al seguem senom esta tiba voontade, querendo haver as honras, riquezas, poderios, soltura de todas folganças aos defensores e casados outorgados, nom soportando seus perigosos, trabalhos e despesas58.

Desse trecho podemos perceber o que D. Duarte entendia como sendo a obrigação dos ‘oradores’: oração, ensino, orientação espiritual e administração dos sacramentos. Ao criticar o apego pelas riquezas, o texto oferece o entendimento de que os religiosos deveriam viver desprendidos dos bens materiais, dedicando-se a vida espiritual, função a qual Deus lhes ordenou. Não obstante, notamos que dentre as funções atribuídas ao clero, a única que através do Leal Conselheiro parece ser específica dos oradores, é a administração dos sacramentos. Em diferentes momentos do texto D. Duarte aborda a importância do estudo como forma de promoção da vida virtuosa, assim como destaca a necessidade de estar rodeado de bons conselheiros que ofereçam orientação em questões temporais e espirituais59. Desta forma, reafirma-se a delimitação de que a função clerical estava ligada aos assuntos espirituais, e que ações fora desse âmbito poderiam ser interpretadas como desvios de função. Em capítulo dedicado a Fé, D. Duarte faz a seguinte ponderação: E sobre a fe devemos consiirar como sabemos e creemos os artigoos e comprimos os sacramentos, guardamos as ordenanças e cerimonias da Sancta Igreja, e como as igrejas e 58 DOM DUARTE, rei de Portugal. Leal Conselheiro. Edição crítica, introdução e notas de Maria Helena Lopes de Castro. Prefácio de Afonso Botelho. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, Cap.4, p.26-27. 59 Cf.: Idem, Cap.63, 81, 84, 85, 86, 92, 94.

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pessoas eclesiásticas e de religiom som de nós honradas, bem trautadas, e, no que convem, obedecidas60.

O trecho é claro e demonstra que as críticas possíveis de serem lançadas ao clero não prejudicam a fé nas ordens da Igreja. No entanto, ao estabelecer a devida conveniência, a passagem também reafirma que a obediência está ligada apenas ao que se entende como de competência do clero. Poucos capítulos depois D. Duarte volta ao tema da crença e investe nos elementos que a Igreja manda crer. Expõe cinco temas: o credo, os sacramentos, as virtudes, o conhecimento dos pecados, e os direitos sobre as liberdades e jurisdições da Igreja. Os quatro primeiros são reforçados e defendidos, porém o último é alvo de crítica: E, por quanto alguus destes som scriptos per leterados, os que sobr’elo screverom forom clérigos e quizerom largamente favorecer a sua parte, posto que o fezessem com boa teençom. Porem, esto nom embargando, todolos senhores, em esta parte, teem certas ordenanças em suas terras por conservaçom de seus estados e bem de seus subdictos, per antigo custume aprovadas que parecem contrairas a openiom d’eles, as quaes entendo que cada uu principe deve guardar por serviço de Nosso Senhor Deos como fezerom seus antecessores, segundo el com seo conselho por melhor acordar61.

Percebe-se que o tema das liberdades e jurisdições temporais, uma das grandes questões de conflito entre a realeza e o clero português nos primeiros reinados de Avis, é visto como uma construção dos clérigos em prol de defender os próprios interesses. Mesmo acreditando que tais ações tenham “boa teençom”, o autor demarca que os elementos afetam as relações senhoriais existentes no reino. Esses são os apontamentos de D. Duarte no que tange diretamente a função do clero, e servem de contraste para as argumentações acerca do ofício régio. Este tema é explorado principalmente na parte central do Leal Conselheiro, especialmente 60 Idem, Cap.36, p.133. 61 Idem, p.142-143.

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ao tratar da prudência, virtude necessária ao rei62. No capítulo 51, D. Duarte recupera referências bíblicas, e de pensadores como Egídio Romano, Aristóteles, Vegécio, Boécio e Jean de Salisbury, para compor os diferentes motivos pelos quais a prudência se faz importante aos senhores e governantes. Concluindo a exposição, D. Duarte destaca que: Aos principes compre reger e encaminhar seu poboo em ordenada e devida fim, e esto faz a prudencia; ergo sem prudencia nom poderám reger e, per conseguintes, nom poderám seer principes. (...) Prudencia é assi como uu olho da alma, per o qual em todalas cousas, per o principe, o poboo deve seer encaminhado. Ergo, se o principe carecer de tal olho, o poboo nom poderá seer encaminhado nem bem governado. E desto se segue destruiçom do poboo e, destruido é o principado. (...) A saude do poboo é a saude do principe, e o principe deve muito de amar sua saude. E tal amor nom pode seer sem prudencia, ergo cumpre ao principe seer prudente63.

Tal como se apresentou ao tratar dos clérigos, o trecho permite a conclusão de que D. Duarte entendia que a função do rei era reger e encaminhar o povo de forma ordenada aos devidos fins. O Leal Conselheiro apresenta-se como um livro de apontamentos pessoais, que demonstra o interesse do rei em estabelecer a forma de proceder de um bom cristão. Os temas que atravessam o texto são os pecados e virtudes, a predestinação e o livre arbítrio, os milagres, a astrologia, a peste, etc. Acreditamos que por ser pensada enquanto ensinamento para príncipes e senhores, a obra de D. Duarte estabelece um pensamento político singular.

62 Uma das referências que abre a série de capítulos dedicados ao tema da prudência, entre outras virtudes, é a seguinte: “E posto que estas virtudes a todos perteençam, aos grandes senhores mais som necessarias, sem as quaes suas almas, pessoas, estado e os do seu senhorio seriam em gram perdiçom, consiirando sempre que os reinos nom som outorgados por folgança e deleitaçom, mas pera trabalhar de spritu e corpo mais que todos, pois que tal oficio que o Senhor nos outorgou é maior e de mui grande merecimento aos que o bem fezerem, na vida presente e que speramos” (Idem, Cap.50, p.201). 63 Idem, Cap.51, p.207-208.

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Essa ideia é questionada por Antonio Saraiva, que defende que “para D. Duarte não há uma esfera especificamente política, distinta da moral e religiosa. O que é preciso é que todos cumpram os mandamentos de Deus, ensinados pela Igreja”64. No entanto, entendemos que tanto no texto de D. Duarte quanto no de D. Pedro, o rei é apresentado como ministro de Deus, de quem recebeu a obrigação de governar. O príncipe aparece como remédio para os males do povo, ligado aos interesses da comunidade, composta por súditos que englobam os clérigos. Portanto, entendemos que as obras em questão identificam o poder temporal reafirmando a origem divina do poder régio e ainda imprimindo um caráter sacralizado aos atos do governante, o que acaba por redefinir a esfera de atuação do clero através do entendimento do rei e dos aspectos espirituais. Os dois livros analisados não se empenham em subordinar o poder espiritual ao poder temporal. Esse não parece ser o objetivo de D. Pedro e D. Duarte. Tal como Margarida Ventura, acreditamos que a argumentação presente nos textos estabelece um progressivo esvaziamento da esfera dita espiritual, e muitas questões passam a ser incluídas na esfera temporal pelo próprio poder régio, o construtor das novas ‘fronteiras’. A jurisdição da Igreja é afastada das áreas de atuação que o rei entende que são temporais. Através dos textos, percebemos que é exatamente a esfera temporal que amplia sua área de ação, o que consequentemente expande as funções da realeza. Nesse processo de definição de ‘fronteiras’, o clero e a Igreja são apresentados com louvor e respeito, mas suas funções são caracterizadas pelo critério espiritual, enfatizando o papel da administração dos sacramentos. Conclusão Em uma época marcada pela ampliação do poder do rei e por novas definições do ofício régio, observamos o caso português que reflete as discussões acerca dos limites entre o poder temporal e o poder espiritual que perpassaram todo o medievo. Através das reflexões apresentadas, foi possível notar que a dinastia de Avis desenvolveu um projeto político que estabelecia um modelo de conduta para a nobreza, especialmente a cortesã, mas não deixou 64 SARAIVA, Antonio José. Idem, p.234.

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de definir papéis para o clero e a própria realeza. Reafirmando as perspectivas de que o poder do rei vem de Deus, sendo a expressão ‘rei pela graça de Deus’ recorrente em diferentes documentos, os textos que levantamos também defendiam a função do rei como Vigário de Deus na terra, promotor do bem e da justiça, cume da hierarquia terrestre. Tais propostas formavam uma mescla com as teorias ascendentes do poder, as quais se manifestaram de forma clara no processo de ascensão dinástica nas Cortes de Coimbra, e nesse sentido as obras assinaladas, livros, cartas e conselhos, criavam uma sobreposição de pensamentos políticos que ligavam os príncipes à comunidade através do consentimento, mas que também reforçavam a ordenação divina da posição do rei. A sacralidade régia analisada como uma temática que ganha maior destaque em Portugal com a mesma dinastia, mostra-se como fundamento para a sacralização dos atos da realeza, e assim o amor, a paz, a justiça, entre outros atributos aparecem como expressão do ofício do vigário de Deus na terra. Em todo esse processo, foi possível destacar o contínuo esvaziamento das possibilidades de intervenção eclesiásticas nas esferas temporais. Desta forma, caracterizando a Igreja como instituição espiritual o poder régio redefinia sua própria posição da sociedade. Portanto, concluímos acreditando que o caso avisino é um exemplo paradigmático das relações entre o temporal e o espiritual no baixo medievo, configurando-se um objeto de investigação possível por diferentes feixes de análise, inclusive de questões acerca da função pacificadora dos monarcas de Avis.

X A legitimação da eleição de D. João I no Portugal do século XV: As virtudes do Mestre de Avis e os atributos do ofício régio

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Mariana Bonat TREVISAN1

ropomos neste texto uma tentativa de análise acerca da legitimação da dinastia de Avis em Portugal no século XV, partindo de discursos referentes à eleição régia de D. João, Mestre de Avis, nas Cortes de Coimbra de 1385, e à valorização da concepção ascendente de poder em algumas obras produzidas na corte de Avis. Neste sentido, nosso intuito é elucidar como através do ideal da escolha divina expressa pela vontade popular, um bastardo régio tem seu acesso ao trono justificado, em meio a um contexto ibérico de crise e guerra. Incorporando os principais ideais do ofício real, junto a desejáveis virtudes morais para monarcas, a figura de D. João I ganha em diferentes docu1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, orientada pelo Profa. Dra.Vânia Leite Fróes. Email:mari_bonat@ yahoo.com.br

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mentações o caráter de um escolhido de Deus para trazer a paz e a justiça para o reino português. A vontade divina é expressa a partir da escolha dos súditos, mediante a eleição régia, realizada em cortes na cidade de Coimbra, no ano de 1385. Após o pleito e o início oficial do reinado de D. João I, a tarefa da consolidação e plena legitimação da nova casa real não estava acabada, pelo contrário. Interessa-nos a análise, a partir da eleição de 1385 e do decorrer do reinado do fundador de Avis, do surgimento na corte avisina de uma legitimação pela palavra, através de diferentes obras, escritas tanto pelo próprio monarca, como pelos príncipes (D. Duarte e D. Pedro) e outros funcionários régios (como o cronista Fernão Lopes, entre outros), influenciados por consagrados autores antigos e cristãos (Aristóteles, Cícero, São Tomás de Aquino e Egídio Romano, entre outros). Assim, a partir dos discursos elaborados na corte de Avis, objetivamos apreender como se constrói uma legitimação oficial da dinastia, tendo em conta as duas teorias vigentes acerca da transmissão do poder (descendente e ascendente), mas com a percepção da concepção ascendente e das virtudes pessoais do Mestre de Avis, as quais teriam conduzido-o “providencialmente” ao trono e, portanto, justificariam o advento da nova dinastia, contudo, sem afetar sua posterior continuidade pela via da sucessão hereditária. O Mestre de Avis: de bastardo régio a defensor e regedor do reino na crise de 1383 Para compreendermos como se darão as construções teóricas a respeito da legitimidade da Casa de Avis e de seu fundador, é preciso retornar ao período do reinado de D. Pedro I de Portugal (1357-1367) e chegar até o momento que levou à crise e ao fim da dinastia borgonhesa-afonsina no reino português. D. Pedro, ainda infante, em 1336 casa-se com a infanta castelhana Constança Manuel. Esta união gerou a infanta D. Maria e o infante D. Fernando, futuro herdeiro do trono. D. Constança morreria após o parto deste varão, mas D. Pedro teria ainda três filhos (D. João, D. Dinis e D. Beatriz) com a amante Inês de Castro, a qual era aia de sua esposa. Contudo, após dez anos de vida em concubinato com o infante Pedro, Inês de Castro é morta em 1355, a mando do rei Afonso IV (1325-1357), o qual temia as ligações de Pedro com os castelhanos irmãos desta.

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D. Pedro I não mais se casaria após a morte de D. Inês, porém, no mesmo ano em que assume o trono, 1357, gera mais um filho: D. João, tido com uma dama galega chamada Teresa Lourenço, da qual praticamente nada se sabe. Porém, o último filho natural de D. Pedro I não seria esquecido pelo pai, que o investe no mestrado da Ordem de Avis em 1364, provavelmente nunca imaginando que o pequeno menino ilegítimo se tornaria o fundador de uma nova dinastia em 1383. Em 1360, D. Pedro realiza a Declaração de Cantanhede, visando legitimar a relação que teve com a aia Inês de Castro, anunciando que havia casado em segredo com a dama e que, portanto, os filhos que teve com esta seriam legítimos e deveriam ser chamados infantes, assim como D. Fernando, o herdeiro do trono, e D. Maria, filhos de Constança Manuel. Em 1367 o monarca Pedro falece e, seguindo o curso da sucessão dinástica de Borgonha em Portugal, D. Fernando assume o trono. O reinado deste é marcado por três dispendiosas guerras contra Castela. D. Fernando requisitava o trono castelhano, considerando-se o herdeiro mais legítimo do reino vizinho, repudiando D. Henrique Trastâmara, bastardo do rei Afonso XI que assassinou o herdeiro legítimo (D. Pedro I de Castela) e tomou o trono. Além das guerras, outro fator que geraria instabilidades com os súditos fora o casamento de D. Fernando com a nobre Leonor Teles de Meneses, implicando na rejeição de outros diplomáticos acordos matrimoniais com filhas dos monarcas ibéricos. A união de D. Fernando com D. Leonor Teles não teria agradado a muitos fidalgos e, na ocasião da cerimônia, o infante D. Dinis, meio-irmão de Fernando, recusou-se a beijar a mão da nova rainha, sendo por isso expulso do reino pelo monarca e a partir daí, vindo a tecer sua trajetória em terras castelhanas, ao lado do monarca rival. Já o infante D. João (primogênito de Inês de Castro e Pedro I), casa-se com Maria Teles, irmã de Leonor, mas em meio a intrigas da corte, acaba assassinando a esposa. Apesar de conseguir o perdão real, perde prestígio. Retirando-se para Castela, o infante João tomará parte junto ao rei castelhano em alguns momentos da disputa com Portugal2. Tal afastamento dos 2 FERNANDES, Fátima Regina. Sociedade e Poder na Baixa Idade Média Portuguesa Sociedade e Poder na Baixa Idade Média Portuguesa. Dos Azevedo aos Vilhena: as

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filhos legitimados de Pedro I e Inês de Castro da corte portuguesa terá implicação fundamental após a morte de D. Fernando na crise dinástica que se instaura, pois os combates dos dois infantes ao lado do monarca de Castela, contra o irmão e reino de origem, fariam com que Fernando os excluísse de seu testamento como possíveis herdeiros do trono. Do casamento com Leonor Teles, D. Fernando só teria uma herdeira: Beatriz (1372-1412), a qual desde a mais tenra idade tornou-se objeto de diversos acordos matrimoniais em meio a tréguas e novos conflitos contra Castela. A terceira guerra fernandina contra o reino vizinho começa a se travar a partir de 1381, mas novamente sem vencedores nem vencidos, a paz foi firmada no acordo de Elvas (1382). Assim, mais um acordo de casamento da pequena Beatriz é feito, desta vez com o infante Fernando (futuro Fernando I de Aragão), filho segundo do monarca castelhano Juan I. Contudo, após o rei de Castela ficar viúvo, o casamento da infanta passaria a ser com o próprio monarca. E então, pelo Tratado de Salvaterra de Magos, é proposto o contrato de casamento entre Beatriz e Juan I. Aos 11 anos, em 1383, a jovem é entregue a seu marido. Feita soberana de Castela, a infanta Beatriz abre as portas do reino português ao consorte3, mesmo que o contrato de casamento procurasse estabelecer a garantia da soberania do reino português: [...] la entención del dicho Rej de Portugual es de guardar la Corona de los Regnos em quanto pudiere que se nom ajam de juntar em misturas a la Corona de los Regnos de Castilla, mas que fique siempre Regno sobre si quomo fasta aqui fuerom apartadamente de lo que seria grande duvida se ElRej de Castilla, o la dicha Iffante oviesse el Regimiento dellos.4

famílias da nobreza medieval portuguesa. Curitiba: Editora UFPR, 2003. p. 6671. 3

Ibidem, p. 224.

4

SOUZA, Antonio Caetano de. Provas da história genealógica da Casa Real Portuguesa. Edição revista por M. Lopes de Almeida. Coimbra: Atlântida, 1946-1954. t. I, livro II, p. 433.

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Preocupando-se com todas as possibilidades de sucessão (incluindo Fernando e Leonor virem ainda a ter um varão), o tratado propõe que somente em último caso, assim que a linha direta de sucessores masculinos fosse esgotada, a gerência do reino deveria ficar com Beatriz. Já Juan I, somente seria rei de Portugal na condição de marido da filha de Fernando. Atenta-se que a única forma de o rei castelhano vir a ser monarca português por si só seria com a morte de Beatriz, sem terem gerado nenhum descendente, e a morte de Leonor Teles, sem haver nenhum outro herdeiro possível5. Com a morte de Fernando ainda neste ano de 1383, o acordo a ser respeitado a partir de Salvaterra de Magos deveria ser que enquanto Beatriz e Juan I não tivessem um herdeiro varão em idade de 14 anos, a coroa portuguesa seria regida por Leonor Teles. No entanto, a situação que se configurará não será a do acordo assinado e o governo de Leonor Teles durará somente três meses. Dentro do reino, crescem-lhe oposições e temores quanto a uma investida do rei castelhano, a qual se confirma. O início da queda de Leonor se dá com o assassinato do conde de Andeiro, tido como seu amante, em 06 de dezembro, pelas mãos de uma figura presente, mas ainda sem maior destaque que outros grandes fidalgos na corte portuguesa: D. João, Mestre de Avis e bastardo de D. Pedro I, que justifica o assassinato como forma de defender a honra do irmão falecido. À volta de D. João, irão se juntar aliados nobres e citadinos, destacando-se os moradores de Lisboa. Buscando o apoio do genro castelhano para a preservação de seu poder, Leonor acaba sendo presa por Juan I e enviada para um convento em Castela, onde morre em 1386. Outra prisão executada pelo rei castelhano foi a do infante D. João (filho de Pedro I e Inês de Castro), que possuía muitos partidários no reino português (contudo, como já colocado, este e seu irmão D. Dinis, haviam sido excluídos como herdeiros no testamento de D. Fernando). Deste modo, o bastardo Mestre de Avis, é quem obtém maior destaque na luta contra os invasores castelhanos. Temendo por sua vida (uma provável vingança da rainha e opressões do rei de Castela), planeja fugir para a Inglaterra, mas teria sido 5

Cf: Ibidem, p. 431, 432.

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convencido por súditos que lhe eram favoráveis a ficar no reino e tornar-se seu novo chefe, pois afinal o infante D. João estava preso e o infante D. Dinis também se encontrava em Castela. Deste modo, ao final do ano de 1383, D. João acaba por ser nomeado Defensor e Regedor do Reino por súditos na Câmara de Lisboa (à revelia do direito e dos tratados anteriormente estabelecidos e abolindo a regência de Leonor Teles). Entrase assim, num período de interregno, os partidários do Mestre defendiam sua posição alegando o rompimento do Tratado de Salvaterra pelo rei castelhano, que invadira o reino buscando tomar seu trono6. Assim, o Mestre de Avis encarnava a figura do chefe natural contra o invasor estrangeiro, representando o interesse dos citadinos (dos grandes e dos pequenos), negociantes e mesteirais portugueses, a chamada “arraia miúda”7, além dos setores mais baixos da nobreza, opositores dos cabeças de linhagem que se mantinham fiéis à rainha Beatriz e a seu marido castelhano Juan I. A eleição em cortes em 1385 Logo após tomar o regimento e a defesa do reino, D. João adotou uma bandeira para sua causa (reunindo simbolicamente as armas tradicionais de Portugal e as da Ordem de Avis) e escolheu para seu chanceler-mor um homem letrado e fiel, o doutor em leis João das Regras, formado em Bolonha. Formou o Conselho e instituiu um órgão consultivo formado por 24 homens, um de cada mester (ofício). Tais medidas visavam equiparar seus poderes com os regalia, porém, não significaram mudanças estruturais, apenas a substituição dos que exerciam os ditos cargos8. No plano militar, o Mestre de Avis, junto ao fiel cavaleiro Nuno Álvares, começa a reconquista dos territórios portugueses que haviam sido tomados pelo rei de Castela. A resistência e vitória 6

SOUZA, Armindo de. 1325-1480. In: MATTOSO, José (Coord.). História de Portugal. A monarquia feudal. Lisboa: Estampa, 1993. v. 2. Passim.

7

Termo referente aos estratos mais baixos da população, o “povo miúdo” que combatia com os ventres ao sol. Cf: BEIRANTE, Maria Ângela. As Estruturas Sociais em Fernão Lopes. Lisboa: Horizonte, 1984. Passim.

