O olhar de Claude Lévi-Strauss sobre as ciências

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O olhar de Claude Lévi-Strauss sobre as ciências Francine Iegelski

Ao elaborar as bases teóricas e metodológicas da antropologia estrutural, LéviStrauss deparou-se com o problema do lugar que ela deveria ocupar e das relações que deveria manter com as demais disciplinas que se abrigam no heterogêneo campo das ciências sociais e humanas. Em Critérios científicos nas disciplinas sociais e humanas (1964), Lévi-Strauss propõe critérios de classificação e de cientificidade para os pesquisadores que se dedicavam ao estudo do sublunar, o lugar das manifestações humanas, dos fatos variáveis e imperfeitos, aparentemente impossíveis de serem explicados de maneira objetiva. Ele acreditava que as divisões disciplinares até então admitidas nas ciências sociais e humanas provocariam mais equívocos, contradições e confusões do que um verdadeiro esclarecimento sobre seus respectivos objetivos, objetos e métodos1. Lévi-Strauss avalia que o problema da classificação das ciências sociais e humanas nunca foi seriamente tratado. Soava a hora, portanto, de se realizar uma “crítica epistemológica das ciências sociais e humanas”2 para que um quadro de classificação dessas disciplinas fosse de fato constituído. Somente assim o conhecimento do homem e da vida social poderia enfim progredir em bases mais seguras, mais rigorosas. No referido texto de 1964, Lévi-Strauss se compromete a dar início a essa tarefa crítica, com o objetivo de encontrar um número, mesmo que pequeno, de atitudes que marcariam uma convergência das disciplinas localizadas no interior das ciências humanas em relação aos seus problemas e à maneira de tratá-los. Por fim, o autor também tenta propor critérios de cientificidade que fossem válidos tanto para as ciências sociais e humanas quanto para as ciências da natureza, com a intenção de criar as condições necessárias para efetuar uma verdadeira colaboração entre esses dois campos de conhecimento. 1

O texto Critérios científicos nas disciplinas sociais e humanas (1964), republicado em Antropologia estrutural dois (1973), foi escrito a pedido da UNESCO como resposta a uma enquete preliminar, relativa à decisão da Conferência geral da UNESCO de estender às ciências sociais e humanas a enquete sobre as tendências principais da pesquisa, já consagrada às ciências exatas e naturais. 2 Lévi-Strauss, C. Critérios científicos nas disciplinas sociais e humanas. Trad. Chaim Samuel Katz. In: Lévi-Strauss, C. Antropologia estrutural dois, p.302.

O método escolhido por Lévi-Strauss para realizar o que ele chamou de uma crítica epistemológica das ciências humanas e sociais em Critérios científicos nas disciplinas sociais e humanas (1964) é emprestado da própria análise estrutural. LéviStrauss classifica as disciplinas a partir das comparações de suas atitudes em relação a lotes de oposições – objetivo/subjetivo, trabalho com fontes/construção de modelos, consciente/inconsciente, perspectiva parcial/perspectiva total – que sempre teriam dominado os estudos da vida social. Essa mesma metodologia de classificação, embora não tenha sido nomeada “crítica epistemológica”, fora utilizada pelo autor doze anos antes, em A noção de estrutura em etnologia (1952). Contudo, para o autor, para prosseguir com a crítica epistemológica, seria preciso, primeiramente, construir um consenso sobre quais seriam as bases de cientificidade das ciências sociais e humanas. Esse acordo deveria ter, também, o assentimento dos pesquisadores das ciências exatas e naturais. Para serem considerados científicos, os estudos realizados pelos pesquisadores de qualquer disciplina das ciências humanas e sociais deveriam ter resultados parecidos com aqueles conquistados pelas ciências exatas e naturais. Ou, ao menos, deveriam satisfazer os mesmos critérios de validade que regeriam aquelas últimas. O rigor buscado por Lévi-Strauss para os trabalhos das ciências humanas tinha na matemática a sua maior aspiração. De fato, no período em que escreve seus principais textos sobre as relações entre a linguística estrutural e a antropologia, entre as décadas de 1950 e 1960, Lévi-Strauss se preocupava em “matematizar” os resultados de suas pesquisas para que alcançassem rigor e poder de generalização maior. As ciências da natureza teriam conquistado maturidade científica justamente porque teriam passado por esse processo de formalização de seus resultados. O sucesso da matematização da física, por exemplo, já no século XIX, a partir do estudo da propagação térmica nos corpos sólidos, ou da química, a partir da substituição dos elementos pelo seu peso atômico, não diria respeito apenas ao rigor de uma linguagem menos exposta às subjetivações do cientista, mas ao poder de generalização de suas noções sobre a diversidade dos fenômenos – agora transformados em conceitos universalmente válidos –, que teria substituído o papel dominante da experimentação no conhecimento científico. Lévi-Strauss observou que a linguística era, entre as ciências humanas, aquela que mais avançava em direção à análise matemática de seus dados. Ele demonstra essa suposta vocação da linguística no texto Linguagem e sociedade (1951). Se de fato

