O Olho Que Nos Olha Nos Olhos: Um Ensaio Clínico-Cultural.

July 9, 2017 | Autor: Marcelo Novaes | Categoria: Ontology, Applied Ontology, Self and Identity, Social Identity, Identity (Culture), Sociology of Identity, Jungian psychology (Religion), Jungian and post-Jungian psychology, Cultural Identity, Language and Identity, Narrative and Identity, Personal Identity, Carl G. Jung, Sacrifice (Anthropology Of Religion), Narcissistic Personality Disorder, Identity, Identity Issues, Ontología, Epistemología, Convivencia y Clima escolar, Estudios sobre Violencia y Conflicto, Educação, Carl Gustav Jung, Identidade, Ética (Filosofia), Ética Aplicada, História da Psicologia, Ontologia, Antropologia, psicologia social, sociologia clinica, psicologia clinica, psicodrama, psicologia familiar sistemica, psicoanalisis, Solidão, Familia, Identidades, Etica, Antropología de la violencia, Narcissistic Personality, Narcissistic and Borderlne Personality Disorders, Ética e Filosofia Moral, Medo, Procesos identitarios, Psicologia E Psicanalise, Inclusão Escolar, Cuidado, Narcissistic parents, Instituições Escolares, Adult Children of Narcissistic Parents, Isolamento Pessoal, Cultura Y Gestión Escolar, Sentido Del Aprendizaje Escolar, Narcisismo, Pertenencia a Grupos Identitarios, Identity and Subjectivity Issues, Narcissistic Drama, Holding, Narcissistic, Filosofia, Proscrição, Psicanálise e Política, Processos Identitários, Ambientes Primários, Numinoso Sombrio, Sociology of Identity, Jungian psychology (Religion), Jungian and post-Jungian psychology, Cultural Identity, Language and Identity, Narrative and Identity, Personal Identity, Carl G. Jung, Sacrifice (Anthropology Of Religion), Narcissistic Personality Disorder, Identity, Identity Issues, Ontología, Epistemología, Convivencia y Clima escolar, Estudios sobre Violencia y Conflicto, Educação, Carl Gustav Jung, Identidade, Ética (Filosofia), Ética Aplicada, História da Psicologia, Ontologia, Antropologia, psicologia social, sociologia clinica, psicologia clinica, psicodrama, psicologia familiar sistemica, psicoanalisis, Solidão, Familia, Identidades, Etica, Antropología de la violencia, Narcissistic Personality, Narcissistic and Borderlne Personality Disorders, Ética e Filosofia Moral, Medo, Procesos identitarios, Psicologia E Psicanalise, Inclusão Escolar, Cuidado, Narcissistic parents, Instituições Escolares, Adult Children of Narcissistic Parents, Isolamento Pessoal, Cultura Y Gestión Escolar, Sentido Del Aprendizaje Escolar, Narcisismo, Pertenencia a Grupos Identitarios, Identity and Subjectivity Issues, Narcissistic Drama, Holding, Narcissistic, Filosofia, Proscrição, Psicanálise e Política, Processos Identitários, Ambientes Primários, Numinoso Sombrio
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O Olho Que Nos Olha Nos Olhos: Um Ensaio Clínico-Cultural.

Prólogo: Da Ferida nos Olhos
Capítulo I. Segredo e Proscrição: A Cápsula do Medo
Capítulo II. As Bases e a Moldura da Proscrição: Proposições Iniciais
Capítulo III. Tempo Fechado para o Ferido Narcísico
Capítulo IV. Subindo o Flanco da Montanha: Thomas Merton
Capítulo V. Quase-Presença
Capítulo VI. O Portador do Fio
Capítulo VII. Ser um Outro para o Outro: do Encolhimento à Entropia
Capítulo VIII. Ser um Outro para Si Mesmo: Caos e Esfinge
Capítulo IX. Do Sonho ao Corpo Sonhado
Capítulo X. A Questão Narcísica da Irrealidade
Capítulo XI. Andando sobre as Águas até o Chão-Possível
Capítulo XII. O Códice do Silêncio
Capítulo XIII. O Outro dentro de Si Mesmo como Testemunha Solitária: O Olho sem Pálpebra
Capítulo XIV. Jó. Ou: E Daí?
Capítulo XV. Nêmesis e o Solo de David Gilmour
Capítulo XVI. O Espelho e a Porta Lateral
Epílogo e Contraponto: A Bola no Fundo da Quadra






Prólogo: Da Ferida nos Olhos








Começo este ensaio com a singela vinheta* de um filme despretensioso:

Beverly: Por que você acha que as pessoas se casam?

Sr. Devine: Paixão.

Beverly: Não.

Sr. Devine: Interessante, eu pensei que você fosse uma romântica. Então, por que é?

Beverly: Porque precisamos de uma testemunha para nossas vidas. Há um bilhão de pessoas no mundo, que importância tem a vida de cada pessoa, na verdade? Mas no casamento, você se compromete a se importar com tudo. As coisas boas, as coisas ruins, as coisas terríveis, as coisas comuns… com tudo, sempre, todos os dias. Você diz: "a sua vida não passará sem ser notada, porque eu estarei lá para notar. Sua vida não ficará sem testemunhas, porque eu serei a sua testemunha."

* Cena-vinheta do filme "Dança Comigo" ("Shall We Dance").

Ver e viver algo sozinho pode ser assustador na infância, se isso for uma visão que pareça incomunicável [ou que nenhum adulto possa/queira ouvir]. Ter uma testemunha parecerá sempre importante. Porque aquele que vê, sem testemunhas, carrega um fardo: o do portador-solitário-da-visão. Ou vivência.

Note-se: na minha perspectiva [que é a perspectiva deste ensaio], essa motivação, a "procura por uma testemunha", coincide com a do diálogo do filme. A questão é que eu escolhi tratar de um perfil de sujeito que experimenta um "quantum" desse "presenciar/vivenciar-sem-testemunha", desde muito cedo, o que torna a situação muitíssimo mais séria: a necessidade de ver seu percurso testemunhado para poder prosseguir e "ser", de fato.

E o casamento nem sempre é a solução procurada. Até porque, há os que nunca sequer sonharam com este tipo de laço como via de acesso a qualquer testemunha-cúmplice. Foram abortados deste sonho de família, por não cogitarem a família senão como obstáculo ao ser, e não como apoio, desde muito cedo. Assim, a família nunca lhes pareceu um sonho ou alvo, mas tão-somente um pesadelo. Sentem-se como tendo "sobrevivido à família" [psiquicamente], sobrevivência esta que se deu apesar da família e não por causa dela [o que equivale a dizer: com o apoio da mesma]. Só viram a família como seu primeiro grande obstáculo na vida. O mesmo sentimento de obstáculo, muitas das vezes, também se aplica a outras instituições "formadoras" [deformadoras]: escola, igreja, internatos, hospitalizações precoces e longas, etc. Tais pessoas, de fato, não encontraram suporte nesses ambientes primários e foram muito mal tratadas.

Um bom casamento salvou William Blake de uma solidão criativa insuportável, o que é menos sério do que não ter conseguido chegar sequer à criação. A procura inglória por cúmplice arruinou Van Gogh. Há, de fato, muitas solidões. Uma delas pode ser considerada como falha ou "culpa ontológica", que surge como o tipo de solidão mais entranhada e mais primária na história de desenvolvimento do sujeito, o que implica em profundo acuamento; e mais: em um "ter de pedir licença para ocupar espaço no mundo", não só à sociedade, mas a uma ambiência mítica que se constitui dentro de si, por características e percalços intrínsecos a este desenvolvimento. De forma muito sumarizada, é disso que trata tal ensaio.

Existe um trânsito dessa culpa ontológica, pré-edipiana e nada edipiana, para aquela culpa mais prosaica referente a dissipações pulsionais [e não à impossibilidade de ser], aquelas culpas do usufruto do prazer em detrimento do cumprimento do script social: a culpa freudiana. De forma complementar, como um ulterior desdobramento possível da "primeira culpa" ou "ferida primal", analisaremos, também, essa transição. Mas, sempre, partindo da primeira culpa ou falha básica [nos termos de Michael Balint]: a que considero, de longe, a mais séria. A tal culpa ontológica. Quando tratarmos da passagem da primeira culpa para a segunda, perceberemos que o tônus e o quantum da situação poderá levar o sujeito não a um casamento, mas a um mosteiro como, por exemplo, no caso paradigmático de Thomas Merton, apresentado, brevemente, no capítulo IV deste trabalho.

Sim. O monge trapista Thomas Merton é o personagem-gancho para tratarmos desse assunto, da transição da culpa primeira para a culpa segunda. Ou melhor dizendo, da ferida primal [narcísica] para a culpa edipiana. Do homem trágico [aquele que não consegue ser-no-mundo], como apontado primeiramente por Ronald Fairbairn e, mais tarde, por Heinz Kohut, ao homem culpado [aquele que vê espremido no conflito entre civilização e instinto] que é a matéria das psicanálises freudiana e kleiniana clássicas. Sim, devemos falar de psicanálises, no plural, para sermos justos com as diversas tônicas e vetores [vértices e ênfases] das práticas atuais.

Thomas Merton nos apresenta sua vertigem existencial [manifesta por agudíssima crise de pânico, muito acuradamente explanada por ele próprio] em sua ida para o mosteiro. E uma culpa ligada a certos sentimentos mais graves do que a culpa edípica: "Ninguém me conhece; e minha história pode ser maior do que eu mesmo". Ou seja: maior do que ele mesmo poderia suportar. Além de difícil de comunicar.

Devemos levar em consideração as seguintes questões, antes do leitor chegar ao quarto capítulo deste ensaio: Thomas Merton era um sujeito articulado, bastante sociabilizado e nem tão "encapsulado" assim, no sentido do insulamento mítico ao qual aludimos acima, e que explanaremos, em detalhe, ao longo de várias vinhetas clínicas. Mas sua história seria "difícil de comunicar", de qualquer maneira. No seu caso, em particular, a tal incomunicabilidade se referiria a pudor + medo, fórmula esta que ilustra a transição para a culpa edípica. Por isso, escolhi Thomas Merton para formalizar [ou encarnar] a passagem da culpa mais primária [verdadeira tragédia de estar-no-mundo sem estar-no-mundo, encapsulado em si mesmo] para esta outra culpa mais prosaica [do instinto em choque com a lei social], de que trataram Freud, Klein e os analistas clássicos.

A "culpa" mais grave [se assim pudéssemos chamá-la, e não pelo seu nome mais legítimo: tragédia] envolveria "terror sagrado" + "incomunicabilidade ontológica". Esta última não se dá por pudor, no sentido de vergonha pelos sentimentos escondidos, mas por "essencial indizibilidade do vivido-em-absoluta-solidão": terrores secretos, pactos de si para consigo mesmo [ou para com alguma instância interna a si mesmo, um "outro dentro de si"], por absoluto isolamento, fuga aos ataques/ameaças do ambiente primário [família, escola, igreja, hospitalizações, internatos, etc] e pela absoluta não-credibilidade no "poder dizer". Enfim, o sujeito trágico assim experimenta o que ainda não encontrou palavra: "não digo por ser indizível, e não por ter vergonha de dizê-lo". E tal complexa conjuntura não tem relação com a tal culpa ligada ao prazer, mas, sobretudo [e fundamentalmente], ao "terror de ver sozinho e ver demais". Ver algo que todo o entorno nega: pais, escola, igreja, hospitais, internatos, etc. O ambiente primário não consegue enxergar o que vivencia o sujeito trágico e, muitas vezes, empurra tal sujeito para este ver-vivenciar sozinho seus [=do ambiente] pontos cegos. Além dos terrores que poder-se-iam supor "autóctones", o indivíduo arca com os pontos cegos de seu ambiente: com uma porção massiva e indigesta da Sombra Cultural ou Coletiva. Essa é a clássica situação do proscrito e do bode expiatório. Situação, em larga medida, factual. Negá-lo, seria conferir álibi conveniente, institucionalmente falando, às graves falhas [inclusive às mais-que-eventuais ignomínias] impetradas contra o indivíduo nesses "ambientes primeiros" ou formadores. 

O sujeito trágico é engolfado por uma história difícil, ambientes primários indiscutivelmente disfuncionais [seria cômoda e cínica a tentativa de aplainar a questão, supondo a disfuncionalidade de tais ambientes meramente imaginária ou fantasiada], além de uma proscrição maciça e massiva, devida justamente ao contato precoce com a "sombra" desses mesmos ambientes: os pontos cegos, vieses e desvios nunca-assumidos por família, escola, igreja, hospitalizações, internatos, etc, etc. Muito dessa sombra tem vindo à luz, nos dias de hoje, sobretudo na ampla divulgação globalizada das mazelas humanas dessas instituições, impondo sofrimentos mais-do-que-apenas-simbólicos a muitos sujeitos, desde tenra infância. Não podemos mais "fingir que não sabemos dos fatos". As instituições sempre se defenderam de tais fatos concretos com mentira e hipocrisia, como ainda vemos nos dias de hoje. Essa mentira e hipocrisia, ambas institucionais e legitimadas socialmente, até bem pouco tempo [e ainda muito mascaradas em sua discreta exposição, perto do montante e gravidade dos fatos ainda-por-revelar], são correlatas ao medo incutido, desde cedo, em suas vítimas trágicas. 

E, além de medo, há raiva, ressentimento, dor, encapsulamento e todo o corolário de dores e dificuldades atinentes à ferida narcísica primal, impingida e sancionada pelas diversas instâncias culturais, e nunca assumidas e atendidas a tempo pelo ambiente primário de tais sujeitos.

Trata-se da "dor sem testemunhas". 

Essa dor é tão fantasmagórica e primitiva [mítico-surreal] quanto ser o único a ver uma estátua se mexendo num jardim, ou um quadro mudando sua imagem quando a luz está diminuída, e não há ninguém por perto. Essa dor é tão mítica e fantasmagórica [mas não "inventada", ou "somente imaginada"], quanto aquela de "ser o único sujeito a testemunhar o esgar de um quadro no corredor da casa, quando todos dormem" [ou não enxergam]. Essa dor tem esse "tônus" [mítico, surreal, arcaico], de modo que o próprio conteúdo a ser dito soaria "inacreditável" ou inverossímil, como um pesadelo para o qual nem mais se acha nome para os personagens que "só o sujeito viu". Mas essa fantasmagoria é só a série de projeções-em-objetos, aqui tomada como ilustração, de falhas no cuidado primário que deixam a criança absolutamente só em suas visões e sentimentos. Por isso, a ferida narcísica é uma "ferida nos olhos". É uma ferida no ver ["eu nego que você tenha visto algo que nós mesmos não admitimos para nós, sobretudo nossos erros", "eu me recuso a ver/ouvir o que você diz estar sofrendo; e, ainda mais, por nossa causa"; "eu te imponho um sofrimento, mas não o vejo como tal: que tal agradecer-me por ele?"], e não uma castração à onipotência dos desejos infantis. É o não encontrar testemunha alguma para coisas muito difíceis que se vivenciou sozinho, ou que se foi empurrado a vivenciar sem qualquer cúmplice ou aliado. Uma proscrição massiva, impingida por um "bando" ou "gangue" que insiste em fechar os olhos [James Grotstein usa essa imagem de "gangues internas" no caso do ferido narcísico]. Essa é a coloração do sentimento que se tem quando a ferida é no olho: a dor do olhar solitário. Uma punição social ao olho de um sujeito isolado e proscrito. 

Muito disso foi intuído preliminarmente por Ronald Fairbairn, um psicanalista muitíssimo mais percuciente e revolucionário do que Melanie Klein, mas que não fundou escola [ainda que Harry Guntrip tenha se dedicado a explanar alguns desdobramentos clínico-teóricos de seu pensamento]. Devemos a Ronald Fairbairn muito da sistematização conceitual de algumas dessas verdades, em sua originária definição da posição esquizoide como sendo a matriz de todas as dores. Melanie Klein, sempre enciumada em relação a pensadores mais percucientes do que ela própria e independentes de seu halo de influência, logo aliciou Herbert Rosenfeld para providenciar arcabouço conceitual para devolver [e domesticar] o insight originalíssimo de Fairbairn para sua própria escola, apropriando-se da dita posição esquizoide [onde há acuamento devido a falhas ambientais verdadeiras, reais] repaginando-a na assim-chamada posição esquizo-paranoide [onde há uma cisão e isolamento devido a culpas precoces e inveja-ataque primários aos aspectos bons do ambiente primário!]. Não poderia haver subversão maior e contrafação maior do insight fairbairniano do que aquele operado por Melanie Klein e seus súditos. Fairbairn tentou por várias vezes a interlocução com a Senhora Klein, sempre com a recusa da mesma em lhe dar ouvidos. Não surpreende que o grande pensador escocês tenha preferido certo isolamento em seu trabalho em Edimburgo, diante da recusa em ouvir [=recusa em ver, a "dar atenção às nuances de seus achados"] por parte de Melanie Klein e seu staff político-institucional. A visão de relações objetais [objetos subjetivos, "presenças que o sujeito internaliza em si", nos sonhos e fora dele] de Ronald Fairbairn é algo muito mais sofisticado do que se quis e se pôde perceber, a partir dessa blindagem feita à sua grandeza. Lembra bastante a proscrição de Ferenczi por parte do staff político-institucional freudiano. 

Winnicott também não foi devidamente ouvido por Melanie Klein, a autocrata inglesa, mas pôde cultivar interlocutores e se expor a seus pares de modo suficientemente efetivo, devido à sua posição institucional na Sociedade Inglesa de Psicanálise, da qual pôde ser presidente por muito tempo. No entanto, alguns de seus voos mais arrojados só foram dados post-mortem desta mentora primeira quase-onipresente, reiterando o quanto a relação transferencial analítica pesava, inclusive, sobre a liberdade conceitual dos analisandos-vistos-como-pupilos pela Matriarca Inglesa, ad aeternum. A eles restava a opção: pupilos vitalícios, com o servilismo implicado na relação autocrática, ou traidores. Donald Winnicott deveria se manter quietinho, na posição de pupilo-por-procuração, pois fizera sua análise com Joan Riviére, uma das principais discípulas de Klein, depois de sua análise com James Strachey. E, naqueles tempos [ou haverá algo semelhante em nosso tempo?], Klein mantinha sob supervisão clínica até a produção teórica de seus pacientes-colaboradores [o que é um contra-senso óbvio, um verdadeiro confisco da liberdade de criação alheia], vetando, veementemente, qualquer divergência que estes apresentassem de seu próprio corpus teórico. Paula Heimann é um exemplo paradigmático deste viés e descalabro do método kleiniano de subjugar discípulos na dupla e ambígua posição de serem, ao mesmo tempo, seus próprios pacientes em análise. Há de se fazer grandes malabarismos retóricos, imbuídos de devoção cega à mentora, para se encontrar qualquer laivo de ética no modus operandi da Matriarca Inglesa. 

Da mesma forma, poderíamos chamar a relação clínica de Freud com sua filha, Anna Freud, tomada por paciente desde a infância, à sua revelia, como "confisco incestuoso-transferencial" da menina por parte de seu pai-mentor. Coisas abomináveis, que corroboram o que eu chamo de "desvio calculado do olhar", institucionalmente sancionado, ou aval sócio-institucional ao desvio, quando conveniente aos avalistas. Por isso, pensar em psicanálise oficial ou "dissidente" também implica em avalizar, ou corrigir, a visão institucional que se pretende apresentar como "história" de seus heróis fundadores, bem como dos desertores e/ou "proscritos". Há, ainda, os semi-proscritos, deixados de lado, no limbo ou no ostracismo [o Ferenczi mais arrojado, "dos tempos de insubmissão", por exemplo].

É importante consignar que também considero antiéticas as relações de Jung com Sabina Spilrein e Toni Wolff. E mais do que antiéticas: cínicas [eu disse cínicas, não clínicas] e exploratórias. A cooptação de Marie-Louise Von Franz desde os dezoito anos [ou vinte, quando, de fato, ela pôs a mão na massa] para traduzir textos alquímicos do latim medieval e grego para ele, não importa que com o "consentimento ou anuência dela", mesmo que com gosto ou fervor da mesma [principalmente nessas duas últimas hipóteses!] também é uma clássica estratégia de sedução-exploração junguiana. Marie-Louise Von Franz esteve a serviço de Jung [ele adorava arregimentar pessoas para seu Opus] tal qual Anna Freud esteve a serviço do pai. Manobras exploratórias em ambos os casos. Não por acaso, Marie Louise Von Franz fez sua própria "torre de incubação alquímica" nos moldes da Torre de Bollingen, onde conhecera Jung. Este, aliás, flagrara na jovem trazida a ele por seu filho, junto a outra meia dúzia de jovens de sua idade, uma "alquimista". O "faro junguiano" captou esse talhe na psique da jovem talentosa. O objetivo do pedido paterno para tal encontro era "avaliar como andava a psique da juventude alemã à época", em 1933. De qualquer maneira, eu fico pensando o quanto esta percepção do homem de 48 anos [mesmo que "subliminar"] deva ter impressionado a jovem de dezoito. E Jung estaria já bastante ciente das implicações dessa comunicação subliminar, também veiculadora da expectativa de fazer da adolescente sua próxima Soror Mystica (sic), uma vez que Toni Wollf não compartilhava de seu entusiasmo pelos assuntos alquímicos, nem possuía os dotes de leitura e tradução de línguas clássicas que a menina ostentava. E não importa que a influência possa ter sido "positiva" para o futuro da moça: providencial, oportuna, "pró-individuação" (sic), ou o que quer que se diga a respeito. Esse papel de "tutor" sempre conveio a Jung, e ele vestiu essa camisa de dublê de preceptor medieval toda vez que lhe foi oportuno. E como não estávamos na Idade Média, conferir um script de vida a outrem é trabalho espúrio. Essa é a atuação do arquétipo do "mago" [sobretudo do mago negro], e Jung deveria saber se abster de tal "atuação", evocação ou "identificação com o arquétipo".

Outro adendo nada nobre ao ex-príncipe herdeiro da psicanálise, que a teria abandonado em nome da "isenção da obrigatoriedade de adesão ao Dogma Freudiano quanto ao lugar da Sexualidade [assim, com maiúscula] na psique humana": ele também podia ser bastante autoritário e mordaz, quando a chance lhe veio. O dissidente libertário soube mostrar seu próprio amor ao trono [bastante similar à presunção freudiana de "descobridor do continente inexplorado"] em várias ocasiões anteriores e posteriores ao encontro com Marie-Louise von Franz: nas discussões do Clube Psicológico, por exemplo, deixava claro seu descontentamento em relação a palestrantes que considerasse "fracos", com risinhos e conversas paralelas às apresentações dos mesmos [sobretudo com Toni Wollf]. Além disso, seu humor caprichoso [tratava-se de uma anima difícil aquela!] levava-o a ações igualmente pouco dignas e autoritárias, como boicotar [e propor a seus correligionários mais devotos que boicotassem] a palestra de Martin Buber neste mesmo Clube, uma vez que este contrapunha o Eu-Tu à ênfase junguiana no Ego-Si Mesmo. Aos humores de sua anima [razões da anima], Jung também atribuiu a ausência ao enterro de sua amada e leal Toni Wollf; também foram as razões da anima e a voz de sua alma que fizeram-no manter com Toni o relacionamento de décadas, de modo que ela e Emma dividiam as atenções matrimoniais [inclusive a casa] com o Pater Pneumatikós, alem de segurarem cada qual um de seus braços nas famigeradas sessões do tal Clube Psicológico: se ele não fosse fiel a si mesmo, o Eros de suas filhas seria prejudicado. Assim concluíra ele, depois de uma noite em claro. A devota Barbara Hannah, em seu memorial hagiográfico do Mestre, chega a dizer, com candura, que a prova de que Jung estava certo quanto a essas percepções se mostrou pelo fato de suas filhas se casarem relativamente cedo, numa época em que era difícil para qualquer filha de um homem proeminente como Jung encontrar um pretendente à altura, disposto ao matrimônio [supostamente o coitado ou herói teria de suplantar a influência imantatória da personalidade-mana representada pelo/encarnada no pai da dita cuja]. Com essas menções [poderia elencar dezenas do mesmo gênero], percebe-se que Barbara Hannah se manteve tão embevecida com as alegadas razões junguianas para quaisquer de seus gestos [mesmo os mais disparatados ou toscos] quanto Ernest Jones soube se portar como o leal [ou serviçal] propagandista-hagiógrafo de Freud. Para cada santo, um séquito. Não proponho "um culto em substituição a outro", dentro das escolas analíticas, mas a eliminação de todo e qualquer laivo de culto.

Freud cometeu suas indignidades com Viktor Tausk [tinha grandes dificuldades em lidar com qualquer um que saísse de sua sombra], Herbert Silberer, além de manifestar seus chiliques de prima-dona com Otto Rank, Wilhelm Reich e ter seus desmaios em discussões teóricas com Carl Jung, vendo nos sonhos daquele "fantasias de parricídio". Deve-se ler Paul Roazen para ver ainda "como Freud trabalhava", flagrá-lo ausente do enterro do próprio pai ["quem teria, então, fantasias parricidas reprimidas"?], sua relação com Viktor Tausk, ler o livro de Janine Burke, "Deuses de Freud: A Coleção de Arte do Pai da Psicanálise" [onde o aspecto do orgulho e ambição de prima-dona do Patriarca está bastante pormenorizado, desde a infância, além de suas ambivalências "demasiado humanas"] para se parar de idealizar demais a figura humana por detrás do propositor [ou "impositor"] de ideias.

Bion é outro pensador de envergadura que, a certa altura de sua vivência clínica, deu uma reviravolta em relação à subserviência conceitual que mantinha em relação a Melanie Klein, também sua ex-analista, quando abandona Londres em direção à América, fazendo seus seminários. James Grotstein, em sua exegese muito particular de Bion [e é assim que devem ser as boas exegeses: devem ter a digital daquele que a faz], intitulada "Um Facho de Intensa Escuridão", chama a esta passagem na vida de Wilfred Bion como sua "travessia do Rubicão", aquele ponto de não-retorno a partir do qual Wilfred Bion passou a ser visto como "dissidente", "emocionalmente confuso", "conceitualmente perdido e/ou delirante" pelo staff político-institucional da Senhora Klein e seus pupilos mais devotos. Este é o aspecto nada dignificante das psicanálises enquanto instituições, e deve-se frisá-lo todas as vezes que se pretender apresentar aspectos históricos de suas formações e formulações, bem como das razões de suas dissidências. Os pontos cegos das instituições analíticas são análogos às misérias das famílias disfuncionais, das escolas incapazes de coibir bullying ou dos abusos impetrados sob o olhar leniente da hierarquia clerical. Por esta razão, faço aqui um breve "link" entre aquelas instituições e estas formadoras de "pensadores clínicos" [ou capatazes político-institucionais], deixando sugestões bibliográficas ao leitor interessado em se aprofundar no tema. O culto a Freud, o culto a Jung, o culto a Lacan e outros, são todos "pietismos laicos", caricatos substitutivos à devoção religiosa institucionalizada, com todos os seus frissons e vieses típicos, como os cultos a Stalin, Mao, Fidel Castro ou Hugo Chávez. Infantilidades indisfarçáveis. Como é grande a necessidade de "ser liderado", não é verdade? E a alternativa a isso não é "liderar", como pensariam os simplórios dualistas do "ou, ou" ["ou se lidera, ou se é liderado"], os que emprestam a realidade Darwiniana do "Macho Alfa", vigente entre os mamíferos não-civilizados, ao mundo do pensamento. Estes deveriam dizer: "Ainda somos macacos". O terceiro termo a isso [o tertium non datur] na crueza da defesa de território no mundo animal pré-raciocínio é pensar por si mesmo, suportando o ônus e a autonomia de não querer liderar ninguém, nem se subordinar a alianças político-institucionais como álibi não-assumido ao desamparo profissional, como tentativa de garantia de reserva-de-mercado, e outros motivos flagrantemente pueris, menos confessáveis e menos nobres do que a aludida fidelidade à pesquisa.

Minha própria experiência clínica foi, sobretudo, embasada na Psicologia Analítica de Jung [e, secundariamente, em Winnicott], mas não me furto a fazer essa apreciação inter-escolas, como também o faz James Grotstein, em seus próprios termos, e como também o fazem os pós-junguianos desenvolvimentistas, que consideram os objetos parciais nomeados pelos kleinianos como incluídos na categoria de arquétipos. Claro: são "típicos" e "arcaicos", segundo a própria etimologia do termo. 

Nos parágrafos acima, fica claro para qualquer leitor que nunca fiz parte do séquito de devotos junguianos, nem olhei para Jung como exemplo de "Homem Individuado" (sic). Individuados são Cristo e Buddha, e alguns outros poucos. E olhe lá. "Ser o que se é", ou "tornar-se o que se é" pode justificar qualquer coisa. Quão "individuados" seriam os grandes "tiranos catalisadores", por exemplo? Bem, Jung faria a distinção de que estes seriam "possessos" ["identificados com o arquétipo", portanto "não diferenciados"]. Um serial killer cheio de maneirismos estéticos poderia ser visto como um "possesso criativo", nessa lógica, o que é um paradoxo: há um quantum de estereotipia em toda possessão ou "identificação com o arquétipo". "Ser integrado" ou "inteiro" sempre será menos do que ser "singularmente íntegro". Neste sentido, não adoto nem acolho o conceito de "individuação" por ele ser, paradoxalmente, um termo tão passível de banalização como "uma roupa sob medida ao gosto do freguês, ou da plateia". Não encontro qualquer valor heurístico ou clínico no conceito, a não ser levado ao seu limite, o que o tornaria excepcionalíssimo em termos de realização, muito acima daquele que o cunhou. Como o "O", a Realidade Última, de Bion também paira acima de Bion, independente de como pensem os bionianos. Conceitos-limites são bons para demarcar distâncias, e não para definir consecuções. Permanecem Buddha e Cristo, e alguns poucos [nenhum analista na jogada], como exceções em meio às nossas singularidades relativas, menos íntegras, ainda que "razoavelmente integradas", ou "nem-tão-amputadas-assim". Devemos ser exigentes ao cunhar termos de excelência, ou deles nos abstermos, a não ser de modo "não-descritivo", mas para além-da-possibilidade-de-descrição [essa é a função do conceito-limite]. Da mesma maneira que não se banaliza o termo "Nirvana", por exemplo.

Jung percebeu a relevância de também se considerar a Psique Objetiva [outro nome para o assim-chamado Inconsciente Coletivo] na abordagem do repertório simbólico humano; Psique Objetiva esta que escapava à descrição das tópicas freudianas, e que se patenteava no seguinte fato, atestado em sonhos, estados hipnagógicos ou delírios: "o que se produz na Psique vai além-aquém do que nós produzimos ou reprimimos". O leitor pode fazer a seguinte experiência, em estado de devaneio em relaxamento profundo, a título de sugestão: evoque a imagem de uma bailarina ou dançarina. Haverá um momento em que se perguntará "quem é o autor dessa coreografia", quando se perceber como "espectador da performance da imagem evocada", e não como "coreógrafo". Isso é um dado que não pode ser desprezado. O título do livro de James Grotstein, "Quem é o Sonhador Que Sonha o Sonho: Um Estudo de Presenças Psíquicas" aponta para essa mesma indagação que Jung procurou abordar lá atrás. Eis seu maior mérito. Esse âmbito da psique não é nada desprezível [longe disso], e é a fonte de onde promanam as imagens mais impressivas [mítico-religiosas] nas vidas individuais, bem como nas coletividades. Se dependêssemos estritamente dos insights freudianos, seria justamente esse o âmbito a ser sacrificado de qualquer consideração clínica. 

O fato de que Jung o tenha incluído em sua abordagem não me faz enxergá-lo como "pioneiro" [o conceito de Alaya-Vijnana do Budismo já antecipa essa percepção desde o século IV d. C], nem como "guru" a demonstrar "maestria no manejo deste dado". De forma alguma. Eu teria "n" observações a fazer sobre a leitura que Jung faz das Imagos que elencou como fundamentais, bem como sobre a maneira como operou seu diálogo pessoal e clínico com elas. De qualquer modo, sempre houve quem flagrasse essas imagos em estado hipnagógico, meditativo ou outros [sonhos lúcidos, por exemplo]: índios o fizeram [o leitor procure o método dos índios senói de trabalhar sonhos lúcidos desde a infância; haverá muito material na web a respeito], yogues o fizeram, Silberer percebeu a função auto-explicitadora dos símbolos emergentes em estado de devaneio e de entrada no sono, em relação ao momentum da consciência [enfim: percebeu a função espelhante aos dados da consciência nos símbolos espontaneamente emergentes nesses estados hipnagógicos], August Strindberg registrou seus delírios numa autobiografia da loucura denominada Inferno [em 1897], e por aí vai. Quem primeiro apontou a função complementar dos símbolos espontaneamente emergentes aos dados da consciência vígil foi Alphonse Maeder, assistente de Eugen Bleuler e Jung no Burghölzli, Manicômio Cantonal e Clínica Psiquiátrica da Universidade de Zurique. Jung soube aproveitar o insight do colega, mas devemos dar-lhe o crédito pela percepção, assim como a Silberer se deve a perspectiva [tão desagradável a Freud] de que "os símbolos não escondiam pura e simplesmente dados reprimidos, mas expressavam outra versão [ou leitura] dos dados da consciência como vistos nessa outra clave: uma clave de auto-expressão imagético-hipnagógica".

O que ocorre é que o trato com esta dimensão imaginal implica em considerar outras coisas além do material reprimido freudiano. Alguns chegaram à ousadia de construir uma "Cosmogonia" a partir deste acervo: foi o que fez Emanuel Swedenborg, por exemplo. Rudolf Steiner agiu de modo similar. Quem lê o Liber Novus de Jung [o famigerado Livro Vermelho] vai ver que o grande equívoco de Jung foi ter para si, e passar mais ou menos subliminarmente aos discípulos [segundo a proximidade deles], uma "cosmogonia interiorizada sob a forma de psicocosmogonia", o que está atrelado e subjacente aos seus achados sobre a Psique Objetiva. Uma Cripto-Cosmogonia implicada em sua visão do humano: psiquismo, cultura, propósito. Eis a armadilha na qual caiu Jung e na qual caíram seus discípulos mais devotos ou desavisados: qualquer estudo sério de "cosmogonia comparada" vai demonstrar que Jung se julgou mais preparado para a tarefa do que de fato estava. A isso, Jung chamaria de inflação. E a leitura do Livro Vermelho pode ser um belo e ilustrativo exemplo de inflação psíquica: sua origem, processamento e implicações. 

Séculos sedimentados de pensadores nos âmbitos do Mito, da Tradição e da Religião suprem, suprimem e superam tal pretensão junguiana de mapeamento psicocosmogônico. Eis seu erro, na leitura que dele faço. "Psicocosmogonias" há em abundância [gnósticas, neoplatônicas, budistas, afro-brasileiras, indígenas]: muito mais sólidas, complexas, "completas" [ou, se se preferir: com pretensões de completude], "intrinsecamente coerentes" e "religiosa e psicologicamente eficazes" [sendo a eficácia psicológica um dos critérios junguianos para se validara objetividade do material psíquico] do que o Opus junguiano. Só quem desconhece a riqueza desse material acumulado-comparado pode se embevecer tanto com a psicocosmogonia idiossincrático-megalômana de Jung. No entanto, para a psicanálise, suas observações sobre a Psique Objetiva, a carga mítica de certas Imagos [sua valência sagrado-secreta] e algumas decorrências disso não devem [nem precisam] passar em branco, em decorrência de do efeito colateral do uso ideológico-religioso de muitos adeptos de seu corpus como substitutivo de uma Cosmogonia-em-falta. De qualquer maneira, toda e qualquer ideologia [mesmo as declaradamente laicas, mas imbuídas de fervor - o que implica numa valência mítico-religiosa, mesmo que se trate do "culto à linhagem estatal", como na Coreia do Norte] se presta ao mesmo papel. O corpus junguiano atrai, sim, em grande parte, os que procuram "o eixo invisível de uma religiosidade que possam descobrir [ou verificar] por si mesmos", além-instituição. No entanto, quando se deixam embevecer demais, acabam repetindo esquemas a título de "reiteração da descoberta do Pai Fundador", e caem na mesma opção mimética da qual fugiram um dia, ou que nunca pareceu lhes servir: as tais "religiões sem alma", obsoletas; reproduzem o esquema que flagraram institucionalmente em escala microcósmica e, depois, micro-institucional, em bases eletivo-burocráticas, sem se darem conta da construção da armadilha. Fazem "mais do mesmo", pensando oferecer "algo a mais" ou "diferente". Empurram Jung para a obsolescência, constituindo um "junguianismo de cartilha". Esse é um roteiro bem conhecido e detalhadamente descrito, desde Max Weber. E decorre da "burocratização do Carisma". 

Jung não superou as Cosmogonias existentes ao longo da História, nem "atualizou compensatoriamente" a Weltanschauung [visão de mundo, cosmovisão ou, simplesmente, ideologia] para o perdido homem hodierno (sic), nem preencheu as lacunas ou déficits das Cosmogonias [ou psicocosmogonias] disponíveis: seja no Vedanta, no Yoga de Patanjali, nos Gnosticismos não-basilidianos [os de Valentim, Marcion, ou mesmo o gnosticismo eivado de neoplatonismo aclimatado ao Cristianismo ainda não-proscrito de Clemente de Alexandria e Orígenes; não: ele ficou com Basílides], ou nas subcorrentes vencidas das religiões históricas[como no Misticismo Sufi]. Nada disso. Jung esbarrou em frações de insights e vislumbres de alguns aspectos dessas tradições [a religiosidade alquímica incluída nisso, e relida por Jung segundo sua própria clave] e tomou as frações pelo Todo. Se ele achou "O Fenômeno Humano" de Pierre Teilhard de Chardin um "grande livro", como disse no final da vida, pois bem, ele então já deveria saber que sua Cosmogonia [ou psicocosmogonia] era só um construto provisório, não superior ou mais eficaz do que todo o glossário erigido por Chardin para dar conta de seus próprios insights: noosfera, noogênese, criptoespaço e toda a construção Teilhardiana. Ela também foi erigida a partir de bases e insights da mesma Psique Objetiva, a partir de certas vivências [questões existenciais] e vértices de indagação a este Fundo Objetivo [a tal Psique Objetiva]. Afinal, o Inconsciente espelha e compensa questões postas e/ou vividas pela consciência, sobretudo quando o eu [ou o ego] assume sua vida e sua parte no diálogo. As questões evocadas ou "consteladas na Psique Objetiva" assim o são pela vida e indagações existenciais [que são, também, candentes questões simbólicas] atinentes a esta vida específica; não são "constelações alheias ou alienígenas" à vida egoico-consciente, à vida de fato vivida e indagada, perscrutada. O gênero e nível [premência, voltagem] de indagação definem o padrão da constelação que se lhe espelha [que espelha a indagação], aclara-a e a complementa. Aliás, dito desta forma didática, vê-se tratar-se de uma questão tanto de gênero, quanto de grau. 

Como é que fica, então, acalentar qualquer presunção de verdade constelada acima da voltagem da própria vida em questão? Ou, dito de outro modo, acima da capacidade da própria vida de auto-perscrutar-se? Jung parece ter se cogitado em patamar de indagação existencial particularmente superlativo. Em sua viagem à Índia, Jung evitou os yogues, os "renunciantes". Poderia visitar Ramana Maharshi (1878-1950), "o Sábio de Arunachala", mas então correria o risco de ter um "sábio rival diante de si". Ainda que a sabedoria hindu [no caso, a sabedoria do Advaita Vedanta] pudesse sempre exibir "a mesma verdade arquetípica" [o argumento junguiano para não se encontrar com mestres yogues], o mesmo poderia ser dito de qualquer outro padrão a ser explanado ou encarnado em alguém, se buscássemos o padrão arquetípico de fundo. Inclusive o alquímico que, na época, era o que mais lhe interessava. Colocar-se diante de um eventual interlocutor [um santo yogue, por exemplo] capaz de encarnar níveis de indagação, auto-perscrutação e "constelação de elementos da psique Objetiva" acima de suas próprias possibilidades, poderia ser algo extremamente ameaçador à auto-imagem acalentada por Jung. A Índia lhe deu vertigens metafísicas, mais do que diarreias [ele não poderia digerir a Índia, como mesmo assumiu à discípula Barbara Hannah]. Descobriu, por exemplo, que Buddha não propunha uma filosofia [por isso, no contexto das faculdades que ele visitou, em Benares e Calcutá, por exemplo, estudava-se mais as Filosofias Hindus do que o Budismo], mas desafiava o homem! Jung
o disse nesses exatos termos. 

Poder-se-ia imaginar um currículo de vários anos só a respeito das nuances da dialética Madhyamaka, de Nagarjuna, ou da visão de inconsciente da escola Cittamatra-Yogācāra, de Asaṅga e Vasubandhu, fatos a respeito dos quais Jung não tinha obrigação alguma de saber. No entanto, "flagrado" o desafio que Buddha propunha ao homem", Jung teria perdido, naquela ocasião, uma excelente oportunidade para reavaliar o próprio tamanho.

Deixemos Buddha no Mahaparanirvana e "baixemos a bola", devolvendo-a a Pierre Teilhard de Chardin. Jung não poderia negar que, em bases cristãs revisionistas [sim, pois Teilhard de Chardin foi desses gênios silenciados pelo establishment clerical], o jesuíta francês apresentara uma "Cosmogonia" [e uma psicocosmogonia] tão convincente quanto a dele; ou até mais. E este simples fato, por si só eloquente, já seria mais-do-que-suficiente para "O Mago [ou Sábio] de Küsnatch" (sic) se colocar em perspectiva perante si mesmo ou perante o Si Mesmo [perante ambos, enfim], relativizando-se [e muito], em relação ao próprio tamanho. Mais uma vez. Por isso este parágrafo parece quase cópia do anterior.

As oportunidades de "desconstituir-se do papel arquetípico auto-atribuído [e corroborado pelo séquito embevecido]" enfim passaram, e Jung perdeu a chance de descer do trem do auto-enaltecimento, com todas as suas tristes decorrências: possibilidades de catalisação manipulativa do esforço alheio, fomento de rivalidades pela maior ou menor proximidade da personalidade-mana, etc, etc, etc. Vou apontar só uma das injustiças [mais uma] decorrentes do estilo junguiano de ser: Mysterium Coniunctionis, a derradeira obra de Jung, sua obra magna, foi feita em co-autoria com Marie-Louise von Franz. Sim, a mocinha cresceu, construiu sua réplica da Torre de Bollingen e ninguém questionou ou questiona porque Jung não lhe disse: "Deixe de bobagens ou mimetizações, Marie-Louise!" Talvez porque não lhe conviesse sair do lugar modelar que escolheu ocupar. Na verdade, a intervenção de Jung neste caso foi mais decisiva e em sentido oposto: Marie-Louise lhe apresentou o terreno [perto do seu, em Bollingen] onde pretendia construir uma casa, para apreciação crítica de Jung. Jung considerou o terreno apropriado, mas frisou: "não para uma casa, mas para uma Torre!", como fizera para si. Marie-Louise "aquiesceu" com a vontade do velho mestre, evitando construir para si uma Torre redonda como a dele, pois "não ousaria imitá-lo". Fez uma Torre com base quadrada, da qual o filho de Jung foi o arquiteto, tendo sido todo o projeto acompanhado com interesse pelo pai. Impossível imaginar injunção mais direta. A alegação afetiva de Barbara Hannah, como para tantas coisas mais, em todas as etapas da vida de Jung, era que "a discípula não queria contrariar o mestre já idoso". Bom, não se queria nunca contrariá-lo, seja aos quarenta e poucos anos, aos cinquenta, etc, etc. Na verdade, melhor seria expressa as muitas situações de aquiescência como uma "dificuldade de resistir-lhe à vontade", sendo esta sempre vista como "sábia" e jamais "caprichosa".

Pois bem, a parte III de Mysterium Coniunctionis, bem como uma ajuda decisiva nas partes I e II, foram realizados por Marie-Louise; no entanto, a co-autoria não pôde ser explicitada na edição da obra por uma razão nobilíssima: a ciumeira geral das outras discípulas. Apesar do natural desapontamento com o fato, Marie-Louise anuiu com a omissão de seu nome [entenda-se: foi compelida a ceder], em respeito à saúde do já idoso Jung. Como este deixou as coisas descambarem a este nível de disputa mesquinha, só ele saberia explicar, mas deve ter entrevisto muito bem o caminho que desembocou nisso tudo. Não por acaso, escolhi a imagem citada acima, a respeito da atitude do "velho sábio": perdeu a chance de descer do trem [do auto-enaltecimento]. Muita coisa que "descarrilou" entre os junguianos, segundo a leitura do próprio Jung em vida, foi por ele mesmo acalentada, direta ou indiretamente. Não há inocência no co-patrocínio do culto à personalidade: esta não se deu "à revelia de Jung", mas por conta de muitos de seus maneirismos, artifícios e táticas de sedução, ostensivas ou subliminares. E não, propriamente, por conta de sua especial "inteireza". 

Alguns apreciam a "humanidade demasiado humana de Jung" para justamente validar ainda mais o tal conceito de individuação que eu coloco em cheque, e assim dizerem, de si para Si Mesmos: "isso prova que qualquer um de nós também pode se individuar!" Ora, ora... Saberão estes usar, também, a passagem do Livro Vermelho onde, em sua imaginação ativa [frise-se o ativa, porque o ego tem participação voluntária, pelo menos na pergunta ou solicitação que faz às Imagos consteladas], Jung pede a seu Guia Imaginal, Philemon, o segredo da Magia Negra? Repito: negra. É só conferir lá. E aí, como é que fica? Todos nós pediríamos a mesma coisa? Definitivamente, não. Alguns nunca pediriam por isso.

Jung não é "súmula" nem "consumação do que há para ser revelado", ou "o anunciador do que há de vir" ["o novo", "aquele que já vem" são o mantra auto-incensatório de seu Livro Vermelho]. Nada disso. Jung só esbarrou em alguns cordões bastante longos: uma das maneiras de falar da recuperação de imagens e insights bem antigos, coligidos e agrupados provisoriamente, "em processo" e "fragmentariamente", como tudo que é humano - bastante longe, portanto, de apresentarem "um quadro mais pleno, completo ou 'atual' [em edição 'revista e ampliada'] da Verdade". A construção teilhardiana [um esquema que exigiu a formulação de todo um glossário para conseguir se dar à visão imaginal-conceitual] poderia ser uma réplica a Jung: uma versão alternativa à sua descrição do processo humano em direção a qualquer "individuação" (im)provável ou (im)possível, conforme (não) se consiga lê-la. E Jung teve de admitir tratar-se de "um grande livro": uma grande construção, enfim, e "não-arbitrária". Afinal,tem de existir algum suporte para as construções, para todas, inclusive para as junguianas: mas há graus e grãos de verdade, diversos e não equivalentes, em direção a Algo ainda inapreensível, que uns poucos podem ter vivido [e por isso vislumbrado] melhor e mais do que Jung. 

Em suma, para qualquer um de nós, o que podemos extrair de, aprender com, depreender do tal Fundo Psíquico [Psique Objetiva ou Inconsciente Coletivo] varia de indivíduo pra indivíduo, segundo uma equação que poderíamos simplificar mais ou menos assim: aquilo que se mostra ao alcance da indagação consciente do sujeito + a compensação inconsciente a esta indagação é aquilo que ele pode ver, ser, compreender. Por indagação abranjo todas as questões existenciais que se colocam a alguém ao longo da vida [impasses, desafios, dores, traumas, questões-sem-resposta], não apenas as "perguntas formalmente formuladas". O que Buddha ou Jesus puderam viver, indagar vivencialmente e "constelar para a própria consciência a partir deste Fundo" [ou da Psique Objetiva] não é o mesmo [em gênero e grau] do que eu poderia constelar, por exemplo. No Livro Vermelho, vemos que Jung imagina que Buddha e Jesus "se identificaram com o Numinoso que viram" [o Mesmo Fundo que a ele se apresentou] e ele, em vantagem aos dois, não o fez. Jung fraudou-se, mais uma vez, nessa cripto-avaliação, mais ou menos assumida segundo o grau de proximidade de seu interlocutor, seguidor ou devoto. Nos Livros Negros, que servem de esboços ao Livro Vermelho, e que são comentados por Sonu Shamdasani, encontramos dúzias desses disparates. 

Frisemos, porém, que ninguém precisa se tornar "devoto junguiano" ou "neognóstico nos moldes junguianos" para apreciar analiticamente o alcance de alguns de seus insights. Analiticamente, e não cripto-religiosamente.

Repito o mantra, para os que imaginam que "critico os Pais Fundadores (sic) por agradar-me a ocupação de sua posição" ["talvez, ele quisesse ser um Pai Fundador"...]: Não proponho "um culto em substituição a outro", dentro das escolas analíticas, mas a eliminação de todo e qualquer laivo de culto. É enormemente pueril e regressivo encontrarmos tais cultos à personalidade justamente neste âmbito: o analítico. É disparatado e risível que isso se dê.

Feitas todas as importantes considerações e ressalvas acima, são algumas as razões pelas quais eu não me furto ao diálogo inter-escolas analíticas. A primeira delas é que, nas últimas décadas [com a reabilitação, sobretudo, de Sándor Ferenczi, por psicanalistas mais recentes], houve uma revalorização do Intersubjetivo e do Interpessoal, além do intrasubjetivo: o caldeirão de pulsões agressivo-eróticas apontados por Freud e Klein. Não que Klein desconhecesse o intersubjetivo, mas sua abordagem [seu approach] sobreleva, indubitavelmente, a determinação da pulsão sobre a realidade, como fez Freud quando pôs em descrédito [ou reviu] a teoria da sedução infantil parental ocorrida no relato de tantos pacientes [hoje vemos o número de casos de abusos de todo o tipo nas famílias: de abusos sexuais a abusos físicos, morais, emocionais, o que não podemos fingir desconhecer]. A compreensão do campo transferencial [transferência-contratransferência] foi, assim, enriquecida pela psicanálise mais recente, com essa reabilitação de Ferenczi e a assunção do Intersubjetivo e Interpessoal na análise [algo da Psique Objetiva observada por Jung "se dá neste espaço", por mais curioso que possa parecer]. 

Essa compreensão das últimas décadas, tendo Ferenczi como espécie de "sentinela avançado", "pensador avant-garde", alcança as reflexões de Heinz Kohut sobre Self e Self-Objetos e suas implicações no setting analítico e no campo transferencial que ali se instaura, os conceitos de Antonino Ferro sobre o sonho no estado de vigília [subjacente a ele e permeando-o], constituindo uma narrativa a dois no setting analítico [sim, havendo uma porosidade no sonhar entre analisando e analista!], a postulação de um Terceiro Sujeito Analítico por parte de Thomas Ogden, postulação esta que apresenta/propõe a situação clínica como um locus onde os pré-conscientes de ambos os envolvidos, analista e analisando, acabam por constituir um "terceiro intersubjetivo" que dá a pauta/partitura ao diálogo de ambos [coisa bastante junguiana, esta também]. Pois bem, a soma desses construtos [e sua linha-de-continuidade] constituem a primeira razão para eu me dispor a tal diálogo, neste curto ensaio.

A segunda razão, atrelada à primeira, é a seguinte: a assunção do Intersubjetivo e Interpessoal no campo transferencial também abriu maior campo para a escuta do que de "real" [factual e/ou "psiquicamente real"] é atualizado na transferência, desde o ambiente primário e seus percalços. Ou seja: a psicanálise atual faz menos vista grossa ao peso dos fatores ambientais [todos os citados acima] na constituição do sujeito. Leva-se mais em conta a maternagem real e suas vicissitudes, bem como as do ambiente primário em geral, como Winnicott [pediatra que era, além de psicanalista] já sabia desde lá atrás, sendo pouco levado a sério pelos kleinianos mais devotos-ortodoxos. E mais ainda: a abertura para o Intersubjetivo dá espaço para que se pense o Intergeracional, o peso das disfunções familiares para a constituição do self que se constitui no seio dessa herança familiar. Essa assunção relativamente recente dos pontos cegos da teoria freudiana clássica permite, por exemplo, a autores como Marie Balmary "psicanalisarem a psicanálise", mostrando as faltas de Freud em ver as faltas paternas, e apresentando um complexo de Laio subjacente e anterior à evocação de um complexo de Édipo no infante. Isso seria impensável algumas década antes [o livro de Balmary é de 1982]. Balmary é um exemplo clássico de pensamento Intergeracional no seio do pensamento "psicanalítico crítico". [Crítico de si mesmo, enquanto sistema/esquema conceitual].

A terceira razão é o enriquecimento do vocabulário psicanalítico em relação aos objetos internos, que os analistas junguianos consideram tendo o "tônus" de arquétipos, no que James Grotstein concorda totalmente, dizendo que a apreensão desse tônus foi melhor feita pelos junguianos, porque mais animizada, menos mecanicista e mais de acordo com o status ontológico de "presenças psíquicas", tais como vivenciadas pelos próprios analisandos [bem como pelos analistas mais responsivos/receptivos ao diálogo com tais pacientes]. Se Ferenczi já havia nomeado uma série dessas "presenças" [ainda que sem chamá-las por tal nome], por ele catalogadas como revenants, monumentos históricos, extirpações e transplantes, enxertos, corpos estranhos introjetados, intromissões, intropressões e alienações, estruturas parasitárias, vontades estranhas, forças heterogêneas e não autóctones, impingidas ao/introjetadas pelo paciente desde lá atrás, constituindo elementos dispersos de suas vicissitudes primárias [a "identificação com o agressor", mecanismo de defesa descrito por Anna Freud, seria um dentre todos esses processos de identificação e introjeção], temos uma expansão dessa nomeação/catalogação por parte dos autores mais atentos e arrojados de hoje. Friso aqui que, assim como o Édipo é uma descoberta legítima de Freud [e um arquétipo, na visão de Jung e na minha própria, sendo o único ao qual Freud soube prestar atenção e dar o devido valor], o "bebê sábio" também é outra legítima descoberta de "imago" ou "arquétipo" feita por Sándor Ferenczi, assim como a "máquina de influência" é um legítimo arquétipo descrito por Viktor Tausk, arquétipo este que pode ser amplamente conferido na fenomenologia simbólica de pacientes paranoides [vide "O Inferno" de August Strindberg para citarmos um só exemplo]. De forma análoga, podemos falar do "sabotador interno" de Ronald Fairbairn, podemos aludir aos objetos aleatório, mnêmico e transformacional descritos/propostos por Christopher Bollas, podemos nos referir ao "objeto alienígena" como proposto por Ronald Britton, na "mãe terrível arquetípica" descrita por Jung e assumida por James Grotstein como sendo um "Noumen"/numen presente no campo analítico. Isso sem falar em Cristo e Jó, já bem trabalhados pelos junguianos como arquétipos, além de Medéia, Narciso, Cassandra, Prometeu, Tântalo, Sísifo, Íxion, Pélops, Hefesto, Deméter, Perséfone, Ariadne, Perseu, Hermes, Psicopompos, Personalidades-Mana, os "refúgios psíquicos" descritos por John Steiner [que fazem eco à "religião da Cripta" descrita por Ronald Fairbairn, e que eu chamo de "cápsula do self"/ "self encapsulado", reiterando os insights de Heinz Kohut, embora seguindo um caminho próprio], além de toda a plêiade de objetos internos a serem considerados segundo a proposição clínica de James Grotstein, quais sejam: "objetos mortos" [a mãe morta de André Green sendo um de seus avatares], "objetos-efígies", "objetos-desafio", "objetos danificados", "objetos sagrados", "objetos persecutórios", "objetos bizarros e bizarros infinitos", "objetos em quarentena", "objetos enganadores ou trapaceiros", "objeto-Nêmesis", "objeto-Cassandra", "objeto-cicatriz", "monstros", "esfinge", "quimeras", "objeto-mago", dentre outros. Essa soma de fatores cumulativos em linha de continuidade [ou seja: a perspectiva clínico-conceitual que levou à necessidade de engendrar tais construtos, para fazer frente ás demandas do pensamento clínico] me sugere que a psicanálise esteja mais apta a entender o arquetípico, pelo menos em seu "tônus", sem o viés do anátema. Sim, entender o arquetípico pelo que ele simplesmente é, até etimologicamente: comum a muitos ["típico", "coletivo"] e "primal" ["arcaico", "presente desde a origem de nossa constituição"]. É este o veio da psicanálise com o qual dialogo. Entre os pós-junguianos, meu interlocutor conceitual preferido é Nathan Schwartz-Salant, com cuja obra James Grotstein também dialoga.

Uma quarta razão seria um corolário dessas três primeiras, sua consequência inevitável: a psicanálise dessas últimas décadas, retomando Ferenczi e seguindo adiante, abre muitas interfaces para um estudo crítico da cultura muito-para-além-do-Édipo: uma interface com as religiões, com os arquétipos religiosos e com a ontologia, platônica e kantiana. Bion se permite fazer essa interface [até citando, en passant, Pierre Teilhad de Chardin em seu "Cogitations"], Isaias Melsohn dialoga com a escola neokantiana de Ernst Cassirer e Susanne Langer [o que inclui uma "Filosofia da Arte"] para apreender novas variáveis de tempo-espaço, sentimento-e-forma no campo transferencial, além de sua breve interlocução com Grotstein [que estranhou ele não incluir as "formas ideais platônicas" em sua reflexão]. Reitero: essa soma de fatores e sua linha-de-continuidade[-e-contiguidade] mostra-nos o quanto a psicanálise mais arrojada inclui os interesses interdisciplinares que pareceram "excessivos" à geração de Freud e seus descendentes diretos [a proscrição de Silberer, já citado acima, é exemplo paradigmático disso]. Assim sendo, esta psicanálise está mais próxima do campo de interesses junguiano, muito para além da biografia de Jung, que não me deslumbra, nem me faz "virar os olhos". Este campo inclui mitologia comparada, religião comparada, história da religiões [ou das crenças], gnosticismo cristão, Cristo como arquétipo [como o trata, por exemplo, James Grotstein], roçando a Filosofia e Ontologia. Considero necessário um estudo que leve em conta estes vetores e vértices para apreender, suficientemente, as questões primeiras que são o tema deste ensaio. 

O que importa nesta apresentação preliminar é que guardemos a seguinte questão como ponto-chave deste trabalho: a noção básica de que a culpa "que mais pesa" é a ontológica: "a de absoluta falta de testemunha para o visto". E não a de "dilemas quanto ao que faremos com relação a nossas pulsões erótico-agressivas, diante dos interditos culturais apresentados". Essa segunda questão é considerada menos crucial e adventícia, para os propósitos deste ensaio, sem lhe negarmos a importância. Mas sua existência depende de uma relativa resolução da questão primeira: a do ferimento narcísico primal. 

Este texto é dedicado a todos os que saibam o que fazer com alguma coisa que encontrem escrita por aqui, mantendo, no entanto, sua própria independência reflexiva. É um discurso menor, no sentido que Gilles Deleuze dá ao termo. E assim precisa se conservar. 

Um ensaio é só um ensaio.


Segredo e Proscrição: A Cápsula do Medo








Muitas vezes é difícil para uma criança expressar seus pesadelos para os pais. Há inúmeras razões para isso. Ela pode ter medo dos pais, tanto quanto de seu pesadelo. Ela pode sonhar com um tema que nenhum dos pais esteja disposto a abordar. Por exemplo: que o pai torturava a criança num porão. Outro: que o pastor da igreja, transfigurado num demônio barbudo, batizava pessoas no sangue de cabeças decepadas por ele mesmo, no convés de um navio. Uma menina de oito anos teve esse sonho. Sua mãe crente não tinha condições de ouvi-lo, e ela sabia disso. Sonhos que "difamam" os pais não costumam ser bem aceitos, nem ouvidos com naturalidade. Por exemplo, o sonho em que o pai incendeia a casa, em que encarcera mãe e filhos, em que se transforma num monstro, etc. Sonho em que a mãe vira bruxa, em que fica louca e expulsa os outros de casa, em que usa uma faca de cozinha para ameaçar os filhos, em que aparece como uma "impostora com olhos de outra cor, vermelhos, cheios de sangue", por exemplo. Imagens religiosas sombrias, também não costumam ser facilmente assimiláveis pelos pais, ainda mais se "aviltam" suas crenças.

Uma criança sonhou que "fazia a água pegar fogo, estendendo a mão sobre a água e orando". Para ela, isso era um indicativo de ser "filha do demônio". Talvez sua mãe achasse algo parecido, ou temesse ouvir a "revelação" da imagem onírica. Outra "sonhou que acordava e que percorria o corredor de sua casa trepidando dentro de si mesma" [ela disse, "tremendo dentro de mim mesma"], e "que ao tentar acordar os pais, um trovão saiu no lugar de sua voz, e que eles se abraçaram com medo dela". [Isso é muitíssimo diferente de "temer a cena primária" conforme proposta por Freud, a cena da relação sexual dos pais; ou de "interrompê-la"; ou "temer vê-la e interrompê-la"...; ou mesmo "temer a cena por desejar e invejar estar ali, por se ver excluído da mesma"]. E que, "ao se dirigir ao espelho do banheiro, seu rosto estava se transfigurando, aquele rosto-voz que tinha causado medo aos pais". É como se ela tivesse se transformado num "deus dos raios". Pois bem, quantos pais saberiam administrar um sonho dessa natureza, narrado por uma criança de sete anos? E imaginem como tais vivências podem ser aflitivas para essa gente miúda... 

Quando uma criança se dirige aos pais, no meio da noite, dizendo algo assim: "Tem alguém no meu quarto, uma velha na beira da minha cama", e ouve uma resposta do tipo: "Não é nada, é um pesadelo, vá dormir..." Bem..., se os pais agem assim, sem que ninguém se disponha a entrar no quarto e dialogar /interagir com o medo da criança, perguntando, por exemplo, "Ela ainda continua aqui?"; "O que a velha está fazendo agora?"; "O que ela quer?"; "Ela gostou da minha entrada?"; "Ela ficou com raiva ou com medo de mim?"; "Vamos ver o que a gente pode fazer para ela ir embora"; etc., etc. Bem, se ninguém se dispõe a entrar no "território do perigo" para a criança, ela, inevitavelmente, vai chegar a uma de duas conclusões: 1) Meus pais não me levam a sério; qualquer coisa que me assuste é "nada para eles"; 2) Meus pais "têm medo do meu medo", ou daquilo que me assusta. Logo, são incapazes de cuidar de mim. [Às vezes o corolário é: "terei de cuidar deles;" ou "terei de poupá-los, cuidando de mim mesma"]. Ambas as alternativas criam um isolamento da criança em relação aos pais, e um encolhimento em relação ao mundo social. Criam um "eu secreto" que não pode ser comunicado aos outros, uma "identidade encapsulada", encolhida. Tudo isso acaba por formatar uma noção clara e inequívoca, para a criança, de que existem coisas das quais não se pode falar, que são indizíveis, impronunciáveis, não compartilháveis. E as brumas e a incomunicabilidade vão se ampliando em torno dela...