8

VENTURA, Margarida Garcez. O Messias de Lisboa. Um estudo de mitologia política (1383-1415). Lisboa: Cosmos, 1992. p. 46.

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do Mestre e de seus partidários no cerco de Lisboa têm especial importância neste sentido, gerando inclusive sermões de frades franciscanos que imputaram à D. João uma aura messiânica (com certa dose de milenarismo joaquimita), a de salvador do reino e dos portugueses como o “Mexias de Lixboa”9. Mas depois da libertação de Lisboa era preciso lembrar que nem todo reino estava com o Mestre. Encaminham-se então D. João e seus partidários para Coimbra. Consoante Margarida Ventura, tudo leva a crer que desde há muito o Mestre preparava cuidadosamente os Concelhos, no sentido de o elegerem rei10. Como atentou Maria Helena Coelho, não bastava que D. João houvesse sido escolhido para regedor e defensor do reino. Um reino tinha de ter, como cabeça, um rei. Não o herdando, havia que o escolher11. Recorria-se então ao mecanismo de autoridade e poder constituído pela assembléia de representatividade em cortes. O rei, “enquanto cabeça do reino”12, deveria em primeiro lugar ser legítimo. Como postulado por Guenée, durante séculos eleição e hereditariedade neste âmbito foram mais processos complementares do que exclusivos, pois as leis da sucessão hereditária eram imprecisas, e o sangue destinava à coroa não uma só pessoa, mas todos os membros de uma mesma família. Nos séculos XII e XIII os costumes sucessoriais e regras eleitorais se tornaram mais precisos, hereditariedade e eleição começaram a se 9

LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Segundo o Códice n. 352 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Introdução de Humberto Baquero Moreno. Prefácio de António Sérgio. Porto: Livraria Civilização, 1991.v.1. Caps. XLIII, CLIX.

10 VENTURA, Margarida Garcez. Op. Cit. p. 73. 11 COELHO, Maria Helena da Cruz. D. João I. Reis de Portugal. Mem Martins: Temas e Debates, 2008. p. 78. 12 Referimos aqui a metáfora organicista, amplamente difundida no período medieval quanto a ideal régio, sendo comumente os nobres designados como os braços ou mãos e o povo comum os pés ou outro membro, contudo, a cabeça sempre é reservada para o monarca. Cf: NIETO SORIA, José Manuel. José Manuel. Fundamentos Ideológicos del Poder Real en Castilla (siglos XIII-XVI). Madrid: Eudema, 1988.. p. 91; KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei: Um estudo de teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Passim.

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opor. Os príncipes durante muito tempo exploraram uma ou outra dessas opções conforme as circunstâncias. No fim da Idade Média, na França e na Inglaterra, por exemplo, não é mais a sagração e raramente é a eleição, mas quase sempre é um direito hereditário bem definido (baseado no critério da primogenitura) que torna um rei legítimo13. Como apontado por Kantorowicz, o Espírito Santo, que em tempos anteriores manifestava-se mediante o voto dos eleitores (embora seus dons fossem conferidos pela unção), agora estava sediado no sangue real, por assim dizer, natura e gratia – de fato, “por natureza” também, pois o sangue da realeza agora surgia como um fluido um tanto místico14. O princípio da realeza eletiva existia virtualmente, de uma forma ou de outra, praticamente em todos os reinos durante todo o período medieval. Partindo das concepções que predominam acerca do ofício conferido por graça divina, a eleição viria a significar, estritamente falando, a designação de um indivíduo idôneo para desempenhar um ofício que já existia e com o qual nada tinham a ver os eleitores. A eleição, assim, não conferia poderes, não fazia o rei; juridicamente somente concedia um título: um jus ad rem. Pelo menos nos reinos onde existia a sagração, a eleição não era mais que um meio para lograr um fim: era o veículo através do qual o rei obtinha seu ofício. As eleições seriam, neste sentido, somente a conferência solene e formal do ofício régio considerado sagrado15. Para a melhor compreensão da função régia e da questão da eleição do Mestre de Avis em Cortes é preciso primeiro tratar das concepções de transmissão de poder descendente e ascendente, enunciadas por Walter Ullmann. A primeira se refere ao rei de caráter teocrático: o rei só o é pela graça de Deus (rex gratia Dio), fórmula que, provinda já da Alta Idade Média, implica no entendimento de que o monarca detinha seu poder através dos efeitos da graça divina. E ao depender da graça de Deus, o rei estabelecia uma relação direta com a divindade, inversamente, 13 GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos Séculos XIV e XV: os Estados. São Paulo: Pioneira, 1981. p. 112, 114. 14 KANTOROWICZ, Ernst. Op. Cit. p. 203. 15 ULLMANN, Walter. Princípios de gobierno y politica en la Edad Media. Madrid: Editorial Revista de Occidente, 1991. p. 149.

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desligando-se cada vez mais da dependência do povo. Estando em comunhão estreita com Deus, o rei torna-se assim seu vigário no mundo (vicariato este que implicava no fato de a divindade estar presente na figura régia) 16. Detendo a superioritas, o rei sagrado estava longe de pertencer ao povo. Em princípio e em razão de seu governo, o monarca encontrava-se acima dos súditos, constituindo um status per se, enquanto àqueles restava obedecer. Segundo a concepção descendente ou teocrática, pode-se encontrar em alguns documentos a noção de que quando um reino se encontrava sem rei ou num interregno, o poder voltava a Cristo (regnante Christo). Não se pode considerar o povo como portador de algum poder até que a concepção ascendente de poder ganhe força (o que não ocorre antes do século XIV, para Ullmann) 17. Na concepção ascendente, que ganhará mais força no fim do medievo, o poder do rei vem acima de tudo dos súditos. É à comunidade que cabe escolher o representante e ordenar as leis que garantem o bem coletivo, o que importa nesta teoria é a vontade do povo (voluntas populi). O rei aqui é o representante do povo e não um vigário de Deus, dominando então o princípio eletivo18. Portanto, como complementa Ventura, no final da Idade Média, assistimos à afirmação desta concepção ascendente e populista, sobretudo depois do impacto do estudo de Aristóteles por São Tomás de Aquino. O poder originário passou a residir, pelo menos em teoria, no conjunto dos cidadãos. Todavia, estas duas concepções coexistirão ainda por muito tempo, prolongando-se mesmo pela Idade Moderna19. As eleições régias, como a que elevou ao trono D. João I em 1385, terão sua realização através da assembléia representativa constituída em Portugal pelas chamadas Cortes. Como sugeriu Guenée, tendo seu surgimento e desenvolvimento desde o século XIII, mormente em período de crises ou dificuldades (morte de um príncipe sem herdeiro masculino ou na maioridade,

16 Ibidem. p. 122-125. 17 Ibidem, p. 127-133. 18 Ibidem, p. 24, 25. 19 VENTURA, Margarida Garcez. Op. Cit. p. 8.

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guerras e apuros financeiros, desastres militares)20, as assembléias representativas vêm para solucionar problemas diversos e de assuntos específicos, como a guerra e o consentimento de impostos ao príncipe21. Desta forma, o parlamento medieval foi uma instituição político-administrativa de enorme importância, com funções como a apresentação de propostas, petições e agravamentos; concessão de pedidos e empréstimos aos reis; prestação de homenagens e juramentos; votação de guerra e paz; realização de reformas gerais; eleições de reis e regentes; resoluções de questões monetárias; alienação de territórios da coroa; votação de matérias constitucionais; extinção de regências. Há, portanto, atribuições legislativas, técnicas e políticas, como também funções secundárias, que o parlamento cumpre simplesmente pelo fato de existir, tal como a propaganda do rei e a educação política dos deputados e dos concelhos22. Em Portugal, as Cortes derivam das cúrias régias extraordinárias e terão começado quando representantes dos conselhos municipais entraram nelas pela primeira vez como membros efetivos. Em geral, eram reunidas quando reis ou regentes as convocavam, pressionados por motivos conjunturais, de natureza financeira na maioria das vezes. Em média, duravam um mês23. Mas nas Cortes de 1385 em Coimbra uma condição excepcional se estabelece: pela primeira eleger-se-ia um monarca para o reino. A eleição a ser realizada tinha como princípio a teoria da origem pactícia e popular de poder, expressa no direito romano-justiniano, ao referir que a obediência dos povos aos reis assentava num pacto ou contrato entre ambos. Vagando-se a coroa e cessando o pactum subjectionis, o poder voltava para o povo, o qual podia livremente escolher o seu novo titular. Mas tal pacto, que legitimava o poder do soberano, impunha-lhe também, à luz do pensamento dos juristas, teólogos e moralistas, o objetivo supremo do seu exercício em prol do bem comum24 (teorização 20 GUENÉE, Bernard. Op. Cit. p. 207. 21 Ibidem, p. 215. 22 SOUZA, Armindo de. Op. Cit. p. 513. 23 Ibidem, p. 510, 511. 24 COELHO, Maria Helena da Cruz. Op. Cit. p. 87.

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que seria consagrada pelo infante D. Pedro no seu Livro da Virtuosa Bemfeitoria, obra que abordaremos adiante). Na Península Ibérica, de maneira mais ampla, a eleição dos reis tinha fundas raízes na tradição da monarquia visigótica. Os monarcas de Espanha intitulavam-se sempre reis por “direito de eleição” e defendiam a integridade deste princípio. Em Portugal, a hereditariedade da coroa era um costume institucional e aparecia normalmente reiterada nos testamentos dos soberanos. Mas, em conformidade com as doutrinas dos legistas, aceitava-se que, por falecimento do rei, o contrato ou pacto de sujeição (pactum subjectionis), que estabelecia a obediência dos povos ao soberano, cessava imediatamente, e o poder era devolvido ao reino. Este, então, ficava livre para escolher um sucessor que o governasse. A eleição deveria ser feita, porém, dentro de determinadas condições. O colégio eleitoral deveria ser constituído pelos vassalos com representatividade, o corpo organizado do reino, formado pelo alto clero e pela nobreza, congregados em cortes. Por outro lado, os candidatos ao trono tinham de reunir os requisitos de elegibilidade, e estes estipulavam que eles fossem descendentes de reis25. Desde a fundação da monarquia lusitana até 1385 a função do poder eletivo, implícita no pactum subjectionis, nunca fora exercida pelos vassalos que representavam o reino e detinham a soberania, porque a transmissão da coroa se tinha feito sempre por herança. O reino era, assim, detentor de um poder latente, em princípio. Esse poder havia sido deferido, mas nunca verdadeiramente realizado. É só nas Cortes de Coimbra que ele é utilizado pela primeira vez e efetivamente. Mas ao fazê-lo, e ao por fim à dinastia que havia regido os destinos de Portugal até então, os seus representantes, à luz do critério tradicional, tinham quebrado implicitamente a cadeia carismática do poder26. Seguindo a teorias políticas circulantes no período, esse poder havia sido conferido a partir de uma linha descensional ao fundador da monarquia, cujo destino como chefe dos portugueses havia sido devidamente traçado por sinais da Providência. Tais 25 REBELO, Luís de Sousa. A concepção do poder em Fernão Lopes. Lisboa (?): Livros Horizonte, 1983. p. 39. 26 Ibidem, p. 40, 41.

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sinais fidedignos é que permitem identificar a figura do chefe carismático, que oportunamente transmite essa qualidade divina da chefia a seu legítimo herdeiro. Mesmo com as vicissitudes e o caso da deposição do rei Sancho II (1223-1248) no século XIII, jamais a cadeia da transmissão carismática havia sido afetada, porquanto a decisão de depor o rei coube ao Papa, mediador entre Deus e o Príncipe. Afonso III (1248-1279), antes somente conde de Bolonha, era por via agnática o legítimo sucessor do irmão. Assim, tanto no plano jurídico, como no da origem divina do poder, nada ocorrera antes de 1385 que tivesse modificado a ordem e a qualidade dos mecanismos de sucessão. Já neste final do século XIV, a assembléia portuguesa atuaria como depositária da monarquia, tal como uma delegada de Deus na distribuição da soberania política27. Para tratarmos das Cortes de Coimbra, levaremos em conta duas fontes que chegaram até nós: o Auto de eleição do rei D. João I de 6 de Abril de 1385 e a primeira parte da Crónica de D. João I, composta por Fernão Lopes ao longo da primeira metade do século XV. O Auto de eleição teria sido produzido na chancelaria do já novo rei, sendo datado de 06 de abril de 1385. O texto possui a preocupação expressa de registrar oficialmente, através dos tabeliães, os dados da sobredita eleição28. Já a crônica de Fernão Lopes faz parte de uma reconhecida trilogia (composta pelas narrativas dos reinados anteriores Crónica de D. Pedro I, Crónica de D. Fernando, além da Crónica de D. João I), elaborada por este servidor da dinastia de Avis a partir da incumbência de carta régia de D. Duarte (primogênito e sucessor de D. João I) - datada de 1434 - para registrar a memória dos reis que teriam governado o reino de Portugal. Cabe ressaltar que a narrativa lopeana tem como principal documento para seu relato das Cortes de Coimbra o próprio Auto de eleição de D. João I. A partir destes dois documentos é que encontramos subsídios para a compreensão do que estas Cortes representaram para o reino e qual a conseqüência que geraram no pensamento político 27 SOUZA, Armindo de. Op. Cit. p. 430. 28 Cf: Auto da eleição do rei D. João I, de 06 de Abril de 1385. In: SANTOS, Frei Manuel dos. Monarquia Lusitana, 8ª parte. & SOUZA, António Caetano de. Provas da história genealógica da Casa Real Portuguesa. Edição revista por M. Lopes de Almeida. Coimbra: Atlântida, 1946-1954. Disponível em: . Acesso em: 08/04/2011.

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português do período. Em uma reunião no Mosteiro de São Domingos, em 02 de outubro de 1384, ficara agendado “que fossem chamados aqueles concelhos que por Portugal mantinham voz; e todos em Coimbra com os fidalgos e prelados que aí fossem juntos, falassem sobre o provimento da guerra, e donde se poderiam haver despesas para ela necessárias.”29. Portanto, o objetivo inicial das programadas Cortes era tratar dos feitos da guerra e sua subsidiação. O cumprimento de tal proposição pode ser verificado também no Auto de eleição que foi produzido logo após as reuniões da assembléia: “[...] congregados nós na cidade de Coimbra no palácio real para haver de tratar, concordar e fazer aquilo, que é, e seria conveniente, e necessário para bom governo, e defesa nossa e dos sobreditos reinos, especialmente em feitos de guerra”30. Contudo, no relato da memória avisina construído por Fernão Lopes, a intervenção maravilhosa de Deus antecipase ao ato jurídico proclamado em Cortes: D. João, ao chegar à cidade, é aclamado rei por muitos meninos que começaram a ir fora da cidade sem que ninguém os tivesse instruído, correndo e bradando: “”31. Tal aclamação espontânea e uma entrada na cidade digna de rei seriam, segundo o cronista, inspiradas por Deus. Deste modo é que se prepara na crônica lopeana o clima das Cortes que formalizariam a condição real de D. João32. Portanto, como atenta Maria Helena Coelho, devemos perceber como ao longo de dez capítulos, a prosa lopeana dá vida a um palco de discurso político e enfrentamento de quereres e poderes: “O cronista transmite sua mensagem histórica numa “encenação ficcionada”. Mas o que nos conta é a memória que nos quer legar – e com ela a da família de Avis -, dos atores e vozes que deram corpo a essa representação e seu desfecho final”33.

29 LOPES, Fernão Lopes. Crónica de D. João I. Op. Cit. v.1 Cap. CLIV. p. 324. 30 Auto da eleição do rei D. João I, de 06 de Abril de 1385. Op. Cit. 31 LOPES, Fernão Lopes. Crónica de D. João I. Op. Cit. v.1. Cap. CLXXXI, p. 390. 32 Cf: VENTURA, Margarida Garcez. Op. Cit. p. 74. 33 COELHO, Maria Helena da Cruz. Op. Cit. p. 79.

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O Mestre chegaria a Coimbra em 03 de março de 1385, recebido pelo clero, fidalgos e povo comum. Sua entrada na cidade marca um rito de passagem34. Fernão Lopes constrói a mesma encenação ao abrir e fechar este ciclo parlamentar. Primeiro ouvimos as vozes inocentes e livres de crianças, mensageiros da vontade divina, gritarem por Portugal e pelo rei que sobre ele reinará. Para ao final do relato cronístico acerca da eleição termos um uníssono de vozes e vontades a erguer oficialmente a aclamação real: “”35. As principais sessões das Cortes teriam ocorrido no paço da Alcáçova. Como participantes havia prelados de várias cidades (Braga, Lisboa, Porto, Évora, entre outras), alguns abades e o grande letrado e deão de Coimbra, Rui Lourenço, que representaria a diocese (dado que o seu bispo estava com o rei de Castela). Juntaram-se também um grande número de nobres, entre seniores e juniores, alta e média nobreza. Os procuradores de vilas e cidades também estavam representados. Entre os presentes, dois grupos se opunham: os que defendiam a causa dos filhos de D. Pedro e Inês de Castro (os infantes D. João e D. Dinis), liderado por Martim Vasques da Cunha e seus aliados; e o que pugnava pela dignidade real ao Mestre de Avis, corporizado nos concelhos e por fidalgos de linhagem menor que os primeiros. Não há provas de representantes da parte de D. Beatriz e seu marido Juan I. A peça-chave desta reunião de cortes vai ser João as Regras, doutor em Leis pelo Estudo de Bolonha, que já no tempo de D. Fernando fora consultado sobre a obediência ao papa de Avignon, da qual não advogou. Segundo o cronista Fernão Lopes, era homem de muita autoridade e grande ciência, mas, sobretudo tido entre os letrados como o maior pela “subtileza e clareza de bem falar”36. O Auto de eleição de D. João I sintetiza as argumentações do jurista e o discurso de João das Regras, apresentado por Fernão Lopes, é certamente uma construção literária e como tal deve ser encarada. A voz do jurista é a que lhe empresta o narrador cronístico. Passado mais de meio século do acontecimento das 34 Ibidem. p. 80. 35 LOPES, Fernão Lopes. Crónica de D. João I. Op. Cit. v.1. Cap. CXCII, p. 424. 36 Ibidem. Cap. CLXXXIII, p. 393.

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Cortes, Lopes podia aperfeiçoar certos argumentos, suavizando uns e enfatizando ou acrescentando outros, de modo a contribuir para a consolidação da boa memória do reinado de D. João I e de sua legítima sucessão37. Para Pedro Calafate, a descrição que o cronista faz das argumentações de João das Regras constitui um dos momentos mais altos do pensamento medieval português sobre a transmissão do poder e sobre o papel que nele desempenha a comunidade38. A assembléia e a eleição são legitimadas no discurso atribuído ao jurista, recorrendo para isso à comparação com a eleição eclesiástica: 39.

A necessidade de um novo monarca para o reino em guerra e desprovido de cabeça mostra-se como a grande justificativa das Cortes de Coimbra, como se observa no Auto de eleição de D. João I: [...] congregados nós na cidade de Coimbra no palácio real para haver de tratar, concordar e fazer aquilo, que é, e seria conveniente, e necessário para o bom governo, e defesa nossa e dos sobreditos reinos, especialmente em feitos de guerra [...]. E primeiro de tudo vendo nós que os sobreditos reinos, o seu governo e defesa, depois da morte do rei D. Fernando, último possuidor deles, ficaram vagos e desamparados, sem rei, nem governador, nem qualquer outro defensor legítimo, que os possa, e deva por direito hereditário [...] 40. 37 COELHO, Maria Helena da Cruz. Op. Cit. p. 81, 82. 38 CALAFATE, Pedro. História do pensamento filosófico português. Idade Média. Lisboa: Cosmos, 1999. v. 1. p. 445. 39 LOPES, Fernão Lopes. Crónica de D. João I. Op. Cit. v.1. Cap. CLXXXIII, p. 394. 40 Auto da eleição do rei D. João I, de 06 de Abril de 1385. Op. Cit.

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Seguindo os principais pontos presentes no Auto de eleição de D. João I, o relato lopeano do discurso do jurista começa por tratar que os reinos não estariam vagos, haveria inclusive até herdeiros demais41 (a citar: a rainha D. Beatriz junto a seu marido Juan I de Castela, os infantes D. João e D. Dinis - filhos de Inês de Castro-, e por último, no mais improvável grau, o bastardo Mestre de Avis). A tática do Dr. João das Regras para isso será demonstrar que nenhum dos possíveis herdeiros era legítimo, vindo só então a declarar o trono vago. Começa por refutar a legitimidade da herança por parte de D. Beatriz, filha de D. Fernando e Leonor Teles, e de seu marido Juan I de Castela. D. Beatriz seria fruto de um matrimônio não válido - pois sua mãe ao tempo em que se casou com o rei não havia obtido dispensa papal de seu matrimônio anterior. Além disso, seu primeiro marido, João Lourenço Cunha, tinha parentesco com o rei D. Fernando, o que imputava a ela o parentesco por afinidade. Junto a estes argumentos cita o fato de D. Leonor ser mulher não casta (pois trairia o rei com o conde de Andeiro), o que gerava dúvidas quanto à paternidade de D. Beatriz; somam-se a estes fatores ligações de parentesco que existiriam entre Beatriz e seu marido Juan I, as quais deslegitimavam o matrimônio e seus possíveis descendentes à coroa portuguesa42. Em seguida, João das Regras apelaria para a deslealdade do descumprimento do Tratado de Salvaterra por Juan I para depois lançar a condição de cismático do rei castelhano e de sua mulher, pois ambos estavam a seguir o antipapa de Avignon nestes tempos de Cisma da Igreja. Por isso, seria de ordem do pontífice romano (tido como o verdadeiro a ser seguido pelos portugueses) inclusive excomungar o casal régio de Castela, afastando-o da comunidade eclesial: 43.