havia, na época em que Lévi-Strauss escrevia seus textos mais programáticos, uma disposição geral nas ciências sociais e humanas em se guiar pelo método matemático, a maneira pela qual essa tendência aparece em sua obra foi também original. Para LéviStrauss, a verdadeira colaboração entre a matemática e as ciências humanas aconteceria no campo do que ele chamou de matemática qualitativa. No texto Les mathématiques de l’homme (1955), Lévi-Strauss relembra que as ciências sociais, a psicologia, a demografia, a sociologia, a história e a antropologia, frequentemente lançaram mão do auxílio da matemática para chegar a um bom termo em suas investigações. O apelo à matemática, contudo, quase sempre apareceu na história destas ciências por meio de uma preocupação quantitativa, para medir grandezas que, em seus domínios respectivos, estariam suscetíveis a esse tratamento, a exemplo do número da população, dos recursos econômicos, da quantidade de trabalhadores assalariados etc. Essas investigações centradas “nas coisas que se pode medir” e que guiaram as colaborações majoritárias entre as matemáticas e as ciências sociais tiveram e têm sua relevância, mas ela seria limitada, se se levasse em consideração o campo aberto pelas matemáticas qualitativas. De acordo com LéviStrauss, os métodos quantitativos nas matemáticas, aqueles que colocariam o rigor da análise na noção de medida, já estavam ultrapassados pelas matemáticas novas. Estas últimas demonstrariam que “o reino da necessidade não se confunde inevitavelmente com o da quantidade” 3. Para a antropologia estrutural, em seus anos “paradigmáticos”, a formalização das pesquisas por meio de modelos reduzidos cumpria os rigores de uma epistemologia científica formulada em um nível mais geral. Ao mesmo tempo em que assumiria regras e procedimentos vindos das ciências exatas e naturais, devolveria problemas antes insuspeitos para essas ciências. Esse seria o único modo dos pesquisadores das ciências humanas e sociais conseguirem ultrapassar uma série de contradições com as quais se defrontam quando começam a refletir sobre os fundamentos de seu conhecimento e o nível de confiança que podem depositar nos resultados de seus estudos. Por essa razão, em Critérios científicos nas disciplinas sociais e humanas (1964), Lévi-Strauss propõe que as relações entre as ciências humanas e as da natureza sejam entendidas por meio de um corte vertical, no sentido quase de desdobramento: as investigações das ciências humanas e sociais deveriam prolongar o que já fora feito nas 3

Lévi-Strauss, C. Les mathématiques de l’homme. In : Izard, M. (org). Claude Lévi-Strauss. Paris: L’Herne, 2004, p. 28.

