O ônibus, a cidade e a luta: a trajetória capitalista do transporte urbano e as mobilizações populares na produção do espaço

June 24, 2017 | Autor: A. de Brito Veloso | Categoria: Public Transport, Urbanization, Public transportation, Movilidad y Transporte
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André Henrique de Brito Veloso

O ÔNIBUS, A CIDADE E A LUTA: a trajetória capitalista do transporte urbano e as mobilizações populares na produção do espaço.

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Geografia. Área de concentração: Organização do espaço Linha de pesquisa: Produção, organização e gestão do espaço.

Orientador: Laschefski

Prof.

Dr.

Klemens

Augustinus

Coorientadora: Profa. Dra. Rita de Cássia Lucena Velloso

Belo Horizonte 2015

AGRADECIMENTOS Em diversos momentos na elaboração deste trabalho, especialmente os mais difíceis, me imaginei nesse momento de agora, escrevendo às pessoas que fizeram com que chegar aqui fosse possível. Imaginar esse momento também me fez continuar. Sei que dificilmente conseguirei falar de todos que me ajudaram, e a cada um não será possível demonstrar, por meio de palavras, a importância que tiveram para mim nessa travessia. Exerço aqui a gratidão como uma forma de reconhecimento dos outros em mim, e deles neste trabalho, de suas múltiplas vozes e vivências compartilhadas em meus sentimentos. Agradeço por tê-los conhecido, sentido e amado. Agradeço por poder partilhar da mesma época e da mesma terra em que vivemos essas vidas errantes, intensas. Agradeço à minha mãe, Sônia, e ao meu pai, José Geraldo, pelo apoio incondicional, pelo carinho e amor profundos, e por ensinar que o caminho se faz ao caminhar. À minha irmã Larissa, pela coragem e força, e pelo carinho e cuidado que não deixam nunca de me surpreender. Ao meu orientador Klemens, pelo apoio e paciência, pelas inúmeras conversas e pela escuta das minhas confusões. À minha coorientadora, Rita, pela profunda amizade e compreensão, e pelo apoio que veio de tantas formas diferentes. A meu amigo Marcelo Cintra, por todos os toques, leituras, escutas e conversas. Por ajudar a clarear um caminho que muitas vezes parecia impenetrável. À Leta e ao Marcos Fontoura, que também forneceram luzes. Àqueles que ajudaram a rastrear algumas trajetórias – ao Roberto Andrés e ao Low, pelas conversas e por mostrar que é possível fazer acontecer. Ao Igor Oliveira pelas conversas e reflexões sobre os labirintos da conjuntura. Ao Lúcio Gregori, que sempre consegue passar seu profundo conhecimento com uma simplicidade impressionante. E ao João Luiz, cujos comentários foram imprescindíveis para a versão final do texto. iv

Àqueles que partilharam o cotidiano comigo, Matheus, Jorge, Kaique e Zoe, agradeço pela paciência, camaradagem e compreensão. À Zoe agradeço ainda por ter sempre ajudado a segurar a onda, com carinho e força. Ao Bicas pelo apoio de sempre e pela ajuda imprescindível na revisão desse trabalho. Aos amigos de tantos anos e tantos percursos, à presença fundamental de cada um nos momentos de dificuldade. Em especial à Tatá e à Júlia, pelo profundo companheirismo. À Clarissa e à Camila, que apareceram na última hora, mas fizeram toda a diferença lá na EA. A todos e todas que constroem a luta do Tarifa Zero BH, por me fazer acreditar que vale a pena se entregar à labuta todo dia. Por fazer sentir que é possível e necessária a construção de um mundo livre de todas as amarras do poder, e que se vive já, agora, uma outra cidade no processo da luta. Àqueles que se aventuraram na tentativa de imaginar um socialismo com liberdade real. Em especial à Joyce, pela incrível sensibilidade e coragem, e ao Luca, pela amizade e dedicação. Por fim, e principalmente, à Letícia, minha companheira, pela presença intensa e imprescindível. Pelo profundo amor partilhado com coragem, carinho e cuidado renovados a cada gesto, a cada escuta. Por virar minha cabeça, sempre. Por ter feito essa travessia comigo. Por termos compartilhado a descoberta dos caminhos. Sem você eu não estaria aqui.

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“Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem. O esplêndido negócio insinua-se no tráfego. Multidões que o cruzam não veem. É sem cor e sem cheiro. Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul, vem na areia, no telefone, na batalha de aviões, toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.” Carlos Drummond de Andrade – Nosso Tempo (1942)

“Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada Ilude a polícia, rompe o asfalto.” Carlos Drummond de Andrade – A Flor e a Náusea (1942)

“Por uma vida sem catracas!” Movimento Passe Livre, no século XXI vi

RESUMO O transporte coletivo de passageiros pelo espaço urbano é um serviço que surge no Brasil como uma manifestação do processo de modernização das relações sociais de produção no país. Em sua longa trajetória urbana, as relações sociais e econômicas que pautam a necessidade de deslocamento nas cidades brasileiras adquirem crescente complexidade. Espaço de disputa entre diversos grupos sociais, as sucessivas configurações do sistema de transporte urbano revelam facetas tanto do processo de produção do espaço brasileiro como da consolidação das relações capitalistas no Brasil. A presente dissertação busca discutir a relação entre transporte urbano, produção do espaço e mobilização popular a partir da reconstituição da formação e trajetória do setor das empresas prestadoras de transporte por ônibus, entendendo que este é o setor mais longevo e que por mais tempo deteve a hegemonia nas determinações do sistema de transporte urbano brasileiro. Além disso, este trabalho busca identificar e debater as características das principais mobilizações populares a respeito dos transportes, dentro do contexto da urbanização brasileira, o mais amplo e rápido processo ocorrido em escala mundial no século XX. Para tanto, as cidades de Belo Horizonte e São Paulo são tomadas como os locais a partir dos quais a narrativa se desenvolve. Como metodologia, é realizado um levantamento do debate acadêmico no âmbito do transporte público e da questão urbana brasileira, por meio do qual se buscará debater as abordagens existentes e caracterizar a trajetória do setor a partir da perspectiva marxiana de reprodução ampliada do capital. Por fim, apresenta-se um estudo sobre os movimentos recentes pelo transporte e a história e contexto específicos do movimento Tarifa Zero BH entre os anos de 2013 e 2015. Espera-se assim apresentar uma contribuição na discussão das perspectivas e desafios da construção de um sistema de transporte urbano verdadeiramente controlado pela população, que possibilite a criação de relações livres e justas na cidade.

Palavras-chave: Transporte urbano. Urbanização. Movimentos sociais urbanos. História dos transportes públicos.

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Abstract

The collective transportation of passengers through urban space is a service that emerges in Brazil as an expression of the modernizing process in social productions relations in the country. In its long urban trajectory, the social and economic relations guiding the need to travel become increasingly complex. As an object of dispute between different social groups, the successive configurations of the urban transportation system reveal features regarding both the production of space and the consolidation of capitalist relations in Brazil. This thesis aims to discuss the relationship between urban transportation, production of space and popular mobilization by reconstituting the origin and path of Brazilian bus companies as an economical sector. By doing so, the thesis assumes that this is the most enduring sector and the one which has been hegemonic for the longest period of time in the dynamics of the Brazilian urban transportation system. Furthermore, this thesis seeks to identify and discuss the aspects of the main popular mobilizations regarding public transports in the context of Brazilian urbanization, the widest and fastest process of its kind to take place in the world during the 20th century. For this purpose, the cities of Belo Horizonte and São Paulo are taken here as the main location sources for narrative development. As a methodology, a survey of the debates in the areas of public transportation and the Brazilian urban question is carried out, through which the most relevant approaches of the theme are discussed. By doing so, a Marxian perspective of the expanded reproduction of capital is taken as the main approach. Finally, a study of the recent movements for public transportation as well as the history and specific context of Tarifa Zero BH in the last two years is presented. It is expected, thus, that the present thesis may contribute to the discussion on the prospects and challenges for the construction of a truly popular-controlled urban transportation system which might enable freer and fairer relations in urban space

Keywords: Urban transportation. Urbanization. Urban social movements. Public transportation history.

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LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Cartaz para Seminário "Transporte Público e Passe Livre" - organizado pelo MPL-SP.........................................................................................................................179 Figura 2 - Cartazes da "campanha não-eleitoral" da editora PISEAGRAMA espalhados pela cidade.....................................................................................................................181 Figura 3 - Panfleto da frente "Todos contra o aumento!", de fevereiro de 2011, em Belo Horizonte.......................................................................................................................183 Figura 4 - Bandeirão "Ônibus sem catraca" em manifestação do dia 22 de junho de 2013...............................................................................................................................186 Figura 5 - Logo da campanha do projeto de lei de inciativa popular por tarifa zero.....200 Figura 6 - Cartaz "Tarifa Zero é mais justo".................................................................201 Figura 7 - Cartaz "Tarifa Zero é mais saudável"...........................................................202 Figura 8 - Cartaz "Tarifa Zero é mais econômico"......................................................,.202 Figura 9 - Cartaz "Tarifa Zero é mais rápido"...............................................................203 Figura 10 - Cartaz "Tarifa Zero é mais seguro"............................................................204 Figura 11 - Cartaz "Tarifa Zero é mais riqueza"...........................................................204 Figura 12 - Cartaz dentro da estrutura publicitária de um ponto de ônibus em Belo Horizonte.......................................................................................................................207 Figura 13 - Publicação sobre a aprovação do fundo de financiamento da tarifa na IV CMPU............................................................................................................................216 Figura 14 - Chamada na internet para a MANIFESTA Junina.....................................241 Figura 15 – Anúncio de tarifa zero no carnaval............................................................244 Figura 16 - Mapa com os itinerários da Busona Sem Catracas no carnaval 2014........245 Figura 17 - Anúncio da Busona Sem Catracas para o Barreiro.....................................249 Figura 18 - Cartaz Busona sem Catraca para Contagem...............................................250 Figura 19 - Preparativos da Busona Sem Catraca para o Carnaval 2015......................251

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LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1- Variação no licenciamento anual de veículos e no transporte de passageiros por ônibus 1994-2013......................................................................................................81 Gráfico 2 – Evolução da taxa de motorização no Brasil e em 9 cidades selecionadas (2002-2014)...................................................................................................................161

x

LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Quadro resumo da inflação brasileiro (1879-2014).....................................106 Tabela 2 - Relação dos principais Quebra-quebras de transporte coletivo nas metrópoles brasileiras entre 1974 e 1981.........................................................................................135 Tabela 3 – Variação da taxa de viagens por modo/habitante em Belo Horizonte – modo e grupos selecionados (2002-2012)...............................................................................163 Tabela 4 - Sistematização de Ações Institucionais do Movimento Tarifa Zero............210 Tabela 5 - Sistematização das manifestações de rua do Movimento Tarifa Zero BH...221

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABAEM

Associação dos Barraqueiros do Entorno do Mineirão

ABES

Associação Baiana Estudantil Secundarista

ACO

Ação Católica Operária

AGP

Ação Global dos Povos

AMES-BH

Associação Metropolitana dos Estudantes Secundaristas de Belo Horizonte

Amforp

American & Foreign Power Company

ANFAVEA

Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores

ANLUT

Associação Nacional de Lutas pelo Transporte

ANPET

Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes

ANTP

Associação Nacional de Transporte Públicos

APH-BH

Assembleia Popular Horizontal de Belo Horizonte

AUTC

Associação dos Usuários de Transporte Coletivo

BHTRANS

Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte S/A

BRT

Bus Rapid Transit

CAIO Induscar

Companhia Americana e Industrial de Ônibus

CCT

Câmara de Compensação Tarifária

CDL

Câmara dos Dirigentes Lojistas

CEB

Comunidade Eclesial de Base

CEF

Caixa Econômica Federal

CEFET-MG

Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais

CEPAL

Comissão Econômica Para a América Latina

CFLMG

Companhia de Força e Luz do Estado de Minas Gerais

CGO

Custo de Gerenciamento Operacional

CIP

Conselho Interministerial de Preços

CMI

Centro de Mídia Independente

CMTC

Companhia Municipal de Transportes Coletivos de São Paulo

CNA

Confederação Nacional da Agricultura

CNC

Confederação Nacional do Comércio

CNI

Confederação Nacional da Indústria

CNT

Confederação Nacional dos Transportes

COMTAR

Conselho Municipal de Tarifas xii

COMURB

Conselho Municipal de Mobilidade Urbana

COMUT

Comitê Metropolitano dos Usuários de Transporte

COPAC

Comitê Popular dos Atingidos Pela Copa

CPI

Comissão Parlamentar de Inquérito

CRTT

Comissão Regional de Transporte e Trânsito

DBO

Departamento de Bondes e Ônibus de Belo Horizonte

DCE-UFMG

Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais

DENATRAN

Departamento Nacional de Trânsito

DER

Departamento de Estradas de Rodagem

EBTU

Empresa Brasileira de Transportes Urbanos

EMTU

Empresas Metropolitanas de Transportes Urbanos

E&Y

Empresa Ernst & Young Terco S/A

FCM

Frente Pela Cidadania Metropolitana

FDTU

Fundo de Desenvolvimento dos Transportes Urbanos .