Como bem atentou Maria Helena Coelho, era como que uma condição “providencial” serem os castelhanos cismáticos, favorecendo a assimilação da portugalidade à romanidade. Como teriam afirmado alguns pesquisadores, em nenhuma parte da cristandade a cisão religiosa serviu de instrumento político tão valioso como em Portugal.44. No fundo trata-se de reconhecer a primazia da Igreja em tudo o que respeito à vida do homem sobre a terra. Sendo todos os homens filhos de Deus e o papa, cabeça única da Igreja, seu vigário na Terra, segue-se, nas palavras atribuídas a João das Regras, que quem o despreza, despreza ao próprio Jesus Cristo “cujas vezes tem”45. Nesta conformidade, entende que todas as leis temporais devem estar em concordância com a lei de Deus e com os mandados da Igreja, pois que “mais devemos obedecer a Deus que aos homens”46. Estamos, segundo a compreensão de Pedro Calafate, perante a espiritualização do poder régio temporal, pois que a sua finalidade última se confunde com a finalidade do poder espiritual do papa. Sendo o espiritual de plena atribuição ao papa, o temporal, na sua esfera de execução própria, deve estar em conformidade com a lei divina. O poder temporal dos reis não pode ir contra a unidade fundamental da Igreja, assim, a lei contrária aos desígnios da unidade desta não pode ser considerada verdadeira lei47. Portanto, no discurso de João das Regras contra os possíveis partidários da realeza castelhana, estava a defesa de Portugal aliada à defesa da verdadeira Igreja, a Romana. Os inimigos de Portugal eram os inimigos da Igreja e, portanto, de Deus48. Freqüentemente, o jurista recorre ao exemplo e a autoridade papal 43 Ibidem. Cap. CLXXXV, p. 401. [os grifos são meus]. 44 COELHO, Maria Helena da Cruz. Op. Cit. p. 83. 45 LOPES, Fernão Lopes. Crónica de D. João I. Op. Cit. v.1 Cap. CLXXXV, p. 400. 46 Ibidem. 47 Cf: CALAFATE, Pedro. Op. Cit. p. 449. 48 VENTURA, Margarida Garcez. Op. Cit. p. 75.

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para corroborar os seus argumentos, usando toda sua oratória argumentativa e a demonstração de atos e situações legais através de provas documentais ou por testemunhas. Após o convencimento da ilegitimidade ao trono de D. Beatriz e de seu marido rei de Castela, o jurista ainda tinha de argumentar aos partidários dos infantes filhos de D. Pedro I e D. Inês de Castro (mormente o mais velho, D. João, preso em Castela). Deste modo, concentra-se primeiramente na deslegitimação da declaração de casamento secreto com Inês de Castro que D. Pedro havia realizado em Cantanhede em 1360. Argüi sobre a consangüinidade que ligaria o monarca à aia, além de um laço de parentesco espiritual por compadrio, negando também a existência de uma dispensa papal legítima que validasse o matrimônio. Para corroborar ainda mais sua tese, alude à traição que os infantes D. João e D. Dinis teriam feito ao seu reino ainda em tempo de D. Fernando, indo para a mercê do rei de Castela49, e que por tal atitude jamais deveriam ser eleitos monarcas do reino de Portugal: “desaguisado fariamos nos, emleger por rei a quem sse del desnaturou, e veo comtra elle pera o destruir;”50. Não havendo ainda acordo com os partidários dos infantes (o cronista Fernão Lopes, em referência às palavras de João das Regras, aponta para a questão da benquerença que os dois filhos de D. Pedro I tinham no reino), Nuno Álvares e outros partidários do Mestre cogitam pegar em armas para impor o convencimento. Porém, tal não teria sido do agrado do Mestre e novamente a razão da palavra entrava em cena com o Dr. João das Regras: alegando não ter feito uso de tal argumentação anteriormente para não ferir a honra dos infantes, apresenta então uma bula expedida por Inocêncio IV, saída de Avignon em julho de 1361, na qual o pontífice não confirmava o casamento de D. Pedro devido aos impedimentos de consangüinidade e não legitimava os infantes gerados pela relação51 (contudo, a veracidade de tal documento não é precisa, além do que, é preciso questionar o porquê de neste momento a autoridade do papa de Avignon ser legítima e em 49 LOPES, Fernão Lopes. Crónica de D. João I. Op. Cit. v.1. Caps. CLXXXVI, CLXXXXVII. 50 Ibidem. Cap. CLXXXVII, p. 409. [o grifo é meu]. 51 Ibidem. Caps. CLXXXIX, CXC.

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outros não). Ao final, pela razão ou pela intimidação das armas, decidiu-se eleger o rei. Como resume Pedro Calafate, se fosse provado que o infante D. João, preso em Castela, era o herdeiro legítimo do trono à luz do princípio da sucessão hereditária, o povo teria de aceitá-lo por rei; caso contrário, concluir-se-ia que o trono estava vago, pois se quebrara a cadeia direta de sucessão, pertencendo então a escolha ao povo. Esta é a base de toda a argumentação do Dr. João das Regras, que Fernão Lopes recompõe nos capítulos finais da primeira parte da Crónica de D. João I. Depois de equacionar todas as complexas relações familiares dos membros da realeza e os impedimentos advindos delas, termina por declarar que o reino estava livremente vago, baseando-se na quebra da linha de sucessão legítima, a qual fora inclusive confirmada por um pontífice, que teria se recusado a legitimar as pretensões de D. Pedro I52. Era então a hora de escolher o representante mais apto para o exercício da função régia, a qual exigia ao candidato ser de boa linhagem, ter grande coragem para defender sua terra, nutrir amor aos súditos, possuir bondade e fiel devoção à Igreja. Tais condições, como aponta o discurso do Dr. João das Regras na crônica lopeana, seriam plenamente encontradas em D. João, Mestre de Avis53. Era então a legitimidade do exercício do poder a exigir a legitimidade do título de rei, pela escolha do reino representado em cortes. E logo em concordância, todos os grandes e o comum povo disseram que o promovessem à alta dignidade e estado de rei. Tanto no Auto de eleição de D. João I como na crônica de Fernão Lopes há uma primeira recusa do Mestre de Avis em aceitar o ofício e dignidade real, alegando sua ilegitimidade de nascimento (a bastardia régia) e a condição de clérigo da Ordem de Avis. Porém, os eleitores das Cortes persistem, afirmando que enviariam embaixada a Roma para que o Papa Urbano VI o dispensasse de seus impedimentos, prometendo também ajudar D. João com corpos e bens para que pudesse manter a dignidade real54 e levar 52 Cf: CALAFATE, Pedro. Op. Cit. p. 448. 53 LOPES, Fernão Lopes. Crónica de D. João I. Op. Cit. v.1. Cap. CXCI, p. 420. 54 Lembrando com Kantorowicz que a dignidade se refere ao “estado real”, à

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a guerra adiante55. Após a recusa inicial, D. João, [...] consiirando as gramdes necessidades do rreino, e suas boas voomtades e offerecimentos; emtemdemdo que prazia a Deos de o seer, pois se tamto aficavom a esto [...], ouve em ello de comsemtir; e disse que pois se doutra guisa fazer nom podia, que ell açeptava sua emlliçom, e nome, e dignidade rreal de rei pera deffemder o rreino, [...] e a homra e rreveremça do Santo Padre e da See Apostollica de Roma56.

Nestas palavras atribuídas ao novo rei, pode-se ler um dos princípios fundamentais da idéia de soberania inicial do povo, em que este se assume como instrumentum da divindade, no sentido de ser por esta inspirado ou, traduzindo na fórmula canônica tantas vezes repetida pelos doutores medievais: “populo faciente et Deo inspirante”. A tese da soberania inicial do povo não deixava de poder fundar-se na Escolástica, mais propriamente em S. Tomás de Aquino57. Em seu tratado De regiminen principium, o Aquinate, mesmo afirmando que todo o poder é concedido por Deus, estabelece a diferença entre governo regalista e governo político, expressando sua noção de poder ascendente baseada na eleição58. Logo a eleição do Mestre deixa de ter apenas a orientação constitutiva que lhe haviam dado os legistas, para passar a advir de efeitos declarativos. Na expectativa da legitimação, o Mestre saía das cortes eleito e reintegrado na sucessão da coroa pela vontade dos portugueses e pela aprovação dos bispos, dado que não aceitou a eleição de imediato, revestido afinal da mesma e soberania do rei individualmente, a dignidade precisa ser mantida pelo rei em prol do bem comum. Portanto, era um assunto de interesse comum, público. Cf: KANTOROWICZ, Ernst. Op. Cit. p. 233. 55 LOPES, Fernão Lopes. Crónica de D. João I. Op. Cit . v.1. Cap. CXCII, p. 422, 423. 56 Ibidem. Cap. CXCII, p. 423. 57 CALAFATE, Pedro. Op. Cit. p. 450. 58 Cf:AQUINO, S. Tomás de. Del Gobierno de los Príncipes. trad. A. Ordóñez. Buenos Aires: Losada, 1964. Disponível em: . Acesso em: 20/04/2012. Livro IV, Cap. I (De la diferencia que hay entre el Principado Real y el Politico y que es de dos manera)s. Ver também: ULLMANN, Walter. História do pensamiento politico en La Edad Media. Barcelona: Editora Ariel, 1999. p. 170, 171.

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tradicional autoridade dos seus antecessores. Não tendo assumido o título de rei “por direito próprio”, mas apenas depois de eleito e rogado a recebê-lo, D. João podia então interpretar, de acordo com a doutrina medieval da delegação divina do poder, o unânime consenso das cortes como o sinal da vontade de Deus59. A originalidade desta doutrina é inegável no pensamento político português do tempo, onde pela primeira vez se manifestava e aceitava como válida a tese do poder ascendente. Havia, portanto, que encontrar para ela a autoridade que a corroborasse e permitisse sustentá-la de uma maneira persuasiva e convincente60. Tal questão é resolvida nas crônicas de Fernão Lopes através do plano providencial da narrativa. Neste sentido, o cronista prepara os elementos que permitirão identificar a personalidade carismática do novo chefe e a designação da Providência (profecias e sinais divinos, demonstrados em ocasiões como a peste que só atinge os castelhanos e preserva os portugueses no cerco de Lisboa e o sonho profético do rei D. Pedro I que vê seu filho de nome João salvar um reino de Portugal em chamas61). O discurso cronístico demonstra que a vontade divina sanciona um pacto de caráter original, onde o princípio hereditário do poder, defletido da sua intenção primeira, encontra-se nitidamente subordinado ao princípio eletivo da teoria populista62. Enfim, como bem pondera Margarida Ventura: Aquele que desde sempre fora predestinado para Rei de Portugal, aquele que o povo, começando pelo de Lisboa, já tinha por rei desde a morte do Andeiro, junta o nome e a dignidade real ao ofício que já exercia. Deus queria, o povo traduz essa vontade, as Cortes elegem-no, o Papa legitima63. 59 COELHO, Maria Helena da Cruz. Op. Cit. p. 88. 60 REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit. p 54. 61 Cf: LOPES, Fernão Lopes. Crónica de D. João I. Op. Cit. v.1. Cap. CXLIX, p. 311; LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro I. Segundo o Códice n. 352 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Introdução de Damião Peres. Porto: Livraria Civilização, 1965. Cap. XLIII p. 193-196. 62 REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit. p 54. 63 Cf: VENTURA, Margarida Garcez. Op. Cit. p. 76;ver também: COELHO, Maria Helena da Cruz. Op. Cit. p. 88.

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A propósito, é justamente a defesa do reino contra o cismático e cruel rei de Castela que serve de base à súplica ao Papa Urbano VI e às dispensas (Divina disponente clementia e Quia rationi congruit) que são concedidas formalmente já no tempo de Bonifácio IX, dispensando o Mestre de seus votos e o absolvendo da sua ilegitimidade de nascimento, confirmando assim a sua plena dignidade real, a legitimidade de seu matrimônio e sua futura sucessão por herdeiros64. A aclamação de D. João I nas cortes de Coimbra de 1385 em lugar de reduzir a autoridade da cora, veio pelo contrário aumentar o seu prestígio. Assim, a interrupção da continuidade dinástica pela via legítima (D. João I considerava que não recebia a coroa iure sucessiones, mas fora designado ex-novo) não impediu que por falecimento do monarca a coroa fosse transmitida ao filho varão primogênito, ou, na sua falta, ao mais próximo parente por linha colateral legítima65. Em Portugal não se praticava a coroação, que consistia na unção pelos prelados, com benção ritual entrega solene dos atributos reais em cerimônia litúrgica. A prática utilizada era a aclamação ou proclamação pública do rei, que após a homenagem dos súditos assistia a um ato religioso revestido de insígnias. Neste cerimonial o rei jurava sobre os Evangelhos respeitar os direitos do povo e os privilégios de que usufruíam os súditos do reino. Esta atitude implicava da sua parte a aceitação da lei moral e religiosa e a observância dos usos e costumes tradicionais66. Assim, realizaram-se então em Coimbra cerimônias religiosas e festejos seculares, em rituais de entronização que se reproduziram em todas as cidades e vilas do reino, maximamente em Lisboa, onde se teve grande procissão e pregão de arraial pelo rei D. João. O Mestre de Avis e bastardo régio enfim se tornou rei, muito devido a dois homens fortes que tinha a seu lado, um do campo do saber e outro das armas: o Dr. João da Regras e o cavaleiro D. Nuno Álvares, duas pedras angulares que complementavam 64 Ibidem, p. 75. 65

MORENO, Humberto Baquero. O Princípio da Época Moderna. In: TENGARRINHA, J. (Org.). História de Portugal. São Paulo: Editora UNESP, 2001. p. 75.

66 Ibidem, p. 76.

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o Mestre de Avis. Estavam ali dois homens fiéis a ele e seus devotados servidores, logo, concorrentes na privança junto ao seu novo rei. De fato, logo após as cortes, Nuno Álvares foi nomeado condestável do reino e mordomo-mor, além de receber muitas outras recompensas ao longo do tempo. E João das Regras foi promovido no cargo de chanceler-mor e ao conselho do rei, a partir de 1400 também seria o “Encarregado” do Estudo Geral67. Encerrando o comentário sobre a narrativa de Fernão Lopes, é preciso interrogar se estas cortes foram realmente uma peça fulcral no desenrolar dos acontecimentos. Sem dúvida, elas são uma conseqüência de todo o encadeamento processual dos movimentos revolucionários e o seu imprescindível desfecho. Realmente há que ter em conta que a afirmação do Mestre como chefe até a sua eleição como rei envolve múltiplos atos projetados em longo processo. Todos estes encaminhamentos nos levam a entender melhor que em cortes os argumentos e provas apresentados tenham sido essencialmente favoráveis à causa do Mestre (como a inquirição e o Auto de eleição), dado que sua escolha estava já em larga medida assegurada e amplamente apoiada. Mas tais cortes foram absolutamente necessárias para legitimar institucionalmente a sua escolha e garantir a D. João I que os seus impedimentos de nascimento e condição religiosa não seriam armas contra si, antes atos ultrapassados com a anuência de todos. O monarca poderia tomar a coroa, pela vontade de Deus, expressa na sua eleição para reinar, pelos três estados reunidos em cortes, e, na expectativa de recompensa da sua fidelidade ao pontífice romano, confiar na sua ratificação pela autoridade máxima da cristandade68. Eleito e alçado rei era necessário então que D. João I ordenasse o reino para a guerra que ainda era preciso acabar. Urgia recuperar para Portugal vilas e castelos que tinham voz por Castela. Passavase assim à preparação para a grande batalha portuguesa, que se daria em Aljubarrota ainda no ano de 1385, cuja vitória seria um marco na justificação do novo rei e da nova dinastia inaugurada em Portugal 67 COELHO, Maria Helena da Cruz. Op. Cit. p. 89 68 Ibidem, p. 90, 91.

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A legitimação avisina posterior e o pensamento políticofilosófico português: as crônicas de Fernão Lopes e as obras dos príncipes de Avis Vencida a batalha de Aljubarrota por D. João I e com a seqüência de outros eventos, como o Tratado de Windsor com os ingleses em 1386 e a aliança matrimonial com Filipa de Lencaster, bem como as posteriores negociações que o duque de Lancaster, João de Gand, viria a estabelecer com o rei castelhano (casando sua filha Catarina com o herdeiro da coroa castelhana, Henrique), a guerra começara a esfriar. O rei castelhano Juan I morre em 1390 e há a partir de então o parentesco que une a rainhas portuguesa Filipa e a castelhana Catarina. Com o tratado de 1411 pôs-se fim ao conflito luso-castelhano e o reinado de D. João I entrou numa segunda fase, voltandose então para outro inimigo: o infiel mouro, pois os castelhanos, afinal, eram cristãos também e agora vizinhos pacíficos. Tratavase, portanto (talvez mesmo como forma de resolução para os problemas sociais e econômicos internos), de direcionar o projeto político avisino para a expansão e a luta contra os muçulmanos69. O primeiro sucesso da empreitada no norte da África foi a conquista de Ceuta, em 1415. O argumento da guerra santa e justa serviu aos objetivos expansionistas sobre o porto marroquino (com sua estratégica posição comercial sobre o estreito de Gibraltar) 70 . Além disso, a conquista também gerara, junto aos despojos, honras e títulos de nobreza a diversos “cruzados”, assim como prestígio para a monarquia, projetando o rei português perante Roma e toda a cristandade71. No entanto, a plena afirmação de Avis não se dá somente com medidas governativas (como por exemplo, a maior periodicidade das Cortes, traduzindo a importância das maiores cidades e vilas de Portugal), mas também com a construção de todo um aparato propagandístico72, manifestado de diferentes formas. Os 69 Cf: OLIVEIRA MARQUES, António H. de. Portugal na Crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Presença, 1987. p. 539-541. 70 Ibidem, p. 542. 71 Ibidem, p. 543. Ver também: MATTOSO, José & SOUZA, Armindo. Op. Cit. p.499. 72 Como ressaltou Nieto Soria, é verdade que o termo “propaganda” não foi

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acontecimentos que precederam a nomeação de D. João I como regedor e defensor do reino, bem como a sua eleição em Cortes, a vitória militar em Aljubarrota e todos os pontos altos do seu reinado são marcados por uma fortíssima componente mítica e simbólica. Efetivamente, tratava-se de uma época de instabilidade, incerteza e por conseqüência propícia à formação e vigência de mitos e símbolos políticos. Nas palavras da historiadora Margarida Ventura: Ainda durante a vida de D. João I e, sobretudo, nos reinados de D. Duarte e D. Afonso V, recolhe-se e constrói-se a imagética mitologia do rei-fundador da Dinastia de Avis. Escrevi ‘recolhese’ porque não podemos supor que o edifício mitológico foi somente invenção a posteriori73.

Assim, na nova dinastia, assentada a poeira da mudança sociológica e política, era tempo de erguer uma teoria de legitimidade inabalável. E, quanto mais irregular ou pouco comum fosse essa tomada de poder, tanto mais a teoria se reportaria à fonte de todo o poder: Deus74. A instauração e consolidação de Avis foi um processo efetuado ao longo de décadas e teve a sua primeira geração como principal protagonista e impulsionadora. As profundas mudanças sociais e políticas exigiram uma correspondente ação cultural e pedagógica. As obras escritas por D. João I, D. Duarte, D. Pedro, e por servidores fiéis como Fernão Lopes, são a melhor prova dessa intenção e ação iniciada. Era necessário consolidar internamente a nova dinastia, não só politicamente, mas também e, sobretudo, moral e culturalmente, através do exemplo e da intervenção da família real75. Deste modo, a nova dinastia subia ao trono e iniciava uma ação de consolidação da consciência portuguesa. Com a concebido na Idade Média, tratando-se de um conceito bastante moderno. Porém, é igualmente certo que existiu uma forma de atuação plenamente correspondente ao que compreendemos hoje pelo termo. Cf: NIETO SORIA, José Manuel. Op. Cit. p. 41. 73 VENTURA, Margarida Garcez. Op. Cit. p. 1, 2. 74 Ibidem. p. 7. 75 GAMA, José. D. Duarte. In: CALAFATE, Pedro. Op. Cit. p. 381.

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independência política obtida por D. João I, urgia aprofundar internamente a consciência de autonomia cultural face à Castela e desenvolver progressivamente uma política de afirmação de Portugal no contexto europeu. Entre 1350 e 1450, D João I e seus filhos exerceram um importante papel na consolidação de uma identidade portuguesa. Suas obras marcaram uma nova etapa no uso da prosa doutrinária vernácula, sobretudo no campo da filosofia moral e da filosofia política76. A chamada “cultura dos príncipes de Avis” representaria um dos raros momentos em que a criação cultural parece escapar à “fatalidade” da periferia, que condiciona a cultura portuguesa ao longo dos séculos, numa sintonia com o que se fazia noutras terras e noutros lugares, surpreendendo até hoje em certos aspectos. Outro ponto a se ressaltar é que ao situar-se decisivamente num meio social bem definido –a corte régia– pela primeira vez se desenha de forma nítida em Portugal o papel da corte na produção de modelos culturais. Aliás, cabe atentar o lugar que o livro e a cultura letrada iam ganhando no reino com Avis a partir do exemplo dos próprios príncipes77. O inegável ascendente de uma literatura pedagógica e normativa na corte avisina, em que membros da realeza se empenham de forma peculiar, para além de constituir a expressão de uma cultura aristocrática, traz para primeiro plano a reflexão sobre o exercício do poder e sobre a realeza. Neste sentido, os modelos mais determinantes do perfeito governante, constantes da já então ampla produção dos espelhos de príncipes medievais, condicionam de forma direta o conjunto da literatura dos príncipes de Avis. Podemos neste contexto compreender o “lugar” central das obras de Cícero e Sêneca, por exemplo, e num outro plano de uma obra como o De Regimine Principum, de Egídio Romano, que marca o triunfo da matriz aristotélica na literatura doutrinal destinada ao príncipe, sendo o modelo decisivo dos specula principis a partir dos finais do século XIII. A obra de Egídio Romano era conhecida 76 Ibidem. p. 386. 77 BUESCU, Ana Isabel Livros e livrarias de reis e de príncipes entre os séculos XV e XVI. Algumas notas. In: eHumanista: Volume 8, 2007. Disponível em: . Acesso em: 22/06/12.p. 143.