ciências exatas e da natureza. As primeiras deveriam, assim, integrar seu espírito àquelas últimas, integrando também uma parte de seus resultados. Mas, se a investigação nas ciências exatas e da natureza era total, nas ciências sociais e humanas ela só poderia ser seletiva: “seu conjunto formará um todo, mas que irá se afunilando”4. No início, o programa lévi-straussiano para a antropologia estrutural buscava descobrir regularidades e formular leis. A tarefa da antropologia estrutural seria estabelecer as estruturas, colocar os elementos relativos aos aspectos formais da realidade social em sistema. Ao final da investigação antropológica, o pesquisador descobriria as leis de ordem que explicariam o funcionamento geral da cultura e que corresponderiam ao nível inconsciente da vida mental. Estaríamos, nesse momento, no nível mais alto da antropologia, aquele que pergunta sobre as condições de possibilidade da existência da vida social. O inconsciente, para Lévi-Strauss, é a própria função simbólica, o espírito operando em seu estado selvagem: “condições de todas as vidas mentais de todos os homens e de todos os tempos”5. Porém, muitos comentadores apontam para uma descontinuidade, “ou uma torção, entre o Lévi-Strauss programático [aquele que estabelece os fundamentos teóricos e metodológicos da antropologia estrutural nas décadas de 1950 e 1960] e o Lévi-Strauss que elabora suas obras primas da maturidade”6. Segundo Lévi-Strauss, as ciências teriam passado de uma perspectiva atemporal, a busca por leis eternas, para uma perspectiva histórica, a convicção de que as teorias e aparelhos científicos que os homens de hoje julgam produzir verdades, amanhã estarão caducos7. Em textos como Pensée mythique et pensée scientifique (2003), ele sustenta, quem poderia imaginar, que o progresso do pensamento científico teria empurrado as ciências para o lado do devir8. Como explicar essa “virada” no pensamento lévi-straussiano? Certamente os motivos que podemos levantar não são nem simples, nem evidentes. Ater-nos-emos a apenas um indício que nos parece importante: a relação entre o estudo de Lévi-Strauss sobre os mitos ameríndios e as diversas funções que a história ocupa na obra lévistraussiana. 4

Lévi-Strauss, C. Critérios científicos nas disciplinas sociais e humanas, p.307. Lévi-Strauss, C. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: Mauss, M. Sociologia e antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p.28. 5

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Sáez, O. C. A história pictográfica. In: Queiroz, R.C de; Freire Nobre, R. (orgs) Lévi-Strauss. Leituras brasileiras. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008 p.138. 7 Lévi-Strauss, C. Testemunhas de nosso tempo. Trad. Chaim Samuel Katz. In: Lévi-Strauss, C. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p.293. 8 Lévi-Strauss, C. Pensée mythique et pensée scientifique. Izard, M. (org). Claude Lévi-Strauss, p.40-42.

Jocelyn Benoist, em Le «dernier pas du structuralisme»: Lévi-Strauss et le dépassement du modèle linguistique (2008), pontua que, na medida em que LéviStrauss avançava nas suas análises míticas, realizava também uma “superação do modelo linguístico”9 que antes sustentava sua pesquisa sobre a vida social. Benoist sublinha, contudo, que essa superação do método da linguística nos trabalhos de LéviStrauss deve ser “essencialmente caracterizada em termos linguísticos”, isto é, a superação teria acontecido dentro do próprio paradigma linguístico, “voltando-se contra ele”10. Assim, Lévi-Strauss não realizaria mais sua análise no nível do fonema (as unidades constitutivas de um fenômeno a partir de seus termos diferenciais), mas “entraria no léxico”, no nível da própria frase11. É como se Lévi-Strauss operasse, em suas análises míticas, com um “novo encaixe” do caráter estrutural da própria linguagem, não mais entendido simplesmente como “um traço formal da realização do material linguístico”, mas como “um aspecto do próprio conteúdo do que é dito”. Nas análises míticas, o sentido seria articulado de maneira estrutural pelo próprio mito, não haveria “outro objeto ao fundo”. O mito seria, então, “combinação e recombinação do sentido ‘por ele mesmo’”12. Marcio Goldman também aponta uma descontinuidade nas análises da antropologia estrutural entre As estruturas elementares de parentesco (1949) e Mitológicas (1964-1971). Para o autor, houve uma “grande mudança ao longo dos quinze anos que separam essas obras”. Se, em As estruturas elementares do parentesco (1949), Lévi-Strauss procedia por uma série de reduções, a saber, “das relações entre natureza e cultura à proibição do incesto, desta à reciprocidade, desta ao inconsciente, mas também da redução de centenas de sistemas de parentesco a algumas regras de base”13, em Mitológicas (1967-1971) o método estrutural teria sido aplicado de outra maneira. A análise dos mitos seria feita “no gerúndio”, pois “a inteligibilidade dos mitos vai sendo revelada, vai sendo descoberta progressivamente, de forma 9