FIAT

Fabbrica Italiana Automobili Torino

FIFA

Fédération Internationale de Football Association

FGE

Fundo Garantidor do Equilíbrio Econômico e Financeiro

FGV

Fundação Getúlio Vargas

FJP

Fundação João Pinheiro

FSM

Fórum Social Mundial

FTZ

Feministas do Tarifa Zero

GEIPOT

Grupo de Estudos para Integração da Política de Transportes

IBGE

Instituto Brasileiro de Geografia Estatística

INCC

Indíce Nacional de Preços da Construção Civil

INRETS

Institut National de Recherche sur les Transports et leur Sécurité

IPEA

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

IPK

Índice de Passageiros por Quilômetro

IPTU

Imposto Predial Territorial Urbano

ISSQN

Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza

ITDP

The Institute for Transportation and Development Policy

IV CMPU

4ª Conferência Municipal de Políticas Urbanas de Belo Horizonte

JOC

Juventude Operária Católica xiii

JR

Juventude Revolução

JRI

Juventude Revolução Independente

LER-QI

Liga Estratégica Revolucionária – Quarta Internacional

LOC

Liga Operário Camponesa

LOM

Lei Orgânica Municipal

MEPR

Movimento Estudantil Popular Revolucionário

METROBEL

Companhia de Transportes Urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte

MPL

Movimento Passe Livre

MPL-SP

Movimento Passe Livre – São Paulo

MPMG

Ministério Público do estado de Minas Gerais

MRTC

Movimentos Reivindicativos por Transporte Coletivo

NTU

Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos

OAB-MG

Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais

PACE

Projeto da Área Central

PBH

Prefeitura de Belo Horizonte

PCR

Partido Comunista Revolucionário

PDDI

Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado

PEC

Proposta de Emenda Constitucional

PIS/COFINS

Programa

de

Integração

Social/

Contribuição

para

o

Financiamento da Seguridade Social PLAMBEL

Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte

PM

Polícia Militar

PMDB

Partido do Movimento Democrático Brasileiro

POR

Partido Operário Revolucionário

PPAG

Plano Plurianual de Ação Governamental

ProBus

Programa de Organização do Transporte Público

PROGRESS

Programa Especial de Vias Expressas

PSB

Partido Socialista Brasileiro

PSOL

Partido Socialismo e Liberdade

PSTU

Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado

PT

Partido dos Trabalhadores xiv

RFF

Rede Ferroviária Federal

RMBH

Região Metropolitana de Belo Horizonte

RMRJ

Região Metropolitana do Rio de Janeiro

RMSP

Região Metropolitana de São Paulo

SENAC

Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio

SENAT

Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte

SESI

Serviço Social da Indústria

SEST

Serviço Social do Transporte

SETRA-BH

Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte

SETRANSP

Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte

SINDREDE

Sindicato dos Professores da Rede Municipal de Ensino

SINDUSCON

Sindicato das Empresas de Construção Civil do Estado de Minas

SINTRAM

Sindicato

das

Empresas

de

Transporte

de

Passageiros

Metropolitano SNTU

Sistema Nacional de Transportes Urbanos

STTR-BH

Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário de Belo Horizonte e Região Metropolitana

TICEN

Terminal de Integração do Centro

TRANSFÁCIL

Consórcio Operacional do Transporte Coletivo de Passageiros por Ônibus do Município de Belo Horizonte

TRANSMETRO

Transportes Metropolitanos

TZ-BH

Tarifa Zero – Belo Horizonte

UBES

União Brasileira de Estudantes Secundaristas

UFMG

Universidade Federal de Minas Gerais

UFRJ

Universidade Federal do Rio de Janeiro

UFSJ

Universidade Federal de São João Del Rei

UJS

União da Juventude Socialista

UNE

União Nacional dos Estudantes

VIURBS

Programa de Estruturação Viária de Belo Horizonte

xv

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 1 CAPÍTULO 1 – A TRAJETÓRIA CAPITALISTA DO ÔNIBUS NO BRASIL: acumulação, estado e empresa na conformação de um transporte urbano. ............. 8 1.1. Ônibus no espaço urbano: as características do deslocamento enquanto mercadoria e suas especificidades enquanto processo produtivo espacializado. .............................. 13 1.1.1.– O transporte coletivo por ônibus sob a ótica da microeconomia neoclássica .... 15 1.2.“Viações ilimitadas” – a perspectiva da reprodução ampliada do capital no transporte coletivo por ônibus brasileiro ........................................................................ 23 1.2.1. A reprodução ampliada do capital em seu contexto geral ................................... 23 1.2.2. Funis de demanda e oferta no espaço urbano: o transporte público na perspectiva da economia política marxista .................................................................... 27 1.2.3. Os funis invertidos da oferta de transporte público – a dinâmica do capital no setor. ............................................................................................................................... 31 a)Autoprodução .............................................................................................................. 32 b) Reprodução simples da atividade .............................................................................. 33 c) Reprodução ampliada da atividade............................................................................ 37 d) As duas últimas etapas: capitalização e expansão do serviço, concentração e simultânea diversificação do capital .............................................................................. 40 e) A convivência dos modos de produção de transporte coletivo .................................. 42 1.3. – A modernização empresarial do setor de ônibus e o poder público: patrimonialismo, resistências e favorecimentos. ............................................................ 43 1.3.1. Circulação e privilégio: gratuidades e itinerários do transporte público em suas origens ............................................................................................................................ 44 1.3.2. - Infraestrutura, escala e produção do espaço urbano – as origens das concepções de regulação no transporte público. ........................................................... 48 1.3.3. – Metropolização, hegemonia privada e intervenção federal: o transporte e sua modernização de 1975 a 1988 ........................................................................................ 57 1.3.3.1 – A política federal para o transporte público ................................................... 59 1.3.3.1.1. – METROBEL: a experiência belo-horizontina de intervenção pública........ 63 1.3.3.1.2. - Vale-transporte e municipalização ............................................................... 67 xvi

1.4. – Inflexão social na década de 1990: o sopro democrático-popular, neoliberalismo e motorização. ................................................................................................................... 71 1.4.1. – São Paulo e Belo Horizonte: a experiência do projeto democrático-popular nos transportes ...................................................................................................................... 73 1.4.1.1. Belo Horizonte e a proposta de controle cidadão do transporte ...................... 76 1.4.2. – Neoliberalismo e as mudanças nos debates teóricos ........................................ 77 1.4.3. – O processo acelerado de motorização e a mudança na urbanização ............... 80 1.5 – A mobilidade urbana como um problema social: as recentes disputas da década da motorização .................................................................................................................... 83 1.5.1. – Perueiros: instabilidade, confronto e cooptação. ............................................. 83 1.5.2 – Motorização acelerada e a crise urbana contemporânea .................................. 86 1.5.3 – Inércia rodoviarista: a persistência das obras viárias como política pública .. 88 1.5.4 – Crise do controle público: as mudanças na regulação do transporte na década da motorização ............................................................................................................... 89 1.5.5. – Crise social da mobilidade: a instabilidade de um novo cenário ..................... 98 CAPÍTULO 2 – AS MOBILIZAÇÕES POPULARES PELO TRANSPORTE NO CONTEXTO DA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO BRASILEIRO .............. 99 2.1. Alguns esclarecimentos conceituais ...................................................................... 101 2.1.1. - Localização e renda da terra ........................................................................... 101 2.1.2 – A questão da inflação ....................................................................................... 106 2.1.3. – Mobilização popular e transporte urbano ...................................................... 108 2.1.4. – Periodização .................................................................................................... 109 2.2. Indignação perene e revolta esporádica na cidade densa: a questão do transporte urbano até 1945 ............................................................................................................ 111 2.2.1. – A Revolta do Vintém ........................................................................................ 112 2.2.2. - Primeiras modernizações, a cidade densa e o congelamento de tarifas ......... 115 2.3. Ônibus, “pioneiros urbanos” e a precária conciliação de classes: o transporte público no período populista (1945-1964) ................................................................... 121 2.3.1. – O Quebra-Quebra de 1947 .............................................................................. 121 2.3.2. – Populismo e aceleração do processo de urbanização .................................... 124 2.4. A metropolização acelerada como processo hegemônico: espoliação urbana e o surgimento dos movimentos organizados em torno do transporte coletivo (décadas de 1970/1980) .................................................................................................................... 129 xvii

2.4.1. – Os quebra-quebras da década de 1970 ........................................................... 132 2.4.2. - Os Movimentos Reivindicativos por Transporte Coletivo ............................... 138 2.4.3. – As Associações de Usuários de Transporte Coletivo ...................................... 143 2.5. Convergência das narrativas: aprendizados e contradições dos governos democrático-populares na década de 1990. .................................................................. 148 2.5.1. – Tarifa Zero e a “ética do trabalho” ................................................................ 148 2.5.2. – Estruturas de participação popular e os vazios organizativos ....................... 153 CAPÍTULO 3 – A TARIFA ZERO COMO PROJETO DE TRANSFORMAÇÃO POLÍTICA: novos movimentos na retomada de uma questão urbana ................. 157 3.1. Aspectos da metrópole contemporânea: fragmentação e motorização .................. 160 3.1.1. – Mobilidade e juventude: a dependência de um sistema heterônomo .............. 163 3.2. Uma trajetória do Movimento Passe Livre ............................................................ 165 3.2.1. A Revolta do Buzu .............................................................................................. 165 3.2.2. Florianópolis – a campanha pelo passe livre e as revoltas das catracas .......... 167 3.2.3. Encontros nacionais: o surgimento do Movimento Passe Livre ....................... 170 3.2.4. Uma breve experiência em Belo Horizonte ........................................................ 173 3.2.4.1. - O recente desdobramento da pauta do passe livre estudantil em BH .......... 176 3.3. Tarifa Zero como pauta e força motriz: um rastreamento da disseminação da proposta em Belo Horizonte ......................................................................................... 178 3.3.1. – Um primeiro aparecimento na disputa política institucional ......................... 182 3.4. Surgimento e trajetória do Tarifa Zero BH ........................................................... 184 3.4.1. Acontecimentos de junho de 2013 em Belo Horizonte ....................................... 185 3.4.1.1. – A ocupação da Câmara Municipal............................................................... 189 3.4.2. A campanha pela tarifa zero .............................................................................. 194 3.4.2.1. – O projeto de lei de iniciativa popular .......................................................... 195 3.4.2.2. – A campanha política-publicitária................................................................. 198 3.4.3. Ações institucionais ............................................................................................ 208 a) Denúncias ao Ministério Público e o Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG) ......................................................................................................................... 211 b) O Conselho Municipal de Mobilidade Urbana ........................................................ 212 c) A IV Conferência Municipal de Política Urbana de Belo Horizonte....................... 215 d) A atuação no judiciário ............................................................................................ 216 3.4.4. “Ações diretas” .................................................................................................. 219 xviii