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na corte avisina e existia tanto na livraria de D. João I como na de D. Duarte, para a qual existem dois exemplares referenciados, um em latim e outro em vernáculo78. Neste contexto, as traduções de obras clássicas e referenciais no período terão grande importância. Escritos religiosos, teológicos, filosóficos, tratados políticos, entre outros gêneros e formas textuais serão traduzidos para o português, a começar pela primeira edição portuguesa da Bíblia, ainda no reinado de D. João I; e a Imitação de Cristo, de Santo Agostinho, pelo frei João Álvares79 (secretário do infante D. Fernando e que esteve com este no cativeiro após a frustração de Tânger). Já no domínio político, será de grande importância a tradução do De Officiis, de Marco Túlio Cícero, “tornado em linguagem” pelo infante D. Pedro como Livro dos Ofícios e dedicado ao irmão D. Duarte, em 1443; sua leitura para a corte denotaria uma função moralizadora80. Do panorama da produção avisina, destacaremos algumas das principais obras que contribuíram para a formação de um pensamento político-filósofo estruturado no reino de Portugal e relacionado especificamente à sua realeza, mormente no que se refere à legitimação da Casa Real de Avis e ao processo eletivo que levou D. João I ao trono. Portanto, abordaremos aqui mais alguns aspectos relacionados às crônicas de Fernão Lopes, bem como a obras Leal Conselheiro, do rei D. Duarte, e o Livro da Virtuosa Bemfeitoria, do infante D. Pedro. Fernão Lopes teria nascido entre 1380 e 1390, pertencendo à primeira geração depois dos combatentes de Lisboa de 1383 e da batalha de Aljubarrota, ou seja, à mesma geração que os filhos de 78 Ibidem. p. 149, 150. 79 MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Humanismo. In: MOISÉS, Massaud (Dir.). A Literatura Portuguesa em Perspectiva. São Paulo: Atlas, 1992. v. 1. p. 142. 80 CICERAM, Marco Tullio. Livro dos Ofícios o qual tornou em linguagem o Infante D. Pedro, Duque de Coimbra. Coimbra. Acta Universitatis Conimbrigensis, 1948. Edição crítica segundo MS. De Madrid, prefaciada, anotada e acompanhada de glossário por Joseph M. Piel. Apud FRÓES, Vânia Leite. Era no tempo do rei. estudo sobre o ideal do rei e das singularidades do imaginário português no final da Idade Média. Tese para Titular de História Medieval. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense Niterói, 1995. p. 100, 112.

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D. João I. Lopes exercia conjuntamente à atribuição de cronistamor os ofício de tabelião ou notário e escrivão da puridade, cargos de nomeação régia que exigiam conhecimento específico e a confiança da realeza. Assim, podemos afirmar que pertencia ao grupo analisado por Jacques Verger dos homens de saber da Idade Média, pois mesmo sem ser um clérigo e provavelmente não ter freqüentado a Universidade, adquirira um saber especializado, através do qual obteve condições de estabelecimento na corte e ligações muito próximas com o poder81. A trilogia lopeana, composta pela Crónica de D. Pedro I, a Crónica de D Fernando e a Crónica de D. João I compõe em seu conjunto um todo plenamente coerente no que se refere à construção de uma memória oficial da instauração da dinastia de Avis e sua justificação. No formato da crônica régia, a identidade do reino de Portugal é associada à figura do monarca e inserida numa dimensão histórica: a existência de um passado comum associado ao reino e seus habitantes, conduzidos pela figura real82. Conforme a análise de Luís de Sousa Rebelo, podemos perceber na obra lopeana a existência de três grandes planos narrativos: o ético-político, o jurídico e o providencial83. O primeiro é fundamentado basicamente na doutrina aristotélica e escolástica, preocupando-se com a moralidade do comportamento régio, a execução do bem-comum e da direita justiça84. O segundo trata do direito sucessório e hereditariedade dos monarcas. E o terceiro se refere à apologia religiosa que imputa o caráter messiânico à D. João I, utilizando para isto as referências bíblicas e escatológicas, 81 Cf: VERGER, Jacques. Homens e Saber na Idade Média. Bauru, SP: EDUSC, 1999. Passim. 82 Cf: FERNANDES, Fátima Regina. Teorias Políticas Medievais e a Construção do Conceito de Unidade. In: HISTÓRIA, São Paulo, v. 28 (2), 2009. p. 51, 52. 83 REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit. p. 18. 84 Neste quesito encontram-se os temas ligados à questão da igualdade do homem perante a Lei (levantada na Crónica de D. Pedro I); o abuso e a perversão do poder por uma facção estrangeira (definida nos últimos capítulos da Crónica de D. Fernando); o surto do sentimento nacional, que se identifica com o interesse comunal (desenvolvido na primeira e segunda parte da Crónica de D. João I); e a base moral e política da legitimidade eletiva (que ocupa a primeira parte da Crónica de D. João I). In: Ibidem, p. 27.

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comprovando a predestinação do Mestre através de sinais divinos e do apoio do povo85. Nestes três planos, carisma de sangue e de poder se confrontam, bem como concepção descendente e ascendente de poder, numa narrativa única que busca conciliar escolha popular e direito divino. Na dimensão ética do exercício do poder régio, Lopes destaca já no prólogo da Crónica de D. Pedro I a questão da justiça, tão presente de Aristóteles86 aos teóricos medievais como Egídio Romano87. Na doutrina do justo governo, que é no geral a dos tratadistas e autores de “regimentos de príncipes”, dava-se muita importância à questão dos desvios do poder, examinado à luz do que poderá considerar-se o princípio constitucional, ou politeia, no sentido que o entendeu Aristóteles na Política e na Ética à Nicômaco. Politeia significa não só uma forma de governo, mas também uma forma de conduta ou um sistema de ética social. O poder político e sua distribuição da justiça destinam-se a servir a comunidade (o bem comum) e não a interesses particulares88. Deste modo, podemos observar no prólogo da primeira narrativa a apologia da justiça, virtude necessária tanto ao povo quanto (e, principalmente) ao príncipe. Possuindo um rei a qualidade da justiça, fará leis (as quais funcionam como “príncipe nãoanimado’) para que todos vivam bem, corretamente e em paz. Mas para esta reflexão, cita abertamente somente Cícero: “Desta virtude da justiça, que poucos achar que a queiram por hospeda postoque Rainha, e senhora, seja das outras virtudes segundo diz Tulio”89. 85 Cf: Ibidem, p. 26-28. 86 “O bem em política é a justiça, isto é, a utilidade geral”. In: ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. 2ª Edição Revista. Bauru, SP: EDIPRO, 2009. Livro III, Cap. VII, p. 101. 87 “E porque el príncipe e el rey es fundamento del pueblo, de la justicia debe manar la justicia a los otros, e porque es padre de la tierra debe descender la justicia a los otros, e por él debe ser reglada en todos los pueblos e governada”. In: ROMANO, Egídio; CASTROJERIZ, Juan García de. Glosa castellana al “Regimiento de Príncipes” de Egidio Romano. Édicion, estudio preliminar y notas de Juan Beneyto Perez. Madrid: Centro de Estudios Politicos y Constitucional, 2005. Cap. XI, p. 110. 88 REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit. p. 28. 89 LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro I. Op. Cit. Prólogo. p. 5.

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O cronista glosa em seu prólogo a teoria de que todo poder é transmitido por Deus ao monarca (este, considerado na terra como um delegado divino), o que explica ser o soberano a encarnar a própria lei, a qual se afigura, portanto, no “príncipe animado”. Esta fórmula que traduz o conceito de lex animata dos juristas, assim como a analogia encontrada entra a parelha conceitual rei/reino e a que é constituída por alma/corpo, situam imediatamente o trecho em questão na ordem do discurso da teoria de poder descendente90. O que cabe perfeitamente ainda para tratar do governo de D. Pedro I, que seguia sem nenhuma alteração a continuidade dinástica por meio da hereditariedade na dinastia borgonhesa/afonsina. Mesmo assim, ao longo desta primeira crônica observamos como o autor registra certos elementos que apontam para um uso desequilibrado da justiça pelo monarca Pedro, que pecara por excessos em suas punições a delitos cometidos no reino. Do mesmo modo, verificamos como o rei acaba muitas vezes por ceder às paixões pessoais (relegando ao segundo plano o interesse geral), tal como na Declaração de Cantanhede de 1360, pela qual fez questão de legitimar a relação e os filhos que teve com a aia Inês de Castro, além da construção de um suntuoso túmulo para sua amada e o traslado de seu corpo de Coimbra para Alcobaça91 – era o desejo individual do monarca a ser impor no âmbito político. Já na Crónica de D. Fernando podemos notar, também ainda no prólogo, o desvirtuamento da justiça que se dará com este monarca. O jovem D. Fernando que assume o reino “Amava justiça e era prestador, e graado mujto liberal a todos, e gramde agasalhador de estramgeiros. “Amou muito seu poboo, e trabalhava de o bem reger”92, contudo, “Desfalleçeo esto quando começou a guerra, e naçeo outro mundo novo mujto contrario ao primeiro, passados os folgados anos do tempo que reinou seu padre; e veherom dobradas tristezas com que mujtos choraram suas desaventuradas 90 REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit. p. 30. 91 Cf: LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro I. Op. Cit. Caps. XVII, XVIII, XLIV. 92 LOPES, Fernão. Crónica de D. Fernando. 4ª Edição integral. Introdução de Salvador Dias Arnaut. Porto: Livraria Civilização, 1979. Prólogo, p. 3.

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mizquimdades.”93. Assim, se num primeiro momento o monarca Fernando parecia bem conduzir a justiça do reino, ao iniciar suas custosas guerras contra Castela (que teriam exaurido os tesouros acumulados por seus antepassados), traz grandes dificuldades para Portugal, deixando de garantir o bem comum. São freqüentes ao longo de toda a segunda crônica os elogios dirigidos aos que agem pela “prol comunal”, em contraste com a repreensão a que submete todos quantos são motivados na sua vida pública pelo desejo de satisfazer a “própria prol”, o interesse de família ou de grupo. Para Fernão Lopes, outro desserviço à comunidade feito durante o reinado de D. Fernando foi adesão ao Papa de Avignon, que veio a s somar ao problema da inconclusas guerras com Castela94. Na seqüência da trilogia, a regência de Leonor Teles após a morte de D. Fernando será caracterizada como o exemplo mais acabado da oligarquia em que uns poucos, descurando o bem comum, orientam o governo para servir os interesses próprios95 (notadamente a regente e seu círculo familiar). Desta forma é que podemos compreender a importância que o “poboo”, o destinatário das leis, adquire na narrativa lopeana. Sendo a justiça tão ou mais necessária aos príncipes que aos povos, é aceitável supor que quando o rei ou a rainha não ajam de acordo com a justiça e o direito, o povo contra eles se revolte, refletindo a injustiça dos seus chefes. E foi de fato o que sucedeu quando os povos apoiaram o Mestre de Avis no assassinato do Conde de Andeiro96. Precisamente neste momento é que a soberania popular ganha destaque contra o mau uso do poder pelo governante vigente. Os textos que circulavam então na Corte de Avis, como o Policraticus de João de Salisbury, freqüentemente citado por D. Duarte e pelo infante D. Pedro, e o De regimine principium de Egídio Romano, quer no original, quer na versão castelhana de Frei Juan García de Castrojeriz (Regimiento de Príncipes) - obra cuja leitura se fazia regularmente na câmara real - ofereciam ao cronista os 93 Ibidem, p. 3, 4. 94 REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit. p. 35. 95 CALAFATE, Pedro. Op. Cit. p. 445. 96 Ibidem. p. 447.

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fundamentos teóricos do pensamento político em que poderia assentar a eleição do rei feita por vontade popular. Com efeito, no Policraticus, João de Salisbury defende claramente como norma de sucessão ao trono, quando não se possa seguir o critério da transmissão imediata por via hereditária, que o príncipe seja eleito por meio do voto popular em conformidade com os secretos desígnios da Providência, e que, nesses casos, se dê a preferência sempre que possível a um pretendente que seja de estirpe real, desde que este tenha procedido de acordo com os juízos do Senhor97. Deste modo, na primeira parte da Crónica de D. João I é que teremos todo o percurso do Mestre de Avis: do assassinato do Andeiro à escolha pelos povos (os “naturais da terra”) na Câmara de Lisboa para defensor e regedor do território ameaçado pelos cismáticos estrangeiros, até a eleição para rei nas Cortes de Coimbra em 1385, sem esquecer as freqüentes demonstrações de sinais providenciais que conduziram sutilmente ao desfecho de instauração da nova dinastia. Por fim, na segunda parte da crônica destinada ao já rei D. João I, haverá a exaltação das qualidades do monarca que chegou ao trono não pela via hereditária, mas por merecimento e virtude98. O decorrer do reinado do ex-Mestre de Avis que a última parte da trilogia propõe vem a confirmar as qualidades atribuídas ao eleito. O prólogo da narrativa final começa já por expressar os atributos régios possuídos pelo monarca D. João I: fiel devoção católica, grande entendimento, nobres costumes, amabilidade, generosidade para com fidalgos e povo comum, fidelidade conjugal, bondade, uso correto da justiça99. Portanto, é seguindo 97 REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit. p. 54-56. 98 Na glosa castelhana do Regimento de Príncipes, de Egídio Romano, Juan de Castrojeriz exprime a opinião, seguindo exatamente o Policraticus, de “que el principado non es devido a la sangre mas a los merescimientos.” Cf: ROMANO, Egídio; CASTROJERIZ, Juan García de. Op. Cit. Livro III, Parte II, Cap. V, p. 774; ver também: REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit. p. 56. 99 Cf: LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Edição Preparada por M. Lopes de Almeida e A. de Magalhães Basto. Segundo o códice inédito CIII/1-10 da Biblioteca Pública de Évora confrontado com o texto impresso em 1644 e versões quinhentistas da mesma crônica existentes nas bibliotecas da Universidade de

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os debates teóricos vigentes sobre o poder dos reis e suas condutas que Fernão Lopes irá ajustar sua trilogia, encaminhando a solução do problema do assentimento divino através da demonstração das virtudes pessoais do Mestre de Avis (novamente: amor à terra natural, coragem para defender o reino, devoção à verdadeira fé cristã; além de sinais de ordem sobrenatural que expressariam a escolha divina). O problema da ausência de carisma de sangue de D. João I com a fratura da linha sucessória direta fez com que a Casa de Avis e seu fundador buscassem conformar sua legitimidade a partir do valor moral e das qualidades governativas de seus membros, como bem expressou o pesquisador português Luís de Sousa Rebelo: em qualquer caso de legitimação electiva em que o carisma de sangue sofre carência, maior importância assume o carisma de poder, que poderá encontrar-se até em homens de humilde condição, como adverte João de Salisbúria, cuja doutrina era bem conhecida do nosso meio intelectual quatrocentista [...] 100.

A sacralidade de D. João I vem de sinais divinos que se expressam em consonância com o apoio popular e as vitórias da causa portuguesa representada pelo Mestre de Avis. Assim, o bastardo e antigo clérigo que se torna rei, busca legitimar seu poder através da exemplaridade comportamental de sua corte. Esta atitude de valorização da conduta moral de seus membros e da boa condução do reino como responsabilidade essencial da realeza fora passada por D. João na educação de seus filhos, algo que se verifica através da análise das obras dos príncipes de Avis D. Duarte e D. Pedro. D. Duarte, varão sucessor de D. João I, governou Portugal de 1433-1438, no entanto, já havia sido associado a tarefas do governo pelo pai desde 1412. Seguindo o exemplo paterno (D. João havia escrito o Livro da Montaria), o herdeiro compôs o Livro da Ensinança de Bem-Cavalgar toda Sela, tratado técnico a respeito da montaria a cavalo que continha também ensinamentos morais. Mas D. Duarte não se limitou à composição de um tratado Coimbra e Municipal do Porto. Porto: Livraria Civilização, 1949. v. 2. Prólogo, p. 2-4. 100 REBELO, Luís de Sousa.Op. Cit. p. 20.

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técnico como pai, lançou-se na escrita da obra moral e filosófica Leal Conselheiro (a qual o próprio monarca chama de ABC de lealdade101), além de reunir ao longo de sua vida uma série de anotações que compõem o chamado Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte. Tendo a virtude da lealdade como seu eixo central, o Leal Conselheiro trata de temas relativos ao poder, paixões, virtudes e bondades, males e pecados102, baseando-se em autores como Aristóteles, São Tomás de Aquino e Egídio Romano, mas, sobretudo, em experiências pessoais, o que confere à obra certo grau de empirismo. Os temas tratados possuem uma ampla variedade, indo desde o comportamento amoroso dos homens nobres até questões de saúde, preceitos e valores políticos para governantes, reflexões sobre a tristeza e a saudade, análise das categorias sociais103. Inúmeras passagens bíblicas (a Sagrada Escritura é a obra mais referenciada) e cerca de quarenta autores são referidos no Leal Conselheiro. Os mais citados, por ordem decrescente, são: João Cassiano, Marco Túlio Cícero, Aristóteles, Sêneca, Egídio Romano e São Gregório. As traduções representam outro aspecto a ser notado no texto duartiano, devido ao significado cultural que adquirem na primeira metade do século XV português104. A tradição aristotélico-tomista certamente foi preponderante na formação e na estruturação do pensamento de D. Duarte. A sua reflexão pessoal, mesmo nos seus aspectos mais originais e criativos, situa-se dentro dos principais parâmetros desta corrente. As verdades teológicas são ainda o suporte inquestionável de uma visão metafísica da realidade em que o Ser se identifica com o Deus da revelação cristã. Em referência à Cândida Pacheco, José Gama postula que para D. Duarte, assim como para São Tomás, a virtude é racional. Compreende-se deste modo a relevância que 101 Cf: D. DUARTE. Leal Conselheiro. Prefácio de Afonso Botelho. Edição crítica, introdução e nota de Maria Helena Lopes de Castro. Colecção Pensamento Português, s/l, 1998. f. 3c, p. 9. 102 SARAIVA, António José. O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1988. p. 227. 103 Ibidem, p. 234, 235. 104 GAMA, José. Op. Cit. p. 403, 404.

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o nível racional assume no texto. A via média do agir moral, que remonta a Aristóteles, deixa-se reconhecer facilmente em várias passagens105. D. Duarte demonstra uma acentuada preocupação em fundamentar na razão a sua conduta e decisões, anotando criteriosamente o resultado de suas reflexões. No plano social, isso se reflete particularmente na concepção da sociedade hierarquizada, na qual a figura monárquica é vista como exemplo e modelo a imitar na prática da justiça e da vida virtuosa106. Esta prática da virtude, bem situada na época em que viveu e concebida na perspectiva da responsabilidade, é profundamente assumida pelo governante de um reino que acabara de superar um grave período de mudança. Tal orientação para a ação virtuosa no governo e na vida constitui o verdadeiro núcleo definidor de uma prática reflexiva de natureza filosófica107. Assim, D. Duarte associa o saber ao agir na prática da virtude. Conhecer bem o entendimento ou virtude da prudência e sua relação com a vontade no ser humano é o fundamento necessário para o bom conhecimento dos pecados para deles nos tirar e afastar. Mas cabe ressaltar que a perfeição natural do homem continua a ser projetada para um plano transcendente, a felicidade plena só se realiza na fruição de Deus108. A visão tripartida dos moralistas medievais (relativa à vida pessoal, social e política) é usada a partir do Regimento de Príncipes, de Egídio Romano. Partindo da comparação entre o Leal Conselheiro e a Glosa Castellana al “Regimiento de Príncipes” de Egidio Romano, verifica-se que D. Duarte segue de perto o tratamento das diversas virtudes elencadas na segunda parte do Livro I da Glosa: em ambos encontramos a divisão entre as virtudes divinais ou teologais (fé, esperança e caridade) e entre as virtudes morais ou cardeais (prudência, justiça, temperança, fortaleza ou firmeza de coração)109 . 105 Ibidem. p. 391, 392. 106 Ibidem, p. 387. 107 Ibidem, p. 389. 108 Ibidem, p. 384, 391. 109 Cf: D. DUARTE. Leal Conselheiro. Op. Cit. Caps. LXI, LXII; ROMANO, Egídio;

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No capítulo LII, dirigido especificamente aos reis (“Que cousas perteencem aos Rex e a outros senhores pera seerem prudentes e per que modo o podem seer”), D. Duarte expõe a necessidade de os monarcas, enquanto senhores que possuem o regimento pela graça de Deus, serem dotados especialmente da virtude da prudência para a boa condução de seus reinos. Além disso, destaca também a sabedoria, conhecimentos de direito e de acontecimentos passados, bem como a sagacidade110. Já em um dos últimos capítulos do tratado, o segundo monarca avisino irá relembrar momentos de sua vida e de seus irmãos junto ao pai D. João I (“Da pratica que tinhamos com El Rei, meu Senhor e Padre, cuja alma Deos haja”). Aludindo para a louvável memória de sua figura paterna, D. Duarte destaca o comportamento paternal de D. João, citando o amor que o fundador de Avis tinha pelos filhos e o bom temor que lhes inspirava, ressaltando a obediência e a gratidão dos infantes pelas benesses que ele lhes proporcionava. Deste modo, as grandes virtudes de D. João inspirariam a conduta de seus filhos111. Contudo, consideramos que, em vista a uma orientação exemplar contida neste capítulo, os filhos do Mestre de Avis, podem ser compreendidos para além dos infantes gerados com D. Filipa de Lencaster. A relação que um pai tem com os membros de sua casa, tal como expôs Aristóteles em A Política, é comparável à relação de um rei com seus súditos112. Portanto, sugerimos que D. Duarte, ao falar sobre a relação dos infantes com o pai, não está só a expressar sua experiência e de seus irmãos com a figura paterna, mas também a dos súditos portugueses com o rei. Um rei que, mesmo sem estar no trono pela via da sucessão hereditária e tendo seu sangue maculado pela bastardia, possuía as principais virtudes régias, obtendo o respeito e obediência dos súditos do mesmo modo que qualquer governante que havia recebido o poder pelo modo descendente. Resta tratar ainda das concepções político-filosóficas do irmão de D. Duarte, o infante D. Pedro (1392-1449). Este, foi feito CASTROJERIZ, Juan García de. Op. Cit. Livro I, Parte II (“De las virtudes”). 110 D. DUARTE. Leal Conselheiro. Op. Cit.. Cap. LII, p. 209. 111 Ibidem. Cap. LRVIII, p. 349-361. 112 ARISTÓTELES. Op. Cit. Livro I, Cap. IV, p. 34.