Benoist, J. Le « dernier pas du structuralisme » : Lévi-Strauss et le dépassement du modèle linguistique. In : Philosophie. Claude Lévi-Strauss: langage, signes, symbolisme, nature. Paris : Minuit, 2008, n. 98, p.54-70. 10 Benoist, J. Le «dernier pas du structuralisme»: Lévi-Strauss et le dépassement du modèle linguistique, p.54. 11 Benoist, J. Le «dernier pas du structuralisme»: Lévi-Strauss et le dépassement du modèle linguistique, p.61. 12 Benoist, J. Le «dernier pas du structuralisme»: Lévi-Strauss et le dépassement du modèle linguistique, p. 62. 13 Goldman, M. Lévi-Strauss, a ciência e outras coisas. In: Queiroz, R.C de; Freire Nobre, R. (orgs) Lévi-Strauss. Leituras brasileiras, p.73

imanente à própria análise”. Assim, de acordo com Goldman, é como se em Mitológicas (1964-1971) Lévi-Strauss transitasse “de um modelo epistemológico muito clássico – a explicação por meio de reduções progressivas – para um modelo propriamente estrutural, em que não há redução de espécie alguma e o sentido se estabelece apenas com o movimento da análise”14. Do parentesco aos mitos, o itinerário do inconsciente perseguido por LéviStrauss parece, então, ter sofrido alguns desvios. Essa descontinuidade do método está relacionada à natureza do próprio objeto estudado. Pois, se o estudo das relações de parentesco diz respeito às “ordens vividas”, isto é, às ordens que são função de uma realidade objetiva e que se pode abordar do exterior, independente da representação que dela têm os homens, o estudo dos mitos leva às “ordens concebidas”, ou seja, às ordens que não correspondem a nenhuma realidade objetiva, onde o pensamento se encontra sozinho consigo mesmo15. Em um texto intitulado A história pictográfica (2008), Oscar Calavia Sáez procura investigar o conceito de história em Lévi-Strauss com a intenção de encontrar “um bom ponto de partida para algumas novas perspectivas históricas” 16. Sáez propõe que Mitológicas (1964-1971) seja entendida como uma espécie de “história das histórias, cujos objetos são os próprios relatos”

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. Mesmo que “Mitológicas como

história” possa parecer, a princípio, “uma ideia exorbitante”, o autor sustenta essa interpretação, explicando que Mitológicas (1967-1971) seria história “do mesmo modo que uma anêmona é um animal, e o ornitorrinco é um mamífero: não apelando para as feições típicas, mas para as definições radicais”. Sáez também percebe uma descontinuidade no pensamento de Lévi-Strauss depois de sua longa experiência como mitólogo. De acordo com Sáez, Lévi-Strauss teria se aproximado tanto dos resultados do trabalho histórico em sua tetralogia que a relação entre antropologia e história em seus escritos da maturidade beiraria a “pura e simples identificação”: Em lugar de chegar a um conjunto de regras, ou alguns quadros sinópticos, ou a uma conclusão sobre o valor e o significado do mito, Mitológicas fica irredutível na sua monumental extensão, como é próprio da história. Seu valor está na concretude do relato e no seu alto grau de relação com o contexto 18. 14