3.4.4.1.- Manifestações “clássicas” ............................................................................. 220 a) 1ª Jornada de Lutas contra o aumento ...................................................................... 225 b) Disputa de direção .................................................................................................... 226 c) A 2ª Jornada de Lutas contra o aumento .................................................................. 231 3.4.4.2. – Cultura, Carnaval e comunicação ............................................................... 234 3.4.4.3.- A Busona Sem Catracas ................................................................................. 242 3.4.4.4 - Outras iniciativas ........................................................................................... 251 a) Feministas do Tarifa Zero ........................................................................................ 252 b) O Plano Nacional de Mobilidade Urbana ................................................................ 253 c) A Frente Metropolitana pelo Transporte .................................................................. 255 3.4.5 Debates, refluxos, contradições e perspectivas. .................................................. 256 4. À GUISA DE CONCLUSÃO: TRAÇADOS DE AGENDAS DE LUTA E DE PESQUISA .................................................................................................................. 261 4.1. Das trajetórias e acúmulos, uma proposta: o controle popular do transporte para a retomada da cidade ....................................................................................................... 262 4.2 – Apontamentos para uma agenda perene de pesquisa........................................... 265 5. REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 268

xix

INTRODUÇÃO

1

Câmara Municipal de Belo Horizonte, dia 30 de Junho de 2013. A casa legislativa da cidade amanhecia naquele domingo ocupada por cerca de 300 pessoas, a maioria de jovens com menos de 25 anos, que exigiam do prefeito da cidade a redução no preço da passagem para o sistema de ônibus municipal. Desdobramento de um processo nacional de manifestações que já durava mais de três semanas, a motivação objetiva da ocupação era o repúdio ao processo de votação ocorrido na manhã do dia 29 de junho, no qual haviam sido negadas as emendas parlamentares que pediam uma maior redução da tarifa e a abertura das planilhas das empresas de ônibus. Sem poder ignorar a ocupação, o prefeito da cidade envia à Câmara o Presidente da BHTRANS e o Secretário Municipal de Governo para debater as demandas dos ocupantes. Na reunião, em meio aos vários questionamentos sobre a abertura das contas das empresas, o presidente do órgão gestor do transporte e trânsito da capital afirma: “não há como fazer a abertura das planilhas porque não há planilhas. O que vocês estão falando ficou para trás em 2008, na planilha GEIPOT da antiga licitação”. Em outros termos, estava reiterando, sem explicações para a grande maioria de “leigos”, um ponto de vista técnico que buscava silenciar politicamente o movimento. Aquela ocasião não seria a primeira nem a última em que argumentos técnicos seriam utilizados para deslegitimar reivindicações políticas de movimentos sociais. Foi a constatação da força dessas barreiras burocráticas e discursivas, que privilegiam os setores que buscam sua própria manutenção no poder, junto à necessidade de compreendê-las e desmontá-las, que ensejaram este processo de pesquisa. O presente trabalho surge como o desdobramento de uma inquietação latente. Ele se configura como uma busca pela compreensão da atual situação da mobilidade urbana nas cidades brasileiras, em especial a realidade do sistema de transporte coletivo por ônibus. A motivação para a pesquisa vem da atuação nos movimentos sociais da cidade de Belo Horizonte que ano após ano lutam contra aumentos tarifários, a explosão do número de veículos automotores e a persistência de uma política de expansão da malha rodoviária da cidade. Nesse cenário, percebia-se que o desconhecimento, por parte daqueles que lutavam, acerca das características dos agentes e processos contra os quais estavam lutando, era benéfica a estes últimos.

Pouco ou nada era debatido a

respeito de elementos tais como a estrutura econômica das empresas de ônibus, a forma como o município se relaciona com elas, as motivações políticas e as justificativas técnicas para a continuidade de uma política excludente e segregacionista, não só do 2

município, mas da maioria das cidades no país. As discussões, em geral, giravam em torno de repetições idealizadas e lugares-comuns não verificados. Na prática, pouco acrescentavam para se pensar uma transformação real das circunstâncias contra as quais se lutava. No mesmo sentido, pouco se sabia sobre as mobilizações populares por transporte na história brasileira: suas vitórias, derrotas e aprendizados. Se era notório que revoltas populares contra o aumento da tarifa sempre haviam existido na história urbana brasileira, o que se percebia nas discussões feitas em Belo Horizonte é que poucos elementos dessa rica história das mobilizações populares pelo transporte eram debatidos. Dessa maneira, quase nenhum aprendizado concreto sobre a determinação dos rumos do transporte público a partir da luta popular era sistematizado. A impressão contínua era da repetição da história a partir de uma tábula rasa. Assim, foi para compreender a formação e a trajetória histórica dos diversos sujeitos sociais envolvidos na conformação do atual sistema de transporte público brasileiro, à luz das disputas políticas contemporâneas, que esta pesquisa de mestrado foi desenvolvida. Nesse sentido, três personagens foram colocados em enfoque: as empresas privadas de operação de transporte coletivo por ônibus nas cidades brasileiras; o Estado – em suas diversas esferas – como agente regulador e, por vezes, produtor do serviço; e a população usuária que, longe de ser um agente passivo, disputa continuamente os direcionamentos da oferta e dos excedentes que o transporte público gera. Como contexto ativo que desenvolve e condiciona a atuação desses três personagens está o processo de urbanização brasileiro: a forma como as localizações no espaço urbano se configuram historicamente, atraindo pessoas e desenvolvendo relações sociais de produção, é fundamental para o entendimento da produção, gestão e disputa dos rumos do sistema de transportes. Abordar esses quatro elementos exigia uma pesquisa que buscasse, desde o primeiro momento, transpor abordagens disciplinares isoladas que marcaram desde o início a discussão do tema. Em relação às empresas de ônibus, foi preciso resgatar e sistematizar elementos de regulação do transporte público debatidos no âmbito da engenharia de transportes e compreender a evolução da forma como se ofertou o transporte por ônibus ao longo da história. A produção acadêmica a respeito do transporte público configurou-se historicamente por meio de extensos levantamentos sobre as diversas formas que este assume em locais e momentos distintos. No 3

levantamento bibliográfico, obras que abordavam características distintas sobre o transporte coletivo convergiam na mesma metodologia de elaboração a partir do levantamento e debate sobre diferentes cidades. Ou, de maneira análoga, convergiam para uma análise das várias e circunstanciais mudanças de direção da oferta de transporte em uma mesma cidade. Assim, enquadram-se no primeiro caso levantamentos sobre o surgimento e a operação dos bondes nas cidades brasileiras (como o pioneiro STIEL, 1984), além de estudos sobre aspectos da formação das empresas de ônibus nas cidades brasileiras (BRASILEIRO & HENRY, 1999) ou, especificamente, sobre a forma de concessão e regulação do serviço (ORRICO FILHO et. al., 1996). No segundo caso, que aborda as diversas mudanças em uma mesma cidade, tem-se para Belo Horizonte o imprescindível estudo da Fundação João Pinheiro (1996) e, sobre a questão específica da política de gratuidade, o estudo de Oliveira (2002). O contato com essas referências determinou duas características para o processo de pesquisa. Em primeiro lugar, viu-se que para debater a trajetória do transporte coletivo era necessário abranger um amplo espectro temporal e espacial. A compreensão do cenário só pôde se dar a partir do entendimento das similaridades e diferenças da formação do transporte coletivo em momentos e cidades distintas no país. Só dessa maneira, foi possível transcender o caráter local e específico que muitas vezes a questão do transporte público assume. Em segundo lugar, constatou-se que a presença da esfera estatal como agente regulador do transporte era mais que determinante da questão, era um elemento intrínseco à existência e trajetória desse setor do capital. Debater a trajetória da formação capitalista do transporte coletivo era, portanto, debater a relação entre Estado e capital nesse setor. É a partir dessa perspectiva que o processo de pesquisa buscou o entendimento da teoria econômica que baliza a regulação do setor. Percebe-se então que a teoria reguladora que debate a questão surge, na maioria das vezes, a reboque da realidade objetiva sobre a qual pretende determinar. Assim como na economia política criticada por Marx, a abordagem tradicional do sistema de transporte público parte de aspectos que são entendidos na análise como premissas naturalizadas, e não como características historicamente determinadas do setor. Nesse sentido, a pesquisa se desdobra na classificação dessa abordagem e na busca por uma alternativa que se enquadre na perspectiva da crítica da economia política e entenda o desenvolvimento do setor a 4

partir do imperativo do processo de reprodução ampliada do capital, perspectiva essa que é encontrada na abordagem de Etienne Henry (1999a, 1999b). Na metodologia adotada na pesquisa, as mobilizações populares e a dinâmica de produção do espaço urbano foram estudadas como elementos mutuamente relacionados entre si e ao setor de transporte coletivo. Sua abordagem, entretanto, se deu somente após a sistematização da trajetória econômica do setor. Somente a partir do entendimento da forma histórica de reprodução desse setor, da compreensão de suas principais características econômicas e principais marcos históricos, a pesquisa sobre as revoltas urbanas por transporte e a dinâmica de desenvolvimento do espaço urbano pôde ser contextualizada com mais clareza. É a partir desse ponto que fica claro como a produção do espaço pressiona a disputa por localização e pela consequente renda diferencial da terra urbana, e como essa dinâmica é decisiva para o contexto político e econômico do transporte público. Essa metodologia de pesquisa foi, em algum grau, reproduzida na forma como o conteúdo desta dissertação está redigido e estruturado. Como se afirmou no início desta introdução, o processo de pesquisa se deu motivado pelas questões políticas contemporâneas que permeiam o transporte público no Brasil. Nesse sentido, a pesquisa só se completava ao abordar os movimentos sociais e as transformações na mobilidade urbana das duas últimas décadas. Debate da história do presente, esta última etapa da pesquisa envolveu um esforço pela identificação e concatenação dos fatos que compuseram as mudanças do último período, uma vez que todas as últimas obras de referência sobre a história do transporte foram publicadas na década de 1990. Esse fato, por si só, é revelador das mudanças que ocorreram e da relevância da retomada de uma abordagem sistêmica. Assim, a partir de dissertações, artigos, notícias e debates em jornais, bem como de uma profícua reflexão na internet feita em inúmeros textos pelos novos movimentos sociais, a pesquisa passou a abordar a história do Movimento Passe Livre, as recentes mudanças na regulação do transporte coletivo, bem como a trajetória do movimento Tarifa Zero BH, coletivo surgido após as manifestações de junho de 2013 e que luta pela efetivação do transporte como um direito social. Nesse processo, é importante ressaltar que a proposta de gratuidade no transporte por meio de seu financiamento indireto, pauta central que dá nome e conteúdo aos novos movimentos sociais na questão, é elemento que conduz toda a pesquisa e redação realizadas, não só nesta última etapa como em toda a dissertação.