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pelo pai Duque de Coimbra, exerceu importante papel políticodiplomático junto ao Papado e diversos reinos europeus, bem como chegou ao poder através da condição de regente, durante a menoridade do sobrinho, o futuro D. Afonso V. Todavia, a disputa pelo poder com o herdeiro de D. Duarte acabou implicando na morte do regente Pedro durante a batalha de Alfarrobeira, em 1449. O culto ao saber na corte régia também afetara este membro da primeira geração avisina, que realizou a tradução da obra De Officiis, de Cícero, e empreendeu o Livro da Virtuosa Bemfeitoria, dedicado justamente ao irmão Duarte. Assim como no tratado moral deste, em D. Pedro verificamos também o predomínio da temática ético-política, equacionada no âmbito da metafísica cristã medieval. Mas diferente de seu irmão, que recorre às experiências pessoais, aludindo fortemente ao empirismo, D. Pedro denota uma preocupação bem mais sistemática e erudita. Encontramos um tratamento mais formal das grandes questões da filosofia medieval, desde a cosmologia à antropologia, da ética à filosofia política. O método seguido por D. Pedro identificase com o de Aristóteles, encontrando um importante suporte na teoria aristotélica dos universais113. Em seu tratado, D. Pedro insere-se na vasta corrente do pensamento medieval que atribui aos príncipes e aos chefes temporais a missão de ensinar e doutrinar os homens, no quadro de uma concepção profundamente eticista do poder: “A ensinança deste livro é feita para os senhores, e a eles enquanto príncipes pertence propriamente de dar.”114. A obra estava sendo escrita à volta de 1418 quando nas Cortes de Santarém previu-se um eventual ataque dos castelhanos. D. João I teria aconselhado D. Pedro a cuidar dos tratos da guerra. O infante obedecendo ao pai, mas buscando não interromper a escrita para não decepcionar o irmão, deixou a seu confessor João de Verba redigir o restante do 113 CALAFATE, Pedro. O Infante D. Pedro. In: CALAFATE, Pedro. Op. Cit. p. 411-413. 114 D. PEDRO. Livro da Virtuosa Benfeitoria. In: Obras dos Príncipes de Avis. Introdução e revisão de Manuel Lopes de Almeida. Porto: Lello & Irmãos editores, 1981. p. 541.

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livro115. É curioso, como aponta Maria do Amparo Maleval, que mesmo sendo derrotado pela força senhorial em Alfarrobeira, D. Pedro foi ironicamente autor de um tratado moral e político defensor da ordem social feudal116. Consoante Saraiva, é preciso ler a Virtuosa Benfeitoria de modo contextualizado, considerando tanto seu caráter político quanto a presença de princípios teológicos, pois é preciso avaliar a concepção da época de que não se concebia qualquer atividade independente dos desígnios de Deus117. A obra de D. Pedro, pautada notadamente no Regimine principium (de Egídio Romano) e no De beneficiis (de Sêneca), busca revitalizar a ideologia cavaleiresca, servindo-se do método escolástico para justificar a hierarquia feudal com respaldo na religião, mostrando os altos senhores enquanto recebedores de doações divinas que têm a responsabilidade de fazer reverter em bem-estar para os súditos da mais “virtuosa” forma118. A benfeitoria ou o benefício (conceito central do livro) é o elo que sustenta a sociedade, o benefício não é mais que a materialização do “amor” (no sentido de “benquerença”), que torna possível a sobrevivência dos homens119. A concessão do benefício começaria hierarquicamente com Deus e iria descendo na escala social, os reis e príncipes seriam os primeiros a recebê-lo do Todo-Poderoso, sendo responsáveis por transmiti-lo a todos os seus súditos promovendo a concórdia e união de seu reino120. A doutrina do benefício (“ato de bem fazer”) é suportada por um enquadramento filosófico que remonta à antiga tese da hierarquia dos entes, no quadro preciso da relação entre Deus, a natureza e o homem. Nos vários textos do livro, a Providência Divina surge governando o mundo à luz de uma cadeia hierárquica de entes, a qual deve ter também expressão na sociedade, no caso 115 SARAIVA, António José. O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. Op. Cit. p. 219. 116 MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Op. Cit. p. 142. 117 SARAIVA, António José. O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. Op. Cit. p. 221. 118 MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Op. Cit. p. 142. 119 Cf: SARAIVA, António José. O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. Op. Cit. p. 221, 223. 120 Ibidem.

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concreto, do governo dos homens121. O livro do infante D. Pedro está firmemente ancorado na idéia de Grande Cadeia do Ser, teoria de inspiração plotiniana, a qual assume que os diversos seres que compõem todo o universo, desde o mais elevado até o mais ínfimo, encontram-se não só estreitamente ligados entre si, como também ordenados hierarquicamente, constituindo no seu conjunto a grande unidade ontológica do cosmos122. Neste sentido, cabe voltar à questão da instauração avisina e pensar que a condição ilegítima do Mestre de Avis, pai de D. Pedro, representava uma quebra do sistema de transmissão carismática do poder pelo sangue, gerando assim desequilíbrio na Grande Cadeia do Ser. Rompia-se então com as hierarquias de nascimento, mesmo sem sair do meio aristocrático e da linhagem real123. D. Pedro seguia a concepção paulina de que todo o poder tem origem em Deus (non est potestas nisi a Deo), mas disciplinado ao pensamento de São Tomás de Aquino não negava ao Estado uma justificação e legitimidade baseada no direito natural124. Seguindo a linha de pensamento do infante, a queda do homem em pecado gerou um estado de natureza decaída e um poder no sentido de “domínio servil”. Com base no tomismo, afirma que antes do pecado haveria apenas um poder diretivo, mas depois o homem foi tomado pela ambição de dominar o outro, tornando-se necessário um poder legítimo que assegurasse a justiça e a paz na sociedade, exercendo-se pela espada. Baseando-se no De regiminen principium do Aquinate, D. Pedro alega que se tal poder não existisse, cada homem agiria apenas de acordo com o seu interesse particular, o qual, não tendo identificação imediata com o bem comum, poderia gerar a desagregação da sociedade125. Uma segunda razão para o domínio de alguns sobre os outros se daria pelo fato de que mesmo sendo todos os homens dotados naturalmente de 121 CALAFATE, Pedro. O Infante D. Pedro. In: CALAFATE, Pedro. Op. Cit. p. 417, 420, 421. 122 REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit. p. 43. 123 Ibidem. p. 51. 124 CALAFATE, Pedro. O Infante D. Pedro. In: CALAFATE, Pedro. Op. Cit. p. 432. 125 Ibidem. p. 433, 434.

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razão, nem todos teriam o mesmo grau de ciência e sabedoria, então, entre todos os homens os melhores e mais sábios, não por desejo de poder “mas por ofício de aconselhamento, têm maioria sobre os outros”126. Para não se cair na extrema servidão, alcançase um meio termo através da doutrina do benefício, criando uma sociedade assente em relações hierárquicas de sujeição, mas amenizadas por uma atmosfera de familiaridade e bem-querença mútua, gerando uma satisfatória “cadeia de benfeitoria”127. Partindo da tese paulina de que todo o poder vem de Deus, deparamo-nos com o problema das duas tradicionais concepções sobre a transmissão do poder: Deus transmite o poder ao rei ou imperador através do Papa (ou seja, a linha descendente); Deus transmite o poder através do povo e da comunidade (ascendente). Como D. Pedro irá se posicionar frente a estas duas teorias, visto que seu pai fora um monarca eleito, mas seu irmão deveria representar a continuidade dinástica pelo principio hereditário? O período da regência de Leonor Teles e a invasão do rei castelhano em Portugal representavam um momento de crise, o qual teria sido aberto por interesses adversos ao bem comum, implicando numa ameaça de subversão das ordens e aumentando o risco de fratura na cadeia do Ser. O equilíbrio só poderia ser restaurado a partir de um novo chefe e um novo governo. É neste ponto que se adentra na questão da investidura do poder128. Assim, a quebra da cadeia transmissória do carisma e das condições normais de sucessão se dá devido a uma deficiência no exercício da função governativa, deixando o governante de garantir o bem dos súditos. A sujeição do território a um tirano ou força estrangeira era algo totalmente adverso ao interesse geral de um reino e não poderia ser tolerado pelos que deveriam amar e servir sua terra129. Portanto, os interesses da comunidade são soberanos e o seu governante deveria sempre estar de acordo com eles, a legitimidade da transmissão de poder está 126 D. PEDRO. Op. Cit. p. 594. 127 Ibidem. p. 435. 128 REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit. p. 51. 129 “somos theudos aa terra da nossa natureza [...]. E mais nos obriga o seu gradeçimento que o porque somos theudos aos nossos geradores”. In: D. PEDRO. Op. Cit. p. 238.

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intrinsecamente relacionada a isso. Assim, para D. Pedro, acima de tudo os governantes teriam que trabalhar pelo proveito de todos os súditos, e deste modo, a forma como recebiam o poder divino poderia variar: O ij graao de sobieçom teem aquelles que moram em senhorio de alguu principe, vivendo em a sua moral governança. E aquestos somos obrigados, por aazo de exalçamento que sobre elles avemos, o qual alguus ia rreçeberom per expressa comissom devynal. Segundo que foy Iosue primeyro duc antre os Iudeus. E outros depois delle. E elrrey David com outros rrex deste mesmo poboo. E alguuas vezes nace este geeral cuydado que os principes tomam per eleyçoões en que as comunydades os rrecebem por suas cabeças, outorgando-lhe çerto poderyo sobre sy meesmos. E outros vezes por eranças ou conquistas, em os quaaes, assi como he cobrado o poderyo, assi he logo rreçebido o cuydado pera manteer a terra em razoada dereytura. A quall non sse pode manteer se os principes nom trabalharem pollo proveyto dos que a elle ficam sobiectos. 130.

Daqui se deduz que a investidura dos reis pode resultar da direta manifestação da vontade divina, a “expressa comissom devynal”; pode provir da eleição feita pelos povos ou comunidades; pode dar-se por herança; e pode ainda ser conseguida por conquista. Para Rebelo, cumpre, no entanto, notar que de acordo com esta ordem a eleição precede o recebimento da coroa por herança, e que em qualquer dos casos citados, todo o poder que recebem os reis provém de Deus, cabendo ao monarca, como seu fiel depositário, governar o reino com prudência e sagacidade, para manter os povos na “dereytura” da justiça e salvaguardar a natureza de seu mandato131. Podemos considerar que D. Pedro tenta em sua obra conciliar as duas formas de transmissão de poder. Como ponderou Pedro Calafate, a tese da mediação popular, expressa na célebre fórmula “omnis potestas a Deo per populum”, foi das que mais contribuiu para uma concepção do poder baseada na idéia de pacto de sujeição (pactus subjectionis) tantas vezes traduzida, como sucede com D. Pedro, pela tese do consenso dos povos (hominum consensu). No 130 D. PEDRO. Op. Cit. p. 602, 603. [os grifos são meus]. 131 REBELO, Luís de Sousa. Op. Cit. p. 41.

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fundo, tratava-se de uma conciliação entre a tese da origem divina do poder e a doutrina dos jurisconsultos romanos132. Para D. Pedro (que considerava o consentimento dos povos e o princípio geral do pacto de sujeição), no início os reis alcançaram o poder porque mereceram ser recebidos por principais daqueles a que faziam proveito. A razão desse merecimento radicava no aconselhamento e nos ensinamentos aos súditos, na defesa perante os inimigos externos e na punição das injustiças. Como dito pelo próprio infante, em alguns casos o poder poderia ser recebido por eleição. Não seria este o caso de seu pai? Afinal o momento em que este vivera demonstrava uma excepcionalidade, era um período especial porque a principal obrigação régia não estava a ser cumprida pelos governantes vigentes: “manteer a terra em razoada dereytura”, garantir o proveito de todos. Mas se o pai do infante fora um rei eleito, o mesmo não ocorreria com seu irmão, o rei D. Duarte. Sucede, de fato, que na doutrina dos defensores da eleição e mediação popular, ela se exercia no início com a escolha dos primeiros príncipes seculares, dando lugar à sucessão por linha direta. Assim, a nova eleição apenas teria lugar, tal como sucedeu nas Cortes de 1385, quando esta linha de sucessão direta se quebrasse e por algum motivo extraordinário. Em todo o caso, as cerimônias de juramento e aclamação dos reis portugueses, em que estes juravam respeitar os direitos adquiridos das comunidades, funcionavam como tácito consentimento dos povos133. Contudo, na questão da obediência dos súditos, D. Pedro, filho da dinastia que procurava se consolidar, prefere invocar o princípio de que quem desobedece ao príncipe desobedece a Deus (por não haver poder que não venha do Criador), tal como proclamara São Paulo. Conclusões Ao fim desta reflexão, percebemos que entre o momento da eleição de D. João I em 1385 - bem como do registro de seu Auto de eleição (elaborado logo após o fim das reuniões das Cortes) - ao momento de pleno governo do fundador de Avis, e em seqüência 132 CALAFATE, Pedro. O Infante D. Pedro. In: CALAFATE, Pedro. Op. Cit. p. 437. 133 Ibidem. p. 438.

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de seu filho Duarte, concepção ascendente e descendente de poder relacionaram-se complexamente no âmbito do pensamento português. Ao longo das primeiras décadas do século XV, servidores régios e membros da própria Casa Real de Avis empenharam-se na legitimação e consolidação da nova dinastia. Tal empenho não se deu somente com ações concretas, mas também - e significativamente - através do domínio simbólico, especificamente pela palavra. A partir de diferentes tipos de documentação (produzidas em momentos coevos ou não), desde o Auto de eleição, passando pelo registro histórico da crônica régia, até as obras de cunho mais propriamente filosófico dos infantes da primeira geração avisina, pudemos perceber como a discussão em torno do poder dos reis e governo dos súditos mostrava-se de fundamental relevância durante todo o período que cobria os anos finais do século XIV à primeira metade do século XV. Se no Auto de eleição a presença da tese ascendente de poder mostra-se de modo claro, na crônica régia observamos o cronista Fernão Lopes expondo em momentos diferentes de sua trilogia as duas concepções, contudo, a coerência do todo cronístico aponta o momento da escolha divina expressa por sinais e pela eleição régia de um filho de rei ilegítimo, mas dotado plenamente das virtudes necessárias ao ofício régio; a partir do momento em que este novo monarca e sua dinastia assumem o trono português é que a monarquia hereditária poderia voltar à normalidade e dar continuidade à trajetória do governo real em Portugal. Por fim, com as obras escritas pelos filhos de D. João I, sendo um destes o sucessor direto e o segundo vindo depois a assumir o encargo da regência em nome do sobrinho, verificamos novamente interações entre a transmissão do poder divino pelo modo ascendente e descendente. Mas se em Fernão Lopes o objetivo principal era consolidar uma memória oficial a respeito de como uma nova fase da História de Portugal foi inaugurada a partir da elevação de um monarca eleito por Deus e pelo povo (notando-se que o período sobre o qual se escrevia não era o mesmo que se vivia), nas obras filosóficas de D. Duarte e D. Pedro buscava-se atentar para os principais encargos do ofício real, os quais teriam sido exemplarmente cumpridos por seu pai após a eleição e que justificariam plenamente a dinastia criada por este, bem como seus

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descendentes. Mas mesmo considerando a validade da eleição régia em casos especiais, como a que elevou D. João I ao trono, era preciso voltar a princípios da tese descendente. Os infantes já viviam um novo momento, o momento de consolidar Avis a partir da transmissão do poder dinástico pela via hereditária e continuar a garantir a obediência dos súditos à sua casa real.

XI Memories of Rome: papal power and patronage under Boniface VIII

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Nayhara SEPULCRI1

enedict Caetani was declared Pope Boniface VIII in 1294 and he was the last powerful pope to reside in Rome before the fled of the papacy to Avignon. Since his contested election, Boniface VIII faced dramatic confrontations with those who challenged his authority. This work proposes to demonstrate how Boniface combined theological arguments with symbolic use of art and ceremony to legitimate the universal primacy of his pontificate over its enemies from the heart of the western medieval Christianity, the city of Rome. Through the memories of Rome, pagan and Christian elements, kindled by tradition and by the ever-present monuments of its past, remained alive. The Church had used these memories as a potent factor in shaping Rome’s dominant place in medieval world. Roman reliance upon tradition fashioned its history by insisting on the continuity of thought, ideas and resulting in principles peculiar to the governing body of the Church, since 1 Mestre em Teologia pela Birkbeck College, University of London. Email: [email protected].

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its origins. The papacy’s unbroken continuity as an institution2 poses questions I intend to explore in this essay: in which ways did individuals like Benedict Caetani tailor papacy’s identity? How did he use the symbolism of Roman traditions to validate his assertions of imperial power, legitimating his pontificate? Rome and its traditions were dear to Boniface. Throughout his pontificate, he showed esteem to the Roman basilicas, increasing the number of canons in St. Peter’s and assigning appropriate stipends to them and to the Lateran.3 At the time Boniface lived, Rome was Christianized and Christianity Romanized.4 The “throne of Peter” was long ago placed in the heart of Western Christendom, at the Eternal city. In the dome of St. Peter’s basilica were written the words that made the pope the living heir of the Apostle: “Thou art Peter, and upon this Rock I will build my Church and I will give to thee the keys of the Kingdom of Heaven”. Evoked to proclaim the divine origins of the Papacy’s authority, Christ’s words to Peter registered in the chapter sixteen of Matthew’s Gospel are the basis of the medieval Christian interpretation which portrayed the pope as the living heir of Peter. Generation after generation, the place of prince of apostles given to Peter by Christ was fulfilled by his successors, the popes. The continuity between Pope and Apostle and the primacy of the city of Rome are based on traditions that can be identified in the beginning of Christian written records. It seems that it was already established by the year of 180, when Irenaeus of Lyon, an early Christian writer, invoked it in defence of orthodox Christianity. Irenaeus argued that the Church had been “founded and organised at Rome by the two glorious Apostles, Peter and Paul” and that its faith had been passed down to posterity by an unbroken succession of bishops.5 It is precisely this tradition present in Irenaeus writings, allied to the interpretation of the Gospels summarised above, which brings Rome to the centre of 2

Walter Ullmann, ‘The Papacy as an Institution of Government in the Middle Ages’, in Walter Ullmann, The papacy and political ideas in the Middle Ages (London, 1976).

3

T. S. R. Boase, Boniface VIII (London, 1933), p. 232.

4

From Richard Krautheimer, Rome: profile of a city, 312-1308 (Oxford, 1983).

5

Eamon Duffy, Saints and Sinners (London, 1997), p. 1.

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Christianity. It became accepted that Peter and Paul had been put to death at the hands of Nero in Rome around the year 64, and by the end of the second century, pilgrims to Rome were being shown the trophies of the Apostles, their tombs or cenotaphs.6 The function of Saint Peter as the rock of the Church flowed into the pen of Boniface VIII and into his material legacy, incorporating the claims of succession of Peter himself and the role of the exclusive interpreter of the divine will, having solely the possession of the keys of damnation and salvation. The papal supremacy over secular powers was the emphasis of Boniface’s pontificate, in which he continuously reiterated the claims of sovereignty through the different forms he found to express and strengthen his power. In this essay, my object is to indicate some of the theological and material resources he used to reinforce his claims, challenged by the context of his struggle against the King of France and rivalry between the Roman families strengthened by papal attempts to empower relatives. Under Boniface VIII, the policy of building up family fortunes and power by reigning pontiff reached its peak.7 In four years, the Caetani bought lands and towns for more than a half a million ducats – Sermoneta, Ninfa, S. Felice al Circeo. Local family interests reached international realm when in 1303 the Colonna, despoiled by Boniface and the Caetani, supported the French crown to depose the pope. Determined to exert to the full the temporal sovereignty he represented as an heir of Peter, Boniface saw most of his political ventures backfired. The pope’s attempts to secure Angevin rule in Sicily failed as did his intervention in England, with Edward I in behalf of Scotland, claimed by him as a papal fief. He also failed in the attempts to settle the succession

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Not mentioned by the New Testament, later legend filled out the details of Peter’s life and death in Rome, crucified upside down in the Vatican Circus. The legends, however, are not to be accepted as trustworthy, as no reliable account on the Peter’s late life was left. Peter and Paul did not found the Church of Rome, because there were Christians in the city before the Apostles arrived there. Moreover, there is no proof of the existence of a bishop at Rome for almost a century after the deaths of the Apostles. Duffy, Saints and Sinners, p. 1.