Goldman, M. Lévi-Strauss, a ciência e outras coisas, p.74. Lévi-Strauss, C. A noção de estrutura em etnologia, p.341. 16 Sáez, O. C. A história pictográfica, p.123. 17 Sáez, O. C. A história pictográfica, p.140. 18 Sáez, O. C. A história pictográfica, p.143. 15

Contudo, em Mitológicas (1967-1971), segundo Sáez, Lévi-Strauss teria tratado sem hesitações de um problema do qual os historiadores tenderiam quase sempre a esquivar-se: a fronteira dissoluta entre história e historiografia. Para o comentador, a obra “é um conjunto articulado de relatos indígenas, relatos que, apesar desse termo – ‘mito’ – com que o marcamos, descrevem o que, segundo os nativos, alguma vez aconteceu: sua história”

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. Lévi-Strauss se ocuparia da história das populações

indígenas não “através/apesar desses filtros, mas com eles”. Em outras palavras, Sáez entende que Lévi-Strauss escreve a história dessas populações por meio dos relatos (mitos) indígenas: “se tentássemos fazer o mesmo com a história do Ocidente, o resultado seria um relato em que os fatos não seriam coisas como o Império Romano, o feudalismo, as guerras de religião, ou as revoluções, mas a descrição que disso tudo fizeram Gibbon, Voltaire, Marx ou Toynbee”. De acordo com Sáez, na perspectiva lévistraussiana, as obras de excelência do pensamento indígena teriam ganhado lugar de destaque na galeria dos objetos da história. Lévi-Strauss teria enfrentado o problema da relação sempre escorregadia entre história e escrita da história tomando os mitos como objetos históricos. Ao evidenciar a lógica da narrativa mítica, Lévi-Strauss teria escrito, ao mesmo tempo, a sua história. Algo parecido com o que Lévi-Strauss fez em Mitológicas (1964-1971) surge em um domínio da historiografia relativamente recente na França, chamado história da historiografia, ou, simplesmente, historiografia. Podemos estabelecer essa comparação graças ao texto de Sáez, notadamente quando o comentador propõe que Lévi-Strauss respondeu ao problema da tênue fronteira entre história e historiografia ao fazer dos relatos míticos um objeto histórico e um meio para se chegar à história. Contudo, os historiadores que produzem trabalhos na história da historiografia não costumam levar em conta qualquer relato sobre a história, mas se debruçam prioritariamente sobre os trabalhos de seus colegas de profissão. Esse tipo de investigação combina reflexão crítica sobre o conhecimento histórico e um estudo sobre a prática dos historiadores. Dito de outro modo, a história da historiografia, consagrada na França nos anos 1980, é uma história das ideias dos historiadores sobre seus objetos particulares e sobre a própria história. Ela é uma tentativa, realizada pelos próprios historiadores, de historicizar a produção de seu conhecimento. Parece que esse tipo de procedimento

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Sáez, O. C. A história pictográfica, p.140.

refirma a ideia de que não existe uma única história, mas inúmeras histórias elaboradas de acordo com a perspectiva que os historiadores sustentam em relação aos homens e às sociedades. Em seus seminários na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) nos anos finais da década de 1980, François Hartog lança questões fundamentais para caracterizar esse novo domínio, ou nova tendência, dos estudos históricos: “O que é preciso para que a história tome a si mesma como objeto de estudo? Seria suficiente [essa tendência] se constituir em disciplina? O que pode ser a historiografia?” 20. Hartog esboça uma resposta a essas questões, atribuindo ao sentido de historiografia a ideia de uma abordagem: [A historiografia é] um exercício jamais fixado de um distanciamento continuamente redobrado; uma maneira de construir um objeto tornando-o mais complexo, pois jamais ele coincide consigo mesmo. Uma forma, então, de história intelectual. Nós a veremos como “inquietude” da história.21