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Dessa maneira, esta dissertação está dividida em três capítulos, além desta introdução. O primeiro – A trajetória capitalista do ônibus no Brasil – estabelece um dos fios da narrativa do transporte público a partir do desenvolvimento do capital. Assim, o capítulo aborda o processo de formação do transporte coletivo por ônibus nas cidades brasileiras enquanto um setor econômico, no qual as relações com o Estado foram cruciais para o seu desenvolvimento. Elementos da abordagem microeconômica clássica e da abordagem marxista foram desenvolvidos, nesse contexto, para que fosse possível realizar uma leitura do processo de modernização do setor em sua relação com o poder público, desde a década de 1930 até os dias atuais. O segundo capítulo – As mobilizações populares pelo transporte no contexto da produção do espaço urbano brasileiro – aborda a questão do transporte a partir do processo histórico de formação das

cidades brasileiras e do

consequente

desenvolvimento das necessidades urbanas de sua população. Estruturada em classes sociais que disputam o excedente produzido na urbe, a dinâmica social que produz os espaços urbanos apresentará um processo de mobilização popular pelo transporte que se expressará de maneira mais ou menos violenta conforme as circunstâncias. Nesse sentido, o capítulo parte da noção de localização e renda da terra para construir uma periodização da relação entre forma urbana e luta por transporte. Dessa maneira, estabelecem-se quatro períodos para a sistematização desse cenário: os anos dos bondes e da cidade adensada até 1945; a aceleração da urbanização, o desenvolvimento acelerado do setor de ônibus e a disputa aberta de classes no período populista entre 1945-1964; o processo acelerado de metropolização brasileiro, dentro de um contexto político autoritário de espoliação urbana até o fim da década de 1970 e seus desdobramentos na década de 1980; e, por fim, a tentativa de implantação da tarifa zero no governo de Luiza Erundina e seus desdobramentos nos anos 1990. Por fim, o terceiro capítulo – A tarifa zero como projeto de transformação política – aborda a história recente dos movimentos sociais contemporâneos que lutam pela melhoria do transporte como meio de transformar o espaço urbano. Nesse sentido, o capítulo discute brevemente alguns dos elementos da mobilidade urbana atual e sua relação com a juventude, principal segmento que atua politicamente nessa questão. O capítulo segue apresentando a história da formação do Movimento Passe Livre, a partir dos acontecimentos do começo da década de 2000 e se estende, dessa forma, para o desenvolvimento da proposta de tarifa zero no seio dos movimentos e relata sua 6

disseminação em Belo Horizonte. O capítulo culmina com uma extensa apresentação e debate das ações políticas do Movimento Tarifa Zero BH nos últimos dois anos. Como se verá, a própria forma de abordagem, investigação e apresentação das questões do transporte coletivo no Brasil deu a esta pesquisa uma ampla abrangência, inescapável à própria coesão do estudo que se buscou realizar. Nesse sentido, pode-se afirmar que sua principal inovação foi a concatenação de fatos e a sistematização de uma história cujos aspectos se encontravam abordados de maneira focalizada, por áreas acadêmicas distintas, que não dialogam entre si. Dessa forma, o que esta dissertação propõe, ao fim e ao cabo, é uma agenda de pesquisas a ser desenvolvida a respeito da relação sistêmica entre transporte urbano, produção do espaço e mobilização popular. Além disso, busca-se contribuir com os próprios rumos em disputa da mobilidade urbana, por meio da produção de um primeiro material escrito e sistematizado sobre a experiência do movimento social Tarifa Zero BH. Espera-se que essa pesquisa possa servir como mais um elemento para o debate e ação política dos novos movimentos. Por fim, o que se propõe ao trazer para o centro da pesquisa a relação entre mobilização popular por transporte e produção do espaço, é pensar um projeto de cidade como espaço de emancipação humana, que combata a alienação do homem em relação ao espaço que, afinal, é produzido pelo seu trabalho. Pensar uma cidade na qual os fluxos não fiquem à mercê de determinantes externos e que os deslocamentos possam se dar voltados para a fruição do tempo-espaço de vida, com o desenvolvimento de novas relações sociais, é pensar uma cidade verdadeiramente livre. É também como uma pequena contribuição para que a luta dos movimentos sociais possa efetuar avanços concretos, a partir de uma perspectiva de emancipação, que essa dissertação foi redigida.

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CAPÍTULO 1 – A TRAJETÓRIA CAPITALISTA DO ÔNIBUS NO BRASIL: acumulação, estado e empresa na conformação de um transporte urbano.

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O setor de empresas que ofertam transporte coletivo urbano por ônibus no Brasil tem uma longa e consolidada trajetória. Desde os “pioneiros” em seus auto-ômnibus no começo do século XX, oferecendo “caronas remuneradas”, complementares ao caminho do bonde, aos “grandes barões da catraca” de hoje em dia, uma história de quase de 100 anos decorreu. Hoje, mesmo enfrentando uma consolidação da queda histórica de demanda nos últimos 20 anos, os empresários de ônibus constituem um grupo economicamente forte e influente na política nacional, com capital representado em vários tipos de companhia de transporte, companhias aéreas, indústria produtora de carrocerias, indústria alimentícia, entre outros. A história da formação das empresas de ônibus no Brasil se confunde com a própria urbanização nacional. É ponto claro de partida para a elaboração deste trabalho que a formação capitalista das cidades brasileiras ao longo do século XX guarda uma relação indissociável com o surgimento do setor de ônibus urbanos. Desde o fim do século XIX, as cidades mergulharam no complexo e contraditório processo de modernização das relações sociais, com ritmos e profundidades variados ao longo dessa trajetória, levando consigo todas as peculiaridades e contradições de um Brasil recémrepublicano, oligárquico e profundamente desigual. Se a urbanização não é processo espacial hegemônico até a década de 1930, com o fim da 1ª República isso muda de figura. O processo de industrialização por substituição de importações e o processo de integração econômica nacional que se inicia, amplia a capacidade produtiva e a dinâmica econômica de todo o país, atraindo e multiplicando cada vez mais a população nas grandes cidades do sudeste. Dos interiores e sertões dos quais surge a população que se faz urbana, novas ocupações se dão a cada dia, e é no vácuo da estrutura estatal que o transporte por ônibus surge como alternativa para consolidar e dar dinâmica ao maior processo de urbanização do século XX1. Nesse cenário, o transporte coletivo por ônibus compõe hoje a paisagem e o cotidiano da maioria das cidades no mundo. Nos países da América Latina, essa forma de transporte é hegemônica desde a segunda metade do século XX e, em que pese a complexidade que sua operação abrangente no espaço-tempo da metrópole

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De acordo com o censo demográfico de 1940, a população urbana brasileira era de 10,9 milhões de pessoas, o que correspondia a 26% da população total. Quarenta anos depois, em 1980, a população urbana brasileira é de 82 milhões de pessoas, correspondendo a 69% da população total. A mudança da composição proporcional em quatro décadas só encontra exemplos semelhantes, no século XX, em países como a antiga Iugoslávia (SANTOS, 1993), mas com um contingente populacional bem menor. Países como os EUA ou da Europa Ocidental levaram mais de 100 anos para realizar essa transição.

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contemporânea demanda, sua existência é naturalizada no dia-a-dia. As precárias condições de serviço, que são mais a regra do que a exceção nessas metrópoles, nem sempre são suficientes para despertar na população um questionamento sobre seus próprios rumos. Ainda que a insatisfação se dê cotidianamente, as informações de quem fornece e como tem fornecido esse serviço ao longo do tempo são estrategicamente deixadas de lado pelos responsáveis no poder. A população vive, assim, em uma relação de alienação com seu fluxo cotidiano, no qual as distâncias, formas e motivos de seu deslocamento são naturalizados e a tendência cada vez mais forte contemporaneamente é a busca por soluções individuais. Ainda assim, o caráter essencial dos deslocamentos para o funcionamento da cidade e sua importância no processo de urbanização fazem com que o Estado – enquanto poder público – não possa se omitir da questão da regulação do serviço de transporte por ônibus. Destarte, desse complexo sistema emergem uma série de temas a serem abordados: a especificidade do serviço de transporte por ônibus enquanto mercadoria na cidade moderna; a dinâmica de mercado específica a esse setor que lida com uma espacialidade urbana; a controversa relação que os ofertantes privados desse serviço têm tido com o Estado brasileiro ao longo da história; a relação desse serviço com o espaço urbano e outros modos de transporte, bem como sua capacidade de ressignificá-los; e, por fim, as possibilidades de rompimento com a dinâmica capitalista e estatal que o serviço oferece, e como explorá-las. Essas questões fundamentais não podem ser desenvolvidas em abstrato. É necessário dar concretude histórica e geográfica ao tema para que se possa analisar suas minúcias e contradições. A realidade urbana brasileira será o espaço amplo que alimentará essa reflexão, mas o debate sobre o transporte público por ônibus, por definição, exige que se trabalhe também a partir de uma perspectiva local. Neste trabalho, Belo Horizonte e São Paulo serão as cidades a partir das quais os acontecimentos concretos serão narrados e reverberados para o contexto nacional. Os motivos para a escolha desses dois pontos de partida são distintos. Maior metrópole da América Latina, a importância econômica e social de São Paulo faz com que seja inescapável abordar sua realidade para explicar a formação de um setor econômico de atuação urbana local. São Paulo tem sido, desde o começo do século XX, a síntese das contradições brasileiras: seu gigantismo impraticável e a potência de suas experiência locais; espaço de oportunismos políticos grosseiros mas também de experiências 10

populares inéditas; cidade colapsada pelo trânsito, mas também capaz de criar movimentos sociais radicalmente contestadores. Toda essa diversidade é fundamental para que se possa apreender a trajetória do transporte urbano brasileiro. Belo Horizonte, por sua vez, apresenta-se neste trabalho a partir de um ponto de vista diverso. Para além do evidente fato de que esse é o lócus onde a realidade cotidiana da mobilidade urbana é vivida por mim em todas as suas contradições e disputas políticas, essa escolha desvelou em seu processo uma série de motivos. Em primeiro lugar, a natureza específica do surgimento de Belo Horizonte – planejada para abrigar uma modernidade redentora que nunca viria, superar traumas e ressentimentos regionais e nacionais que insistirão em reaparecer. Assim, Belo Horizonte tem como marca de seu nascimento a segregação de classe em seu espaço urbano, que se repetirá e se aprofundará espacialmente no lugar de moradia de suas classes ao longo de toda a sua trajetória. A conformação do sistema de transporte público dialogará sempre com essa contradição primeira. Como parte dessa vocação para uma modernidade incompleta, que tenta – canhestramente – esconder suas contradições de classe a partir da criação do novo, sucessivos governantes inovadores em seu “rodoviarismo”, como Juscelino Kubistchek (prefeito nos anos 1940), passarão por seu comando e farão da cidade e do estado de Minas Gerais a antessala de experiências que se repetirão em escala nacional. A exemplo da influência mineira nos rumos da política nacional, a trajetória específica dos empresários de transporte do município se apresenta de maneira, ao mínimo, curiosa. Eles surgem na atividade econômica com pioneirismo para a sua época, mas, ao contrário das outras metrópoles nacionais, sua trajetória apresenta permanência de uma estrutura de empresas, mas não de propriedade,2 relativamente desconcentrada. Ao se entenderem regionalmente, os empresários mantiveram o seu mercado fechado à concorrência externa e expandiram sua atuação para todo o território nacional. No processo de consolidação da modernização do setor, eles têm papel preponderante na formação e consolidação de associações de classe como Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos (NTU) e na renovação da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), influindo nas políticas nacionais de transporte pelo menos desde o governo Figueiredo (Cf. BRASILEIRO, HENRY; 1999). Colocado o cenário sobre o qual se debruçará, o presente capítulo está estruturado em cinco seções. Na primeira, busca-se apresentar, sob a perspectiva da 2

Não houve ainda um estudo sistematizado sobre os proprietários das empresas belo-horizontinas de ônibus e suas relações familiares.