7

Krautheimer, Rome: profile of a city, 312-1308, p. 159.

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in Hungary and Poland.8 The most relevant political incident in Boniface’s career, however, was the confrontation with the King of France. The pope defied Philip the Fair’s tax imposition over the clergy to fund his war of Conquest in Gascony and challenged the French crown’s right to the property of the Church. The old question of how far could the secular power allow great riches as church’s possessions to be outside its control, revived by the French, encountered successive responses. In 1296, in the bull Clericis Laicos9 Boniface tried to prevent Philip’s levies on the clergy. He forbade the laity to take or the clergy to give away the property of the Church. To the laity, explicitly including emperors and kings, the message was clear: “all jurisdiction is denied to them over the clergy – over both the persons and goods of ecclesiastics.” At the time, in France, a court inspired pamphlet circulated in the form of a reply to the Boniface’s bull. It claimed that the clergy would not contribute to the kingdom’s defence; instead, clerks preferred to spend their money on jongleurs, feasts and banquets. The refusal to pay implied in conspiracy against the Kingdom.10 Boniface’s subsequent attempts to put in action the intervention in the ruling of the kingdom gained form in the bull Ausculta Fili, written in 1301. Consisting on the official condemnation of Philip’s policy and government, the text starts with an appeal to Philip to turn and regret his negligence and evil practices, which led him to sin against God. The power given to the pope to administer in the name and doctrine of the Lord is legitimated by the text of Jeremiah chapter one, verse ten: “I have this day set thee over the nations, and over the kingdoms, to root out and to pull down, and to destroy, and to throw down, to build and to plant.” In 1302, Boniface’s ultimate assertions regarding the duty of princes to be subject to the pope were issued in Unam Sanctam.11 8

Duffy, Saints and Sinner, p. 161.

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The English translation of Clericis Laicos was taken from Medieval Sourcebook, published on line.

10 Boase, Boniface VIII, p. 140. 11 The English translation of Unam Sanctam was taken from Medieval Sourcebook, published on line.

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The bull presented the “law of divinity” in its reference to a wide and cosmic view of hierarchy, deeply explored by many medieval writers. The famous principle of the division of powers was laid much earlier in the fifth century by pope Gelasius (492-496)12. The resistance to imperial claims of authority over the Church lied on the sharp distinction between the sacred and the secular. To elucidate the limits of his obedience, Gelasius wrote: “There are, most august Emperor, two powers by which this world is chiefly ruled: the sacred authority of bishops and the royal power. Of these the priestly power is much more important, because it has to render account for the kings of men themselves at the judgement seat of God. For you know, most gracious son, that although you hold the chief place of dignity over the human race, yet you must submit yourself in faith to those who have charge of divine things, and look to them for the means of your salvation.”13 Before defining the Church relations with the temporal power, Unam Sanctam opens its arguments emphasising the unity of the Church and its exclusive spiritual prerogatives: “the Church is one, holy, catholic, and also apostolic. We believe in her firmly and we confess with simplicity that outside of her there is neither salvation nor the remission of sins”. In the following passage, the answer to Philip’s claims of supremacy over the Church are clear, in despite of its indirect reference: “Therefore, if the Greeks or others should say that they are not confided to Peter and to his successors, they must confess not being the sheep of Christ, since Our Lord says in John ‘there is one sheepfold and one shepherd’.” Closely following the exposition of Bernard of Clairvaux (1090-1153) on the two swords,14 Boniface’s plain statement of the subordination of temporal to spiritual jurisdiction represented in the allegory affirmed that the material sword must be linked to God not directly, but through the spiritual sword. The material sword is subject to the dominium of the spiritual sword, and can only be wielded at the command of the spiritual 12 Boase, Boniface VIII, p. 63. 13 Text of Gelasius’ letter in Duffy, Saints and Sinners, p. 50. 14 Bernard’s analogy to the two swords was carefully developed in the treatise De Consideratione, specially written to his former pupil, Pope Eugenius III.

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sword. The subsequent arguments were largely based upon Giles of Rome’s hierocratic principles, summarised in two. First, the powers are to be ordained by God; and secondly, the Dionysian law as declared in the bull Unam Sanctam15: “For, according to the Blessed Dionysius, it is a law of the divinity that the lowest things reach the highest place by intermediaries.” The constant inequalities between men and the duties of obedience to superiors were stressed to assert papal supremacy over monarchs such as Philip the Fair. The spiritual power’s prerogative of judgement over not good terrestrial power, as stated in Unam was put into practice in the bull Boniface had prepared to excommunicate the French King. However, before Boniface could issue the bull, Philip’s agents, accompanied by two of the deposed Colonna cardinals and their relatives, broke into the papal palace at Agnani and deposed the Pope. The French emissaries were driven by the outraged townspeople the next day.16 Moments before the diversion to Avignon, Rome shortly led Italy in the arts revival under Boniface’s patronage. The pope was personally interested in the minor arts, which, combined with Boniface’s elevated sense of his pontificate influenced his remodelling of the papal tiara, elongated to correspond to the biblical measure of the “ell”, a sign that Boniface understood as completeness and superiority.17 He fixed a great ruby on the pinnacle of the ancient papal tiara, lost afterwards by Clement V on his disastrous coronation process in Lyon.18 Boniface added a second crown to the tiara19 and made the head-dress one of the most memorable emblems of his papal sovereign power. For the occasion of his elevation to the papacy, Boniface beautified the Lateran. He commissioned the construction of the block described in the life of Cola di Rienzo as the palazzo nuovo at the northern end of the Council Hall of Pope Leo III (795-816), 15 David Luscombe, ‘The Lex divinitatis in the bull ‘Unam Sanctam’ of Pope Boniface VIII’, in C. R. Cheney, C. N. L. Brooke [et al],Church and government in the Middle Ages (Cambridge, 1976), p. 216. 16 Duffy, Saints and Sinners, p. 162. 17 Ibid. p. 161. 18 Ibid. p. 243. 19 Donald Lindsay Galbreath, Papal Heraldry (London, 1972), p.18.

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and against this new palace, overlooking the public piazza, he erected the pulpitum or loggia di benedizione.20 Three ancient columns supported the balcony framed by Gothic arches that rested on another four slender columns. Boniface’s ambitions to leave lasting imprints in Rome were materialized in the construction of the loggia. Still remembered in the sixteenth century as the pulpitum Bonifacii, the open balcony from which he could present himself before his followers was an architectural mark he left in the south-eastern sector of the city, where remnants of pagan imperial splendour were still alive.21 The Lateran had been the centre of Roman Christianity for nearly a millennium when Boniface reigned over Christianity. Like so much of the history of Rome itself, the Lateran complex had its invisible roots in pre-Christian Rome. The term palatium was originally associated with the Palatine location of the emperor’s main residence in Rome. The popes only began to use the term after the Donation of Constantine (752-757) in which the pope received the imperial insignia, the Lateran palace and basilica from the Emperor.22 The sovereignty over the temporal realm conferred by Constantine to Sylvester I (314-333), was certainly one of the ideas that Boniface tried to recreate through his ornamental interventions in the Lateran. Therefore, not accidentally Boniface appears as a restorer of the Lateran connected to its founder Constantine, in the inscription Onufrio Panvinio wrote in 1570 describing Boniface’s undertakings. The text mentions in its first part the conversion and baptism of Constantine, his donation of the Roman crown to Pope Sylvester and of the building of the Lateran basilica. The second part mentions the condition of the Lateran basilica and Boniface’s restoration.23 The authority conferred by Constantine to Sylvester is a 20 Charles Mitchell, ‘The Lateran fresco of Boniface VIII’, Journal of the Warburg and Courtauld Institutes 14, no. 1/2 (1951), p. 1. 21 Krautheimer, Rome: profile of a city, 312-1308, p. 9. 22 John Mitchell, ‘St. Silvester and Constantine at the SS. Quattro Coronati’, in A. M. Romanini (ed.), Frederico II e l’arte del Duecento italiano, vol.2 (Congedo, 19801981). 23 Charles Mitchell, ‘The Lateran fresco of Boniface VIII’, Journal of the Warburg and Courtauld Institutes 14, no. 1/2 (1951), p. 1.

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fundamental element in identifying Boniface’s reinforcement of papal legitimacy. Besides the scriptural arguments, the papacy claims based its rights to supreme authority on judicial title; and one of the most important of these titles was the Constitutum Constantini.24 The ancient authority vested in Boniface through the fresco was reinforced by the scenes on the side, one showing the baptism of Constantine ad the other the Founding of the Lateran Church.25 The theme of the donation of Emperor Constantine present on Boniface’s loggia reflected the aspirations of a much later time, when the papal authority over the city and its surroundings, after its consolidation, was threatened by the French crown. Therefore, the imagery of the loggia intended to revive the memories of the tradition that at the time of Boniface started to fade confronted by the invectives of Philip the Fair. Panvinio describes the loggia before its demolition in 1586 covered with paintings and emblems which included the arms of the Caetani. He was the first to mention the triple fresco sequence which depicted Boniface blessing the people from the loggia itself, the baptism of Constantine and the founding of the Lateran Church. The exact location and position of the paintings in the loggia cannot be determined from the existing graphic and literary records.26 However, one of the scenes of the lost cycle, a relic of Boniface’s fresco, exists in a restored image that now rests against a pillar in the church. The same scene also survived in an early-seventeenth-century drawing of a copy dating from the 1550’s. Traditionally attributed to Giotto, the authorship of the fresco is uncertain and the date of the image is likely to be earlier than January 1301, as argued by Charles Mitchell.27 The crowd assembled at the pope’s feet and the words inscribed on the scroll of the attendant on Boniface’s left side suggest that it is a solemn public event.28 Set aside the discussion about the subject 24 Mitchell, ‘St. Silvester and Constantine at the SS. Quattro Coronati’, p. 20. 25 Herbert L. Kessler and Johanna Zacharias, Rome 1300: on the path of the pilgrim (London, 2000), p. 33. 26 Mitchell, ‘The Lateran fresco of Boniface VIII’, p. 1. 27 Ibid. p. 2-3. 28 “BONIFATIUS EP. SERVUS SERVORUM DEI AD PERPETUAM REI MEMORIAM”. Mitchell, ‘The Lateran fresco of Boniface VIII’, p. 1.

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depicted, it is reasonable to admit that the scene represents the promulgation of the bull that announced the Holy Year. Not limiting his references to the frescos that illustrated episodes of Constantine’s life, the parasol depicted in Boniface’s fresco was there because of its symbolism. Considered as an unusual choice for papal iconography, the parasol was an oriental mark of sovereignty, deliberately chosen to represent one of the imperial insignia that Constantine apparently gave to Pope Sylvester, reasserting an imperial idea of absolute power.29 Considered the earliest medieval attempt to represent an historical event in its authentic topographical setting,30 the fresco’s original scene portrays Boniface VIII in the act of promulgating the event that became the highest moment of his papacy: the Jubilee of 1300. The First Jubilee year of the Roman Christian Church was declared under the pretext of an exceptional flow of pilgrim traffic to Rome, as contemporary accounts suggest.31 The demand seemed opportune, and the pope’s appeal, proclaimed on 22 February 1300, inaugurated one of the most important traditions of Western Christendom. The celebration developed into an immense publicity stunt and consequently brought riches to Rome and to the Church, as Giovanni Villani witnessed: “from the offerings made by pilgrims great treasure accrued to the church and to the Romans; all were made rich by their takings.”32 In 1300, the inaccessibility of Jerusalem to Christian pilgrimage made Rome the ideal alternative, emerging as the spiritually unrivalled capital of western Christendom, a new Latin Jerusalem.33 The response to Pope Boniface’s offer of plenary 29 Mitchell, ‘The Lateran fresco of Boniface VIII’, p. 1. 30 Ibid. p. 4. 31 Boase, Boniface VIII, p. 233. 32 Chronicle of Giovanni Villani in Diana Webb, Pilgrims and Pilgrimage in the Medieval West (London, 2001), p. 117. 33 Jacques de Vitry (c. 1160/70-1240) distinguished between Jerusalem, the caput et mater fidei, and Rome, the caput et mater fidelium. His differentiation harmonized Jerusalem’s undisputed centrality in Christian sacral history with Rome’s claim to pre-eminence in the Latin Christian world leaving the dignity of both cities uncompromised. Gary Dickson, ‘The crowd at the feet of Pope Boniface VIII: pilgrimage, crusade and the first Roman Jubilee (1300)’, Journal of Medieval History

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absolution, that is, forgiveness for a lifetime’s sins to all the faithful who visited Rome that year was overwhelming. It was the unique opportunity of supreme inducement for the laity and of revival for the Roman Church.34 The chroniclers of the Jubilee described the extraordinary nature of the new Roman pilgrimage. According to Giovanni Villani, “during whole year there were in Rome, besides the Roman people, 200,000 pilgrims, not counting those who were coming and going along the roads”35. In Giovanni’s account, the Veronica was fashioned and applied to resemble a seal of authentication to the pilgrimage:36 “For the consolation of the Christian pilgrims, every Friday and solemn feast day the Veronica of the sudario of Christ was shown in St. Peter’s.” The papacy was thereby fulfilling a spiritual function using the memories of the church’s past and proclaiming the rule of Christ through Rome’s magnificence.37 Hence, the official inception of the Jubilee can be interpreted as an attempt on the part of the Church to bring together the religious fervour of the people, with its own spiritual and temporal ambitions.38 Outside Rome, images of Boniface were placed to mark his temporal ambitions of universality proclaimed in Unam Sactam. He was the first pope to consent the placement of numerous honorific portraits in civic settings. In Florence, the pope’s support to the foundation of the cathedral in 1296 was celebrated by Boniface’s image enthroned on the façade. At Orvieto, after 1297, two portraits above the city gates honoured Boniface’s settlement of a territorial dispute in the city’s favour. At Bologna, the pope’s statue stood alongside Charles of Anjou’s image and 25, no. 4, (1999), p. 288. 34 Dickson, ‘The crowd at the feet of Pope Boniface VIII: pilgrimage, crusade and the first Roman Jubilee (1300)’, p. 283. 35 Chronicle of Giovanni Villani in Diana Webb, Pilgrims and Pilgrimage in the Medieval West (London, 2001), p.117. 36 Herbert L. Kessler, Seeing medieval art (Ontario, 2004), p. 83. 37 Boase, Boniface VIII, p. 234. 38 Dickson, ‘The crowd at the feet of Pope Boniface VIII: pilgrimage, crusade and the first Roman Jubilee (1300)’, p. 283.

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in Padua, the Great Council decreed in March 1303 a similarly honorific statue, which was apparently never executed.39 The originality of sculpted papal portraits provoked Guillaume of Plaisan, one of Philip the Fair’s lawyers, who protested by accusing the pope of idolatry: “In order to perpetuate his most damned memory, he had his own images, in silver, set up in churches, thus inducing all people to idolatry (…) not only in churches but even outside them, he had his own images, in marble, set up at the gates of cities and above them, where formerly idols used to be, as is evident in the city of Orvieto and in several other places, thus raising more suspicion that he desired to encourage idolatry (...). Moreover, it will be proved that the same Boniface frequently said: The Papacy is a plum which few know, but I know it well. Whoever is Pope is lord of all things spiritual and temporal, and is lord of the world. In truth, whoever again becomes Pope, a statue of him should be set up which the small and the great should revere, to which all the princes of the world should bow down.”40 Perhaps motivated by Boniface’s usurpation of what was considered then royal privilege, it seemed particularly disturbing to Guillaume the fact that Boniface’s image were found inside and outside churches. Moreover, his accusation of idolatry is supported by suggestion that the pope’s images replaced former idols. After all, the French lawyer’s perception over Boniface’s portraits associates them to the pope’s claim to spiritual and temporal Lordship, especially clear in the statues at Orvieto, as Guillaume describes. In Orvieto, two enthroned marble images of the pope look down from the city gates, raising their right hands in benediction. Recalling both secular and sacred art for their location, the Orvietan sculptures evoke two monumental leader portraits in Italy: an early thirteenth century image of Frederick on the gate at Capua and the statue of Charles de Anjou at the Capitoline Hill in Rome. The statues at Orvieto were also inspired by sacral art, 39 Nancy Rash, ‘Boniface VIII and Honorific Portraiture: Observations on the Half-Length Image in the Vatican’, Gesta 26, no. 1 (1987), p. 47. 40 The passages of Guillaume of Plaisan’s text were translated by Rash, ‘Boniface VIII and Honorific Portraiture: Observations on the Half-Length Image in the Vatican’.

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notable the venerated Early Christian sculpture of Saint Peter. Originally over the portico before the main door of Old Saint Peter’s this seated image had also a raised hand in blessing and papal key in the other hand. It is a possibility that the images at Orvieto also carried keys in their left hands. If so, their connections with St. Peter’s model are even more evident.41 The message of papal sovereignty was also suggested on Arnolfo di Cambio’s half-length image of Boniface. Its similarities with the sculptures at Orvieto are clear: the use of papal garments, its blessing gesture and the papal keys – if the Orvietan set did have theirs. The novelty rested on the half-length design, a marker in the papal portraits’ history. Moreover, it was the first identifiable sculpture portraying a living pope that was placed within a church. Before Boniface, popes were depicted as donors in mosaics or paintings and had sculptured effigies decorating personal tombs, tradition that Boniface did not neglect, as he had himself depicted again by Arnolfo in his dead effigy. Arnolfo conveyed to the pope’s living image asymmetric features which contrasted to the serene expression sculpted in the dead effigy: a frontal bust of Boniface with his right hand raised in an attitude of blessing while with his left hand he holds Saint Peter’s symbolic keys.42 The living image asserted the pontiff ’s imperious presence, powerfully materializing the message of spiritual and temporal sovereignty. Boniface’s pontificate saw the final moments of medieval Rome. Unlike any other pope in the Middle Ages, he represented his body and thus his identity, as well as his vision of the papacy by images in which he was portrayed exerting his power and attributes. Artistic representations of the pope, therefore, intended to put forward an explicit message of political entitlement for Benedict Caetani, elected after vitriolic disputes over power among Rome’s aristocratic families.43 41 Rash, ‘Boniface VIII and Honorific Portraiture: Observations on the HalfLength Image in the Vatican’, p. 47. 42 C. Gomez Moreno, ‘Bust portrait of Boniface VIII’, in The Vatican Collections – Papacy and Art (New York, 1883), p. 37-38. 43 Kessler and Zacharias, Rome 1300: on the path of the pilgrim, p. 33.

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One of the most imperious occupants of St. Peter’s throne,44 Boniface’s controversial elevation to the papacy in 1294 took place in the context of resignation of the immediate predecessor, the saintly hermit pope Celestine V (1294). Passionately convinced of his supreme place on earth, Boniface engaged in intense battles with rival aristocrats and the French King himself. Therefore, the need of legitimacy that marked his pontificate reinforced his inclination to gather the charisma and power of authentication of art and ceremony. Boniface’s perceptions of himself in the world were summarised by the phrase supposedly declared by him in a meeting with Albert of Austria in Rieti in 1298, recorded twenty years after the pope’s death: “Ego sum imperator.” But the times were changing and the priestly position was no longer completely accepted as the only meritorious way of life.45 Certainly, Boniface’s assertions of spiritual authority over secular powers encountered a new vitality in the secular sphere. Rumours spread by Philip’s court encountered in the pope’s use of ecclesiastical position to serve his family’s interests an opportunity to promote opposition. Accused of being a sodomite, promote idolatry through portraiture, he was said to have been a non-believer, rejecting the resurrection, saying that heaven and hell were here.46 Boniface’s ambitions were bitterly criticized by Dante Alighieri who called him “the Prince of the new Pharisees”. Nevertheless, a great sign of distinction between the papacy office and person was given by Dante over the outrage at Agnani, as he symbolically compared the episode to the atrocity inflicted on Christ.47 A stronger laity, represented by the French King and the Colonna family, overthrown the pope in 1303. After his death, months later, the papacy was removed from the Eternal city. Art patronage ceased in Rome and artists left. The dramatic end of Boniface’s pontificate gave place to the rise of Avignon’s greatness, yet to come.

44 Ibid. p. 3. 45 Boase, Boniface VIII, p. 3. 46 Duffy, Saints and Sinners, p. 161. 47 Robert Artinian, ‘Dante’s parody of Boniface VIII’, Dante Studies no. 85 (1967), p. 71-72.

XII A hagiografia e a propagação do “discurso religioso”– o exemplo da Legenda Áurea

A

Tereza Renata Silva ROCHA1

hagiografia , a vida de santos, é um gênero literário de grande longevidade. Surge ainda no século II, por conta da perseguição aos cristãos, mas difunde-se realmente a partir do IV século. Até então tratam dos santos mártires, que morreram para dar testemunho de sua fé. Porém, a hagiografia desenvolveu-se e consolidou-se com a expansão do cristianismo e do culto dos santos. Para Hippolyte Delehaye, para ser considerado uma hagiografia, o texto deve ter um objetivo edificante: 2

On le voit, pour être strictement hagiografique, le document doit avoir un caractére religieux et se proposer un but d’édification. Il faudra donc réserver ce nom à tout monument écrit inspiré par le culte des saints et destiné à le promouvoir.” (DELEHAYE, 1906:2)

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFF. Bolsista Capes. 2

O termo hagiografia foi elaborado no século XVII – período em que foi fundada a sociedade dos bolandistas, dedicada ao estudo crítico das vidas dos santos – e possui raízes gregas (hagios = santo; grafia = escrita).