Grandes escritores costumam apresentar questões humanas decisivas, nevrálgicas, em seus romances. Há uma passagem na obra de Henry James, escritor americano, em seu romance "A Volta do Parafuso",onde uma criança acorda, vê um fantasma no quarto e, aterrorizada, acorda a governanta para que a proteja; mas a governanta fica tão apavorada quanto ela, e não pode confortá-la. Uma sensação de impotência se apossa de ambas, e isso cria "solidão" para a criança. Criança e governanta podem se sentir, ambas, sós diante do perigo. No caso, pelo menos, se a governanta está no quarto da criança, essa presença minimiza o isolamento: o terror é compartilhado. Quando ela é deixada só, e o tema não é trabalhado com os pais ou adultos responsáveis, sua solidão é absoluta, e sem testemunhas [!]. Porque quem ouve e não confere, se recusa a olhar, ou a ouvir tudo. E esse "desvio calculado do olhar", pesa à criança, empurra-a para a solidão. A somatória de situações como essa descrita, mostrará à criança o quanto ela pode ou não compartilhar: medo, raiva, mágoa, dor, abandono. E eu digo "comunicar", com palavras, e não atirando objetos ao chão, esperneando, chorando sozinha, perdendo o apetite, adquirindo alergias. Comunicar. A quantidade de indizíveis e incomunicáveis que a criança constata na vida-de-relação, sobretudo em casa, em família, vai acabar por constituir a medida de seu isolamento, de sua vida secreta, de seus monólogos e diálogos interiores, que ninguém ouve ou vê. Só os personagens de seus temores e de seus pesadelos. Só Deus [às vezes temido, visto como um "Deus Mau"], ou o demônio. A quantidade de indizíveis determinará a medida do encapsulamento do "eu" dessa criança, do encapsulamento do seu self.

Uma falsa solução para isso seria, por exemplo, querer se desviar do foco daquilo que preocupa a criança, procurando substituí-lo por algo mais agradável, do tipo: "Olha que dia bonito lá fora! Esqueça isso, vamos jogar bola!". Esse tipo de esquiva é acuradamente percebida pela criança como uma negação: "não podemos falar disso".É o mesmo que dizer: "não gosto do seu medo, ou da sua raiva, ou da sua mágoa", ou "não sei lidar com tudo isso". Portanto, "quero que você fique alegre, que não tenha medo ou raiva de ninguém, nem de seu irmão ou de mim, que daí seremos amigos!" Eis a mensagem subliminar. Se uma criança experimenta medo, é de medo que se deve falar, e não de "dia ensolarado". O mesmo em relação a brigas na escola, rivais, "inimigos", "ódio do irmão", o que for. Só assim, ela enxergará a família em seu papel de sustentáculo às sua perguntas e descobertas. Do contrário, fará suas perguntas [e chegará às suas conclusões] em segredo, com um fundo sentimento de "anonimato". 

Dado curioso: nunca vi uma mãe perguntar a um menino coisas que o "faro masculino" capta melhor. Por exemplo, as simples perguntas: "Quantos inimigos você tem na escola, meu filho?" "Como eles se tornaram seus inimigos?" Já vi muitas crianças contarem nos dedos o número de seus inimigos [e não cabiam nas duas mãos!], comentarem sobre perseguições e chantagens, e até revelarem "gangues infantis" nas escolas. São dados dessa natureza que podem "passar batido" à interrogação de mãe ou pai, e determinarem, por exemplo, o medo/repulsa que uma criança tem do ambiente escolar; porque participa de tantas brigas, porque bate ou apanha tanto... Não ocorre a muitos pais que crianças tenham "inimigos". E muitas vezes os têm: outras crianças chantagistas, perseguidores contumazes, medo do mais velho da turma, que é um repetente, quatro anos mais velho do que ela, etc., etc. Há muitas crianças "tímidas" que se descobre, facilmente, que estão sendo "intimidadas". E saber disso faz uma diferença enorme. Muitas vezes, o substrato para uma série de medos e pesadelos, são ambientes intimidadores,"imprevisíveis" ou obscuros/confusos.

Certa vez, em posto de saúde da periferia, uma menina de sete anos saiu da sessão falando para a mãe algo que muito a impressionou: "Mãe, minha vida vai mudar agora". Isso ocorreu porque toquei em medos nevrálgicos da criança, sem delongas. Quando o pai compareceu, explicitei pra ele a questão com a criança. Ele a ouvia pouco e ouvia mal. Com isso, o pai aprendeu a ir abrindo mão do jogo de esquivas e a prestar mais atenção nos sentimentos reais de sua filha, ao invés de se distrair deles, pretendendo distraí-la. 













As Bases e a Moldura da Proscrição: Proposições Iniciais








A quantidade de indizíveis determinará a medida do encapsulamento do "eu" dessa criança, do encapsulamento do seu self.

Eu disse isso na primeira postagem deste blog. Isso deve ser guardado. Por "self" eu não entendo aqui [nem proponho] nenhum "termo esotérico": tão somente um sentimento de "eu-mesmo" que subjaz à fachada que o sujeito [no caso, a criança] pode exibir [e, portanto, "escolhe-sem-escolha" exibir] ao ambiente. As postagens serão construídas de forma a que não se precise de nenhum "glossário", nem que a pessoa se sinta tendo de ser iniciada ou especialista em qualquer coisa correlata para ir entendendo as postagens. A gradualidade da apresentação dos termos ao longo das postagens garantirá o entendimento de quem, porventura, descubra os ganhos em se empenhar.

Qualquer leitor que olhe o título [e subtítulo] deste blog verá o termo "proscrição" em destaque. A proscrição é a grande questão da primeira infância, que pode acompanhar o sujeito por toda a vida. Por muitas razões. A primeira delas: a pessoa, muitas vezes, não encontra ambiente [família, escola, igreja] onde possa colocar [ou ver esclarecidas] suas questões mais urgentes. Isso se dá com adultos, também. Mas aqui tratamos, principalmente, da gênese desse processo de "proscrição". A proscrição é um processo. Isso é importantíssimo constatar. Suas raízes estão nas "brechas e lacunas do olhar e da aceitação do coletivo [sociedade, família, "repertório cultural"] a questões individuais". Então, a primeira situação a ser destacada, no tocante ao Olhar Coletivo [ou Grupal-Imediato: lar, escola, igreja] é esta: a impossibilidade de ver [o repertório cultural não fornece bagagem suficiente para decodificar a situação daquele sujeito]. Pensemos, por exemplo, no "Homem Elefante", personagem do filme de David Lynch de 1980 ["The Elephant Man"]. Temos um tipo de doença ou condição "de exceção", para a qual o "olhar cultural" é absolutamente despreparado. Além do que [também pelo despreparo, mas não só], tal olhar apresenta "má vontade" em relação ao "portador da diferença". Estigma quer dizer marca e ferida. O estigmatizado é o marcado [e ferido] também pelo olhar do ambiente.

Então, essa é a primeira situação que faço questão de propor aqui: a possível lacuna no "repertório cultural" para olhar e acolher "o portador da diferença". O sujeito que traz uma "condição nova/ outra" ao grupo. Essa "condição outra" é, forçosamente, um questionamento à "condição-mesma-dos-outros": que é a "condição média". Mesmo considerando-se as singularidades de cada qual. O quantum de singularidade do proscrito é algo que não foi assimilado e aceito pelo ambiente [casa, escola, igreja, espaço público ou privado].

Se "o portador da diferença" é, forçosamente, objeto de questionamento para o ambiente, ele o será ainda mais para si mesmo. Isso é o básico. E o mais importante: por falta de cúmplices [o que significa dizer, por falta de um "olhar empático"], este "portador da diferença" fará seu questionamento em solidão. Fará perguntas angustiosas [porque isoladas] de si para si. Essa é a gênese da proscrição e do ambiente interno que ela engendra para o proscrito: um ambiente de perguntas solitárias. Essas perguntas solitárias, invariavelmente, encaminham o sujeito para solilóquios-não-compartilhados-em-progressão. Além disso, como ele cria "elementos internos de observação de si mesmo" [um meta-observador que se avalia, tenta aconselhá-lo e/ ou o recrimina, pune, etc.: "vozes internalizadas", enfim], esse sujeito "se divide". Esse portador da diferença deixa de se sentir "inteiro". Deixa de possuir aquele "sentimento de inteireza/ integridade" que o deixaria "confortável em si mesmo". Não cresce incorporado e integrado. Cresce "cindido". Suas cisões-em-série partem da simples de situação de que, agora, é um angustioso observador de sua condição anômala, um especulador solitário sobre tal condição, sujeito e objeto [um objeto anômalo e solitário, abandonado, diga-se de passagem] para si mesmo. Sujeito solitário com uma indagação existencial não-compartilhável e objeto abandonado pelo ambiente, tudo isso em si mesmo, em seu próprio ambiente interno. Esse ambiente se torna cindido, angustioso, sobrecarregado de solidão, "fantasmático" e sombrio. E essas perguntas, ao contrário da ênfase freudiana, não se referem tão especifica e prioritariamente sobre a diferença sexual que nos marca. Mas sobre outras diferenças. Sobretudo sobre diferenças mais bizarras.

Eu escolhi o exemplo singelo e emblemático do "Homem Elefante", pó ser um filme popular. E também por patentear uma condição óbvia de exceção. Disse que uma das primeiras razões clamorosas para a existência da proscrição [e, consequentemente, do "proscrito"] seria a "falta de repertório cultural" para se lidar com sua situação. Pois bem. Mas examinemos um pouco mais de perto tal situação...

"Há brechas e lacunas no olhar e na aceitação do coletivo quanto ao sujeito", foi o que eu disse logo acima. Isso o empurra para um isolamento e um peculiaríssimo solilóquio angustioso [sem testemunhas ou cúmplices] sobre sua própria condição. Eventualmente, os de melhor sorte acharão algum interlocutor, quando em estágio já avançado de isolamento. Mais tarde, de forma não muito leal, o coletivo cobrará desse sujeito o fato "dele não aceitar a si mesmo". Sim: ele deveria, antes de tudo, se aceitar. Os slogans pueris de nossos tempos dirão que "ele precisaria se amar para ser amado", e outras balelas que tais. Mas vemos aqui, singelamente, os traços gerais [e um preliminar mapeamento] de sua "condição de base": ambiente solitário, perguntas-sem-testemunhas sobre a própria condição, angústia, "sombras". O que significa dizer: um ambiente interno "ensombrado/ assombrado", saturado de medo, dúvida, não-clareza. Aliás, a única e basilar clareza do sujeito é saber que é "portador de uma diferença" e que por causa dela é "não-aceito". Isso lhe está patente, desde o início. Os olhos dos outros o denunciam. O olhar do outro-mesmo-médio, que não precisou ser empurrado à solidão de ter de decifrar-se a si mesmo, tanto, tão solitariamente e tão cedo, não o compreende e aponta-lhe o dedo acusatório. Os proscritos [e os feridos narcísicos] têm todos, sem exceção [embora em graus variados], alguns elementos desse rol de questões existenciais em seu desenvolvimento precoce. Todos, repito. Sem exceção. Vamos enumerar, na tentativa de sermos didáticos, alguns elementos-chave presentes, um ou outro, em algum grau, na trajetória e constituição caracterológica desses indivíduos. Como a proposta é falar de "cada um deles" e "a cada um deles", os itens estão elencados no singular [cada um se achará "aqui" ou "acolá", em alguns dos itens]:

1) Ele se sabe portador de uma diferença.

2) É "não-aceito" por causa disso [prefiro dizer "é não-aceito" do que "não é aceito"; a "coloração da expressão" é mais forte].

3) O Olhar Coletivo denunciou para ele essa diferença.

4) Por causa disso, ele desenvolveu um mundo peculiar [e inimaginável para a condição coletiva média, frise-se] de solilóquios precoces, perguntas angustiosas e sem cúmplices [sem testemunhas] sobre sua própria condição.

5) Essas perguntas evoluem para "perguntas existenciais precoces" [sobre a razão da diferença, justiça/injustiça da vida, Deus e Castigo e coisas que tais], para uma "auto-observação angustiosa e cindida" e para uma "hipervigilância em relação ao ambiente" ["quando serei atacado?"; "serei ridicularizado mais uma vez?", "o que estão falando ou pensando de mim?", etc e tal].

6) Essa hipervigilância faz com que o sujeito aprenda, cedo [por razões defensivas] a captar nano-impressões do ambiente em relação à sua identidade e à segurança dele [dele=sujeito], a partir da aguda percepção da diferença do Olhar Coletivo sobre ele. Torna-se, então, um sujeito "sensível" a essas nano-percepções e acuradamente ciente de elementos ambientais, sobretudo os invasivos e evasivos.

7) Essa acurácia lhe é peculiar: um elemento a mais a se somar à sua diferença de origem.

8) Essa acurácia se estende a todos os elementos de esquiva, medo, evitação ambiental em relação às suas questões [não só condenação ou proscrição]; o sujeito "lê" no Olhar do Outro: "Eu temeria estar na sua situação, e desvio o olhar de você". A evasão/ evitação é flagrada, além de invasão. [Como dito no item 6)].

9) Por ser um "especialista em desespero", o ferido-proscrito enxerga, capta, infere o medo e o desespero do outro; mesmo quando este desespero é disfarçado em evitação, desdém, pouco caso aparente; o proscrito detecta a fuga, enfim.

10) O proscrito, dado seu recolhimento e solidão precoces, e o gênero de questão sobre si que é levado a fazer-se [e sobre a vida] tem uma introversão bastante distinta da Coletividade Média, e uma vivência onírica [e oniroide] mais dilatada(s): sonha mais, lembra-se mais dos seus sonhos, seus sonhos são mais vívidos e "peculiares": bizarros, assustadores, surrealistas, persecutórios, "mágicos", "místicos", aterradores, etc.

11) Por essas mesmas variáveis de introversão/atenção e focalização no mundo interno, o proscrito se lembra mais de pesadelos e é mais suscetível a estar ciente de experiências hipnagógicas [aquelas que se dão entre o sono e a vigília].

12) Assim sendo, podemos dizer que as condições peculiares aos místicos, médiuns e xamãs [nas sociedades ditas primitivas] costumam se desdobrar a partir dessa moldura-de-proscrição.

13) Sim; estou afirmando que os elementos de atenção e ciência das nano-percepções ambientais + sutilezas do mundo interno e da Evitação Coletiva [uma das Faces da Sombra Coletiva] faz do proscrito um intérprete potencial dessa mesma Sombra Coletiva [tudo o que escapa à Cultura], nos moldes clássicos do místico, do médium, do xamã, e também do "outsider contracultural", do crítico da cultura [aquele que se "insere pelo avesso"], e do "porta-voz do Excêntrico e do Oculto".

14) Como é marcado pela imagem, mas também pela "marca e ferida decorrentes do Olhar Coletivo" [Olhar do Outro Externo], o ferido-proscrito desenvolve o relacionamento em termos Numinosos [sagrados] com o Outro-em-Si-Mesmo, sentido como Outro-Dentro-de-Si [Deus, Demônio, ambos e outras variantes intermediárias de Presenças Internas: os Numina, enfim]; por isso, é dado a insights ou "desvios percepcionais místico-religiosos", segundo a ênfase cultural e o contexto observacional.

15) Essa condição de ter a auto-imagem e identidade marcadas pelo Olhar Invasivo, Rejeitador e Reprovador [tudo ao mesmo tempo], somada aos tais relacionamentos internos maximizados e cindidos [já estando os externos comprometidos, por "isolamento do sujeito complementar ao repúdio-evitação dos outros"], faz com que a constelação interna do proscrito envolva muito mais do que a situação típica proposta no Mito de Narciso [ter de conhecer-se a fundo, sob pena de ficar fixado em si mesmo]. Por exemplo, a situação de distância irremediável do Objeto-Mundo sempre a lhe escapar da mão e da voz [a distância do Outro, e de não-poder alcançar seus objetivos em comunidade] também lhe marca fundamente a identidade. E essa situação, além de figurada no mito de Narciso, também pode ser melhor explanada em Tântalo. A situação do proscrito inclui o drama de Tântalo. É, assim, Narcísico-Tantálica, ou "tantalizante".

16) A situação das cisões internas ["pedaços de eu observando e zelando por outros pedaços secretos e ocultos do eu"] também o coloca na "condição do pulverizado por Deus" [pelo "Olho Vígil de Dentro"]. Essa seria, por exemplo, a situação prometeica de ser pulverizado [=bicado pela águia, ad aeternum] por trazer um "fogo solitário à terra dos homens comuns".

17) Seria essa, também, a situação dos Maruts pulverizados por Indra desde o útero [da deusa Diti], por "rivalidade fálica a priori" por uma "diferença/superioridade suposta" [algo mais sério e anterior ao Édipo Clássico, que inclui o Édipo e lhe subjaz; isso seria algo como uma "complexo de Laio anterior ao Édipo, constituindo-o, por pulverização-castração desde o ventre; portanto, desde antes do nascimento"].

18) Seria, ainda, a situação de Jó sendo pulverizado pelo conluio Jeová-Satanás, segundo os moldes da narrativa Antigo-Testamentária [ou verotestamentária, como preferirem].

19) Assim, as condições de Tântalo, Prometeu, Jó, dos Maruts [entre outras mais, como também a "Justiça Trágica, entendida como Nêmesis", que ainda veremos...] fazem parte da "condição do proscrito", tanto quanto o mitologema de Narciso.

20) Para fazer justiça à Tragédia Pessoal do proscrito temos, então, de enxergar toda a constelação de seus impasses "em bloco": precisamos ver o quadro todo. Só assim poderemos, efetivamente, ajudá-lo.

21) Isso porque, este quadro todo coloca todo proscrito numa situação ímpar que é, ao mesmo tempo, de isolamento social, "solidão cognitiva" ["os outros não sabem o que eu penso, nem veem o que eu vejo"], culminando numa precoce e funda "solidão ontológica" ["o mundo nada sabe de mim, nem saberá"].

O Outsider ou Proscrito mais sério ["o ferido narcísico desde a origem"] apresentará muitos dos traços desse quadro que apresentei, senão todo ele. Ocorre que há pessoas que gravam "feridas narcísicas" numa trajetória Edípica de não-proscrição, mas de exclusão edipiana ["na intimidade de nós dois, papai e mamãe, você esta excluído, meu caro"; o que é diferente de ser privado do olhar-espelho de qualquer um dos dois!] São feridas à identidade menos precoces e menos maciças, num quadro de desenvolvimento "comum", edipiano. Essas serão pessoas com traços narcísicos, em meio a um perfil de neurose média ["Edípica": rivalidade, disputa, competição social e ânsia pulsional; não "encapsulamento do self"]. O "encapsulamento do self" é que define o proscrito e o ferido narcísico de fato, segundo minha proposição a ser extensamente desenvolvida. Esses últimos não são Outsiders. E não conhecem a proscrição in totum: maciça e massiva. Para tais sujeitos, alguns elementos desse quadro parecerão familiares; outros parecerão sui generis. Levemente "captáveis" [ou "passíveis de serem intuídos"].

Tendo falado do Homem Elefante como emblema para início de discussão, lembro a todos o seguinte: pesquisas feitas em escolas públicas demonstram que os principais preconceitos das crianças e de seus pais recaem sobre "portadores da diferença" básicos: deficientes físicos e mentais. Basta um lábio leporino, o fato de ser manco, corcunda, vesgo, anão, usar óculos de grau muito forte muito cedo, ser surdo, ter um déficit cognitivo moderado, ser magro-raquítico, obeso [sem falar, óbvio, em condições como paralisia cerebral, Síndrome de Down e outras...] para que pais e crianças prefiram "não ter aquele diferente por perto". Por isso falo também de má vontade, e não só de "insuficiência do repertório cultural". Aqui, estamos no "raciocínio-sem-raciocínio": no sentimento atávico dos mamíferos de "aceitarem os sãos por perto", e proscreverem os "menos sadios". Outras variáveis são: local de origem [variável étnico-territorial: "eu vim do interior, eu vim da Bahia, eu vim do litoral"], onde mora [status dentro da comunidade próxima; "eu venho da favela", "eu venho do cortiço" ou, ao contrário, "só ele vem da rua dos bacanas"], idade [muito mais novo ou mais velho do que a média da classe]. As variáveis de raça e gênero [cor da pele e comportamento afetivo-social] vêm depois desses todos, no rol da prioridade dos preconceitos. Sobretudo quando pensamos em crianças e seus pais. [Confiram no Google pesquisas sobre preconceitos em escolas públicas].

Assim sendo, podemos entender que, em nosso "raciocínio de mamíferos" [aparentemente escravos da Lei Darwiniana da Evolução do Mais Forte], ainda se tente validar atos como o incêndio de um índio que dormia [ato impetrado por adolescentes de classe média alta] como sendo uma "brincadeira" para se assustar um "mendigo" [os pais dos garotos tentaram suavizar a maldade do ato com tal "álibi jocoso-inocente"...]. O sujeito distinto, na nossa sociedade, é estigmatizado, na perspectiva [darwiniana] de "ser um perdedor". ["You're a loser, man"...]. E "perdedores" podem [devem?] ser caçados. Ou queimados. Que os leitores dessa postagem lancem seu olhar de empatia para os Homens Elefantes, bem como para as simples crianças "diferentes".








Tempo Fechado para o Ferido Narcísico








Ela estava com cerca de trinta anos. Seu emprego de final de ano havia lhe rendido alguns bons trocados, em meio a viagens. Era uma representante comercial. As viagens eram, sobretudo, para o interior do estado onde morava. Viagens de poucas horas. Formação superior, independência econômica da família, fisicamente cobiçada. Nada pudica, nem promíscua. Solteira e individualista.

Algum desconforto recente, numa dessas viagens. Um suor angustiado, uma pressa [e uma angústia] pelo vir a ser [pressa e temor, ao mesmo tempo], que era "mais do que querer chegar rápido ao destino". Após fazer suas vendas, pediu para ir ao banheiro, lavar o rosto. Olhando-se no espelho, teve aquele rápido lampejo [e inequívoco desconforto] de "despersonalização". Olhava-se como que "de fora" ["quase como um elefante olharia para um humano", foram as suas palavras]. Após grande crise de ansiedade, tendo feito [com dificuldade] o trajeto para sua cidade, sentia a musculatura da coxa direita tremer involuntariamente, como resíduo de um estado de stress. E também a pálpebra.

A partir de então, surgiram as crises de pânico. Temia sentir "aquilo" presa no carro, em meio a qualquer viagem profissional. Foi visitar a mãe na data de aniversário dela [= da mãe]. Encontrou a casa com convidados e convidadas, com os quais não tinha intimidade. Cumprimentou-os socialmente, e foi para outro cômodo da casa que conhecia bem, pois que havia sido seu quarto.

O tempo fechou lá fora: desses rápidos escurecimentos e tempestades de verão. Ao voltar da cozinha, onde tomara um copo d'água, a lâmpada de seu antigo quarto queimou. Desabou, então, a tempestade. Não iria sair da casa da mãe e ficar presa no trânsito urbano, num dia como aquele. Angustiava-lhe a perspectiva. Não iria se esforçar para se desempenhar numa conversa social com quase-estranhos, ainda mais estranhos por serem de outra geração. Sentiu-se, ela, a estranha, naquele momento.

Sim. Ela se deu conta de sua própria estranheza, reavivando o sentido de "despersonalização ao se olhar no espelho" na "casa estranha", dias antes, em outra cidade. Aparentemente, a situação de estar sem-saída se reavivava ali, em sua antiga casa. Mas, desta vez, com nuances bastante particulares. Não era o "pânico" que se costuma conhecer, desses das revistas e noticiários de televisão, um sentimento quase-anônimo e tão descrito, quase impessoal e indiferenciado, mas tão "classicamente fisiológico". Era possível dar-lhe nome, mas um nome que só viria um pouco adiante...

Ela ouvia o burburinho da sala, e as conversas comemorativas. Aquilo lhe parecia longe. Como não parecesse "reconhecer", de fato, aquelas pessoas "de longe" [e eram "longínquas", mesmo algumas nuances de sua própria mãe...], o outro polo da situação lhe ficou progressivamente patente: a de que a mãe não devia lhe reconhecer, no fundo. Quem a conheceria verdadeiramente?!

Não considerou alívio algum se valer do celular para contatar algum amigo. Considerou, sim, naquele momento, que qualquer busca por aproximação física seria uma "fuga daquela solidão". Vou chamar essa solidão de "solidão ontológica": a solidão à qual não se pode fazer [nem trazer] companhia.

Naquela circunstância, então, ela considerou quantos amigos [e amigas] poderiam desejar a sua companhia, mas julgou que "ninguém a conheceria de fato". Não sob aquele ângulo. Considerou as amizades eróticas como um passatempo desprezível e sem grande alcance, um anestésico contra tal solidão profunda. Viu, naquele momento, que muito do sexo que fazia [e fazia com regularidade e inconfundível prazer, assim lhe parecera até ali...] tinha essa feição de "anestésico" ou "distração". Anestésico contra a tal solidão indizível. Distração dessa mesma solidão.

Mas, ciente disso tudo, ela não queria [e nem podia] distrair-se. Sentiu, simplesmente, que não lhe era possível mentir ou desviar-se da questão. A idéia de tentar aparentar um estado minimamente disposto ao telefone [para qualquer eventual interlocutor] lhe causava asco. Literalmente: ânsia de vômito. Já tinha ido à cozinha, sem se deter na sala, para não chamar muito a atenção sobre si. A idéia de chamar a atenção "daqueles estranhos da sala" sobrepunha-lhe um desconfortável "constrangimento íntimo" ["ansiedade, vergonha, embaraço, medo, tudo misturado"] ao nojo que sentia de tentar disfarçar sua solidão para os amigos, caso recorresse ao telefone.

Foi ao banheiro, contíguo ao quarto, e teve "aquele movimento espasmódico do vômito, mesmo de estômago vazio", como era o caso. Só pôs só água pra fora. Sabia ser "um enjoo puramente emocional", isso era óbvio. Uma ânsia de vômito "de puro nervoso". Não tinha como explicar a ninguém "o que teria comido que lhe fizera mal", e outras coisas que tais. Isso lhe causava ainda maior ansiedade em não querer chamar atenção sobre si, tendo de tentar explicar para os outros "o inexplicável". Todos quereriam achar razões objetivas para o mal-estar, era o que ela pensava. "Sempre querem achar uma razão objetiva pras coisas". Tentava, então, se acalmar no quarto, sem nenhuma "fuga" ou "despedida" apressadas, o que causaria mais estranheza a todos os circunstantes: mãe e convidados. Tentaria se acalmar "e ponto final". Talvez voltasse à cozinha, pegasse mais água, para tomar um comprimido de Plasil. Imaginava saber onde encontrá-lo, se as coisas na casa da mãe não estivessem tão mudadas.

E não estavam. Estavam e não estavam. Pois o sentimento de estranheza como que pairava sobre tudo que já era sabido. Ou previsível. [E, sobretudo, pairava...].

No seu antigo quarto, com a lâmpada queimada, tentava se acalmar. Até porque a perspectiva da tempestade lá fora era ainda menos animadora do que estar ali. No mínimo, refletia-lhe a tempestade íntima, em matiz "tão sombrio quanto". "Não tinha pra onde correr".

Olhou para uma foto antiga, sua com seus familiares, sobre um porta-retrato. Estava na penumbra. Sua estranheza, agora, tinha, por acréscimo, um sentimento de dor profunda: o sentimento de ter sido "absolutamente anônima" naquela época. Anônima para todos aqueles que estavam na foto. Ninguém conhecia boa parte das suas questões de então: chantagens que experimentava no ambiente escolar, humilhações físicas relativas à desproporção dos seios para o corpo que tinha na época, além de acne bastante grave. Havia assédio e desprezo misturados por parte dos outros. Tinha medo e distância do pai, na ocasião. Parecia-lhe que ele se esquivava de ver seus eventuais dramas juvenis, além de ser muito severo. Sabia que sua mãe também tinha medo dele. Na infância, era frequentemente punida por coisas bobas. Ou por outras que nem havia feito. Quando dizia ao pai não ter feito nada, ele sempre lhe respondia "e daí?". Impunha-lhe surras ou castigos morais [ficar um tempo longo sem sair nos finais de semana, jantar e dormir cedo, etc]. A mãe, simplesmente, lhe olhava com uma "expressão de impotência quase-empática e ao mesmo tempo esquiva", do tipo [do tipo é expressão dela...]: "Não fui eu que te bati nem te pus de castigo, filha..., mas não posso fazer nada "contra teu pai"... O pai, agora, já era falecido. Impossível, para ele, "ser apresentado àquela jovem" ou, ainda mais difícil, "àquela menina magoada". Impossível, para ela, apresentar-se a ele. Tudo era "tarde demais" e "nublado". E a mãe, naquela sala, não conhecera aquela pessoa desde muito cedo. Ou se omitira, por receio, "preservando a si mesma de sua vulnerabilidade conjugal" [expressão da moça].

Outras solidões mais antigas vieram à tona. Não poderia "atualizar" a nenhum de seus novos amigos [ou amigas] essas tais solidões ancestrais. Nem era o caso. Mas olhar aquela foto, ali, no quarto com lâmpada queimada, simplesmente lhe despertou soluços. Soluços fortes, desses de "se chorar com a barriga, curvando-se" [tradução da moça], em profundo lamento. Fechou a porta do quarto, com medo de que a ouvissem. "Chorou curvada" por mais de quarenta minutos, aquele choro sentido e antigo, olhando para a solidão de longe... Achou-a, naquele momento, "irremediável" ["uma solidão irremediável"; "uma coisa que não tem conserto"]. Não acreditava, simplesmente, na eficácia de qualquer companhia ou lenitivo para aquela tristeza e aquele sentimento de "não ter sido vista", nem pelo pai. A idéia de ser "corporalmente aceita" por qualquer dos amigos que viesse a procurar, até sexualmente aceita [e com facilidade], só fazia parecer ainda mais [e ainda maior] aquela solidão sem-fundo. [Que era aquela solidão-de-fundo].

Não ser vista por pai nem mãe [ele já falecido] lhe parecia uma espécie de "orfandade" inescapável. Incontornável. Uma "orfandade do espelho" [essa expressão é minha]. A superposição da estranheza que tivera diante do espelho estranho na tal viagem recente se somou àquele estado. Tudo se somava: dor pela(s) perda(s) ["não dá pra acertar as coisas com a pessoa que já se foi"], o sentido do anonimato e ferida irremediáveis perante "os próximos", pai e mãe: ela aniversariando, ele falecido... O sentido de absoluta "irrelevância do desejo masculino perante aquela solidão" [Narciso engole Édipo, porque lhe é anterior, cronológica e axiologicamente falando: na escala do Tempo, e na escala do Valor; o Mito de Narciso tem primariedade e prevalência sobre o de Édipo], a náusea que isso lhe trazia, o "sentido de não haver lugar onde pudesse estar livre disso" ["fosse à cidade que fosse, com quanto dinheiro tivesse", para lazeres que lhe pareciam, naquele momento, de todo, "inúteis"]. "O tempo estava fechado".

Lá fora, continuava a tempestade. Ia ao banheiro lavar o rosto, mais uma vez. Mas, diante da pia, se curvara naquele choro convulso ["o que nasce da barriga"...] ouvindo a si mesma falar uma expressão lamuriosa, que reconhecia ter sido dita desde lá atrás, muitas vezes... Sua voz dizia simplesmente o seguinte: "Eu quero morrer...". Isso foi repetido muitas e muitas vezes, até que sua mãe apareceu, consternada e assustada, à porta do banheiro, perguntando "se ela estava bem"...

Pelo momento, registre-se a cena, para que se tenha um breve flagrante das questões de fundo [que são questões de base] do ferido narcísico.

Relembrando um trecho da postagem, logo acima:

Não era o "pânico" que se costuma conhecer comumente, desses das revistas e noticiários, um sentimento quase-anônimo e tão descrito, quase impessoal e indiferenciado. Era possível dar-lhe nome, mas um nome que só viria um pouco adiante...

E o nome era: "Eu quero morrer..., eu quero morrer..."
[Narciso tem grande proximidade com Tanatos].





Subindo o Flanco da Montanha: Thomas Merton









Em quatro de outubro de 1948, Thomas Merton publicou sua autobiografia, "A Montanha dos Sete Patamares". O livro cobre um trecho significativo da vida do futuro monge Trapista, da infância até um curto período após a conversão. Período este que coincide com o falecimento de seu irmão, John Paul, combatente das tropas de resistência [aviador] na Segunda Guerra Mundial. O próprio Thomas o convertera poucos meses antes.

"A Montanha dos Sete Patamares" está longe de ser uma "súmula" do pensamento de Merton. Não. Ao longo dos anos, ele avançou muito além daquela "visão clericalista" ali advogada. Muito além. Toda a importância do livro citado reside na visão detalhada e panorâmica que ele apresenta da infância, juventude e dos conflitos de Thomas Merton, que são dilemas típicos de um ferido narcísico. A partir de agora, chamaremos a este tipo de dilema como "os dilemas do Outsider", os dilemas do homem-fora-de-lugar (ou estrangeiro-em-si-mesmo). Que são sempre, e prioritariamente, dilemas referentes à identidade. É bom que se frise isso. As questões narcísicas se referem à identidade e subjazem às questões pulsionais [controle dos instintos, impulso sexual, agressividade]; porque, ainda que essas questões todas também se façam presentes na trajetória do ferido narcísico, elas sempre serão subsidiárias [eventualmente, apêndices] de sua questão identitária de fundo.

Thomas Merton nasceu em 1915. Seu pai, Owen Merton, era um pintor nascido na Nova Zelândia. Sua mãe, Ruth Jenkins, era americana e também pintora. A carreira de Owen foi irregular [ainda que ele fosse, indiscutivelmente, bom pintor], e marcada por viagens. O dinheiro era pouco, as viagens muitas. Merton acompanharia o pai em muitas dessas "peregrinações artísticas", onde Owen "caçava" inspiração para suas aquarelas, paisagens e marinhas, com a acolhida de alguns amigos. E também se dirigia para onde lhe ocorresse poder expor e vender seu trabalho.

Ruth Jenkins morreu em 1921, quando Thomas tinha apenas seis anos de idade. Em sua autobiografia, ele se ressente de não ter correspondido às expectativas da mãe, segundo seu [=dele] parecer. No ambiente da Primeira Guerra Mundial, Merton cresceu adquirindo progressiva consciência da estupidez da Guerra [de todas as guerras]. Guardou de sua mãe a impressão de uma mulher "preocupada" e perfeccionista. Aliás, Ruth Jenkins mantinha um diário sobre o desenvolvimento do filho Thomas. Foi a partir da leitura tardia deste diário que Merton chegou à conclusão de ter sido uma decepção completa para sua mãe. Neste diário, segundo Thomas, a mãe demonstra certo "espanto" pelo seu desenvolvimento "espontâneo" e "imprevisível". Entre as suas excentricidades ficamos sabendo de certa "adoração quase ritualística do bico de gás da cozinha"; coisa que, certamente, traz preocupação a uma mãe. Ficamos sabendo, também, que Thomas tinha um amigo imaginário, Jack, e que este tinha um cão imaginário, Doolitle. Lendo o diário da mãe, Thomas constata a preocupação dela quando ele, com quatro anos [na mesma época do "culto ao bico de gás"] se recusou a atravessar uma rua, com medo de que o cão imaginário, Doolitle, fosse atropelado. Ela providenciou pra ele uma educação caseira "perfeitamente estruturada": um pacote de livros, mapas, carteira e lousa. Thomas Merton se lembra de ter ido cedo para a cama, de castigo, por ter pronunciado mal a palavra "which", aos cinco anos de idade. De qualquer maneira, o menino Thomas gostava dos mapas e de um livro sobre Heróis Gregos. Quando sua mãe faleceu, com câncer no estômago, as poucas finanças da família tinham sido gastas com o tratamento. O pai quis ir à França, para poder desenvolver sua arte junto à companhia de amigos. Desde então, Thomas e John Paul passaram a acompanhar o pai, ficando em colégios onde, por vezes, não eram bem recebidos como "estrangeiros itinerantes". Ambos os irmãos conheceram, na infância, certa dose de "assédio moral" [bullying] nas escolas pelas quais passaram. Thomas gostou muito da França, mas haveria, ainda, Bermudas, Inglaterra, Massachusetts, como locais para onde seu pai deslocaria ou os deixaria, quando em deslocamento [em colégios internos, por exemplo]. Ainda que apresentado como amigo e idealista, podemos considerar Owen Merton como um pai ausente. A solidão de John Paul e Thomas na infância é patente. Owen Merton morreu em 1931, quando Thomas tinha 16 anos de idade.

Tendo feito sua formação de primeiro e segundo graus em Nova Iorque, Bermudas, França e Inglaterra, Thomas órfão alternaria sua residência entre a casa dos avós maternos [EUA] e de seu padrinho, o médico inglês Tom Izod Bennett, antigo colega de estudos do seu pai.

Thomas e John Paul cresceram com "poucas raízes", para dizer o mínimo. Thomas não encontrava um senso de lar, aliança verdadeira com amigos duradouros, além da ausência dos pais, precocemente falecidos. Teve seus estudos financiados por Tom, o padrinho, instalando-se primeiro em Cambridge, onde procurou companhia e seus pares nas "fraternidades estudantis" e nas festas e bebedeiras dos jovens de seu tempo. Isso desenvolveria, nele, uma natureza dissipadora [resultando em broncas do padrinho], e certa autoconfiança precoce e frágil [porque autoconfiança defensiva, sobretudo intelectual].

Em meio à grandes farras e questionamentos referentes ao seu tempo [o Comunismo como alternativa de Justiça Social ao pós-guerra, a filosofia existencialista, o horror da tecnologia a serviço da destruição], carregando ora D. H. Lawrence sob o braço, ora William Blake, Thomas ia procurando critérios para achar sua verdade e integridade, além de medir a integridade dos outros. [Certa feita, num trem, rasgou um livro de D. H. Lawrence, murmurando para si mesmo: "Esse cara não sabe o que está dizendo!"].

Além de muita ressaca [inclusive moral], e a gravidez de uma jovem em Cambridge [fato que se resolveu por um acerto entre famílias], Thomas continua seus estudos na Universidade de Columbia. Sua experiência com a liberdade resultara, para ele mesmo, um tanto caótica, sem que soubesse, exatamente, o que fazer dela. Sua busca por essa liberdade e integridade o faz desenvolver uma tese de mestrado sobre William Blake. Diz ele, que se tivesse entendido a fundo o escopo sobre o qual trabalhava ["Sobre a Natureza e Arte em William Blake"], teria se curado de sua cisão. [Em termos menos clínicos: teria se curado de sua rebelião e divisão internas: Merton lutando contra Merton, sem entender quem era Merton]. Questões ecológicas, falsos misticismos baseados em noção de "raça", e outros assuntos dessa ordem, eram suas preocupações de então, além das festas e aventuras afetivas. Merton foi se sentindo compelido a ser íntegro, enfadado com seu próprio egoísmo.

Em 1938, tem uma conversa com um de seus ex-professores de Literatura, Daniel C. Walsh, a quem confidencia a vontade de ser sacerdote. Isso não causa surpresa ao amigo, que lhe sugere um contato com a Ordem Franciscana.

A caminho de sua entrevista com Frei Edmundo, Thomas Merton vivencia uma "crise de angústia identitária" que vale a pena relatar aqui. E é interessante que o leitor deste blog a compare com os fatos narrados no capítulo anterior deste ensaio, com a crise de pânico-despersonalização da jovem paciente do capítulo anterior.

Acompanhemos Merton, após ter seu pedido ao noviciado preliminarmente aceito por Frei Edmundo.

"Lembrei-me, de repente, de quem eu era, de quem havia sido. E fiquei pasmo, pois desde setembro passado parecia haver esquecido de que fora um pecador contumaz.

Percebi, de repente, que nenhum dos homens com quem havia falado sobre minha vocação, nem Dan Walsh nem Frei Edmundo, sabia quem eu realmente era. Nada sabiam de meu passado. Não sabiam como eu tinha vivido antes de entrar para a Igreja. Eles simplesmente me tinham aceito porque eu tinha uma apresentação razoável, tinha uma fisionomia bastante franca, parecia ser sincero e ter uma boa dose de bom senso e boa vontade. Certamente não era o suficiente.

E agora veio o terrível problema: "Tenho de procurar Frei Edmundo e contar-lhe tudo isso. Talvez isto faça uma grande diferença". Em suma, não basta o simples desejo de entrar para um convento.

[...]

Imediatamente arrumei a mala e parti para Nova Iorque.

Parecia uma viagem interminável, enquanto o trem se arrastava pelos vales verdes. Quando descíamos o Delaware para Callicoon, onde os franciscanos tinham seu seminário menor, o céu estava coberto de nuvens. Passamos devagar, e as primeiras casas da aldeia começaram a desfilar rente ao flanco dos vagões. Um garoto que estivera nadando no rio veio correndo por uma trilha no meio do capim alto, fugindo da tempestade que se anunciava. Sua mãe o chamava da porta de uma das casas.

Tomei uma vaga consciência da minha condição de órfão sem lar.

Depois que o trem fez a curva e pude avistar a torre de pedra do seminário no alto da colina, entre as árvores, eu pensei: 'Nunca vou morar ali; tudo acabou'." [A Montanha dos Sete Patamares, pp 267-268]

As questões de Thomas Merton não são as meras questões de pudor e/ ou julgamento. A questão é mais funda.

1) Ninguém o conhecia como ele verdadeiramente era. Eis o primeiro ponto. Um senso fundo de insinceridade ou "não-sinceridade suficiente". Faço aqui uma observação crucial: não deu tempo de seus pais o conhecerem. Nem ele mesmo a si. E nessa busca desenfreada por definir-se, ele já não sabia quem era para si mesmo.

2) Havia nele o senso de que a aparência que os outros lhe atribuíam era muito menos do que suficiente para conhecê-lo. Assim como ele conheceu o olhar da mãe sobre ele pelos diários daquela, e postumamente. Assim como seu pai fora um andarilho, ao mesmo tempo próximo-e-estranho, um senso fundo de anomia e anonimato pairou sobre ele, como uma tempestade.

3) Compare-se o dito com a náusea vivida pela paciente do capítulo anterior ao se ver numa foto, numa festa de natal, e saber-se estranha para os que a circundavam [inclusive pai e mãe]. Compare-se o sentimento de "orfandade" ante o rugir da tempestade lá fora(-dentro) nos dois casos: da representante de vendas, autônoma, e do aspirante ao sacerdócio. Compare-se a similaridade da eclosão do sentimento de desamparo de um e outro, emoldurado pela paisagem em torno [o tempo fechado emoldurou-lhes a orfandade e ausência de espelho].

4) Compare-se, por fim, o desfecho em ambos os relatos: o "eu quero morrer" da jovem, com o " eu nunca vou morar ali [não tenho lugar no mundo]; tudo acabou", de Thomas Merton.

Tempo fechado para Thomas Merton.

Ele não foi aceito. Mas posteriormente, mais maduro, acabou ingressando na Ordem Cisterciense.

Por enquanto, esboçamos a ferida narcísica em sua gênese e no padrão de crise [angústia identitária, "ausência de espelho"] que essa ferida suscita. Adiante, problematizaremos suas resoluções possíveis.

Estamos avaliando o "desenho específico" dessa dor. Estamos esboçando um quadro e mapeando algumas de suas variáveis.




Quase-Presença








Pensemos numa empatia e negligência seletivas por parte de um dos pais. A mãe de Thomas Merton, autoritária, olhava-o sob o aspecto do desenvolvimento intelectivo e de suas excentricidades espontâneas. Empatizava com o garoto que mostrava serviço em termos de aprendizado formal, mas não era capaz de dialogar com ele e seus amigos imaginários, por exemplo. Nem lhe mostrar um afeto que lhe perdurasse na alma. O pai trazia-lhe uma bela perspectiva estética do mundo, além de lhe proporcionar viagens, mas estava ausente de seus questionamento pessoais e conflitos escolares.

Pensemos, por exemplo, naquela mãe que não interfere em castigos e punições arbitrárias impingidas pelo marido aos filhos, para não comprar briga com o marido. Há muitas assim. Pensemos num pai que nunca sabe pedir desculpas por qualquer erro de avaliação cometido em relação ao filho ou à mulher, na presença dos filhos. Ou que se cala diante de uma cirurgia à qual o filho é levado "de surpresa, porque na infância tudo rapidamente se esquece". 

Essas perigosas "zonas de silêncio" ilustram bem o que estou chamando de "empatia seletiva". Vou emparelhar à expressão outra que lhe é perfeitamente equivalente: "quase-presença". A criança vive a experiência [tantálica ou tantalizante; cifra: o Mito de Tântalo] de uma "quase presença", de um ou de ambos os cônjuges. Frequentemente, de ambos.

Essa "empatia seletiva" parece produzir no sujeito o sentimento de ser amado "em algum aspecto específico do seu ser" [por exemplo, no desenvolvimento intelectivo, no progresso nos estudos, na "boa figura que faz em ocasiões sociais", etc], mas de, no conjunto, ser inacessível ao olhar dos pais [ou de um deles] e da comunicação com os mesmos. Ser inacessível ao olhar e à comunicação dos pais significa ausência do olhar-que-espelha. Ausência do olhar-que-apreende, que decodifica, que sabe do filho naquela circunstância e demonstra que sabe. Isso é importantíssimo. Só assim, não há "desvio do olhar". Mesmo quando há correção, diálogo, educação. Isso significa dizer que os pais veem e não que "precisam aprovar tudo que veem", mas que "deverão apreender tudo que se lhes possa ser mostrado e dialogar com isso".

No caso de uma empatia seletiva [que implica em ausência, omissão e/ou "desvio calculado do olhar" para aspectos específicos do mundo infantil], a comunicação, de fato, parece algo longínquo e improvável. E o "afeto" fica ou soa um tanto "abafado", silencioso, sub-entendido e "turvo", como uma vivência-à-distância, "entre-olhares". Mãe e filho, ou pai e filho, "comungam à distância", sem se conhecerem bem. Haja idealização [inclusive idealizações negativas, "demonização do outro"] e mal-entendidos nessa forma de comunicação. A criança sentirá, fatalmente, que tem um "eu oculto" com relação ao qual não há contato por parte do mundo dos adultos. Um mundo secreto e um eu secreto. Esse "eu secreto" só se expressa [ou "se desenvolve"] em "solilóquios", na fantasia e pela fantasia. Esse eu secreto, e o vínculo desse eu secreto com o eu "por detrás dos olhares dos pais", se alimentam na fantasia e da fantasia. O exílio gera devaneios, mas o exílio não é um devaneio em si mesmo. Este mote será retomado alhures. 

Nutre-se, assim, uma perspectiva mítica do ambiente familiar. Forçosamente nebulosa ou sombria. Aqui, temos os pais mitificados ou "arquetipificados" [tipificados mítica e arcaicamente: arque=antigo; tipo=molde]. Assim, uma família encontra uma moldura [=feição] mítica. E, assim, se criam os Narcisos da vida, Jacintos, Pélops, Prometeus, Jós, além de Édipos. Nada tão esotérico assim. ["Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais...", diria Gilberto Gil].

Pensemos, por exemplo, numa internalização-idealização excessiva da mãe ["ela sabe o que eu sinto e sei, mas não me diz que sabe e vê", "minha mãe se comunica secretamente comigo", "o eu secreto dela sabe, mas não faz nada"]. Esse é o tipo de idealização que se deu entre Jung [sua "personalidade nº 2, como ele a chamava] e sua mãe ["a personalidade nº 2 dela"]. Podemos conferir isto em sua autobiografia, "Memórias, Sonhos, Reflexões". Pode haver outro tipo de "idealização-demonização" em relação ao pai, do tipo: "Não sei nada do que meu pai faz, do seu trabalho, da sua profissão; talvez meu pai faça alguma coisa muito secreta e perigosa" [às vezes, faz mesmo...]. Este tipo de "demonização do pai que não se consegue acompanhar" é apresentada no livro "João de Ferro", de Robert Bly, por exemplo. Aqui estamos ilustrando dois polos da idealização-projeção, resultantes do vão criado pelo silêncio, da falta de comunicação real e do pouco espelho presente no vínculo. Espelho insuficiente, poder-se-ia dizer.

Sim. Pois houve espelho para as necessidades básicas da criança: ela foi vista em sua fome, foi alimentada, suas cólicas foram devidamente tratadas, talvez suas dores de garganta e ouvido. Essa criança, aqui por mim aventada, recebeu cuidados básicos. Não resvalará para a psicose. Porém, suas relações com os pais internalizados é muito fragmentária, mítica e sombria/ nebulosa ["arquetipificada", e na face sombria dos arquétipos], porque ela foi marcada pelo "espelho insuficiente", fruto do olhar "demasiadamente seletivo [exclusivo a alguns aspectos seus] e não-empático de seus pais" [o olhar que erra o alvo, ou dele se desvia, em relação a uma gama enorme de sentimentos, por exemplo...]. Há famílias [ou ambientes primários mais extensos] que não tratam de certos assuntos. Nem os enxergam.

Pensemos, então, no caso, da mãe interna que surge para a criança como "musa inacessível que não se alcança", ou "que só se alcança entre olhares, à distância". Sim, isso também faz parte da equação de Édipo, mas dependendo dos aspectos excluídos, Narciso pode tomar a frente. Porque aqui, não falo da musa erotizada, mas daquela que é "grande demais" [a mãe mitificada pela distância] e que, lá do alto [ou lá de longe] "quase-enxerga o que eu sou, o que eu sinto, o que eu sei, o que eu sofro, mas se esquiva de assumi-lo ou demonstrá-lo com o próprio olhar ou com seus gestos". Há outros personagens secretamente "órfãos" [como Hefesto, por exemplo] ou "divididos pelo olhar-desejo do pai" [Pélops seria uma das referências]. É assim que se constrói uma vivência mítica em relação à família. Ou, em outros termos, é assim que uma criança passa a viver toda a "sombria exuberância" de se inscrever na família ou ambiente de forma desamparadamente arquetípica. Muito aquém-além do Édipo, ou só do Édipo.

Há muitas nuances possíveis nessa meia-comunicação entre-olhares [inter-olhares]. Essa mãe-imaterial pode se tornar a espécie edipiana de uma "mãe-noiva" [matriz da Anima junguiana], e uma criança de sete anos pode sonhar que uma noiva secreta o espera desde antes do nascimento. Ou que aguarda que ele morra! Pode haver, então, o sonho de uma "ambiência ideal-incestuosa", fortemente tingida pelas cores de Thanatos. Pode haver o sonho de uma comunicação platônica entre a mãe idealizada e um eu idealizado, ambos emoldurados pela morte. Vejam o sonho de Jung com Salomé cega no dito livro de memórias, um pouco além da infância [eis uma Anima que pede por socorro].

De qualquer maneira, as idealizações sempre têm sua força gravitacional, devido mesmo à distância com que nimbam as imagens e objetos, conferindo-lhes certa "intangibilidade relativamente ao eu". Intangibilidade e distância, por sua vez, reforçam ainda mais a idealização e a subsequente elaboração de mitemas [ou mitologemas] relativos ao relacionamento com a imagem-objeto. E não só enredos edipianos. Eis o círculo vicioso, ou circuito interno-externo gerador de mitos na infância.

Há algo interessante aqui. A mãe e o eu enlaçados nessa ambiência de intangibilidade e quase-presença [espelho insuficiente] eliciam um sentimento de "nostalgia" [defino nostalgia como "saudade do que poderia ter sido"], nostalgia esta que abrange tanto a mãe quanto o "eu" [oculto, semi-expresso, semi-apreendido] do sujeito, ambos unidos [ou confluídos] nessa atmosfera de empatia difusa e ausência, concomitantes. Eis aqui um dos vetores ou variáveis possíveis da ambiência interna do ferido narcísico: quase-presença, insuficiência do espelho, nostalgia do self e do ambiente primário como "presenças-de-fundo." Tudo muito mítico e tudo muito inteligível quando se olha pelo vértice do Numen.

Vamos tentar traduzir algo do afeto que se engendra nessa ambiência. Há toda uma afetividade dirigida a esse objeto intangível-idealizado, a esse objeto de amor-cuidado-negligência, ao objeto-ambiência-mãe. Ora, Novaes, mas isso é Édipo. Sim. Mas não só, meus amigos. Há toda uma afetividade dirigida à mãe-que-quase-foi, à mãe-que-poderia-ter-sido/existido, mas que só se manifestou entre-olhares, só foi entre-vista, adivinhada e moldada pela fantasia da criança. E amalgamada a seu self secreto, num conluio difuso e bizarro. Na tradição bioniana dos objetos bizarros, temos aqui a gênese de um deles. 

Essa criança dificilmente ficará psicótica, mas a ferida narcísica será um carimbo-de-fundo importante em seu desenvolvimento secreto, amalgamado e clivado. Ao mesmo tempo cindido e simbiótico. O dito complexo de castração pode ser vivido como medo da "pulverização psíquica" por parte do pai intempestivo, não-cognoscível, imprevisível. O pai que "não se sabe como chegará do trabalho". O pai para quem nada se pode contar, porque ele pode "explodir e retalhar, porque chegará nervoso e quebrará tudo". 

Aqui nós temos uma força que inunda [Cifra: Céfiso], que "estupra" [física ou emocionalmente; também Céfiso, além de Zeus, Apolo, Pan, e tantos outros], que "troveja e pulveriza-castiga, caprichosamente" [Cifra: Taranis, Adad, Thor, Heimdall, Jeová/Javé, Zeus, Baal, "O Demiurgo Mau" dos Gnósticos, equivalente ao Príncipe deste Mundo; esta equação torna equivalentes, no potencial de destruição, Deus e o Diabo!]. O medo da pulverização psíquica é o medo da loucura ["a intempestividade do meu pai irá ferir a mim e à minha mãe, e a explosão dele nos deixará loucos"]. Se isso "também" é Édipo, é "também" muito mais do que Édipo. O medo secreto do grande ferido narcísico é de enlouquecer, ou morrer jovem, por não aguentar a insalubridade do ambiente [Cifra: Narciso, Jacinto e todos os deuses que morrem púberes]. A grande pergunta de fundo é esta: "será o mundo um lugar respirável?!" "Será que eu sobrevivo à minha família, escola, Igreja?!" Eis a questão. Isso traz uma coloração específica ao Édipo. E nisso reside o "padrão narcísico de desenvolvimento".

Cito abaixo parte do material autobiográfico que me deixou dolorosamente ciente de algumas das variáveis e implicações do ferimento narcísico, em nuances pouco dedutíveis para quem não tenha passado por nada semelhante. O leitor preste muita atenção nos itens que se desdobram a partir destes parágrafos [as perguntas-dilemas, didaticamente enumeradas], para que não sejam aplainadas indevidamente [de forma rasa ou fácil demais] a magnitude da dor emocional e das perguntas advindas de circunstâncias tão massivas e precoces. Perguntas dificílimas e prematuras: feitas "cedo demais".

Digamos que alguém teve aulas de religião numa escola aos quatro anos. E que tem medo de Deus. Já tinha medo do pai, por lhe bater por quebrar um dente na rua, por estar no banho quando ele chega do trabalho [tirando-o do banho à força, sem deixar-lhe sequer tirar o sabão do corpo, e lhe deixando de castigo por dois meses para aprender a não "inzonar" no banho], e uma série de atitudes semelhantes. Então, vejamos: tal criança é colocada num colégio para ter companhia, tendo dois anos a menos que as outras. É menor, é mais fraca e mais inteligente. Sofre bullying por parte dos colegas ["se você não passar a mão na professora, a gente te arrebenta na saída"; se você acertar o exercício da aula, a gente esfrega tua cara no tanque de areia"; "se você não entrar no banheiro das meninas e não der seu lanche pra gente, a gente te arebenta"; e outras ameaças condizentes à pureza infantil]. Pois bem, essa criança teme o pai em casa. Essa criança teme os colegas na escola. Essa criança ouve leituras sobre Jeová Sabaoth, "O Deus dos Exércitos", passando a temer tanto a Deus quanto ao Demônio. Essa criança teme a professora, que a humilha [inadvertidamente] em sala de aula. Por ela ser magérrima, além de ter dois anos a menos do que as outras, a professora indaga à criança: "você come tudo que a mamãe põe no prato, fulaninho?". O fulaninho responde: "Sim, professora". Ela declara, candidamente, mas peremptória: "Eu não acredito!". Todos riem, satisfeitos. A magreza da criança fez-se acompanhar pela suposta mentira da criança, segundo o aval dado pela própria professora, inadvertidamente: "além de fraca, ela é mentirosa" aos olhos dos coleguinhas que já a atacavam por ser fraca. Este aval é mais um gancho para a agressão. Eles, agora, têm mais um álibi para justificar e reiterar a "perseguição ao diferente", agudizando tal atitude. Poderia esta criança, tendo sua situação de proscrição-perseguição agravada pela exposição pública ineptamente orquestrada pela própria professora, pretender contar a ela como seu pai se comporta em casa? Como a agride gratuitamente, ou à mãe? Pode-se esperar dessa criança que "confie naquela que desdenha de sua palavra em público, expondo-a ainda mais ao escárnio e agressões que, enquanto professora de todos, ela mesma não consegue flagrar ou impedir"? Não é possível esperar que a criança ultrapasse a barreira de desconfiança recíproca reforçada pela professora, o adulto responsável por cuidar dela em sala de aula.

Digamos que esta criança imagina fazer um pacto com Deus, aos quatro anos de idade. Ela diz assim, em seu pensamento: "Deus, meu pai me bate e não me entende; minha mãe não me defende, pois tem medo dele; a professora não acredita em mim; meus colegas são mais fortes e me batem. Então, Deus, só posso contar com o Senhor. A partir de hoje, eu te peço que o Senhor ouça todos os meus pensamentos."

Que beleza, não acham?! Mas esta criança, que quer que Deus olhe o seu eu secreto [aquele que não pode se apresentar ao mundo, pelos olhos desviados/parciais dos adultos], está com um problema grande agora. Um "problema elevado a dimensões míticas". Muito para além do Édipo. Quem pensa em termos edipianos nem pode conceber a condição de encurralamento psíquico a que esta criança estará exposta. Senão, vejamos:

1) O Deus que ela conhece é Javé. O Deus do Antigo Testamento. Um deus onitroante, feroz e caprichoso. Ou seja: seu pai elevado à enésima potência.

2) Esse Deus é extremamente formalista e legalista [mais do que o pai da criança]. De tal maneira que a criança passa a temer a "forma" das imagens, pensamentos e "sons" que pense a partir deste "pacto" feito com Deus [entendido como "O Portador do Raio"]. Por exemplo, o som da palavra "guerra", pode ofender a este Deus Legalista-Formalista. O mesmo se pode dizer do "som" da palavra "merda". Ninguém precisa ser psicanalista ou psicólogo para saber que se alguma criança ouvir: "Meu filho, você pode pensar em tudo, menos em macacos", ainda que esta criança habitualmente não pense em macacos, ela passará a temer pensar em macacos. Assim, o temor das palavras a serem pensadas, imantam/catalisam estas mesmas palavras-tabus. Eis a segunda circunstância específica desta criança em seu pacto.

Devo colocar aqui que, na biografia de Jung, vemos sua luta contra uma imagem que se formava em sua cabeça: Deus defecando sobre o teto de uma catedral. Durante muito tempo, Jung lutou contra a irrupção dessa imagem em sua mente, não ousando nem confidenciar seu dilema aos pais, nem a nenhum adulto. "Eles não entenderiam", ele pensava. Era um "segredo a ser guardado", era essa a noção junguiana. Um segredo como esse não soa minimamente comunicável pela criança a ninguém: seja ao mundo adulto, seja a outras crianças. Outras crianças a entenderiam? Voltemos ao exemplo da outra criança citada acima, deixando o dilema de Jung para que se o explore em sua própria autobiografia: poderia esta criança explicar ao próprio pai algo do tipo: "Olha, pai, eu tenho medo de você e não confio em você, então fiz um pacto secreto com Deus para Ele substituir você, mas agora fiquei com mais medo d'Ele do que de você; então, por favor, seja outro pai, mude e me ajude a lidar com alguém mais poderoso do que você, no caso o próprio Deus." Seria factível tal alternativa? A análise sincera do dilema mostra que a criança está encurralada pela própria maneira como seu pacto e o corolário disso [segredo, medos incomuns, etc] foram engendrados. Se eles foram, justamente engendrados pela desconfiança, medo dos outros e incomunicabilidade, não haverá como comunicar algo tão mais complexo e difícil de ser entendido pelos outros, muito menos "confiar na possibilidade desa comunicação". Não faz sentido esperar isso da criança. Não é psicologicamente factível. 

Há algo interessante a dizer sobre os dois segredos: o de tal criança e o de Jung. Enquanto Jung sentiu alívio ao deixar a imagem espontânea do Deus sacrílego e defecador destruir seu templo, a criança passou a temer palavras, imagens e sons a serem catalizados pelo seu próprio pacto e temor. As duas circunstâncias são diferentes: Jung lutou [e depois cedeu] a uma imagem que se lhe veio espontaneamente, e cuja manifestação lhe pareceu "epifânica" e "reveladora", não lhe trazendo maiores consequências. Pós-revelação [ou "pós-epifania"] lhe sobreveio a Graça, e a sensação "de saber uma verdade que os outros desconheciam". [Clássica situação de "encapsulamento narcísico", ou de estar no locus/posição de Prometeu: "O Portador Solitário da Chama Ainda Desconhecida Pelos Outros"]. Ainda que a posição não seja em si mesma confortável, foi para Jung "reveladora": ele tinha um "segredo de sabedoria".

Quanto à criança que estamos apresentando, ela fez um Pacto. Assim sendo, atraiu para si temores e maldições advindas do pacto. As palavras que temia não eram "epifanias", mas consequências de suas Aliança na Situação de Proscrito. Ela não poderia se sentir "eleita", nessas circunstâncias, como "portadora de um segredo contendo sabedoria". Na melhor das hipóteses, ela poderia se sentir maldita-eleita, porque descobrira um segredo terrível: o medo de pensar um som atrai o som; o medo da palavra, atrai a palavra; as pessoas fugiriam dessa complicada descoberta feita por uma criança de quatro anos perante Deus! Por isso, repito, na melhor das hipóteses, haveria a percepção ambígua e mista de ser uma maldita-eleita, numa circunstância de pacto-insulamento [encurralamento ambiental-sagrado] que a tornaria ainda mais solitária, encurralada e "estranha": ainda mais diferente dos demais. [Cifra: Prometeu preso na rocha, sem socorro visível ou plausível, tendo o fígado bicado pela águia-trovão].

3) Vamos desdobrar um pouco mais as consequências de tal pacto infantil. Deus é uma Presença sempre a vigiar cada pensamento, imagem ou "som" pensado pela criança. Deus é, assim, um "Olho Sem Pálpebras" a fazer um Escrutínio Impiedoso de cada forma-imagem além-aquém intenção consciente ou má fé da criança. Mas ela pensa que só por temer e atrair tais sons-imagens-formas já é culpada. Ela guarda este segredo. E descobre mais. Algo que ela não poderia esperar...