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microeconomia tradicional3 algumas das características específicas do transporte enquanto mercadoria e da formação de seu mercado, que têm marcado o debate da economia dos transportes e da literatura mais ampla há bastante tempo. A seção seguinte busca introduzir os conceitos desenvolvidos pelo economista Etienne Henry, abordando o desenvolvimento do setor a partir das categorias da economia política e de sua crítica de viés marxista. Essa fundamentação teórica é central para visualizar a trajetória do setor inserida no contexto mais amplo de reprodução ampliada do capital através da modernização capitalista do século XX. É a partir da inserção no contexto amplo do desenvolvimento capitalista que os conceitos trazidos por essa abordagem teórica ilustrarão a trajetória do setor. A terceira seção busca apresentar a relação do setor com o poder público, fundamental para sua consolidação econômica no país e aspecto indissociável de sua formação. É nesse momento que a história do transporte público por ônibus ganha consistência. Aspectos como a origem da ideia de gratuidade no transporte e os princípios de regulação econômica são fundamentais para a compreensão dos atuais impasses na mobilidade urbana. Buscar-se-á demonstrar que a influência da esfera privada sobre os aspectos públicos do serviço foi contínua e dominante, pautando-se em relações patrimonialistas e clientelistas de Estado. As importantes vezes em que houve sérias tentativas de regulação e encampação do setor – a METROBEL em Belo Horizonte, e ocasionalmente a Companhia Municipal de Transporte Coletivo em São Paulo - demonstraram também uma capacidade de reação de classe organizada por parte dos empresários. Em seguida, a quarta seção irá debater a situação do setor na década de 1990, considerada aqui como o ponto de inflexão da mobilidade urbana brasileira. A conjugação da maturação do setor com o começo do declínio de sua demanda histórica é agravada pelo início do processo de motorização e pelas mudanças na dinâmica de urbanização. O debate que surge entre os estudiosos da questão a partir dessa situação, se mostrará então fundamental para a compreensão das mudanças dos últimos vinte anos e das transformações necessárias apontadas no horizonte. Por fim, a última seção discutirá os acontecimentos do século XXI, marcado por uma profunda aceleração na motorização da sociedade e uma consequente crise urbana sem precedentes. As mudanças na forma de regulamentação no país, em Belo Horizonte 3

Isto é, a microeconomia de perspectiva neoclássica, derivada da “revolução marginalista” de Alfred Marshall no fim do século XIX e ainda hegemônica no ensino e na pesquisa científica.

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e em São Paulo, serão apresentadas sob a luz das (ausências de) políticas públicas no setor e a formação de novos movimentos sociais na questão. 1.1. Ônibus no espaço urbano: as características do deslocamento enquanto mercadoria e suas especificidades enquanto processo produtivo espacializado. O deslocamento pelo espaço urbano é uma necessidade cotidiana em qualquer sociedade moderna. Na medida em que o processo de urbanização avança e a relação entre os espaços se complexifica, a demanda por deslocamentos aumenta tanto em quantidade como em qualidade: trajetos, horários, distâncias e motivos. Como quase toda atividade contemporânea que envolve custos, matéria-prima, força de trabalho e organização do processo produtivo, a produção do serviço de transporte coletivo urbano por ônibus tornou-se uma atividade mercantilizada na sociedade capitalista. De fato, em que pese o fato de sua existência ser essencial comparável aos serviços de saúde, educação e segurança pública - o transporte é hoje uma mercadoria no sentido clássico do termo, de forma bem mais naturalizada que esses outros serviços. De relativo baixo custo para novos entrantes, o transporte coletivo tem a capacidade de atrair novos ofertantes continuamente (e.g. o transporte clandestino em diversas ocasiões), e pode, ao longo de sua trajetória, garantir a consolidação urbana de bairros outrora periféricos. Foi dessa maneira que as hoje grandes empresas brasileiras de viação se iniciaram (Cf.. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, BRASILEIRO & HENRY, 1999, entre outros). O produto do serviço de transporte coletivo por ônibus é o deslocamento de uma pessoa do ponto A para um ponto B, em determinado horário do dia, oferecido de maneira coletiva e estruturada, mas adquirido e realizado enquanto mercadoria individualmente. Como boa parte da grande categoria de “serviços”, e do fenômeno da “terciarização” sobre a qual os estudos sobre o pós-fordismo têm se debruçado, há uma especificidade nesse produto: o processo produtivo da mercadoria e sua realização enquanto tal coincidem no mesmo momento e no mesmo local4. Entretanto, diferentemente dos serviços tradicionais (como, por exemplo, um atendimento 4

É importante separar aqui o que é considerado realização da mercadoria enquanto transformação de seu equivalente em dinheiro (valor de troca) e enquanto processo de consumo do seu valor de uso. De fato, desde o advento das vendas antecipadas - que hoje constituem o sistema de créditos eletrônicos e do qual a venda de vale-transporte participa em peso –, a receita prévia do serviço de transporte público, sem a contrapartida necessária de sua realização concreta, tem se constituído um ativo fundamental para as empresas de ônibus. Segundo a verificação independente do sistema belo-horizontino, as receitas antecipadas não utilizadas compõem cerca de 2% do total bruto anual. (ver EY, 2014)

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telefônico), essa coincidência espaço-temporal entre produção e realização é concreta e imprescindível para o processo, pois ocorre e se constitui em um trajeto geográfico específico no espaço da cidade, gerando uma relação de dependência entre o funcionamento da cidade e a produção da mercadoria. Em suma, para todos os efeitos de análise do setor é necessário ter claro essas duas peculiaridades: a coincidência espaço-temporal de produção e realização da mercadoria e a manifestação espacialmente urbana da natureza da mercadoria. Dessa forma, as possibilidades de diferenciação e individualização do produto são praticamente infinitas, pois variam por trajeto ao longo do espaço urbano (pontos de embarque e desembarque) e horários. Essa característica única de abrangência no tempo-espaço cotidiano da cidade conferirá ao setor de transporte urbano por ônibus originalidades fundamentais que balizarão a organização de sua produção, força de trabalho, regulamentação pelo poder público e uma série de outras variáveis. Sobre a prestação do serviço pelas empresas, Santos e Orrico Filho comentam que Da perspectiva da empresa operadora, entretanto, o que é comercializado é o deslocamento de veículos, ordenado segundo um certo quadro horário e um dado itinerário. Desta forma, uma característica do mercado de transportes é que, além de constituir-se como uma estrutura industrial de produtos múltiplos, a empresa programa a produção de um serviço cujas unidades, a princípio – e com rigor formal – não são equivalentes ao que seus consumidores adquirem. (SANTOS & ORRICO FILHO, 1996, p. 34-5).

Nesse sentido, o transporte público urbano também assume uma posição privilegiada para efetuar a análise das transformações capitalistas contemporâneas. Sua existência simultânea enquanto processo produtivo e mercadoria articula as principais características da produção do espaço urbano (a sobreposição histórica de valores de uso e de troca da terra urbana enquanto mercadoria)5 com as especificidades inerentes ao setor de serviços, os mesmos que se configuram como força dinâmica no capitalismo pós-fordista (Cf. NEGRI, 2004).

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Há uma contradição específica do solo urbano (ou rural) quando colocado sob a dinâmica de mercado, seja como mercadoria a ser negociada, seja como elemento que valoriza e confere dinâmica a outros setores, como é o caso do serviço de ônibus. Entre todas as rendas diferenciais (chamadas “mais-valias fundiárias”) que o trabalho humano pode gerar para a terra enquanto mercadoria (por infraestrutura instalada, por fertilidade, etc), há uma cuja reprodução é impossível. A localização geográfica do solo (sua latitude e longitude especificas) faz com que esse aspecto seja um monopólio intrínseco desse ativo – nenhuma terra pode reproduzir a localização privilegiada de outra – e confira assim ao processo de produção do espaço urbano uma contradição específica na disputa da terra entre valor de uso e valor de troca. A característica locacional da terra urbana será desenvolvida como elemento explicativo no capítulo 2.

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1.1.1.– O transporte coletivo por ônibus sob a ótica da microeconomia neoclássica As contradições que a mercantilização do transporte urbano gera são, portanto, essenciais para se entender a trajetória histórica de formação do setor, suas crises e mudanças de regulamentação. Levando em conta as duas peculiaridades já citadas sobre o produto, a literatura tradicional sobre os ônibus urbanos começa a identificar as especificidades de seu mercado que, ao que tudo indica, não pode ser tratado a partir da perspectiva da livre concorrência. Em outras palavras, é altamente questionável que o sistema de mercado – tomado de maneira independente – consiga ser o mediador eficaz da oferta e demanda de acesso a esse serviço. É necessário, portanto, realizar um debate sobre a natureza privada, pública, ou semi-pública da mercadoria (ou “bem”) no âmbito da microeconomia. De fato, as chamadas “falhas de mercado” do setor são recorrentes na literatura e no debate teórico, e fundamentais para a formulação das políticas públicas e justificativas de intervenção do setor público. Nesta seção elas serão elencadas a partir dos trabalhos de Santos & Orrico Filho (1996), Oliveira (2013) e Dias (1991). Antes de iniciar essa apresentação, porém, é necessário ter mais clara a abordagem que é estudada aqui. A teoria microeconômica neoclássica, tal como se desenvolveu no século XX, é herdeira direta da sistematização iniciada por Adam Smith no século XVIII e continuada no século XIX por economistas como David Ricardo, Stuart Mill, Alfred Marshall, entre outros. Há um ponto de inflexão fundamental na escola de pensamento econômico inaugurada por Smith: antes, outros pressupostos morais concorriam para dar valor e preço às mercadorias para além dos mecanismos de oferta e procura mercantil clássica. Depois das formulações da chamada “economia política clássica”, existe um processo hegemônico de naturalização das relações de mercado, que buscou estabelecer seus critérios como definidores de uma “verdade” e passou a desconstruir outras formas morais de se atribuir valor às mercadorias. O mercado passa, assim, de um lugar de “jurisdição” para um lugar de “veridição” (Cf. FOUCAULT, 1979) e o instituto da propriedade privada passa a ser um pressuposto naturalizado de toda essa dinâmica, que nesse sentido compactua com o processo de mercantilização da sociedade e com a lógica do “preço natural” (Cf. MARX, 1844). Os serviços públicos urbanos ocupam lugar relevante nessa história, pois não são imediatamente capturados pela ideologia liberal nascente, que continuamente tenta