Essa abordagem da história intelectual leva os historiadores a refletirem sobre as fronteiras de sua disciplina. Ela abre, também, a possibilidade de ter como objeto histórico o pensamento de não-historiadores. Mais do que estabelecer uma subdisciplina no interior de uma disciplina, a história da historiografia convida os historiadores a refletirem sobre a prática historiográfica e as bases do conhecimento histórico. A história da historiografia seria uma espécie de história inquieta consigo mesma. Por ser movida por uma insatisfação permanente, podemos inscrevê-la na experiência contemporânea que os homens possuem do tempo. Essa experiência, Hartog chamou de regime contemporâneo de historicidade, o presentismo. A própria noção de regimes de historicidade decorre, segundo o historiador francês, “de um diagnóstico (amplamente partilhado) sobre o mundo contemporâneo: o da força e da preponderância do presente na experiência contemporânea do tempo”

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. Ao contrário do regime moderno de

historicidade, marcado pela expectativa dos homens no futuro e no progresso, o regime presentista tenderia sempre a colocar o devir da humanidade em dúvida.

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HARTOG, F. Historiographie. Annuaire de l’École des hautes études en sciences sociales. Comptes rendus des cours et conférences, 1990-1991, p. 128. 21 HARTOG, F. Historiographie. Annuaire de l’École des hautes études en sciences sociales. Comptes rendus des cours et conférences, p. 128 22 Hartog, F. Historicité/régimes d’historicité. In : Delacroix, C ; Dosse, F ; Garcia, P ; Offenstadt. Historiographies, II. Concepts et débats. Paris : Gallimard, 2010, p.766.

No artigo L’inquiétante étrangeté de l’histoire (2011), Hartog avalia que os historiadores do regime moderno de historicidade partilhavam um sentimento de familiaridade com a história. Eles acreditavam ser possível, por meio do trabalho historiográfico, apreender o tempo histórico. Essa atitude em relação à história estaria relacionada ao fato do conhecimento histórico não questionar a ideia de progresso. No regime contemporâneo de historicidade, o do presentismo, “para sempre ou por enquanto, essa familiaridade em relação à história teria acabado, ou, mais precisamente, teria perdido a sua evidência”

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. Tal atitude em relação à história ocorreria porque

passamos a duvidar, os historiadores inclusive, da marcha da humanidade rumo a um futuro identificado com a ideia de progresso. Em outras palavras, deixamos de apostar, criar expectativas a respeito do futuro: “tomado pelas tramas de um presente presentista, ele [o conceito moderno de história] pena em reconhecer o curso novo do mundo: sua familiaridade se impregna de estranheza” 24. A dúvida sobre o futuro faria com que o regime contemporâneo de historicidade operasse um distanciamento, ou melhor, um questionamento, em relação ao conceito moderno de história. A crítica da ideia do progresso estaria, então, no cerne da passagem do regime moderno para o regime contemporâneo. Aqui, mais uma vez, podemos apresentar relações surpreendentes entre o pensamento de Lévi-Strauss e a história. A obra de Lévi-Strauss, graças à sua contundente crítica à ideia de progresso, impulsionou, ou talvez tenha sido uma das expressões, dessa virada do regime moderno para o regime contemporâneo de historicidade apontada por Hartog, ao menos no que diz respeito à produção intelectual francesa. De nosso ponto de vista, as ideias de LéviStrauss sobre a história podem ser, em certa medida, identificadas com as reflexões sobre a história dos historiadores que se afastaram do paradigma da história moderna

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Hartog, F. L’inquiétante étrangeté de l’histoire. In : Esprit. Religions et politique : séparations sous tension, février 2011, p.76. 24 Hartog, F. L’inquiétante étrangeté de l’histoire, p.76.

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