4) Ela descobre que a hipervigilância sobre seu corpo faz com que ela transpire de nervoso, e/ou que seu coração dispare. Fica também preocupada pela sua atenção afetar seu corpo. Isso passa a fazer parte do segredo que ela guarda e do temor a ele correlato. "A atenção sobre meus pensamentos-corpo desarruma meu corpo-e-pensamentos". O que deveria funcionar "automaticamente" [suor, batimento cardíaco, piscadas, deglutição, vontade de ir ao banheiro] passa a fazer parte do auto-escrutínio da criança. Sim, pois devido ao seu Pacto, tudo isso que deveria funcionar bem, automaticamente, agora depende de sua vigilância, acompanhada pela Onivigilância do Olho que a Observa a Partir de Dentro. Eis a internalização de uma Ambiência Mítica Opressiva. Ou a vivência de um "ambiente mítico interno". Chamar a isso, simplesmente, de "superego arcaico" é pouco. Este "superego" é exponenciado à dimensões míticas. Sagradas e Secretas. Chamar a isso de "evocação arquetípica de um Portador do Raio [evocação esta inspirada por múltiplas circunstâncias ambientais, além do "fator pessoal do infante"] ou de "constelação de um Demiurgo Mau como presença psíquica no mundo da criança" [segundo a concepção gnóstica, que faz do Demiurgo Algo ou Alguém equivalente ao Príncipe deste Mundo, como se o Deus que regesse o Mundo pudesse ser tão ruim quanto o Demônio] faz mais jus à realidade psíquica experienciada por este sujeito, em suas muitas e peculiaríssimas nuances.

5) Pois bem. A criança se vendo nas circunstância de vigiar [e reordenar] seus pensamentos, imagens, batimentos cardíacos, suor, piscadas, temendo seu desajeitamento no mundo ambiente, temendo que perguntem por seu segredo, temendo engolir a comida e se engasgar, temendo ter vontade de ir ao banheiro em hora imprópria, em hora "que não poderia" [durante uma tarefa escolar, por exemplo, na mesa do almoço com uma visita, na hora de cumprimentar um amigo de seu pai], passa a ter uma incumbência ou responsabilidade grande demais para qualquer pessoa, sobretudo para uma pessoa de quatro anos: "Ser Deus de si mesma". Pois que agora Deus [assim como seus pais] só a vigia, mas não cuida dela. Essa é uma tarefa Mítica, muito mais complexa do que a tarefa edipiana. 

6) Esta criança poderá achar que, com "ritos de apaziguamento" [por exemplo, passando as noites em vigília a fazer nomes-do-pai, tantas vezes quantas possa ter pensado imagens-sons que desagradassem a Deus], possa estar "quites" com este Olho Onivigilante. Mas sabemos que este é um trabalho Infinito [Cifra: Sísifo ou Íxion; a tarefa fadada à inconclusão]. Isso, mais uma vez, transcende a condição edipiana. E quem só pensa em termos edípicos dificilmente seria capaz de "intuir" esse gênero de enredo [/enredamento] infantil. Este foi o meu enredamento infantil.

Jung encontrou um rito de auto-asseguramento na infância, colocando um homúnculo [um homenzinho], talhado por ele mesmo, dentro de um estojinho escolar, guardando consigo um pergaminho. Esse estojo-com-o–homenzinho, o pequeno Jung guardava num vão do sótão de sua casa. E ia visitá-lo frequentemente, para ver se "estava tudo bem com ele", além de lhe dar algum presente eventual: um seixo polido cuidadosamente escolhido, por exemplo. Essa visitação equivale ao zelo pelo "self encapsulado" [ou um zelo pela "personalidade nº 2", em relação à qual Jung tinha uma consciência tão precoce].

Por isso eu digo que o "tônus" e o "quantum" dessa ambiência mítica só são apreensíveis para quem capta a totalidade da moldura mítica implicada no conjunto de cisões, defesas e imagos constelados pelas conjunturas factuais do indivíduo, desde tenra infância e a partir de seus ambientes primários. Quem só conhece o drama edipiano está pouco aparelhado para apreender essas sutilezas do encapsulamento [com a Luta Mitológico-Numinosa dele decorrente] experimentado pelo "eu", tão precocemente. Por isso, apreender a coisa em colorações numinosas [o que eu chamo de "Numinoso Sombrio"] é tão básico para desatrelar o self encapsulado desta sutilíssima e entranhada amarra, dessa intrincada teia-armadilha, vista como dentro-fora, ao mesmo tempo.

Alguém poderia cogitar da não-existência de uma criança assim. Pois bem: por isso mesmo [e só por isso] fiz questão de apresentar este material autobiográfico. Dizer que tal criança não existe significaria dizer que eu estou mentindo e que não vivi nada disso. Seria muito pouco confortável imaginar-me um enredo tão dolorosamente improvável e árido, falsificando uma infância que me doeu tanto. Mas há um aspecto a ser aproveitado em tudo isso: afinal, quem escreve este ensaio foi aquela criança. E ela é parte de mim.

A intenção precípua deste ensaio é viabilizar que mais pessoas possam "intuir" tal gênero de ferida. E, a partir disso, "arejá-la". [Podendo evitar é bom].

7) Isto porque, nesta circunstância, temos uma questão "secreta-sagrada" que não é mais da ordem do "inter-dito" [como "o segredo familiar edipiano"]. De forma alguma! Temos algo mais grave e aquém-além do interdito: temos um Segredo Sagrado da ordem do Indizível! Qual seria o interlocutor factível pra essa criança? Outra criança?! Seus pais?! Quem lhe ensina Religião?! Alguém deste grupo amostral entenderia as sutilezas da armadilha na qual esta criança veio a cair?! De forma alguma.

Na verdade, isso é novidade até para muitos psicanalistas menos calibrados [com menos "faro" e menos "feeling"] para tais feridas impingidas à identidade [ao núcleo do eu, que se irradia como psicossoma]. O que dirá o ambiente originário que engendrou e co-patrocinou tais circunstâncias do Pacto!

Temos de ser sutis e bastante nuançados em nosso ver, se queremos apreender feridas fundas. E feridas fundas são ontológicas. E são da Ordem do Mítico, Numinoso, Arcaico e Sagrado. Sem escapatória mais prosaica.

Daí minha ênfase em expressões tais quais: Numinoso Sombrio.

Saindo da especificidade do quadro daquela [esta!] criança [da criança que fui e que está em mim], vamos prosseguir na definição dos matizes da ambiência nostálgico-idealizadora-demonizadora da quase-presença do olhar parental.

Se a mãe é, por exemplo, afetuosa-esquiva [esquiva por covardia no enfrentamento de questões cruciais à criança, por exemplo], a afetividade estará dirigida a este objeto intangível e idealizado [cifra: mãe do próprio Jung], a este objeto de amor-cuidado parcial, semi-anônimo [portanto, semi-mítico!]: o objeto-ambiência mãe. James Grotstein chamaria a esta ambiência interna de "Presença de Fundo Antecedente da Identificação Primária". Há toda uma afetividade dirigida a esta mãe que quase-foi, ou à mãe-que-poderia-ter-sido, mas que foi só entre-vista, entre-olhada, adivinhada e moldada pela fantasia-solidão do self oculto do sujeito infantil [self encapsulado]. Édipo é pouco pra definir o quadro. Esta Presença de Fundo Antecedente da Identificaçção Primária [um campo de afetação Positivo com a Mãe e com o Ambiente Primário, sem grandes invasões, ataques e acuamento, com a consolidação da confiança comunicativa] funciona como "chão psíquico", como "solo onde se apoiar", como um locus interno de auto-confiança [e auto-certeza sobre si mesmo] que permite ao sujeito dizer-se "siga em frente" em sua progressiva abertura ao mundo. A falta desse chão psíquico equivale a ter um buraco aberto sob os pés, e não se sentir "internamente apoiado no seu movimento de dirigir-se ao objeto", buscando-o, ousando alcançá-lo ou se vendo capaz de interpelá-lo. Essa é a mesma falha básica descrita por Balint, apresentada, aqui, em outros termos.

Há uma ambiência interna de monotonia, solidão e tristeza, uma atmosfera escura e sombria, que também é numinosa. É da ordem do Indizível. Se quisermos apresentar as várias camadas dessa ambiência, no primeiro momento apontaríamos a nostalgia pelo objeto bizarro ou objeto-amálgama "self encapsulado-Mãe Idealizada". Há uma saudade de ambos, pois que a Mãe Mitificada e Amalgamada ao Eu Secreto confiscou em si [e para Si] porções do self infantil. Por outro lado, o Pai confiscou a autoridade e expressão deste self por "pulverização"/ "ataque sádico". Este ataque, agora, está ampliado ao/amplificado como Ataque Interno de um Portador do Raio que é O Olho Vígil que Nunca Descansa. Qualquer semelhança com a condição de Daniel Paul Schreber não é mera coincidência. A chave para entender a esquizofrenia paranóide é sempre narcísica, e nunca edipiana. O ver e o desamarrar os nós se dão, exclusivamente, nesta clave arcaico-prioritária dos dilemas identitários, pré-triangulares [portanto, pré-edipianos].

Pensemos nessa nostalgia pelo amálgama mãe-filho [nostalgia= saudade pelo que "poderia ter sido", e não pelo que foi...; frise-se!]. A fórmula da saudade do paraíso perdido ou do "vínculo simbiótico" [o "nirvana do útero"] é tosca demais para representar aquilo a que estamos nos referindo aqui. A criança em questão teve gestação difícil, parto com fórceps, após 14 horas de sofrimento fetal, pela espera da obstetra que já agendara previamente o horário para uma cesariana [por saber não haver dilatação pélvica suficiente]. Porém, a hora do parto não obedece a pré-agendamentos. Assim sendo, não havendo tempo hábil para o procedimento agendado, quando surgiu outro médico, foi feito o parto emergencial com fórceps, indo a criança diretamente para a incubadora receber cuidados respiratórios. No caso específico, o locus do acalentado Nirvana Freudiano tem de ser visto bem atrás dessas 14 horas. E não se pode subestimar os insights de Otto Rank neste tipo de parto. A ingênua candura [um tanto sarcástica] de Jung [e também de Ferenczi!] dizendo que "traumático é não-nascer", desdenhando de Rank, também minimiza o problema em situações concretas e específicas. Eis o problema dos desdéns generalizadores. Não quiseram avaliar a validade possível dos insights de Rank em casos específicos. Se ele generalizou na formulação, cometeram o erro exato-reverso de generalizar na crítica ao que de verdadeiro poderia existir naqueles insights.

Frisemos ainda, neste e em ouros inúmeros exemplos: não houve vínculo profundo mãe-filho, mas vínculo narcísico-bilateral [com cisões e idealizações cruzadas, o que patrocina imagos fantasmáticas], e não verdadeira reflexão da criança-bebê [Cifra: Thomas Merton e sua mãe; Jung e sua mãe, desdobrada em duas..., como lemos em sua biografia; cada uma das quais se relacionando com a personalidade 1 ou 2 do próprio Jung; ou seja, com a persona familiar, ou com o Self Secreto].

A mãe empatizou com algo do que viu, com parte do que viu, e se esquivou do resto, ou entre-viu algo e não o refletiu suficientemente ao bebê-criança. A fórmula "nostalgia do self e da mãe idealizada" [amalgamados], saudade daquilo que "quase foi e poderia ter sido", revela a situação toda [bastante mítica, como vemos] em matizes mais definidos e precisos do que a imagem do "Paraíso Perdido". Houve carência de verdadeiro encontro e intimidade, de mútua reflexão verdadeira. Isso pode ter sido algo que "quase tiveram, mas nunca objetivaram".

Nas circunstâncias acima apresentadas, o sujeito se mantém fixado à presença longínqua e diáfana da mãe quase-vista, quase-real. A mãe que o self infantil "quase viu" [e por quem "quase foi visto"]. Mas que o evitou por um leve desvio do olhar, ou por um "calculado desvio do olhar" ["não comprar briga com o marido", por exemplo]. Nessa ambiência, há nostalgia, desilusão, cobrança, tristeza, dor, saudade e ressentimento, numa atmosfera triste e escura de quase-presença. Até o sujeito se "des-imantar disso". Até o sujeito se liberar dessa zona de atração mítico-gravitacional, que serve como "blindagem e cápsula" ao self infantil". Aqui "também" se trata de Édipo, mas "também" de mais-que-Édipo. [Além-aquém-Édipo].

Quando se vê o "buraco" ou o "vazio" de certos pacientes narcísicos, frequentemente se pergunta: "Do que fogem esses pacientes? Do que eles têm fugido ou fugiram?" Podem fugir/ter fugido da atmosfera de perda, ressentimento e dor pelo desvio do olhar da mãe imaterial. Podem ter fugido do pai confiscador-pulverizador, de sua autoridade onitroante. Podem fugir [ou se encolher] de um Olho Interno Punitivo, Onivigilante [cifra: Schreber]. Podem se defender da dor de um Vazio, de todo um viver nostálgico-fantasmático, como que "tingido por uma esperança póstuma de um dia poderem, quiçá, vir à Luz". Podem estar de luto pelo próprio não-nascimento, enquanto "emergência de si mesmos de fato".

Aqui não se trata do sentimento de ser amado-odiado, desejado-torturado, como a equação de integrar o objeto bom e o objeto mau no objeto inteiro/ "objeto total". "Também" se trata disso [a velha e boa equação kleiniana], mas há nuances. Trata-se de "quase ser visto", de "não poder ser visto e existir, por um triz", perdendo-se o "liame de vitalidade e comunicação com o mundo", perdendo-se o liame da concretude do mundo, da "consistência do existir e do eu-existente". Tais déficits é que resultam em vivências clássicas de despersonalização-pânico, como aquela de "perceber uma fina membrana recobrindo o mundo", de sentir como que uma "vidraça [opaca] isolando o eu de seu contato com o mundo", esse "eu-imaterial [encapsulado] como expectador, vendo a vida como que por através de um tubo ou uma tela". Vendo o mundo como que pela televisão, dizia "Laura", uma paciente minha.

Quantas pessoas que lidam com feridos narcísicos não se deparam com este gênero de descrição?! Muitas. A questão é saber contextualizá-las.

Perde-se o eu, a consistência do eu e o bem-estar do eu, juntamente com o objeto-ambiente. Aqui, pensamos em duas alternativas: ou este bem-estar foi quase-obtido e escapou por entre-dedos/entre-olhos, ou foi obtido e perdido por uma ruptura precoce. Ambas as situações são clinicamente frequentes, em se tratando de personalidades narcísicas. Algo ou alguém interviu [o Algo pode ser a Morte], e o espaço-de-reflexão, convivência-espelho e consistência do eu foram perdidos. Em seu lugar, ficou um eu encapsulado, nostálgico, frágil-evanescente aos olhos externos [na verdade, encolhido]. "O self se vai com o objeto-mãe-ideal." A "Mãe Morta" da André Green tem essa coloração. O "negativo do narcisismo" ou "Narcisismo de Morte" tem esse matiz.

Em palavras cuidadosamente escolhidas: o self foi confiscado pelo objeto ideal, pela mãe que foi retirada ou quase-esteve ali. Essa mãe esquiva, fugidia ou imaterial arrastará e reterá o eu dentro de si, como uma "sombra-cápsula do senso de ser-um-eu." Assim, este "eu" também será fantasmático, pois precisará do espelho-sombra para reconhecer-se, um espelho que é quase e que é ontem. Releia-se com cuidado: um espelho que é quase e que é ontem. Esse eu sonha com a chance de olhar-se e se tornar consistente. Essa mãe-espelho fantasmática o reterá como uma atmosfera [uma Ambiência Numinosa e Confiscadora; cifra: Lâmia], uma nostalgia dentro e em torno de si que é, ao mesmo tempo, nostalgia de si próprio e do objeto. Uma ponta de evanescência no mirar-se. 

Reitero [como Eco ou Espelho-em-Falta]: Uma ponta de evanescência no mirar-se.

E é tudo que se tem.







O Portador do Fio








Espirais. Pense em espirais. A evolução dos tópicos neste ensaio será "espiralada", indo e retomando assuntos, sempre numa oitava superior de complexidade. É a única forma de fazê-lo: não-linear.

Falando em "quase-presença" eu terminei meu último capítulo assim:

Em palavras cuidadosamente escolhidas: o self foi confiscado pelo objeto ideal, pela mãe que foi retirada ou quase-esteve ali. Essa mãe esquiva, fugidia ou imaterial arrastará e reterá o eu dentro de si, como uma "sombra-cápsula do senso de ser-um-eu." Assim, este "eu" também será fantasmático, pois precisará do espelho-sombra para reconhecer-se, um espelho que é quase e que é ontem. Esse eu sonha com a chance de olhar-se e se tornar consistente. Essa mãe-espelho fantasmática o reterá como uma atmosfera [uma Ambiência Numinosa e Confiscadora; cifra: Lâmia], uma nostalgia dentro e em torno de si que é, ao mesmo tempo, nostalgia de si próprio e do objeto. "Uma ponta de evanescência no mirar-se".

Em palavras cuidadosamente escolhidas, foi o que eu disse.

Pensemos num sujeito que vê um dos pais sofrer um colapso, quando está na primeira infância: um pai que chora e desaba dizendo não saber como agir diante de uma briga de irmãos, um pai que teme que o filho mais velho morra se ele dormir sobre o lado esquerdo [!], a mãe que fica sem falar e sem comer depois da morte de um ente querido. Todas essas situações também fazem o sujeito "perder o objeto" [perder o vínculo com o objeto-cuidador, com o objeto parental], e se refugiar [ou ficar confiscado] num objeto interno sombrio e fantasmático. Como perceberemos, este confisco melhor será definido como sendo a uma "ambiência interna", e a uma série de objetos fantasmáticos, além de porções cindidas do "eu".

Vejamos as cenas: o menino de seis anos v seu pai desabar nos ombros da mãe, diante de uma demanda por decidir uma briga entre irmãos, dizendo: "Eu não consigo saber o que é certo; eu não consigo tomar uma decisão". Vejamos outra cena, com um breve histórico: a menina é adotiva. Quem a adotou tem idade para ser sua avó. Sua mãe biológica já teve seis filhos, muitos dos quais deu ou abandonou. Um de seus irmãos mais velhos é mendigo de rua. A menina tem sentimentos variados e ambíguos em relação a tudo isso. Tem raiva da mãe. Pena e nojo do irmão. A mãe-avó adotiva [que já adotara mais de trinta crianças!] tem crises de asma que a põem de cama, tendo de tomar oxigênio e ser assistida por enfermeiros. A criança [cinco anos] se sente, ao mesmo tempo, isolada, "nostálgica" e impotente. Como socorrer a mãe-avó? O que fazer em relação ao irmão que vê sujo pelas ruas?

Bom, esses sentimentos são confusos, e só encontrarão "um nome mais claro" na adolescência. Até lá, serão presenças difusas ao fundo do senso de ser-estar dessa criança em meio a toda conjuntura apresentada. Na adolescência, ele poderá dizer algo como "minha mãe é uma puta irresponsável, uma parideira sem juízo, faz um filho com cada macho" [frases que ela, de fato, disse, mais ou menos assim...] e "meu irmão é um bunda-mole vagabundo, e eu tenho vergonha dele". Qualquer laivo de piedade fica engolfado pela raiva, nessa "tomada de consciência tardia" que, na verdade, não é uma "tomada de consciência", mas uma "nomeação daquilo que difusamente ela já tinha consciência".

Mesmo adolescente, e mesmo longe da mãe biológica [não tão longe, porque ela sempre pode saber dela que, inclusive, continuou a engravidar...], a adolescente permanece "imantada" a este "círculo encantatório de presenças internas". Em muitos quadros de depressão e raiva [a depressão ansiosa é algo muito comum, e mesmo na "depressão apática" encontramos, frequentemente, "raiva ao fundo"] encontramos a pessoa difusamente ligada a este círculo/circuito imantatório ["encantatório"] que inclui dois fatores claros:

1) Uma sensação de "cerco" por algo sombrio e difuso [muitas vezes "fantasmagórico"]. Vou aqui chamar, com razões de sobra para a escolha, a este sombrio difuso de Numinoso Sombrio.

2) Além do cerco por tais presenças, subjaz ao "eu" [ao self] uma espera ou esperança pelo "vínculo ideal" [a mãe rejeitadora que não deveria ser assim, ou a avó doente que deveria cuidar dela; sem falar no irmão que ela preferia não ver como espelho amplificado de seu próprio abandono].

Enfim, o sujeito [no caso, a adolescente] fica fixado(a) numa solidão muito peculiar [veremos que se trata de uma "solidão ontológica"] e numa ambiência interna nostálgico-tantálica. Sim, a nostalgia ["saudade do que poderia ter sido"] o imanta "para trás e para o fundo". A nostalgia é uma fator regressivo, que o deixa [ou a deixa] preso(a) a uma infância fantasmática.

Poder-se-ia cogitar que a adolescente deveria considerar todos os fatores em jogo com benevolência e altruísmo: as más escolhas da mãe quanto a parceiros e progênie, a semi-suficiência da mãe-avó, o destino aparentemente inescapável de seu irmão morador de rua. Mas, lamentavelmente, as coisas não se dão assim, até porque essas presenças já fazem parte do "plano de fundo" da criança numa situação [e num tempo] onde sua necessidade de cuidados era imperativa, e suas catalogações e julgamentos morais eram incipientes ["isso me faz bem, isso me faz mal"]. Primitivamente [e originariamente] é assim que as pessoas reagem na primeira infância [e muitos até o fim da vida].

Senão vejamos: o estado de estar perdida, esperançosa [=à espera, mesmo que desesperançada...] de um rumo e imantada a uma ambiência Sombrio-Numinosa já se dá no primeiro sonho apresentado por esta adolescente, em análise. Ela precisa comprar bolacha [=nutrição]. Não sabe onde fica o supermercado, ou qualquer lugar que "venda alimento". Há um homem cego, velho e roto, sentado numa pedra [um mendigo amplificado a dimensões ancestrais e míticas]. Ele gira o seu dedo indicador de uma das mãos para todas as direções, como uma bússola quebrada. E "não fala coisa com coisa". Murmura uma litania de si para si. Diante de qualquer interrogação da adolescente, a resposta é essa: sombria e mítica ["o velho andrajoso e cego apresentando uma litania e o símile de uma bússola quebrada"]. Ninguém precisa de ilustração mais mítica [ou "sombrio-numinosa"] para umas das presenças de fundo da adolescente. Isso já é um bom retrato de suas procuras, de sua imantação a um mundo de presenças internas e de sua desorientação básica.

Ao longo da análise, podemos ver a evolução dessa desorientação para uma figura jovem feminina [um "duplo" da própria paciente], segurando uma varinha [como esses ramos bifurcados de galhos, usados em radiestesia], dentro de um rio, orientando-se com energia [com água até a cintura]. A essas figuras condutoras [chamadas "psicopompos" nas mitologias clássicas, e muito estudadas por Jung], eu gosto de chamar de "portadores do fio". Sim, poderíamos pensar, no caso, numa "Melusina portando a bússola" [não mais quebrada, como no primeiro sonho], mas não nos é difícil reconhecer em tal figura um avatar de Ariadne [a que oferece o fio dentro do labirinto]. O fato de estar "semi-imersa no inconsciente" está representado pelo fato da figura onírica estar num rio, e com água até o meio do corpo. O tema da orientação/desorientação é retomado [o tema da "bússola", que pode ser sintetizado no tema do "fio" "confiança", "fiar-se em"/ "confiar", "poder seguir em frente tendo um rumo"]. Qual era a primeira procura [a procura fundamental e originária] da adolescente no primeiro sonho [o sonho inaugural da análise]? Era por nutrição [o lugar onde comprar "bolacha"/ "comida de criança"]. O que a melusina/"portadora-do-fio" pode estar tentando achar com tal recurso mágico-natural [um recurso "tão magnético" quanto a idéia de bússola...]? As respostas da adolescente são: 1) Um lugar que tenha cardumes [= nutrição, também]. E à pergunta: "Ela sabe sair do rio"? A adolescente não reluta em afirmar: 2) "Claro. Ela sabe o caminho, porque criou-se ali". Ora, ela criou-se ali, nas imediações ou "dentro do rio" [ela nunca saiu da água, como uma melusina mesmo...]. Podemos ver que este "duplo", mesmo com senso de orientação, conhece o que é estar "com água até a cintura". Uma "Ariadne fluvial", por certo...

No primeiro sonho encontramos um absoluto senso de desorientação: a figura cega sobre a pedra, ancestral e quase inumana [mesmo amalgamando em si os andrajos e a condição de sem-lar do irmão – "quase inumano"] nada tem a oferecer ou dizer de útil [sua litania é incompreensível, seus olhos não veem, e sua "bússola está quebrada"]. No outro sonho aqui narrado, há um senso intuitivo de orientação.

Depois da "quase-presença" assinalada no capítulo anterior, encerro este capítulo apresentando-lhes "o portador-do-fio"/ "a portadora-do-fio".





Ser um Outro para o Outro: do Encolhimento à Entropia








Em seu texto "Carta ao Pai", Franz Kafka faz um acerto de contas com tal figura paterna, três anos antes de morrer, aos 36 anos, num sanatório onde cuidava de uma tuberculose. Alguns se perguntaram [postumamente] do "porque de tal necessidade íntima" [inclusive o tradutor da carta para o português, Modesto Carone], uma vez que Kafka já era adulto e independente, e razoavelmente conhecido por uma obra densa. Além do que, diz o próprio Kafka na mencionada missiva, que toda a sua obra fora endereçada ao pai. Sim. Toda a obra kafkiana de transformações em inseto, confinamento ao quarto ou a regras "sem escapatória" [a uma burocracia "sem chaves para a porta de saída", bisonhas e ininteligíveis acusações] teria sido um trabalho elaborativo-estético-narrativo lançado ao peito do pai. A carta seria a explicitação dessa dedicatória. Uma vez mostrada a alguns de seus familiares [mãe, irmã], sequer chegou ao seu destinatário. Talvez a família soubesse da impossibilidade de Hermann Kafka, o pai, fazer qualquer revisão de sua trajetória, a partir das colocações do filho. Talvez a missiva fosse bombástica ou "demasiado agressiva". Curiosamente, toda a empreitada em redigi-la teria se dado a partir da seguinte motivação: responder a Hermann Kafka uma pergunta que este fazia ao filho, e que o último não conseguira responder a contento, numa rápida resposta olho no olho: "Por que você tem medo de mim?". Diante da magnitude da pergunta [para Franz Kafka], ele precisava fazer este retrospecto-inventário para dar conta de explicar ao pai suas razões. Longe de ser gratuitamente agressiva, ou demasiado, A Carta é um sintoma deste mesmo medo, uma vez que é cheia de pedidos embutidos de desculpas, elogios a valores compensatórios do pai à sua exposta tirania, e até deferente, em algumas passagens, no "pedir licença para lembrar-lhe certos acontecimentos". Mas não é de surpreender que, para o padrão vicioso da relação instaurada desde a infância, A Carta não pudesse encontrar mesmo seu destinatário.

A Carta fala de uma educação tirânica, de um judaísmo de aparências e outras imposturas que tais. A palavra é bem escolhida aqui por mim, e será repetida ao longo deste capítulo por ser bem ilustrativa de uma das raízes do "encolhimento" operado no sujeito demasiado tímido [o introspectivo esquizoide, por exemplo], bem como ao sujeito acuado diante do mundo e, em grau mais trágico, ao esquizofrênico. Encolhimento e entropia [tendência à desorganização e ao caos], como eu adiantei no título deste capítulo curto.

Como "A Carta" é um texto acessível a qualquer leitor [pode-se encontrá-lo com facilidade, em mais de uma edição em língua portuguesa], eu me limito, neste ensaio, a dizer-lhes do que se trata, convidando o leitor interessado a ir à fonte.

Kafka cita ao pai alguns de seus procedimentos típicos, os quais fizeram com que o filho se visse preso em alguns impasses. Chorando por querer água de noite, é deixado no lado de fora da casa, na varanda, sem tomar água, de camisola. Que esgoelasse, ou se cansasse. Nas refeições, tinha de comer depressa como o pai [um glutão sem modos], mas sem os seus maus modos. Todo o empreendimento ou comunicação do menino, comunicados ao pai, recebiam como resposta uma atitude de desdém do tipo: "Você vem me mostrar isso?" "Não poderia fazer melhor?". Reprimendas e críticas ao filho eram expressas em voz alta à mulher, numa alusão indireta ao menino, nos termos: "O seu filho [ou o nosso filho] veio com mais essa". E por aí vai. Além de ser assaltado elo medo de ser arrebatado por seu pai para a varanda de casa, sem entender direito o motivo, e ter desqualificadas suas demonstrações [quaisquer que fossem] de interesse ou empenho infantil, Franz Kafka ressentia-se de que todas as escolhas que fazia de amigos ou relacionamentos eram sistematicamente desqualificadas. O pai comparava algumas delas a "insetos", e repetia um ditado em tcheco, cujo significado seria mais ou menos este: "Quem convive com cães, amanhece com pulgas". A transformação em barata, operada em "A Metamorfose" foi diretamente inspirada nesta fala paterna. O pai, ainda, demonstrava outras arbitrariedades, tais quais falar mal de alemães, judeus, tchecos, ou outras etnias e grupos, sem dar a contra-argumentação que o justificasse, como um tirano auto-justificado do alto de sua cadeira. Era implacável na loja que dirigia [sim, o pai era um comerciante], e se espantava que o filho não se interessasse por dar continuidade aos seus negócios naquele que, para Franz Kafka, parecia um ambiente sombrio, para dizer o mínimo. Nas relações sociais menos íntimas, onde o comando e o poder não estivessem diretamente em jogo [as boas e convenientes relações sócias], o pai de Kafka, o Sr. Hermann, exibia amabilidade e até, por vezes, um sorriso generoso.

O mundo sombrio-burocrático de "O Processo" seria um espelho ampliado do que eu poderia chamar de uma tirania burocrático-caótica. Assim como teríamos o confinamento em "O Castelo" e a metamorfose em inseto em "A Metamorfose". Sim, o escritor Franz Kafka parece não exagerar ao declarar que toda a sua obra é dedicada ao pai. Detalhe: quando publicava alguma coisa, Hermann Kafka deixava o livro de lado, com o costumeiro desdém, para lê-lo [e criticá-lo] sabe-se lá quando...

Essa é uma educação tirânica nada especial, eu diria que até singela, conhecendo os tantos sub-matizes da tirania doméstica como eu conheço. Importa, no entanto, reconhecer um pouco do efeito de tal "modelo educacional" para o pequeno Franz e para o adulto que depois se (de)formou. Uma passagem d'A Carta exemplifica quando o menino [e depois o adolescente] Franz era estimulado pelo pai: quando batia continência e marchava direito [sendo menino], ainda que em Franz nada existisse, nem remotamente, de um embrião-de-futuro-soldado. Quando bebia cerveja e comia "vigorosamente", como o pai. Quando repetia canções cujo conteúdo não entendia. Quando mimetizava ou demonstrava conhecer algumas das expressões do pai. E coisas que tais, nas quais havia uma tônica óbvia: Franz Kafka não se reconhecia em nenhuma delas. Era "encorajado" justamente quando não era ele mesmo. "Ser um outro para o outro". O apreço da autoridade-alteridade surgia a partir da impostação ou da impostura, essas duas irmãs tão caras ao impostor-tirano. "Ser um outro para o outro". Veremos, adiante, que esse é um tormento para os feridos narcísicos quando se veem, em análise ou terapia, tendo de ser "um outro para o analista", correspondendo às expectativas dele, analista, por exemplo [uma das maneiras é verem que recebem "apreço" quando "se encaixam em suas teorias prediletas": o famoso "leito de Procusto": amputar os pés para caberem no divã...]. Falarei da reação transferencial e contra-transferencial mais típica na situação do grande ferido, um tanto surpreendente para quem pensa só no triângulo edipiano.

Prosseguindo com Franz e sua Carta, ele nos coloca outro aspecto clássico e nevrálgico no caso dos feridos narcísicos: as cisões [muitas vezes, cisões-em-série, como veremos em casos mais graves]. Diz ele, por exemplo: "Com isso [com este estado de coisas já esboçado acima] o mundo se dividia para mim em três partes, uma onde eu, o escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas só para mim e às quais, além disso, não sabia por que, nunca podia corresponder plenamente; depois, um segundo mundo, infinitamente distante do meu, no qual você vivia, ocupado em governar, dar ordens e irritar-se com o seu não-cumprimento; e finalmente um terceiro mundo, onde as outras pessoas viviam felizes e livres de ordem e de obediência. Eu vivia imerso na vergonha: ou seguia suas leis, e isso era vergonha porque elas só valiam para mim; ou ficava teimoso, e isso também era vergonha, pois como me permitia ser teimoso diante de você?, ou então não podia obedecer porque, por exemplo, não tinha a sua força, o seu apetite, a sua destreza, embora você exigisse isso de mim como algo natural: esta era com certeza a vergonha maior. Desse modo se moviam não as reflexões, mas os sentimentos do menino." ["Carta ao Pai", pp 19-20 da edição da Companhia das Letras].

"Leis que tinham sido inventadas só para mim". Eis um sentimento bastante interessante e que merece alguma explanação. Pessoas ingênuas ou desavisadas "se surpreendem" quando se verifica que irmãos quase nunca recebem uma "educação igual". Essa "equidade" na educação ou tratamento familiar por parte dos pais é uma fantasia espúria de quem não se aproxima sequer um pouco dos fatos. Para dar exemplos bastante corriqueiros, tirados da clínica de casos nada especiais: numa casa onde dois irmãos dividem o quarto, o "espaço" ocupado por um deles é muito maior do que o do outro: pôsteres nas paredes, meias [sujas] largadas no chão e sobre a cama do irmão, e invasões análogas. Mãe e pai, sem verificarem em detalhes o funcionamento da "ocupação do espaço", podem agir de maneira bastante "curiosa": Digamos que o filho mais espaçoso suja, com freqüência, três camisetas por dia. O mais "encolhido", uma camiseta. Quando ocorrer deste sujar duas, por um acidente na mesa, por exemplo [um molho que respingou], é comum ouvir dos pais uma reprimenda do tipo: "Seu desajeitado! Pensa que tua mãe é tua empregada?". Por quê? Distantes da distinções implícitas e pré-estabelecidas, implicam com uma situação de exceção do mais contido, fazendo de sua ocorrência o estopim de uma acusação que deveria ser transformada em observação mais acurada do ambiente disfuncional instalado. Isso é a coisa mais comum de ocorrer. Equidade é coisa muito rara.

Tratando da queixa familiar de dois irmãos [menino e menina], em terapia familiar, perguntei a ambos [depois de um tempo de terapia, onde a confiança já havia sido estabelecida], com qual dos dois os pais eram mais "injustos". "Comigo", disse a menina. "Com ela", disse o menino! Diante deste acordo tácito, os pais [presentes na terapia] se surpreenderam. E não era de se surpreender. O menino era mais "charmoso", a menina mais sincera e assertiva. O menino mentia mais, mas sabia ter os pais nas mãos. Tinha os olhos verdes da mãe e, em qualquer discussão ou disputa de direitos com a irmã [menos "carismática", aos olhos da família...], sabia deitar-se ao colo da mãe e fazer com que seus olhos verdes dengosos espelhassem o zelo dos olhos "quase idênticos" dela. Simples, não? Por mecanismos de tal ordem, "prestava-se menos atenção" nas argumentações daquela menina menos dengosa [porém mais sincera], e menos identificada com a "condescendência empática" parental, a partir da mãe, figura mais presente em casa. Entre irmãos, isso é regra, não exceção.

Além dessas variáveis identificatórias, existe o "locus" [ou "valor posicional"] de cada filho na família. Digamos que numa família, sejam dadas as seguintes responsabilidades ao mais velho: "O que seu irmão fizer de errado na tua presença é sua culpa, porque você deixou; se você impedi-lo de forma que ele se machuque, ou chore, ou se sinta ofendido, você terá sido covarde; nos dois casos, você ficará de castigo no lugar dele". Estou explicitando uma regra-sem-saída que já vi operar várias vezes, em famílias "pouco funcionais". Assim sendo, quando numa família, alguém se espanta do fato de um filho crescer acuado e outro ter a chance de ser expansivo, deixa-se de se enxergar, além das variáveis individuais de temperamento, as variáveis ambientais do "bocado que coube a cada um". Daí que tais alegações costumam, comumente, sobrevalorizar os elementos individuais de "resiliência" ou falta dela, em detrimento do "valor posicional" do filho [ou filha], seu lócus ou topos, na cartografia emocional familiar. No entanto, também é factível que tiranos monumentais e pedagogos perversos [como é o caso de Daniel Gottlob Moritz Schreber, o pai do esquizofrênico Daniel Paul Schreber, cujas memórias ficaram conhecidas, inclusive pela análise a elas feita por Freud] devastem vários membros de uma família. Tal ortopedista pedagogo tinha ideias bastante peculiares sobre calar os caprichos de um bebê, impondo-lhe uma autoridade que se faria impor só pelo olhar, desde os primeiros meses. Coletes ortopédicos que comprimiam a caixa torácica e exigiriam a postura correta na hora do jantar. Técnicas de controle e pedagogia que incluíam expor o bebê a uma banheira de gelo, desde os três meses de idade. Um "higienista", como se diria na época. Um "assassino de almas", como o chamou Morton Schatzman, num livro que não deveria ser subestimado. Toda a saga de Daniel Paul Schreber, o esquizofrênico paranóide apresentava um esforço de transformação pelos raios onipotentes [e ambivalentes!] de Deus, que o atingiam, simultaneamente, a partir de dentro e de fora. Aliás, esse era um ideal de obediência do "pedagogo-ortopedista" [da alma?] Daniel Gottlob Moritz Schreber, cujas intervenções pedagógicas propunham a domar emocional e moralmente a criança [desde o berço] fazendo com que ela "não pudesse distinguir o controle do olhar parental de um auto-controle que emanasse dela mesma". Se, nos prosaicos casos clínicos citados por mim, logo acima, enxergamos a falta de equidade na distribuição de custos e recompensas aos filhos, segundo seu locus familiar, o padrão educacional do experiente doutor Daniel Gottlob Moritz Schreber foi aplicado aos filhos todos. Sua irmã mais nova, Sidonie, morreu "doente mental", e seu irmão mais velho, acometido de "uma psicose evolutiva" [sic] suicidou-se com um tiro, aos trinta e oito anos de idade. Três psicóticos na família! O generoso empenho do Patriarca Schreber teria sido frustrado pela "vulnerabilidade genética" de todos os seus descendentes? Esses fatos todos "passaram despercebidos" para a conveniente leitura freudiana do caso, em seus pressupostos clínicos de uma luta contra a homossexualidade e uma identificação idólatra-homossexual do filho com o Grande Pai, ao qual não poderia emular [e com o qual não poderia competir]. Édipo, mais uma vez, pra variar... Morton Schatzman é muito mais penetrante, percuciente e detalhista em seu trabalho investigativo-analítico [não importa que representante da anti-psiquiatria]. No rastro da arguta leitura de Schatzman, Alice Miller escreveu dois poderosos textos de análise do binômio pedagogia-trauma: For Your Own Good ["Para o Seu Próprio Bem"] e The Childhood Trauma ["O Trauma da Infância"], ambos listados na bibliografia, ao término deste capítulo.

Tendo sido uma criança doente, de baixa estatura e frágil, o pedagogo Daniel Gottlob Moritz Schreber quis fazer de seus filhos "pacientes em turno integral". Ou seja, quis, autocraticamente, "reparar" os complexos de sua própria infância nos seus descendentes. E os lesou, irremediavelmente, exponenciando sua neurose nas psicoses deles.

Num livro organizado por Juan-David Nasio, "Os Grandes Casos de Psicose", há uma observação "interessante" [e sintomática] feita pelos dois analistas encarregados da leitura do Caso Schreber, Araon Coriat e Christian Pisani. Vamos ao trecho em questão:

" 'A figura de Deus e o fracasso do Édipo'.

Em Schreber, a reconstrução [de sua personalidade psicotizada e naufragada] passa por Deus. Freud vê neste um substituto paterno, sublinhando, aliás, queum pai como o de Schreber prestava-se com facilidade a uma transfiguração divina. [Itálicos meus]. A esse respeito, talvez nos surpreenda que Freud, apesar de ter conhecimento das teorias e práticas do pai de Schreber, só lhe tenha dedicado algumas alusões breves e, em especial, até o tenha considerado, aparentemente sem ironia, um pai excelente. [Idem]. Sem concordar com as teorias antipsiquiátricas, em particular com o livro "L'esprit assassiné" de Morton Schatzman [os analistas citam a edição francesa do livro], que viu na doença de Schreber uma consequência direta da educação paterna, as práticas educacionais não podem deixar de intrigar-nos. [Itálicos meus, novamente]. Com efeito, elas chegavam à defesa do adestramento do corpo e da alma. [Idem]. No auge da doença, os homúnculos que apertavam a cabeça de Schreber lembravam, sem sombra de dúvida, os aparelhos que lhe tinham sido impostos pelo pai [ibidem]". [Os Grandes Casos de Psicose: p 55].

Se aos autores deste capítulo supracitado "talvez surpreenda" que Freud assim tenha agido diante do quadro psicopatológico de Daniel Paul Schreber, a mim não surpreende em nada. Também não me intriga a aberração das práticas educacionais de seu pai, uma vez que vejo aberrações em profusão por aí. A negligência e o desleixo em não estabelecer qualquer nexo de causalidade ou de "co-participação nosológica" da conjuntura educacional factual do menino Daniel [defendida até em livro pelo pai!] com a eclosão de seu quadro adulto é que deveria se afigurar "intrigante" [e não "só um pouco surpreendente"] aos apologetas do Mestre que impetrara tamanho viés em seu crivo analítico. Mas, no capítulo que escrevem juntos, eles parecem "salvaguardar" o Mestre de "lapso omissivo" tão flagroroso, e do viés interpretativo dele decorrente, como aquele salvaguardara o pai de Daniel Paul, o Dr. Daniel Gottlob Moritz Schreber, da nomeação sua própria patologia sádico-dominadora, francamente perversa. O Dr. Daniel Gottlob Moritz Schreber não era alguém para ser "emulado"; muito pelo contrário: era alguém para ser temido. Sua "divinização" não se daria por ele ser "objeto de emulação por parte do filho, tal a admiração que teria inspirado neste último, com o 'plus' dos desejos homossexuais supostamente co-implicados neste fascínio" [sic], mas pelo fato dele ter sido "onivigilante em relação ao filho, onipresente em sua presunção de interferência na vida dele e, portanto, 'esmagador demais', sobrepujando o papel de pai para o de um verdadeiro 'análogon de deus' [um deus temível e punitivo!] aos olhos aterrorizados [e vigiados] do filho". Na verdade, o pai de Daniel Paul Schreber o estuprara, mental e emocionalmente, durante toda a sua formação. O pai "fodera-lhe a infância", em suma. Olhando-se a coisa por este ângulo, a atitude de Freud se torna bem mais simples e mais grave, contundentemente mais grave em suas motivações, a olhos menos apologéticos e, portanto, mas críticos: o Pai da Psicanálise fez vista grossa diante de fatos clamorosos, que, uma vez levados em consideração, comprometeriam [problematizando, em muito] a "elegância conceitual" e comodidade lógico-explicativa de suas hipóteses clínicas. A manutenção dessa clareza didática e comodidade hermenêutica [não importa se deixando de lado fatos gritantes] teria, entre seus fins tácitos [ou implícitos], o de "firmar e reafirmar um modelo estrutural da psique suficientemente coerente para incluir, sem ruídos hermenêuticos, todos os dinamismos e desdobramentos psicopatológicos previstos dentro das premissas psicanalíticas sabidamente tão caras ao Fundador da Nova Ciência". [A propósito, a própria história do movimento em torno do Grande Patriarca é suficientemente eloquente a este respeito: vide a sucessão de 'expulsões dos hereges' do círculo do grupo de apologetas e/ou hagiógrafos do Mestre]. Conveniência hermenêutica e exegética, em suma. Tal conveniência conceitual incorpora, em si mesma, dois aspectos: 1) o de covardia moral e 2) o de insinceridade na seleção dos elementos factuais em jogo [=insinceridade factual]. É como nomeio tal operação freudiana de "deliberada cegueira" para aspectos cruciais da (de)formação educacional à qual Daniel Paul Schreber foi submetido; deformação esta operada por seu pai, nada digna dos encômios que Freud lhe dedica.

Voltando à Carta de Kafka, sobre o fato das leis servirem só para ele, lemos o seguinte: "... como pai você era forte demais para mim, principalmente porque meus irmãos morreram pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar inteiramente só o primeiro golpe [grifos meus], e para isso eu era fraco demais". [p 10].



Ser um Outro para Si Mesmo: Caos e Esfinge








Emannuel Bresson escreveu uma "biografia poética da loucura". Narrou, poeticamente, sua esquizofrenia. "O Menino que Perdeu sua Morte" é sua autobiografia. Fala de cisões, de companheiros internos desde a infância, de observar-se a si mesmo como um sujeito-objeto interno [M.], acompanhado de seu fantasma e de sua morte. De ser sujeito-dejeto e de ser sujeito morto, desde criança. Como este é um livro que já está escrito, não faz sentido algum parafraseá-lo, mas só me apropriar, de memória, de um dos seus trilhos para apresentar meu tema do auto-estranhamento ["ser um outro para si mesmo"].

Os fatos externos da primeira infância são singelos; suas repercussões íntimas e as reminiscências delas decorrentes, não têm nada de trivial.

A descrição do pai de Emannuel seria a de um casaco. Alguém sem corpo vital, sem afetividade, sem verdade. Alguém apoiado em ideias sobre ser, não sobre seu ser legítimo. Uma persona ambulante. Um falso self. Um casaco do qual as idéias apinhavam como enxames de enxames. Eis um pai insubstancial e irreal. Sua mãe estava afetivamente apartada de Emannuel pela influência crítica de uma tal de tia Bertha, figura bastante dominante na família. Coloquemos na tia Bertha um jaleco militar, que estará de bom tamanho, figurativamente falando.

Há uma casa onde passar as férias, dos avós. Uma casa cujo cheiro de mofo é um consolo. Há um jardim nesta casa, e estar ali é um consolo. O menino, no jardim, imagina-se sem pai, sem mãe, e sem limite espacial sobre a cabeça: emoldurado por vazio, solidão, e Infinito. Em vez de arrumar pais imaginários, o conforto do menino é saber-se/pensar-se órfão, e com o Infinito acima de si. Nada de "pais imaginais substitutivos". [Sempre direi "imaginais" em vez de "imaginários", por cuidadosa escolha semântica].

Este jardim é o "lar" do menino solitário, ou ensimesmado. Isso, até ele ser um estranho para si mesmo.

Há o jardim, o casaco-invólucro do pai, a voz de Tia Bertha, a distância do corpo afetivo materno, o assassinato interno de ambos, e o vasto céu por testemunha. Há uma senhorita que cuida da educação do menino, uma preceptora. E há um sonho inaugural do Caos, da fragmentação, da esquizofrenia. Este sonho se dá aos seis anos, e irá se repetir. Logo virá o diagnóstico, emitido pelos "bois", que é como Emannuel carinhosamente apelida os psiquiatras, pela sua falta de visão e subserviência a uma certa nosografia burocrática. Continuará chamando-os "bois" mesmo quando adulto. Talvez por sua compreensão ser mais nuançada e imagética do que a deles. Sua leitura de si mesmo, obtida a custo, ao longo dos anos.

Vamos ao sonho, emblemático. Há uma Música que nunca se ouvira, majestosa, permeando o Jardim. A música é grandiloquente e parece emoldurar, com perfeição, a Vida ali representada, com tudo que Ela comportaria. A Música Perfeita Inimaginada. O cenário é sonoro, além de plástico. Uma nota sai do lugar. Uma única nota, destacada. Toda a música se rearranja a partir dessa desconstrução, até representar a Cacofonia ou Caos mais Absoluto, de Aterrador e Insuportável. O cenário sonoro se inverte. Isso se faz acompanhar de uma inversão no cenário plástico, concomitante e correspondente: as plantas e flores passam a crescer em direção ao "dentro da Terra". Cacofonia Absoluta e Vida Introvertida ao Útero Telúrico Primal. A percepção do conjunto é aterradora, faz o menino suar e "se ver sonhando" [enquanto sonha, sem sair do sonho], vendo-se na cama, com os lençóis sujos por baldes de imundície. O sujeito dejeto é recoberto por fezes ou esgoto. Isso se repete, com nuances. Numa das vezes, o menino se vê correndo em meio a essa paisagem invertida e cacofônica, sobre quatro patas, como um animal. Corre e corre para fugir da música e da Vida que se inverte. Sonha-se como um tigre, e acorda montando sobre a preceptora que dorme na cama ao lado, tendo ela cerca de setenta quilos. Ele é um "tigre apavorado e raivoso", quando acorda. Luta por sua sobrevivência. Que ninguém seja tão apressado ao imaginar a cena primária freudiana [o coito dos pais] em episódio tão rico e nuançado. A partir daí, o diagnóstico se corroborará ao longo dos anos, ao longo do futuro-sem-futuro. Tempo e espaço na esquizofrenia são como sonhar acordado, já o percebia Joseph Berke, um dos psiquiatras a trabalhar com Ronald Laing, o célebre autor de "o self dividido". Não por acaso, o propositor e porta-voz da linha de "entendimento da linguagem na loucura" [que repercutia os "nós cegos" da linguagem do grupo social-familiar] consagrada como "antipsiquiatria". Se tempo e espaço na esquizofrenia são semelhantes a um "sonhar acordado", são inteligíveis para um bom intérprete de sonhos.

Ronald Laing era um sujeito vital e perspicaz, extremamente hábil no manejo e no entendimento dessa linguagem truncada. Esquizóides [personalidades cindidas que não necessariamente atravessaram um surto psicótico] reconheceram muito da loucura pessoal-ambiental expressa nos diálogos-monólogos de seus livros, a partir de O Self Dividido. Profissionais que procuravam uma leitura mais percuciente do que aquela oferecida pela psiquiatria de então [seu livro-manifesto foi completado em Tavistock em 1957 e publicado em 1960] também identificaram ali um rico filão hermenêutico. Se pegarmos a descrição da "travessia da loucura" feita a quatro mãos por Mary Barnes [a esquizofrênica] e Joseph Berke [um de seus psiquiatras] sobre o surto e recuperação da primeira, veremos a operacionalização dos insights da rica leitura de Laing & Cia, em Kingsley Hall. Morton Schatzman, por mim citado no capítulo anterior deste ensaio, também passou por lá, além de Noel Cobb, psicólogo de formação junguiano-hillmaniana [Carl Jung/ James Hillman]. O livro de Mary Barnes, "Viagem Através da Loucura" é um texto bastante acessível e descritivamente rico do que significa "a carreira" de um esquizofrênico. Uso o termo segundo o sutil entendimento que o próprio Joseph Berke tem da vivência de Mary. A esquizofrenia seria uma "carreira" que envolveria dois sujeitos: um paciente e um psiquiatra [ não há designação sem um designador], carreira esta que se inicia "com o encorajamento do grupo familiar mais próximo do indivíduo". Essa seria uma leitura inter-relacional da linguagem, símbolos e sintomas esquizofrênicos, como expressões de vieses, "nós cegos comunicacionais" [Double binds, na feliz expressão de Gregory Bateson, costumeiramente traduzido como "duplo vínculo", no sentido da ambivalência/ ambiguidade do mesmo, do tipo: "vá/ não vá"; ao double bind preferi chamar "nó cego comunicacional"] e cisões grupais na educação deste sujeito fraturado.

Quem quer que tenha dificuldade para conceber imaginalmente o que seja uma atmosfera sombrio-numinosa [onde presenças sobre-humanas/ inumanas parecem emoldurar um ambiente intrinsecamente sombrio] já tem neste sonho de Emannuel Bresson uma de suas expressões mais singelas e eloquentes. 

Aliás, frise-se que neste sonho temos a inumanização/desumanização do próprio sonhador que se percebe como quadrúpede-fera enquanto sonha. Uma metamorfose animal. Uma variante do tema da licantropia, que revela a presença de fundo de um tipo estranho de objeto interno [ou arquétipo] que eu considero apropriado chamar de objeto-amálgama, justamente por sua característica de fundir duas naturezas, ou de apresentar uma transição de uma natureza à outra. Numa leitura mais "narciseana" do que edipiana do Mito de Édipo, a pergunta da Esfinge representaria, justamente, o desafio interno representado pelo objeto-amálgama. Se alguns quiserem ver nesse sutil objeto meramente "o casal primal confluído" [a cena primária, o coito dos pais], eu diria que esta é, tão somente, uma das claves de leitura. Quando a Esfinge pergunta sobre aquele que anda sobre quatro, dois ou três pés [cifra: apoios, "patas"], com sua aparência híbrida [teriomórfica: humano-animal], nada mais está fazendo do que propondo um desafio análogo àquele ao qual "sucumbiu" o pequeno e cindido Emannuel, no sonho citado [e para além-aquém sonho]. As aspas se devem ao fato dele ter, depois, se reerguido [ficou sobre as duas pernas, mais adiante...].









Do Sonho ao Corpo Sonhado







O bebê inicia sua vida dormindo a maior parte do tempo. O seu estado de consciência mais comum, e frequente, é o de sono: com ou sem sonhos. É difícil imaginar como seriam os sonhos de um bebê muito pequeno. De qualquer maneira, as faixas de consciência em estado de vigília [sim, mais de uma] vão emergindo, gradualmente, das faixas de sonho e sono [outras tantas], como num gradual despertar para a realidade corpórea e encarnada, para as relações [e avaliação das relações, o que é importantíssimo] com o próprio corpo e com o mundo externo, em estados vígis. Temos, assim, um evolvimento da consciência vígil emergindo, progressiva e gradualmente, das faixas de sono e sonho. Vamos a uma consideração extremamente importante aqui: essas faixas oníricas subsistem como um plano de fundo à maneira do self experimentar a si mesmo e ao mundo. Isso ao longo de toda a vida, ainda que em seu princípio isso seja "didaticamente mais patente".

Na medida em que o sujeito se desenvolve, é importante que haja um contato ou conexão com essas diferentes faixas de consciência: faixas oníricas ou "oniroides" [semelhantes ao sonho]. Esse contato viabiliza um senso-de-continuidade ao self, inclusive pela recapitulação das experiências que, nessas faixas, são condensadas, transladadas, organizadas, recapituladas, espelhadas de forma onírico-imagética, compensadas e complementadas, em referência às experiências vígis de até então. Estas seriam algumas das funções dos sonhos, como este ensaio exemplificará.

Então temos, a princípio, uma criança com expressão verbal ainda inarticulada, experimentando-se como, progressivamente, emergindo das faixas de sono e sonho. Não surpreende que o psicanalista inglês Wilfred Bion tenha designado a principal função da mãe, nesta etapa da vida [e ainda além...] como a função de rêverie, "sonhar o sonho da criança". Isso inclui interpretar seus estados emocionais, e distingui-los. Seria catastrófico, por exemplo, confundir o "terror" com a "euforia excitada". E uma mãe que respondesse ao Terror do bebê com brincadeiras a dois, "alegres, divertidas e excitadas", para si mesma [e não para o bebê], estaria falhando flagrantemente em sua função primeira e precípua: viabilizar que o bebê se apropie de si, se enxergue e tome posse de si, através do olhar da mãe.

Ora, essa função inclui detectar necessidades fisiológicas [dor, fome, sono], além desses estados subjetivos, e apreender a diferenciá-los uns dos outros. Isso é "espelhamento empático" dos estados do bebê, isso também é "holding", o cuidado "suficientemente bom" de que nos fala Winnicott, e isso é "rêverie", como postulado por Bion. As três coisas se imbricam nesta fase. Em terapia, podemos também falar na capacidade de rêverie do terapeuta, como sua aptidão em "sonhar o sonho do paciente", ou captar-lhe as sutis nuances: espelhá-las, apreendê-las, nomeá-las. Essa, também, é a função precípua de um bom terapeuta: sua capacidade de rêverie, holding, espelhamento empático. Outra capacidade é de suscitar questões e fazer perguntas que o sujeito não fez a si mesmo, no âmbito de tudo que apresenta, sempre no tempo oportuno, para que ele se questione [e se veja] em ângulos cada vez mais abrangentes e menos tacanhos.

Mas, a partir do bebê, voltemos à nossa reflexão. Imaginemos que o ambiente parental deste bebê não o proteja de muitas invasões nesta fase de sua vida. Por exemplo: que seu sono seja interrompido por brigas, barulhos extremos, excesso de estímulos ambientais dos quais ele não possa ser poupado pela "barreira de proteção" [ou "filtro"] que o ambiente parental deve constituir para qualquer bebê. Isso terá uma série de consequências para o nosso pequeno sujeito: desde um "reflexo de sobressalto" que o impedirá de relaxar e confiar no relaxamento e nos estados não excitados [um dos gatilhos comuns para futuras crises de pânico, pouco aventado por muitos estudiosos], até a impossibilidade de se sentir "inteiro" e "relaxado" quando sozinho. Um medo exacerbado da solidão também pode evolver de tamanha invasão ambiental na idade precoce. Não há nada mais concreto do que esses prejuízos tidos como "sutis". São piores do que a relativa privação material com bom apoio emocional.

Mas não é só a este tipo de invasão [aquela que impede o sono] que o bebê está sujeito. São muitas as invasões que sabotam os ritmos internos da criança, sua atenção para consigo mesma, seu relaxamento e excitação espontâneos, sua auto-absorção, seu olhar curioso para o mundo exterior. Um ambiente externo caótico, brigas, gritos, um quantum de imprevisibilidade acima do digerível pelo infante [ser tratado como brinquedo, por exemplo, nas mãos de um e outro, como objeto lúdico a serviço do narcisismo dos que dele "cuidam"], tudo isso costuma produzir um sentimento de confusão psíquica, desde a primeiríssima infância; um senso de fragmentação no lugar do progressivo senso-de-continuidade, bem como a impossibilidade de integrar estados relaxados aos excitados. O bebê [e, mais tarde, a criança] não conseguirá apreender a si mesmo como um-e-o-mesmo, um único e mesmo self. Dessa dificuldade de base decorrerão outros desajustes e prejuízos em seu desenvolvimento: a dificuldade de localizar em si as emoções, bem como as capacidades de distingui-las, nomeá-las, modulá-las e regulá-las. 

Se os seus sentidos e necessidades não são apropriadamente apreendidos, espelhados e compensados/atendidos pelo ambiente, haverá um sentimento de mutilação no self em desenvolvimento, e a criança ou bebê ficará aterrorizada(o) por se ver sozinha(o) em muitos enigmas, internos-externos. Ela não poderá organizar uma imagem de si clara e íntegra: raiva, fome, medo, tudo isso será precocemente investido como "enigma" pela própria atenção da criança. Ela estará, defensivamente, "zelando por si mesma". Pode ser duro de ouvir, mas este é o dano mínimo ocasionado pela má parentagem. Em linguagem psicanalítica, essa criança estará sendo empurrada para uma hiper-catexia precoce tanto dos objetos internos [investindo muita energia, atenção ou libido nos objetos internos: propriocepção, estados corporais sutis] quanto nos externos, dos quais julga precisar se defender [ou "prever sua ocorrência", o que dá no mesmo]. Os objetos lhe soam invasivos por serem invasivos, de fato. Mas, além disso, objetos não-empáticos ou responsivos criam o dano adicional de multiplicar questões-sem-resposta para a criança, inclusive a respeito de si mesma. A assim-chamada hipocondria é apenas um dos desdobramentos mais banais dessa hiper-auscultação interna projetada em medos externos ou ambientais [pegar alguma coisa do ambiente ou deteriorar-se por dentro]. Naturalmente que os objetos internos hiper-catexizados se derramarão no ambiente já inadequado como monstros ou sombras adicionais. O ambiente também será sombriamente mitificado. Assim se trama, no fora-dentro-fora, a dupla face dessa hiper-catexia precoce.

A catexização precoce abrange objetos internos e externos. Os internos virarão "fantasmas", objetos internos perseguidores, como a contraface interna das "doenças investidas em culpa", como por exemplo: "eu fiz essa doença em mim, e preciso desfazê-la"; "eu tenho um sopro no coração porque sou ruim, e Deus me fez soprando um mau sopro"]. Este é um possível desdobramento do objeto interno catexizado com hiper-atenção preocupada + culpa, numa criança maiorzinha, de quatro anos de idade, por exemplo. "Meu sopro no coração é um sopro mau que Deus pôs no meu coração, por eu ser mau". As equações dessa hiper-catexia precoce são assim: míticas, trágicas. Os objetos externos serão interpretados como "inimigos" a serem evitados, propiciados, apaziguados, mimetizados, segundo "n" variáveis da equação ambiental-individual. E isso não se deu sem razões factuais para tanto, frise-se.

O sujeito-bebê-criança poderá desenvolver uma aptidão extraordinariamente acurada e "anormal" para nano-percepções relativas ao seu ambiente hostil: mínimas variações de humor dos circunstantes, presságios de invasão, uma acurada avaliação da "temperatura ambiente", em termos de "temperatura humana". Pode responder a isso mimeticamente, propiciatoriamente, apotropaicamente [mudando os nomes das coisas, na incapacidade de mudar-lhes a essência], submissamente [tentando passar desapercebido ou "anônimo"], além de ter uma capacidade de catalogação de elementos formais-ambientais igualmente precoce e "anormal". Isso pode evoluir para uma hiper memória classificatória, a constituição de "n" rituais de defesa [propiciatórios, apotropaicos, miméticos, etc], comportamentos obsessivo-ritualísticos, uma intelecção extremamente precoce, ou uma apatia defensiva [mais uma vez, devemos examinar as outras "n" variáveis ambientais]. 

Assim, por exemplo, não deveríamos nos espantar daquela criança que "auscultava" seu sopro no coração como "maldição-eleição divina" ["o sopro no meu coração é diferente do sopro que criou os outros, é pior"] em seus rituais propiciatórios, evoluírem, na idade adulta, em medos e ritos elaborados para não morrer em qualquer atividade que exija um pouco mais do seu coração: correr para pegar um ônibus, atravessar depressa uma rua, atividades esportivas. Tudo isso teve sua linha de desenvolvimento na "leitura" que o sujeito fez de si mesmo. E não há nada de "esdrúxulo" ou "louco" neste padrão evolutivo: ele é perfeitamente claro e inteligível quando se examinam as realidades interna-externa desse sujeito, em corte longitudinal [ao longo do tempo] e em corte transversal [no seu "momentum terapêutico"], considerando-se sintomas, discursos, sonhos, mundo "imaginal" [não uso a palavra "imaginário", porque ela desqualifica a substancialidade deste mundo para o sujeito que o experiencia].