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estabelecê-los como mercadorias. O transporte público, ao nascer como mercadoria paga e não-subsidiada, está em lugar estratégico nessa história. Isso posto, voltemos à literatura microeconômica. Esta classifica um bem ou propriedade privada como aquela cujo consumo é “rival e excludente” de outro bem. Em outras palavras, o consumo do bem é feito necessariamente em detrimento de outro bem e de outro consumidor. Os exemplos são fartos e dizem respeito principalmente a bens materiais: o consumo de uma garrafa de vinho, por exemplo, é excludente, pois sua dinâmica de mercado pode proibir o consumo desse bem por aqueles que não pagaram por ele. Nesse caso, o princípio dos direitos da propriedade privada falam mais alto. Da mesma forma, a garrafa de vinho possui “rivalidade” enquanto bem privado porque o seu consumo impede que outras pessoas possam ter acesso ao bem6. Em outras palavras, existe um limite físico na produção e venda deste bem. Assim, o princípio da exclusão, sob a perspectiva liberal, faz com que a instância do mercado seja a melhor mediadora na dinâmica de provimento e consumo desses bens, com o instituto do preço como elemento alocador de sua quantidade “ótima”. (Cf. PINDYCK; RUBENFELD, 2002) Já os bens públicos tidos como “puros” são aqueles cujo consumo é não-rival e não-excludente. Um exemplo contemporâneo é a produção de conhecimento na Internet: sua oferta, se colocada em sites de acesso público (e.g. Wikipedia) atinge todos aqueles que consigam acessar e ler o conteúdo da página, quer tenham contribuído para o seu custeio, quer não. Dessa maneira, seu consumo é não excludente porque não há acesso impedido para aqueles que não pagaram, e não rival, porque sua realização, por definição, não impede que outros a consumam. Na era pós-fordista, os produtos do trabalho imaterial se enquadram nessas definições, e a disputa entre o caráter partilhado e o estabelecimento de bloqueios ao seu acesso (encriptação, pagamentos, etc.) é uma das principais disputas contemporâneas. A teoria microeconômica define, ainda, um tipo intermediário de bem, entre o público e o privado, chamado de “bens comuns” (common-pool resources, na formulação original de Elinor Ostrom (1990)). Esse bem teria a característica da rivalidade ou “subtraibilidade”, mas não seria afeito ao princípio da exclusão em seu acesso. Um exemplo clássico é o pasto natural para o gado: se tratado de forma correta,

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A pesquisa contemporânea é inclinada a substituir o termo “rival” pelo termo “subtraibilidade” de forma a acentuar que a rivalidade do bem e sua exclusão não é absoluta e sim gradual conforme as circunstâncias. (Cf. HELFRICH, 2012)

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sua provisão pode ser mantida todo ano, sem exclusão ao acesso a outrem. Porém, é claro que esses recursos são finitos, possuindo, portanto, subtraibilidade. Assim, é possível classificar os bens públicos puros a partir da aferição de suas características: a primeira é a indivisibilidade de suas externalidades – os indivíduos não-consumidores não podem ser excluídos das consequências (negativas e positivas) geradas pela existência e consumo desses bens. Para o transporte público essa característica se expressa na medida em que este é concorrente de espaço público na rua. Para exemplificar, imaginemos que, quando um ônibus transporta um determinado número de pessoas ele está possivelmente evitando que parte delas se utilizem de automóveis ou motos como alternativa fazendo com que, portanto, a oferta do serviço de transporte público gere uma “economia” de xxm² de uso de vias públicas, além de menor emissão de poluentes e menos risco de acidentes. Ou seja, o transporte público gera externalidades positivas para todos os habitantes da cidade, quer eles custeiem o serviço ou não. A segunda característica de um bem público dito “puro” na microeconomia clássica é o custo marginal de provimento nulo, isto é, o ato de consumo de uma unidade extra por um indivíduo não reduz a quantidade que poderá ser ofertada a outro. Esse ponto é controverso para o caso do transporte público. É fato que no horário de pico ou de alta demanda o consumo de transporte público por um indivíduo impossibilita o consumo por um individuo a mais (por não haver mais espaço para embarque, por exemplo). Mas essa característica não procede para os momentos em que o transporte circula com capacidade ociosa, pois a sua utilização por outro indivíduo não impede o consumo por outrem, uma vez que há espaços vazios. Em outras palavras, o custo marginal de provimento em situações de capacidade ociosa existe, mas não em patamares que possam caracterizar a ineficiência do serviço. O economista João Luiz da Silva Dias7 coloca a questão nos seguintes termos: Se o serviço [de transporte público] estiver adequadamente dimensionado, a exclusão é ineficiente. Quer dizer, o metrô, os ônibus estão circulando, existem os lugares [vazios, ociosos], mas só viajam os que podem pagar. Se, de outra forma, o serviço está sub-dimensionado, e o pagamento é a forma de solução – [selecionando] quem viaja, [de] quem é excluído – de equilibrar-se oferta e demanda, nem por isso o sistema de mercado será eficiente. A 7

É importante, desde já, situar este autor como um dos personagens da trajetória do transporte público a ser narrada. João Luiz foi o primeiro presidente da Metrobel (Companhia de Transportes Urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte), implantando inovações significativas na gestão e regulação do transporte público na RMBH. Posteriormente, exerceu cargos diretivos na BHTRANS e na CBTU, na década de 1990.

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eventual privatização dos benefícios por alguns é semelhante ao que acontece com a educação, com a saúde e mesmo com as ruas e calçadas, onde a insuficiência na oferta destes bens enseja a privatização do consumo e até a oferta privada suplementar. (DIAS, 1991, p. 73-4).

Assim, é importante compreender que, nos termos em que a sociedade organiza seus deslocamentos hoje, há, de fato, momentos de pico de demanda que são os dimensionadores da capacidade ofertada (assim como nas ofertas de energia, água, etc.) e de sua eficiência. Os momentos fora desse pico configuram, em alguma medida, uma capacidade ociosa estrutural do serviço. Atente-se que essa capacidade ociosa não varia apenas ao longo das horas de um dia, apresentando comportamento variado conforme os dias da semana, os dias e semanas do mês (e.g. pelo fato de ser tarifado, o transporte é mais utilizado no começo do mês) e os meses do ano (meses de férias escolares geralmente apresentam uma demanda mais baixa). O que importa apreender dessa discussão é que, se a literatura concorda que o transporte público não pode ser tratado como um bem inteiramente privado, ela não chega a um consenso sobre a natureza totalmente pública desse serviço. Se nas atuais configurações do capitalismo há uma disputa pela possibilidade de apropriação de bens comuns, como o conhecimento colaborativo gerado pelo trabalho imaterial, parece claro que a classificação dos bens em privados, públicos ou comuns é uma característica histórica atribuída a posteriori da existência em si do bem. Como já esclarecia Marx para a questão da propriedade privada e da economia política de então, a naturalização de características socialmente construídas no sistema produtivo serve a propósitos de classe específicos. Quando a microeconomia neoclássica identifica bens como públicos, privados ou comuns ela o faz de maneira que essas características sejam pressupostos, e não atribuições. Como ressalta Silke Helfrich no atual debate sobre bens comuns: Em outras palavras, a característica de exclusão de um bem depende de circunstâncias concretas, daquilo que nós, como indivíduos atuantes, somos capazes de fazer, e de nossas decisões. Poderíamos também expressar essa ideia nos seguintes termos: um bem comum não possui a característica de consumo não-excludente; pelo contrário, essa característica é a ele atribuída. (HELFRICH, 2012, grifos da autora).8

O transporte público, da mesma maneira, está no centro dessa disputa da naturalização de seu caráter mercantil. Sua origem é historicamente privada, fazendo com que a disputa por sua oferta pública parta de pressupostos de mercado. Mas a

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Tradução livre de: “In other words, excludability depends on the concrete circumstances, on what we as acting individuals are capable of doing, and our decisions. We could also express this idea as follows: a common good does not have the characteristic of non-excludability; rather, it is given this characteristic”.

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proposta de tarifa zero e o debate sobre mudanças na regulação apontam para uma natureza comum do serviço, ainda não explorada. A transformação da natureza do transporte é uma tarefa de perspectiva histórica, que envolve um processo ativo de mobilização da sociedade. É para isso que este trabalho busca contribuir. Quando o transporte público gera externalidades, em função de sua característica de bem público, é necessário ressaltar que nem todas elas são positivas para a sociedade. Em sua relação indissociável com espaço urbano, o transporte por ônibus acaba por gerar também uma série de contradições. As ruas e avenidas, meios de produção e locais de realização do transporte público, não são construídas ou mantidas pelas empresas privadas que ofertam o serviço. Trata-se de espaço público, comum, compartilhado, mas que sofre desgaste desigual conforme o uso. Assim, as chamadas externalidades negativas no espaço urbano são uma das contradições fundamentais do transporte público, sob qualquer abordagem. As condições da via interferem na produtividade do serviço e, portanto em seu custo operacional, mas a depreciação e manutenção desse espaço não são de responsabilidade da empresa, e sim da coletividade em geral. Em outras palavras, as empresas não dão a contrapartida dos custos que elas próprias geram ao desgastar também as ruas. Se por um lado, como mencionado anteriormente, não há uma distribuição igualitária nas externalidades positivas do serviço, tem havido, ao longo do tempo uma “socialização” das externalidades negativas. Outras que podem ser citadas para esse contexto são a poluição sonora e atmosférica, assim como os congestionamentos na cidade. Entretanto, é fundamental ressaltar que – dentro do sistema de mobilidade urbana sobre pneus – os ônibus são os que proporcionalmente menos impactam a cidade nesse aspecto, sendo a frota de veículos individuais a grande responsável por esses problemas atualmente. O espaço urbano, como meio de produção inerente ao serviço de ônibus, é elemento que gera uma série de contradições. A forma como a cidade funciona, os locais que geram deslocamentos, a tendência à economia de aglomeração, tudo isso gera para o transporte público uma tendência à concentração espacial da demanda. Essa tendência, agravada para o caso das metrópoles latino-americanas, dificulta a oferta do serviço nas periferias e gera uma concorrência ineficiente nos centros da cidade, demandando do poder público uma concepção do serviço como um sistema em rede (e não apenas linhas individuais), para que se possa pensar mecanismos de compensação. 19

Essa característica é fundamental para se pensar a relação entre os ônibus e o processo de produção do espaço no Brasil: a partir de uma perspectiva de remuneração majoritariamente via tarifa paga pelo passageiro, as linhas que servem à periferia serão – via de regra – deficitárias, pois transportarão menos passageiros pela quilometragem rodada (em termos técnicos, possuem um baixo IPK9). A oferta privada só fornecerá serviço para esses lugares em três ocasiões, de uma maneira geral: se houver um sistema de compensação tarifária que alivie a linha deficitária a partir de linhas superavitárias; se a remuneração do serviço se der por outras formas que não a tarifa paga; ou se a empresa visualizar – no médio prazo – que o crescimento urbano do local poderá lhe garantir demanda e, principalmente, a condição de ofertante monopolista da região. Esse último caso é emblemático por revelar a incapacidade estrutural do mercado em atender as demandas sociais e será melhor explorado no capítulo 2, quando a relação entre a dinâmica da produção do espaço urbano e a mobilidade urbana será debatida. De qualquer forma, tendo em vista essa situação, alguns autores argumentam que toda essa miríade de condições gera uma instabilidade dinâmica de mercado, isto é, uma situação em que “os mecanismos de preço, face à complexidade do cenário em que se define a demanda, são insuficientes para garantir o equilíbrio de mercado a longo prazo” (SANTOS & ORRICO FILHO, 1996, p. 33). Mais uma vez se demonstra o fato de que denominar essas condições como “falhas de mercado” é estar ainda no campo retórico e ideológico da teoria econômica neoclássica. O que deve ser posto em discussão é a afirmação do transporte como um direito social que supere sua mercantilização capitalista. No contexto apresentado, é bem claro que o conhecimento da dinâmica da produção do espaço urbano é fundamental para a operação do serviço de ônibus e que não há maneira de garantir estabilidade mercantil a sua produção. As características geográficas e urbanas do produto fazem com que seja necessária a construção de uma experiência cotidiana em relação às melhores formas de operação e circulação na cidade. Esse conhecimento dos caminhos e tempos urbanos perfazem, na prática, uma

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O Índice de passageiros por quilômetro – IPK - é calculado com base na razão entre o número total de passageiros transportados por ônibus e a quilometragem total percorrida em um determinado período de tempo (geralmente um mês) por um ônibus. Esse índice é utilizado para se comparar a produtividade de diversas linhas e trajetos e tem sido, desde 1982, a referência nacional para o cálculo tarifário. (cf HENRY, 1999a).