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Num primeiro momento, foi utilizada para sua redação a língua latina, já que era a língua da Igreja e o seu público era formado prioritariamente por clérigos. No entanto, a partir principalmente do século XII, devido a transformações que ocorreram na Europa ocidental, as hagiografias foram sendo escritas, ou traduzidas, nas diversas línguas vernáculas, passando, assim, a atingir um público mais amplo. Andréia Frazão Silva enumera os múltiplos objetivos das hagiografias: Propagar os feitos de um determinado santo, atraindo, assim, ofertas e doações para os templos e mosteiros que os tinham como patronos; produzir textos para o uso litúrgico, tanto nas missas como nos ofícios monásticos; servir para leitura privada ou para uso nas escolas; instruir e edificar os cristãos na fé; divulgar os ensinamentos oficiais da Igreja, etc. (SILVA, 2008: 75)

A imensa popularidade e a divulgação das hagiografias durante a Idade Média podem indicar que estas narrativas sintetizavam os sentimentos que os leitores/ouvintes esperavam exprimir e respondiam aos anseios do público. Pode-se dizer que a hagiografia foi o elo de ligação entre a doutrina cristã – o discurso erudito – e os valores e representações comuns ao conjunto da sociedade. Assim como Michel De Certeau, Andréia Frazão Silva defende que as narrativas hagiográficas: Eram vistas como textos festivos que objetivavam comemorar a vitória do santo contra o mal e a morte. É por isso que as hagiografias eram lidas nas festas, nos refeitórios monásticos, nas escolas e nas praças pelos juglares. (SILVA, 2008:76)

Então, pode-se perceber que as hagiografias estavam ligadas às festas e ao lazer. Elas trazem à comunidade um elemento festivo. Elas “divertem”. Para De Certeau, a Vida de santos é “para ser lida durante as refeições, ou quando os monges se recreiam. Durante o ano, intervém nos dias de festa. É contada nos lugares de peregrinação e ouvida nas horas livres.” (DE CERTEAU, 1982: 270) De acordo com Enni Orlandi, o discurso religioso é aquele que faz a mediação entre os fiéis e o sagrado através do mecanismo

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dogmático das verdades religiosas. Trata-se de um discurso “em que há uma relação espontânea com o sagrado” sendo, portanto, “mais informal”. No discurso religioso elabora-se uma linguagem com vista à pretensa “objetividade” e “imparcialidade”; procurase eliminar a subjetividade na enunciação, causando um efeito de sentido que leve à verdade. Sua legitimidade se encontra nas suas fontes, dentre elas as Sagradas Escrituras.(ORLANDI, 1996: 246247) Nesse sentido, aqui toma-se a narrativa hagiográfica como um meio de propagação do discurso religioso e eclesiástico através da exemplaridade das vidas dos santos. A hagiografia é utilizada pelos eclesiásticos para disseminar a doutrina cristã ortodoxa. A doutrina, de acordo com Michel Foucault, “liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, consequentemente, todos os outros” (FOUCAULT, 1999: 43), ou seja, ela liga os indivíduos e os diferencia de todos os outros. A doutrina tente a difundir-se e somente requer o reconhecimento das mesmas verdades por parte do grupo. (FOUCAULT, 1999: 42) De acordo com Michel De Certeau, a narrativa hagiográfica possui uma “estrutura própria que se refere não essencialmente ‘àquilo que passou’, como faz a História, mas “àquilo que é exemplar’.” (DE CERTEAU, 1982: 267) Essas narrativas, portanto, assentam-se em uma concepção de História distinta da nossa. A História, para os medievais, tinha um sentido religioso, caminhava para a salvação. A hagiografia se vale de duas tradições: a escrita e a oral. As Vidas tinham como intuito comover o público ao qual se destinava, inserindo o santo dentro da concepção que se tinha então de santidade, reforçando elementos que se adequavam ao modelo pré-estabelecido. Além disto, os hagiógrafos empregavam recursos linguísticos que acentuavam a vocalidade do texto, uma vez que a narrativa era lida em voz alta diante de um público clerical ou laico3. De acordo com Néri de Almeida Souza, a riqueza informativa da hagiografia deriva de sua condição específica de obra voltada à sacralidade e à autoridade da escrita, destinada à oralidade dos 3 Ver ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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pregadores e interessada em atingir a sensibilidade dos ouvintes iletrados, mas também composta por religiosos que também sofriam as influências da tradição folclórica. Além disso: À medida que se amplia o esforço evangelizador através do aperfeiçoamento da pregação e do surgimento de ordens religiosas de prestígio voltadas para a atuação secular, a espontaneidade afirma-se na reprodução eclesiástica do texto oral e os relatos de natureza folclórica aumentam na hagiografia. (SOUZA, 2002: 74)

As Vidas de santos se destinam a transformar a vida de seu público, convencendo-o a mudar de comportamento. Isso se faz pelo recurso ao exemplo, que se constitui em um instrumento de convencimento da fé e das vantagens espirituais da ascese cristã. Portanto, a hagiografia é um discurso refinado que procura ilustrar a memória de um santo e propô-lo como modelo de conduta. Assim, o santo se apresenta de acordo com um modelo préestabelecido de santidade. “A individualidade conta menos que o personagem”, nos diz De Certeau (DE CERTEAU, 1982: 272). Os hagiógrafos procuravam servir à causa da Igreja, divulgando o exemplo de homens e mulheres que viveram de acordo com os preceitos cristãos, efetuando um trabalho de evangelização. E a imitação do exemplo dessas pessoas santas podia produzir a salvação da alma, a verdadeira imortalidade. Assim, os hagiógrafos não visavam o simples relato do passado, mas procuravam efetivar a moral cristã que procurava se tornar universal. Entretanto, não se tratava somente de de incutir valores cristãos, a hagiografia logo se viu a serviço de causas cristãs específicas, como a monástica, por exemplo. Assim, as relações entre hagiografia e santidade constituíram um importante estratagema nas operações de convencimento da Igreja. Os relatos hagiográficos podiam servir para justificar a dominação de certas igrejas ou mosteiros em determinados locais, bem como para dar respaldo espiritual às ideologias que se formavam dessas políticas regionais. Pode-se dizer, portanto, que as Vidas foram empregadas para fornecer a alguns setores da sociedade ideologias adaptadas àquilo que se esperava implementar.

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A hagiografia também participa da construção da memória de um grupo, o associando a um determinado lugar, como nos lembra De Certeau: A vida de santo se inscreve na vida de um grupo, Igreja ou comunidade. Ela supõe que o grupo já tenha uma existência. Mas representa a consciência que ele tem de si mesmo, associando uma imagem a um lugar. Um produtor (mártir, santo patrono, fundador de uma Abadia, fundador de uma Ordem ou de uma igreja, etc.) é referido a um sítio (o túmulo, a igreja, o mosteiro, etc.) que assim se torna uma fundação, o produto e o signo de um advento. (DE CERTEAU, 1982: 269)

Outro grande aspecto da dominação operacionalizada pela hagiografia foi a legitimação de certos discursos eclesiásticos mais preocupados com a reforma de alguns setores da instituição, como o discurso das ordens mendicantes. É importante a definição de Michel Foucault sobre o discurso, para ele este é o registro histórico de uma sociedade. É, por excelência, o local no qual se manifestam os meios ou as tentativas de controle, sendo ele mesmo uma destas formas. O discurso tem uma ligação com o desejo e com o poder. Para Foucault, “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.” (FOUCAULT, 1999: 10) Ainda segundo Foucault, o discurso é estratégico, ou seja, faz parte de um jogo que pressupõe ação e reação, e no qual a dominação encontra resistência, precisando, por isto, estar sempre se reformulando. A produção deste discurso não é aleatória, pelo contrário: “É ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”. (FOUCAULT, 1999: 8-9) O texto religioso, neste sentido, é um discurso que origina novos textos que o retomam. O lugar de onde se fala deve ser reconhecido institucionalmente, tornando-se verdadeiro e legítimo. (FOUCAULT, 1999: 38-39)

628 • A hagiografia e a propagação do “discurso religioso”– o exemplo da Legenda Áurea

A hagiografia assumiu um papel de grande importância dentre os esforços evangelizadores despendidos pelas ordens mendicantes no século XIII. Ela foi utilizada, sobretudo, na formação dos novos membros da ordem e na redação de coleções de sermões que serviam como modelos para a pregação dos frades junto ao público. As legendas serviram não apenas para a composição dos sermones de sanctis, pregados nas festas litúrgicas, mas também oferecia farto material para os exempla4, cujos compêndios receberam dos mendicantes uma grande produção e divulgação. Em certa medida, a hagiografia produzida pelos mendicantes passou a exercer uma função mediadora entre a consciência que eles tiveram de si e do papel que desempenhavam nas sociedades medievais e a efetiva ação que implementaram nas cidades. Conhecida por sua participação na perseguição aos hereges, a ordem dominicana sobrepõe-se por sua insistência na pregação como método de conversão dos que fogem à ortodoxia religiosa. É importante destacar que a pregação é um discurso promovido por uma elite eclesiástica para inculcar nas massas seu sistema de valores servindo-se de um aparato discursivo tomado da cultura laica que é proferido oralmente. De acordo com Zumthor, “Identificadas ao exercício eclesial, tanto a liturgia quanto a pregação têm por objeto a transmissão de um saber privilegiado, indispensável à conservação do pacto social e à realização individual e coletiva” (ZUMTHOR, 1993: 77) O século XIII foi um período de popularização da religião católica, como nos lembra André Vauchez. Assim, a Igreja procura integrar as culturas orais no sistema ortodoxo cristão. (VAUCHEZ, 1995: 162) A literatura hagiográfica do século XIII revela este movimento de controle da diversidade das culturas populares. O maior sucesso na hagiografia do século XIII - um novo tipo de narrativa hagiográfica influenciada pela ênfase no papel dos 4 O exemplum medieval é uma história com o objetivo de edificação e/ou de ensino que constitui um elemento da pregação. Segundo Le Goff, Bremond e Schmitt o exemplum medieval é “‘un récit bref donné comme véridique et destiné à être inséré dans un discours (en général un sermon) pour convaincre un auditoire par une leçon salutaire”. (LE GOFF, BREMOND E SCHMITT, 1996: 37-38)

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santos como modelos - seria a Legenda Áurea. Esta compilação faria muito sucesso até a época moderna. Como bom pedagogo, Jacopo de Varazze deu privilégio aos pequenos relatos exemplares, os exempla, que se voltavam para o convencimento do auditório por meio de uma lição salutar. A Legenda Áurea é uma coletânea de hagiografias elaboradas pelo frei dominicano Jacopo de Varazze por volta de 1260. Aliás, a data precisa do texto é objeto de debate entre os estudiosos. Como nos informa Hilário Franco Jr.: entre 1253 e 1270, para M. Sticco; 1265, para Alain Boureau; entre 1261 e 1266, para B. Dunn-Lardeau; entre 1252 e 1260, para G. Philippart. (FRANCO JR., 2003: 11-25) A obra é composta de narrativas dedicadas às vidas de santos e às festas litúrgicas, dispostas seguindo a ordem do calendário litúrgico. Carla Casagrande aponta que isso é uma inovação em relação às obras do mesmo gênero. (CASAGRANDE, 2007) Quando esses capítulos são dedicados à vida de um santo, na maior parte das vezes, inicia-se por um breve estudo etimológico correspondente ao nome do servo de Deus. Para Alain Boureau, na Legenda Áurea, “les formes narratives constituent la substance d’une forme première, le discours apologétique”. (BOUREAU, 1984: 253) As narrativas que compõem esta obra são um conjunto que se propõe a equilibrar a exposição doutrinária e a narração, tornando o texto menos cansativo, o que explicita seu uso pedagógico. O texto pertence ao gênero das legendae novae, compilações preparadas entre os séculos XIII e XIV, a maior parte pelos representantes da Ordem dos Frades Pregadores, com a dupla intenção de pôr à disposição dos pregadores um material para pregação e, ao mesmo tempo, edificante. Desde o princípio, a Ordem se preocupa em mostrar a importância da pregação para os Dominicanos. Para os Frades Pregadores, a atividade literária era um prolongamento da atuação apostólica. “(…) it is known that our Order was founded, from the beginning, especially for preaching and the salvation of souls. Our study ought to tend principally, ardently, and with the highest endeavor to the end that we might be useful to the souls of our neighbors” (The Primitive Constitutions of the Order of Friars Preachers, 2008).

630 • A hagiografia e a propagação do “discurso religioso”– o exemplo da Legenda Áurea

Alguns estudiosos do passado afirmavam que Jacopo de Varazze não era o “autor” da Legenda Áurea, mas somente seu compilador, ou seja, ele nada mais teria feito do que coletar e editar fontes anteriores. No entanto, estes trabalhavam com uma concepção de autoria que não considerava o autor medieval, ou seja, aquele que, segundo Néri Souza: “(...) lê, sintetiza mas também reinterpreta com enorme liberdade o material que organiza para a sua redação, somando a ele o ouvido e o vivido, procurando conscientemente agradar a um público o mais amplo possível” (SOUZA, 2002: 73) A heterogeneidade das fontes utilizadas por Jacopo de Varazze cede diante de uma observação mais atenta que revela uma surpreendente uniformidade entre as legendas. Esta uniformidade começa pelo uso da etimologia, que serve para anunciar o destino dos servos de Deus. Além disto, Jacopo se preocupa em eliminar as coordenadas históricas e geográficas muito precisas que figuram nos textos nos quais ele se inspira, visando facilitar a integração dos santos dentro de uma obra destinada a exaltar a permanência da santidade cristã através dos séculos. A Legenda é uma obra que passou por várias etapas de produção, tendo em vista, em primeiro lugar, um público de pregadores e, em segundo, um público de fiéis, como informa Casagrande: Dans la première redáction prévaut la volonté de Jacques de préparer un instrument utile à la prédication; ensuite, l’insertion de quelques récits montre de la pat de Jacques la volonté de tenir compte des exigences d’un public de lecteurs certes dévôts mais aussi cultivé et intéressé. (CASAGRANDE, 2007)

  A Legenda Áurea foi concebida como uma obra de referência, na qual os clérigos pudessem encontrar um vasto material útil para os seus sermões. Como afirma Hilário Franco Jr.: O objetivo imediato de Jacopo de Varazze era fornecer aos seus colegas de hábito, os dominicanos ou frades pregadores, material para a elaboração de seus sermões. Material teologicamente correto, isento de qualquer contágio herético, mas também compreensível e agradável aos leigos que ouviam a pregação. (FRANCO JR., 2003: 12)

A intertextualidade nos textos escritos na Idade Média se dá de

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forma ainda mais presente por conta da importância da tradição. Como já dito aqui, os discursos são legitimados, assumem confiabilidade, pelo fato de já haverem sido apresentados anteriormente por autoridades reconhecidas. Para que fossem tomados como verdade, se calcavam principalmente nas Escrituras e nos padres da Igreja. Jacopo de Varazze recorre fartamente a eles. As fontes da Legenda Áurea são múltiplas: a santa Escritura, os textos dos Pais da Igreja e dos mais influentes representantes da tradição monástica, as fontes hagiográficas, históricas etc. Algumas vidas são inteiramente transcritas de outros autores (Jerônimo, Ambrósio, etc). Por causa de sua extraordinária difusão, a Legenda foi uma obra em continuada transformação. O texto foi adaptado de acordo com as diversas práticas cultuais locais e de acordo com o uso que foi feito dele ao longo do tempo nas esferas da pregação e da devoção. A partir do final do século XII, a Igreja impõe pouco a pouco o recurso à investigação para determinar a santidade e a heresia. Estas investigações são o exemplo do controle da Igreja sobre a santidade, seguidas dos processos de canonização. Nesse momento, a instituição eclesiástica impõe também os mecanismos de inquisição. Assim, uma obra como a Legenda Áurea cumpre o objetivo de enquadrar os santos dentro desta perspectiva, ela determina os santos que devem ser cultuados. Vauchez nos lembra que no século XIII, um novo tipo de santidade vem a tona, em contraponto aos santos de origem nobre e aos mártires do passado. Durante o século XIII; as novas perspectivas pastorais influenciaram o modo de escrever Vidas de santos. As acusações lançadas contra a Igreja pelos heréticos, que opunham a moralidade irrepreensível dos seus Perfeitos a corrupção do clero católico, suscitaram em alguns autores o desejo de apresentar aos fieis figuras exemplares mais próximas no tempo do que os santos dos primeiros séculos. (VAUCHEZ, 1995: 164)

O século XIII também foi de codificação intensa das festas e dos tempos litúrgicos; a Igreja fixa o calendário. A Legenda representa uma das primeiras vulgarizações sistemáticas, para

632 • A hagiografia e a propagação do “discurso religioso”– o exemplo da Legenda Áurea

Alain Boureau, do calendário litúrgico: “les fêtes liturgiques et les fêtes de dévotion à un saint sont intégrées dans le cycle sacré, qui prend une signification ellégorique à la fois typologique, tropologique et anagogique”. (BOUREAU, 1984: 222) Observa-se na Legenda Áurea um paralelo entre a batalha das autoridades pagãs contra os cristãos perseguidos e o confronto dos dominicanos – identificados com os mártires cristãos -, procurando reforçar os seus preceitos morais, contra os heréticos – identificados com as autoridades pagãs. Jacopo procurou, assim, reforçar algumas doutrinas tradicionais cristãs, como a virgindade em contraponto aos “erros doutrinais” dos hereges. Então, a Legenda se configura também como uma munição doutrinária contra as heresias, que foram o principal alvo dos dominicanos nesta época. Outra interpretação, notadamente a de Sherry Reames, de viés político, identifica a Igreja com os mártires que enfrentam os governantes seculares, relacionando as narrativas de Jacopo de Varazze às batalhas da época, pelos direitos da Igreja. Na obra, os prelados exercem uma autoridade sagrada que constrange imperadores e reis.5 Portanto, a Legenda seria também um veículo de propaganda política. Jacopo procuraria mostrar a superioridade do sagrado sobre o secular, esforçando-se para reverter a corrente de secularização dos valores do século XIII. A Legenda também se configura como uma obra que procura exaltar e defender a Ordem Dominicana, que, no século XIII, em seu momento de plena ascensão, sofria ataques dos leigos e também dos próprios clérigos. Na legenda dedicada a São Domingos há um exemplo explícito desta conduta no relato da visão de um monge em que Jesus fala com a Virgem Maria: Minha mãe, que posso e deve fazer mais? Enviei-lhe patriarcas e profetas e pouco se corrigiram. Fui até eles, depois enviei os apóstolos e mataram a mim e a eles. Enviei mártires, confessores e doutores e nem eles foram aceitos. Mas como não posso negar nada a você, darei a eles meus Pregadores, por meio dos quais se iluminarão e limparão, caso contrário irei contra eles. (VARAZZE, 2003: 618)

5

Ver REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexamination of its paradoxal history. Wisconsin: University Press, 1985

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Essa passagem revela que, na obra, a fundação da Ordem dos Pregadores aparece como uma intercessão divina. Isso entra em consonância com a percepção que a ordem tem de si mesma – aquela escolhida por Deus para levar a sua palavra aos povos e abençoada pela Virgem. Para concluir, é importante ressaltar que a Legenda Áurea, como um texto do gênero hagiográfico, se insere em uma estratégia global da Igreja - fixando um calendário, determinando os santos a serem cultuados, construindo uma memória do cristianismo, reforçando as doutrinas cristãs frente ao erro herético. Ela também faz parte de um estratagema político-religioso dominicano, procurando defender os Pregadores dos ataques dos seculares e de outros grupos clericais, assim como tentando legitimar a reforma promovida pelos mendicantes e servindo de instrumento para a ação dominicana nas cidades. Assim, através da Legenda pode-se perceber a utilização das hagiografias como um meio muito eficaz e difundido de propagação do discurso eclesiástico.

XIII Colour, ornamental function and signification in Aberdeen University Library MS 24 (Aberdeen Bestiary)

B

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estiaries are manuscripts which describe animals, plants and stones, and in general the descriptions come with an exegesis or moralisation based on the habits and characteristics presented. Textually, bestiaries derive from a series of classic and medieval works by authors like Aristotle, Pliny, Solinus, Isidore of Seville and Saint Ambroise, being also heavily influenced by the Physiologus, a text written in Greek and compiled between the 2nd and 4th centuries AD in Alexandria, Egypt, which had moralising stories about animals, plants and rocks2. In any case, in bestiaries there is an effort to recognise and decipher 1 Master’s student at the University of São Paulo. Supervisor: Prof. Dr. Maria Cristina Correia Leandro Pereira. Email: [email protected]. 2

WHITE, T.H (1954). The Book of Beasts: being a translation from a Latin bestiary of the twelfth century. Madison: University of Winsconsin-Madison Libraries, 2002, pp.233 e 236.

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in nature the will of God3; ultimately, to understand mankind’s role in the universe4. Latin bestiaries, like the so-called Aberdeen Bestiary (shelf mark: Aberdeen University Library MS 24), were mostly produced in England from the 12th to 14th centuries5, which makes them a considerably cohesive group of sources and should therefore inspire comparative studies. However, despite the many works on animal symbology,6 bestiaries are not often used as the basic source and instead other literary documents or heraldic treaties are used.7 There are three exceptions of note: the pioneer work 3

FRANCO JR, H. Os três dedos de Adão: Ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 2010

4

SCHRADER, J. L. “A Medieval Bestiary”. The Metropolitan Museum of Art Bulletin, New Series, Vol. 44, No. 1, A Medieval Bestiary, Summer, 1986, p. 3-11.