Podemos também imaginar, nesta hiper-acuidade a nano-percepções que um sujeito desenvolva, as capacidades quase mediúnicas que muitos adquirem, descrevendo para os outros como eles estão, o que sentem, o que guardam, etc e tal. Eis algumas linhas de desenvolvimento claramente factíveis [e detectáveis na clínica e na vida fora do consultório], decorrentes das falhas no rêverie parental, no holding, e de se estabelecer uma "barreira de proteção" [ou "filtro protetor"] à capacidade do ego incipiente [ou do self emergente] de lidar com invasões. Essas invasões podem ser agressões de outras crianças, historietas que aterrorizem o bebê ou criança, sadismo parental ou de terceiros, abusos físicos; fatos estes que, sabemos, há em profusão no mundo. A globalização e os noticiários o revelaram, se a ingenuidade ou conveniência dos adultos insistia em preferir ignorá-los. Não é mais possível fazê-lo. Assim sendo, hoje temos um micro-mapeamento de algumas das situações clássicas [e trágicas] que constituem um ferido narcísico, muito aquém-e-além do Édipo. A situação edípica, muito clara e igualmente consistente, é aquela de ser visto [ou se ver] como "o terceiro excluído". Tal constelação, a edipiana, traz seus próprios problemas e desafios; que, no entanto, não são os mesmos trazidos pela ferida narcísica primal.

Essa falta de senso de continuidade no self, esses "vazios ontológicos", e essa exponenciação do mundo fantasmático a permear a realidade interna-externa, deixa o sujeito muito mais acuado e desamparado do que o ferido edípico. Sentindo coisas impensáveis para os edipianos como, por exemplo, "a dificuldade de se sentir habitando o próprio corpo", um dos "medos impensáveis" designados por Donald Winnicott. Essa dificuldade originária e "pré-pensável" [impensável para os edipianos] pode se desdobrar em vários episódios de despersonalização ["não se sentir sendo si mesmo"] e/ou "desrealização do mundo" ["não sentir a substância do mundo, olhá-lo como que através de um véu, ou por uma tela de televisão"]. Situações esquizoides, crepusculares ["estados confusionais"] e crises de pânico compartilham [em graus variados] dessas variáveis: todas elas relacionadas a ferimentos narcísicos, pré-edipianos. A esquizofrenia é a epítome disso. Aqui, neste ensaio, apresento, deliberadamente, as variáveis educacionais-ambientais de uma cadeia de causas que incluem "histórico genético familiar", ao lado do histórico comportamental familiar. O analista ou terapeuta não interfere nos genes, mas pode reconstruir um senso de self-na-história. Por isso a opção por dispensar a variável estritamente biológica em nossa avaliação do "como" e do "que" ver, fazer, ler, intervir, interpretar, cuidar. Que as neurociências têm seu quantum de contribuição a oferecer é inequívoco.

Começamos este capítulo falando do quanto o bebê dorme [se o deixarem e dele cuidarem direito]. Como o self infantil emergirá para auto-consciência a partir dessas faixas de sono-sonho, muito da libido do sujeito [e coloco "libido" no sentido junguiano do termo, como "interesse-foco"] estará conectada a objetos internos, ao longo de toda a vida. Esses bebês e crianças mais prejudicados em seu desenvolvimento terão essa libido ligada a objetos internos persecutórios, fantasmático-bizarros, numinoso-sombrios, e outras coisas pouco compreensíveis a quem não conhece essas distorções interacionais/ambientais, bem como a gênese do mundo fantasmático ou "mítico" do ferido narcísico. Pois bem: o sujeito terá sua libido [como "élan", frisando o sentido junguiano com outro termo, este Bergsoniano] relacionada ao corpo também de uma maneira oniroide. Sim: o corpo também será "onirizado". O corpo de carne também é um corpo-de-sonho. Os budistas sempre souberam disso. Os pós-junguianos e psicanalistas avançados de tradição inglesa [Winnicott, Daniel Stern, Bion, James Grotstein, Thomas Ogden, entre outros] estão todos absolutamente cientes dessa premissa.

A libido/élan, então, irá se relacionar com o corpo também de uma maneira oniroide, e não só "realista", construindo como que uma teia-subliminar-de-percepções, sensações e "imaginação oniroide" [imagem- construída-ao-modo-dos-sonhos] em torno de/ao redor do corpo físico. Estamos diante de um "corpo imaginal" [leia minha justificativa acima do porque não usar o termo "imaginário"]. Este é, por exemplo, o "corpo onírico" de que fala Arnold Mindell, um pós-junguiano que estabeleceu uma terapia denominada "terapia orientada por processos", onde o "sonho subjacente ao corpo" é acessado por "trocas sucessivas de canais sensoriais e proprioceptivos": um desdobramento avançado [e extremamente mais didático e minucioso] do que Jung fazia com sua técnica de imaginação ativa, tão pouco compreendida. Vários estados meditativos também acessam tal corpo onírico, aquela camada de sonho que "nimba o corpo". Técnicas de meditação budista tentam aproximar as diferentes faixas onde o self se experimenta [mesmo como não-self!], estabelecendo uma linha de continuidade entre estados vígis e sonhos lúcidos [aqueles nos quais o sujeito sabe que está dormindo, mas continua a agir no sonho, sem acordar, somo self-onírico]. Essa técnica também é conhecida na Índia [no Hinduísmo] como Nidra Yoga ["yoga dos sonhos"]. Exemplificarei um processo muito similar às trocas de canais operadas por Arnold Mindell num caso clínico, no capítulo final deste ensaio, quando citar uma das Imagos [ou "arquétipos", segundo a preferência terminológica do leitor] que me parece crucial no processo analítico de feridos narcísicos: o arquétipo/imago do "portador do espelho", que será apresentado como manifestado em sonhos e em estado hipnagógico [como objeto interno compensatório], no tratamento de uma paciente com histórico de inúmeras cirurgias de reparação facial [minimização de cicatrizes decorrentes de acidente automobilístico].

O importante é ressaltar que uma forma de promover a maior integração do self é aproximar as diferentes faixas de consciência que ele experimenta, e nas quais se vê representado. Como etapa do processo de (re)constituição de um senso-incorporado-e-vivo-do-self-para-si-mesmo-e-no-mundo é importante que ele se reconheça nos diversos modos de representação e auto-experiência que suas diversas faixas [vígis e onírico-hipnagógicas] exprimem e revelam. Veremos muitos objetos internos superpostos à realidade externa nessas camadas. James Grotstein, por exemplo, explicita entre tais objetos ou imagos: "objeto bizarro", "objeto Nêmesis", "objeto trapaceiro", "objeto sagrado", "objeto cassandra", "objeto-cicatriz", "objeto morto", entre outras duas dezenas de apropriadas designações objetais na realidade interna do ferido narcísico. Muito do que eu chamo de Numinoso Sombrio e seus desdobramentos possíveis na trajetória do self [acuamento, cristalização da doença, reparação ou "cura relativa"] é a ambiência que cerca estes personagens. Eis a forma que um bioniano encontrou de apontar os arquétipos junguianos.

Vamos dar a palavra a James Grotstein para que não me acusem de "herege" ou "mau intérprete da escola alheia":

"Em contraste com psicanalistas de várias escolas freudianas, Jung e seus seguidores tiveram bastante interesse naquilo a que me refiro como residentes ou, preferivelmente, como presenças [os itálicos são do autor], que ocupam, ou podemos dizer, assombram o inconsciente. Podem ser chamados de objetos, mas quando examinamos material clínico mais de perto, especialmente sonhos, fica claro que este termo é impessoal, vago e atenuado. A idéia de arquétipos do inconsciente coletivo [idem, quanto aos itálicos] é próxima da experiência subjetiva interna do paciente, e enfatizo os equivalentes kleiniano e bioniano preconcepções inerentes e fantasias inconscientes de fantasmas/ monstros/ quimeras produzidos por identificação projetiva [ibidem; James Grotstein, "Quem é o Sonhador que Sonha o Sonho: Um Estudo de Presenças Psíquicas", p 245]."

Aí está. Já era hora de se perceber que, sem a acurada percepção dessa realidade imaginal, nada se pode fazer pelo ferido narcísico. Nada. Há algo da vigília expresso no sonho [e mais do que os restos diurnos de Freud], bem como algo do sonho permanentemente permeando a vigília. Faltava à psicanálise se apropriar, ao seu modo, dessa variável da equação.

Felizmente, já está feito.







A Questão Narcísica da Irrealidade







"É tão impossível exercer liberdade num mundo irreal quanto saltar enquanto se está caindo." Colin Wilson, O Outsider.

A partir do que expus no capítulo anterior, resolvi fazer algo um tanto diferente. Vou repetir o capítulo, dizendo as mesmas coisas a partir de um vértice um tanto distinto. O vértice é o seguinte: partirei das ideias do psicanalista inglês Donald Winnicott apresentando, na perspectiva do mesmo, como surge a noção do real para o bebê. Em outros termos: como o bebê alcança a noção da realidade de si e do mundo. Este é exatamente o assunto que discuti no capítulo anterior, mas, dada a sua importância, achei interessante a ideia de "repeti-lo em outros termos". E, a princípio, tais termos serão "winnicottianos". E mais: encaminharei a discussão para incluir a importante assertiva de Colin Wilson no seu clássico: The Outsider.

O bebê tem necessidades; seus instintos ou impulsos [pulsões] encaminham esse bebê ao mundo externo, em direção a um "algo" que ele procura: calor, aconchego, leite, diminuição da luz ambiente, massagem abdominal, mudar de posição para vomitar ou evacuar, etc, etc. Quando os vetores do que ele "sente que precisa" com o que "o ambiente oferece a ele" convergem, temos o sentido de "realidade" para o bebê. Realidade é casamento da pulsão [necessidade, desejo] com o suporte ambiental [resposta, apoio, acolhimento, "holding"]. Quando a criança encontra essa justaposição, a princípio fantasia que "seu desejo produziu tal realidade" [em suma: "porque ela desejou ou precisou, o objeto surgiu"]. Tal superposição [acompanhada dessa suposição instintiva de "criação do mundo"] é uma fase necessária de encontro bebê-ambiente. Do contrário, haveria fracasso ambiental, e o bebê não poderia crer em "nenhuma realidade possível". Um grande vazio existencial, um vazio ontológico [um vazio referente ao sentimento de si e ao sentimento de realidade do mundo, ambos imbricados] se instalaria no bebê, produzindo angústias muito arcaicas neste indivíduo. [Lembremo-nos que o sujeito-bebê se encontra nos primórdios de seu desenvolvimento]. Tais angústias, de tão arcaicas, primitivas, foram chamadas por Winnicott de "medos impensáveis". Um desses medos é de não estar no corpo [já o delineamos, brevemente, em nosso capítulo anterior]. Outro desses medos arcaicos refere-se à sensação de uma queda sem término, uma perda absoluta de chão ontológico [de base ontológica para a existência de si e/ou das coisas]: uma "queda livre infinita". Fica-nos, portanto, claro [sobretudo a partir da explanação do capítulo anterior] que esses são medos ligados ao sentimento de desrealização do mundo, ou de irrealidade do mundo. Sim, e com provável sentimento concomitante de "despersonalização do eu". Então, nessa procura inicial dos desejos/necessidades do bebê relacionados ao suporte ambiental, pode advir uma angustiosa sensação [bastante primitiva, e "inominável, de tão primitiva" – por isso mesmo, "impensável" – por ser uma "angústia dos primórdios, pré-pensamento] de "não haver bebê" e/ou de "não haver ambiente". Essa é, em termos bem sumarizados a dupla face do sentimento de (ir)realidade do mundo e do eu. Se o bebê estende a mão e encontra algo, sua mão e esse algo existem. Se ele estende e nada pode alcançar, "mão e algo deixam de existir". A esse propósito, ler meu poema "Mão". 





Mão




Eu Criei o Mundo com Minha
Mão, quando Lá Fora achei o que
Buscava. Não havia Hiato, não havia
Vão. Nenhum Vazio Ontológico. Eu
Era e Me Bastava.


A Voz de meu Pai, Trovejando, era
só Meteoritos no meu Estômago, e não
me Deixava(m) Aflito. Aprendi, desde
que me Descobri Criando, a traçar
Metas; a Fazer Valer Meus Bons
Objetivos.


O Mundo tem Sujeitos e Objetos, e Seus
Predicados. Há que se Distingui-los em Co
-ordenadas de Tempo, Espaço, Frustração,
Adiamento e Atraso. Há que se Distinguir
a Si do Outro, sem Defletir a Agressão,
nem Demolir a Liberdade de Alguém
em nos Dizer seu
Não.


Na Rejeição não há Fracasso. E sim
na Falha de nos Sabermos Distintos
da Escolha do Outro. Estendi minha
Mão e Criei o Mundo, que Achei Lá
Fora. Mas,também, Meu
Inimigo.






Marcelo Novaes




Pois bem: enquanto o bebê vive essa descoberta do mundo como prolongamento [e contraparte] de suas necessidades e buscas, ele pensa que cria o mundo! [o poema deixa esse sentimento bem claro]. Essa "cosmogonia autóctone", pessoal, objetiva e primitiva é uma sensação de que "o mundo foi feito por mim", por parte do bebê que se descobre [e ao mundo, ao mesmo tempo]. James Grotstein dedica bastante atenção a este tema, deixando claro como esse estágio é um prelúdio obrigatório e passo necessário em direção ao sentimento de alteridade: eu-outro. Não há construção desse sentimento quando se sente que o mundo e/ou o eu não são "reais" [nesse sentido dado: "algo que possa ser alcançado"]. Quando não há este algo, metas são solapadas, melhor dizendo: de todo inviabilizadas, porque não há solo algum para que essas metas possam existir [mal há "a realidade do mundo", o que dirá qualquer objetivo ou valor possível nele]. Ideias e Ideais são desdobramentos dessa "realidade relativa" do mundo. Quando há "algo" a "ser encontrado pela mão" e "insuficiências em relação a esse algo" [limitações ou lapsos nesse algo], ambos, Ideais ou Ideias, podem preencher essas insuficiências. Isso é importantíssimo ressaltar: há também a importância da Ausência na vivência daquele cuja mão "pôde alcançar um Algo" [não sempre completo, e por vezes não pôde, mas progressivamente ciente de sua "existência potencial", na medida em que avança no tempo de seu desenvolvimento]. Mesmo esses lapsos ou lacunas eventuais podem estar prenhes de esperança, ou até de "confiança" numa criação posterior [ou seja: num encontro posterior entre a mão e seu objeto]. Por isso, além da realidade palpável, também existe a "realidade da dimensão ideal" para o sujeito engajado "a preencher tais vazios" ao longo de sua vida. Por isso a noção de Ideia é algo também substancial [nada de "irreal", "evanescente" ou "fútil", como muitas vezes se pretende; ao contrário, algo "concebível, e plenamente palpável na medida mesma do concebimento de sua possibilidade/ plausibilidade"]. 

Sim. A Ideia é algo substancial no sentido platônico do termo: um "Algo que pré-existe e que pode preencher a Busca Criativa" [ou o "Esforço de Alcançar este Algo"]. Também o cerne das noções de Ideia Platônica ou Arquétipo Junguiano [repare-se que a noção já existia em Schiller, em Goethe e no Romantismo/Idealismo Alemão] inclui o que estou chamando de "possível preenchimento de uma falta". A noção dessa "possibilidade de preenchimento [da falta]" em si mesma é platônica e arquetípica. Conceber um elemento-ideal que esteja além do dado experimentado, e que possa aperfeiçoá-lo [por exemplo: "um maior quantum de justiça à injustiça experimentada"] é, conceitualmente falando, um raciocínio "platônico" ou "arquetípico". Romântico também, no sentido do ideário ético-estético do Romantismo/Idealismo alemão. Além disso, essa concepção de acreditar que se possa fazer uma "ponte entre aqui e lá" [ou seja, entre o que se vive, o que se vê, o que se experimenta com o que se "concebe-além-do-visto-e-vivido", acrescentando "substância valorativa" ao mundo vivido] é, fundamentalmente, uma "concepção religiosa" do mundo: com ou sem "Religião Formal". Com ou sem clericalismos. É uma noção pré-clerical, pré-institucional. Implica na noção "que se traz algo do plano da ideia para o mundo vivo", na corporificação [relativa] desta Ideia-Valor. Ou na "Encarnação do Verbo", manifestação-limite dessa mesma noção, para enfatizarmos a grande declaração neoplatônica de abertura do Evangelho de São João. Daí quando se atribui a Jung uma "psicologia religiosa", se está certo nesse sentido específico. É platônica, sim, é religiosa e também segue a mesma linha de reflexão que formatou o Romantismo-Idealismo Alemão de Goethe, Schiller, Fichte, Shelling. Esse "veio" [ou linha de reflexão] é, em última instância, platônico/neoplatônico. Em algum ponto esse "veio" pode encontrar o Cristianismo [pois que há muitos teólogos cristão-neoplatônicos], como pode se dar paralelamente ao Cristianismo, "descobrindo" valores laterais ou correlatos Àquele, até certa medida. 

De qualquer maneira, trata-se de um modo de conceber o trajeto humano que privilegia o "significado" para além do fato. Inclusive, aproveitando os fatos para extrair deles os melhores significados e ideais decorrentes, até de suas insuficiências: é o "amor fati" de Jung [expressão já utilizada por Nietzsche, com outra coloração: como reconhecimento-validação do valor do próprio percurso, de sua "razão necessária", assim outorgada/descoberta pela própria Vontade], como também o "tudo concorre para a Salvação dos que buscam a Deus" do Cristianismo. Isso quer dizer o que? Que mesmo "a vida de limitações e pecados" é "justificada" [encontra seu lugar ou sua razão no Plano de Deus], quando se procura os Valores Mais Altos [num caso, a Verdade Cristã; noutro, o significado e potencial do próprio percurso com seus percalços], porque os erros ajudaram a evidenciar a Supremacia dessa Verdade, e o homem se Rende e se Converte [Metanoia, Transformação, na perspectiva cristã; "amor fati", enantiodromia e individuação, no caso dos construtos junguianos]. Então, também o erro [ou a "insuficiência ideal dos fatos" ou "a insuficiência dos fatos perante o Ideal"] pode conduzir à verdade [à maior porção da verdade abarcável pelo indivíduo, sobretudo à verdade sobre si mesmo], quando se tem honestidade de busca, autocrítica, humildade psíquica e boa vontade. 

Esse raciocínio é platônico em sua raiz. Alcança-se o ideal, dialeticamente, reconhecendo como o fato é esse mesmo ideal refratado, ou degradado. Com um acréscimo: procuremos aperfeiçoar os dados do mundo/ no mundo [que são como que Imagens Caídas ou Refratadas do Mundo Ideal], enquanto aspiramos e somos capazes de conceber valores progressivamente mais puros. Uma coisa não exclui a outra. Isso é Filosofia e Teologia de boa cepa, seja Cristã, seja Platônica. E não há nada de "evasivo" nisso, nem de "política de cruzar os braços", muito pelo contrário, independente da atitude histórica de um ou outro representante dessas Tradições. Quando um belo ideário não encontra muitos capazes de vivê-lo, não se suspeita, necessariamente, do ideário. Porque haveria sempre outro tanto de exemplos de homens/mulheres capazes de colocá-lo em prática. 

No entanto, ao dizer isso, não valido a "imagem construída e institucionalizada" de Jung como "homem individuado" [não, Jung não é Cristo, nem exemplo de "totalidade" ou "inteireza"] e sua caricata deificação [não, Jung não atingiu nada semelhante ao "máximo do humano"], tal como apresentada no Livro Vermelho. Jung critica a "opção fácil" de Albert Schweitzer de ir à África, como médico, abdicando de seus inúmeros talentos como músico, teólogo, filósofo, por imaginar que ali, naquele continente, os negros o "cultuariam", viabilizando e facilitando-lhe "a cômoda fuga da Europa e dos deveres europeus". Essa crítica a Albert Schweitzer revela a visão de mundo, ou Weltanschauung, de Jung, não de Albert.

De forma igualmente unilateral, Jung só concebe a "enantiodromia" [o momentumonde as inclinações e ações da consciência se revertem em seu oposto, por uma tomada súbita desta consciência em relação a esses mesmos valores e prioridades, tais como iluminados e compensados pelo inconsciente] só nos seus próprios termos: conquistas burguesas médias [cumprimento das expectativas sociais de sucesso burguês] seguidas de recolhimento e transvaloração das mesmas, como preparação para a morte. Roteiro estreito, este. Há pessoas que vivenciam a reversão na escala de valores antes dos trinta anos, e antes das tais realizações sociais: nada de constituir família, nada de "se posicionar no mundo burguês" para, depois, relativizá-lo. Nada de enantiodromia esperneante ou agônica. A enantiodromia que Jung desconhece [e cuja existência parece até "incapaz de conceber"] é aquela de quem "por ter visto muito bem a insuficiência de certos valores propostos, larga mão dos mesmos [e mesmo de "caçá-los"] e adota outros valores, que soam como renúncia àqueles socialmente sancionados, e que ele, Jung, esperaria desejáveis [os únicos desejáveis, ouso dizer] na primeira etapa da vida". Jung não acredita nos renunciantes, não pode entender a opção de Buda ou dos Sannyasins. Não acredita nos nômades que não precisam estar "bem enraizados na cultura de seu tempo" para lidarem com o inconsciente. Não parece entender os missionários sem família que viajam pelo mundo: médicos sem fronteiras não-casados, professores de periferias sem família, gente do bem e que se voluntariza a agir em causas sociais, sem "maquiagens". Jung crê primeiro no cultivo da maquiagem, no esmero da maquiagem [a persona bem sucedida] para depois, quem sabe, e "agonicamente", o sujeito abdicar de tudo isso. 

Personagens tais como Ellen Gruwell, a personagem real do filme "Escritores da Liberdade" [Freedom Writers], que sacrificam família, casamento [seu marido não consegue entendê-la], em nome da educação de jovens de periferia, e que o fazem "sem esperneios" ou "crises de identidade", com convicção, bem cientes do que perdem e acolhem, antes dos quarenta anos, são um mistério para Jung. Simplesmente pelo fato de tal altruísmo não caber "em sua totalidade". O mesmo poder-se-ia dizer de "nômades" como o personagem desempenhado por Adrien Brody, no filme Detachment ["O Substituto"], o professor substituto por opção, que encara barras pesadas com adolescentes infratores, sem criar vínculos familiares, e perdoando uma infância difícil, sem "atuá-la" ou "reproduzir seus danos" na vida adulta. Pelo contrário: reparando-as sem ter uma família! Essas coisas existem e acontecem, nos filmes como na vida real, mas Jung não pode concebê-las por não participarem de seu "código burguês do que seja inteireza". Todos os exemplos por mim citados são mais íntegros do que Jung jamais pôde ser em sua vida e, em sua perspectiva tacanha, seriam vistos como "mutilações" ou "restrições à vida plena". Essa é mais uma de minhas críticas, bastante fundamentada, à visão de mundo, Weltanschauung ou "ideologia junguiana", subjacente à sua visão clínica do "desenvolvimento típico" ou "sadio". O atípico pode ser mais íntegro e mais são.

Considero o culto a Jung, que se deixa vazar por todos os lados do Livro Vermelho, lido como "Códice" [é só atentar para os comentários de Cary Baines a passagens dos Livros Negros, que lhe servem de esboço, aos comentários de Sonu Shamdasani às correções de Jung a esses mesmos esboços, etc, etc], como "a grande inflação junguiana". E um equívoco epistêmico. Explico: seu processo de "confecção do mito pessoal" [e do mito de nosso tempo, porque ele ousa "esboçar o mito de seu tempo", qual dublê de profeta!] se dá sem diferenciação suficiente da valência/status de cada imago apresentada ali. Sim, porque ele aglutina figuras de status ontológico distintos: imagem de paciente falecida, voz de paciente viva, figura imaginal mítica, todas bastante distintas, como se todo este material pudesse fazer parte de um continuum lido como mensagem em progressão, num processo artificioso de colagem, que lineariza todas essas diferentes instâncias como a "voz da alma" ou "voz da anima". Pois bem, tudo isso aporta suficiente carga de contrafação e autoconveniência que me afasta do autor. Por isso, como "relator de um percurso dialético" [um descritor, não um auto-deificado exemplo], Platão é muito mais honesto do que Jung. E todos os personagens por mim citados acima são mais dignos, inteiros, íntegros e altruístas do que o Pai da Psicologia Analítica.

Rubem Alves postula em seu livro "O que é Religião", que o cerne da Religião se constitui nos Símbolos da Ausência. Eu poderia transpor sua expressão [certo da anuência dele] para a assertiva de que "a Ambiência Religiosa é constituída pela soma das Ausências Significativas, tidas como Vitais/Sagradas". Jung postulou para o inconsciente [individual + coletivo] também uma função compensatória. No capítulo anterior, eu nomeei algumas das finalidades/ funções dos sonhos, segundo minhas perspectivas. Essas funções correspondem a algumas das funções do inconsciente, segundo Jung. A "função compensatória do inconsciente" possui estreita afinidade com a dialética platônica: da sombra para a ideia, do insuficiente para o factível que, depois, se revela em substância, na medida mesma de sua "plausibilidade imaginal" e relativa factibilidade material. O fato da ideia ser refratada não lhe tira o status ontológico de ser tão substancial [aliás mais!] do que os fatos materiais, porque os precederiam, ontológica e axiologicamente. 

Deixando de lado essas sutilezas filosóficas [boas para discussões acadêmicas] podemos, enfim, ler Platão de uma maneira junguiana [ou Jung de uma maneira platônica], estabelecendo uma ponte entre os dois pensadores. Jolande Jacobi já o fez, em seus próprios termos, em texto citado por mim na sugestão bibliográfica para este capítulo. Convido o leitor a fazer seu julgamento da apreciação que ela faz, clássica e acessível, do modo tipicamente junguiano de abordar as coisas. O meu modo é outro, mas sou democrata e disponibilizo acesso a material comparativo [e confrontatório] às minhas próprias convicções. Meu modo é diverso pelo fato já apontado do que considero serem as "indiferenciações" no lidar com as Imagos por parte de Jung. Aqui, serei um pouco mais didático e pormenorizado na crítica: a) a voz coletiva dos mortos [vide "Os Sete Sermões aos Mortos", como discurso final do Livro Vermelho], b) a voz-imagem de uma pessoa morta com a qual se teve uma relação específica [ex-paciente que lhe apontou a riqueza da cultura egípcia], c) a voz-imagem de uma pessoa viva que se conhece no presente ou com a qual se conviveu [a fala de uma paciente-amante que chama seu trabalho de "arte", e não ciência; provavelmente Mary Moltzer], e c) a voz-imagem de uma figura mítica [Salomé ou qualquer outra], todas essas camadas de informação jamais poderiam ser artificialmente equalizadas, naquilo que apontam ou aportam para o sujeito, a) seja sobre si mesmo, b) sobre resíduos relacionais específicos de seu modo de se portar perante cada uma dessas instâncias [tomadas literal e simbolicamente], bem como c) sobre "valências mítico-sagradas" que podem ser úteis ao auto-desvelamento do sujeito para si e perante si. Jung, indevidamente, mistura essas instâncias. 

Um livro inteiro seria pouco para ilustrar os muitos níveis de diferenciação das Imagos que faltam ao Livro Vermelho e que lhe seriam necessários, níveis estes não devidamente operados por Jung, com implicações inevitáveis sobre as seguintes questões: a) O que se "integra em si"; b) O que se contempla, sem integrar, para "aprender sobre si"; c) O que não se modifica, contemplando-se; d) Com o que se dialoga, para que ambos os polos [Imago e Self] se modifiquem a ambos; e) O que sugere um vetor de mudança ou revisão dialogal relativamente a pessoas concretas, ou com a memória das mesmas; f) A revisão de si mesmo decorrente de todas essas distintas instâncias imaginais ; g) Os nomes que as próprias Imagos se atribuem x os nomes que se escolhe dar a elas, o que Jung operou cuidadosamente, em vários casos, com a minudente ajuda de Toni Wolff. Neste último caso, Jung decidiu como batizar certas Imagos a posteriori, com ajuda de sua erudição, o que permite uma sobrevaloração de sua "cor", por escolha [ou decisão] nominativa. A confusão é grave. 

Fazendo uma analogia espírita, seria o mesmo que não saber distinguir "as classes de espíritos com os quais se dialoga". Tomar, por exemplo, a fala de uma Pomba-Gira zombeteira como porta-voz do que de "mais alto possa existir". O mesmo se dá com a Cosmogonia [ou psicocosmogonia, uma vez que há "a interiorização da Cosmogonia na psique"] no Livro Vermelho: O Alto e o Baixo, o Pessoal e o Suprapessoal, o relacional e mítico, o inter-subjetivo e o "Objetivo", o ancestral e o "atemporal" [coisas muitíssimo distintas] são misturados não por uma "riqueza cosmogônica inequívoca que uniria tudo isso" (sic), não pela "tessitura hábil do Unus Mundus", mas pela pressa e precipitação em não distinguir as coisas muito bem antes de uni-las. Jung, como aprendiz de alquimista, deveria ter sido muito mais criterioso nesse aspecto fundamental. Essa é outra crítica que faço ao "mestre" a partir de fundamentos próprios, sem tomar emprestados outros que se encontram de outros críticos a este "Tratado de Auto-Deificação", o tal Liber Novus ou Livro Vermelho.
Deixando um pouco o Pai Fundador de lado, eu, de minha parte, chamaria a essas Ausências Significativas postuladas por Rubem Alves, de "Vazios Eloquentes que Pedem por Preenchimento". Parte do mundo arquetípico e de seu valor compensatório se dá por esse mecanismo, na minha própria formulação de sua gênese e valência para a psique. Proto-percepções, protofantasias, nano-percepções subliminares postas, pelo inconsciente, a serviço das indagações existências/vitais ao consciente indagante e ferido, surgem como Imagos, Presenças, Moldes Palpáveis dessas Ausências, delineando-lhes os halos, as Formas, o Fundo. O Refluxo da Libido que não encontra objeto no mundo ["a mão que não alcança o mundo"] encontra este outro "reino imaginal de presenças". Assim defino uma das vias de alcance ao arquetípico, delineando, ao mesmo tempo, porque essa via é mais factível aos feridos narcísicos do que aos edipianos, que têm o mundo exterior bem catexizado ou investido por sua libido [desejo, interesse, gratificação, élan]. Vazios pedem por preenchimentos, digo eu. "Pensamentos pedem por um pensador", diria Wilfred Bion. Platônico, este Bion.
Voltemos, então à "criança que estende a mão ao mundo". O encontro da mão [ou da "boca que busca o mamilo da mãe"] com o ambiente suportivo [seio materno, acolhedor e nutritivo: objeto-afeto] culmina num "senso de realidade do mundo" [culmina na constatação do "sim, o mundo existe"; e mais: no "sim, eu posso criar no mundo, aportar idéias, ideais, valores, objetos ao mundo"] e de realidade do eu ["sim, o mundo existe e pode existir para mim"; "eu posso existir nele"; "o mundo é habitável e respirável"]. Ao contrário da pergunta edipiana que intenta localizar o lugar do desejo, e se localizar perante o desejo, para além da exclusão imposta pelas castrações, ou assimilando-as, eis o cerne da pergunta narcísica: "o mundo é um local viável?!". "Dá pra se viver no mundo?!" "O mundo é respirável?!". As questões de frustração Edípica ["ele tomou o que era meu"] são posteriores a esta e pressupõem que se tenha dado uma resposta positiva a estas indagações mais arcaicas e prementes. Implica em se ter respondido: "sim, o mundo existe, mas fulaninho pegou o que era meu por direito". 

As questões narcísicas são mais fundamentais, mais básicas e mais sérias. Também porque dizem mais da Ontologia do que do Desejo [da possibilidade de "se sentir sendo", antes de se sentir "roubado ou tripudiado", ou de se invejar o irmãozinho que ganha carinho ou o papai que come a mamãe]. As questões narcísicas são "fundantes" e fundamentais. E não nos esqueçamos que a Ontologia abrange o Ser, o Uno e o Devir, podendo aportar, portanto, questionamentos extremamente sutis, em dependência do "horizonte de indagação" do ferido. 

Quando se pensa em Narcisismo, toca-se, obrigatoriamente, em questões de Ontologia, de Filosofia, de Epistemologia ["o que pode ser conhecido?!"] num sentido bem básico, arcaico e, como disse acima, "religioso" desses termos. Um ferido narcísico que se trabalhe [que trabalhe suas questões existenciais], terá de dar à sua vida uma resposta nesse nível [arcaico, ontológico, mítico-religioso], seja o sujeito "formalmente religioso" ou não; e seja, também, a resposta, formalmente religiosa ou não. Será fundamentalmente religiosa. Enfim, o ferido narcísico terá, necessariamente, de ser profundo para curar-se. Ainda que essa "cura" seja sempre relativa. Sim: a cura da ferida primal é sempre relativa. 

O ferimento edípico não traz consigo tais exigências. Complementarmente, traz a exigência de "amor maduro inserido em adaptação social". Em termos adaptativos, sua "cura" é mais localizável, mas não a considero mais essencial. Todos nós, sempre, nos curamos "em parte" de nós mesmos e de nossa própria história, numa perspectiva mais radical. E eu sempre adoto esta perspectiva. 

O ferimento Narcísico clama pela questão: "o que é sonho e ilusão, qual a factibilidade de estar [ou não] no mundo?!". Para os analistas mais costumeiramente interessados nos dilemas edipianos, esse âmbito de questão só era concebível aos psicóticos ["isso é real ou não?!"]. Ocorre aí um erro crasso: a esmagadora maioria dos feridos narcísicos não "psicotiza", não entra na esquizofrenia ou na perda dessa fronteira eu-mundo. Mas tal fronteira fica "baça" durante toda a vida. E suas questões vitais são "trazer substância ao mundo": substância no sentido do élan vital [do "engajamento prazeroso, ou significativo"], e no sentido de "substância valorativa" [ou seja: "o mundo é um lugar que pode comportar significado", "que pode comportar valor"]. Isso antes [para além-e-aquém] de ser ou não "bem sucedido", de obedecer [ou não] ao "cronograma social das fases da vida" [casar, ter filhos, tirar carteira de motorista, votar, nas idades esperadas...]. Para o grande ferido, essas conquistas mal são concebíveis para si. Em não sendo concebíveis, a "desejabilidade" desses bens é mais relativa do que podem supor os edipianos [que projetam nos feridos narcísicos suas próprias noções de desejo]. 

A inveja narcísica é inveja/ânsia de "poder habitar o mundo"[!], de poder senti-lo como real e, também, de alguns potenciais seus [entrevistos, como Ideais] que não puderam ser realizados. É inveja de uma vida por-viver [a própria!], ou de uma tira biográfica-que-poderia-ter-sido [isso é "inveja nostálgica de si mesmo"], com uma conotação bem diversa [e mais primal, mais arcaica] do que a inveja edípica ligada a conflito e disputa externas. O conflito e disputa narcísicos [na base de uma indagação ontológica: "O que posso ser eu? O que podem ser as coisas?!", e de uma indagação cosmogônica: "O que pode ser criado?"; além de uma indagação epistêmica: "O que pode ser conhecido?!"; e, sobretudo, de todos esses registros de indagação co-implicados] são conflitos e disputas internos, com a própria história do sujeito e suas lacunas. Conflitos esses que, naturalmente, são externalizados no "mundo de relação". Mas são internos. E seu âmbito é pré-adaptativo, e não tem a ver com "conquistas sociais", mas com "substância da realidade" ["se as coisas são irreais, o que há pra conquistar?!"]. Que isso fique bem claro, para que se dimensione o Ferimento Narcísico em clave não falseada. 

Os "medos impensáveis" de Winnicott se referem não só ao psicótico, mas a um plano de fundo [paisagem interna] também presente [em maior ou menor grau] no senso de self [e de mundo] de todo ferido narcísico grave. Daí a enorme relevância do insight de Colin Wilson, que não trabalha com os construtos analíticos, de fazer a assertiva acima, falando do "Mundo sem Valores": "É tão impossível exercer liberdade num mundo irreal quanto saltar enquanto se está caindo." Na mosca. Bingo. Sem querer, ele acabou nomeando um dos "medos impensáveis" postulados por Winnicott.

Winnicott não é um pensador meia-boca. Observando a interação de bebês com sua espátula de médico, ele pôde intuir [ou "conceber intuitivamente"] alguns aspectos do mundo interno bem primitivo desse self-bebê. A princípio, ele o fez a partir da maneira desses bebês interagirem com a espátula: com medo, suspeita, confiança, pondo-a na boca ou não, jogando-a ou não ao chão, chorando, rindo, demonstrando curiosidade/ atenção, etc e tal. Testando seus construtos ao longo de quatro décadas de trabalho pediátrico e analítico [tendo o registro das próprias mães, além de suas observações, de cerca de 20000 bebês; sim: eu disse vinte mil bebês!], Winnicott pôde chegar a formulações de grande acuidade. O leigo poderá entender seu raciocínio, uma vez que ele dava palestras em rádios de Londres. Basta ler um livro menos técnico, como "Tudo Começa em Casa", por exemplo.

Há uma implicação nessa situação que eu apresentei da "mão que alcança o mundo", também apresentada por Winnicott [sim: pensemos numa boca de bebê que alcançava sua espátula de médico...], que diz respeito à criatividade. As raízes da possibilidade de criar [ou de "crer na criação", e por decorrência, de poder crer no "valor da criatividade"] também se dá a partir desse esteio. Nesse "valor da criatividade" eu incluo o poder aspirar e querer incorporar imagens, noções, ideias, valores ao mundo, a partir da confiança a possibilidade de vislumbrar/ oferecer algo de seu [de sua própria visão] ao mundo de relação. A crença na possibilidade de "efetivar algo a partir de dentro" tem sua matriz originária nesse encontro "mão-ambiente", "mão-mundo" [mão que é responsável pela co-criação do mundo], ou "boca-seio", se quisermos usar uma imagem freudiano-kleiniana. Essa possibilidade de crença é diferente [mais arcaica ou primária, porque anterior, temporal e axiologicamente] ao "querer agradar à mãe concebendo que lhe dá algo de valioso" de seu [fezes como representativas de seu "bebê interno", por exemplo]. Poder criar algo de real vem antes de poder dar "algum algo a alguém". A clave edípica falhará em todas as instâncias de leitura quando se tentar aplicá-la ao Ferimento Narcísico. Nunca será demasiado frisar: tem de haver "substância à realidade" para que se comece a querer olhar para as "vicissitudes da adaptação à realidade". Não faz sentido colocar a segunda variável, derivada, na frente da primeira, primal em seu estatuto. Como não faz sentido pretender que no primeiro tempo de vida, seja o bebê a ter o ônus de se adaptar ao ambiente, e não a responsabilidade do ambiente de oferecer suporte adaptativo à chegada do bebê. Isso é mais do que por a carroça na frente dos bois: é não entender o que sejam um e outro. Registros distintos. Claves distintas. Por isso, reescrevo o capítulo anterior com essas novas nuances, e com a ajuda de alguns insights winnicottianos, dentre outros.

Nessa vivência de contato e frustração arcaicos estão as matrizes do élan criativo [artístico, filosófico, religioso, científico-prospectivo]. Naturalmente que se houver fracasso absoluto nesse ambiente primário não haverá esse élan. Eu, no meu léxico pessoal, preferi optar pelo termo "ignis" como o construto que melhor define essa "propulsão interna", em ambos os sexos ["animus", etimologicamente, seria um excelente nome, porque também significa "fôlego", mas já foi consagrado por Jung como "a contraparte masculina no psiquismo feminino", daí me vejo na necessidade de postular outro construto: algo como um "fator yang-criativo em ambos os sexos"]. "Ignis" define a espinha dorsal desse Élan Libidinal Criativo. O termo "Eros" não é adequado para tal propulsão, pelo fato de que Eros está muito voltado "pra fora". Ignis implica numa força prospectiva que "cavouca" o mundo interno tentando incorporar um Algo desse mundo interno no externo: apresentando-o, comunicando-o, propondo-o, viabilizando-o e visibilizando-o. Tornando-o "viável" e "visível", ao um só tempo. "Ignis" olha pra fora só depois de cavoucar [e muito!] dentro. Ignis implica na conquista [básica para os feridos narcísicos] da noção de "crença na substância do interno" [os sonhos arquetípicos em muito ajudam o sujeito nessa tarefa!], bem como na viabilidade do mundo externo, ambos os elementos facultando o atrevimento de se fazer o movimento dialético em direção à expressão criativa do primeiro no segundo. Isso é Ignis, algo bem sofisticado. Essa expressão nada tem de "evacuatória" [no sentido da "projeção de objetos internos danificados ou agressores na obra criativa, ainda que na criação também exista catarse]. Essa criatividade implica na busca dos "possíveis" [ou "(im)prováveis"] no horizonte do que ainda não é dado no ambiente cultural-grupal. Partejar e expressar um possível [ainda que improvável no horizonte da mesmice cultural] é a tônica desse impulso. Isso é Ignis. Tampouco se trata da "projeção psicótica das alucinações do sujeito no mundo" [ainda que se dê estatuto estético a tal produção, como no caso de Arthur Bispo do Rosário, a despeito de seu relativo valor integrativo naquele caso, e dos pacientes de Nise da Silveira no Engenho de Dentro...], mas de "busca heurística por valor e significado, traduzida enquanto criatividade". Essa criatividade esbarra em invariâncias, em temas e ideais relativos aos registros de indagação por mim postulados acima: ontologia, cosmologia, epistemologia, religião. Autores diversos, aqui e acolá, esbarram, por vezes, nos mesmos insights: análogos ou estruturalmente próximos [como matemáticos esbarram em proposições análogas de teoremas, ou "redescobrem", por caminhos próprios, as proposições de outros]. Isso mostra a substância do mundo imaginal, sua substancialidade inequívoca, tal qual há, inequivocamente, substância na noção de número, proporção, quantidade, valor. Essa prospecção criativa, que perscruta o interno à cata da "visibilização dos prováveis" alcança algo análogo à realidade dos números. Esse "algo" inclui "o âmbito do preenchimento de uma falta". A esse "algo" [e a esse âmbito] eu chamo "arquétipo". Essa versão mais expositivamente detalhada do que a de Jung será, minuciosamente, elaborada na interpretação de um Sonho Numinoso. Um sonho só, que exigirá páginas e páginas de minuciosa "exploração analítico-amplificatória". Este será o fulcro deste ensaio. Resta dizer, ainda, que o Ferido Narcísico estará, necessariamente, mais engolfado nesse mundo, nessa sondagem "introvertida" e por isso, lidará mais diretamente com esse mundo imaginal do que o paciente clássico freudiano, edípico por excelência. Estará mais às voltas com essas possibilidades de investigação e resolução imaginais propostas a ele, não por capricho ou diletantismo, mas por lhe serem "existencialmente vitais". Por ele se ver premido a tal prospecção em suas singulares circunstâncias de vida. Eis a chave da "abundância arquetípica nos grandes feridos".

Friso aqui que este ativamento do mundo imaginal-arquetípico inclui o que chamarei aqui de "refluxo" da libido, como se pensa no refluxo das marés. Libido aqui tratada no sentido junguiano, como no capítulo anterior, como élan/foco/ "interesse pelo mundo externo", de interesse pelo mundo objetal-externo. [Ignis seria a recuperação da libido a partir de dentro, por uma confiança que se erige a partir de dentro!]. Se a mão não alcança o ambiente, ela se retrai. E explora o próprio sujeito-da-mão. [A mão a si se explora e quem a conduz]. Não masturbatoriamente, já que a metáfora não pretende ter essa literalidade. Se o self não encontra o mundo externo, volta-se para o mundo interno. Uma grande acuidade [e/ ou temor] quanto às propriocepções [hipocondria, sendo um dos exemplos já dado anteriormente, no capítulo anterior], uma visão nuançada de estados psíquicos singulares [que envolvem solidão, medo, desespero, vigilância sobre corpo-ambiente, atenção ao eu que age, como um estado dissociado de não ser plenamente enraizado no corpo, não estar plenamente incorporado, e como se houvesse certa mecanização e despersonalização em tudo] são algumas possibilidades comuns de vivências [bem precoces] da maioria dos grandes feridos. Sendo essas possibilidades frequentes, nesse grupo [bem mais do que se supõe], o mundo perceptivo-imaginativo adquire colorações próprias [e típicas em cada situação, se fizermos um extenso mapeamento do terreno das vicissitudes humanas], e uma resposta criativa e singular é eliciada para cada sujeito que se vê em meio a tais imagens e indagações: sejam estas imaginativo-ontológicas, (-)religiosas, (-)cosmológicas, (-)éticas, (-)epistêmicas, etc, etc, etc e tal; geralmente, todas elas num pacote muitíssimo bem embrulhado. Dir-se-ia "lacrado", aos olhos menos atentos. 

O repertório imaginativo se torna hipertrofiado pelo refluxo da libido [eis a gênese da "abundância arquetípica" dos narcísicos], contrapondo-se ao (des)interesse pelo mundo que não o acolhe, nem espelha, nem corresponde à satisfação de necessidades primárias, em larga medida. Dessa maneira, o self se vê fadado a fazer suas perguntas em meio a essa ambiência imaginal interna, "muito mais dentro do que fora", uma vez que o mundo externo parece "irreal". Se a frustração do self e o fracasso ambiental forem maiores, o sujeito se perderá no vórtice desse recuo excessivo, perdendo-se o link [ainda que frouxo] com o ambiente. Temos, neste último caso, a eclosão dos estados psicóticos. Refluxo da libido e ativação da faixa imaginal [inclusive com aspectos imaginais correlatos ao fracasso ambiental, "Imagos ameaçadoras internas", ou "O Numinoso Sombrio"] são "o pão de cada dia" no acidentado desenvolvimento desses selves feridos. Estarão em contato com Imagos, Ideias e Arquétipos em profusão muito maior do que os neuróticos edipianos podem conceber, ainda que não participem da realidade delirante dos psicóticos na maioria das vezes [excetuando-se os casos-limites descritos logo acima, neste mesmo parágrafo]. Essa "zona liminar" confunde os saudáveis bem adaptados e os que lidam com elaborações edipianas triangulares. Como entender o leque de questões "de si para si", tão carregadas imageticamente, feitas pelo ferido narcísico desde cedo?! [Ou desde a chegada ao consultório?!]. Como entender que ele tenha sido "compelido a fazer perguntas esdrúxulas que nunca lhe ocorreram fazer?!" [Nem ocorreu ao próprio terapeuta se fazer ao longo de seu desenvolvimento e/ou de sua própria análise pessoal?!]. Imaginá-los na posição psicótica seria uma acomodação simplificadora que pouparia ao observador menos disposto e arguto todo o trabalho de alcançar resposta para essas perguntas vitais. Por isso, Nathan Schwartz-Salant diz em seu livro "Narcisimo e Transformação do Caráter" [citado nas sugestões bibliográficas deste capítulo] que o ferido narcísico tem uma "individuação às avessas": vive as imagens numinosas [sobretudo sombrias, mas com lampejos das salvíficas] antes de lidar com os problemas de persona-sombra [máscara social e material reprimido]. Isso é uma inversão do que se esperaria! Sim: tantos "junguianos devotos" quanto freudianos pensariam na adaptação ao mundo externo como vindo antes da adaptação ao mundo interno! Suas imagens numinosas/ arquetípicas ou muito peculiares, arcaicas e solenes [essa tal exuberância imagética] se lhe impõem [e pedem sua atenção!] antes de qualquer possibilidade de "adaptação social bem sucedida" ou a caminho de sê-lo. E esse é o âmbito do trabalho analítico a ser feito nesses casos.

Por enfatizar a coloração necessariamente arcaica, mítica, desses estratos para os quais a libido ["interesse", "atenção interessada"] se voltou, defensiva e introvertidamente, é que poder-se-ia visualizar o meu trabalho como "nas vizinhança da Psicologia Analítica". Mas nem tanto assim, porque não gosto nem um pouco da coloração reverencial que os junguianos de carteirinha dão aos achados do "mestre", bem como o uso esquemático-subserviente que fazem de seus quatérnios, da noção de "feminino sagrado" e tantas outras. Não me filio ao clube. Por isso mesmo, verão que uso, com frequência esmagadora, os construtos de Winnicott, Bion e James Grotstein nesse ensaio, mas enfeixando-os nessa "clave mítico-arcaica", procurando fazer justiça à natureza e força do material que se encontra na exploração/ sondagem desses psiquismos precocemente feridos. Ficará bastante claro como tais noções não se antagonizam, nem rivalizam. Mas se ilustram. Isso na dependência das perguntas [ou equação] que as enfeixe.

Se o leitor quiser aprofundar as análises de Jung sobre esse tal movimento-de-recuo-defensivo-introvertido-mórbido-prospectivo da libido [que eu chamo de refluxo libidinal] é só acompanhar a bibliografia sugerida, indo no índice remissivo atrás do tópico "regressão da libido". Libido para mim é "atenção interessada", o que inclui Eros, mas extrapola Eros. "Ignis" é "faísca" no sentido de "propulsão a partir de motivação interna e imaginal, visando incorporação no mundo". É um fator "prospectivo imaginal" que, no entanto, não prefigura, de forma alguma, "o que o sujeito está destinado a ser", mas o quanto de realidade ele anseia gestar,o que de realidade ele anseia dar forma, em contraponto à "realidade desrealizada" que encontra no mundo dado. Esse é um conceito muito específico. Como já frisei, descarto a "individuação" junguiana. Ignis é um fator-yang [de movimento em direção ao mundo] a partir da introversão, o que pode parecer paradoxal, mas tem a ver com o movimento dialético de "dar substância ao mundo ainda-não-real ou potencial, [eis o detalhe fundamental que se segue:] a partir de dentro, porque ele parece mais substancialmente real do que a própria realidade". Alguns enxergarão o quanto isso é platônico [e também junguiano, winnicottiano ou bioniano, em alguma e variada medida]. Outros conceberão que isso é o avesso fotográfico [ou "o negativo"] do platonismo clássico. Por ora, basta-me que a associação com o referencial platônico seja feita, pelo verso ou pelo avesso. Definitivamente, isso não é "exatamente junguiano". Fora as distinções que faço questão de frisar [como elenquei sumariamente acima, em relação às anotações do Livro Vermelho] entre meu modo de operar as distinções entre o status ontológico de cada imago que surge e o modo junguiano de alinhavá-las, porque não me interessa equalizá-las procurando, artificial e precipitadamente, um "princípio unificador adiante" que resolva tudo [a Unidade no e do Si Mesmo]. A releitura dos itens de minha crítica ao Livro Vermelho, alguns parágrafos acima, pode sugerir um belo roteiro de exploração das diferenças entre minha abordagem e a junguiana. 

Os pontos de interseção entre autores às vezes só se deixam entrever nas notas de rodapé. O analista cuja postura humana mais admiro [pelo conjunto: vida e obra] é Winnicott. Acima de todos os outros. Ele não usa os termos imagéticos que seriam fiéis ao que eu vi, vivi e sei por experiência própria. Mas, frequentemente, fala das mesmas coisas. Muito frequentemente, aliás. Numa de suas "notas" feitas ao artigo "Desenvolvimento Emocional Primitivo", escrito em 1945, diz ele:

"Através da expressão artística, há a esperança de manter contato com nossos selves primitivos, onde se originam os sentimentos mais intensos e sensações amedrontadoramente agudas, e ficamos realmente empobrecidos, se somos apenas sãos".

"Ficar empobrecido com a mera sanidade". Não há qualquer "glamourização da loucura" [ou da angústia] nessa assertiva, apenas a constatação de que nessa esfera ou nesse âmbito se encontram as tais questões vitais que eu aventei acima [epistêmicas, ontológicas, religiosas, cosmológicas, etc e tal] em seu núcleo embrionário. Com linguagem bem distinta, Winnicott está me apresentando seu insight sobre esse âmbito.

Nesse mesmo artigo encontro uma citação, acompanhada de nota de rodapé, que ajuda a esclarecer parte das noções apresentadas acima. Ele postula uma relação objetal primitiva, descrevendo-a da seguinte forma:

"Neste caso, o objeto ou o meio ambiente é parte do self, como a pulsão que o evoca". 

Objeto-ambiente sendo "lidos"/"sentidos"/"alcançados" a partir de dentro. Estão confluídos. Sendo que a primazia, para o self [seu foco de "interesse atento"] é para "o espelho do lado de dentro". [Alguns acham que este é o espelho de Alice]. O mundo externo parece um eco desse espelho, e é preciso verter realidade para a "(ir)realidade" externa. Claro que o comentário é meu, e não de Winnicott. E ele mostra o quão platônica é minha visão, muito antes [e além] de "junguiana". Vamos à sua nota de rodapé:

"Isso é importante por causa de nosso relacionamento com a psicologia analítica de Jung. Nós tentamos reduzir tudo à pulsão, e os psicólogos analíticos reduzem tudo a essa parte do self primitivo que parece ser o meio ambiente mas que surge da pulsão (arquétipos). Deveríamos modificar nossa visão de forma a abarcar ambas as ideias e ver (caso seja verdade) que, no estado primitivo teórico mais antigo, o self tem seu próprio meio ambiente, autocriado, que faz parte do self tanto como as pulsões que o produzem. Este é um tema que requer maior desenvolvimento."

Beleza. Winnicott mostra um insight brilhante aqui: existe um ambiente arcaico, autocriado pelo self, que é sentido como seu ambiente, tal como as pulsões são identificáveis. Esse ambiente interno é o "locus do arquétipo". O psicanalista enfatiza [diz ele, na época] as pulsões. O psicólogo analítico enfatiza essa ambiência [onde os arquétipos são a "paisagem vivenciada"]. Precisamos reunir ambos os âmbitos. Eu encerrei o capítulo anterior mostrando uma afirmação de James Grotstein no mesmo sentido desta de Winnicott.








Andando sobre as Águas até o Chão-Possível







A proscrição e as invasões ambientais eliciam no sujeito invadido um "olhar ao lado", um "segundo olhar" [um "olhar-zelador-e-testemunha-de-si-mesmo"] muito precoce. Este olhar observa o próprio sujeito em seus vários estratos: 1) sua mecanicidade e quase-irrealidade na vida funcional [falso self/persona defensivo-superadaptada]; 2) o isolamento do self encapsulado-defendido das falhas ambientais; 3) a expectativa ou catalogação expectante dessas mesmas falhas que o ameaçam. O "halo" de toda essa observação cindida é de "temor-vígil-precoce". Difícil superestimar a cisão e ansiedade depositadas em todo este contexto. 

Este é o ponto de partida do ferido narcísico [ou grande ferido] que depende de fracassos ambientais quanto ao olhar/reconhecimento de si mesmo, suporte e acolhimento ao seu self, muito aquém [na base de sustentação] de qualquer fantasia infantil impressa pela voracidade pulsional do sujeito-em-formação, ou pela ativação arquetípica de "pais sombrios, sem nenhum contexto que justifique esta mesma ativação". Isso, simplesmente, não ocorre. Mau suporte ambiental [parental, escolar, religioso-institucional, etc] evocam essas protofantasias, essas imperiosidades pulsionais [agressão-voracidade] e esses escuros numina. Ferenczi estava certo sobre os psicanalistas de antanho [mas não só...] subestimarem o papel do trauma em favor das fantasias erótico-agressivas da criança. Isso está sendo repensado e corrigido por muitos winnicottianos de hoje e, desde antes, pelos que conheceram o trabalho de Fairbairn e Balint. 

Um texto de autora brasileira contemporânea que reinscreve, de modo bastante peculiar e com assinatura própria, essa problemática [recuperando e realinhando as variáveis da polêmica] é o belo "Dos que Moram em Móvel-Mar", de Fátima Flórido Cesar, cuja experiência clínica flagra estes "pacientes difíceis", massiva e precocemente feridos, que parecem não habitar o chão firme-e-comum dos neuróticos. Sim: eles moram em chão flutuante, íntimos que são das angústias impensáveis [agonias primeiras e indizíveis] conceituadas por Winnicott, quais sejam: 1) queda livre infinita [bem próximo à vertigem ontológica, nos moldes propostos por Pierre Teilhard de Chardin]; 2) cisão no "sentimento do eu" e na "percepção do corpo"; sensação de impossibilidade absoluta de comunicação e relacionamento [em suma: absoluta solidão ontológica]; 3) irrealidade do mundo e do ser [a sombra palpável de uma inexistência concomitante do eu e do mundo]; 4) funcionamento intelectual excindido [ex-cindido: fracionado e projetado para fora], ou desincorporação do pensamento. Nas situações que a clínica contemporânea classificou como "transtorno do pânico", o sujeito bordeja essas angústias impensáveis, reatualizando seu maximum de desamparo, onde até habitar o corpo parece uma impossibilidade [o que dirá "habitar o mundo"!]. As situações de pânico, no seu aparente "de repente", trazem a inscrição deste desamparo profundo, arcaico, primeiro.

Outra percepção interessante [e pouco ortodoxa, em se tratando de psicanalistas], é o fato de Fátima Florindo Cesar optar por não discutir, em seu texto clínico, a problemática sexual de seus pacientes, por considerá-la, nestes casos de "pacientes difíceis", um mero palco onde eles atuam/ensaiam/revivem/atualizam suas questões de identidade, preenchendo vazios com o erotismo, para fugirem do sentimento de "nada serem". 

Bingo. Na mosca. 

Difícil essa sutileza de percepção clínica em profissionais formados para entenderem a dinâmica edípica como regendo o mote do sofrimento humano, como subsumido, basicamente, à "frustração das pulsões eróticas que demandam o objeto, sujeito à interceptação/interdição por outrem" [objeto incestuoso, objeto-que-me-recusa, objeto interditado às minhas pulsões e sujeito-objeto interditor: pai, cultura]. No caso dos grandes feridos, a questão é outra, antecede a esta e subjaz a esta. Trata-se do sentimento de caber no próprio corpo ou poder-ser através do outro, outro este erogeneizado para preencher o próprio sentimento de "vazio ontológico" ou "não-self" [já que há cisões várias e um self encapsulado/inacessível que aspira emergir à vida de relação]. Isso é muitíssimo distinto da dinâmica pulsional edipiana, que já descrevi em capítulos anteriores deste ensaio, e que é exaustivamente repisada pelos psicanalistas clássicos ou "puro-sangue". Esmiuçar, à exaustão, esta outra dinâmica [a do grande ferido: do ferido massivo e precoce, do proscrito/"outsider" desde a infância] é o propósito deste trabalho, por isso irei amplificar o tema, mais e mais, retomando-o em matizes progressivamente mais nuançados. Serei,deliberadamente, exaustivo nesta reiteração, porque considero que o ponto cego da psicanálise e sua ineficácia no atendimento desta demanda narcísica resulta, justamente, de não ter conseguido apreender a especificidade desta mesma demanda, falseando-a, por consequência. Releia-se o itálico, por favor. Demanda falseada é demanda jamais atendida.

Este mesmo equívoco de "minimização da falha-de-origem" [a "falha básica" no dizer de Balint] poderíamos apresentar em relação aos junguianos desavisados e devotos da "autonomia dos arquétipos", como se tal "autonomia pairasse por sobre todas as circunstâncias de vida". Tais clichês [muitas vezes resultantes do "medo de ver a magnitude do sofrimento biográfico do outro"] tentam descolar duas coisas que não podem ser desatreladas: 1) os "a prioris" da 2) linha-do-tempo-biográfico, pois que todo e qualquer à priori arquetípico se inscreve numa linha biográfica, desde a primeira infância e, sobretudo, nesta etapa da vida. Porque esta é a etapa dos mitos-de-origem relacionados à percepção da própria ferida, que será tomada como ferida sagrada, questão sagrada ou mítica. Esta perspectiva leva em conta mais variáveis do que quaisquer das especulações mito-filogenéticas de autores junguianos [Erich Neumann sendo um protótipo claro dessa perspectiva marcadamente "apriorística"], porque inclui, entre outras capacidades clínicas, maior acurácia no "ver e dimensionar a dor precoce e quase inumana [termo utilizado por Fátima Florindo para falar de seus "pacientes difíceis"] vivida na biografia [em seus inícios, ou desde os inícios] de tais feridos narcísicos". As implicações deste "ver diferenciado" são clínicas: definem a qualidade as sutilezas de captação das vivências transferenciais e contratransferenciais, por exemplo. 

Aqueles que preferem fazer tabula rasa das falhas ambientais [escola, família, cultura], além de temerem pisar o terreno movediço ["móvel-mar"] da desestabilização de nossas certezas instituídas culturalmente [o que equivale a dizer: temerem o fundo questionamento da "correção de nosso modus vivendi social médio", incluindo a família, a escola, a igreja, bem como dos modelos clínicos "normatizantes-adaptativos" - sendo a psicanálise clássica uma dessas práxis inequivocamente normativas], receiam que admiti-lo seria prejudicial ao paciente. Explico melhor: se o paciente deveras sofreu um "quantum incomum de dor", não haveria nada a fazer a respeito; seria, portanto, inútil reiterá-lo ou reinscrevê-lo em sua própria tragédia. Seria redundante e, portanto, não permitiria avanço algum em seu "processo de crescimento". [De forma bem sumarizada, esta é a posição de Nicole Berry, como será apresentada no capítulo XV: "Jó. Ou: E daí?"]. Nada mais ingênuo e longe da verdade do que tal pressuposto enviesado sobre a demanda do grande ferido. Este é o erro mais decisivo na aproximação clínica ao [ou melhor dizendo: na evitação clínica do] dano narcísico. Reiterá-lo na narrativa do dano é reinscrevê-lo em sua própria história, porém acompanhado de uma testemunha até então ausente [testemunha esta também "co-participante emocional de seus sentimentos ignorados ou aviltados"], e é este fato o mais fundamental e decisivo para a possibiliade de elaboração e superação do dano em questão. Quem ignora isto, ignora o ponto mais básico e nevrálgico no trabalho clínico com todo ferido narcísico. Há, ao contrário do que alguns imaginariam, a necessidade deste mesmo reconhecimento por parte do analista, para que a transferência se dê nos moldes legítimos desta específica demanda [que é bem distinta da demanda edipiana]. Eu poderia recorrer a vários autores para pormenorizar melhor o assunto. E isto será feito pormenorizadamente, nos capítulos XV e XVI deste ensaio, quando substituirei o raciocínio clínico pensado em moldes edipianos para reinseri-lo nos moldes Jó-Jeová e Cristo-Pietà. Esta última díade, aliás, é a adotada por James Grotstein, numa revisão radical que faz da (in)adequação do Édipo como molde [inapropriado, segundo ele] ao que ocorre no setting analítico mais regressivo ou "arcaico".

["Por Que Édipo e Não Cristo?", pergunta Grotstein, literalmente, em dois dos capítulos de seu livro, citado na bibliografia abaixo].

Gestalt-terapeutas já intuíram, há bastante tempo, que a pergunta básica de certos pacientes ao terapeuta seria: "Você sobreviveria psiquicamente à minha família/infância? Em caso positivo: como?!" [Vide a obra de Joe Fagan, citada abaixo]. Em se tratando dessa demanda/pergunta-de-fundo, muitos analistas temem a presença espontânea da autoescuta que reconheceria, como primeiro dado evidente: "Eu não sobreviveria!". Eis o ponto cego, quando se quer mantê-lo defendido. A questão não é técnica, ainda que transborde em implicações técnicas. A questão é do terror pela palpabilidade das angústias indizíveis [ou agonias "quase impensáveis"], às quais o analista temeria sucumbir se posto no lugar do paciente. Sendo este o caso, melhor faria o analista em não atender tal perfil de paciente, pois estará incapacitado para ajudá-lo, desde a raiz de sua demanda, em sua natureza mais específica.