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informação exclusiva dos operadores que já estão no sistema10, que a utilizam como barreira à entrada de novos competidores. Essa prática é mais recorrente em um ambiente onde predomina a informalidade ou naqueles em que a formação das empresas ainda é incipiente e que, portanto, a estabilidade política e econômica dos competidores não está garantida. Essa instabilidade do mercado faz com que seja necessário ressaltar que, como comentado anteriormente, o baixo custo relativo para a aquisição dos chamados “capital fixo e insumos” para a produção desse serviço, configurem uma tendência estrutural ao excesso de oferta. Em outras palavras, em um cenário de livre concorrência, a oferta individual e autônoma de transporte público é atrativa. A experiência internacional demonstra que esse cenário é comum na realidade urbana mundial, dos tuk-tuks11 do sudeste asiático aos perueiros latino-americanos. Entretanto, um cenário de absoluta desregulamentação gera trânsito, acidentes e altos preços no transporte. Nos termos da microeconomia, a livre concorrência gera uma ineficiência na alocação dos recursos escassos que, ironicamente, o laboratório dos Chicago Boys para o Chile de Pinochet demonstrou bem (Cf. ORRICO FILHO, 1996). O que se verificou na prática para o caso brasileiro, com a consolidação da modernização do setor na década de 1980, foi a permanência dos mesmos empreendedores pioneiros, que tinham consolidado sua atuação por meio dessas mesmas barreiras à entrada e com grande influência política junto ao poder público (Cf. BRASILEIRO & HENRY, 1999). Esse cenário será melhor elucidado na seção 1.3. deste capítulo. Em teoria, os processos de permissão e concessão do poder público poderiam controlar as barreiras à entrada e regular o número de fornecedores. De fato, a observada tendência estrutural ao excesso de oferta ensejou, na literatura econômica, um extenso debate sobre a natureza da concorrência de mercado no setor. Orrico Filho (1996) classifica a concorrência no setor privado em três formas, que podem ser colocadas como níveis sobrepostos. São conceitos fundamentais para se compreender o debate sobre a regulação do setor e sua relação com o setor público, sendo que cada forma surgiu e forjou suas características em um processo histórico específico.

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Por exemplo, em relação ao tempo que se demora no trajeto, à forma de conduzir o veículo, ao trajeto mais adequado e mais demandado, aos horários de maior demanda, etc. 11 Espécie de triciclo motorizado, utilizado no transporte público, especialmente abundante na Tailândia, Camboja, Índia e países do sul asiático, batizado assim em função do seu barulho típico.

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O primeiro nível de concorrência é aquela que disputa o usuário do serviço e se dá na operação do sistema, ou seja, no momento de produção e realização da mercadoria: nas ruas, pontos e terminais de ônibus. Essa é a concorrência mais “natural”, que decorre da oferta do sistema, mas sua força só é preponderante porque o serviço se consolidou desde suas origens por meio do pagamento na hora da utilização – a tarifa. O domínio dessa concorrência é fundamental para qualquer entrante no setor e as disputas por esse mercado pautam toda a trajetória do segmento. Um segundo nível de concorrência se dá pelo direito de estabelecer “plantas de produção”, isto é, o direito de poder ofertar o serviço com relativa exclusividade em uma área urbana, a partir de um mercado regulado. Esta foi, nas últimas décadas, a partir da consolidação da modernização do setor, a concorrência que atuou como principal fator nos diálogos e organização a nível nacional das empresas do setor. Entretanto, não se pode afirmar, sem uma análise detalhada, que essa disputa é um fator que contribua para a dinamização do sistema. As características patrimonialistas da delegação do serviço, que conformam o sistema desde sua formação, têm uma grande força nesse processo. Por fim, há um terceiro nível de concorrência cuja dinâmica e existência tem relação direta com a forma de regulação pública do serviço. É a chamada “concorrência pela transferência de receita entre empresas” e se verifica quando o sistema é ofertado e administrado em rede (com mais de uma linha), com tarifa única para linhas com custos operacionais diferentes e mais de uma empresa participante. Essa disputa surge de fato com o processo de modernização da gestão pública e também das empresas do setor. Sua trajetória, principalmente para Belo Horizonte, é sintomática da perda de controle público sobre o sistema e será melhor explicitada na seção 1.3. De maneira sucinta, foram apresentadas nesta seção dez dos principais aspectos que diferenciam o transporte público enquanto mercadoria na sociedade capitalista. Essas características podem advir de especificidades inerentes ao processo em si, como são a (i) coincidência espaço-temporal de produção e realização da mercadoria e a (ii) manifestação espacialmente urbana da mercadoria; ou terem relação com o processo histórico de formação da oferta e regulação do serviço, que divide os custos e os benefícios entre a sociedade, como é o caso da (iii) indivisibilidade das externalidades positivas e a (iv) socialização das externalidades negativas, além do (v) custo marginal de provimento nulo, todas relacionadas ao aspecto de bem público do serviço. Outras 22

ainda se relacionam com a trajetória histórica de formação do espaço urbano no capitalismo, como é o caso da (vi) capacidade ociosa estrutural do serviço, a (vii) tendência à concentração espacial da demanda e a (viii) exclusividade de informação dos operadores. Por fim, há aquelas que se relacionam com a característica privada de oferta do serviço, como a (ix) tendência estrutural ao excesso de oferta e (x) a instabilidade dinâmica de mercado. Estes aspectos variados traçam um cenário de operação complexo, que por isso mesmo tende a se perder em longas discussões sobre melhoria de detalhes técnicos do sistema. Muitas dessas características, ademais, são construções históricas que foram naturalizadas ao longo do tempo e conforme as circunstâncias. A maior naturalização de todas, afinal, é a do próprio mercado como instância mediadora: quando um serviço essencial é mercantilizado, seus aspectos de exclusão e segregação espacial passam a ser encarados como consequências naturais ou, no máximo, ineficiências do sistema. É nesse sentido que o ponto de partida desse processo de pesquisa foi a negação do tecnicismo no qual está envolto o debate sobre mobilidade urbana. Mas, para todo o processo de negação, é necessário conhecer aquilo que se nega, sua origem e construção histórica. O domínio do debate técnico no setor do transporte público acaba por se mostrar primordial para que as próprias naturalizações sejam desconstruídas. Dessa forma, faz-se necessária uma abordagem mais sistêmica, que leve em consideração o comportamento do setor em relação à reprodução ampliada do capital e ao processo de produção do espaço urbano, meio indissociável de reprodução do serviço de transporte coletivo por ônibus. 1.2.“Viações ilimitadas” – a perspectiva da reprodução ampliada do capital no transporte coletivo por ônibus brasileiro 1.2.1. A reprodução ampliada do capital em seu contexto geral Desde seu processo de consolidação, ainda no século XVIII, o capitalismo apresenta como característica intrínseca uma ampliação ilimitada de suas esferas de atuação. Para Marx, é a própria natureza do modo de produção capitalista, a reprodução ampliada do capital e a continuidade da produção de “valor que se valoriza”, que possibilita esse processo sem fim – autofágico, no limite. A chave para a compreensão desse processo é a noção da contínua ampliação do valor produzido e, necessariamente, de sua expropriação por um segmento social: o entendimento da reprodução da mais23

valia (ou mais-valor, nas traduções atuais). Em um mundo mercantilizado, o próprio trabalho vivo, ou “a capacidade de enfrentar ativamente o mundo e criar vida social” (NEGRI, HARDT; 2005; p. 195) se torna, por força da pauperização e da expropriação, uma mercadoria – algo a ser vendido em troca da possibilidade de subsistência – a saber, a força de trabalho (Cf. ENGELS, 1844). Essa mercadoria, ao ser consumida, é capaz de gerar valor, por ser ela a própria concretização do trabalho, sua materialização no processo criativo. A mais-valia surge nesse cenário como elemento fundamental de exploração, o momento de expropriação do valor criado pela força de trabalho, sendo assim um trabalho não-pago e incorporado ao capital. É o processo de geração de valor de uma mercadoria de forma não-equivalente à soma do valor das mercadorias nele despendidas que concede ao capital a possibilidade de se ampliar, de expandir seus limites. Dessa maneira, independentemente do setor específico em que o capital se materialize enquanto força de comando de trabalho vivo e acumulação de trabalho morto, existe uma lógica de reprodução que lhe subjaz. É justamente a variedade de atividades produtivas e sua relação com os processos de valorização do capital, com diferentes taxas de lucratividade e rotatividade, que configurarão em linhas gerais os movimentos de transferência do capital em uma economia cada vez mais globalizada. O serviço de transporte coletivo por ônibus, ao se imiscuir no processo de produção do espaço urbano, possui características específicas, que serão salientadas ao longo deste trabalho. Antes, porém, é necessário indicar de maneira mais ampla quais forças motrizes movimentam os processos produtivos capitalistas e suas transformações. A própria lógica reprodutiva do capitalismo configura e repõe historicamente os limites de sua reprodução. A concorrência entre os diversos setores do capital, bem como a constante diminuição da utilização de trabalho vivo no processo produtivo e o aumento da maquinaria, faz com que os lucros auferidos pela exploração da força de trabalho tendam a se igualar e, a longo prazo, diminuírem, seja pela competição entre os vários capitais ou pela diminuição da massa de mais-valia. A composição orgânica do capital, isto é, a proporção de maquinaria em relação à força de trabalho tende a aumentar continuamente. (Cf. MARX, 1867).