5 Idem. 6

A few examples: BAIRD, L.Y. Christus gallinaceus: A Chaucerian Enigma; or the Cock as Symbol for Christ in the Middle Ages. Studies in Iconography, n.9, 1983, p.19-39; COLLINS, A.H, Symbolism of Animals and Birds Represented in English Church Architecture. New York: McBride, Nast & Company, 1913; DAVY, Marie-Madeleine, L’Oiseau et sa Symbolique, Paris, Albin Michel, 1992; CURLEY, M.J. Animal symbolism in the prophecies of Merlin. In: CLARK, W.B. & McMUNN, M.T. (Org). Beasts and Birds of the Middle Ages: The Bestiary and its Legacy. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1989; DRUCE, G.C. The Elephant in Medieval Legend and Art. Journal of the Royal Archaeological Institute, n.76, 1919, p.1-73; FAVREAU, R. Le thème iconographique du lion dans les inscriptions médiévales. Académie des inscriptions et belles-lettres, n.3, 1991, p.613-636; MERMIER, G.R. The Phoenix : Its Nature and its Place in the Tradition of the Physiologus. In: CLARK, W.B and McMUNN, M.T. (Org). op.cit; SHACKFORD, M,H. Legends and Satires from Medieval Literature. Boston: Ginn and Company, 1913; TELESKO, W. The Wisdom of Nature: The Healing Powers and Symbolism of Plants and Animals in the Middle Ages. Munique: Prestel, 2001; VARTY, K. The Lion, the Unicorn and the Fox. In: NEWALL,V.J (ed). Folklore Studies in the Twentieth Century. Woodbridge, UK; Totowa, N.J.: Brewer, Rowman & Littlefield, 1978, p.412-418.

7

A few examples: DELORT, R. “Les animaux en Occident du Xe au XVIe siècle”. In: Actes des congrés de la Société des historiens médiévistes de l’enseignement supérieur public. 15e congrès, Toulouse: Privat, 1984. pp. 11-45; FAUCON, J.C. La répresentation de l’animal par Marco Polo. In : Médiévales, nº32, 1997, p.97117; os estudos sobre o porco, o leão e o javali em PASTOUREAU, M. Une his-

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of M.R. James (Bestiary: Being A Reproduction in Full of Ms. Ii 4. 26 in the University Library, Cambridge, with supplementary plates from other manuscripts of English origin, and a preliminary study of the Latin bestiary as current in England), from 1928, which introduced the idea that all known bestiaries could be divided into four families according to the literary influences found on each manuscript; T.H. White’s The Book of Beasts, Being a Translation from a Latin Bestiary of the Twelfth Century, which, as the title implies, was the first translation of a Latin bestiary into English and includes an appendix where the author suggests that bestiaries should be seen as part of a long tradition of animal lore that went back to Classical and Eastern Antiquity. Finally, there is Florence McCulloch’s Medieval Latin and French Bestiaries, from 1962, where the author revised James’ classification and created sub-families. After the 1960s there were a few studies concerned with sociopolitical themes that focused on the analysis of bestiaries’ texts8 or that tried to establish authorship and place of origin for the manuscripts9. Be it in the pioneer works of James, White and McCulloch or in more recent academic production, images’ specific structure, logic and workings are not the focal point of research. However, as text and image do not have the “same discourse and should toire symbolique du Moyen Âge occidental. Paris: Seuil, 2004; PASTOUREAU, M. Les Animaux Célèbres. Paris: Arléa, 2001; VINCENT-CASSY, M. “Les animaux et les péchés capitaux: de la symbolique à l’emblematique”. In: Actes des congrés de la Société des historiens médiévistes de l’enseignement supérieur public. 15e congrès, Toulouse: Privat, 1984. p. 121-132 ; ZINK, M. Le monde animal et ses représentations dans la littérature du Moyen Âge. In : Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l’enseignement supérieur public. 15e congrès, Toulouse: Privat, 1984. p. 47-71. 8

FONSECA, P.C.L. Bestiário e discurso do gênero no descobrimento da América e na colonização do Brasil. Bauru: Edusc, 2011; HASSIG, D. (Org,). The Mark of the Beast. Nova York: Routledge, 2000; HENDERSON, A.C. The Making of Meaning in Fables and Bestiaries. PMLA, v. 97, n. 1, 1982, p.40-49.

9

MURATOVA, X. “The Bestiaries, an aspect of medieval patronage”. In: MACREADY, S. and THOMPSON, F.H. (Org.), Art and Patronage in the English Romanesque. Londres: Society of Antiquaries of London, 1986, p.118-144; CLARK, W. B. The medieval Book of Birds: Hugh of Fouilloy’s Aviarium. Binghampton: MRTS, 1992, p. 73-85, 267-70, 296-7.

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be examined with different methods”10, a simple textual analysis cannot explain the images’ role and dynamics, and therefore what we have is a lack of scholarly reflection on an important part of these manuscripts. In the case of Latin bestiaries, the images are far from simple illustrations – they are not limited to the moralising stories and not rarely key elements of the text are completely absent from them. Like all images, bestiaries’ transmit meaning through ornamentation, shapes, colour frequency and combination11; that is, meaning is transmitted through non-linguistic strategies and resources. The many images found in a Latin bestiary, as well as the complexity of their constitutive elements, are certainly a challenge to the scholar. In this article we have chosen to focus on colour, which is an image’s essential dimension and plays a constructive role in it12; in the case of the Aberdeen Bestiary, with its hundred and three folios and three hundred and sixteen images, all lavishly painted (including illuminated and non-illuminated initials), any work concerned with the intricacies of iconographical dynamics cannot ignore the uses and functions of colour. Among them is ornamentation, which plays a rhetorical role in the manuscript and adds honour and dignity to it. A medieval chromatic system Any scholar who wants to study the colours of a particular document must have in mind, in the first place, that we do not see them as the men and women of the past did because of how time changes the pigments and paints used. In addition to that, there is the problem of perception as influenced by lighting conditions: nowadays we have electric light (actually many types of it), but for most part of these manuscripts’ history people who had access to them – and their images – could only see them under firelight or 10 PASTOUREAU, M. Op. Cit.(2004), p. 117. 11 PÄCHT, O. La miniatura medieval. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p.25. 12 BONNE, J. “Penser en couleurs: à propos d’une image apocalyptique du Xe siècle”. In : HÜLSEN-ESCH, A.; SCHMITT,J. (Org). Die Methodik der Bildinterpretation/Les methods de l’interprétation de l’image: Deutsch-französische Kolloquien 19982000. Göttingen, Wallstein, 2002,v.2,p.355-379.

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natural light, which inevitably changes colour perception13. However, the knottiest problem posed to the scholar who intends, as a first step, to chart and categorise the colours found in an image (or a series of images) is that of deciding which colours will be considered. Far from being a minor worry, the question of how many colours and what they were perceived as by the men and women of a certain age and place is a complex issue that cannot be avoided. Nevertheless, before exploring that problem in detail, it is better to present a bit of the manuscript’s history – or rather what we know of it: The Aberdeen Bestiary, despite its informal name, is not of Scottish origin. Like many Latin bestiaries, it was made in England at the end of the 12th century, but little is known about its early days. The first record comes from an inventory from the royal library of Westminster Palace, when in 1542 it was listed as nº518 Liber de bestiarum natura. The library had recently been established under orders from Henry VIII to house books and other documents acquired after the dissolution of the monasteries. However, some of the copies relocated to the new library already belonged to the royal family, which makes it impossible to say if the bestiary came from one of the monasteries, if it had been a royal property since its production or if it was acquired by the royals at any time during the Middle Ages. Only in the 17th century it was transferred to Marischal College, which is now part of the University of Aberdeen14. Although there are still many hazy points in the manuscript’s history, its dating and origin, late 12th century England – there is some debate regarding the exact location, as both the Midlands15 and the southeast16 have been suggested – give us a starting point to investigating the bestiary’s chromatic system. 13 PASTOUREAU, M. Op. Cit. (2004), p. 114. 14 The Aberdeen Bestiary Project < http://www.abdn.ac.uk/bestiary/bestiary.hti > University of Aberdeen. Web. 8 Dec. 2012. 15 MURATOVA, X. “The Bestiaries, an aspect of medieval patronage”. In: MACREADY, S. and THOMPSON, F.H. (Org.), Art and Patronage in the English Romanesque. Londres: Society of Antiquaries of London, 1986, p.118-144. 16 Clark, Willene B., The medieval Book of Birds: Hugh of Fouilloy’s Aviarium, Binghampton, NY: Center for Medieval and Early Renaissance Studies, 1992, p.80-85.

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On five folios (28v, 31v, 41v, 47v, 72v) there are discrete indications of what colour should be used to paint the inside of illuminated initials. The indications in the margins are small letters “a” (an abbreviation for azur[e]) and “v” (abbreviation for vermeil) that match the saturated blue and red pigments respectively. It should be noted that the term azurus (later azure[e] in French) is a word of Arab origin that enters the Latin lexicon around the 13th century17, and that the word used for red is French (ultimately from Latin origin). The use of such expressions is in tune with the bestiary’s dating and Anglo-Norman origin. But what about the other colours, how to set them apart from each other and name them? Here we have to deal with the particularities of the Latin language and its denominations for colour: on folio 56v, the caladrius is described as an all-white bird (“Caladrius sicut dicit Phisiologus totus est albus nullam partem habens nigram”); on folio 28v it is said that dove’s wings have white lines (Sed color saphirinus candidis lineis distinguitur, ut saphirino colori niveus misceatur). That means that what would roughly be translated as “white” in the original Latin of the manuscript is actually three different words: albus, candidus e niveus – and each one has its own particular meaning: the first is an opaque whitish colour, the second a sparkling or shining white and the last is descriptive – the colour of snow. On folios 46v and 61r there is the word viridi, green, used to describe the parrot and the peacock. On folios 16v, 22v, 25r, 29r there are nigro or nigro colore – which can be translated as black. Yellow, like white, does not have only one possible translation for in Latin, and each has a slightly different meaning. On folio 21v the bulls of India are described as color fulvus est, and on folio 22v we are informed that there are horses of a golden colour (Color hic precipue expectandus [...]aureus). The small letters on the margins, as well as the bestiary’s images and text give us some clues as to what the basic colours in a chromatic research would be, but bearing in mind the risk of anachronism that haunts every scholar looking for a way of cataloguing colours18, it may be worth searching in 17 NIERMEYER, J.F and KIEFT, C.V., Medieval Latin Dictionary. Leiden: Brill, 2002, p.100. 18 PASTOUREAU, M. Bleu : Histoire d’une couleur. Paris : Éditions du Seuil, 2002,

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other sources of the time, like the works on optics and rainbows by Robert Grosseteste (ca.1170-1253), Roger Bacon (ca.12141294), Witelo (ca.1230) e Theodoric of Freiberg (ca.1250- after 1310)19. Such comparative analysis should, of course, be made with great care as these philosophers were interested in the physics involved in the phenomenon of rainbows (the curvature of the arc, cloud composition, refraction and reflection of sun rays) and in the metaphysics of light20, thus the colour study was never on the foreground of research (the exception being Grosseteste and Theodoric, both of whom wrote treaties focused solely on colour. Nevertheless they are short texts and the problem of colours is not central on their works). It should also be noted that scholarly speculations not necessarily mirror the meanings, uses and values associated with colours by the general population21, and some of these philosophers wrote after the Aberdeen Bestiary was made, even if less than a century later. Grosseteste, in his De Colore, writes that there are two poles: too much light (white) and the complete lack of light (black). His greatest peculiarity is, however, the fact that he establishes a three-dimensional system in which there are not only seven colours between the lightest and the darkest pole, but also seven more that go from the darkest to the lightest, apart from the two extremes, white and black – making the total of sixteen colours22. Unfortunately Grosseteste does not name the fourteen intermediate colours. Bacon’s Opus Major, from 1267, dabbles in many topics such as optics and math, but while discussing rainbows the author names five colours: white, grey, red, green and black – “quinque vero sunt p.7. 19 KUEHNI,R. G. and SCHWARZ, A. Color Ordered: A Survey of Color Systems to Antiquity to the Present. New York: Oxford University Press, 2008, p. 36. 20 PASTOUREAU, M. Op. Cit. (2004), p. 123. 21 PASTOUREAU, M. Op.Cit (2002), p.8. 22 SMITHSON, H, DINKOVA-BRUUN, G, GASPER, G, HUXTABLEe, M, McLEISH,T, PANTI, C. “A three-dimensional color space from the 13th century” J. Opt. Soc. Am. A 29, A346-A352, 2012, pp.347-348.

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colores principales, ut albedo, glaucitas, rubedo, viriditas et nigredo”23 Witelo, in the tenth book of his treaty on optics called Perspectiva, written between 1268 and 1270, actually names the colours found in rainbows: red (puniceus), green/emerald colour (prasinus), yellow (xanthus) and blue (lazulius)24. He also admits the existence of five more intermediate colours but does not name them. In his De Coloribus, Theodoric accepts the Aristotelian statement that white (albus) and black (niger) are the two great chromatic poles, having between them red (rubeus), grey (glaucus), green (viridis) and blue (lazulius)25 Comparing the philosophers’ aforementioned views, it is clear that there is not really a consensus among them concerning the number of colours – Grosseteste believes there are sixteen, Bacon says five, Witelo four (plus a few intermediate) and Theodore six. Again there is a lexicon problem: glaucus is a word whose original meaning is more complex than simply “grey”, as it can also mean “bright, sparkling, gleaming, greyish”26. There isn’t only one word which we could translate as “blue”; there are actually a number of words, each with a subtly different meaning and all chromatically vague, to a certain extent, as during Classical Antiquity and the Early Middle Ages blue was not valued as a colour27.The change into a relevant colour is a process that begins in France around 1140 and rapidly spreads to the rest of Western Europe, having its peak in the 13th century. That is especially significant as the Aberdeen Bestiary was made in a Norman context at the end of the 12th century (as we will explain later on, the manuscript’s colour frequency was probably influenced by this historical context). However, if we were to compare the philosophers’ view on colour, we would have something like this (nameless colours are not included): 23 BRIDGES, J.H.(ed.) The ‘Opus Majus’ of Roger Bacon. Oxford: Clarendon Press, 1897. 24 BURCHARDT, J. “The Dispersion of Sunrays into Colours in Crystal by Witelo”.Kwartalnik Historii Nauki I Techniki 50, 1/2005, pp.155-166. 25 KUEHNI,R. G. and SCHWARZ, A. Op.Cit. p.36. 26 LEWIS, C. Latin Dictionary. Oxford : Clarendon Press, 1879. 27 PASTOUREAU, M. Op. Cit (2006), p.26.

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Although there are some coincidences, trying to produce a system out of these philosophers would result in an artificial generalization that would not work for the Aberdeen Bestiary. It should also be noted that not only there is no absolute consensus among the Grosseteste, Bacon, Witelo and Theodoric of Freiberg as their views are not really compatible with the other great system of the time, the heraldic one, which accepts six basic colours (azur, gueules, sable, argent, or, sinople- blue, red, black, white, yellow and green). Heraldry becomes increasingly popular throughout the 12th century, which coincides with the bestiary’s production. However, just like the systems presented by the philosophers, it is necessary to admit that it has its own singularities – for example, its colours are abstract and without nuance – and cannot be mechanically applied to other sources, like bestiaries. On the other hand, it is an evidence of the time and therefore can give us some clues when trying to build a colour system for the manuscript. Coats of arms reach their heyday in between 1200-1220, when their influence was felt by all social categories and the heraldic code enters its classical phase. Their popularity was such that it is possible that the heraldic system considerably influenced the population’s chromatic sensibilities and perceptions, making blue, red, black, white, green and yellow the basic colours of Western culture. .In fact, all these colours are present in the bestiary. As mentioned before, the marginal marks help us identify the blue and red – perhaps the people who made the manuscript would point out the existence of yet another colours (on folio 32v, would the first dog’s colour be considered red, yellow or even orange? Is the two-headed serpent on folio 68v red or purple ?), but the six aforesaid colours above are the most common ones, as percentages will show. It is impossible to establish a closed chromatic system that works perfectly when applied to the Late Middle Ages. The size of the geographic area, as well as its many cultural subdivisions, prevent the creation of a single system that could be used to analyse all sources of the time. However, the six colour scheme seems to be the most appropriate for the bestiary not because it is the heraldic one (in the aforementioned, applying a system to a

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source can be tricky), but because it provides us with a basic set that makes it possible to chart the pictorial strategies of contrast and alternating colours. Nonetheless it is important to have in mind that this set is really only the basic chromatic arrangement, as probably there were a few more. Exegesis and moralisation Blue, red, black, white, green and yellow will be our basic colours considered in the case of the Aberdeen Bestiary. What we call blue is, for example, the tiger’s colour in folio 8r and on the inside of the illuminated initial on folio 8v. Red is the pard’s colour on folio 8v, as well as the ibex’s on folio 11r. White is the colour of the caladrius (f57r), black is the colour of the raven (f37r), green can be seen in the plants and rocks behind the tiger on folio 8r, and on the halcyon bird (54v). What will be considered as yellow is, for example, the phoenix’s colour (f56r). Using those six basic colours and their respective paints, out of the total of three hundred and sixteen images, the blue is present in two hundred and fifty (79%), red in two hundred and forty seven (78%), white in two hundred and nineteen (69%), black in a hundred and one (32%), green in fifty four (17%) and yellow in fifty seven (18%). The large percentiles of black and white can be explained by these colours’ use in contouring and shading, respectively, while the other colours are used for filling. With that data in hand we will try to answer the following question: is there a relation between colour and symbolic meaning of the animals, plants and rocks presented in the Aberdeen Bestiary? Keeping in mind that in the late Middle Ages, colours have symbolic meanings more or less fixed , is it possible to say that each moralization or exegesis is represented by a colour? As exegetic associations found in bestiaries are multiple, varied and often complex, here we present the three more frequent ones (Christ, the Devil and preachers) and their relation with colours:

Animals/plants/rocks associated with Christ:

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Animals/plants/rocks associated with the Devil:

Animals/plants/rocks associated with preachers (predicatores):

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Any analysis of the results must consider the total percentages: blue and red are the most common colours in the manuscripts, and this datum will repeat itself in any tabulation made. However, what is clear from the charts is that animals, plants and rocks are sometimes figured with more than one colour; also there is not really a pattern (that is, a fixed correlation between what is being figured and its colour). It is the same with the moralizations: it is not possible to link each of them to a specific colour. Another characteristic of the images found on the Aberdeen Bestiary that cannot be ignored is the alternation of colours. On folio 18v, for example, there are two goats in a roundel, one blue and one red; these two colours are repeated in the consecutive frames. The same happens on folio 18r, in which there are three dogs, each one in a different colour: yellow(?), red and blue. The same colours repeat themselves on the background vegetation. This kind of changing patterns does not happen only inside one image; it is frequently seen when two or more images are considered, especially if on the same page. For example on folio 68v, where there are three images of serpents: the first one (called scitalis) has a blue and green body with red head and wings. Its frame is red on the inside and blue on the outside. The next image is that of an anphivena, a two-head snake whose body is red (unlike the scitalis), inside a double frame that is red on the outside and blue on the inside. The third image on the page resumes the pattern of the first image: a snake with a blue body, red frame on the inside and blue on the outside. Conclusions It is very tempting to try and analyse the use of colour on a document based on its symbolic attributes, especially if it is a bestiary, that is, a manuscript concerned with the symbology of each animal, plant and rock. However, it is not always the apparently obvious explanation that can be demonstrated analytically. Saturated and brilliant colours, such as the ones in this bestiary, were much valued by medieval people28, just like contrasts and alternation of colours29. The chromatic use in this case seems to 28 PASTOUREAU, M. Op. Cit. (2004), p. 130 29 BONNE, J. Op.Cit

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be linked more to the order and relation between images than to a chromatic symbology that exists outside the manuscript. Although colours’ symbolic dimension cannot be completely ruled out (just a few animals are white, among them the dove and the lamb), this does not seem to be the principal criterion when ordering and using colours. Instead, the colours’ role is to value and honour the manuscript through contrasting combinations and saturated hues30, and also create a rhythm that gives unity and continuity to the bestiary: its text is notably linear; each animal, plant or rock is described, an exegesis is made out of its characteristics or behaviour and it is not mentioned again. On the other hand, colours are repeated and alternated along the pages, inside one image or in many of them. Therefore it could be said that in the Aberdeen Bestiary the colours are used in an ornamental way; not in the modern sense of “embellishment” or “superfluous”, but as an image’s dimension that is absolutely essential31. Ornamentation has its roots in rhetoric as one of the parts of elocutio, expression – “the fitting of the proper language to the invented matter”32. However, not only words can play a rhetorical (and therefore ornamental) role – images often do the same. Adding more than three hundred lavishly painted images to the manuscript has undoubtedly made it much more expensive than it would have been without them. Then why do it? Certainly such a luxury book could only have been commissioned by a wealthy patron, either secular or monastic, and owning such a book would have been an expression of power and status. But the images (and its saturated and contrasting colours) are also important in the manuscript itself because they are appropriate to the subject of the manuscript, as a good ornament should be33. A bestiary is a piece of work that tries to decipher nature and enlighten the reader by making him see in the world around him the will of God. Such a magnificent subject needs an equally magnificent form. It could never be turned into a manuscript that would not 30 Idem. 31 Idem 32 VICKERS, B. In defence of Rhetoric, p.62. 33 ARISTOTLE, On Rhetoric, p.197.

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give it the honour and dignity it deserves, and a “seemly ornament must be varied to suit the nature of the material to which it is applied”34.

34 QUINTILIAN, p.217.

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