Fátima Florindo cita a espontaneidade de Winnicott admitindo a falha maciça vivida pelo paciente em comentários espontâneos e efetivos [não "espontaneístas e ingênuos"] do tipo: "Não sei como você sobreviveu à sua mãe". Ou, em termos análogos: "Não sei como você suportou sua mãe!". Como o entendimento do manejo clínico é algo permeado por pruridos e melindres, no caso de analistas burocráticos que não entendem a essência das questões transferenciais para além da assepsia do setting [horários, frequência das sessões, o falso dilema: divã/não-divã, etc e tal], já vou logo avisando: o destemido Winnicott pôde verbalizar uma constatação efetiva que respondia a uma das demandas de certo tipo de paciente [o grande ferido], demanda esta que pode ser sintetizada como a pergunta feita acima: ""Você sobreviveria psiquicamente à minha família/infância? Em caso positivo: como?!" Mas o importante não é dizê-lo, mas reconhecê-lo [quando for o caso] presencialmente na contratransferência. O olhar, a postura, a presença corporal na escuta "banhada" por essa compreensão, atende, perfeitamente, a essa demanda/pergunta-de-fundo do analisando. Fugir disso é deixá-lo só, dependurado num vazio-de-vinculação não-transferencial. É fugir da especificidade da demanda clínica para impingir-lhe outro script, quiçá "edipiano". Um script, de qualquer forma, mais confortável ao analista. Isso é subverter [perverter!], na origem, a própria função analítico-terapêutica.

Um adendo importante aos mais "ingênuos": como a clínica não é um "tribunal", não se trata, aqui, de condenar pessoas [pais, sacerdotes, professores, abusadores], não é esta a ênfase. Antes, o fulcro da questão é reconhecer a legitimidade e palpabilidade do sofrimento de quem traz a ferida inscrita em clave narcísica para o setting analítico, em busca de ajuda. Este é o ponto de partida, do qual não se pode escapar: nevrálgico para qualquer ulterior elaboração, transformação ou superação deste mesmo sofrimento. Foi isso que, no conjunto de sua prática clínica [e não nesta ou naquela fala isolada...], Winnicott pôde apreender e trabalhar tão eficazmente, num terreno onde raríssimos souberam andar, nadar: colocar os olhos, as mãos, a escuta e a palavra.



O Códice do Silêncio







Há 25 anos, um professor universitário pediu que seus alunos propusessem algumas polaridades a serem trabalhadas em termos de reflexão clínica. Dentre tantas possíveis ["Cultura-Natureza", "Trabalho-Lazer" - que pode ser "despolarizada" em certas culturas aborígenes, bem antes de Domenico De Masi falar em "ócio criativo" -, "Loser-Winner" - bela polaridade inspirada no ideário midiático do "poder de consumo", bem como fala corriqueira nos filmes americanos, desde aquela época -, etc, etc], eu lhe propus a seguinte: "Solidão x Diálogo com os símbolos da cultura". Como cada qual dialoga com os símbolos da cultura? Ecoando-os? [Isso é tão comum...]. Fazendo adendos e/ou contrapontos aos símbolos dados? Evocando parte da própria história [e simbolizando-a] como possíveis elementos dialogais a serem inseridos em variados contextos grupais? Desentranhando algumas dessas falas possíveis de silêncios e interdições vividas, além de viabilizar todos os "indizíveis" que são "as falas-ainda-não-faladas" no grupo/cultura de cada um? Algumas dessas respostas podem remeter ao que seja "arte" [não "eco", como mais-do-mesmo-repetido-em-linha-de-produção, tantas vezes tomado por "arte"] bem como ao que seja "terapêutico"/ "analítico" [descoberta-resgate de algumas dessas falas e sua inserção num circuito dialogal "efetivo"]. O que seria esta polaridade [Solidão "x" Diálogo com os símbolos da cultura] nos tempos ainda mais massificados de hoje, em cada área [/ função profissional] e na vida de cada um [/papéis sociais]?

Da minha pergunta original, surge um corolário de questões correlatas, propostas e perguntas: 1) uma definição seminal de arte e análise; 2) a questão daqueles que foram vitimizados por um ou mais ambientes no seu desenvolvimento: família, escola, igreja, erros médicos ou outros. Estes teriam de tentar inserir-se na cultura pela crítica do que viveram, e não por assentimento, uma vez que viram "a sombra" desses ambientes (de)formadores; 3) a questão dos que "desistiram do diálogo" e como isso se deu; 4) a questão dos que não conseguiram visualizar nenhum projeto em relação à cultura e suas instituições [por exemplo, nunca fantasiaram ter filhos ou casar, ou constituir família, pois se viram crescendo "apesar da família", e não com a ajuda dela]; estes, algumas vezes, desde a infância imaginaram "morrer jovens" [assassinados, doentes, "loucos", como quem "se quebra no meio do caminho"] e nunca projetaram sua inserção na cultura; 5) a questão do que está sendo comunicado num delírio, e para quem está sendo pretendida a comunicação [o destinatário]; 6) a questão da intimidade: do que seja intimidade no contato dialógico, que suprime o sujeito do solipsismo e da incomunicabilidade; 7) das possíveis fugas e substitutos a este contato efetivo e "íntimo"; compulsões e adicções costumam funcionar assim, nos casos de falência de intimidade na comunicação [sendo o sexo uma das adicções possíveis; clássica, aliás]. Essas e outras dezenas de questões são desdobramentos daquela formulação de há 25 anos.

Alguém poderia dizer [como disseram] que essas perguntas levariam "ao mais profundo abismo". Talvez, ali já estejamos, e essas perguntas nos ajudem a situar-nos. Estar no profundo abismo sem sabê-lo será consolo para o néscio, ou para a espécie de ingênuo-malicioso [aquele que "finge não saber", ou "assim prefere crer" no "não-sabido"]. Outros poderiam imaginar que tais perguntas seriam de uma circularidade tal [não estaríamos no Abismo ou no Deserto, mas no Labirinto] que seria de todo improdutivo fazê-las. Afinal, Marcelo, você as fez há 25 anos, e o que descobriu desde então?!

Em primeiro lugar, descobri o "como" de cada uma dessas questões. E alguma resposta para todas as perguntas enfileiradas acima, a partir da "pergunta principal". Deve haver uma "pergunta seminal", e quanto mais funda melhor. Afinal, se diluirmos as perguntas, diluiremos as soluções.

Suponha o leitor que esteja andando pela rua. Depara-se, então, com alguém falando sozinho: um "morador de rua" [a princípio, um "não-morador"]. O leitor se aproxima de tal criatura e o escuta murmurando números. Sim: uma lista aparentemente bizarra de números. Na solidão dialogada [ou no solilóquio em voz alta] deste não-morador há, curiosamente, números. O leitor interessado poderia pensar em aulas de matemática, em datas marcantes cifradas, em castigos numerados, no serviço militar, em algum resíduo deixado pelos "números". Ou em qualquer outra coisa análoga às citadas acima. Alguém que se propusesse a ajudar este não-morador [inclusive de seu verbo: desabitado da própria palavra e na própria palavra] precisaria ir mais longe.

Imaginemos um estudante-estagiário de psicologia ou psiquiatra que entrasse num hospital psiquiátrico ou CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], e se deparasse com um paciente que lhe proferisse insultos. Um inepto tomaria os insultos como "pessoais". Mas eles seriam tão "pessoais" quanto os números declamados pelo não-morador de rua. Ainda que o termo impessoal possa soar anódino demais em relação aos insultos [eles podem se referir a algum conteúdo fantasmático, estar apontado para algum "ausente histórico concreto"], conferir-lhe "pessoalidade" no sentido interpessoal de um diálogo dirigido seria um equívoco ainda maior por parte do "hóspede" [/hospedeiro]. Afinal, o "visitante" tomou tão afoitamente o discurso para si mesmo?! Aqui fora dos hospitais e centros de atenção cometemos o mesmo erro, reiteradamente.

Outra simplificação grosseira seria imaginar aqueles que "desistiram do diálogo" [como citados no meu item 3), acima], como sendo os "fujões não-resilientes", os meros "mudos acovardados" frente ao outro, os desertores sociais costumeiros. A coisa é mais séria. Os esquizofrênicos catatônicos também desistiram do diálogo, mas mantêm suas poses. Fixas. De estátuas. A esta altura do relato, o leitor já entende que estamos falando de coisas "costumeiras" [ou nem tanto, mas "encontráveis"], mas nunca "triviais". Qualquer tentativa de reduzi-las à trivialidade seria não mais do que "impostura" por parte do [mau] intérprete. Assim, a dualidade proposta, solidão X diálogo com os símbolos da cultura, não é descabida, nem "insolente" [um cutucão desarrazoado e inútil no "Halo do Abismo"].

Tampouco se trata de algo tão simples como dizer "tal esquizofrênico pintou tal quadro, e ele remete a tais e tais temas arquetípicos". Isso de nada vale, se não inserirmos esta pintura num diálogo efetivo com o outro e com o grupo social imediato ao paciente. Esta foi a crítica de Fauzi Arap quando participava de um trabalho com Nise da Silveira, na Casa das Palmeiras. Ressentindo-se da lacuna operacional entre o ver terapêutico nas tais pinturas e o não poder articulá-lo com o paciente, Fauzi se desparou com a impotência em comunicar seu desagrado à Drª Nise. Isso porque o dossiê que ele preparou para ser lido numa reunião de acompanhantes terapêuticos, com a presença da própria Drª Nise não pôde ser aberto e lido: seus gatos [seus=da Drª Nise] não saíam de cima da pasta de apontamentos e sugestões de Fauzi Arap, e a superstição [mal alicerçada no conceito junguiano de "sincronicidade"] fazia todo o séquito de idólatras permanecerem em silêncio, diante da omissão inepta, confortável e pusilânime da Drª Nise. O fato está bem relatado em seu livro autobiográfico "Mare Nostrum". Um ótimo roteiro de alguém que teve insights inconscientes via ácido lisérgico [o próprio Fauzi] e age, inadvertidamente [e não "divertidamente"] como guia semi-cego ou "aprendiz de feiticeiro" a outros aspirantes à viagem. Sem dúvida, Fauzi não estava apto à amplitude do trabalho a que se propôs, mas a crítica à Nise da Silveira não perde nada de sua validade por isso. Respeitar gatos sobre dossiês, não os retirando de cima, é tão supersticioso como engolir pílulas de papel do Frei Galvão ou fezes de um Lama. Este é o aspecto idólatra [ou o viés idólatra], bastante comum, na postura de certos "devotos junguianos", com relação à sua [não-]interação dos símbolos que clamam por interação inteligente. Quando ídolos tiverem pés de barro, devemos derrubá-los. Quando não tiverem, mas ainda assim forem "ídolos", devemos cortar-lhes a cabeça. "O Culto a Jung", de Richard Noll, deveria ser leitura básica de todo junguiano. Mas, assim como freudianos e lacanianos não leem "O Livro Negro da Psicanálise", organizado por Catherine Meyer, os junguianos desperdiçam a oportunidade [educativa] de lerem Noll. Aliás, no "Livro Negro" há um capítulo que mostra [por cartas trocadas com Ferenczi] o quanto Freud sabia [e preferiu "fingir não saber", conceitualmente falando] o quanto o pai de Daniel Paul Schreber era "um tirano doméstico", e não um "pai excelente a ser emulado e admirado". Um caso clássico de "covardia teórica". As teses de Freud quanto ao homossexualismo latente na esquizofrenia paranoide por "admiração homossexual ao pai" [sic] teriam de ser terrivelmente [para Freud] problematizadas pelo próprio Freud se ele assumisse "tudo o que sabia". Um caso de "desvio calculado do olhar" no tocante à construção teórica, como a fuga da Drª Nise da Silveira em abrir o "dossiê" de Fauzi Arap. "Os pássaros que aqui gorjeiam, também gorjeiam por lá".

Há uma coisa interessante que minha pergunta seminal me revelou, com todo o seu corolário: os acomodados não fazem perguntas incômodas. E mais: temem fazê-las. É o tipo de pergunta que um Cristão Gnóstico faria à Ortodoxia Cristã, por exemplo. Eles vêem problemas, os interrogantes, e problemas tão fundos [o tal Abismo, provavelmente], onde os Ortodoxos temem mesmo o simples "olhar" [Cifra: "a luneta de Galileu"; "Não vi e não gostei"]. Eu entendo essa fuga: para perguntas muito fundas, não parece haver resposta. Ou, para ser mais preciso: não parece "haver consolo" na resposta. As pessoas fogem das respostas que trazem problemas. Exceto se [e isso é decisivo] "os próprios problemas singulares levaram-nas às perguntas incômodas". Por problemas entendamos também: infâncias atípicas, vivências atípicas, dúvidas ontológicas fundas. O afã de Fauzi começou com indagações surgidas pela vivência com LSD. Mas há infâncias mais improváveis do que viagens lisérgicas.

Soraya [assim vou chamá-la] estava grávida, quando me procurou. Seu medo era morrer no parto. Havia um histórico de eclampsia na família. Eu viria a descobrir que também havia sua "morte simbólica", no nascimento. O primeiro sonho que ela me trouxe falava de um laboratório de experiências biológicas. Ela e sua mãe estavam alisando a superfície de um réptil morto: uma cobra áspera e manchada. Alguns poderiam pensar num símbolo fálico. Outros, no endoderma, como tecido embrionário constitutivo. O que a cobra também ilustra muito bem: "um tubo digestivo que no chão se arrasta". E mais: detecta terremotos e acidentes sísmicos antes de seus parceiros no reino animal, aqueles que têm melhores olhos, e que menos rastejam [têm, portanto, menos contato com o solo]. Eu olhei a cena, e me abstive.

Perguntei sobre a textura da cobra, sobre a sensação tátil que ela despertara no sonho [coloquei Soraya na posição tátil-sensível da própria cobra]. E ela desandou a chorar.

Contou-me de sua mãe colocá-la para cuidar dos irmãos menores, desde criança. Que certa feita, insatisfeita dela estar "atrasada" quanto a tarefas na cozinha [com sete anos de idade], a mãe jogou-lhe água quente nas pernas. Primeiro, a "aspereza da cobra" lembrou-lhe as bolhas pós-queimadura. Mas havia mais, muito mais. Ela correu da cozinha para o quintal, e a mãe lhe atirou uma faca que lhe atingiu as costas, e ela caiu. Foi socorrida pela vizinha. A mãe ignorou o ferimento que ela própria causara à filha. Soraya me perguntou se eu queria "alisar" seu ferimento nas costas [sua cicatriz: a memória gravada na epiderme, e talvez mais fundo], e eu lhe disse que não era necessário, porque eu já tinha "visto a ferida".

Seu pai era agressivo e alcoólatra. Sua mãe acusava Soraya de ter "casado por sua causa" [seus pais forçaram-na ao casamento, após a gravidez]. Não é de se espantar que Soraya tivesse tanto medo de morrer no parto. Por outro lado, ela tinha uma ferida "embrionária" ["endodérmica"], uma "tentativa de assassinato", que precisava ser "vista e comunicada". Eis a necessidade do vínculo dialogal. E haveria outro vínculo que o sonho prenunciava: de sua mãe com a neta [sim, tratava-se de uma menina]. O sonho mostrava uma quadro de "reparação": uma possibilidade de mãe se redimir enquanto avó. E foi assim que se deu, numa medida razoável. Nenhuma dificuldade no parto. E já se sabe que os hormônios da gravidez são protetores naturais contra os picos de ansiedade que deflagrariam "ataques de pânico", por exemplo. O bom parceiro de Soraya, seu sonho inicial [e outros que se desdobraram], o vínculo terapêutico [sobretudo o meu olhar que não se desviara] foram elementos contributivos para uma boa resolução do ferimento infantil, no final das contas.

No tocante à solidão [frequentemente ligada a uma ferida primal, ou a muitas feridas primais-ontológicas], precisa haver um "vedor" do lado de fora. Alguém que veja tanto a ferida, quanto a pessoa que porta o ferimento.




O Outro Dentro de Si Mesmo como Testemunha Solitária: O Olho sem Pálpebra








Se fizermos perguntas ingênuas, teremos respostas fáceis e de pouca profundidade. Isso serve para qualquer ramo do conhecimento ou pesquisa. O meu propósito é que façamos perguntas difíceis, a partir da explicitação de situações muitíssimo difíceis, abordadas por ângulos-de-observação [e indagação] extremamente peculiares [e também "difíceis", no sentido de "menos palatáveis"]. Existe uma profusão de indagações extremamente rasas feitas em Psicologia, e disso não precisamos mais. Seria trazer "mais-do-mesmo" a este ensaio, como ocorre em uma série de livros de auto-ajuda [que ajudam mais a quem os escreve do que aos que os leem], enfatizando o ponto de vista sistêmico [refiro-me ao ponto de vista que "nega a própria doença entranhada no sistema vigente" e não a uma categoria do pensamento psicológico que aborda as coisas "em blocos sistêmicos"] e fazendo tabula rasa de situações individuais que sequer eles sonham suspeitar. Estou chamando os livros de Psicologia disponíveis e vendáveis, com todas as suas análises e proposições, de rasos, ralos e superficiais?! Estou. Estou dizendo que eles fazem perguntas ingênuas e que não passam nem nas bordas ou circunvizinhanças dos problemas e questões abordados neste ensaio?! Estou. Estou dizendo que esta proposta é mais aguda, densa, nuançada, difícil, menos palatável, mais problematizadora e complexa do que as fórmulas vigentes, que enfatizam banalidades como "auto-estima", "como otimizar [linguagem de banqueiro e de gestores de pessoas] a própria imagem e comunicação para efeito de sucesso interpessoal-profissional?! Estou. Estou chamando-os de rasos, pueris, enfadonhos, "miméticos" de qualquer coisa que minimamente se assemelhasse à verdadeira atenção e capacitação empática. São pessoas que ensinam "truques", afinam os leitores para poses sociais mais eficientes, dão uma polida nas personae [máscaras sociais], ensinam as regras do jogo vigente, não importando o quanto o jogo valorize a casca, a aparência, o esmalte, a mentira, a pose e a impostura. E que nada disso tem a menor relação com qualquer coisa ligada à cura do ferido narcísico grave, nem com auto-conhecimento genuíno. Isso tem a haver com "otimização do desempenho social numa sociedade doente". Se este é o objetivo de certos terapeutas ou analistas, eu dou braçadas largas na direção contrária a tudo isso. A Revista Isto É, em sua edição nº 2200 ilustra perfeitamente este modo de "eficiência-interpessoal" com um substrato indisfarçavelmente cínico [ao modo do Príncipe, de Maquiavel], principalmente nas dicas que oferece no aspecto "apresentação pessoal" para a pessoa "se dar bem" [a expressão é minha, mas a falta de profundidade da abordagem faz jus exatamente a esta expressão] nas interações pessoais-profissionais: seja um camaleão [apresente-se segundo contextos e ocasiões], "peque pelo excesso" [em relação a adornos, lenços, brincos, joias, gravata, terno, adorno de cabelo] e vá subtraindo este excesso segundo as conveniências; "conceba a mensagem a ser passada a cada evento do dia antes do evento", ou seja: faça seu ensaiozinho mental em casa, antes do jogo de cena interpessoal-profissional. Maquiavel já sabia dessas coisas todas, e os políticos e agentes corporativos aplicam-nas, inescrupulosamente, à exaustão. São "bem-sucedidos", sem dúvida. Mas aqui não tratamos de "autoconhecimento" ou avaliação de personalidade através de "índices de performance" [algo atrelado, por conveniência de mercado, ao que Daniel Goleman chamou de Inteligência Emocional] numa sociedade eticamente degradada. Isso não é autoconhecimento: isso é otimização da mimesis [imitação, sintonização com o outro por sintonia gestual e "protocolo reativo de respostas pré-configuradas"], para benefício interativo-social. Leiam O Príncipe de Maquiavel, que é mais sincero.

No capítulo anterior, coloquei algumas questões importantes sobre comunicação, isolamento, intimidade ou ausência de intimidade, "Solidão" x "Diálogo com os símbolos da cultura" numa abordagem preliminar, ilustrando algumas das questões que podemos fazer a respeito, tendo em vista este vértice de indagação. Neste capítulo, pretendo avançar um pouco nesse mesmo vértice exploratório da dor humana. A ênfase da frase está na expressão "dor humana". Que espécie de dor é essa, tão abaixo e subjacente a todas as colocações populares sobre "auto-estima" e outros tópicos mais em moda, como "a otimização da [mimese: imitação] da empatia social", o tal do coeficiente/quociente "performático-interativo", muitas vezes tomado por Q.E., ou "Quociente Emocional" ou, ainda, "Inteligência Emocional" (sic). Vamos olhar, um pouco mais, o que existe "abaixo dessa camadinha de esmalte de conhecimento psicológico".

Imaginemos as seguintes situações. A primeira delas: uma criança de quatro anos, que é levada desde os dois a sessões em terreiros afros mal dirigidos, onde é exposta a demonstrações circences de entidades que "provam sua presença e força" fazendo os médiuns pisarem em cacos de vidro, exemplificando, assim, sua "regência" sobre os cavalos. Ou a beberem dois engradados de cerveja [ou duas garrafas de pinga, no gargalo], sem ficar embriagados. Ou a fazerem manipulações com fogo, de vários tipos, sobre a pele. Isso tudo conjugado com o clima geral: paramentos, roupas de "orixás" e outros trabalhadores de campo: boiadeiros, marinheiros, baianos, além das sessões de Exus e Pomba-Giras [é claro que as últimas sessões, as da esquerda, são feitas em separado]. Estaríamos falando de um Centro/roça/tenda mal administrado, que fique bem claro, e trabalhando num esquema de Umbanda Traçada ou Umbanda Cruzada [e mal cruzada] com Candomblé. Posso falar sem pudor, porque conheço muito dessas religiões de matriz afro, muito sobre o desenvolvimento de seus médiuns [cavalos ou "burros", na Quimbanda], além de conhecer dezenas de terreiros de todas as feições. Então, não se trata de nenhum preconceito religioso, como alguns apressados poderiam me imputar. Ocorre que, na vivência dessa criança em questão [e estamos especificando uma situação, e não "tergiversando sobre generalidades", ou fazendo "juízos genéricos de valor"], ela viu tais cenas desde muito cedo e, pior, aprendeu a conviver com o medo da mãe, explicitado à criança, de "levar surras dos santos" por não cumprir corretamente obrigações, ebós ou trabalhos diversos, além de outras falhas ritualísticas. Tal mãe expôs essa criança, sua filha, desde os dois anos a conviver com a "aura de pavor" da própria mãe, além de ver o desfile de "roupas coloridas" [palavras dessa criança] no guarda-roupa materno, todo este vestuário presentificando [para a criança] o mesmo halo de medo da mãe também em casa e no quarto onde dormiam as duas.

Acompanhem-me. A criança, desde os dois anos [mas "mais consciente do fato" a partir dos quatro] vê a mãe [ouve a mãe e é acordada pela mãe] ter pesadelos, chorar, ganir, se arranhar, jogar-se ao chão, após pesadelos terríveis onde se vê "cobrada" e se sente "surrada pelos santos" cultuados no terreiro de sua escolha [da mãe, não da filha; à filha é imposta essa infeliz escolha da mãe]. A filha, frequentemente, é acordada pelo choro da mãe, pelos pesadelos da mãe, é solidária nesse choro [e arrastada a ele, na verdade] e acaba sendo compelida a "cuidar do medo da mãe", acarinhando-a, "confortando-a" do jeito que pode: deitando-se ao lado da mãe, alisando seus cabelos, pedindo que ela [mãe!] "não tenha medo" [!], quando a própria filha, ainda criança, está "aterrorizada por dentro". Não encontrarão nenhum exemplo assim em nenhum livro que trate de "auto-estima", isso eu lhes garanto. Vejamos o que aconteceu aqui: houve uma inversão de papéis, muito cedo. Demasiado cedo. A filha se vê compelida ao papel de cuidar da mãe. Ela tem de ser "mãe de sua mãe" e numa área extremamente sensível [nada de Édipo na jogada, café pequeno perto disso]: a área do "Terror Sagrado". Quando falamos da função de rêverie da mãe, enunciado proposto por Wilfred Bion querendo dizer da necessidade primária da criança de ter "suas necessidades captadas empaticamente pelo cuidado-atenção maternos" [sendo a função de rêverie "o sonhar o sonho da criança, para poder ajudá-la"], o que Winnicott coloca como "estado [natural] de preocupação materna e holding [cuidado] pelas necessidades da criança", e aquele olhar que "espelha as necessidades da criança [não da mãe!] para que esta criança possa se sentir reconhecida e atendida, aos poucos" [e mesmo frustrada em seus caprichos, o que é salutar também, após identificação-reconhecimento de suas necessidades], aqui, no exemplo dado, temos uma situação absolutamente inversa e precoce: "a criança é levada [por uma série de tristes conjunturas e escolhas alheias a si mesma] a sonhar os pesadelos da mãe e a atender [!] às suas necessidades [da mãe!] frente ao Terror Sagrado". Percebem como essa demanda é bastante superior ao estágio de desenvolvimento dessa criança, dada a um ser em desenvolvimento de forma muito precoce e massiva, "esmagando-o". Ou quase.

Este exemplo é bastante útil, necessário até, para muitas pessoas [inclusive do meu ramo profissional] que vivem a me dizer "não compreenderem o que possa ser o Numinoso Sombrio". Sim. Acredito, de fato, que não compreendam. Mas, a partir desses passos milimétricos de explicitação dos [maus] passos que tendem a evocar [constelar] para a ambiência interna da criança, e desde muito precocemente [frise-se], essa realidade vivida do tal "Numinoso Sombrio", espero que a coisa fique mais clara para meus colegas. Vejam vocês a inversão das fórmulas Winnicottiana e Bioniana do desenvolvimento saudável, patrocinado pela mãe: em vez da mãe espelhar e atender as necessidades [sentimentos, dor, fome, medos, etc e tal] da criança, a criança precisa zelar pelos pesadelos e terrores da mãe. E mais: abafando seus próprios medos e terrores para dar cabo dessa tarefa. O "dizer seus medos" passou a ser "interditado" a ela, dadas as conjunturas e necessidades da mãe, transbordadas à criança. E o que lhe soa, agora [vaga mais contundentemente], como um "Interdito" [Aquilo que se passa "dentro dela": seu mundo sombrio de medos próprios e introjetados], logo passará a ser um "Indizível". Afinal, a quem ela contará o que "mal entende, e teme tanto"? À professora da creche? Ao pai que não tem? Às crianças de sua idade, se lhe faltam palavras e a confiança de que "outra criança possa vir a protegê-la"? Ao "pai de santo" de sua mãe, fonte de toda a confusão? Nenhuma dessas alternativas é minimamente factível. Analisemos cada uma das hipóteses da criança encontrar socorro em cada uma dessas instâncias: 1) Nenhuma criança poderia protegê-la; 2) o pai de santo é uma fonte primária de medo para a própria mãe, o que dirá para a filha desta que tenta confortá-la; 3) a professora da creche ou escola costuma passar ao largo de "opções religiosas" ocorridas na família da criança; até se alguma criança dissesse ter visto "ritos sacrificiais humanos", de modo balbuciante, a professora, costumeiramente, não lhe daria ouvidos. Recentemente, vimos, nos noticiários, de uma criança apresentar munição de arma de fogo colocada em seu estojo escolar. Reação da professora: "isso não pode estar acontecendo" [cifra: "prefiro não ver o que está diante dos olhos"; "não olho em sua luneta, Galileu, isso não existe!"; "recuso-me a crer no que vejo, portanto 'opto por não ver'". Isso ocorre da mesmíssima forma como a escola costuma ser "lenta"/ pusilânime para detectar violências domésticas nas casas de seus atendidos. Não querem "comprar briga", sejamos sinceros; não querem se indispor com seus clientes. Tanto isso é verdade que a denúncia precisa se transformar em compulsória, precisa "virar lei" para ser efetivada, o que demonstra a absoluta falta de iniciativa/brio por parte dessas instituições. O que aconteceu em tal escola onde o achado da criança soou "improvável"/inacreditável aos olhos da professora e de seus superiores? Houve um "impensável (sic) incidente" [para olhos que preferiram não ver o indício prévio] envolvendo uma criança baleada na mesma sala de aula, e outra criança atiradora-"incidental". A partir do "imprevisto", ato contínuo, testemunhamos a instituição se empenhando em fraudar/lavar a cena do crime [pois que houve crime], para também salvar/lavar sua "honorabilidade". Que coisa edificante, não te parece, amigo leitor?! E a criança "sabe disso", desses mecanismos de esquiva dos adultos, intuitivamente [conhece o "desvio calculado do olhar" comentado por mim no capítulo IX deste ensaio]. Mais tarde, a criança aprenderá muito mais. Saberá, por exemplo, que o mundo dos adultos, frequentemente, é o mundo da mentira com papel timbrado. Sim. Por enquanto, ela só sabe que "muita coisa não se pode dizer, porque ninguém quer ouvir, ou finge não ver". Ou, até mesmo, "não consegue lidar". A criança percebe que o adulto tem medo do que ela vê, sabe, ouve, escuta, sonha, pensa, e que tem, inclusive, "medo do seu medo" [seu=da criança]. E que o mundo dos adultos inclui uma lógica sofisticada para driblar tais assuntos, fatos e "revelações infantis". Há muito adulto padecendo até hoje por ter descoberto, na própria pele, tais segredos do mundo dos adultos, em idade demasiado precoce. Viram muito, muito fundo e muito cedo. Para azar deles. Colin Wilson captou todo este quadro de coisas [ou escolheu dizê-lo], de forma inimitável, em seu brilhante: "O Outsider", publicado quando ele tinha 25 de idade. E uma bagagem intuitivo-experiencial que parecia cobrir séculos e séculos. [A obra está citada no capítulo XI deste trabalho: "A Questão Narcísica da Irrealidade"; o leitor é convidado a conferi-lo].

Desta forma [e por razões multifatoriais, como elencamos], esta criança-exemplo ficou "emparedada em seus terrores a partir de dentro, em função das condições ambientais dadas [condições de fora] e da natureza desses mesmos terrores [fora-dentro]". O que veio de fora, agora, ficou lacrado a partir de dentro: amplificado pelo Numinoso e reverberando nessa nova clave. Não existe chave disponível ou localizável para que a criança administre [ou minimamente tente nomear] este Terror. Não há via de abordagem que faculte a elaboração/metabolização deste Terror tornado Indizível e Inominável, por todas as variáveis dadas; infinitamente mais lesivo, assustador e grave do que qualquer interdito edípico-sexual [mais grave, inclusive, por ser mais atípico, pelo fato da criança não encontrar por perto outras crianças com fantasias e dúvidas análogas, o que não ocorre com a tipicidade do Édipo; exatamente por isso, a constelação edipiana é muitíssimo mais previsível e "localizável", na clínica e nos construtos teóricos que a subsidiam e fundamentam]. 

Desde Freud, aprendemos a escutar a criança falando "bunda", "cocô", além de aceitarmos seus termos e perguntas para os órgãos genitais [termos esses tirados do mundo dos adultos, das letras de funk carioca, ou inventados por elas mesmas, como neologismos infantis, tanto faz]. Isso, agora, é menos problemático. Falta-nos a coragem maior de escutarmos [de fato!] dúvidas e terrores muito mais nuançados e sofisticados. Falta-nos aprender a escutar a problemática infantil em outro registro: não o do desejo incestuoso, curiosidade, dúvida, etc; mas o registro do Terror, muitas vezes expresso na "infelicidade muda e petrificada" e "naquilo que nem se ousa perguntar". No choro baixinho da insônia noturna e no medo de dormir e de ficar acordado no escuro: medos simultâneos [!]. Para recuperarmos o ponto de origem deste ensaio e sua razão-de-ser, devemos rever o seu capítulo inaugural: "Segredo e Proscrição: A Cápsula do Medo". Está na hora da classe profissional de curadores de almas e psiques lesadas [analistas, terapeutas, psicólogos] se aterem mais ao atípico, não-edipiano. Porque, só então [e só assim], entenderão a magnitude, especificidade e singularidade desse tipo de ferida que engendra os distúrbios relativos ao "encapsulamento a partir do Indizível" [muito além-aquém do Interdito]. Nisso reside a chave de compreensão de muitos desenvolvimentos encapsulados, como o dos esquizoides, por exemplo.

Há muito de interessante a ser dito aqui, antes de avançarmos ao segundo exemplo-situação. Fairbairn já sabia que os pacientes classificados com possuidores de personalidade esquizoide, quando não demasiadamente regredidos, são os mais perspicazes quanto a todos os processos mentais do psiquismo humano, inclusive os de defesa do próprio analista. Sim. Seu olhar é o mais acurado dentre todos os tipos psicopatológicos classificados, dada a sua percuciência do olhar. Isso quando não demasiadamente regredidos, frise-se. Mais acurado do que os do neurótico médio ou da pessoal dita "normal". Alexander Lowen diz que, quando os esquizoides se atribuem algum dom secreto ou conhecimento-vivência especial, eles estão de certo modo certos quanto a isso, o que se descobre ao longo da análise. Nathan Schwartz-Salant diz que o ferido narcísico e o borderline são peritos em desespero, e capaz de flagrar qualquer sombra deste desespero no próprio analista. Eu diria que o ferido narcísico [esquizoide, sobretudo, e borderline/limítrofe, de forma mais caótica] é um especialista em medo e mentira, nele mesmo e nos outros. Álvaro Ancona de Faria faz o seguinte comentário em sua monografia para obtenção de título de membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, "Transtorno de Personalidade Borderline: Uma Perspectiva Simbólica" (2003):

"Outra característica que comumente chama a atenção de todos os profissionais que atendem ao paciente borderline é uma sensação de invasão permanente da psique do analista, muitas vezes como se este "estivesse nu" atendendo o paciente; ou mesmo a imagem de ser radiografado por ele o tempo todo. Em vários momentos o paciente é capaz, inclusive, de ter um discurso adivinhatório, principalmente quando faz um comentário referente a uma questão sombria do analista.

Este processo funciona como se o paciente tivesse a capacidade de promover uma "varredura" na sombra do analista, com acuidade para encontrar certos pontos de tensão e denunciá-los, às vezes de forma tão inconsciente que não se dá conta deste aspecto profético ou oracular de sua intervenção. É uma via de acesso diferente, de relação inconsciente/inconsciente que ocorre, no nosso ponto de vista, dentro do self relacional inconsciente, numa relação sombra do paciente - sombra do analista." [O itálico é do autor].

Bem, antes de dizer as coisas de modo ligeiramente diferente, tenho de validar, em linhas gerais, todo esse conjunto de análises. O desenvolvimento infantil com proximidade com o sombrio parental-ambiental e, por decorrência, com o Numinoso Sombrio constelado dentro do sujeito ferido [como um Outro dentro do Self, a observá-lo sem nenhuma testemunha externa, nenhum interlocutor disponível] cria, mesmo, tal acuidade. Alguns desdenharão desta acuidade, aqueles que nunca vivenciaram tais impasses e o padrão de desenvolvimento destes feridos. Invejam-nos os "dons" e por isso desdenham a possibilidade dos mesmos. Mas, curiosamente, fazem vista grossa para o "alto custo da aquisição desses dons de rastreamento sombrio" [interpessoal-ambiental].

Winnicott já falava de um processo massivo e precoce de catalogação de dados por parte dos feridos precoces [também esquizoides], como uma estratégia de defesa de "detecção de problemas-ameaças ambientais, para posterior resolução intelectual-factual dos mesmos". Enquanto a criança não tem capacidade dialogal em seu meio e recursos motores ou reativos para fazer frente a tais ameaças, terrores e invasões, a criança desenvolve, precocemente, uma intelectualidade de catalogação de problemas e sinais de ameaças. Um "faro para a sombra em torno". Esse é um mecanismo quase-mediúnico de sobrevivência. Algo muito mais sofisticado, sutil e difuso do que a "leitura corporal-facial" que o Dr. Lightman ["homem-luz", "aquele que ilumina –e desmascara –as sombras"] faz no seriado televisivo "Lie to Me". A gênese desse mecanismo, nos esquizoides e borderlines, é, do ponto de vista de seus desenvolvimentos pessoais, defensiva, acuada, em meios hostis e sem interlocutores-mediadores de seus conflitos. Além disso, é permeada por "reflexos de sobressalto". Os feridos narcísicos menos graves têm um padrão distinto. São aqueles chamados, clinicamente, de fálico-narcisistas: os narcisistas pró-ativos, exibicionistas e que "dão certo" [socialmente falando], muitas vezes. Alexander Lowen, por exemplo, assim os designa [acompanhando certa tradição clínico-psicanalítica], com uma curiosidade adicional: também se auto-designa como "fálico-narcisita". Os fálico-narcisistas [e aqui falo em termos mais gerais, sem grandes nuances] também costumam ter o tal "faro subliminar" nas interações sociais, mas é um faro "menos maldito-assustador". O faro do fálico-narcisista é o do bom vendedor e apto leitor de reações que suscita diante da imagem que apresenta [a persona social], exatamente o tipo de pessoa que não precisa aprender as lições dadas pela Revista Isto É, na edição supracitada. Não precisa de aulas para saber persuadir, ser sedutor, saber influenciar, a partir das tendências latentes que enxergam no interlocutor e ambientes. Assim, sabem influenciar. Essas características nada têm a ver com o mérito de suas intenções. Podem ser boas ou más. Assim como esquizoides e borderlines podem ter mais ou menos ética. Que isso fique bem claro. Estamos analisando índices caracterológicos a partir de pontos-de-partida nos desenvolvimentos individuais de sujeitos feridos precocemente, em graus variados. A matéria da Isto É mostra um uso instrumental-"esperto" de habilidades de interação que todo narcisista fálico intrinsecamente conhece. Sua máscara social [persona] foi bem desenvolvida, e ele sabe transitar pelo mundo de aparências [a dita sociedade normal, sendo a normalidade por mim definida como "a doença média socialmente aceita"; hoje em dia, ser "narcisista", neste sentido, é confundido com "segurança", "autoconfiança", "autoestima", socialmente falando]. Em termos gerais, os fálico-narcisistas são muitíssimo mais habilidosos no trato social, possuem um histórico mais ambivalente em relação à proscrição/isolamento/abuso, geralmente tendo sofrido humilhações e negligências por parte de alguns protagonistas de suas infâncias, e recompensas/prêmios/reparações parciais por parte de outros. Podem ser, ambivalentemente, proscritos e troféus para o ambiente parental, negligenciados em aspectos importantes de seus selves, ao mesmo tempo que são "exibidos" em outros aspectos, pelo mesmo ambiente primário: como "trunfos" /"extensões" de habilidades desejadas por seus próprios pais/ambiente cuidador. Frise-se que isso também é um abuso ao self da criança; isso é um uso parental/ambiental indevido. Podem ser proscritos por uns, sob certos ângulos, e queridos/ apreciados/exibidos por outros, sob outros ângulos. Não são nem "gatas borralheiras absolutas", nem "patinhos feios massivamente tomados como tais". 

Os esquizoides, pelo padrão massivo e maciço de suas vivências, são mais defensivos, desastrados socialmente, reservados, desconfiados, solitários, anti-sociais, nada fulgurantes em seus raros vínculos ["embotados", low profile] e muitíssimo mais acurados neste sentido quase-mediúnico supracitado por Ancona de Faria: na habilidade "instintiva"da "captação da sombra do outro" [e/ou do ambiente onde se insiram]. Os esquizoides cresceram mais sós. Entenda-se: sem qualquer interlocutor disponível para seu tipo de demanda, pela "dupla falência parental" e dos ambientes cuidadores, sejam eles: escola, igreja, família extensa, ou outras instituições negligentes ["nós nada vemos de peculiar em você; nós, na verdade, nada vemos em você"] ou agressoras/invasivas ["nós te retaliamos e te isolamos ainda mais por você ser tão diferente/atípico"]. Este é o padrão, em linhas gerais. Os borderlines [limítrofes] são mais flagrantemente impulsivos, mais passionais em suas manifestações de (des)afeto, "fazem mais barulho", demonstram mais suas instabilidades [ao modo dos que possuem transtorno bipolar, muitas vezes um diagnóstico psiquiátrico que se superpõe a este outro mais caracterológico]. Mas estes também sofreram feridas sérias. 

De qualquer maneira, em todo ferido narcísico grave [sobretudo esquizoides e borderlines], faltou continência ambiental [o "holding" de Winnicott], "espelhamento" da criança [o olhar que reconhece e atende às suas necessidades] por parte do ambiente parental [o rêverie de Bion e mais uma vez, o holding de Winicott, além da "mãe boa o bastante" / ou mãe-ambiente "suficientemente bons"]; houve abuso moral, emocional, negligência, abusos físicos de várias ordens [castigos indevidos, privações sádicas, abuso sexual], invasão ambiental, privação ambiental, abusos verbais, negligência, isolamento massivo e proscrição ambiental, bullying escolar, medo religioso infundido por instituições ou educação parental, cada um desses elementos [ou vários deles] em graus variados, mas significativos. Fatores biológicos também têm seu peso, claro, desde partos absolutamente traumáticos, além do quantum de doenças infantis [e atenção/desatenção dadas a essas doenças], e outras suscetibilidades biológicas. Mas, tudo isso somado e ponderado, há uma gama suficiente de autores e pesquisas que apontam para gradientes inauditos [atípicos, em relação à neurose média, edipiana] quanto à frequência, prolongamento, severidade/intensidade, relação da criança com o perpetrador dos abusos [sejam eles de que ordem], manutenção dos segredos quanto aos terrores/abusos por falta de interlocutor [por vezes, a criança sabendo que será culpabilizada por esta revelação: seja um temor religioso, seja a acusação de um parente molestador, por exemplo; ou será proscrita/ignorada, "punida pelo silêncio-isolamento", após tocar num assunto-tabu, para seu ambiente primário]. São todos esses fatores que "criam" um grande ferido narcísico: esquizoide, esquizotípico, esquizofrênico, borderline; fatores estes somados ao elemento quase imponderável que costuma ser qualificado como "vulnerabilidade orgânica". 

Kernberg, Kohut, Livesley, Guzder, Paris, Van der Kolk, McClellan, Bowlby, Zaranini, Charlton, Gunderson, Andre Green, Nathan Scwartz-Salant, Ancona Lopes, além dos autores que cito comumente [Winnicott, Bion, Grotstein, Fairbairn] entendem o peso da ferida precoce pré-edípica, cada qual com suas nuances. Ainda que alguns a misturem com a edípica [principalmente os que escreveram na década de 40/50, sob a égide de um Édipo mais precoce, como apontado por Melanie Klein]. Um sumário de referência de muitos desses autores se encontra no trabalho citado de Ancona de Faria [disponível na web, em formato PDF], por isso me eximo da necessidade de aportar tal bibliografia no corpo deste ensaio, para não onerá-lo com demasiadas referências. O fato é que, neste meu próprio trabalho, pretendo aportar algumas nuances novas e um detalhamento todo particular a esta leitura coletiva. Trazer meu tom ao mosaico disponível. Para aqueles que gostam de estatísticas, alguns desses autores supracitados até quantificam o índice de ocorrência de alguns desses abusos em indivíduos feridos-graves. No caso de borderlines, Van der Kolk, Paris, Livesley, McClellan até quantificam a incidência de alguns desses fatores [invasões ambientais, abusos e privações], no histórico de pacientes com este diagnóstico. Então, não é algo que possa ser minimizado, sequer minimamente, por qualquer olhar clínico; a não ser que este [olhar] esteja pré-compromissado com "a exclusão dos dados factuais como 'etilogicamente irrelevantes'".

Quanto ao pouco reconhecimento de muitos analistas e/ou psicólogos sobre essa dimensão tão enfatizada por mim, a do Numinoso Sombrio, transcrevo aqui outra curta passagem da monografia de Álvaro Ancona de Faria, bastante "enxuta" e exemplificadora do que venho pretendendo ilustrar em todo este meu esforço de apresentação de "dinâmica de casos" fundamentado em um corpus teórico. Parte dele, desenvolvido a partir desse trabalho. Eis a passagem em questão:

"O paciente borderline está num estado de total identificação com a Sombra [maiúscula do próprio autor, já que não se trata de uma "sombra qualquer"]. Se vê como alguém diferente de todas as outras pessoas; não vê essa diferença como a sensação de ser único, de ter características que são individuais, mantendo, porém, a pertinência com o restante da humanidade; pelo contrário, vê essa questão como uma condição só sua, que o condena pela impossibilidade que sempre sentiu de identificar-se com o outro e, portanto, comunicar e dividir. Isso o leva a uma experiência de solidão abissal, que novamente o leva a essa identificação com a Sombra, num processo reverberante. [Observação minha: por refluxo libidinal do contato com o outro, e pelo incremento da "auscultação do Outro Sombrio dentro dele mesmo"; a única testemunha, numinoso-sombria de sua condição é este Outro dentro dele mesmo que, ao mesmo tempo, o observa e o acua; triste paradoxo].

É como se na patologia borderline ocorresse uma identificação delirante inconsciente entre um ser humano e a imagem numinosa (Schwartz-Salant, 1997, pag. 104). Essa identificação, contudo, ocorre somente com o numinoso negativo, o lado sombrio do numinoso, o que vai ter suas raízes nos estágios mais precoces do desenvolvimento de sua personalidade."

Este trecho poderia ser todo sublinhado. Mas, por ser curto, posso comentá-lo, brevemente. Aqui, está apresentado o Numinoso Sombrio de que tanto falo, em termos bastante similares aos meus. E há a ênfase dele, Ancona, de tal âmbito numinoso se "constelar" para o indivíduo em estágios muito precoces de seu desenvolvimento. Isso é básico enfatizar. Essa identificação delirante [ou "diálogo perpétuo" com o Numinoso Sombrio] poderá se tornar um "plano de fundo" para todo o processo ulterior do desenvolvimento desse indivíduo: uma "ambiência", com Halo e Presenças com as quais ele irá "dialogar" pelo resto da vida. No livro já citado por mim algumas vezes, leitura obrigatória para especialistas, "Quem é o Sonhador Que Sonha O Sonho", o subtítulo " Um Estudo de Presenças Psíquicas" mostra quão bem James Grotstein captou o essencial da coisa toda. E tem mais algo a ser observado: como essa identificação só ocorre com o lado sombrio do numinoso, não imaginem que a "criança se orgulha" de ter essas experiências extraordinárias. Embora elas lhe deem a sensação de ser "única" ou "especial", esta experiência mais acua e humilha do que exalta, ainda que alguma ambivalência possa se construir ao longo do tempo, numa espécie de sensação de se ser um "maldito-eleito" [essa era a sensação de Jung, caso se leia sua biografia], ao modo de Jó, por exemplo. Nada a ser invejado, portanto, como pensam, ingenuamente, aqueles que fantasiam que os feridos "fantasiam pseudo-problemas para si próprios, a fim de auto-engrandecerem" [sic]. Já ouvi observações de incautos exatamente neste sentido.

Unindo os dois trechos que eu selecionei da monografia de Álvaro Ancona de Faria, vale a penas retomar a listagem de proposições que eu apresentei lá atrás, no capítulo II deste meu ensaio: "As Bases e a Moldura da Proscrição: Proposições Iniciais". Vamos só à listagem das tais proposições, remetendo o leitor à (re)leitura daquela capítulo [que, agora, pode ser (re)lido sob nova luz]. Ei-las:

1) Ele se sabe portador de uma diferença.

2) É "não-aceito" por causa disso [prefiro dizer "é não-aceito" do que "não é aceito"; a "coloração da expressão" é mais forte].

3) O Olhar Coletivo denunciou para ele essa diferença.

4) Por causa disso, ele desenvolveu um mundo peculiar [e inimaginável para a condição coletiva média, frise-se] de solilóquios precoces, perguntas angustiosas e sem cúmplices [sem testemunhas] sobre sua própria condição.

5) Essas perguntas evoluem para "perguntas existenciais precoces" [sobre a razão da diferença, justiça/ injustiça da vida, Deus ou Castigo e coisas que tais], para uma "auto-observação angustiosa e cindida" e para uma "hipervigilância em relação ao ambiente" ["quando serei atacado?"; "serei ridicularizado mais uma vez?", "o que estão falando ou pensando de mim?", etc e tal].

6) Essa hipervigilância faz com que o sujeito aprenda, cedo [por razões defensivas] a captar nano-impressões do ambiente em relação à sua identidade e à segurança dele [dele=sujeito; a partir da aguda percepção da diferença do Olhar Coletivo sobre ele]. Torna-se, então, um sujeito "sensível" a essas nano-percepções e acuradamente ciente de elementos ambientais, sobretudo os invasivos e evasivos.

7) Essa acurácia lhe é peculiar: um elemento a mais a se somar à sua diferença de origem.

8) Essa acurácia se estende a todos os elementos de esquiva, medo, evitação ambiental em relação às suas questões [não só condenação ou proscrição]; o sujeito "lê" no Olhar do Outro: "Eu temeria estar na sua situação, e desvio o olhar de você". A evasão/ evitação é flagrada, além de invasão. [Como dito no item 6)].

9) Por ser um "especialista em desespero", o ferido-proscrito enxerga, capta, infere o medo e o desespero do outro; mesmo quando este desespero é disfarçado em evitação, desdém, pouco caso aparente; o proscrito detecta a fuga, enfim.

10) O proscrito, dado seu recolhimento e solidão precoces, e o gênero de questão sobre si que é levado a fazer-se [e sobre a vida] tem uma introversão bastante distinta da Coletividade Média, e uma vivência onírica [e oniróide] mais dilatada[s]: sonha mais, lembra-se mais dos seus sonhos, seus sonhos são mais vívidos e "peculiares" [bizarros, assustadores, surrealistas, persecutórios, "mágicos", "místicos", aterradores, etc].

11) Por essas mesmas variáveis de introversão/atenção e focalização no mundo interno, o proscrito se lembra mais de pesadelos e é mais suscetível a estar ciente de experiências hipnagógicas [aquelas que se dão entre o sono e a vigília].

12) Assim sendo, podemos dizer que as condições peculiares aos místicos, médiuns e xamãs [nas sociedades ditas primitivas] costumam se desdobrar a partir dessa moldura-de-proscrição.

13) Sim; estou afirmando que os elementos de atenção e ciência das nano-percepções ambientais + sutilezas do mundo interno e da Evitação Coletiva[uma das Faces da Sombra Coletiva] faz do proscrito um intérprete potencial dessa mesma Sombra Coletiva [tudo o que escapa à Cultura], nos moldes clássicos do místico, do médium, do xamã, e também do "outsider contracultural", do crítico da cultura [aquele que se "insere pelo avesso"], e do "porta-voz do Excêntrico e do Oculto".

14) Como é marcado pela imagem, mas também pela "marca e ferida decorrentes do Olhar Coletivo" [Olhar do Outro Externo], o ferido-proscrito desenvolve o relacionamento em termos Numinosos [sagrados] com o Outro-em-Si-Mesmo, sentido como Outro-Dentro-de-Si [Deus, Demônio, Numina]; por isso é dado a insights ou "desvios percepcionais" místico-religiosos, segundo a ênfase cultural e o contexto observacional.

15) Essa condição de ter a auto-imagem e identidade marcadas pelo Olhar Invasivo, Rejeitador e Reprovador [um olhar que aglutina essas três características], somada aos tais relacionamentos internos maximizados e cindidos [já estando os externos comprometidos, por "isolamento do sujeito complementar ao repúdio-evitação dos outros"], faz com que a constelação interna do proscrito envolva muito mais do que a situação típica proposta no Mito de Narciso [ter de conhecer-se a fundo, sob pena de ficar fixado em si mesmo]. Por exemplo, a situação de distância irremediável do Objeto-Mundo sempre a lhe escapar da mão e da voz [a distância do Outro, e de não-poder alcançar seus objetivos em comunidade] também lhe marca fundamente a identidade. E essa situação, além de figurada no mito de Narciso, também pode ser melhor explanada em Tântalo. A situação do proscrito inclui o drama de Tântalo.

16) A situação das cisões internas ["pedaços de eu observando e zelando por outros pedaços secretos e ocultos do eu"] também o coloca na "condição do pulverizado por Deus" [pelo "Olho Vígil de Dentro"]. Essa seria, por exemplo, asituação prometéica de ser pulverizado [=bicado pela águia, ad aeternum] por trazer um "fogo solitário à terra dos homens comuns".

17) Seria essa, também, a situação dos Maruts pulverizados por Indra desde o útero [da deusa Diti], por "rivalidade fálica a priori" por uma "diferença/superioridade suposta" [algo mais sério e anterior ao Édipo Clássico, que inclui o Édipo e lhe subjaz].

18) Seria, ainda, a situação de Jó sendo pulverizado pelo conluio Jeová-Satanás, segundo os moldes da narrativa Antigo-Testamentária.

19) Assim, as condições de Tântalo, Prometeu, Jó, dos Maruts [entre outras mais, como também a "Justiça Trágica, entendida como Nêmesis", que ainda veremos...] fazem parte da "condição do proscrito" tanto quanto o mitologema de Narciso.

20) Para fazer justiça à Tragédia Pessoal do proscrito temos, então, de enxergar toda a constelação de seus impasses "em bloco": precisamos ver o quadro todo. Só assim poderemos, efetivamente, ajudá-lo.

21) Isso porque, este quadro todo coloca todo proscrito numa situação ímpar que é, ao mesmo tempo, de isolamento social, "solidão cognitiva" ["os outros não sabem o que eu penso, nem veem o que eu vejo"], culminando numa precoce e funda "solidão ontológica" ["o mundo nada sabe de mim, nem saberá"].

É sempre bom relembrarmos tais "bases e proposições" do capítulo II, para podermos avançar com maior clareza.

Voltando à nossa criança, que "vela pelos pesadelos da mãe, enquanto engole os seus próprios terrores para acalmá-la/acalmar-se". Pois, se assim não fizesse [assim ela "sente", mesmo sem saber dizê-lo...], amplificaria a aflição de ambas. Pois bem, esta criança foi instada a ser "mãe da mãe". Passará a ter seus próprios pesadelos indizíveis, se é que já não os tinha, pela ambiência ambígua do Sagrado estar tão irmanado ao Terror. Seus sonhos serão tão indizíveis para os outros como seria dizer para alguém sobre o que fosse uma múmia, sem conhecer a palavra, nem saber falar de ataduras, esparadrapos, ou o híbrido-paradoxo "morto-vivo". Tão difícil de dizer [e tão "improvável" aos outros] quanto sonhar que sua fala pulveriza seus pais com um raio, que o pastor batiza crianças no sangue derramado num convés de navio por decapitação dos adultos seus pais [o sonho de uma criança já citada por mim, em outro capítulo], ou de estar andando sobre lhamas numa cidade holográfico-terrorífica, sem nunca ter visto uma lhama, nem conhecer a noção de "holograma" [o sonho de uma criança de onze anos de idade, com histórico de medos e segredos]. O leitor que me acompanha consegue conceber a "singularidade" dessas situação?! Para a criança [e para o adulto que ainda não resolveu sua "equação pessoal"] ela está numa situação única, indizível, irrepetível, como único ser humano marcado nesta Terra a guardar tamanho segredo. É claro que há muitos "únicos-diferentes" por aí, mas isso ela [nem seus pais, nem seu ambiente parental] ainda não sabe(m). E o pior será se alguém que pretender cuidar dela também não o souber! O leitor que vem me acompanhando há de se lembrar [ou retomar] o capítulo VIII deste meu ensaio, quando conto o caso de Emannuel Bresson, diagnosticado como esquizofrênico. Eis o parágrafo onde conto sua vivência onírica particular, que desencadeou seu surto ou contribuiu para configurá-lo, como alicerce e moldura subjacentes. Observe o leitor quão numinoso e sombrio é este enredo, e quão atípico, em todo o seu desdobramento. Não é difícil entender como [e o quanto] uma criança possa se sentir diferente ao ler tal vivência onírica, por sua atipicidade que aterrorizaria mesmo um adulto, o que dirá alguém em estágio tão precoce do desenvolvimento.

"Vamos ao sonho, emblemático. Há uma Música que nunca se ouvira, majestosa, permeando o Jardim. A música é grandiloquente e parece emoldurar, com perfeição, a Vida ali representada, com tudo que Ela comportaria. A Música Perfeita Inimaginada. O cenário é sonoro, além de plástico. Uma nota sai do lugar. Uma única nota, destacada. Toda a música se rearranja a partir dessa desconstrução, até representar a Cacofonia ou Caos mais Absoluto, de Aterrador e Insuportável. O cenário sonoro se inverte. Isso se faz acompanhar de uma inversão no cenário plástico, concomitante e correspondente: as plantas e flores passam a crescer em direção ao "dentro da Terra". Cacofonia Absoluta e Vida Introvertida ao Útero Telúrico Primal. A percepção do conjunto é aterradora, faz o menino suar e "se ver sonhando" [enquanto sonha, sem sair do sonho], vendo-se na cama, com os lençóis sujos por baldes de imundície. O sujeito dejeto é recoberto por fezes ou esgoto. Isso se repete, com nuances. Numa das vezes, o menino se vê correndo em meio a essa paisagem invertida e cacofônica, sobre quatro patas, como um animal. Corre e corre para fugir da música e da Vida que se inverte. Sonha-se como um tigre, e acorda montando sobre a preceptora que dorme na cama ao lado, tendo ela cerca de setenta quilos. Ele é um "tigre apavorado e raivoso", quando acorda. Luta por sua sobrevivência. Que ninguém seja tão apressado ao imaginar a cena primária freudiana [o coito dos pais] em episódio tão rico e nuançado. A partir daí, o diagnóstico se corroborará ao longo dos anos, ao longo do futuro-sem-futuro. Tempo e espaço na esquizofrenia são como sonhar acordado, já o percebia Joseph Berke, um dos psiquiatras a trabalhar com Ronald Laing, o célebre autor de "o self dividido". Não por acaso, o propositor e porta-voz da linha de "entendimento da linguagem na loucura" [que repercutia os "nós cegos" da linguagem do grupo social-familiar] consagrada como "antipsiquiatria". Se tempo e espaço na esquizofrenia são semelhantes a um "sonhar acordado", são inteligíveis para um bom intérprete de sonhos." Este é o sonho experienciado por Emannuel ["Quem é O Sonhador Que O Sonha"?] em torno dos seus seis/sete anos de idade. 

Jung, diante dos seus sonhos mais numinosos, também se perguntou: "De Onde Veio Isso?" "Quem me Enviou ou Obrigou-me a Tais Pensamentos"? Em sua autobiografia, escrita [narrada a Aniela Jaffé] aos 83 anos de idade, Jung deixa bastante clara sua perplexidade inicial [que perdurou por toda a vida, ainda que ele soubesse elaborá-la] diante dos primeiros sonhos. E revela que, alguns deles, só viera a relatar seis décadas depois, aos sessenta e cinco anos de idade, tamanho o seu pudor em apresentá-los. Muitos, ele levou trinta anos para entender ou decodificar. Minha pergunta: isso "humilha" ou "orgulha" tal "sonhador"? Pode criar inflação em alguns, como a leitura atenta do Livro Vermelho o demonstra. Pode, ainda, orgulhar e humilhar, ambas as coisas. Na mais dolorosa das hipóteses: só humilha e acua. No caso do Numinosos Sombrio, é isso que costuma ocorrer, majoritariamente. O pudor [medo, tirando-se o eufemismo] em se contar tais sonhos aos outros costuma decorrer do "medo do medo dos outros" e seu corolário: esquivas, suspeitas, pasmo, espanto, desconfiança, incredulidade, acusações e proscrição por parte do ambiente. Material mais glorioso ou auto-enaltecedor [também por vezes presente], causa outro tipo de pudor, mais misto. Pode encontrar desconfiança e plateia, ambos.

Aplicando todo este raciocínio à criança de nosso exemplo, é forçoso que eu faça algumas afirmações contundentes e categóricas, para dissipar escamoteamentos e confusões: tal criança ferida não esconde instintos dos quais tem vergonha, desejos inconfessáveis relacionados a pai ou mãe; ela não tem medo de ser acusada de "impudica" ou "desavergonhada". Ela tem medo de ser uma pedra de escândalo pela estranheza, espanto, incredulidade que causará. A palavra chave é esta: incredulidade. Uma incredulidade apavorada ou desconfiada: ela tem medo de que não acreditem nela, de jeito algum. O mesmo "pudor/terror sagrado" [ou "silêncio sagrado"] de Jung quando criança. 
O tipo de fantasia dessa criança, e seu isolamento, lembram algo do desenvolvimento daqueles que "viram algo muito forte muito cedo". Essa é a ferida pelo ver [que inclui o ouvir]. E não foi o sexo! Os sonhos improváveis de Jung [o primeiro aos três anos], ainda que remetessem a "falo" numa leitura bem a posteriori, envolviam muito mais: trono, deus subterrâneo, abóbada [nenhuma abóbada havia sido vista factualmente por ele, segundo qualquer rastreamento mnêmico ou familiar], medo de jesuítas, mistura da imagem de Jesus [e, por extensão, dos jesuítas] como "devorador(es) de crianças-bolinhos" antes que o Diabo viesse comê-los, segundo uma oração cantada que sua mãe lhe ensinara, na qual as Asas de Jesus protegiam as crianças-pintinhos do assalto de Satanás durante o sono. Isso é tão ruim quanto as sádicas canções de ninar [Boi da Cara Preta, "Cuca vem pegar", e outras peças que tais]. Imagine o leitor deste ensaio a seguinte situação que seria patética, não fosse o desamparo infantil implicado na situação. "Ouça" a melodia clássica, please: "Dorme nenê, que a Cuca vem pegar, papai foi pra roça, mamãe volta já" [em uma de suas versões mais simples e consagradas]. Beleza. O leitor, por certo, terá acompanhado a letra, com entusiasmo infantil. Alguém embala a criança, solicitando que ela durma. Se ela entender minimamente o que está sendo dito, não dormirá. Quem pede à criança que ela durma, não é a mãe! [Esse é o primeiro impasse]. Avisa que quando ela dormir, será pega pela Cuca, e que o pai e a mãe estão fora. Pois bem, uma das conclusões possíveis [e das mais óbvias] será a seguinte: a criança é vítima de um engodo-trapaça que envolvem pai, mãe e Cuca. E quem está embalando a criança e solicitando que ela durma sem demora é a própria Cuca [um substitutivo tenebroso da própria mãe, uma mãe falsa, um "duplo sombrio da mãe"], para pegá-la, comê-la, matá-la. E pior, com o consentimento de pai e mãe, que a deixaram entregue a esta impostora que agora canta. Ora, ora, meu Deus. Será inesgotável o sadismo dos adultos?

Deixando de lado essas edificantes canções de ninar e suas prováveis e terríficas implicações [sobretudo na falta de bom ambiente parental, ou na "dupla falência parental", como bem diz Paris ao definir o contexto dos grandes feridos], faço aqui duas sugestões de leitura: quem quiser ver o desdobramento desses segredos, bem como as "reflexões infantis" [muito mais imagens do que reflexões; na verdade, prolixas e precoces reflexões suscitadas por imagens], pode acompanhar, com proveito, os dois primeiros capítulos das Memórias de Jung ["Memórias, Sonhos, Reflexões": "Infância" e "Anos de Colégio"], ou os dois primeiros capítulos das memórias de Alan Watts ["Em Meu Próprio Caminho": "O Bosque Petrificado" e "Tantum Religio"]. Ambos não sofreram abusos massivos, nem tiveram pais tiranos, mas já se sentiam "à parte", pelas questões que se faziam, em segredo [às vezes, por falta de simples vocabulário e confiança no mundo adulto, mesmo que este mundo não seja "agressor", mas pareça "alheio a estas questões", como nos dois casos citados]. As infâncias de ambos, no geral, estão longe de serem "infâncias aterradoras", bem pelo contrário. Mas as perguntas irrespondíveis de Jung, suas dúvidas religiosas a partir das conversas que entreouvira do pai, seu medo dos jesuítas e sua associação com "orações infantis" já foram suficientes para desencadear nele muitos sonhos e visões hipnagógicas assustadoras, como halos de cabeças em meia Lua, pairando sobre o ar, saídas do quarto de sua mãe. Além de "jogos de identidade" bastante curiosos, como sentar-se numa pedra e pensar se a pedra o estaria imaginando, e não ele a ela. [Cifra: o sonho de Chuang-Tsé]. Se uma criança senta-se no escuro, e imagina que está fora do quarto, ou que seu corpo está na horizontal, quando ela está imóvel, ou que ela está no canto oposto do quarto mirando a si mesma; quando uma criança aprendeu a se sentir desincorporada, desde quando sofreu uma cirurgia de garganta [aos dois anos], quando parentes e enfermeiro lhe seguraram na cadeira enquanto o médico lhe extraía amígdalas e adenoide, e ela não sabia de nada, e "viu seu pai vê-la sofrer sem fazer nada, nem dizer palavra"; quando tais "jogos de posições" acontecem, e a criança "se evade" e "imagina não estar onde está", e passa a ter pensamentos-fantasias bizarras sobre sua posição corporal, a ponto de ter de se levantar de uma cadeira de barbeiro quando este a inclina para lavar-lhe a cabeça, e tem de fazer isso com sentimento de urgência, "para se sentir sendo" [com medo de "evadir-se"], ou outra criança tem de se cortar [pernas, braços, com estilete] "pra se sentir com um corpo", etc e tal, não estamos falando de agressividade edípica reprimida [raiva da impotência do pai, diante da agressão sofrida, por exemplo], ainda que elementos edipianos possam ser supervenientes, no quadro, em seu conjunto. Ainda assim, estamos próximos dos terrores primários dos medos impensáveis de Winnicott [queda-sem-fim, vertigem infinita, ter mente desincorporada, espírito-pensamento sem corpo, dissociação, desincorporação], coisas que pressupõem um registro muito precoce de trauma, medo e segredo. Estamos no registro do indizível [tão colado ao Impensável], e não do interdito [tenho vergonha de beijar mamãe e papai me arrancar o pinto]. Não, não. Temos de olhar a coisa na sua funda e precoce seriedade. Na sua "Numinosidade". Estamos falando de âmbitos míticos mais difusos. A ambiência não é do Édipo e sua triangulação. Estamos num âmbito de terrores tão difusos e profusos [tais quais os desta menina que "consola a mãe" do medo dos "Deuses" /das "surras de santos"] que precisamos ouvir as Feras Rugindo ao Fundo [perto das quais, Cérbero talvez parecesse um mero cãozinho doméstico]. Estamos no Ambiente de Nyx, das Lâmias [luas esvoaçantes saindo dos quartos; a propósito, ver meu poema "Infância de Camila", que trata justamente disso], do Hades. Estamos no âmbito de terrores de identidade e dessa identidade ser ameaçada e não-crível: antes de mais nada para os outros e, por deflexão sobre si mesma, para si mesma! "E se só eu vir o quadro se mexer, sem nenhuma testemunha?!" "E se só eu vir a figura mudar, à minha frente?!" E se a estátua do jardim se mexer, e só eu vir, e quando chamar meu pai, ela voltar à posição de antes e ele me bater?!" [A criança, certamente, não conjugará o verbo assim: ela dirá "e se só eu 'ver', mas tirando a incorreção gramatical inevitável, o pasmo será o mesmo...!]. Esse tipo de medo primal, como a dúvida de Jung se era pedra ou pessoa, tendo de se levantar [e talvez sacudir a cabeça!] pra saber que ele era ele mesmo [!] é o típico medo não-edipiano [medo de não-ser, ou ser-tão-só que não sabe que é, ou se é] classicamente narcísico, ou esquizóide. Quem quiser aplicar o Édipo nestes casos, estará falhando redondamente, e agravará a ferida. 

Inspirado em Nathan-Schwart-Salant, Álvaro Ancona de Faria define os aspectos transferenciais [e contratranferenciais] com pacientes limítrofes como sendo do tipo de polaridade Jó-Jeová, ambos se experimentando em ambas as posições. James Grotstein define a mesma vivência com feridos graves [esquizóides e limítrofes] como sendo da ordem de Pietà-Cristo, ambos se experimentando em ambas as posições do binômio. São constelações transferenciais bastante "desconcertantes" para quem só tem o Édipo em vista, e bem menos erotizadas do que o previsto. E quando Édipo espreita a cena é como elemento superveniente, e nunca como "tônica", tal como seria o caso da nota dominante num acorde. O Édipo não é esta corda. Jó pode ser. Jeová pode ser. A Mãe Enlutada pelo Deus Sacrificado pode ser. Cristo [o Mártir, a "Testemunha Solitária da Verdade"] pode ser. Vou tratar melhor dos vetores transferenciais no próximo capítulo. Sísifo pode ser. Prometeu pode ser. Hefesto pode ser. Cassandra, muito provavelmente. Íxion pode ser. Pélops pode ser [Cifra: Édipo como elemento superveniente, não dominante]. Tântalo pode ser. Narciso, idem. Mas não Édipo. Isso para ficarmos na mitologia grega, mais conhecida e popular. Mas, perceba-se, que os autores acima citados escolheram modelos bíblicos para melhor definirem os padrões transferenciais-contratransferenciais nas análises de tais pacientes. Não por acaso, trata-se de um Texto Sagrado. "O Halo do Sagrado envolve o Segredo". Sempre. Nesses casos mais graves, sempre. Eis a grande questão, muitíssimo mal compreendida, em geral.

O segundo exemplo é só pra reiterar quantas "mães de mães" existem por aí, sem poderem falar dos seus segredos. A menina de sete anos não dorme esperando sua mãe voltar pra casa. Mãe solteira. Chega drogada, bêbada, de madrugada, às vezes entra no banheiro e se corta. [Sim, a mãe é borderline]. A menina só pode intuir os homens perigosos que a mãe encontra [vez por outra já viu algum, com arma e droga na jaqueta]. De dia, a menina passa por "aluna preguiçosa". Passa a se isolar na escola, e é vítima de bullying por seu "alheamento", bullying este favorecido pela acusação da professora dela ser preguiçosa e não corresponder "aos esforços da mãe em educá-la sozinha" [mãe solteira]. O círculo se fecha. Risadas e provocações das outras crianças. Entregar o segredo da mãe à professora que já a desqualificou e pré-definiu a mãe?! Tirar a professora de sua cegueira?! Abordar a própria mãe sozinha, sendo a família constituída só pelas duas, e "cada uma só tendo a outra pra dividir o zelo por ambas"? (sic) O leitor que me acompanha deve visualizar a triste situação dessa criança, e a arapuca na qual ela caiu [e para a qual ela, criança, não vê qualquer saída]. Eis uma situação que o olhar adulto [e que falta de acuidade dessa professora...!] precisa flagrar para haver intervenção. 

O olhar silencioso que vê sozinho, além de arrumar inimigos e incrédulos-por-antecipação [sim, pois dadas as premissas de base, a criança "nem ousa 'experimentar dizer' o que se passa"], acaba por se tornar um olhar sem pálpebra que tem de vigiar, dia e noite, mãe e criança. E no caso [ainda mais grave] da primeira criança, o Terror passa a ser um Olhar sem Pálpebra que a assusta a partir de Dentro também, enquanto ela cuida desse medo e dos medos da Mãe. Uma espécie de olhar de Hórus como sol inclemente, como sol cáustico, o Olho Que Nunca Fecha e, que por sua própria "voltagem", acaba por esterilizar toda a Terra, transformando-a num Deserto.









Jó. Ou: E Daí?








No capítulo anterior, mencionei alguns aspectos transferenciais presentes na análise de feridos narcísicos, aspectos estes que podem ser cifrados no campo de tensões presentes nas díades Jeová-Jó [O Deus Pulverizador e o sujeito pulverizado] e Pietà-Cristo [a mãe impotente e tardiamente culpada que enxerga o sofrimento do filho como Mártir]. Essas polaridades merecem esclarecimento e aprofundamento, e neste capítulo começarei a enfrentar a questão a partir de Jó e de perspectivas analíticas que tendem a aceitar ou subestimar tal condição. No capítulo seguinte, tratarei da Pietà [Pietá-Cristo], além de explicitar a operação de vetores projetivos e introjetivos no setting analítico [transferência-contratransferência], levando em conta, inclusive, as valências espaço-temporais implicadas neste.

Pensemos em algumas situações concretas de ferimentos narcísicos, cuja autenticidade dos fatos puderam ser corroboradas em terapia familiar. Sim. No momento, eu me valho de situações como estas [onde a família foi atendida], pelo fato de haver um número enorme de analistas [sobretudo os de matriz freudiana e kleiniana] que parecem "suspeitar da valência específica da realidade". Mostrarei, em seguida, que tipo de subversão, inversão, contrafação da realidade psíquica é operada a partir dessa suspeita ideológica dos que abraçam tais modelos dinâmico-estruturais do psiquismo.

Um paciente chega até mim, tomado por preguiçoso e débil mental por seu pai e irmãos. Tem onze anos. Cresceu alvo de chacotas em todos os ambientes, inclusive o familiar. Fica-me claro logo na primeira consulta que o paciente tem um problema de audição. Um exame de audiometria, nunca antes pedido por nenhum dos médicos que o atendeu, revela que o garoto quase não ouve. O paciente quase-surdo foi indevidamente nomeado como preguiçoso, débil mental e coisas assemelhadas. Este é um ferimento narcísico, que nada tem a ver com Édipo. Não se pode fantasiar, analiticamente, pulsões apriorísticas de "ressentimento" e "inveja" do menino, mal-entendidas em clave edipiana, como gratuitamente projetadas sobre os ambientes que o nomearam mal e o prejudicaram nessa nomeação. Fazê-lo [o que equivaleria a ignorar o peso dos fatores ambientais experienciados por ele] seria um erro crasso: tentar inserir sua proscrição-de-fato, precoce e massiva, numa perspectiva triangular do "terceiro excluído". Uma leitura tão alheia aos vetores histórico-ambientais seria, mais do que o sancionamento do erro cometido, um ato adicional de sadismo.

Também é curioso certificar, quando se trata de irmãos em terapia familiar, alguns fatos comprováveis. O mais velho de um desses casos entre irmãos viu, muito cedo, o pai chorar no ombro da mãe sobre "não saber como lidar com as brigas dos filhos". O mais velho condoeu-se dessa fragilidade paterna [na verdade, uma depressão severa com sintomas obsessivos graves]. Tal pai era um jogador compulsivo e, por conta disso, a família se via ameaçada por agiotas. O menino mais velho, desde os quatro anos, entendera que o dinheiro das despesas de casa era usado no jogo, de modo que pegara escondido, algumas vezes, notas da carteira do pai, entregando-as à mãe, pelo que era severamente punido por aquele, sem possibilidade de intervenção desta. A educação proposta por tal pai era a seguinte: "Se as crianças brigarem, o mais velho vai ficar de castigo; se ele deixar o mais novo fazer algo errado, será responsabilizado por ser mais velho; se ele impedir que o mais novo 'apronte', mas o mais novo chorar ou alegar que o irmão usou da força, será punido por covardia". Bom, o mais novo usava e abusava desta regra áurea do pai, chorando o quanto podia e chantageando o mais velho o quanto lhe convinha. A regra do pai, de fato, era do tipo classicamente definido por Bateson como "duplo vínculo" e que eu prefiro chamar de nó cego. É um "cara e coroa" com um vencedor único: "Cara, seu irmão e eu ganhamos; coroa, você perde". Isso instaura familiarmente um interjogo bastante desigual de "muitos contra um": mãe impotente diante dos castigos pelas tentativas do filho em ajudá-la, filho impotente diante do irmão e do pai, filho com pena do pai zelando por ele a partir do vislumbre do choro depressivo do mesmo. O filho vira "pai do pai", tem de cuidar de si mesmo, além de se ver posto [e não por acaso ou capricho] num massivo acuamento.

Tais conjunturas factuais foram facilmente recuperadas em terapia familiar. Já com onze e nove anos os irmãos, indagados ambos sobre "com quem o pai errava mais ou era mais injusto nos castigos", os dois afirmaram a mesma coisa: com o mais velho, para consternação de pai e mãe. O mais novo chegou a revelar várias situações concretas de chantagens com o mais velho, e as coisas funcionavam tão unilateralmente que, em discussões sobre ouvir música, a mãe quebrara a vitrola do mais velho diante dos dois, um presente de aniversário que ele havia ganhado do tio. O mais novo rira, logo após. Na frente de amigos em comum, o mais novo frequentemente dizia: "Veja como meu irmão é frouxo: eu posso bater nele, que ele não reage". E lhe dava um chute na canela ou um tapa na cara. Ao fazer a menor menção de se levantar para segurar o mais novo, este já corria "chorando" em direção à casa, e o mais velho tomava sua surra e ficava dois meses de castigo [sim, ali os castigos eram bimestrais]. Repito: isso tudo foi assumido e narrado em terapia familiar, inclusive pelo mais novo. O mais velho assumiu que tinha medo de contar detalhes para o pai, porque ele não acreditaria nele e, pior [na imaginação deste], "o pai poderia ficar nervoso e ter um ataque do coração", já que vira o pai chorar naquela ocasião secreta que lhe infundira "medo pelo pai" [além de medo do pai], desde quatro anos. Ele tinha medo pela saúde do pai, pelas perseguições dos agiotas, pelas brigas com a mãe por causa das contas não pagas, e tudo mais. Assumira muitas "responsabilidades secretas", eu diria. Todas estas bastante constrangedoras e "surpreendentes" para todos os circunstantes, em terapia familiar. A mãe só pudera entrever o zelo do menino pelas finanças pelos "episódios da carteira", após os quais o menino recebia suas surras e "castigos bimestrais". Comentou a fala de uma vizinha a respeito de tais castigos: "Seu filho é tão mais comportado que o meu ["levado", segundo a tal vizinha], que se teu marido fosse pai do meu, o ano teria de ter 500 dias para caber nele todos os castigos que seu marido dá a teu filho". Essa fala também constrangeu o pai. 

Numa sessão só com os adultos, o pai me contou algo a respeito de sua depressão e de seus sintomas compulsivos. Um deles era: "Eu achava, na época, que se dormisse sobre o lado esquerdo, meu filho mais velho morreria". E outras fantasias de morte equivalentes, sempre envolvendo só o mais velho. Ou seja, havia uma culpa inconsciente expressa nesses sintomas, e ela se dava em relação ao mais velho que, de fato, ficara acuado pelas contingências ambientais familiares. Como negar ou subvalorizar o peso desproporcional desta realidade sobre um específico membro da família, ainda criança? Como abstrair todos estes fatores ambientais bastante eloquentes? Se a criança fosse paciente avulso de um analista que sobrevalorizasse "inveja", "voracidade" e "ressentimento" edípicos, todo este contexto de sobrecarga [as tais responsabilidades precoces e secretas: zelar pelo dinheiro para a mãe, pela saúde do pai, deixar-se acuar pelo irmão para poupar o pai e evitar que ele "morresse do coração"] seria deixado à margem, ou enormemente subestimado.

Há crianças que desconhecem a justiça como vetor componente da educação, em seu ambiente primário. Frise-se que, acima, eu perguntei às crianças "com quem o pai era mais injusto" e ambas assentiram na mesma resposta. Vi isto ocorrer inúmeras vezes, por razões as mais variadas. Por vezes, os pais tomam sempre o partido do filho ou filha mais "dengoso" e "hábil na manipulação", em detrimento do mais sincero e assertivo: daquele que, de fato, fala mais a verdade. Outras vezes, há um que ocupa mais de dois terços do espaço simbólico e factual do quarto conjunto [com tênis em cima da cama do outro, posters de seus heróis nas quatro paredes do ambiente comum, que tira três camisetas por dia pra trocar, e usa a do irmão quando uma das suas não está disponível, que não apaga a luz nem desliga os aparelhos eletro-eletrônicos, etc, etc] e do ambiente da casa [fala no telefone uma quantidade de horas muitíssimo superior à quantidade que o irmão usa o aparelho, o mesmo em relação ao computador, etc]. No entanto, quando o pai chega e flagra este que menos usa o computador, diz pra ele: "você não sai deste computador!"; ou "você não sai deste telefone!", ou quando ele deixa cair uma coca ou um molho numa camiseta [sendo que usa uma por dia, em vez das três do irmão], é dito pelo pai ou mãe, ou ambos: "Pensa que tua mãe é tua empregada?!". E por aí vai. E isto é confirmado e elucidado por todos os membros da família em terapia familiar. Se tal criança mais acuada no ambiente familiar expusesse essa dificuldade de ocupar seu espaço, analistas mais clássicos atribuiriam tal queixa a "ressentimento", "voracidade" e "inveja" projetados no ambiente, e não numa invasão ambiental consistente e factual. O que importam os fatos, não é mesmo?

Nicole Berry, em seu livro "O Sentimento de Identidade", fala do trauma de Henry James assistindo, ainda criança, à derrocada psíquica de seu pai, William James. Sabemos que seu pai teve um colapso, alucinando, inclusive. Pois bem, Nicole analisa a ênfase de Henry James na solidez das paisagens ["uma casa segura para habitar"] como resposta defensiva à perda de segurança na solidez do pai, e das pessoas em geral. Correto. Ela se mostra condoída e consternada em passagens de romances deste autor, como "As Asas da Pomba" que ilustrariam sua "incapacidade para o amor". O jovem paciente da família acima citada, o que viu o choro do pai depressivo e compulsivo [além de agressivo], teria sua "capacidade de amar" duramente testada pelos anos, a se prolongar mais a condição sistêmica que seu ambiente apresentava, acuando-o, inclusive nas tais "responsabilidades secretas inconfessáveis". Este halo de acuamento e segredo constituem a ambiência externa-interna [externa, mas internalizada] e o "campo de afetação" que acabam por constituir "o viver cinza-chumbo [o viver nublado] do ferido narcísico". O surgimento dos solilóquios internos, dos medos sobre a saúde do pai, do silêncio sobre as armadilhas e ardis do irmão, do "engolir em seco castigos injustos", do ruminar disso em imagens e sonhos sombrios, se dá pelas conjunturas concretas dadas, e não "a despeito e à revelia das conjunturas concretas". Este raciocínio de atribuir à onipotência infantil e suas fantasias toda a construção imaginal deste ambiente opressivo é extremamente perigoso, na medida em que onera a criança fazendo "vista grossa" para desfuncionalidades ambientais gritantes. O mesmo se pode dizer em relação a certas conjunturas em ambiente escolar, onde há "muitos contra um", e para as quais pais e professores fazem "vista grossa". Também o farão os analistas?

Observando um garoto bastante franzino, e cujas notas eram muito altas e em rápido decréscimo, eu lhe pergunto, em frente à mãe, se ele tem inimigos no colégio. Ele enumera vários. Digo que ele deve ser menor do que muitos de seus colegas, e ele me confirma. Pergunto se houve chantagens e ameaças a ele, por "tirar notas muitos altas, sendo tão pequeno". Ele confirma, citando os nomes e as chantagens. Isso jamais ocorrera à mãe. Aliás, vejo que os pais em geral dificilmente perguntam aos seus filhos "quantos inimigos têm na escola, e por quais razões estas inimizades foram feitas". Essa é uma pergunta básica que eu faço em qualquer tratamento de crianças, seja em família, seja individualmente. Não ocorrera à mãe, e também não ocorrera à professora. Também não ocorrerá ao analista e/ou ao terapeuta? Imaginarão que a situação de "muitos contra um" se dará por conta de "inveja", voracidade" e "ressentimento" da criança chantageada ou agredida? Vitimizarão a criança uma segunda vez com tal "leitura"? A nomeação dos "inimigos" desta criança, explicitação de circunstâncias concretas, visitas desses pais ao recreio da escola, conversando com as crianças, entre si, e com os professores e coordenação pedagógica, pôs fim a uma situação "nada imaginária". Veja o leitor deste blog como a nomeação equivocada da identidade de uma criança é coisa séria: poderíamos tomar tal criança por "tímida" quando, de fato, ela estava sendo "intimidada". Ainda que houvesse certo grau de timidez na criança, tal traço poderia estar sendo "reforçado por intimidação", e isso se perderia numa leitura menos factual do contexto. Os analistas da premência das pulsões enxergariam o retraimento desta criança como reação a seus "impulsos internos de destrutividade contra as outras" [sic], quais sejam: "inveja", "voracidade", "ressentimento", desconhecendo ou minimizando o fato desta criança ter sido, inquestionavelmente, alvo de inveja e destrutividade ambientais [na fórmula de "muitos contra um"]. Isso é um falseamento tão grave das circunstâncias, e um álibi tão conveniente a [e conivente com] ambientes tóxicos [família, escola, só para ficarmos nestes, por enquanto], que nunca é demais apontar para a falácia e graves implicações dessa leitura falsificadora e re-vitimizadora do bode expiatório familiar ou escolar [também os há nas igrejas e outras instituições]. Sugiro a todos estes analistas que sobrevalorizam a pulsão e negligenciam o peso dos fatores ambientais que avaliem contextos concretos escolares [leiam noticiários, entrevistem alunos] e que leiam René Girard, a respeito de bodes expiatórios e das circunstâncias concretas de sua eleição ["quem é o bode e porque ele assim foi tomado como tal?"]. Uma das coisas que será vista ali é que o bode é eleito "por sua incapacidade de se defender", ou por sua "inofensividade". Não é o Elias Maluco que é Bode Expiatório, não. Nada disso. Nem o Bandido da Luz Vermelha, nem os Chefes do PCC, ou membros. Do contrário, eles não capitalizariam seus "feitos" para ganhar respeitabilidade entre seus pares, posarem com fotos sem camisa e com armamento pesado, nem para terem filas de candidatas à visita íntima por serem "machos alfa" em seus respectivos nichos sociais. O Bode Expiatório nunca é o macho alfa. Sua incapacidade de reagir e sua inofensividade serão, por intérpretes desavisados, tomadas por "defesa contra a voracidade" ["eles quereriam ser machos alfa a qualquer preço, mas negam isso para si mesmos!"], defesa "contra um ressentimento prévio à ação que supostamente os ferira" [sim, por vezes é-lhes dito que "fantasiaram a ação para justificar o ressentimento"] e outras contrafações do mesmo calibre. Por já ter visto coisas análogas centenas de vezes, e ter sido em minha infância vítima massiva de coisas correlatas, bato tanto nessa tecla. Não viram meus ambientes tóxicos desde a infância. Também não viram o bullying do atirador de Realengo em sua origem, mas vieram a saber dele "à posteriori". Enfiavam a cabeça dele na privada, entre outras coisas. [Os professores, à época, devem ter enfiado a cabeça na terra, quais avestruzes]. Eu me pergunto como uma agressões tão severas e humilhantes puderam "passar desapercebidas" [sic], senão com a anuência da "vista grossa" dos adultos em torno. Por isso, uma expressão-chave neste ensaio, "O Olho Que Nos Olha Nos Olhos", é "o desvio calculado do olhar". Sabemos que as instituições têm seu quantum de "inveja", "voracidade" [corrupção], "mentira" [inclusive as oficializadas: as "mentiras de papel timbrado"], "insinceridade" [apadrinhamentos, favorecimentos, critérios alheios à meritocracia], "agressão", "banimento" [é só investigar porque ex-petistas fundaram o PSOL, por exemplo...] e, no entanto, não podemos conceber [na verdade, não queremos enquanto sociedade] que muitas crianças tenham sido expostas [e ainda o sejam] a ambientes onde este "quantum tóxico" foi [e permanece] conjunturalmente demasiado para o equilíbrio pulsional de qualquer um. Nega-se tal possibilidade e, com isso, reforça-se a leniência com tal estado de coisas, o que é o equivalente a fazer vista grossa para os desmandos administrativos entre adultos. A quem estamos querendo proteger? A quem convém tal "olhar desviado"? Isso é mais do que uma questão individual: é miséria moral coletiva, cinismo institucional. Por isso, pensar o indivíduo de maneira "a" ou "z" também traz implicações coletivas, institucionais, políticas. Assim como defender corrupto ou corruptor por falta do "recibo legal" [mafioso passa recibo?]. Escolas não assumem nem assumirão seus déficits, igrejas idem, famílias absurdamente disfuncionais não se auto-proclamarão como tais. Resta-nos considerar se nós, terapeutas e analistas, quando tivermos sob nossos cuidados alguém que "conheceu na pele" a travessia por tais ambientes com este quantum majorado de toxidade atribuiremos tal desventura a um "quantum pulsional descompensado e majorado neles mesmos [voracidade, inveja, ressentimento] desde a origem", ou seja; "geneticamente estabelecidos". Isso á fantástico e extremamente conveniente às instituições "adultas", pelas quais tais crianças passaram. Vitimizemos os vitimizados uma segunda vez, ou melhor, até neguemos o conceito de "vitimização" ou de "bode expiatório" porque assim os "agentes do dano" permanecerão irreflexivos a respeito. Vide a Escola Adventista do Embu, na região metropolitana de São Paulo, que teve um de seus alunos baleado [e morto] por um coleguinha, em suas dependências, em 2010. O esforço em manter a "respeitabilidade" da instituição fala mais alto do que os fatos e o desejo de apurar o ocorrido. Os mais cínicos, dirão: "Ora, este é o mundo humano, não pretendamos melhorá-lo!" Darwinianamente, os mais cínicos e acomodados com tal estado de coisas, de "domínio territorial dos mais espertos aliado à defesa do prestígio deste domínio" [o que é o caso das vista grossa institucional, seja em hospitais, escolas, igrejas ou família], seja a que custo for [o "custo da sobrevivência dos mais fortes"], dirão que "é bom que as crianças desde cedo conheçam as agruras da vida". Que tal conhecerem desde cedo "as minas explosivas de fragmentação", os pedófilos de plantão, os atiradores de cinema ou shoppings? Mas as famílias aberrantes, as escolas, as igrejas e hospitais mutiladores, tudo bem. Isso é cinismo, puro e simples.

Como este ensaio pretende dizer algo ao público leigo, muito mais do que a analistas, essas considerações todas visam a diminuir o grau de "desvio do olhar" por parte de cuidadores, pais e educadores mais atentos e de boa vontade, em relação aos ambientes nos quais criam suas crianças, a partir da própria casa.

Jó foi pulverizado por uma edificante aposta entre Jeová e Satanás. Seu gado foi morto, membros de sua família foram dizimados [porém, "restituídos em dobro" ao término da saga, como se isso diminuísse a impiedade cometida contra aqueles outros tratados como meros peões no jogo de xadrez entre Jeová e seu Sócio-de-Disputa], uma barbárie inquestionável, em nome da checagem da fidelidade de Jó ao Bom Deus. Quando Jó profere seu desalento e queixumes diante do Senhor, Este lhe surge no meio de um Redemoinho, e responde a este em termos de Poder e não de Justiça. O fato de aparecer no meio de redemoinho [como, no passado, no alto da montanha, fumegando, ou na sarça ardente] é bem apropriado, uma vez que Jeová é um Deus Tonante e Meteorológico [vulcão-raio], nos moldes de Adad, Thor, Taranis, Baal, Indra, Zeus-Júpiter e que tais, sem um grão de superioridade ética em relação a seus pares. Aliás, na disputa de Elias com os sacerdotes de Baal, temos fogo contra fogo: um deus tonante tribal midianita em disputa com outro deus tribal judeu. Jack Miles, ex-jesuíta, já apresentou as implicações éticas de se interpelar um Deus em certo âmbito [a Justiça] e receber a resposta em outro diverso [o Poder]. Ampliou esta análise, desde "Deus: Uma Biografia [que mostra a trajetória ideológico-comportamental de Deus, e seu temperamento instável e caprichoso, do Genesis a Jó] até "Cristo: Uma Crise na Vida de Deus". Sim: Cristo problematiza Jeová enormemente. Harold Bloom também já comparou Javé/Jeová ao Abba [papai] de Cristo, e muitas comparações já foram feitas entre o Deus do Antigo Testamento e o do Novo. Jung já o fez em seus próprios termos, tantos em sua correspondência completa publicada, quanto em Resposta a Jó. Como há muito a se ler a respeito, inclusive as resenhas críticas a estes livros feitas por protestantes e católicos, só deixo registrado aqui o tema, para inscrevê-lo no âmbito das Figuras Imaginais [Arquétipos, Imagos Tonantes] que irão se imprimir [ou ser evocados em tonalidade mítica] na psique infantil, a partir deste emblema-gatilho do "Deus Tonante".

Uma criança é subjugada. Apanha gratuitamente. Seu pai monta-lhe sobre o corpo, tendo mais de seis vezes o seu peso, apoia joelhos sobre seus braços abertos e esmurra a criança. Esta fala: "Mas eu não fiz nada!" O pai, continuando a bater-lhe, responde enfurecido: "E daí?!". A pergunta foi feita em termos de Justiça ["O que eu fiz, pai?"], a resposta foi dada em termos de poder ["O que importa? Eu sou mais forte!"]. Jeová, diante dos lamentos de Jó, alega que fez coisas enormes de cujo tamanho e grandeza Jó sequer consegue cogitar. Jean Yves-Leloup, em sua autobiografia, O "Absurdo e a Graça", diz que trair a confiança de uma criança quanto ao sentimento de justiça é uma das coisas mais graves que se lhe pode fazer. Conta um episódio de sua infância que deixara marcas até a vida adulta, sobre confiança, valoração da verdade, e outras implicações. Chegara com menos dinheiro em casa do que sua mãe esperava, porque o lanche da cantina havia aumentado de preço. A mãe castigou-o e o chamou de mentiroso. No dia seguinte, levou a nota do valor do lanche aumentado, ao que foi mais uma vez punido e obrigado a escrever "n" vezes num papel: "Nunca desminta tua mãe". A verdade não estava em jogo, nem os fatos [a verdade dos fatos, em suma], mas somente o direito à força. Essa é uma ferida narcísica, que fere/trai os olhos, os atos, a palavra, o comportamento da criança, em favor do direito à posse, domínio, subjugação, arbítrio, direito à força constritiva daquela [ou daquele] que dela deveria tomar conta, o que é mais trágico. A outra criança acima aludida, vítima das explosões paternas, caiu no berreiro enquanto continuava apanhando, e seu desespero passou a ser, a partir da fala do pai ["E daí?!"]: "não importa a justiça aqui, não importa o que eu faça, estou sob o controle do descontrole [ou do capricho] do meu pai". Mesmo que a criança não verbalize para si a fala com tanta clareza sintática, o seu desespero legítimo [e friso a palavra legítimo] leva tudo isso em consideração: a verdade e a justiça não fazem parte das regras do jogo, só a força e o arbítrio. Conseguem os analistas das pulsões de "inveja", "voracidade" e "ressentimento" à priori, ou não ambientalmente motivados, dimensionar a dor que uma criança dessas sente? Tais analistas conseguiriam estar no lugar dessa criança sem se desesperarem? Quereriam estar em seu lugar? Quando, contratransferencialmente, um paciente adulto faz evocar no analista um sentimento de "não-saída" ou "acuamento", de todo inoportuno e constrangedor, "estranho" ao analista, é no esforço inconsciente de comunicar a este analista o "tônus" e o "quantum" de sua dor tão precoce, e não por "disputa edipiana" ou "inveja" do analista. 

No capítulo anterior, fiz uma breve menção à tese de Álvaro Ancona de Faria sobre O Transtorno de Personalidade Borderline, lido numa perspectiva simbólica [junguiana]. Colocarei duas pequenas citações do trabalho em questão, para efeito de avançarmos em nosso raciocínio. Ali, antes de fazer a abordagem analítica de tais pacientes, Ancona de Faria firma que tais pacientes sofreram abusos emocionais diversos, e elenca variáveis significativas sobre tais abusos, quais sejam: idade do início do abuso, relação segredo-revelação do abuso ["a quem dizer ou pedir socorro?", diria eu], frequência e duração dos episódios, severidade, etc. Ele o faz citando Joel Paris, que fez este inventário a respeito de pacientes borderlines [um segmento dos grandes feridos narcísicos, além dos esquizoides] em relação a abusos sexuais. Mas não só, acrescento eu. Aliás, estou citando vários exemplos de abusos não sexuais. Todos os critérios de tônus e quanta [plural de quantum] que se referem à soma, duração, extensão desses abusos e cumplicidade do ambiente social ao abuso ["não há a quem pedir socorro"] são agravantes do quadro de ferimento narcísico. Sendo assim, após fazer um inventário de fatores constritivos da identidade desde a primeiríssima infância destes pacientes, Ancona de Faria faz a seguinte observação em sua tese:

"Na patologia borderline encontramos determinadas peculiaridades, ligadas à história de vida e às experiências vivenciais da infância, que desenham uma configuração da psique muito particular.

Estes indivíduos têm uma história de vida onde o período da infância se deu de maneira extremamente dura. Retomando alguns dados apresentados dentro do modelo de personalidade de Paris, vimos que, além da história frequente de abuso sexual infantil, na maior parte das vezes este abuso se dá num contexto de abuso físico e verbal, violência familiar e negligência" [op. cit., p. 35].

Abuso físico, verbal, violência familiar ou institucional, e negligências, o que inclui omissões de socorro-intervenção quanto a estes abusos. Jean Bergeret, em seu "A Personalidade Normal e Patológica" já frisava que, no caso de estruturas borderline de personalidade, os pais tinham sido vistos mais como "grandes" [poderosos, "míticos", em minha própria linguagem: tonantes, pulverizadores] do que "sexuados" [ou investidos de desejo pelo filho(a)]. O que prepondera é o terror, ou "o medo de pulverização" [vide Jó]. E, acrescento eu: nada de "castração", no sentido de "demarcação de limites à onipotência", mas sim medo de ser "esmagado em sua identidade". Essa é a peculiar problemática do grande ferido narcísico, sobretudo borderlines e esquizoides. Os assim-chamados fálico-narcisistas [o tipo narcísico do senso comum, aqueles "vaidosamente auto-referentes"] experimentaram, em média, um quantum menor de invasão ambiental e maior ambivalência nos cuidados por parte do(s) ambiente(s) primário(s): alguma quota de reconhecimento e até de "premiação seletiva", ao lado dessas responsabilidades secretas e/ou "indizibilidades referentes a algumas de suas experiências". O grande ferido experimentou, ampla e continuamente, "O Grande Terror", ao modo de Jó.

Margaret Little, uma assumida borderline que se tornou analista [foi analisada por Winnicott], faz a seguinte afirmação logo no início de sua autobiografia: "a sexualidade está fora de propósito e sem significação alguma quando não temos assegurada a própria existência, sua sobrevivência e sua identidade". Jaques André é um psicanalista que muito se incomoda com essa peremptória assertiva de Margareth Little, tanto que vive a repeti-la [para contradizê-la] em muitos de seus artigos. O leitor hoje pode conferir facilmente seus argumentos fazendo busca na web, uma vez que os artigos de Jaques André constituiriam uma espécie de "bibliografia lateral" a meu propósito expositivo. Menciono-o apenas para aqueles que gostam de chover no molhado, cotejando [ou compilando] as sempre-repetidas ladainhas psicanalíticas clássicas.

Voltemos a Ancona de Farias. Diz ele:

"[...] o que vemos é um estado de privação afetiva permanente, onde a negligência em relação aos cuidados requeridos pela criança é o que está presente de modo mais significativo, por vezes acompanhada até de uma certa crueldade.

Como representação na experiência subjetiva destes indivíduos de todos estes fenômenos poderíamos usar o termo incontinência [itálico do autor]. Os pais ou cuidadores deste paciente não puderam dar continência às dificuldades pelas quais passou este indivíduo; do mesmo modo tampouco se dispuseram a apreciar as qualidades que este apresentou.

A sensação que o indivíduo tem, a partir daí, é que deve permanecer o mais desapercebido possível, pois tudo que vem dele causa problemas: se por um lado suas dificuldades não geram empatia em seus pais, trazendo como resposta algo como "não me traga mais problemas que já os tenho bastante", por outro lado parece que suas qualidades ou sucesso trazem aos pais uma inveja destrutiva.

O indivíduo aprende então que não deve fazer revelações de si mesmo, e que fazê-las traz só desapontamento e dor (Charlton, 1988). Constrói uma forte convicção de que as pessoas não são seguras e que estão interessadas somente nas próprias gratificações (Silk, 1995). Conclui que elas não são fidedignas, não podem ajudar e são inconsistentes, gerando uma expectativa de não confiança no outro (Livesley, 2000).

O mundo parece ser um lugar aterrorizador. A experiência que ele ofereceu para estes indivíduos é de vivência e proximidade exclusivamente com o numinoso negativo. [...]" (p. 36-38)

Na passagem acima, valendo-se de três autores, Randolph Charlton, W. John Livesley e Kenneth R. Silk, Ancona de Farias diz algumas coisas que repercutem os exemplos que eu próprio dei acima. Esses indivíduos não tiveram continência ou suporte ambiental [Cifra: a falta de holding, para Winnicott, conceito tanto citado por mim]. Não foram só vítimas de negligência [ou falta de continência], como também de um quantum de crueldade [violência física, castigos injustificados, por exemplo]. Tiveram o sentimento que não tinham ninguém confiável para falar sobre si [no caso do menino que mencionei: falar para o pai agressor que tem dó dele, porque o viu chorando? Que teme por ele e pela própria família, pelas ameças de agiotas que capta no ambiente?]. O que fazem de bom não é reconhecido [no caso do menino: reservar um dinheiro para que a mãe pague as contas, escondida do pai; no caso do pai, engolir em seco as chantagens do irmão e os castigos injustos decorrentes de suas chantagens, para poupar o próprio pai]. No caso que acabo de citar, a esmagadora maioria dos analistas não seria capaz de conceber esses gestos de sacrifício e altruísmo por parte da criança, imaginando-os defesas contra impulsos de retaliação ou vontade de morte do pai. Com isso, estariam reinstaurando a impossibilidade de dizer-se por parte do sujeito ferido. Estariam falseando sua identidade em nome da premissa de seus quanta apriorístico de "voracidade", "insaciabilidade", "inveja e ressentimento" [inclusive em relação ao irmão, numa indevida clave edipiana!], além de não conceberem as peculiaridades tóxicas de seu ambiente primário, negando-lhes a existência, na prática, e desqualificando "o dizer de quem viveu aquilo". Negando o self da criança. Bastante perverso, não acham? Se pensarmos no garoto chantageado na escola para tirar notas mais baixas, sua inteligência foi alvo da inveja e chantagem ambiental. A inveja e ataque partiram do ambiente, e não do menino posto no papel de bode expiatório ["muitos contra um"]. Da mesma maneira, percebe-se uma sutil retaliação invejosa do pai [no primeiro caso], pelo filho "se atrever a fazer o papel que deveria ser dele, pai" [=separar um dinheiro para custear despesas, em vez de dissipá-lo no vício dos jogos]. Podemos explorar e "enxergar" cada nuance dessa problemática nos grandes feridos narcísicos, "se assim o desejarmos". Um dos obstáculos para isso seria aquilo que eu chamo de "covardia epistemológica". Vou explicitá-la um tanto, acompanhando algumas indagações retóricas de Nicole Berry [de si para si] para, depois, responder às mesmas.

No capítulo VI do seu livro "O Sentimento de Identidade", perguntando-se sobre o trabalho analíticos, diz Nicole Berry:

"E embora escrevamos que 'o paciente vem para ser amado', não viria ele primeiramente para ser reconhecido? O sentimento de nossa identidade não é mais importante, mais urgente do que o prazer? [Grifo da autora]. Se o homem busca um objeto, não seria mais para entrar em relação do que para obter dele um prazer efêmero? O prazer não seria um luxo? Foi Farbairn, esse analista do país dos nevoeiros e das urzes, que inovou essa tradição de pensamento: object seeking, mais do que pleasure seeking. [Itálicos da autora: a busca do objeto antes do que a busca do prazer]. Um objeto que deve ser percebido nas brumas, apalpado,a cariciado, cheirado. E este outro homem do Norte, Winnicott, não afirmou o first being [idem, o "ser primeiro"], negligenciando, cremos nós, os prazeres da sexualidade infantil?" [p.100-101].

Devo dizer que Nicole Berry tenta se aproximar dessa tradição, mas reluta, como veremos. Ela tem certa simpatia por Fairbairn e Winnicott, ambos já elogiados por mim sobretudo por estarem atentos a esta reversão de prioridades, milhas adiante das construções kleinianas. A propósito, já citei a deliberada má vontade da Grande Dama em ouvir o que os dois tinham a dizer a respeito, em seus pormenores; autoritaríssima que era, chegou inclusive a ouvir o que Fairbairn suplicou que ela escutasse. Confira-se a biografia de Phyllis Grosskurth sobre a desagradável prima-dona: "O Mundo e a Obra de Melanie Klein". No índice remissivo, percorram os verbetes "Donald Winnicott" e "Ronald Fairbairn" e poderão acompanhar alguns dos atos daquela senhora. Se percorrerem a evolução do pensamento de Paula Heimann, tanto na biografia citada como no texto de Franco Borgogno, "Psicanálise como Percurso", terão um retrato ainda mais completo [e muito menos idealizado] de Melanie Klein.

1) E embora escrevamos que 'o paciente vem para ser amado', não viria ele primeiramente para ser reconhecido? O sentimento de nossa identidade não é mais importante, mais urgente do que o prazer?

Infinitamente mais, Nicole. Vem antes a premência de se sentir-sendo-em-relação: tanto na ordem do tempo, quanto na ordem do valor, da importância. Tal necessidade tem primazia cronológica e axiológica em relação à busca por gratificação. Esta última sobrepõe-se à necessidade subjacente daquela, e não o inverso. A primeira não deriva da segunda.

2) Se o homem busca um objeto, não seria mais para entrar em relação do que para obter dele um prazer efêmero? O prazer não seria um luxo?

Nas condições de privação de reconhecimento ao self, o prazer é impensável. Mais tarde, quando puder ser pensado e experienciado [na puberdade, provavelmente, uma vez que tal infância é envolta em brumas maiores do que as da Escócia de Fairbairn], o prazer poderá ser buscado como "tentativa de preenchimento de vazios", como "cola provisória para o sentimento de eu-mesmo", como sopro vital obtido efemeramente, na impossibilidade de se sentir "vivo e inteiro". O prazer, visto como substitutivo para a "vitalidade-em-falta", será um elemento de adicção e busca sôfrega de "autoconsolidação no sentimento de sentir-se sendo", mais do que qualquer outra variável edípica clássica.

3) Este outro homem do Norte, Winnicott, não afirmou o first being [itálico da autora, o "ser primeiro"], negligenciando, cremos nós, os prazeres da sexualidade infantil?"

Nicole, Winnicott afirmou, sim, o first being, o ser primeiro [=primeiro, o ser], mas não negligenciou a sexualidade infantil. Apenas soube escalonar melhor uma escala de prioridades ontológicas factuais.

Quero prosseguir com o "pensar em voz alta" [ou o solilóquio] de Nicole, para poder avançar um pouco.

"Winnicott foi o [analista] que esteve [que foi, penso haver uma inadequação na tradução; o itálico é meu] mais longe na exigência de reconstrução [reconstrução dos fatos e vivências do ambiente primário no contexto da relação transferencial analítica], fazendo corresponder, termo a termo, uma capacidade psíquica a uma vivência genética:
- holding [suporte ambiental] e integração de si;
- handling [manejo ambiental] e personalização; 
- apresentação do objeto e relação com o objeto.

Tal concepção faz da criança a vítima por demais passiva do seu meio. Só resta ao psicanalista take care [tomar conta] com uma confiança toda britânica." [p. 206] [Os itálicos são da autora, as observações entre colchetes são minhas].

Nicole, os adultos que cuidam da criança têm poder de vida e morte sobre ela. Isso é básico e ponto pacífico. Se um pai coloca uma criança de frente a uma parede, diante de uma tomada, proibindo-a de sair de lá, com surras e etc, impedindo-a até de ir ao banheiro, ela poderá tomar choque se quiser se distrair, e irá urinar na calça, por culpa do pai, e não dela. Não haverá escolha. Se o pai [ou mãe] quiser trancá-la no quarto sem lâmpada ["iremos tirar a lâmpada, para o viadinho não crescer medroso"], de castigo, sem jantar, a criança terá medo e fome conjugados, e associará o sono à punição, por engenho e ato concreto de seus pais. Se quiserem tirá-la da escola e obrigar a criança a outros afazeres, até para gratificação deles próprios ["tome conta de seu irmão enquanto eu vou beber no bar"] esta criança não estudará. Assim sendo, a criança é vítima passiva, sim, de seu meio e, sobretudo de seus cuidadores. Vítima indiscutível e inescapável, sobretudo se os seus pais assim o quiserem. Pode ser até refém. Pode tomar um murro, ou muitos, ser estuprada, ridicularizada, torturada, segundo os caprichos, maldade ou doença de seus pais ou cuidadores. Alguma dúvida a respeito?

"Melanie Klein, insistindo na atividade fantasística da criança, e dizem, negligenciando a realidade, devolveu à criança seu status de ser humano.

O que seriam os "cuidados maternos" se não encobrissem uma conivência fantasística entre a mãe e e criança, e certamente também o pai?

As reconstruções genéticas devem ser tomadas, em parte, como lembranças encobridoras: acontecimentos reais investidos dos desejos mais contraditórios. Uma criança foi amarrada. Era a época das "camas-jaula". Ei-la agora atada ao divã, invadida pela angústia de ser imobilizada. Há aí simplesmente relação de causa e efeito? Que importa? O essencial é essa extraordinária agilidade do espírito que se desenvolveu nela. Agilidade paralisante para o analista, instaurando o prazer de dominar. E a relação interpessoal que se poderá, aos poucos, analisar representa uma relação intrapsíquica: é o desejo sádico que está arraigado, o desejo de imobilizar o outro. Assim, a criança quer ainda se crer vítima para ignorar o combate que nela ocorre, e a raiva impotente de outrora. A elaboração psicanalítica não tem que denunciar 'realidades' passadas; é o combate interior que lhe interessa, que paralisa, ainda hoje, o paciente. " [p. 208-209].

Vamos examinar com muito carinho este trecho de Nicole Berry, porque ele é eloquente e sintomático. 

1) Melanie Klein, insistindo na atividade fantasística da criança, e dizem, negligenciando a realidade, devolveu à criança seu status de ser humano.

Não. O status de ser humano pode ser subtraído da criança por um tratamento desumano ou sub-humano, para não dizer até mesmo cruel. Se Melanie Klein "insistiu tanto" nessa atividade fantasística, do que ela, Melanie Klein, estava se defendendo? Sabemos que dá um trabalho razoável avaliar o peso de uma realidade não-condizente com os parâmetros sócio-institucionais tão cinicamente defendidos pelo status quo e assumir a tarefa de admitir que a família, a escola, a igreja, o hospital podem "ser bem piores do que a encomenda", não é fato? Onde reside a covardia e onde a coragem? Estaria o analista desviando o olhar da gravidade do peso das circunstâncias ambientais neste paciente que traz sua infância para o divã? No que diz respeito a "dizerem que ela [Melanie Klein] negligenciou a realidade", concordo com os que assim o afirmam.

2) O que seriam os "cuidados maternos" se não encobrissem uma conivência fantasística entre a mãe e e criança, e certamente também o pai?

Gostaria de saber o que seria a "conivência fantasística" de qualquer das crianças acima citadas. É claro que um mundo de imagens irá se imbricar aos dolorosos fatos vividos. Mas qual a conivência dela com um pai ameaçado por agiotas? Com a regra de "seu irmão fez arte, você apanha porque o deixou fazer; se brigar com ele, apanha porque foi covarde com o irmão mais novo"? Qual a "conivência" com tal regra arbitrária? Se urinar na calça porque não pode se levantar de um canto de castigo, qual sua conivência? Se for tirada da escola e obrigada a fazer tarefas domésticas, sob domínio adulto, qual sua conivência?

3) As reconstruções genéticas devem ser tomadas, em parte, como lembranças encobridoras: acontecimentos reais investidos dos desejos mais contraditórios. Uma criança foi amarrada. Era a época das "camas-jaula". Ei-la agora atada ao divã, invadida pela angústia de ser imobilizada. Há aí simplesmente relação de causa e efeito? Que importa? O essencial é essa extraordinária agilidade do espírito que se desenvolveu nela. Agilidade paralisante para o analista, instaurando o prazer de dominar. E a relação interpessoal que se poderá, aos poucos, analisar representa uma relação intrapsíquica: é o desejo sádico que está arraigado, o desejo de imobilizar o outro. Assim, a criança quer ainda se crer vítima para ignorar o combate que nela ocorre, e a raiva impotente de outrora. A elaboração psicanalítica não tem que denunciar 'realidades' passadas; é o combate interior que lhe interessa, que paralisa, ainda hoje, o paciente."

Aqui nós temos a clara implicação deste raciocínio. Os desejos contraditórios apontados por Nicole, no rastro de Melanie Klein, são post factum, eles não "co-engendram" nenhum dos fatos que exemplifiquei acima. Nenhum deles. Se a criança tem um pai tirano, ambíguo, com regras que são verdadeiros "nós cegos" ["escolha a ou b: nos dois casos perderás!"], se na Igreja aprende a ter medo de Deus e do Diabo, qualquer ambivalência que a criança experimente em relação ao pai ou a Deus [os tais sentimentos contraditórios: amar a Deus e temer a Deus, ou odiá-Lo; temer a morte do pai e desejá-la, para tomarmos os clássicos dilemas edípicos] não co-engendram a tirania, nem as palavras do Antigo Testamento que foram ministradas à criança, por escolha dos adultos. Tais sentimentos contraditórios não "encobrem" os fatos tempestuosos e as ciladas nas quais a criança se viu "enredada": a multivalência de seus sentimentos no rastro de tais fatos não co-determinam, retroativamente, sua emergência, como se fosse "parte de sua escolha"; não foram "escolha da criança": foram "pós-tingidos" com sentimentos ambivalentes, confusos e contraditórios por parte da mesma, o que é coisa bem diversa de supor a criança co-engendrando o fato, sendo corresponsável por qualquer das escolhas ambientais que eu enumerei acima.

Se, diante da apresentação do fato: "Uma criança foi amarrada. Era época das 'camas-jaula'. Que importa?" Este "que importa?" é o mesmo "e daí?" do pai que espanca a criança sem motivo, ou da mãe que mantém o castigo e o duplica porque as criança lhe prova que, de fato, o lanche da cantina custava o valor que a criança alegara na véspera. Ela apanhara acusada de ser mentirosa. Agora, apanhará uma segunda vez e fará uma penitência por "ousar provar que disse a verdade". Que importa? Aqui, temos uma desqualificação da trajetória biográfica da criança e seus impasses, em nome da comodidade do analista que prefere entender o seguinte: "O que importa é que, agora, você está me imobilizando contratransferencialmente. Sua profusão de palavras ou imagens me deixa paralisado (a) e é este seu sadismo que importa analisar agora". Se parte do processo contratransferencial é captar o que o paciente tem dificuldade de dizer [inclusive as nuances de sua dor], "insistir"/ enfatizar o desejo sádico da criança imobilizar quem a imobilizou, "negando a imobilização", e dizendo, ainda mais, que a criança "quer se crer vítima" [ela foi vítima!] para ignorar o combate que nela ocorre [que, em grande parte, decorre do fato, e não lhe antecede] e sua "raiva impotente de outrora"? Quem diz que o paciente traz isso para ignorar o que disso decorre? Na verdade, quer-se dizer: "com ou sem isso, haveria raiva". Uma raiva sem estas colorações específicas, por certo. Achata-se a nuance da vivência, sua especificidade, para encobrir a impotência do analista quanto ao que já ocorreu. Isso ficará mais claro no próximo trecho que eu selecionei deste trabalho de Nicole.

"Ao contrário de uma submissão passiva às incoerências ou às coisas bizarras de um meio ambiente, M. Klein traz essa noção essencial de um ego originário. É bem verdade que o seio pode estar vazio, a mãe ausente, a criança perseguida por olhos. Ela pode, então, clivar seus objetos externos e internos: um mau frustrado, perseguidor, um bom idealizado, mantido à distância, mas guardado à mão. Há esperança de retorno. O que poderia fazer o analista vinte anos depois? Ele não pode mudar o ambiente, nem a mãe de outrora, nem substituir, nem reparar. Mas eis o que nos diz essa mulher do Norte: as pulsões intensas demais causam medo; a intensidade dos desejos é perigosa; é preciso, também, por a mãe do outro lado da janela. Para que ela não se estrague. A "mãe estranha" estava, talvez, mais próxima do que se podia imaginar? É porque a criança estava ávida demais, desejosa demais, que a colocou longe, do outro lado, intocável, para preservá-la? Então, o analista sabe do que é capaz: lembrar as fantasias, associá-las, e o paciente pode tomar consciência, aqui e agora, da intensidade de suas necessidades de amor, de posse exclusiva; os objetos que acreditava perdidos estão, doravante, ao alcance do pensamento".

Bom, aqui temos a epítome de um pensamento que dá as caras e diz a que veio. Não é nada nobre o que ele revela, nem me parece bem intencionado. Em primeiro lugar, quer-se diminuir o potencial do meio ambiente ser, de fato, bizarro "além da conta". Pode ser, inclusive, um ambiente mau, mas não se quer crer nisso. Por que não se quer? Se há um mau ato no governo, culpe-se a imprensa; se há memórias que denotam um ambiente muito tóxico [e incomodamente tóxico ao analista], culpe-se o relato do paciente! A coisa, no fundo, é exatamente essa. Nicole mostra seu incômodo com a impotência do analista frente a uma história factualmente pesada ou sórdida. Talvez, ela não sobrevivesse psiquicamente a esta própria história! A mãe ausente pode ter sido posta à distância, olhando a janela, por defesa da criança, frente à sua "insaciabilidade": ávida demais, desejosa demais. A avidez da criança deve ter colocado o pai sobre ela muitas e muitas vezes, esmurrando-a e dizendo-lhe: "E daí que você não fez nada? Eu mando aqui! Eu bato porque posso!" A avidez, o elán da criança adotiva de Goiânia fez com que sua mãe a amarrasse, a fizesse engolir fezes, cortasse sua língua com alicate de unha, etc, etc. Vocês conhecem a história? Em que mundo esses analistas pensam viver? Em vez de considerarem a crueza ou crueldade da potencial subjugação adulta que se impõe sem dificuldade à criança [bem como a de "muitas crianças contra uma", no ambiente escolar], querem fazer crer que tudo é uma questão fantasística [e defensiva] de desejo de "posse exclusiva"? Foi o desejo de "posse exclusiva" da menina adotada em Goiânia que a colocou na condição de refém? A empresária bem sucedida, moradora de uma região nobre de Goiânia, Silvia Calabrese Lima, talvez parecesse insuspeita aos olhos de um analista com este perfil. No entanto, ali estavam os fatos: unhas arrancadas, língua cortada, marcas de queimaduras de ferro no corpo e nas nádegas da menina, obrigada a comer fezes e beber urina de cachorro, entre outras barbaridades. Tal senhora tinha, à época, uma empregada omissa [cúmplice por intimidação, supõe-se] e três filhos, sendo dois deles bem grandinhos: 20 e 21 anos à época.

O que fez tanta gente ficar em silêncio? Talvez o mesmo "pudor" que faz certos analistas não poderem conceber ambientes com certo "quantum" de bizarrice ou perversidade. Eu chamo a isso co-perversidade, covardia moral e covardia epistêmica. Tapar o sol com a peneira. "Preferir não crer", por comodidade metodológica no divã. Diz Nicole Berry: "O que poderia fazer o analista vinte anos depois? Ele não pode mudar o ambiente, nem a mãe de outrora, nem substituir, nem reparar. Mas eis o que nos diz essa mulher do Norte: as pulsões intensas demais causam medo; a intensidade dos desejos é perigosa; é preciso, também, por a mãe do outro lado da janela. Para que ela não se estrague". O analista, em primeiro lugar, pode admitir o fato e trabalhar com os sentimentos [inclusive os contratransferenciais] decorrentes e desdobráveis dos fatos. Uma mãe adotiva como Silvia Calabrese Lima é perigosa, não a avidez da menina torturada. Um pai que monta de joelhos sobre uma criança para espancá-la é perigoso, não a avidez ou ambivalência desta criança sobre ele. Agiotas cercando a casa de um viciado devedor são um perigo. No próximo capítulo eu exemplifico o que um analista com perspectiva bastante diversa pode fazer com "fatos consumados e sentimentos a eles relacionados".




Nêmesis e o Solo de David Gilmour








"O Exílio gera devaneios. Mas o Exílio em si não é um devaneio".

Deixo o leitor com esta frase para reflexão inicial, abarcando todas as formas de Exílio [inclusive o Exílio dentro de casa, o Exílio da Pátria e os devaneios sobre a Pátria, o Auto-Exílio e os devaneios sobre si mesmo]. Os devaneios decorrentes do Exílio [seja ele qual for], não subtraem deste sua qualidade factual, não delirante nem fruto de devaneio. O leitor pense fundo a respeito.

Olhemos uma jovem de 14 anos, numa família de oito irmãos. Ela é a penúltima na lista de filhos, em termos de idade. Ela é a única a não saber a identidade de seu pai biológico. Não que seja "adotiva", nada disso. A situação é bem específica.

A mãe desta jovem é testemunha de Jeová, e teve filhos com cinco parceiros. Assim sendo, alguns dos irmãos [no caso: dois pares de irmãos] possuem o mesmo pai biológico. Dois dos cinco parceiros possuem dois filhos cada com tal mãe. Dos demais, cada qual possui um pai. Mas há algo interessante [nada interessante, na verdade, apenas "peculiar" e "trágico", ao mesmo tempo] em relação à mocinha em questão: a mãe não quis procurar o pai por ser ele de outro nível social em relação a ela e a todos os demais. Ele é o único abastado. Na verdade, é dono de uma rede de comércio, ampla, uma cadeia de supermercados. Mas isso não é informado em pormenores para que a menina não possa sondar qual seja esta rede. Mas ela é "diferente" por causa disso e de outras variáveis, como veremos. Ela "é diferente, ou ela imagina ser, Marcelo?" Acompanhe-me.

Todos os irmãos [homens e mulheres, de todas as idades] dizem à mocinha em questão que "ela deve tudo à mãe dela, e que ela precisa ser muito grata à mãe, uma vez que é cuidada sozinha, sem pai". O "cuidada sozinha" tem peculiaridades sádicas, como veremos.

Ela é distinta por ser a única loira e de olhos claros na família. Os irmãos, já há muito conseguiram se libertar da confissão religiosa da mãe, até com a ajuda de seus pais biológicos conhecidos, e com seu apoio recíproco [=entre os próprios irmãos]. Assim, todos eles dizem à mocinha em questão: "nós já decepcionamos a nossa mãe, falhamos com ela, nenhum de nós seguiu o caminho do Salão do Reino; não vá decepcioná-la você também, que só depende dela". Este é apenas o início de sua "diferenciação de inscrição no seio desta família" e consequente proscrição e ocupação do locus de "bode expiatório" [nos moldes do "todos contra um", explicitado no capítulo anterior deste ensaio], como se irá confirmar ao longo desta exposição. Não há devaneio algum na situação de "exílio-em-casa" desta jovem. Ela não delira com nada disso. Os outros é que me parecem pouco sãos.

Prossigamos. Em sendo a única que deveria à mãe uma "gratidão superlativa", segundo a lógica comum [inclusive a da própria mãe, e dos pais dos outros filhos], ela é a única que nunca foi à praia, a única que não comemora aniversários ou natais, aquela que nunca usou calça comprida, nunca foi a um shopping, e acompanha a mãe ao Salão do Reino das Testemunhas de Jeová com a regularidade esperada. [Se um dia vier a ter um namorado, ele deverá ser do Salão do Reino também, já lhe foi dito; embora todos os parceiros da mãe jamais o fossem...]. Ela cumpre essa rotina, a agenda que lhe é dada inteiramente pela mãe e família, além de acompanhar uma "irmã mais velha na fé" nas visitações proselitistas que algumas Testemunhas de Jeová fazem às casas das pessoas, aos domingos. Sim, os seus domingos também já estão "agendados". Ela é uma "pregadora e propagadora 'inadvertida' de sua fé" [entenda-se: prega 'na marra'], pouco convicta e pouco preparada para a catequese ou seja lá o nome que deem à exegese precoce e temerária à qual é chamada a participar [provavelmente, a isso se dê o nome de 'testemunho'], a contragosto, por "dívida e gratidão [cobrada por todos, friso] em relação à mãe". Uma dívida impagável. Nesses domingos agradáveis, a menina, acompanhada de jovens muito mais experientes e "maduras" do que ela [de mais de vinte e cinco anos], ouve e assente[/concorda, anui com a cabeça] com as falas da irmã que conduz o ofício edificante de esclarecer as verdades da fé às famílias que acolhem ambas para tal fim. Nessas pregações, a menina, frequentemente, se atemoriza com algumas das implicações lógicas e éticas do que "ela mesma prega, por tabela" [vicariamente: assentindo com a pregação da outra]. Se esta mocinha se sentir "proscrita ou exilada em sua própria família, e de suas próprias convicções", alguém poderá contestar que isso é uma "viagem" da guria. Projeção da menina de sentimentos ávidos, competitivos ou invejosos em relação aos irmãos, ao pai e à própria mãe, a quem deveria ser grata, por supuesto. É bom que o leitor me acompanhe com carinho, porque se essa menina não é, de fato [e eu friso a expressão "de fato"], um "bode expiatório", alguém me diga, por favor, o que seja um.

Prossigamos mais, porque estamos só no início da peculiaríssima conjuntura desta jovem afortunada. Ela tem a bênção do duplo zelo da mãe [em nome dela própria, mãe, e do pai que optou por ocultar dela, filha: a mãe se vê "como pai e mãe da menina"], a garantia de uma agenda que lhe é imposta por irmãos, padrastos e mãe ["todos a favor dela"] para que ela seja "a única representante dos valores que todos prezam, mas que ninguém segue". Supostamente, apenas a mãe. Mas não muito, como se infere da biografia da mesma.

Continuemos com a abençoada. Por ser a única filha de um homem abastado, ela se viu na situação de nunca ter ido a um shopping. O pai, que lhe é negado saber quem seja, vive de vendas em lojas procuradas por muitos, a mãe frisa pra ela. Este paradoxo não parece ao leitor um "prêmio" fantástico a tal guria? Calças compridas [que o pai também vende], não lhe convêm, mas convém que ela saiba que ele as vende. Moça de família só usa saia, e não faz passeios fúteis. Nem comemora aniversários.

A mãe zelosa, quando tem um dinheiro extra, dá de presente aos filhos mais velhos [dois homens que já trabalham, e uma irmã], belas roupas, para eles "fazerem bonito" em seus empregos e em sua "vida social". Sim. Eles têm um "plus" de endosso de suas liberdades por parte da mesma mãe que as restringe à jovem, pois que esta "deu azar" de ter um pai que lhe poderia dar calças, blusas e passeios, mas que nunca foi comunicado do fato. Claro. Porque a mãe "não quis parecer interesseira para aquele único parceiro que tem posses, diante da realidade dela e de todos os demais que a engravidaram". Acham que eu terminei? Não. Estou apenas começando.

Tal menina, quando os irmãos produtivos "dela precisam" e "têm pressa para seus passeios", passa a roupa deles [friso: é incitada a fazê-lo, pela mãe e pelos irmãos beneficiados]. Faz uma refeição rápida pra eles também nessas ocasiões: passa um bife para a irmã que se apronta pra sair, mas não quer sair de barriga vazia nem com cheiro de comida, frita umas linguiças e faz um omelete para o irmão que "traz dinheiro pra casa" [mas também o gasta consigo mesmo em lazer, claro]. A mesma mãe que compra as camisas e calças para o belo desempenho social dos "filhos produtivos" [implicação necessária: "esta menina não produz nada"...], não tem dinheiro para a condução da filha às aulas de educação física, obrigatórias na escola dela, aos sábados de manha. "Isso é desnecessário", diz a mãe, e todos repetem a mesma avaliação sobre a "inutilidade da educação física". A menina é alvo de zombarias na escola por ser a única a não ir a nenhuma aula de educação física, eis o corolário perfeitamente dedutível por quem tenha o mínimo de sensibilidade. Discussões acaloradas da mãe com a direção a respeito de "improcedência da menina repetir o ano [é boa aluna] por sua ausência nas aulas de educação física" [ela já repetiu um ano por esta específica razão...] não podem ser levadas em conta pelas crianças que a proscrevem e a discriminam no recreio ["a fraquinha preguiçosa, que não quer acordar cedo no sábado de manhã"]. E como poderiam as "razões dos adultos" [que "têm, sim, poder de vida e morte sobre as crianças", como não me canso de frisar, e parece que muitos analistas subestimam essa "onipotência parental" - e não a infantil - em famílias tirânicas...] interferir nesse julgamento das colegas, que culpabilizam a menina por aquilo que ela mesma é impedida de fazer? Se alguém vir alguma injustiça concreta nesta situação, esqueça os fatos, e pensemos nas pulsões vorazes e reivindicatórias da jovem, sem base necessária [ou plausível] na realidade, em suas circunstâncias concretas. Algum adulto se dera ao trabalho de explicar a essas crianças agressoras que a menina, simplesmente, era impedida de comparecer às tais aulas por sua própria família, por aqueles que "mandam nela"? A diretora, o próprio professor de educação física, alguém teria tido a coragem de intervir nessa situação de chacota coletiva, dizendo aos zombadores: "Fulaninha de tal não vem, porque sua mãe não acha justo gastar dinheiro com passagens de ônibus para a escola no sábado"; alguém o fez? Alguém imagina que a palavra dela a respeito, para os que dela zombam, eliminaria a zombaria? Ela tentou: as chacotas aumentaram. Achavam que era desculpa dela, e que ela usava a mamãezinha pra se justificar.

Como há sonhos de perseguição e isolamento, há sonhos numinosos sombrios de terror em relação a figuras religiosas, podemos chamar tal jovem de "paranoica", não é mesmo? Suas pulsões caóticas de inveja dos irmãos, suas reivindicações ávidas motivadas por sua insaciabilidade e curiosidade edipiana em relação à cena primal [=o coito de dos pais] e outros lugares-comuns que tais é que são responsáveis pela "conjuntura psíquica" de tal garota, não é verdade? De fato, sua situação é bastante privilegiada, e ela é que não sabe ser "grata o bastante". Se tiver "ressentimentos", saberemos culpá-la a partir de seus mecanismos projetivos de "eleição de inimigos ou perseguidores" [eleição gratuita, decorrente de suas tensões pulsionais apriorísticas e não às suas circunstâncias factuais...] para tais (res)sentimentos. "É uma ressentida, a jovem". Se ela se encolher socialmente nos anos subsequentes a este que apresento, esses idílicos quatorze anos, dirão: "A moça traz ressentimentos por não conhecer o pai", e outras explicações "rasas" [estou sendo educado, pois teria adjetivos muitíssimo mais peremptórios para qualificar tais explicações] para demarcar a posição nosológica da moça no quadro das psicopatologias clínicas correntes, não é provável? Afinal, na média, os insights analíticos não são tão pormenorizados na aferição desta "sutilíssima e milimétrica teia-de-proscrição tão caprichosamente [nos dois sentidos do termo] urdida pelos ambientes primários da jovem". Alguém negará a esta moça sua posição legítima de "bode expiatório", ou a própria ideia de vitimização multi-institucional [que é a que eu proponho] seria reduzida, também [e por conveniência], a "mais um devaneio"? Há muitas outras filigranas a partir de tal conjuntura exposta, inclusive no sentimento de opressão interna, de "mundo nublado" [ou mecanizado], de "semi-realidade no sentimento de se sentir (não) sendo ela-mesma" e na qualidade [no tônus a na ambiência] numinosa e sombria dos sonhos dessa jovem.

Imagine que tal jovem queira "apresentar seu mundo externo-interno a um estranho". Irão rechaçá-la, pelas intensidades que tal apresentação comporta, com um agravante decisivo e sutil: essas próprias intensidades parecem engolfá-la. Ela teme algo que vive, vê e sente, e percebe que esse conjunto de dados seus os outros também temem nela! O cerco está completo: O Círculo da Incomunicabilidade. 

Ela, naturalmente, está ensimesmada, "preocupada consigo mesma" [e alguém poderia, em sã consciência, "responsabilizá-la por isso?"] e, "por estar magnetizada neste mundo de névoas, ensimesmamentos e devaneios" ["o exílio causa devaneios, mas o próprio exílio não é um devaneio", lembrem-se de meu alerta no início deste capítulo...], os outros [inclusive a maioria dos terapeutas ou analistas] se sentirão incomodados, como "instados a serem magnetizados pela atmosfera opressiva [externo-interna] que a magnetizou" [Cifra: Narciso]. Isso é o incômodo específico que os "enfeitiçados por si mesmos" causam ao interlocutor [mesmo ao analista menos sofisticado]. Quem está se defendendo do que e de quem, nessa situação específica? A menina que se cala por saber-se [intuir-se] temida, ou aqueles que deixam-na permanecer em seu silêncio auto-protetor, porque desesperançado, por temerem-na? Eu penso que analistas e pessoas de boa fé, mas sem argúcia, que não viabilizam o diálogo para a explicitação do cerco factual que engendra os monstros internos desta moça, estão, todos eles, a se defender do tamanho da encrenca da mesma. 

Existe outra maneira simplória de se trabalhar a coisa toda. Podemos dizer assim: 

"Nêmesis impõe a Narciso o sofrimento de apaixonar-se pela própria imagem". Sejamos mais significativos: a negligência e/ou a violência parental-ambiental obrigam "Narciso" a encolher-se e a se debruçar sobre si mesmo, a ter de cuidar de si [num ambiente secreto e não-comunicado] no lugar de pai, mãe, escola, Igreja, hospital que deveriam saber cuidar deste sujeito em formação. Eis a questão, sem as linhas demasiado simplificadas da narrativa mítica. Vamos explicitar ainda melhor este tal "enamoramento por si mesmo", característico de Narciso. As conjunturas parentais-ambientais [familiares, sócio-educacionais, institucionais] empurraram Narciso para esta "inviolável sala de espelhos", a este assim-chamado "amor por si" que é no fundo: "zelo por si" e "desespero por si", ao mesmo tempo, com todos os sentimentos subsidiários a tal desconfortável amálgama: " a saudade de si mesmo" [ou "nostalgia pelas possibilidades perdidas e não-vividas de si mesmo"] sendo o mais notável desses sentimentos consequentes à posição narcísica. "Pesar por uma vida que poderia ter sido". Isso é a parte maior do assim-chamado "ressentimento narcísico" e essa parte vem "antes da inveja", senão cronológica, axiologicamente; senão "na ordem do tempo", certamente na "ordem da importância e valoração das coisas psíquicas". Nisso reside o grande "ponto cego" kleiniano e freudiano [eu diria: uma península de cegueira conveniente]. Nisso também reside a percuciência de Fairbairn. 

Sim, há uma avidez originária em todo ser humano. Há inveja e tudo o mais. Há voracidade. Não nascemos anjos. Por incrível que pareça, até eu sei disso. Não proponho uma volta ingênua a Rousseau. O que ocorre, no caso da ferida narcísica, é que os sentimentos em pauta [e "esta pauta específica de sentimentos"] é sobredeterminada e modulada [no tônus e no quantum] pelos fatores externos apresentados. Eis o achado Fairbairniano, com o qual concordo. Se fizermos uma leitura não superficial da situação em jogo [a da ferida narcísica e seu corolário], veremos que a assunção da sobredeterminação e modulação das pulsões, no quantum e no tônus, a partir das conjunturas externas concretas, não desqualifica a existência daquelas pulsões definidas pelos kleinianos [voracidade, inveja, avidez, desejo], mas delineariam com muito mais precisão a conjuntura psíquica na qual tal sujeito apreende a si mesmo, e que essa apreensão, ao contrário de ser "idiossincraticamente arbitrária" [ou genético-pulsional] tem seu quantum de legitimidade nas circunstâncias concretas de educação-formação deste sujeito. Ninguém desqualifica a fome, por exemplo. Mas podemos flagrar maneiras de fazer do alimento um prêmio ou um castigo, e encontramos essas possibilidades factuais em inúmeros casos de distúrbio alimentar. Assim como o ambiente pode manejar mal [com a melhor das boas intenções...] questões relacionadas à nutrição [psicologicamente, e não só nutricionalmente, friso], o ambiente também pode confiscar o espaço existencial da criança. O termo é este: confisco.

Alguns dizem assim [numa leitura pietista dos mitologemas]: "A Hybris, ou ultrapassagem do métron [a medida justa do humano] faz com que Nêmesis intervenha e imponha a Narciso o castigo de ter de ver-se e rever-se, mirar e admirar [sempre uma vez mais] a si mesmo, pelo orgulho de negar amor ao outro [Eco ou alguma outra ninfa de plantão]". Ora, o métron da criança [certa medida mínima de auto-expressão e autonomia] é massacrado e confiscado pelas autoridades adultas que deveriam ser guardiãs desta "justa medida", nestes casos. A não ser que se reescreva a história de Narciso para a primeira infância, ou que a sua mãe seja a própria Nêmesis, como a Cuca nas canções de ninar. A deslegitimação do métron [a justa medida do humano] na criança abusada, a deslegitimação [ou confisco] da autoridade do ver e do ser desta criança, tudo isso determina, sim, essa constelação específica de sentimentos e imagos do grande ferido narcísico. E esta quadro de referência, bastante doentio e distorcido, coopera para e corrobora a formatação de um sujeito trágico. E o que é um sujeito trágico? É aquele que formula de si para si questões muito fundas a respeito da "respirabilidade do mundo", da "exequibilidade da vida genuína", da "possibilidade de se ser quem se é no íntimo, e o que seja este íntimo, e como ele pode [ou não] conectar-se com o lá-fora", e todas essas perguntas muito fundas são todas feitas muito cedo, ainda que semi-articuladas, a princípio. O sujeito trágico é o propositor e formulador em primeira mão [não, ele "não precisa pegar nada disso de empréstimo" de ninguém...] daquelas perguntas tidas por "problemáticas", justamente por serem problematizadoras do seu entorno [de seu meio sócio-cultural, a partir do quintal de casa]. Além do que, o sujeito trágico será, necessariamente, um "bode expiatório" [o protagonista do canto Trágico], a vítima de um conluio de interesses e pontos cegos do maquinário institucional, que não encontra no bode nenhuma espécie de resistência que o impeça de expurgar sua sombra massiva e maciça, expurgando-o e fazendo-o purgá-la por todos os que preferem se manter inconscientes desta mesma sombra. Essa posição de bode expiatório do sujeito trágico é factual e inequívoca, qualquer que seja a tentativa de banalizá-la, minimizá-la ou impessoalizá-la, quer seja fazendo tabula rasa das conjunturas histórico-factuais do indivíduo, quer seja com clichês míticos, quer seja com leituras hidráulicas [ou termodinâmicas] do dinamismo pulsional, tomado em clave autônoma, abstraindo-o das importantíssimas balizas ambientais. Não há sofisma ou balela que salve o sujeito trágico de sua tragédia.

O agudo Colin Wilson, em seu fecundo The Outsider, já apresentou a questão do "fora-de-lugar" [do Forasteiro, do Proscrito, do Sujeito que Olha o Mundo como que 'de Fora'] muito bem, em poucas palavras: "um sujeito que viu muito fundo, e cedo demais". Pois bem, isso afugenta o ver raso dos adultos, inclusive. E estes, defensivamente, tentam "aplainar as inúmeras minudências incômodas do ver-viver destes sujeitos trágicos" com simplórias equações pulsionais ou mítico-pietistas, desonerando as nossas não tão brilhantes instituições de seus déficits culturais gritantes, e sobre-onerando o indivíduo [=a criança, a princípio, e sempre "a criança em cada adulto" ] por sua "infância atípica ou anormal". Dou a isso o nome de "crime consensual": o crime do consenso médio contra aquele cuja vivência precoce comporta um "quantum" de Tragédia que se quer negar, ou minimizar, coletivamente. Friso uma vez mais a palavra: coletivamente. O "muitos contra um" se repete também aqui, na "cultura oficial".

Não é à toa [e pode-se conferir nos livros dos autores da Psicologia do Self, de Kohut e colaboradores] que todo paciente narcísico, ao contrário do edipiano, se vê no seguinte dilema: 1) Sente que "tentar compartilhar seu mundo interno não é factível, não servirá para nada" [o que traz como desdobramento lógico o "silêncio" esquizoide"]; 2) Ou se vê compelido a contar milimetricamente tudo, meses e meses a fio, cada detalhe bizarro de cada uma de suas muitas desventuras, na esperança de ser "minimamente compreendido", para início de conversa [como pré-condição para qualquer início de diálogo analítico minimamente eficaz]. Neste contexto, ações como: querer apresentar diários de fatos passados para o analista, mostrar fotos de períodos emblemáticos da vida, anotar memórias ou sentimentos ocorridos nos intervalos das sessões, não são "manobras defensivas" do analisando com o fim de "saturar" e "paralisar" o analista em sua possibilidade intrínseca de exercer minimamente o seu ofício ["asfixiando-o por acúmulo"]; antes, pelo contrário: trata-se de um apelo para que o outro [o interlocutor 'suposto-capaz'] atente para a peculiaridade, pormenores e nuances de sua situação. Situação esta que ele sabe, na própria pele, desde muito cedo, ser tida como bastante improvável, tóxica, sui generis ou "explosiva" pelos demais. O analista que não apreender essa demanda subjacente à alegada manobra de "saturação" estará reafirmando [e "reinstaurando"] o trauma da não-escuta e da recusa do ver o que aquele [o analisando] viu [e viveu] só, sem testemunhas.

Pausa para o leitor ir atrás de uma música. Mas não se anime muito: voltaremos à aridez deste ensaio, logo em seguida à sugestão. O leitor está convidado a prestar atenção à letra e melodia de Confortably Numb ["confortavelmente entorpecido"], do Pink Floyd. Veja-se o diálogo entre doutor e vítima entorpecida antes do primeiro solo de David Gilmour. Esta vítima fala da febre da infância, fala de não ser ele mesmo, das mãos inchando como balões [um dos sintomas psicofísicos de "desrealização"]. Não quero me deter na letra, mas sinalizar para o solo de David Gilmour após esta primeira parte narrativo-dialogal [pois são dois sujeitos que conversam]. Seria o solo "ornamental àquilo que o precede [no caso: a este diálogo]"? Não. O solo é "a expressão mais genuína [que o músico encontrou] do apelo condensado naquelas mesmas frases que o antecederam". É a reiteração da fala do "paciente". O solo é a condensação e a culminância do apelo. Espero que isto fique bastante claro na escuta atenta da canção, porque temos aqui um "analogon" bastante fiel às assim-chamadas "manobras" adotadas pelos feridos narcísicos em seus processos analíticos. Se ele foi mal-visto ou visto muito pouco desde lá detrás, ele só crê poder "começar a ser visto, se for visto nas minúcias". "Quem não me apreende com justeza não me faz justiça". Esta máxima condensa muito bem a demanda narcísica. Isso não é tão difícil de entender, quando se quer olhar e se faz um esforço para isso. Da mesma maneira que, para o grande ferido, dar uma espiada no analista fora da sessão [estar na sala de espera em horário de outro paciente, por exemplo] costuma significar "testar a sobrevivência objetal do próprio analista" ["Ele continua ali? Ele ainda está vivo e 'funcionando' quando some do meu campo visual?"]; similarmente à criança que teme que a mãe suma ou morra [ou "deixe de existir"] quando fecha a porta de casa ou do banheiro. Há um desamparo latente neste gesto ["medo da morte do objeto, e do morte do próprio sujeito para o objeto/no objeto"], e não o impulso erótico-voyerístico que os mal-avisados atribuiríam a tais pacientes, aplicando-lhes [indevidamente] a tão popular clave edipiana na (in)compreensão deste gesto "transgressor".

Assim, se o paciente nos mostra um inventário de relatos e "compilações da infância" ele está nos dizendo "temo que a minha história, se permanecer sem testemunhas, será maior do que eu mesmo poderia digerir sozinho, e ela acabará por me engolir de vez, como, aliás, já me engoliu lá atrás". Que tal o tônus do apelo? Voltem a David Gilmour, please. Co-movam-se. O solo é a melhor tradução do que estou dizendo aqui. 

Há outro viés defensivo para "os que não gostam de conceber o enredo trágico do grande ferido narcísico". Imaginam que a "tragédia", no sentido de "martírio" ["testemunhar sozinho uma verdade"] seja uma "manobra cristã por excelência, a serviço da culpabilização de todos" [os laicos, os que "não viram ou viveram o sagrado"]. Nada mais tolo e impróprio. As condições de mártir e de bode expiatório, distintas mas confluídas, que tão bem traduzem a posição de Cristo, são factíveis e arquetipicamente dadas, fora da moldura cristã. E aqui, paradoxalmente, saímos de qualquer pietismo raso para uma leitura de "constelações típicas" [como é o caso do Édipo, inclusive], como veremos a seguir.

Um certo paciente de James Grotstein, gravemente abusado durante toda a infância [não sexualmente, mas física e emocionalmente, como é regra geral entre os feridos narcísicos], sai de férias e se depara com a estátua de Cristo na Catedral de Sacré-Coeur em Paris. É uma estátua de Cristo sangrando. O paciente, naquela circunstância e ocasião, sente que precisa de Deus, não de psicanálise, e que sua inocência foi aviltada desde a infância. Ele a quer [inocência] de volta. Por sua vez, James Grotstein, também em férias, na Itália, contemplava a imagem da Pietà de Michelângelo e, silenciosamente, pegou-se e repetir pra si um versículo do Apocalipse: "Estes são os que vêm da grande tribulação, e levaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro." [Apocalipse 7: 14]. Por ser um analista perspicaz e não defensivo quanto a símbolos religiosos, James Grotstein imediatamente associou sua vivência à evocação que o paciente fez de sua própria experiência do "Cristo ensanguentado", procurando pelos elementos contratransferenciais que ali estariam implicados. E ele encontrou muita coisa valiosa nesta auto-perscrutação. Tudo isso é minudentemente exposto nos capítulos 8º e 9º de seu livro essencial [para nossos fins]: "Quem é O Sonhador Que Sonha o Sonho: Um Estudo de presenças Psíquicas", já por mim citado em outras ocasiões. Curiosamente [mas não gratuitamente], tais capítulos se chamam: "Por Que Édipo e não Cristo?, parte I e II", e neles James Grotstein fala das vantagens de se tomar Cristo como paradigma para a análise da transferência com este tipo de paciente [frise-se: ele não é cristão], e de sua enorme vantagem em relação à adoção do Édipo como paradigma nestes casos específicos. Analisa, ainda, os preconceitos da psicanálise quanto a se tomar Cristo como arquétipo [e assim reconhece ser o Édipo também tomado, sem auto-crítica, nesta mesma condição arquetípica], coisa que ele não reluta em fazer, mesmo não sendo "formalmente junguiano". Para analistas rasos, tacanhos e empedernidos é uma aula toda a longa exposição que ali consta. Mas vou, simplesmente, sumarizar algumas de suas conclusões, acrescentando a elas observações próprias, como fiz no caso do vínculo Jó-Jeová [vide capítulo anterior]. O leitor interessado e/ou especialista [sobretudo os psicanalistas que sentem alergia diante do citado acima, são convidados a visitar o belo trabalho de James Grotstein; um tour de force, na minha opinião].

Tendo vislumbrado que a conjunção de imagens Cristo Ensanguentado-Pietà apontava para fenômenos analíticos [entenda-se: a dita conjunção-constelação apontava para fenônemos transferenciais-contratransferenciais] ocorridos no setting com aquele paciente específico, James Grotstein rastreia seus sentimentos clínicos em relação àquele paciente [transferências especulares ou complementares, segundo os vértices contratransferenciais já apontados por Racker e reafirmados por Kohut e Jacoby, dentre outros], ora como Cristo [identificando-se projetivamente com o papel de Mártir do paciente], ora como Maria [identificando-se com o papel complementar ao do paciente, como "testemunha impotente de sua situação e que concorrera passivamente para sua ocorrência"]. Este exercício heterodoxo fez com que Grotstein apreendesse a dupla situação [face e contraface, verso e avesso] da complexa condição de seu paciente abusado:

1) A condição de Cristo: o que vive um sofrimento silencioso e subcompreendido [Cristo transpira sangue no Horto e seus amigos dormem...], tal qual, em sua infância, o paciente se experimentou, simultaneamente, abusado e negligenciado quanto à solidariedade e/ou socorro aos danos a ele impetrados pelos ambientes primários; 

2) A condição de Maria [ou da passividade dos ambientes primários quanto aos abusos sofridos], como co-responsável por tais sofrimentos. A explicação simplificada [icônica] seria esta: Maria dá à luz um filho para sofrer e ser martirizado; sacrificado, enfim; o analista, ouvindo mal a história do paciente [e fica claro o quanto James Grotstein ouvia mal tal paciente, antes deste insight!], com ou sem dolo [=Maria], mas com inépcia, acaba por reevocar os sofrimentos do paciente no processo regressivo implicado em toda análise [reevocação da experiência infantil], ao mesmo tempo "obrigando o paciente a revivê-los transferencialmente" e "se mostrando incapaz de lhe oferecer socorro efetivo". [A Pietà tem nos braços o filho já morto...]. Eis os dois lugares/posições nos quais James Grotstein se viu na sua perscrutação dos sentimentos transferenciais ali vividos. E isso permitiu a ele entender melhor tanto o paciente, quanto um trabalho que ele lera muitos anos antes, de Kubie e Israel (1955). [Como o trabalho está ali citado, não irei alongar desnecessariamente a bibliografia deste ensaio]. Também pôde entender melhor alguns aspectos contratransferenciais explicitados no "Bion da última fase" [de produção criativa], o Bion dos apontamentos clínicos, rubricas e fragmentos compilados na obra "Cogitações", trabalho este que Franco Borgogno compara ao Diário Clínico de Ferenczi, pela franqueza desassombrada e pela escolha da fidedignidade clínica acima de qualquer rigidez conceitual ou "dogma". O Bion menos autoritário, menos dogmático e mais experimental-cogitativo estaria nesta coletânea. Franco Borgogno estudou tal conjunto de insights clínicos do Bion tardio com a filha deste, Parthenope Bion Talamo. O registro de suas conclusões a respeito está no sétimo capítulo de seu livro "Psicanálise como Percurso" [2004; Rio de janeiro: Imago], já citado no prólogo deste trabalho.

Assim, vamos examinar, por ora, e em conjunto, os insights de James Grotstein e tentar apreender o quadro que eles compõem.

Antes de adentrar a visão de conjunto que exporei logo abaixo, volto ao solo de guitarra de David Gilmour. "Qual o objetivo daquele solo de guitarra, naquele contexto?" Ou, em termos análogos: "Qual o quantum e o tônus expressivo daquele solo naquele contexto específico?" A percepção analítica dos sentimentos transferenciais-contratransferenciais também é da ordem da percepção "estético-vincular", ou "expressivo-vincular", como a irrupção de um solo de guitarra [portanto, sem sem palavras] que está ali confirmando diálogos já ocorridos, e antecipando diálogos futuros.

Uma criança, completamente perplexa e muda [dir-se-ia, popularmente, "apoplética", no sentido do estupor e pasmo que então manifestava] é apresentada a uma grande sala de reuniões de psiquiatras, num prestigiado hospital europeu, na década de cinquenta. O Dr. Lawrence Kubie tem uma intuição notável [na verdade um "sentimento contratransferencial"] em relação ao estado daquela criança, e lhe diz: "Eu sinto muito pelo que te aconteceu! Eu sinto muito mesmo!" Saindo de seu estupor, e após se dirigir a cada membro da plateia, pedindo a cada um que repetisse: "Diga que você [também] sente muito!", essa criança começou a falar... A expressa manifestação do dano impetrado á criança por alguém, e a piedade do psiquiatra por tal condição, "liberou" a menina para o diálogo, pós-reconhecimento. O reconhecimento do dano é uma parte importante do diálogo. Pode ser até pré-condição para o mesmo.

Uma leitura mais rasa do ressentimento, que o entende na clave edípica, considera este sentimento como de "apego ao dano", ignorando que é difícil abandonar aquilo que todos negam existir ou ter um dia existido! Lembro-me de assitir a um documentário onde um ex-prisioneiro de guerra, um americano, contara ao pai que ele e seus companheiros de prisão eram obrigados a cavar um túnel e quebrar pedras com o fim único de se exaurirem, sem água e alimentação adequadas para, em seguida, recolocarem as pedras no túnel cavado, para voltar a removê-las na jornada seguinte de "trabalhos forçados". Neste exercício insano [na verdade, uma engenhosa tortura, física e psíquica], não se visava nada de prático, senão drenar as forças dos presos que iam, assim, sucumbindo como moscas presas numa teia. O pai deste prisioneiro não pôde acreditar nesta parte do relato do filho [parte extremamente substancial, para aquele que viveu algo sem sentido e gratuito; entenda-se: sádico]. Quando este ex-prisioneiro pôde voltar ao campo de concentração com seu filho [seu pai já estava morto] e mostrou-lhe o tal túnel, o reconhecimento espantado do filho daquele fato por ele narrado havia anos, fez com que ele desabasse num choro convulsivo de longa duração. Ele chorava pela necessidade de reconhecimento factual de um absurdo que lhe havia sido imposto. E mais: aliviava-se, por procuração, da incredulidade do pai quanto ao fato, pelo olhar cúmplice do filho! Eis algo muito básico que escapa aos olhos daqueles que não sofreram uma infância torturada, ou qualquer tortura ao longo da vida. O reconhecimento da tortura é um pressuposto para se poder seguir em frente, apesar dela. Quem lê o ressentimento pela clave do "apego ao dano" como "escolha em cultivar a memória do dano" [como que aninhando-o no colo, por mero capricho ou "auto-erotismo indulgente"] nada sabe do que é dito aqui. Tais pessoas ainda supõem que os "apegados ao dano" esperam dos demais que eles "sintam sua dor", "que sintam por eles", como um corolário de seu gozo auto-indulgente [eles quereriam ser valorizados por terem sofrido, como quem ganha uma medalha de Honra ao Mérito]. Quanta puerilidade! Os que desconhecem a infância torturada, não compreendem na demanda deste ex-prisioneiro de guerra, bem como na da garotinha do exemplo de Kubie, uma "função expressiva". Trata-se, enfim, de uma demanda por comunicação: "Alguém, agora, consegue imaginar o que eu vi e vivi, sem que, até então, pudessem sequer cogitar o que fosse?!" Eis a pergunta implícita na demanda. Por isso, ex-prisioneiros de guerra se encontram para reatualizar a rememoração catártica do dano. Para reafirmar a testemunha, mais do que o dano. Porque a existência da testemunha requalifica o dano como "menos enlouquecedor", na medida mesma em que torna o dano comunicável e, portanto, "crível". E quando não há sobreviventes ou cúmplices no dano? E se se sofreu o dano sozinho? E se, em lugar de ex-prisioneiros, só houvesse nazistas dizendo: "Não, não foi nada disso, vocês foram muito bem tratados ali"? Quem fala de "apego ao dano" não consegue reconhecer que aquele que espera o reconhecimento do dano precisa comunicar a dor de sua história guardada sem testemunha, para poder avançar acompanhado da comunidade humana. Do contrário, ele fica alijado do reino dos vivos, ou do reino do "crível". Ele terá de permanecer anônimo para existir, como fora até então. Não é paradoxal? Não é cruel, além de paradoxal? "Comunicar a dor" é exatamente a função da transferência, na releitura que Donald Meltzer faz de Melanie Klein. Olhar a função da comunicação do dano como busca de testemunha para algo ignorado [ou sadicamente impingido e negligenciado lá atrás] é uma tentativa de reinserir-se na comunidade dos vivos, reinserindo alguns de seus indizíveis nesta mesma comunidade; pois foram justamente tais indizíveis que alijaram o sujeito trágico dela! Esta perspectiva é bem distinta [e distante] de qualquer "função revanchista" ou de "gozo triunfalista" em "impingir sobre os demais a sua dor pretérita". A ênfase é outra: é tornar manifestável, comunicável, algo que foi compelido a ficar numa zona secreta [e demoníaca] do impronunciável, porque não-crível, porque não "adequado" aos pudores sociais, porque "não consentâneo" com a respeitabilidade familiar, porque aviltante para a reputação de alguma instituição que preza mais o verniz da imagem do que os fatos [vide a necessidade de reconhecimento por parte das crianças abusadas por sacerdotes católicos na Irlanda], e por aí vai. O buraco é mais embaixo. A função revanchista é a manifestação reativa [e posterior, portanto] da"frustração da função expressiva". A menina torturada pela Sílvia Calabresi [citada no capítulo anterior], teve sua dor e dano assumidos e expostos publicamente e, assim, pôde ver o reconhecimento e solidariedade do olhar de muitos para aquilo que os filhos adultos [de 20 e 21 anos, à época] e a empregada da torturadora fingiam não existir. Assim, e só por isso, ela pôde escapar do circuito da conivência e cegueira daqueles que, por opção, deliberaram não ver e se omitiram em ajudá-la ou foram "incapazes de sentir por ela, e de sentir com ela". Isso ocorre com todas as vítimas de abusos pesados. Se o pai tortura e a mãe fica quieta, ela fingiu que não houve nada, e não "sentiu com ela, nem por ela". Se a criança foi abusada na escola, e ninguém a defendeu, os que viram "não sentiram a dor dela" ou, pior "rira da dor dela" [gozaram, eles, com o dano a ela!]. É o mesmo que uma adolescente ser filmada num estupro e o vídeo ser exposto como troféu na web. Se acham graça de sua vitimização, mas o rosto do estuprador fica anônimo [nublado por efeitos especiais], se o cara que filmou e nada fez fica no anonimato, tripudia-se coletivamente de sua dor, como troféu alheio. A questão do reconhecimento é uma questão de justiça, e nada tem a ver com caprichos ou revanchismos. Aliás, muito mais crível e provável que a menina torturada pela Sílvia Calabresi supere seu percurso com sua algoz. Ela já deu sinais disso, agradecida por ser "libertada de sua situação" [agora tornada visível a todos, e com o nome certo: devidamente nomeada]. Pior seria continuar a se ver naquilo com a anuência dos irmãos adultos, os filhos biológicos da torturadora, que estariam a dizer á criança, com a atitude [senão com palavras]: "O que nossa mãe faz é lícito. tem nossa anuência. tem nossa adesão. Não há erro algum aqui. Não existe vítima, nem vitimizador!" O que se fez, neste caso, foi desarmar a terrível armadilha do discurso que nega [e, negando, valida!] a tortura, e por isso tenho certeza que tal moça conseguirá superar o dano, sem revanchismos. O rapaz de Realengo que matou as crianças na escola, reencenou seu abuso ignorado. Achar que a demanda originária do ferido seja a do rapaz de Realengo é "saltar a etapa da possibilidade de reparação relativa aspirada pela filha adotiva de Goiânia". Entendam o raciocínio, por favor, porque ele é crucial. Bion, em suas Cogitações, diz o mesmo, em outras palavras: "O paciente só aceitará uma interpretação após sentir que o analista atravessou o sofrimento implicado [ou embutido] naquela interpretação". Eis o espírito da coisa, para o grande ferido narcísico. A fala específica de Wilfred Bion, referindo-se sobretudo a pacientes psicóticos ou borderlines [os grandes feridos narcísicos, em suma], é como segue, tal qual reproduzida na obra de Grotstein, com itálicos do próprio Grotstein [tal a importância que ele dá à frase]:

"Não penso que tais pacientes [ou seja: psicóticos e borderlines] aceitarão uma interpretação, embora correta, a menos que eles sintam que o analista passou pela sua crise emocional, como uma parte do ato de dar a interpretação" [Pag 321 do livro de Grotestein].

Passar pela crise emocional experimentada pelo próprio paciente [vicariamente, por identificação projetiva com as partes que lhe foram negadas desde a triste infância] é parte inerente e essencial do ato mesmo de interpretar um conteúdo [conteúdo-sentimento, sobretudo] para um paciente que tenha passado por este tipo de trajetória trágica. Isso é "sadismo" por parte do paciente? Na origem, não. Na origem, isso visa comunicar uma dor. Visa comunicar algo, como o solo de guitarra de David Gilmour. Frustrada esta tentativa de comunicação, podemos ter os atos comunicativos-sádicos-destrutivos-suicidas, como os do coreano da Virgínia, ou do rapaz de Realengo. Tomar o "sadismo" desde a origem é negar á dor o direito de tentar expressar-se com a maior fidedignidade possível. É fechar o diário que o paciente entrega no consultório. É tapar os ouvidos aos seus sonhos bizarros e relatos de uma infância atipicamente infeliz. É colocar rolhas nos ouvidos nos vinte segundos que David Gilmour tem algo a reiterar, com seu solo além-palavras. 

Aceitar os demônios do paciente, para posterior exorcismo, são os termos adotados pelo próprio James Grotstein ao falar deste tipo de paciente. E estamos lidando com um analista de vanguarda [dos que trabalham com paradigmas novos, semelhantemente a Thomas Ogden, que prefacia seu livro], e não com um medievalista nostálgico por ritos e obscuridades. Experimentar-se como Crucificado Impotente ou Madona [Também Impotente] das Lágrimas, são duas posições que viabilizaram a extensa expressão dos danos e das presenças internas que os perpetuavam [os "demônios", em questão]. Neste contexto de entendimento para-além-do-Édipo, a exclamação típica dos grandes feridos narcísicos, exemplificada pelo paciente, faz [e fez, para Grotstein] todo o sentido do mundo: "Por que aquelas pessoas imaturas e egoístas me tiveram? Como se atreveram a ter filhos? Por que me impuseram um nascimento?" Isso faz eco ao "eu quero morrer, quero morrer", (d)estampado no choro da paciente citada no capítulo III, "Tempo Fechado Para o ferido Narcísico", frente às fotografias da infância, quando se sentiu tendo uma "infância anônima e incomunicada". Esta infância não pode mais ficar anônima, nem incomunicada. Eis a questão. Eis uma das tarefas do analista a receber um paciente esquizoide ou borderline. O ressentimento visto na clave do melodrama do Anjo Vingador da Morte, como nos filmes de justiceiros de Hollywood, é o "fracasso dessa tentativa expressiva", em seu primeiro momento. Maria Rita Kehl, em obra citada na bibliografia para este capítulo, mostra uma compreensão do aspecto narcísico-revanchista e de gozo auto-indulgente [eximindo-se da responsabilidade de crescer] por parte do grande ferido, assumindo, sem se dar conta, a postura rasa de outros filmes americanos, onde alguém, "heroicamente", engole seus segredos sem por eles ser engolido, jamais, e vive com os seus pares ignorando as dores da alma. Esse tipo de personagem: ou é super-herói; ou se afoga em bebidas. Gosto muito de Maria Rita Kehl, mas fica claro que nosso grupo amostral de pacientes é muito distinto. Mas muito mesmo. 

Haveria alguma coisa a dizer a respeito da suposta "violação da inocência" de tal paciente na infância. Já disse que, não há anjos nascidos neste solo terreno, não há ninguém sem qualquer laivo de agressividade, inveja, ou competição, desde a infância. Claro que não há! Até porque, são crianças a impingir danos a outras crianças ["muitas contra uma"], no clássico bullying escolar. O riso que os aleijados despertam, a crítica aos corcundas, aos portadores de deficiências de quaisquer espécies, a proscrição a que se destinam pobres, "feios", caolhos, alguém com lábio leporino, etc, etc, etc, aquele cujo pai não tem posses ou modos ou força, conforme o contexto, cuja mãe é velha ou "falada", conforme o contexto, etc, etc, isso mostra que o mundo infantil desconhece "anjos". Mas conhece agressores contumazes e não-agressores. Conhece aquele que exercita o infringir danos e os que não o fazem, mesmo tendo oportunidade para tal. Sem entrar numa discussão de todas as variáveis co-dependentes na formação de crianças e jovens, temos de considerar mais-que-legítima e compreensível a queixa de "violação de inocência" em praticamente todos os casos de pacientes esquizóides e borderlines. Costuma ser massiva e maciça a invasão, nesses casos. Confira-se as situações citadas no capítulo anterior, esta descrita acima, ou a de uma menina de três anos cujo pai morre eletrocutado em seu exercício profissional [em manutenção de redes da prefeitura], sua mãe tem eclâmpsia e morre dando à luz sua irmãzinha, poucos meses depois da morte do pai, e ela é estuprada pelo irmão da mãe recém-falecida, com esta mesma idade de três anos, após esta sucessão de perdas. A avó tenta acobertar o crime [avó em questão: mãe da mãe e do tio abusador], alegando, na chegada ao hospital [Frise-se: criança com ruptura de períneo em decorrência do estupro], que a menina "caíra de mau jeito no peniquinho" [sic]. Falamos de tragédias, portanto. Não falamos de "contratempos familiares médios", em nenhum dos casos. Em linhas gerais, estava certo o insight dos antipsiquiatras [Ronald Laing, Thomas Szasz, David Cooper, Silvano Arieti] ao entenderem que o paciente esquizofrênico, em média e regra geral, era o membro-alvo [entenda-se: o bode expiatório e o porta-voz doente] de uma doença familiar [=de uma família doente] e/ou de uma doença institucional. Em todos os casos a que estou aludindo, isto pode ser aplicado, ainda que não se trate de esquizofrênicos.

Peguem o caso citado por mim, a vinheta clínica da paciente do capítulo XIII, que eu chamei de "Soraya" ["O Códice do Silêncio"]. Ela é apunhalada [literalmente] pela mãe que lhe diz que ela é um fardo, e que maldita fora a hora que ela ficara grávida e fora obrigada a casar com um bêbado. A mãe não a queria nascida. O paciente de Grotstein, e que tanto o impactou com sua pergunta, complementa a dor de minha paciente [apresenta o reverso exato da afirmação da mãe de minha paciente]: "Porque me tiveram, então?!" Essa pergunta é narcísica. É pré-edipiana. Louvo a transparência de Grotstein em compartilhar em voz alta suas reflexões heterodoxas, sobretudo para a consulta dos que só leem autores que se referem a seus mesmos mentores intelectuais. Ele lista mais de 400 livros em sua bibliografia.

Vamos à seguinte situação: o paciente pede para falar comigo, durante as sessões, numa língua que entendo bem, mas que não falo com fluência. O paciente é brasileiro, e não está em questão "ele não entender a nossa língua pátria". Quererá o paciente [ou analisando] me colocar, sadicamente, na posição do "ainda-sem-fala" [do infante, portanto], disputando edipianamente comigo algum lugar de suposto saber ou suposto poder? Não. O paciente quer me comunicar que se sente mais ele mesmo como estrangeiro. Minha reação, após ouvi-lo, é de imaginá-lo "melhor encaixado como turista na vida".

Ao longo das sessões, ele me conta como se sentiu bem recebido nos lugares por onde "passou um tempo". Conta-me o hábito das longas caminhadas sozinho, tendo nas lojas de conveniência [estas de posto de gasolina] uma espécie de "oásis": locais onde se sentava, bebia alguma coisa e "ouvia pessoas conversando". O paciente me conta de sua infância, de quando seu pai se irritava e exigia-lhe que fizesse algo, sem escolhas, punindo-o pelo que ele mesmo fizera! Vários exemplos foram dados. Havia uma consequência inesperada ao pedido do pai pelo próprio pai, e este punia o menino uma segunda vez, mesmo este já antevendo que a exigência do pai "implicaria no risco de uma má consequência". "É difícil de explicar", ele me dizia. Citou dezenas de situações. Exemplo: o cachorro do menino entra debaixo do sofá, irritando o pai que, aos berros e ameaçadoramente ["vou te tirar este cachorro! Vou dar este cachorro pra fulano de tal!"] exige do menino que o tire "imediatamente" dali. O cachorro se assusta pela pressa, pelo jeito desastrado e imediato com que a criança é compelida a arrancá-lo dali, e acaba mordendo a mão do menino. O pai lhe dá uma surra e consegue que sacrifiquem o cachorro, com a história que inventa sobre "a agressão gratuita do cachorro à criança" [uma mentira, portanto], como se ele mesmo não a tivesse provocado. Ele resumia as coisas assim: "meu pai poderia ser comparado a um radiologista muitíssimo autoritário que obrigasse um paciente a se posicionar sentado, com a máquina incidindo-lhe nos olhos, alegando precisar tirar uma radiografia do pé deste paciente. A qualquer reclamação, ele insistiria: 'quem é o médico aqui?' Se a pessoa ficasse com catarata ou qualquer doença ocular pela insistência despropositada de meu pai, ele puniria aquele que ficou com catarata, esquecendo seu papel na situação toda." Contou-me de como era magro, pesando 36 quilos aos quatorze anos [hipertireoidismo], tendo 1,65 de altura, e como isso despertava agressões de colegas. De como seu pai não lhe permitia fazer exercícios "para não fazer mal ao coração". De como, tendo tido uma doença na infância [hepatite], ficou de "castigo provisório" até o final do ano letivo, tendo de acompanhar o pai ao seu escritório e estudar [inclusive nas férias escolares] para "não se acostumar com a moleza da folga às aulas" [moleza esta causada por sua doença, e não por sua escolha!]. Inúmeros castigos desta natureza eram regra em sua educação, além de situações onde tomava a defesa de um ou outro parente [mãe ou irmãos], e era punido por afrontar a autoridade paterna. Se o pai derrubasse algo na cozinha e obrigasse a mulher ou um irmão a "a arrumar a bagunça" [um copo quebrado pelo próprio pai], e ele exclamasse: "Mas foi você que deixou cair, pai!", tomava uma surra por ter declarado o óbvio, tinha que catar tudo no lugar da pessoa instada a fazê-lo antes de sua defesa, e ele ficava de castigo apesar de já lhe ter sido imposto a arbitrariedade que ele mesmo contestara em relação a outrem. Eis uma situação sem nehuma justiça. Não havia privacidade consentida: não se podia fechar qualquer porta de quarto ou banheiro. O menino não faria exercícios se o pai não os aprovasse antes, não iria ao médico se o pedido do menino lhe parecesse caprichoso, não faria nada sem que a intenção do ato parecesse vir do próprio pai, e não daquele que solicitasse algo de que precisasse. Ele me contou de como se sentiu "irremediavelmente lesado" aos dezessete anos [a dor da ferida irremediável é uma das facetas dos feridos narcísicos], sentindo palpitações intensas na ocasião, não conseguindo dormir, lembrando-se de sua infância, e de como teve de sair de casa logo depois, aos dezoito, tendo de brigar com seu pai para não ser internado por ele, pai, numa clínica psiquiátrica. De como deu aulas de línguas [eis o valor de se falar "outra língua"!] para se manter, enquanto morava no quarto alugado de uma viúva, e fazia faculdade. De como passou anos sem voltar a falar com o pai, e este nunca reconhecera um erro sequer. De como perdera a noção do tempo, e não se lembrava de quase nada daqueles semestres subsequentes à saída de casa: o nome de seus colegas de faculdade [cursava Letras], professores; dormia pouco, "vagava como um zumbi". As aulas particulares eram seu "prumo". De como saíra da faculdade, por perder o prazo de inscrição para o quarto semestre, após concluir [satisfatoriamente, segundo seu relato] os três primeiros, mesmo não guardando lembranças do convívio com o ambiente estudantil. Era como andar no automático, dizia ele, ou estar num estado de sonâmbulo. De como escondia dos outros [por vergonha] essa perda de prazo, e que por isso não lhe ocorrera voltar à faculdade no semestre seguinte. De como essa solidão se instalara nele, e este "observar as coisas de fora, como ouvir as conversas nas lojas de conveniência, 'só o som, só a presença' estava instalado nele". De como fora recebido bem, por duas vezes, em viagens baratas de mochileiros, em países nos quais falavam as línguas que ele dominava. Não cultivou essas amizades também; "só ali" [só na ocasião e naquele contexto de viagem]. Mas que era bom, "também porque ele sabia que estava de passagem", "em trânsito". Este pedido para "falar numa língua estrangeira comigo" ganha conotação bastante diversa da competição pelo poder [pelo lugar de "suposto saber" ou "de poder mais do que eu"] se lida no contexto todo que agora expus.

Outro paciente, me traz como primeiro sonho ter sido abraçado por uma "tiazinha gorda" num campo aberto e isolado [cifra: uma terra devastada], após o que [ato contínuo], a "tiazinha" lhe diz: "Tem uma encruzilhada dentro de você"; ao que ele responde, com uma pergunta: "E como é que eu tiro essa zica de dentro de mim?" A tiazinha ri e o solta do abraço. Ele encontra uns pássaros perdidos ciscando na terra [devastada], sem nada pra comer, e tenta impulsionar-lhes o voo, de forma infrutífera: esses pássaros parecem "tão inábeis ao voo quanto as galinhas".

Fico pensando na tia da encruzilhada. Me vem a imagem de uma cafetina ou dona de boca de fumo. Mas fico calado. Pergunto por alguma "tia das esquinas". Dona de boca de pó, ele me conta. O rapaz tem faltado ao banco onde trabalha depois de cheirar cocaína nos finais de semana, quando não dorme [cifra: "fôlego de curta duração", como os pássaros que não alçam voo no sonho]. Faço algumas pontuações interpretativas a partir das imagens contratransferenciais. Um dos sonhos subsequentes mostra o paciente [bem jovem, como se deduz pelo linguajar] "correndo como um louco pelas ruas, com uma moça louca varrida atrás dele, uma estranha, moradora de rua. Ele carrega uma pasta de executivo, de marca. Uma pasta que é símbolo de status. Chega a um lugar onde o pai de uma namorada alimenta pombos". Aqui temos o símbolo do fôlego [pombo como fôlego, uma evolução ou "giro" da imagem anterior] sendo alimentado de forma mais produtiva [não "ciscando no deserto"], mas num contexto difícil: ele está numa "maratona" [="quase sem fôlego"] e fugindo de alguém [se antes, algo o prendia na encruzilhada, ou lhe anunciava a encruzilhada na qual estava preso, agora esta presença ou este algo vagueava pelas rua: podia percorrer todas as encruzilhadas]. Vemos uma figura masculina mais velha que pode dar suporte a um "fôlego legítimo" [chamo a este "élan vital", animus, contrariando Jung em sua leitura contrassexual do termo, e entendendo-o etimologicamente: animus= ânimo, fôlego; poderia chamá-lo "spiritus", "ignis", ou "fator yang", tanto faz; não uso tais terminologias com o paciente; elas só servem como uma notação para mim mesmo]. Comunicando ao paciente sobre a presença de algum valor positivo em um homem mais velho [e não me vendo colocado neste lugar, na conjuntura transferencial da ocasião], ele elogia o pai de uma ex-namorada que o ajudara a "ficar no eixo, por um tempo". Isso o fez me contar do quanto seu pai ficava largado, tantas vezes bêbado em frente à sua casa, e sua mãe fazia discursos desconexos sobre o Apocalipse enquanto cozinhava, "temendo que o fogão e o botijão explodissem". Que fora expulso da Assembleia de Deus publicamente, como não é raro ocorrer diante de certas faltas dos membros daquela congregação. De como fora humilhado no exército, por trapalhadas relativas a seu modo de apresentação [uniforme, "falta de compostura", barba mal-feita, horário], sendo também expulso de lá. Vejo a moça louca como uma parte internalizada da voz que azucrina a jornada do jovem com falas quase ininteligíveis [como sua mãe recitava trechos do Apocalipse, trazendo a iminência da hecatombe para tão perto do filho e dela: ali mesmo, no fogão]. E os símbolos progridem [ou "giram"], à medida que a terapia avança e que uma vida de "vergonha e humilhação pública" surge à tona, ao meu olhar que co-testemunha cada lance inóspito ou "cabuloso" [segundo seus próprios termos], ao lado das encruzilhadas e donas de bocas: o local dos proscritos [tal qual o pai na sarjeta, ou a mãe em solilóquios paranóico-religiosos]. O reconhecimento de cada uma dessas nuances permite ao rapaz avançar, e muito, em seu "percurso" e em seu "fôlego legítimo" [não mais aquele emprestado da cocaína...].

Nêmesis impõe a Narciso o sofrimento de apaixonar-se pela própria imagem". Qual foi o métron [a justa medida do humano] que o "herói" violou? Quando alguém se vê confinado a poucos metros quadrados existenciais desde a infância, a tentativa de sair do círculo soará como "roubo de espaço" ou saque, nos moldes dos saques e rapinagens do povo eleito a caminho da Terra Prometida. Pode haver culpa, ufanismo, uma labilidade entre ambos [ao modo de Jeová], um sentimento de distância em relação ao próprio destino ["confisco de autoridade", "alienação", "humilhação pública e vergonha"], nostalgia ["por aquilo que poderia ter sido": "inserção em casa, na igreja, no exército, no banco, no apoio do pai de uma antiga namorada...", ou na droga e na companhia de outros proscritos], ressentimento/raiva ["por não ter sido como poderia"], etc, etc. Mas todos esses sentimentos partem desta distância: "Ser-Imagem", "Ser-Saber que é Visto com Justiça desde Cedo". A criança, originariamente, não violou o métron: teve seu métron [ou "justa medida"] invadido, exposto e ridicularizado, ambientalmente [as falas apocalípticas da mãe eram assustadoras; as chacotas sobre o pai incapaz de se posicionar eram esmagadoras; as expulsões ritualísticas, tanto da igreja quanto do exército marcam, "cerimoniosamente" sua não-inscrição nos espaços oficiais; isso é "ridicularização pública"; "tiraram comigo grandão", dizia o jovem]. A justiça das distâncias [Nêmesis] parece se opor àquela que permitiria a assunção da própria voz, a consolidação de uma imagem clara de si mesmo [nos vínculos primários], um senso razoavelmente "incorporado" de foco, meta, finalidade. Lembremo-nos: "O Exílio gera devaneios. Mas o Exílio em si mesmo não é um devaneio". Pois bem, a tal justiça incorporada, que viabilizaria uma razoável auto-regulação [o "atribuir pesos ao fiel de uma balança fidedigna", que não a balança da droga que anestesia...] seria Themis, na mitologia grega, um desdobramento evolutivo da punitiva e arbitrária Nêmesis. Um "giro" ou "avanço" na imagem daquela. Esta justiça não está disponível no arcabouço biográfico do sujeito, mas se deixa entrever em seu arcabouço imaginal, alinhavado na transferência e no trabalho de elaboração simbólica. Assim, ele sai daquele patamar, para alcançar um outro. A balança de peso da compra de drogas é um parco simulacro da pesagem de consciência que Themis epitomiza.

Aqui, no caso sumariamente apresentado, há questões edipianas, claramente visíveis [afinal, "pai e mãe sempre falarão ao fundo do quintal de nossas casas psíquicas", isso é inevitável.. .]. Mas a coloração da dor e da queixa é narcísica. Num contexto assim, quando o "ser" e o "senso de justiça" é "marcado pelas distâncias" [todas aquelas a que aludi acima], não há auto-regulação possível. Não há "equilíbrio narcísico da auto-imagem" ["ideal de ego", planos claros, focos, metas, proposições de médio prazo]; há adicções ["fôlegos falsos que viabilizam a tomada de empréstimo de algum sentimento de vitalidade e/ou pertença" – mesmo que seja "pertença ritualística entre excluídos"], há pulsões a serviço da consolidação de fronteiras egóicas ["exponho-me ao perigo para me sentir vivo", "converso com os bêbados da madrugada, para fazer do bar a minha casa"], ou coisas que tais. Isso equivale a dizer: Themis não está presente. Mesmo a sexualidade está a serviço de "tentar manter aparentemente coesas as frágeis fronteiras do self" [o de "sentir-se inteiro" e /ou "sentir-se sendo real, pegando carona no prazer para isso"]. 

Eis a descrição sumária de alguns pacientes narcísicos, que espero ser ilustrativa de algumas de suas peculiaridades. Todos os que trabalham com clínica sabem das dificuldades inerentes à exposição casuística demasiado detalhada de analisandos, uma vez que devemos preservá-los de qualquer identificação mais precisa, sob risco de quebrarmos a regra do sigilo. Por isso mesmo, eu me dou por satisfeito sumarizando ao leitor mais atento as pistas suficientes para a apreensão do essencial do que aqui pretendo expor.

No capítulo anterior, servi-me de Álvaro Ancona de Faria, e vale a pena repetir algo do que ele diz. O borderline [estes dois últimos pacientes são francamente borderlines] procura o anonimato. Ele não quer chamar a atenção para si [quão distante é a ferida narcísica profunda do "auto-exibicionismo" dos Big Brothers da Vida]. Vou transcrever aqui alguns de seus parágrafos, para que o leitor não precise voltar àquele capítulo:

"[...] o que vemos é um estado de privação afetiva permanente, onde a negligência em relação aos cuidados requeridos pela criança é o que está presente de modo mais significativo, por vezes acompanhada até de uma certa crueldade.

Como representação na experiência subjetiva destes indivíduos de todos estes fenômenos poderíamos usar o termo incontinência [itálico do autor]. Os pais ou cuidadores deste paciente não puderam dar continência às dificuldades pelas quais passou este indivíduo; do mesmo modo tampouco.

A sensação que o indivíduo tem, a partir daí, é que deve permanecer o mais desapercebido possível, pois tudo que vem dele causa problemas: se por um lado suas dificuldades não geram empatia em seus pais, trazendo como resposta algo como "não me traga mais problemas que já os tenho bastante", por outro lado parece que suas qualidades ou sucesso trazem aos pais uma inveja destrutiva.

O indivíduo aprende então que não deve fazer revelações de si mesmo, e que fazê-las traz só desapontamento e dor (Charlton, 1988). Constrói uma forte convicção de que as pessoas não são seguras e que estão interessadas somente nas próprias gratificações (Silk, 1995). Conclui que elas não são fidedignas, não podem ajudar e são inconsistentes, gerando uma expectativa de não confiança no outro (Livesley, 2000).

O mundo parece ser um lugar aterrorizador. A experiência que ele ofereceu para estes indivíduos é de vivência e proximidade exclusivamente com o numinoso negativo. [...]" (p. 36-38, op. cit.)

Pois bem: o indivíduo precisa confiar muito para fazer revelações sobre si mesmo [nada semelhante ao exibicionismo dos perversos, contando vantagens ou fetiches, ad nauseam]; afinal, mal ou bem, ele encontrou no anonimato um polo de "relativa segurança" à ridicularização pública e incredulidade aos conteúdos [ou "confissões"] que gostaria de comunicar. Ele perdeu a confiança no Olho Alheio.

Temos, assim, de desimantá-lo, deste Outro Olho, Solitário e Demoníaco, que passa a vigiá-lo como uma segunda natureza [parasita e interna] que o impede de ser "ele mesmo", de ser "espontâneo", sentindo-se vivo e real.





O Espelho e a Porta Lateral








No último capítulo deste ensaio e no epílogo, pretendo alinhavar questões que possam ter ficado um tanto "soltas", "pendentes" ou "insuficientemente esclarecidas" nos capítulos que antecedem a este, derradeiro. Qual a natureza das questões que julgo carecerem de maior explicação neste momento? Basicamente são de dois gêneros: 1) as questões levantadas no próprio corpo do trabalho, por falas de autores que contestei [as assertivas clínico-teóricas desses autores, dos quais discordo] e que julgo dever explicitar, com maior riqueza de detalhes, o porquê desta discordância; 2) as questões suscitadas pela "falas incompletas de meus próprios analisandos, e pela incompletude de minhas próprias falas a respeito deles". 

Vamos a tais questões, para início de conversa.

O sujeito apreende o céu amplo [claro ou escuro], antes de designar e nomear as "constelações do céu noturno". A questão da amplitude que se impõe ao "descobrir o céu sobre si" engolfa o sujeito e precede toda possibilidade de "sub-apreensões mais localizadas no conjunto amplo deste céu esmagador" ou "muito acima do humano" [em termos de dimensões, amplitudes, "natureza intrínseca"], como prefiram nomear esta grandeza. Qualquer rastreamento antropológico das noções humanas [por mitologia comparada, filologia, ou outra] confirmará que "a apreensão do todo como todo-ainda-não-diferenciado" [um todo que co-move o ser inteiro em sua própria 'recepção perceptiva' ou 'percepção receptiva' deste] precede a possibilidade de esquadrinhamento das partes deste todo e da explicitação das interações dos elementos internos deste todo, entendidos como co-participantes e constitutivos do mesmo". Que o leitor leia e releia tal frase para prosseguirmos. Isso se dá na história humana, como se dá na história de cada indivíduo, a partir da primeiríssima infância.

Assim como o céu sobre a cabeça [claro ou escuro] precede o entendimento da lua e do sol e subsequente nomeação das constelações, "campos de afetação" mais genéricos [faces humanas amistosas ou inamistosas, "halos de perigo ou conforto" –incluindo os cheiros alusivos a este conforto, para ficarmos em dois exemplos apenas], precedem, na vivência psicológica do bebê, a percepção de cores isoladas ou a nomeação delas. O termo "campo de afetação" foi proposto por Marisa Schargel Maia, em trabalho por mim já citado no corpo deste ensaio [Extremos da Alma: Dor e Trauma na Atualidade e Clínica Psicanalitica, Rio de Janeiro: Faperj-Garamond, 2003]. 

Em termos mais icônicos, diríamos a respeito dos exemplos dados acima: "No princípio era a Exclamação" [sim: a Interjeição antes do Verbo]. Um "oh!" inarticulado [inominado] frente ao grande céu ou frente à chegada de um rosto amistoso ou inamistoso, da instauração de um "ambiente de conforto ou perigo, familiaridade ou não-familiaridade, acolhimento ou susto [dentre inúmeras outras possibilidades passíveis de serem concebidas ] ao olhar do homem histórico [enquanto espécie] e a cada indivíduo histórico enquanto sujeito. No princípio é a interjeição para ambos. ["oh!", "Eis!", "Uau!", "Nossa!"].

Essa interjeição tem colorações interrogativas, no mais das vezes, podendo, logo em seguida, abdicar dessa interrogação. Por exemplo, ela pode assumir tal cifra: !? ou esta ?! ["O que?!", "Como?!"; "Como pode?!"]. A interjeição pode arrastar um quantum e um tônus indagativo [?] no seio da imersão perceptivo-exclamativa na qual o sujeito se vê "abismado". "Há uma indagação no rastro da exclamação de quem se depara com a grandeza celestial pela primeira vez". A ampla escuridão celeste com seus pontinhos luminosos pode aglutinar a indagação segundo vetores específicos que visam organizar estes pontinhos luminosos [localização, trajetória-fixidez, posições correlativas de uns em relação aos outros]. Da mesma maneira, o "halo da presença da mãe" carrega consigo elementos que passam a ser agregáveis em conjuntos significativos, após a descoberta dos grandes halos ["amistosa", "zangada", "acolhedora", "perigosa"]. A 'consciência puntiforme da exclamação' precede 'a consciência narrativa das sintaxes', ainda que prepare [como, de fato, prepara] o chão [o solo vivencial-epistêmico] para tal desdobramento ulterior. Este desdobramento narrativo parte: 1) de uma possibilidade indagativa não-mais-congelada pelo espanto [assuma este espanto qualidades as mais variadas, quais sejam: de terror, embevecimento, "olhar admirado", fascínio, "pura surpresa" ou tantas outras; 2) da curiosidade nascida deste "quantum e deste tônus já domesticados" [por assimilação e repetição]. Do puro espanto congelado não pode advir desdobramento algum: só catatonia.

Assim: há exclamações que petrificam e congelam, inviabilizando o desdobramento lógico narrativo. Estamos aqui diante do "espanto puro", ou "da face conelada" [e para sempre petrificada] do olhar que se defronta com a Górgona. [Um análogon disso seria o congelamento da mulher de Lot em estátua de sal].

Assim sendo, em circunstâncias muito esmagadoras, não há a evolução do céu amplo para a leitura dos movimentos estelares ou planetários, nem para a nomeação do sol, da lua e dos circuitos planetários envolvidos em nosso âmbito de observação terrestre. Da mesma maneira, pode não haver desdobramento natural [friso o termo 'natural'] na percepção da mãe presente em seus detalhes constitutivos. Esse movimento natural seria exploratório, investigativo, dado pela "vontade de saber" e pela "curiosidade amorosa", e não pela espera pelo ulterior descongelamento do pasmo puro ou do terror. Essa segunda exloração seria defensiva: por acuamento e necessidade de auto-proteção, e não por curiosidade amorosa.

O encontro primeiro, interjeitivo, "absorve o sujeito no objeto", imerge o sujeito no objeto. Não há díade, mas fusão por co-participação ["a grandeza vista evoca em mim sensações proprioceptivas, intenções percebidas cineticamente –movimentos virtuais de intenção: aproximação ou afastamento, por exemplo]. Da mesma maneira que pode um sujeito, andando pela calçada, testemunhar um motoboy cair da moto e se arrastar por trinta metros pelo chão, "ralando-se contra o asfalto". Este sujeito-que-assitiu-a-tudo pode sentir a queda [em alguma medida, claro] pela "repercussão de suas 'reações corporais ao visto'". Podemos co-participar deste "esfolamento do motoboy no asfalto", como podemos, por exemplo, co-participar, igualmente, da vertigem de um alpinista desavisado que estancou em sua escalada e que, portanto, tem medo de subir ou descer da escarpa montanhosa para a qual se viu pequeno e inepto demais. Os exemplos poderiam ser inúmeros e, por isso mesmo, limito-me a estes dois, aduzindo, no entanto,apenas mais um, justamente por ser demasiado corriqueiro e verificável: qualquer adulto que leve uma criança ao teatro infantil, verá suas reações motoras de apreensão, susto, vontade de ajudar, "vontade de prevenir um personagem de algum perigo ou aproximação indesejada" [do monstro ou vilão em relação ao mocinho ou mocinha, por exemplo] e isso é um dado da realidade comprovável. A reação motora frente à situação vista é uma realidade humana, modulada e minimizada ao longo de nosso percurso de desenvolvimento. Porém, carregamos esta possibilidade de "co-participação pré-verbal a situações externas a nós" ao longo de toda a vida. Parte dessa possibilidade é chamada de "identificação projetiva" pela escola psicanalítica kleiniana ["eu me identifico com o outro, projetando-me na circunstância-situação dele, ou na imagem que ele me apresenta em certo contexto"] e isso é apenas parte do que está envolvido em toda relação humana [como meio expressivo], parte esta maximizada pelas circunstâncias do trabalho analítico [setting, conjunturas específicas de tempo-espaço e outros dados que "emolduram tal tarefa-trabalho de modo a viabilizar em ambos os envolvidos a auscultação destes mecanismos arcaicos presentes em todos nós"]. Se o leitor já viu um queimado num hospital, se já viu a troca de curativos de um queimado, com a dor e cuidado implicados neste procedmento, se já flagrou em si mesmo tal "percepção de dor" [manifestada em vivências corporais bem distribuídas que podem, inclusive, transbordar para uma face de dor com-doída], sabe exatamente do que estou falando.

Isaias Melsohn, em seu trabalho "Psicanálise em Nova Chave" [alusão mais-que-explícita ao "Filosofia em Nova Chave", de Susanne Langer, uma vez que ambos são neokantianos e discípulos de Ernst Cassirer], apresenta vários exemplos desta "vivência primeira", desta "consciência puntiforme", onde o sujeito deixa de se perceber enquanto tal [deixa de existir fenomenologicamente para si mesmo] e "imerge na percepção de um objeto para a qual [=percepção-de-objeto] se sente raptado". Ele frisa que essa presença atuante [nos meus exemplos: o céu esmagador, "o todo-escuro-estrelado imenso ou o todo-claro imenso acima de tudo", "o ambiente amistoso antes da designação de suas nuances particulares e constitutivas", etc] precede a representatividade das partes que a constituem [=que constituem a presença]. E também precede a distinção clara de sujeito-objeto. O sujeito é arebatado pelo objeto ou "no objeto". As colocações piscanalíticas nada ortodoxas de Isaias Melsohn fazem-no rever todo o estatuto da imagem em Freud, o estatuto da representação da imagem e a metapsicologia derivada daquilo que ele considera equívocos de avaliação decorrentes destas definições insustentáveis a partir de observações fenomenológicas bem embasadas de como as coisas de dão, e cita extensa literatura, baseada, sobretudo, em Merleau-Ponty [Fenomenologia da Percepção], em Ernst Cassirer [principalmente nos três volumes de sua obra magna, Filosofia da Forma Simbólica], em Max Scheler [sobretudo em Natureza e Formas da Simpatia], além de sua inpiradora mais direta, Susanne Langer [sobretudo em sua obra magna, Mind: an Essays on Human Fellings, também em 3 volumes, obra inconclusa pela progressiva cegueira e limitações decorrentes da idade, que inviabilizaram o pleno acabamento da obra; tais volumes, se levados às suas implicações últimas, constituiriam, para Melsohn, na coroação completa de uma "teoria do conhecimento" como esboçada nas obras anteriores da autora]. Kant, naturalmente, espreita por detrás de todo este referencial elencado, pois que se trata, fundamentalmente, de "fenomenologia neokantiana" [ou pós-kantiana, a levar Kant em consideração, de um modo ou de outro]. Também, o autor leva em conta as percepções motoras implicadas na percepçã das cores e dos sons [dos elementos ponderais presentes nas intenções motoras desssas recepções sonoro-imagéticas, "no movimento virtual" implicado na recepção das qualidades que tais percepções aportam em si mesmas quando "imergem temporariamente o receptor em sua manifestação-presença"], como se dá em Goethe [em seu estudo das cores], em Kandinsky [idem] , e nos experimentos sinestésicos que confluem som-cor, empreendidos por Heinz Werner [e citados por Merleau-Ponty] demonstrando, dentre dezenas de ouras coisas, que o som grave [de um violoncelo ou diapasão, por exemplo] faz com que qualquer receptor perceba um tom mais "carregado" no azul exposto, independente de sua tonalidade autônoma. Assim, som-e-imagem se confluem e co-participam de uma experiência sinestésica-de-base, "confluída", que tem a qualidade do tal "campo de afetação primitivo" por mim aludido, na primeiríssima etapa do desenvolvimento do bebê, mas que pode ser "redesperta" ou "reevocada" mais tarde, via auscultação diferenciada na relação transferencial, via experimentação controlada de estados alterados de consciência [como os estados hipnagógicos], ou por uso de mescalina, por exemplo, sendo esta uma das drogas que trariam acesso a essa camada mais primitiva, mais "confluída" e menos diferenciada-representacional da percepção, onde as coisas se manifestariam "junto": em totalidades significativas pré-respresentacionais" e "pré-sintaxe".

Há implicações interessantes na abordagem de Isaias Melsohn, e que se desdobram em consequências clínicas, dentre as quais citarei duas delas: 

1) Este estado de fusão sujeito-objeto, de consciência puntiforme, de presença autêntica pré-representativa, é o mesmo que Melanie Klein designou como vivência [ou posição] esquizoide, após 1930. Melsohn frisa que não está de acordo com o qualificativo "paranóide" implicado nesta vivência puntiforme, já que enxerga aí muitas possibilidades de vivências subjetivas distantes do sentimento de perseguição. Embevecimento, admiração, co-divinização sem perseguição, surpresa encantada, privilégio agradecido, seriam apenas alguns dos exemplos que eu aduzo à crítica de Melsohn à noção de Melanie Klein. 

2) A segunda objeção de Melsohn decorrente de sua leitura neokantiana da percepção são que "os símbolos manifestos na clínica [sonhos, devaneios, imagens surgidas no processo transferencial] não são uma segunda camada simbólica a ocultar conteúdos reprimidos e recalcados; mas, ao contrário, constituem a forma expressiva mais genuína que o inconsciente se utiliza para apresentar essa faixas mais basilar de percepção".

Ambas as conclusões são muito interessantes, e a elas eu convirjo por caminhos inteiramente distintos dos de Melsohn, entendendo com clareza o caminho que ele mesmo fez. Senão, vejamos:

1) Já descrevi a descoberta do estágio esquizoide, traduzido literalmente nestes termos, por Ronald Fairbairn, antes da Srª Klein, e por ela adaptado em "esquizoparanoide", com a ajuda de Herbert Alexander Rosenfeld, para "rebater à altura a provocação de Ronald Fairbairn". Assim sendo, concordo plenamente com a constatação de Isaias Melsohn, utilizando-me de Fairbairn e de Charles Sanders Peirce, que define a "percepção em primeiridade" [equivalente percepcional à função gramatical da interjeição], como a vivência basilar de nossos modelos de interação com os objetos, ou de vivência sujeito-objetal [ou de "sujeito-confluído-no-objeto"; naturalmente que estou trazendo os insights de pensadores não-analistas para um vocabulário analítico, o idioleto próprio que desenvolvi ao longo deste ensaio].

Assim, partindo de um outro psicanalista que não Melanie Klein [o escocês Ronald Fairbairn], mal-escutado por ela, e pelo pai da semiótica, chego às mesmíssimas conclusões clínicas ["heréticas à ortodoxia"] a que chegou Isaias Melsohn, partindo este, no entanto, dos referenciais neokantianos já aludidos acima. Repito: conheço os referenciais dele, mas cheguei às minhas conclusões [bastante próximas às dele, ou análogas] por caminho bem distinto ao por ele percorrido.

2) A segunda implicação importante em sua conclusão, de que os "símbolos não escondem representantes recalcados e disfarçados no inconsciente ou pelo inconsciente" tornam a leitura da "emergência do simbólico" na relação transferencial-contratransferencial exatamente como Jung a definiu pela primeira vez, quando já desligado do patronato freudiano. Os símbolos não ocultam nada, mas são a melhor expressão possível de um qualis, de um tônus e de um quantum pré-representável sintaticamente, um "Algo antes da Narração". Jung, que sempre se considerou um fenomenólogo [e, jamais, um "filósofo" ou "teólogo"], e que sempre levou Kant em consideração [bem como o Idealismo Alemão como desdobramento neokantiano], estava familiarizado com esta experiência de "encontro de imersão na interjeição pura, dado para o sujeito-no-objeto e com o objeto" a partir das narrativas de Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939) e daquilo que este chamou de "participação mística", perfeitamente detectável na maneira primitiva "primitiva" [=arcaica] dos povos viverem sua dimensão simbólica.

Assim sendo, Jung também conheceu esta "consciência puntiforme" e esta "imersão do sujeito no objeto" [ou indistinção de ambos, nesta modalidade de encontro], não em Cassirer, nem em Melanie Klein, nem em Peirce, mas em Lévy-Bruhl. Esta descoberta se fez acompanhar da impressiva leitura que Jung fizera também de Rudolf Otto, cuja obra, publicada em 1917, Das Heilige ["O Sagrado" ou "O Numinoso"] permitiu a Jung uma apreensão dos tons dessa vivência que eu chamei de "vivência interjeitiva" [ou de vivência "em primeiridade", segundo a nomenclatura de Peirce] em clave maiúscula: "Sagrada", abarcando este Sacrum tanto o bem como o Mal. Jung passou, reiteradamente, a chamar a isso que estamos descrevendo de "vivência do Numinoso" ou "vivência numinosa", a partir da leitura de Rudolf Otto, um teólogo e estudioso de mitologia comparada. Qualquer leitor minimamente familiarizado com a obra e com as cartas de Jung sabe como o conceito de Otto foi crucial para "Jung tentar se fazer entender" em muitas de suas noções "não-freudianas".

Esses meus dois comentários revelam o quanto, nessas conclusões específicas, Isaias Melsohn "se aproxima de Jung sem o saber". E é muito natural que ele nem suspeitasse disso, visto seu percurso ser bem específico, e visto que a leitura de Jung não é incentivada nos cursos de formação kleinianos ou freudianos. Por esta mesma razão, para citar mais um exemplo, muita gente nem sonha que o termo Imago [a imagem de um objeto tal qual aparece ao sujeito em seu inconsciente] é um termo cunhado por Jung, em 1911 , em CW 5 [Collected Works, volume 5: "Símbolos da Transformação", anteriormente publicado com o título de "Transformações e Símbolos da Libido", livro que marca a autonomia intelectual de Jung em relação a seu antigo "preceptor", Sigmund Freud], e posteriormente incorporado à psicanálise, seja ela freudiana ou kleiniana. Essas e muitas outras coisas os psicanalistas desconhecem, aglutinados em seus feudos e desinteressados em examinar a fundo "o que Jung disse de fato".

A partir da colocação dessas poucas premissas de base, pretendo avançar no raciocínio clínico que expus a partir de minha própria experiência com os analisandos já citados. 

Falei no capítulo anterior da "avidez do analisando esquizoide ou borderline em nos oferecer o máximo de dados para a reconstituição [e digestão] de sua história". Serei mais preciso na explanação disso, do modo que só me é possível agora, após tudo o que já apresentei, neste capítulo e naqueles que o antecederam. A explicitação é esta: "O paciente nos mostra a soma de eventos e episódios de que padeceu para que visualizemos e entendamos [inclusive pelos mecanismos proprioceptivos e de "recepção corporal", além de imagética] o quale [a qualidade específica], o tônus [a tonalidade específica], o quantum [a intensidade específica] de sua situação infantil. Se entendermos o 'som do mar ao fundo' [todos estes aspectos globais à sua vivência], se entendermos o "halo geral da infância do analisando" [ou, servindo-me de minha própria metáfora: sua visão primária do céu e do ambiente primário, a coloração dos "campos de afetação" que ele experienciou em seus ambientes-de-origem, seus ambientes (de)formadores], o paciente para de nos trazer relíquias, guardados, fotos, diários, etc. "Se entendemos o mar que bramia ao fundo de sua história, o paciente não precisa mais nos trazer sua coleção de conchinhas e para de fazê-lo". Aliás, ele só se esmera em nos trazer tantas conchinhas, porque precisa de que identifiquemos a praia ruidosa onde ele cresceu. 

Minha experiência demonstra que, essa disposição do paciente [deste tipo de paciente!] em "empilhar fatos e relatos diante de nossos olhos, nada tem de "colecionismo" ou de "defensivo". Na verdade, o paciente quer "companhia para o halo interjeitivo que o acossou desde a infância e que vem habitando sozinho desde então". Eis a demanda por detrás de tantas supostas "reiterações". Elas deixam de existir [as tais "reiterações", "pilhas de dados", supostos "colecionismos causísticos" e "diversionistas"] uma vez que a demanda seja atendida: o quale, o tônus e o quantum do halo peculiar [interjeitivo] que envolveu o paciente, desde os ambientes primários.

Podemos, só agora, dar uma resposta mais completa a uma pergunta que Nicole Berry "nos fez" e que não pudemos lhe responder com a amplitude e meticulosidade necessárias no capítulo XV deste ensaio: "Jó Ou: E daí?!". Vamos responder-lhe agora, então. Nicole Berry mostra uma preocupação comum a muitos analistas bem intencionados. Diz ela, conforme se pode ler também no capítulo já acima aludido:

"Winnicott foi o [analista] que esteve [que foi, penso haver uma inadequação na tradução; o itálico é meu] mais longe na exigência de reconstrução [reconstrução dos fatos e vivências do ambiente primário no contexto da relação transferencial analítica], fazendo corresponder, termo a termo, uma capacidade psíquica a uma vivência genética:
- holding [suporte ambiental] e integração de si;
- handling [manejo ambiental] e personalização; 
- apresentação do objeto e relação com o objeto.

Tal concepção faz da criança a vítima por demais passiva do seu meio. Só resta ao psicanalista take care [tomar conta] com uma confiança toda britânica." [p. 206] [Os itálicos são da autora, as observações entre colchetes são minhas].

Nicole Berry, na leitura que faz de Winnicott, está reavaliando a pertinência ou necessidade do analista fazer uma "reconstrução histórica minuciosa, passo a passo, de cada falha de manejo ou suporte do ambiente, em relação às formações psicopatológicas [ou "estilo de vida e doença"] do paciente". Quero tranquilizar Nicole Berry. Ainda que entenda que a leitura literal de Winnicott sugira realmente isso, quero alertar a analista que "não, não precisamos reconstituir cada falha de manejo e suporte ambientais para que a demanda do paciente seja atendida e que ele possa sair do congelamento a que está preso". Nada disso. "Basta que lhe façamos companhia no 'halo que ele habitara até então sozinho', e esse halo sofrerá a alteração de nossas inscrição nele". Peço ao leitor que releia esta passagem tantas vezes quantas forem necessárias para apreender-lhe as muitas nuances.

Basta que façamos companhia ao paciente-analisando no halo [nas interjeições paralisantes e sem "nomeações justificáveis ou plausíveis"] que ele habitara sozinho até então; e nossa mera inscrição imaginal [não "imaginária"] neste halo ["provando que o apreendemos com fidedignidade"] fará com que tal halo sofra modificação. O céu visto a dois [ou o rugido do mar, ouvido a dois] deixará de ser tão opressivo, a partir dessa nova ocupação por um olho-afeto-testemunha, ao lado do olho solitário do ferido. [Do Mártir, segundo a etimologia grega que já vimos].

Para cada afirmação que farei em minhas conclusões finais, darei exemplos clínicos, o que obrigará o leitor a voltar a capítulos anteriores e recapitular [avançando, no entanto...] aquilo que já foi dito alhures. Se já voltamos ao capítulo XV para ampliarmos nossa conversa com Nicole Berry, é hora de percorrermos o capítulo III, lá atrás: "Tempo Fechado para o Ferido Narcísico". Tempo fechado tem a ver [ou a haver] com Halo.

A moça tem uma crise de pânico na rua. Olhar-se no espelho e confirma a estranheza no olhar para si ["quem olha o que?"]. Seu pai já não está vivo. No aniversário da mãe sente-se sozinha, e procura "resguardo" da companhia ruidosa dos convidados [da mãe] em seu antigo quarto, onde vivera por muitos anos. A luz queima. Cai uma tempestade lá fora [dificultando que pensasse em pegar o carro e sair, por exemplo]. Situação de "não-alternativa". Ao ver uma foto de seus familiares reunidos em sua infância [incluindo seu falecido pai], ali remanescente no seu quarto de infância e adolescência, desaba a chorar pela infância vivida em anonimato. O choro pela criança sozinha que fora, de repente, se transforma no choro da criança sozinha ali, debruçada sobre si mesma, ouvindo-se dizer o que, agora se lembrava [ao dizer, e por dizer] ter dito muitas vezes: "Eu quero morrer, eu quero morrer". Repito: o choro pela criança se transforma no choro da criança que ali também está, mas sem ninguém.

O paciente de James Grotstein lhe perguntou: "Como aquelas pessoas [os pais dele, paciente] puderam ter filhos? Por que eu nasci?"

A minha paciente me perguntou: "Quem fará companhia àquela criança, se ela nunca teve uma?!"

Perguntas candentes. Perguntas narcísicas.

Aqui, de nada importa pensar em Deméter-Perséfone [o choro pela jovem transformando-se no choro da jovem "raptada pelo escuro"]. Pode servir como um "emblema" que me surge, assim como no caso da "tiazona" que prende o paciente no sonho do capítulo anterior, num abraço-ameaça, dizendo-lhe: "você tem uma encruzilhada dentro de você", de nada adianta eu pensar em Hécate, a não ser do mesmo modo: como um "emblema". Jamais falo [falaria ou falarei] de Deméter, Perséfone ou Hécate para um ou para outra; jamais farei "amplificações míticas citando o próprio mito". Jamais. Uso a percepção de bastidor destes emblemas para facilitar o desdobramento narrrativo do paciente em seus próprios termos [não falaria de Narciso, Édipo ou qualquer figura mitológica a nenhum paciente de nenhum perfil psicopatológico, a não ser que ele mesmo a trouxesse com seu próprio nome, nos termos do próprio mito] e, nisto, já mostro que o uso do mito não precisa [nem deve] ser tão literal quanto se imagina. Chamo a este uso literal do mito de "leitura pietista" [ou devota] da mitologia. Há muitos junguianos pietistas, como há freudianos e kleinianos que adoram citar o Édipo textualmente, ou em "paráfrases".

Após algum tempo, essa mesma paciente, cujo falecido pai também a presenteara com uma substanciosa quota de "E daís?" [vide capítulo III], acabou por me dizer o seguinte: "Quando saio da sessão levo alguma coisa sua comigo; seu olhar viu a criança; como ela não é de todo desconhecida agora, eu farei companhia a ela, porque você já a visitou um pouco; pelo menos alguém já sabe seu nome e lhe deu um abraço". 

Quem faria companhia àquela menina de outrora? Ela mesma! [Deméter faria companhia a Perséfone, ao menos episodicamente].

Os irmãos que citei no capítulo XV, chegaram até mim encaminhados pelo Conselho Tutelar [situação de risco, de ameaças de agiotas à família, através de denúncia anônima], bem como a família da menina do capítulo XVI [a Testemunha de Jeová; o Conselho Tutelar a encaminhou acionado pela escola, uma vez que a menina corria o risco de uma dupla repetência por faltas não-justificadas clinicamente às aulas de educação física –vide o capítulo citado]. Pois bem: quando uma criança chega até mim, pode "levar-me consigo", em alguma medida, de várias maneiras. O mesmo se dá com a "criança no adulto". Posso dar caixas com giz de cera para as crianças. Fiz isso com os dois irmãos filhos do jogador compulsivo endividado, pedindo-lhes para que desenhassem os cômodos de seu apartamento, pintando com alguma cor cada um deles. Com o giz de cera, "eu estava lá com eles" [Cifra: o tal "objeto transicional" de Winnicott]. E mais, por meio das caixas de giz e papéis, cada qual me trouxe a "sua casa". Pelas cores e desenhos, "vi" como cada um definia ambientes onde gostavam de estar, "um cômodo acidentalmente trancado" [sem porta ou entrada] onde "certo parente era isolado" ["quem isolou quem onde"], cores secundárias que me mostravam interjogos entre cômodos e situações aparentemente estanques, etc, etc, etc. Uma das crianças quis desenhar pai e mãe. Vi o tamanho relativo de cada um, os sapatos da mãe virados [ambos os pés] na direção contrária à posição do pai ["de fuga, de estar indo embora"]. Enfim, eu me pus ao lado deles, e estive na casa deles, através do presente que lhes dei. E eles "viram que eu vi" algo da casa deles, pela pertinência das interpretações-comentários que fiz em relação aos desenhos de cada um ["você trancou seu pai no banheiro"; "você e seu irmão gostam de estar juntos no lugar y, mas não em muitos outros, talvez porque lá esteja a televisão; então, vocês assistem coisas juntos, mas preferem fazer outras coisas sozinhos"; etc, etc, etc]. Essa conjugação de ir-e-vir no manejo do objeto transicional, somada ao silêncio e suspensão do diálogo que obrigam os analisandos a prosseguirem o diálogo comigo "em off", inter-sessões, internalizando-o [e internalizando-me, por tabela], são alguns dos vetores que emolduram a configuração da relação transferencial.

Num diálogo social, se um adulto sai de cena "querendo dizer certas coisas para o interlocutor" [não-analista], as quais não teve tempo de dizer [ou oportunidade], ele liga o celular e complementa: xinga, chora, diz que se "sentiu assim, ou assado". Na situação analítica, o sujeito não só internaliza tal diálogo como "observa as metamorfoses daquilo que ele pretendera dizer lá e então, percebendo que muito do que quisera ter dito não dizia respeito especificamente àquela situação, mas a muitas outras que tomara como análogas àquela, e que, desta forma, estava a se repetir colocando o analista em posições análogas a daqueles outros em circunstâncias não-idênticas". E por aí vai. Neste "escutar escutando-se e revendo-se [rememorando-se] no escutar-se" [diálogo com o analista internalizado, inter-sessões] temos a contraparte daquilo que o analista faz na sessão, contratransferencialmente: ele põe em palavras o que sua contratransferência elaborada aciona e alinhava; e, a partir disso [dessa intervenção-interpretação pós-elaboração da contra-transferência], cada "vivência discreta" se mostra articulada com outros momentos supostamente "isolados" [esquizoides, interjeitivos] que o paciente-analisando trouxe ao longo do percurso analítico. Assim se recostura um situar-se perante si mesmo e o outro. Isso é mitopoiesis, mais do que "reconstrução".

O sujeito do capítulo anterior, que fora punido por ter tido hepatite, "preventivamente", não podendo desfrutar de sua recuperação junto às crianças de sua idade, mas tendo de acompanhar seu pai ao escritório, todos os dias, para lá estudar "e não se acostumar com a moleza" [provocada pela doença...], etc, etc [vide capítulo anterior], certa vez me traz duas coisas para a sessão, aparentemente desconexas do que já me dissera. A primeira, foi uma impressão que ele teve num almoço de família, onde presenciou uma conversa de seu pai com um de seus irmãos [=do pai], um de seus tios. Seu tio falava, rindo e fazendo piada, de algumas reminiscências com o filho mais novo, na época já com vinte anos. Contava de episódios de quando o menino tinha três, quatro anos. De algumas respostas perspicazes que dera ao pai. Uma delas fora: "Você diz isso pra mim porque você é grande, mas eu vou ficar grande um dia também, e você vai continuar do mesmo tamanho". O pai do paciente, visivelmente sem assunto [ou "deslocado", como disse o próprio para mim, na sessão] fizera o seguinte comentário: "Engraçado, eu não lembro de quase nada da infância dos meus filhos; a memória mais nítida que eu tenho, talvez a única agora, é de eu explicando matemática para o J. [o caçula], acho que na sexta série dele. Ele já devia ter doze anos, então". Ao ouvir isso, o paciente sentiu pena de seu pai. O tio ficou "surpreso", mas não explicitamente "penalizado". O paciente achava muito "curioso" ["engraçado", neste único sentido], mas também muito "desalentador", que tivesse sido assim a vivência do pai quanto à própria paternidade: alienada, embora de corpo presente.

Eu disse a ele: "É como se seu pai, em grande medida, estivesse funcionando 'no automático'. Como você mesmo me disse que funcionou no 'automático' no período da faculdade, sem se lembrar dos professores, colegas, festas, etc; fazendo as provas sem guardar as datas das mesmas, e até perdendo a rematrícula por esquecimento ou desligamento dos prazos". Essa colocação [não vou chamá-la de "interpretação"] calou fundo no paciente, que disse um "coitado", em relação ao próprio pai, até então somente visto como algoz. "Ele devia ter estado tão auto-absorvido [sic] como se tivesse num transe". Ouvi em silêncio esta colocação dele. Mas ele me sentiu ali, ouvindo-a.

Em outra ocasião, este mesmo paciente me trouxe um sonho, onde, perto de seu antigo colégio, numa passagem secreta lateral ao colégio, havia uma gruta, onde um ancião de nome Urik fazia experimentos com radiação. Soubera ele, a despeito do "segredo que se fazia em torno de sua existência e atividades", que aquele senhor reduzira certa radiação de uma pessoa, de "x unidades de radiação a x/3 unidades de radiação" [na verdade: "de 45 unidades de radiação para 15 unidades de radiação"].

Enquanto ele fala, eu penso em Ur, como lugar longínquo, berço da civilização. Na partícula alemã [no prefixo] Ur, reforçando a ideia de ancestralidade. O arquétipo também é o Urtyp de Goethe. Mas nada falo sobre isso ao paciente. 

Em vez disso, digo a ele: "Lembro-me de você usando a metáfora de seu pai ser 'como um radiologista' [friso: não é a profissão do pai do paciente], obrigando o sujeito a sentar, com a máquina apontada para seu olho, para tirar-lhe uma radiografia do pé, o que soa puro contra-senso. Você se esforçou por me mostrar em detalhes o ambiente de contra-senso instaurado pela autoridade mal orientada, no caso a do teu pai. Você o fez em vários momentos, apontando várias circunstâncias para me mostrar um padrão cujo efeito é cumulativo. A radiação tem efeito cumulativo. O que você está me contando neste sonho, e contando para si mesmo, é que sua própria metáfora pode ser desdobrada numa narrativa mais completa, e ela é mais ou menos esta: o efeito cumulativo da radiação não pode ser anulado, mas pode ser minimizado ou "dividido em certa fração"". No seu sonho, isso parece ser algo pouco sabido das pessoas, e mesmo ignorado por você: uma espécie de conhecimento lateral àquilo que você mesmo já tinha consciência e me apresentara antes, como uma porta ao lado e uma porta a mais, para um novo lugar, daquilo que, antes, você já conseguira expressar, tanto para mim, quanto para si mesmo. O personagem da porta lateral mereceu até um nome e um perfil mítico, de tão incatalogável que ele aparece no sonho: sem idade passível de cálculo ou estimativa, quase-atemporal, com nome sui generis, com moradia ou lugar de experimentação sui generis [à prova de radiação, supostamente] uma figura tal que fez você prestar atenção a ela". 

[De grande eficácia por sua "hábil construção dramática", diria eu, agora].

Isso é um arquétipo, reitero eu, aqui. Ou uma "Imago nimbada por coloração arquetípica", o que dá no mesmo. Isso não é o "pai" do paciente: isso é uma "compensação ao pai".

James Grotstein conta os sonhos que o impressionaram, no capítulo I do livro que citei ao longo de todo este trabalho. O capítulo I é intitulado: "A Inefável Natureza do Sonhador". James Grotstein argumenta que o sonhador que produz o sonho é tão inefável, tão maior do que o ego que experimenta o sonho, que devemos considerá-lo mais sábio do que o ego vígil [e mesmo do que o ego onírico: "o sonhador que experimenta o sonho"]. Conta o autor um sonho onde, um professor seu lhe ensina uma manobra médica, depois dele apresentá-la equivocadamente, numa espécie de prova. No sonho, há duas coisas: a apresentação de um erro dramatizado pelo sonhador-personagem e a correção deste erro pelo personagem sonhado que "supre a ignorância do ego-sonhador no sonho". James Grotstein se deslumbra com o engenho do sonho. "Como é que eu posso tão meticulosamente não saber e saber ao mesmo tempo, uma coisa que me é apresentada com tantas nuances de erro e acerto?". É assim que James Grotstein se sente ao refletir sobre este sonho, logo ao acordar.

Freud dizia que o "sonho é a manifestação [disfarçada] de um desejo; a realização de um desejo, enfim". Fairbairn dizia que o sonho é um "retrato psíquico do sonhador, tal como o inconsciente o enxerga, sendo os personagens 'partes constitutivas desse self' que sonha e se apresenta a si mesmo".

Jung dizia que o "sonho [e o inconsciente] é um reservatório de imagens e possibilidades [hauridas das percepções subliminares, de forças instintivas traduzidas em imagens, da propriocepção "imaginalizada"] que compensam [ou complementam] a visão unilateral [ou menos abrangente] do ego ou do self de vigília".

Eu, de minha parte, penso que o sonho: 1) espelha as conjunturas do paciente [apresenta-o para si mesmo, com nuances novas, subliminares, com visão periférica, propriocepção e tudo o mais]; e que 2) a partir dessa apresentação enriquecida, o inconsciente acaba por complementar os dados da consciência, "compensando-os" [compensando parte de sua restritividade"]. Assim, o desejo freudiano realizado no sonho seria apenas "um dos casos subsumidos na ideia mais ampla de compensação ou complementação do inconsciente frente à consciência". A elucidação dramatizada [como no caso do sonho de James Grotstein] seria, também, uma das modalidades de "complementação". Mas ali temos: 1) a representação dramática de uma pergunta, seguida por 2) a explicitação cênica da resposta.

O paciente que usava cocaína e que buscou terapia na iminência de ser despedido do banco onde trabalhava, disse-me, a certa altura da análise, estar incomodado ao encontrar alguns de seus parceiros de droga, "fora dos rituais onde usavam a coisa juntos". Que eles lhe falavam coisas que ele não se lembrava, que algumas delas lhe pareciam pura doideira [vide mulher louca correndo atrás do paciente, numa maratona com pasta de executivo, no sonho citado no capítulo XV], que "o que diziam que ele mesmo fizera não fazia sentido", e lhe incomodava a tal "amnésia". Ele parecia se desconhecer nestes relatos. E seu incômodo era mais pela distância de si mesmo [como se lembrava de si, ou deixava de se lembrar] do que por "vergonha", uma vez que ali todos achavam "normal o que rolava". Não era o julgamento deles sobre o fato, mas o fato de não conseguir se reconhecer no relato que faziam dele, e do que diziam ser ele. Pelo menos, do que diziam ser ele também. Além disso, incomodava ao paciente que, após uso prolongado da droga, ele entrasse numa padaria pra comer "quatro x-tudo em seguida, um atrás do outro, que nem um troglodita", depois de ter ficado quase 48 horas sem comer, e que era o tipo da coisa que ele não escolheria comer normalmente". 

Há algo de muito fecundo na estranheza e no asco deste paciente. Senão vejamos:

Ele me disse que o incomodava "não reconhecer falas a ele aludidas em encontros fora dos rituais de uso comum"; no entanto, lá atrás, ele havia dito que "conversar com os bêbados do bar e outras pessoas [em "ritual de comunhão adictiva": o termo é meu] funcionava de maneira tal a [ou "cumpria a função de"] 'fazê-lo se sentir em casa'". Daí eu lhe fiz a seguinte colocação, sob a forma de pergunta:

"Ao se ver como um estranho para si mesmo, quanto às falas e à comida: o que comer, quando, com que modos comer [vide a mãe cozinhando para o filho murmurando temores apocalípticos relacionados ao fogão, no capítulo anterior], você se sentiu como se sentia em casa, ou achou um lar melhor do que aquele?"

Sua reação, depois de parar um pouco para "digerir" minha pergunta, foi: "Porra! Eu estou encontrando a mesma merda! Pareço um pouco com meu pai caído e um pouco com minha mãe cozinhando sem saber o que direito. Só que eu não cozinho, eu como. Que merda."

Isso lhe trouxe certo senso de repetição que lhe fez ver que "'o ritual' [ele assumiu pra si a palavra] de imaginar-se em família com outros viciados parecia-lhe, agora, tão insano quanto a Igreja que ocupara e sua expulsão dela, assim como o Exército que ocupara e sua expulsão dele[!]". [As palavras são minhas, sobretudo o uso do pretérito mais-que-perfeito, mas o raciocínio é todo dele!].

Devo dizer que o salto do paciente da questão de sentir-se em casa, a partir de minha menção do "ritual" e a sua ponte com outras casas das quais fora expulso [igreja e exército, onde "estava e deixou de estar"] foi notável. E me fez dizer-lhe só estas palavras:

"Eram lugares nos quais você esteve sem estar; era um estranho ali, embora os ritos de admissão. Houve, depois, os ritos de expulsão. Quais seriam os ritos de expulsão desta nova família que você está tentando construir, não tão nova assim, ao que parece?"

Ele parou pra pensar. E disse, simplesmente: "A morte ou a loucura".

Fiquei em silêncio, mas olhei pra ele para aferir o peso da escolha de suas próprias palavras .

Este paciente teve um "grande sonho". O termo vem dos índios e Jung usava a expressão para se referir a "sonhos arquetípicos" de impacto duradouro na vida emocional do sonhador; assim também para os índios, sendo que aqueles também consideram "os sonhos de largo impacto para a vida da tribo-comunidade como grandes sonhos; estes últimos tidos por Xamãs, ou líderes da comunidade [que sonham por todo o grupo]".

O paciente se via de malas arrumadas para uma entrevista numa clínica. Dormia na comunidade para, no dia seguinte, ter uma visita com o tutor do lugar. Procurava esconder um "pacau" [cigarro de maconha, na sua própria terminologia] na gaveta, embaixo da toalha de banho. Um dos coordenadores do espaço olhava pra ele sem censura, mas com um olhar de quem diz: "não precisa esconder nada aqui; a gente saca tudo". No dia seguinte, diante do tutor, ele não ouviu uma palavra de instrução, nada do que poderia esperar. Mas "viu" o tal sujeito imitar-lhe gestos e posturas. Ele se impressionou com a fidedignidade dos gestos que o imitavam em detalhes que ele não imaginava tão visíveis, que "davam tanto na vista assim", alguns pareciam até bem reservados. Ele reagia a essas imitações, indo um pouco pra frente, um pouco pra trás, inclinando-se, sentindo um "frio na barriga". O tutor punha as mãos exatamente nas partes físicas que ilustravam as reações que ele estava tendo diante da própria "imitação", como quem diz [palavras dele]: "Eu não só sei como você é, como também sei como você reage ao que você é". Ao se levantar dali, depois de "uns dez minutos daquela conversa maluca" ele caminhou para outro ambiente, enquanto se via num telão andando [do tipo de telão de jogos de futebol], e compreendia emocionalmente a razão de ser de seus gestos, seu jeito de andar, seu jeito de olhar à meia altura, a posição dos ombros, e um monte de coisas mais". Sentou-se numa espécie de arena, onde adolescentes que já haviam passado pelo tutor [ajudantes] lhe diziam frases curtas, que resumiam tudo o que ele vivenciara naquele diálogo maluco com o dono do lugar. Uma das frases era: 'Não corra atrás do prazer: você terá sua quota naturalmente".

Esta última frase do sonho é bem "anti-freudiana". Bastante estranha quando se imagina que o território do sonho seja o do processo primário, onde supostamente vigeria o princípio do prazer.

Mas deixemos este pormenor de lado. Uma vez suficientemente espelhado [na relação terapêutica, no diálogo transferencial], tenho visto alguns feridos narcísicos [friso: "feridos narcísicos", não todo tipo de paciente] terem sonhos com Imagos tais que "compensam sua antiga falta de espelho", como a lhes mostrar um "super-espelho" [um "espelho de máxima precisão e fidedignidade"]. Como se fossem vistos [pelo próprio Inconsciente!] pelo verso e pelo avesso, e isso lhes tira, de muito, daquela sensação tão opressiva de "solidão ontológica". O sentimento é mais ou menos assim: "Algo em mim [uma parte de mim] me conhece tão bem que sempre fez companhia a mim mesmo". Místico? Nem tanto. A eficácia desta Imago não pode ser subestimada. Jung não a catalogou em seu elenco de Imagos. Eu a chamo de "O Portador do Espelho".

"O Portador do Espelho" não precisa carregar espelhos. Veja o curto exemplo a seguir. Alguém com extrema sensação de banimento, proscrição, vergonha e sentimentos de inferioridade [sentimentos estes típicos do ferido narcísico] teme fazer uma exposição oral na faculdade onde está para concluir o terceiro ano. Sonha com um homem que ele admirava muito, um antropólogo [e, aqui, tal pessoa tem um rosto: Darcy Ribeiro], deitada em seu sofá da sala. Ao vê-lo, o antropólogo [o personagem onírico, Darcy Ribeiro] lhe convida para ir à rua, e leva consigo uma corda. Pede para que ele [sonhador] lhe esclareça certas histórias relativas ao bairro. Ao tentar fazê-lo [o paciente, no sonho], o personagem [Darcy Ribeiro] usa da corda para ilustra pra ele "a pouca amplitude" e "o encolhimento de seus gestos" durante a tentativa de exposição. E dá umas boas risadas. Depois lhe diz: "Se você usar mais a extensão da corda, as pessoas vão te ouvir com mais atenção". O sonhador intuía que isso tinha a ver com movimentação fluida [espontaneidade corporal], expressividade, bem como com "o alcance da voz".

Bem, se fôssemos "formalistas", poderíamos tomar tal personagem onírico como um "Portador do Fio" [figura que eu apresentei e defini no capítulo VI deste ensaio]. Mas não. Pela dinâmica e pela função que o objeto-corda apresenta para o sonhador na atuação dramática da interação do ego onírico com o personagem onírico, não há a menor dúvida que se trata de uma Imago pertencente a este gênero [categoria] que eu convencionei chamar de "Portador do Espelho". 

Narro, agora, a sessão com uma moça que tivera uma infância tão dura quanto os feridos acima apresentados, e sofrera um acidente automobilístico aos dezesseis anos. Acidente este que lhe deixara com o rosto cheio de cicatrizes. A moça já fizera um certo número de cirurgias para atenuar as marcas [oito], mas não se sentia satisfeita com o resultado. O pós-operatório era-lhe muito sofrido [faixas, comer de canudinho, dores, curativos frequentes], além do que ela estava experimentando cefaleias fortes e outros problemas supostamente decorrentes da sucessão de anestesias gerais num espaço de tempo relativamente curto, segundo a avaliação de dois médicos que ela consultara [não serei eu a julgar pertinente ou não o diagnóstico de tais médicos; não tenho lastro para opinar].

Ao mesmo tempo, em discussões com a família, sobre este e outros temas, a jovem experimentava pequenas sensações de despersonalização e desrealização, sentindo o ambiente em torno "quase impalpável", uma certa tontura, alguma dificuldade de sentir o rosto e os lábios, além de formigamentos no tronco. Todo este quadro era psíquico, e ainda que assemelhado à velha e boa histeria [mais velha do que boa...], considero-o dentro do contexto de despersonalização e desrealização deste ensaio: portanto, no contexto das "patologias do self insuficientemente coeso".

Em sessão, pedi à moça que sentisse partes de seu corpo: diferenças de temperatura nas mãos, que sentisse os lábios, o rosto, de olhos fechados, e que exploraríamos imaginalmente quaisquer reações corporais que surgissem: proprioceptivas, cinético-virtuais - estar caindo, estar inchando, etc, etc. Depois de leves formigamentos em torno da boca, a jovem sentiu-se confortável em se fixar na garganta. Pedi que ela "se instalasse ali, então, imaginalmente; visse como era estar ali". Depois do tempo que lhe foi confortável para tal "coagulação de imagem de si e do ambiente", a jovem se viu numa escada íngreme, de pedra, com limo, olhando para um lago artificial. Como não pudesse se aproximar muito, dada a pouca possibilidade de não escorregar se o fizesse, suas cicatrizes pareciam difusas, atenuadas, quase ausentes, pela relativa distância que o contexto [=limo e inclinação do solo] lhe impunha(m). Ela estava confortável com o próprio rosto, tal como se lhe afigurava na paisagem imaginal, à meia distância. Pedi-lhe que dissesse para si mesma parte das coisas que tentara dizer à família em sua última discussão, quando surgiram os tais sintomas de esboroamento de suas fronteiras. E ao fazê-lo, ela olhava para si mesma, vendo a expressão de seu próprio rosto ao dizê-lo. A luz ambiente também mudava conforme cada tonalidade emocional experienciada por ela, por um mecanismo arquitetônico que regulava a incidência do sol e da luz, tanto pelo teto quanto pelas laterais do ambiente. "Isso foi projetado por um arquiteto", me disse ela. Eu lhe perguntei: "Onde ele está?" Ela me disse: "Atrás de mim, alguns degraus acima, vendo-me me ver e reagir às mudanças de luz e de expressão no meu próprio rosto, mas não posso me virar pra trás, por causa do limo. Tenho medo de escoregar e interromper tudo". Ao sair deste estado hipnagógico [ou de "imaginação ativa", segundo Jung, mas muito mais assemelhado às trocas de canais propostas por Arnold Mindell], a jovem já tinha uma resolução em relação às cirurgias: já bastava. Não faria nenhuma mais. E no que diz respeito às conversas familiares, não teve mais os sintomas "somáticos" que experienciara. Estava bastante mais assertiva neste aspecto também. Parecia-lhe que alguém enxergara seu esforço de estar bem consigo e de expressar-se adequadamente "a partir de dentro dela mesma".

A esta Imago, análoga às anteriores, também devo considerar com um legítimo "Portador do Espelho".

Devo dizer que sou muito econômico no uso da imaginação ativa ou "trocas de canais" [da propriocepção à imagem interna, por exemplo] na clínica. Em mais de vinte e um anos de profissão, vali-me deste recurso cerca de cinco vezes. No entanto, fica o resgistro, mais para ilustrar a especificidade da Imago do que a do processo para acessá-la. Em sonhos normais, suas variantes já surgiram mais de uma dúzia e meia de vezes.

Há uma grande pecha de misticismo dada a junguianos, pós-junguianos e assemelhados. Assim sendo, escolho concluir o último capítulo deste ensaio apresentando o outro sonho de Grotstein que tanto o impressionou, no mesmo capítulo I de sua obra, bem como o sonho "ultra-místico" de um paciente dele [que fecha a obra!], definindo as coordenadas deste paciente segundo os próprios critérios de seu analista, Grotstein. Faço-o para que o leitor possa sair desta leitura desfrutando do tipo de pensamento mais místico que hoje se encontra entre analistas: o de James Grotstein, como pós-bioniano ousa trabalhar com os conceitos do Bion da útima fase, com suas noções de O [Verdade Última, Realidade Última] e com as ideias correlatas a este conceito-limite. Raríssimos pós-junguianos se atreveriam a ir tão longe.

Vamos aos sonhos propostos por James Grotstein na obra mais citada ao longo de todo este ensaio "Quem é o Sonhador que Sonha o Sonho: Um Estudo de Presenças Psíquicas". 

O primeiro sonho parece simples. James Grotstein está num brejo. A paisagem é escocesa. Há nevoeiro. Do alto de um monte, além pântano, um anjo pergunta: "Onde está James Grotstein?" O nevoeiro se dissipa um pouco. Do alto de um promontório, outro anjo diz: "Ele está lá em cima, medindo a dosagem de dor da Terra".

Eis o sonho. Quem mede os sofrimentos do mundo lembra Kanzeon, Kannon, Avalokiteshvara, a Imago Budista que "escuta e atende a todos os clamores do Mundo". Esta é uma imagem bastante "inflada", se a tomarmos ao pé da letra. James Grotstein está numa posição acima dos anjos que falam sobre ele.

O segundo sonho é muito mais difícil, e muito mais ousado. O paciente faz algumas colocações [associações sobre o sonho] e o comentário final de James Grotstein pode parecer desconcertante, sobretudo para aqueles que imaginam que "Jung é o místico!". Não. James Grotstein é muito mais radical. O sonho está na página 400 do texto de Grotstein. Não irei resumi-lo, como tenho feito comumente, usando minhas próprias palavras. Ele precisa ser transcrito.

"Eu estava num teatro ou estúdio distante com mostradores a laser. Havia ouras pessoas lá, e havia também pessoal dos efeitos especiais guardando seus aparelhos. E então as pessoas começaram lentamente a desaparecer, um por um – ou eu pensei que elas estivessem, mas então elas pareceram reaparecer diferentemente. Então tive um monólogo comigo mesmo no sonho, no qual eu disse: 'Somos todos escoras e somos todos guardados no fim da peça – ou nós os guardamos -, até que as ilusão seja necessária de novo. Não se espera que seres humanos saibam disso. Só Deus sabe. Nada é real. Nós não somos reais. Nós somos retirados para a recorrência da ilusão e guardados de novo posteriormente. No sonho eu senti que perceber isso é raro, ou pode mesmo ser perigoso para um ser humano".

Meu primeiro comentário é o seguinte: este é um sonho tipicamente Vedanta, a escola de filosofia indiana baseada nos Upanishads, a última parte dos vedas. É um sonho místico até a medula dos ossos. Um discípulo indiano ou um estudante a meio caminho do samadhi ["êxtase beatífico"] poderia tê-lo tido, por influência cultural, mas o sujeito em questão nada sabia disso. James Grotstein diz que o sujeito é um escritor e poeta brilhante, terrivelmente ignorado por seus pais e ambientes primários por sua sensibilidade, "falta de jeito" [!] e "excentricidade" [eis um "ferido narcísico clássico"!].

Como nosso amigo supracitado não é um estudioso praticante do Vedanta, nem um Swami ["Senhor de Si Mesmo", na nomenclatura do Vedanta], vamos às associações livres [algumas delas] do rapaz a respeito deste sonho tão radical.

"Isto não era conhecimento para um ser humano ter. É como se a vida fosse um jogo no qual deixamos o jogo gerar as emoções da vida. [Existe um conceito hindu para este jogo sagrado: Lila; comentário meu]. Deus estava ame dando uma visão desta consciência. Talvez haja gente que esteja morrendo para saber disso. [Alguns estão meditando; observação minha, mais uma vez]. [...] Talvez as pessoas percebam isso somente quando estão morrendo. Morte é a armazenagem desta verdade. Estou aprendendo isso porque estou perto da morte. Estou perto de morrer? Ou estou pegando este conhecimento a fim de me manter são e não ir além da beirada?"

Há mais uma página com associações do rapaz, menos genéricas e mais contextualizadas em sua história factual, mas, ao mesmo tempo, mais profundas do que estas perguntas iniciais.

Reproduzo as palavras finais de James Grotstein sobre tal paciente:

"Deixo a discussão deste caso neste ponto, com a certeza, para o leitor, de que o analisando é, na minha opinião, não-psicótico. Acredito que ele está perto de ser o que Bion nomeou místico. A epifania deste sonho e suas associações subsequentes insinuam que ele podia conter o 'pensamento messiânico' - sobre "O" [Já defini "O" como Verdade Última]. Em outras palavras, ele, em minha opinião, tocou a posição transcendente " [posição que James Grotstein define "além da posição depressiva, transcendendo-a"].

Vamos "amplificar" os significados de "O", circum-ambular em torno de 'O'. No segundo parágrafo da página 377, Grotstein faz um inventário de termos que permitam alguma aproximação a este conceito-limite. Diz ele:

"Outras associações com "O" incluem Verdade Absoluta (bem e mal), realidade Última, Infinito, [...] coisas-em-si, númena [os Numes inter-relacionados, a coleção deles], Formas Eternas ou Ideais de Platão, a Divindade, [...] o domínio do inefável e inescrutável [...]. "O" é a quintessência do Ser no contexto do Acontecer inevitável. Também sugere a noção mística cristã antiga da 'nuvem do Desconhecer'".

Eis James Grotstein.

No epílogo, faço minhas considerações finais, e volto um pouco a isso.








Epílogo e Contraponto: A Bola no Fundo da Quadra







Resolvi arrematar este trabalho com um relato diferencial de atendimento a um analisando com "traços perversos", para que se possa confrontá-lo com os atendimentos citados acima, sobretudo no que diz respeito à relação analítica [processos transferencial e contratransferencial]. Um perverso é um belo contraponto.

Um paciente me procurou porque sua atual esposa lhe cobrava que ele assumisse seu relacionamento como pai com dois filhos de uma relação anterior. Esta esposa acabara de ser mãe, e se sentia incomodada com o descaso do atual parceiro com os frutos de sua antiga relação. Se ele se recusava a ser um pai para seus dois primeiros filhos, não serviria para assumir aquele que acabaram de ter juntos. Era esse o raciocínio da esposa. E por causa disso, o analisando me procurou.

Como outro paciente já citado [ainda menino, no capítulo XV], este rapaz crescera num ambiente de "apostas". Seu pai era viciado em pôquer e corridas de cavalos. Também era um grande investidor imobiliário. Ele, desde a infância, era levado ao jóquei para assistir às corridas, junto com seu pai. Devemos dizer que o patrimônio do pai nunca fora comprometido por tais apostas [nada de dívidas com agiotas, por exemplo] e que ele era razoavelmente bem sucedido em todas as áreas em que se atreveu a apostar. O paciente vira o pai, muitas vezes, "se dar bem no jogo". Também vira o pai perder, às vezes, como seria de se esperar. Os percalços eventuais relativos a esta vida incluíram algumas mudanças de residência, ao longo da infância e adolescência do analisando. Mudanças "longe da penúria", frise-se. De uma "boa" casa para uma "piorzinha", desta última para uma "melhor do que aquela que fora melhor", e por aí vai. Mudanças de residência que mantinham um padrão médio bastante bom, mas oscilando conforme a temporada de ganhos do pai. 

O meu analisando era um empresário muitíssimo bem sucedido, com posses diferenciadas: carros, bens imóveis, aplicações. Dizia-me, no início da terapia, que sua mulher o alertara para que "eu não soubesse o quanto ele ganhava, para que não aumentasse o preço das sessões" [sic]. Era um esportista que, frequentemente, me falava de seu desempenho em clubes respeitados, no tocante a torneios de tênis amador dos quais participava. Muitas de suas falas eram reiterações de suas proezas, como costuma ocorrer com "narcisistas perversos", e por isso mesmo faço questão de diferenciá-los dos esquizoides e borderlines já apresentados acima. 

Tal paciente também lucrava no mercado imobiliário, apesar de seu ramo empresarial ser outro. Comprava imóveis a preço venal de pessoas desesperadas e endividadas [viúvas, pessoas que haviam perdido a saúde e o emprego, e precisavam vender seus bens com urgência], para lucrar enormemente com a revenda destes bens. Achava seu comportamento "estritamente ético", porque sempre raciocinava em termos de "legalidade formal", como se vê, aliás, no raciocínio advocatício corrente. Ele não era advogado, mas sabia advogar em causa própria com imperturbabilidade notável. Fleugma ou cinismo, como queira o leitor.

Seu traço perverso também ficava claro nas brigas que tinha com a atual esposa, quando costumava dormir após provocar o choro daquela. O choro dela embalava seu sono. 

A certa altura, ouvindo-o narrar um sonho muitíssimo minucioso, o qual me permito omitir aqui, sobre sua primeira mulher, eu lhe disse que ela era ali depreciada como uma "fada madrinha má". O paciente estancou frente à minha colocação. Disse que tal expressão, literalmente, já lhe havia sido pronunciada por um amigo próximo, e me perguntou "se eu era alguma espécie de vidente" (sic). Eu disse claramente que não, que apenas aquilo estava implícito nos termos de seu sonho. Recém-saído de seu estupor-causado-pela-surpresa [a coincidência de designação terminológica, por mim e por um de seus amigos], o paciente voltou a falar sobre o que diziam de sua mulher: como ele tivera coragem de "colocar seu pênis ali, numa mulher tão feia" e expressões muitíssimo mais chulas do que esta livre adaptação que estou fazendo dos termos por ele usados. De fato, ele a humilhava em vários âmbitos [sobretudo físicos, mas também intelectuais] nos comentários que aduzia ao relato do sonho. Ao lado disso, manteve seu "pasmo" frente à designação que eu dei à sua visão daquela antiga companheira: a "fada madrinha má". O exato reverso da fada madrinha. Como eu cheguei a repetir exatamente a fala de um amigo próximo, que tão melhor o conhecia? Para ele, isso soava como "puro absurdo". 

Sendo o paciente um bom tenista amador, trouxe-me o seguinte comentário, poucas sessões depois de minha intervenção: "Tenho visitado meus filhos [um menino e uma menina; o menino com cerca de oito anos, à época]. Sonhei que subia no elevador até seu consultório com o menino. Olhávamos no espelho [do elevador]. Eu lhe dizia: 'Quando você crescer, você vai ganhar do Marcelo no tênis'". 

Eis aí um espelho. Outro espelho. Pai e filho estão diante dele. O paciente profetiza que "o filho ganhará de mim no tênis" [esporte que ele sabe que eu não pratico]. 

Minha intervenção foi a seguinte: "Parece que você considera que eu 'rebato bem' suas bolas. A leitura de seus sonhos são alguns destes games. Talvez tenha ficado impressionado com alguma bola que eu tenha colocado no 'fundo da quadra', nessas ocasiões. Torce para que seu filho não tenha a mesma deficiência de jogo neste fundamento que você, enquanto pai, parece experimentar, tomando-me como 'adversário'".

Isso mesmo. Eu era um adversário respeitado, mas um adversário. No caso, sentimentos como "rivalidade, inveja, voracidade" estavam todos ali, presentificados na transferência, havendo, no entanto, uma boa canalização dos insights decorrentes dos mesmos [ou dessa "disputa"] para a retomada da visita aos filhos, acrescida da renegociação com a ex-mulher a este respeito. Ele percebeu suas virtudes de mãe, inclusive pelo olhar e falas dos filhos. Reconheceu que ambos estavam sendo "muito bem educados por ela". Frisou o "muito", inclusive. Deixou de usar expressões chulas a respeito da mesma, porque não mais correspondiam à sua nova percepção, à sua verdade emocional sobre o lugar dela em sua história, agora ressignificado. 

Passou as ver os filhos, e a conversar com a ex, com regularidade. Sua atual esposa parecia feliz com a mudança de postura. Contou-me do prazer recente de fazer reuniões em sua empresa, delegando a coordenação dos diálogos a bons mediadores ["parceiros de jogo", diria eu, no contexto], em vez de centralizar tudo. Interessava-lhe mais a "dinâmica de grupos", entregue a especialistas em relações humanas e "gestores de pessoal". Passou a ouvir mais aos seus funcionários, com maior qualidade de atenção. Os detalhes de certas expressões, por exemplo. "Simples designações podem ser eloquentes."

Trazia sonhos nos quais visitava antigas casas onde havia morado [muitas delas vendidas pelo pai, neste jogo de perde-e-ganha que fora a vida de investimentos e apostas daquele]. Até que um destes sonhos lhe chamou a atenção. Costumeiramente, as casas revisitadas em sonho estavam sem móveis [a situação clássica do "prestes a partir"]. Seu avô materno, "um homem muito grande, corpulento e pesado", sofrera um derrame recentemente. Sua visão ficara comprometida, além dos movimentos. No sonho em questão [um "grande sonho"], o analisando carregava este avô materno sobre os ombros, num corredor extenso que parecia "conjugar muitos dos caminhos de muitas das casas por ele habitadas" [e mais: cômodos de diversas delas pareciam estar ao alcance daquele corredor], e lhe dizia: "precisamos encontrar seu pai; precisamos tirá-lo do escuro; precisamos salvar seu pai da cegueira". O paciente carregava o avô nos ombros e este, paradoxalmente [porque com pouca visão, na "realidade da vigília"], funcionava como "seus olhos à procura do pai perdido nas trevas de seu labirinto passado". Quis ter o avô materno mais perto de si. Convidou-o para passar longas temporadas em sua casa [com a atual esposa e o bebê], onde conversavam bastante. Reviu seu próprio pai através dos olhos do "sogro do pai", e ganhou ainda mais em capacidade de atenção às falas dos outros, além de ampliar seu afeto e carinho pelo avô. Sua relação com o pai melhorou, bem como sua capacidade de empatia em geral.

Aqui está uma breve vinheta clínica de parte do atendimento de um paciente perverso [que também teve o narcisismo ferido mas, simultaneamente, "premiado" em seu peculiar padrão de desenvolvimento emocional], para que o leitor possa cotejar o que aqui está sendo apresentado com aquilo que já o foi nos demais capítulos deste ensaio. As repetições do perverso [suas falas repetitivas, de auto-congratulação ou depreciação de terceiros] são interrompidas e ganham outro rumo, se [e quando] o analista interpreta cirurgicamente um conteúdo nevrálgico, uma imagem onírica, o intertexto daquilo que ele quer reiterar como "troféu"; enfim, a perspectiva muda se [e quando] o analista "rebate bem a bola lançada pelo paciente" [talvez "o saque potente do paciente"], muitas vezes no "fundo de sua quadra" [num lugar que ele, paciente, não poderia alcançar, nem pudera imaginar localizável]. Essa é uma ilustração singela de como o bom uso da rivalidade na relação transferencial pode resultar em bons frutos clínicos, e na interrupção da assim chamada "ladainha" ou das supostas "falas sem fim dos narcisistas em geral". Aliás, é um erro crasso ler a coisa toda nesta clave [que achata demais as nuances em jogo], uma vez que a "fala triunfalista" em questão é bem diversa da insistência do borderline ou do esquizoide em trazer mais material ao analista, com o fito de ser "minimamente legível e decifrável", como já vimos em capítulos anteriores. 
Com este ligeiro contraponto, reitero o estatuto da imagem diferenciada ["o Ícone Totêmico de filho-avô conjugados procurando pelo pai-genro na escuridão labiríntica do Hades"] como participando de uma tonalidade tipicamente junguiana de trabalho, sem o apego ao pietismo de comparações mítico-narrativas literais ["em que mito tradicional isso aparece?"; pouco importa] e sem, tampouco, deixar de lado as vivências transferenciais tão caras aos psicanalistas clássicos. Ademais, sem a preocupação formalista-devota de "caçar as Imagos [ou arquétipos] tais como descritos e elencados pelo próprio Jung, tantas vezes entronizado como 'Pater Pneumatikós' pelos que aspiram a um dublê de guru que os guie no neo-panteón por ele explicitado: Persona, Sombra, Anima, Animus, Grande Mãe, Velho Sábio, etc. Não sou um devoto, como já deixei bastante claro desde o Prólogo deste texto [o leitor que desconheça minha posição, bastante avessa ao devocionário junguiano, é convidado a ler atentamente as observações que ali faço]. Que não se trate, portanto, imagem alguma como "peça de panteão" ou "relíquia sagrada". São lampejos no tecido vivo da psique: fulgurações que podem reverberar, em grau variado, no quadro geral [conceptual-emocional] que se tem das coisas. Isso para aqueles que experimentam a irrupção ou emergência de tais imagens. Não se pretende que elas "reconfigurem o olhar de qualquer observador externo à própria vivência". Por isso, o analista faz parte de uma "díade": ele é parte da equação no diálogo analítico. Ele também é transformado ou elucidado no processo e pelo processo. Que se entenda com clareza: tais imagens não são "troféus" ou "objetos numa exibição". São vetores: eixos invisíveis de (re)construção do(s) psiquismo(s) que as experimenta(m) emergindo em dado contexto dialogal-analítico. O arcabouço conceitual junguiano não é uma "Escritura" [sic], como não se deveria confundir qualquer construção epistêmico-analítica com a de "Texto Sagrado". As pistas advindas da escola junguiana [e pós-junguiana], sejam elas apreendidas sob um vértice fenomenológico, antropológico, histórico-comparativo, "neo-alquímico" ou metapsicológico [dentre tantos outros possíveis], constituem apenas [pura e simplesmente] matéria-prima para elaboração crítico-artesanal por parte de cada analista praticante. Nada mais do que isso. E assim como apresentei o conceito de individuação como um "conceito-limite", o mesmo faço em relação ao "O" de Bion: é bom para demarcar distâncias [uma aspiração da Coisa-em-Falta, sempre incompleta e paulatinamente preenchida], jamais para definir "consecuções". Acho interessante a relativa confluência das aspirações de Totalidade em Jung e Bion, cada qual a seu modo, mas relativizo ambas, por razões análogas.
Pois bem. Há um ano, conversando com uma amiga a respeito da publicação deste ensaio em formato de blog, e sabedora, ela, do fato dele, manuscrito, em sua confecção original se constituir de um punhado de seiscentas páginas, perguntou-me do "porquê do meu empenho em enxugá-lo para menos de um terço daquele volume". Na época, eu lhe dei uma explicação, e hoje ela é ainda mais clara para mim mesmo. O objetivo do ensaio tornara-se minimalista em relação ao diário de registros que lhe dava lastro e de cuja guarda era eu o único responsável, sem a necessidade de qualquer co-testemunha. Não mais. A somatória de exemplos de sonhos vívidos e "impactantes", além da crueza de alguns casos clínicos mais extremos [no sentido da descrição mais milimétrica e pormenorizada de impiedade e sofrimento correlacionados], implicariam no risco de "uso sedutor de material simbólico-factual", o que é avesso à reflexão que me proponho a suscitar. O excesso de figuras impactantes costuma causar "desconforto" naqueles que nunca se depararam com elas, seja na própria vida onírica ou na clínica que exercem. E eu acho normal e esperado tal desconforto. A premissa básica de qualquer trabalho terapêutico, para mim, é desmontar círculos imantatórios ou encantatórios. Restrinjo-me, assim, ao material aqui coligido: qualquer acréscimo, nesta conjuntura e dentro desta proposta, só traria mais matizes ao que já foi exposto ao longo desses capítulos. E muita cor pode atrapalhar o foco. Recomendo ao leitor que volte aos capítulo V e XI, "Quase-Presença" e "A Questão Narcísica da Irrealidade", como peças-chave na constituição deste ensaio.

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