A necessidade de diferenciação no

processo produtivo, a diminuição dos custos e o aumento da produtividade, são fundamentais para que o sistema continue funcionando. Assim, o lucro diferencial,

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acima da média, é a busca constante dos capitalistas e fator motriz do processo de acumulação. Nesse sentido, torna-se necessário para o capital encontrar formas de reprodução ampliada do valor que contornem a constante diminuição do trabalho vivo geral. Esse processo se dá, historicamente, pela ampliação da produção das mercadorias, ou seja, por tornar mais elementos do convívio social redutíveis ao equivalente geral, ao valor. A ampliação da mercantilização passa então por um contínuo processo de transformação do trabalho concreto - ou seja, de um trabalho específico, individualizável, que gera valor de uso - em trabalho abstrato, um trabalho generalizável e imediatamente igualável ao valor de troca. O processo histórico de produção do espaço, por um lado, e a configuração dos serviços públicos essenciais ao cotidiano na sociedade, por outro, são grandes exemplos dessa dinâmica. Torna-se claro que esse processo de mercantilização, por necessitar da redução do objeto ao equivalente geral do valor, cria elementos para alienação daquilo que outrora era valor de uso, objeto específico. Assim, a circulação pelo espaço público também seguirá esse caminho ao longo do tempo, com opções que priorizam as distâncias e as velocidades em detrimento do convívio e da criação do comum. A busca pelo aumento da produtividade também é elemento histórico exaustivamente demonstrado na dinâmica capitalista. A produção de mais mercadorias a um custo cada vez menor por unidade, para assim gerar lucro diferencial, é força motriz inescapável à concorrência entre capitais. Dessa forma, o desenvolvimento da indústria se pauta pelo aumento da proporção de capital constante sobre capital variável - que em última instância é o aumento da proporção de trabalho morto sobre trabalho vivo – bem como a diminuição ao máximo do tempo necessário de trabalho para produção, e assim a ampliação da expropriação do valor gerado pelo tempo de trabalho excedente (processo que, sob a batuta de Taylor, se torna uma estatística e uma ciência no começo do século XX). Esse aumento da produtividade tem relação direta com a economia de escala e também gera uma contradição em termos, típica da dinâmica capitalista. Ao aumentar a capacidade do trabalho em produzir mercadorias, é necessário aumentar a proporção de capital constante - trabalho “morto”, acumulado e materializado anteriormente - para realizar essa transformação. Nesse sentido, a taxa de mais-valia relativa, isto é, a quantidade de valor que o trabalho simples pode produzir por “unidade” despendida, aumenta, mas a sua massa total tende a diminuir, uma vez que a 25

proporção de trabalho vivo no processo produtivo diminui cada vez mais. É fundamental compreender que a pressão pelo aumento da proporção de capital constante no processo produtivo não se dá apenas por inovações tecnológicas, mas também pela coerção dos trabalhadores e por pressões políticas. Sempre que for possível diminuir o pessoal empregado e resguardar um nível mínimo de produtividade e “qualidade” da mercadoria produzida, haverá pressão por parte dos empregadores. O que não se pode perder de vista aqui é a centralidade da força de trabalho para o processo produtivo e as contradições que esse fato gera. Esses dois elementos centrais no processo de reprodução ampliada do capital, o avanço da mercantilização e o aumento da produtividade, são fundamentais para compreender as transformações contemporâneas do capitalismo, centrais também para a compreensão da trajetória e atual cenário do transporte coletivo urbano. Nesse sentido, há significativas mudanças qualitativas no processo produtivo ao longo das décadas que são necessárias destacar. Em primeiro lugar, há uma tendência histórica de incorporação da ciência, do conhecimento, da estética e de toda uma gama de construção de valores simbólicos, ao processo produtivo contemporâneo. A ciência e o domínio da técnica sempre se inseriram no sistema capitalista como uma das formas de se aumentar a produtividade do trabalho. Cada vez mais o conhecimento é produzido com esse propósito, e grandes sistemas nacionais e internacionais de inovação, com forte apoio estatal, tem sido erigidos para que este processo seja cada vez mais controlado e sistematizado. Torna-se cada vez mais crucial para a sobrevivência do capitalismo a inovação dos processos produtivos (voltados para o âmbito do aumento da produtividade) e, crescentemente, dos próprios produtos (voltados para o âmbito do avanço da mercantilização). A centralidade dessa dinâmica é um dos fatores que contribuem para que seja identificada uma mudança nas relações sociais de produção, com a ascensão de uma tendência à hegemonia do trabalho imaterial12. Em segundo lugar, a mercantilização e o aumento da produtividade contribuem para que a própria natureza do capitalismo se altere, inclusive em relação ao espaço 12

Nas últimas três décadas, houve uma renovação do debate sobre a natureza do atual modo de produção capitalista, os teóricos que o elaboram advém principalmente da tradição teórica e prática do autonomismo operário da década de 1970 na Itália. Principalmente o filósofo italiano Antonio Negri, mas também autores como Mario Tronti, Maurizio Lazzarato, Michael Hardt e Paolo Virno. A partir de uma perspectiva de renovação do debate marxista, essas elaborações teóricas se desenvolvem durante a década de 1980 na França, em profundo debate com a escola da regulação francesa e com filósofos pósestruturalistas como Gilles Deleuze, Felix Guattari e Michel Foucault. É importante ressaltar, entretanto, que esses pensadores não se constituem como um grupo coeso. Há muitos conceitos partilhados e de significado comum, mas há uma série de conceitos que são específicos a cada um destes autores.

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urbano. A criação de valor, por sua natureza socialmente construída – simbólica e subjetivamente -, se expandiu para além da incorporação de trabalho material às mercadorias nas fábricas. A dimensão social do processo de construção de valor se torna central nas transformações pós-fordistas, transbordando-se para o espaço-tempo da metrópole contemporânea. Nesse sentido, o fluxo imaterial de informações e o fluxo material de pessoas e mercadorias pelo espaço urbano, bem como as relações sociais cotidianas, ganham outro significado e se abrem – na perspectiva do capitalismo – para um renovado processo de mercantilização. O transporte coletivo, ao ter o espaço urbano como um de seus meios de produção indissociável, também assume nova característica na lógica de produção do espaço e na reprodução ampliada do capital. Um dos fios que conduzem a discussão feita nesta dissertação é a hipótese de que há uma relação central entre o desenvolvimento do sistema de transportes das cidades brasileiras e a produção de seu espaço urbano, ambas guardando relação direta com as transformações da natureza do capitalismo e as mobilizações populares. Assim, o transporte público cresce e se altera qualitativamente ao longo do tempo, conferindo, no Brasil, uma trajetória central à iniciativa privada e sua relação com o estado. 1.2.2. Funis de demanda e oferta no espaço urbano: o transporte público na perspectiva da economia política marxista

Na história do planejamento urbano, em seus debates teóricos e ações públicas, o transporte público sempre ocupou uma posição secundária. Em que pese sua importância para a conformação da estrutura urbana das cidades e seu planejamento – inclusive pelo caráter econômico que possui –, a questão sempre foi legado àquilo que se convencionou chamar, atualmente, de “engenharia de trânsito e transportes”. Mesmo dentro das teorias urbanas mais críticas, como a assim chamada Economia Política da Urbanização, o transporte público mereceu – quando muito – comentários avulsos de seus principais elaboradores, como Manuel Castells e Jean Lojkine. Sua dinâmica e funcionamento, em si, pouco foram pensadas, tampouco sua relação com a produção do espaço e com a reprodução ampliada do capital. 13 13

A exceção é feita à abordagem de David Harvey em sua obra Limits to Capital, de 1982, em especial no capítulo 12 – “The production of spatial configurations: the geographical mobilites of capital and labour”. Entretanto, as limitações temporais deste processo de pesquisa impediram que a perspectiva totalizante de Harvey fosse estudada com o rigor necessário para adentrar a discussão realizada nesta seção. Entretanto, fica aqui indicado como fonte para futuros desdobramentos da agenda de pesquisa.

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Quando o tema do sistema de transportes ganhava algum enfoque na questão do planejamento urbano e da produção do espaço, usualmente era a dimensão da produção da infraestrutura urbana de transportes e trânsito o seu principal aspecto debatido. Como um exemplo, David Harvey (1981) conceitua a produção da infraestrutura viária como uma etapa do circuito secundário de acumulação do capital. O capital gerado pela produção de mercadorias “normais” seria demasiado para o investimento em mais produção dentro do chamado circuito primário de produção de mercadorias. Dessa maneira, o acúmulo de capital é canalizado para a produção de espaço urbano, que possui um tempo de maturação (i.e. rotatividade do capital) lento. Viadutos, trincheiras e infraestrutura rodoviária eram construídos também para cumprir um objetivo de rotação do capital, associado a seu aspecto hegemonicamente rodoviarista. Evidentemente, como já mencionado neste trabalho, a infraestrutura viária é dimensão indissociável do serviço de transporte público por ônibus, podendo ser caracterizada – no limite – como seu meio de produção, mas não é elemento suficiente para se caracterizar um sistema de transportes. A economia política da urbanização costuma caracterizar o transporte coletivo urbano como condição e meio de reprodução da força de trabalho no espaço urbano. Assim, o enfoque que se dá passa pela dimensão exclusiva do transporte como meio de produção na grande engrenagem da metrópole fordista, ou seja – em uma abordagem historicamente circunstanciada – o transporte público serviria única e exclusivamente para transportar a força de trabalho (enquanto capital variável do processo produtivo) para os locais de produção e consumo de mercadorias. Estes autores não trazem para discussão as relações sociais no espaço público que o transporte cria, nem a forma como o capital do setor se reproduz, tampouco sua relação com outros modos de transporte e com o espaço urbano. É claro que nesse cenário há exceções e espaços de convergência entre os diversos campos científicos. O transporte público enquanto uma disciplina especializada de pós-graduação, ainda que a partir de um enfoque da engenharia e economia neoclássica, vinha sendo estudado desde a década de 1970 no Brasil, com a criação do programa de pós-graduação em engenharia de transportes na UFRJ e, de um ponto de vista mais amplo, com a criação da Associação Nacional de Transporte Públicos (ANTP), em 1977. Dentro desse contexto, surgem figuras como o sociólogo e economista francês Etienne Henry. Este autor desenvolveu, ao longo de mais de 30 28

anos, pesquisa sobre a questão do transporte urbano a partir do Instituto Nacional de Pesquisa em Transporte e Segurança (INRETS), na França. A partir da década de 1980, o instituto começou a trabalhar em cooperação com entidades similares na América Latina. Nesse período há também uma crescente formulação sobre as mudanças na natureza do capitalismo, cujo modelo fordista tinha entrado em profunda crise na década de 1970, que acarretará, entre outros, na formação da “Escola Francesa de Regulação” e no surgimento de um vigoroso debate pós-estruturalista. É nesse cenário de elaboração que se inicia uma cooperação internacional entre institutos de pesquisa sobre transporte. O contato de Etienne Henry com pesquisadores como Oscar Figueroa, Anísio Brasileiro, Regina Pacheco, entre outros, produziu uma pesquisa científica de fôlego sobre o desenvolvimento histórico e a realidade do transporte público na América Latina, tanto do ponto de vista do ineditismo no levantamento e sistematização de dados, como na produção de análises e modelos teóricos. Essa abordagem é fundamental, e considera a inserção periférica e tardia do continente no modelo de desenvolvimento gerado e exportado pela Europa. É a partir da obra que Anísio Brasileiro e Etienne Henry desenvolveram, em conjunto com um grande número de pesquisadores brasileiros14 - que resultou no livro Viação Ilimitada: Ônibus das cidades brasileiras, de 1999, referência também deste trabalho -, a ideia de que é possível discutir a questão do transporte público também a partir de uma perspectiva da economia política da urbanização. A evolução brasileira do setor, dos primeiros fornecedores de transporte público por ônibus, de maneira autoproduzida e artesanal, para as grandes empresas de viação – caso único na América Latina – é o que chama a atenção como objeto de estudo para esse grupo de pesquisadores e possibilita elaborações de modelos teóricos. Assim, a partir desse cenário, é proposto o esquema analítico dos “funis” de demanda e oferta do transporte público. A partir da figura do funil como o elemento que direciona, seleciona e filtra a vazão, o autor busca caracterizar a formação da demanda efetiva do transporte e as formas de produção simples e ampliada do transporte por ônibus.

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Um conjunto de 20 pesquisadores e suas equipes, denominado “TURMA” – Transportes Urbanos, Regionais, Metropolitanos e Autônomos. “Acadêmicos e técnicos com prática concreta na área e conceituados na ambiente nacional e internacional, os autores são conhecidos por suas publicações, presença em congressos e atuação em cargos institucionais e políticos” (BRASILEIRO & HENRY, p. 632)

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Pelo lado da demanda, o autor busca caracterizar os aspectos que perfazem as “condições gerais de produção” do serviço. O processo de urbanização é sua força motriz principal, ao configurar a estrutura da cidade, seus processos produtivos e suas necessidades de deslocamento. De maneira abstrata, sem considerar ainda as dimensões reais da oferta, é possível afirmar que quase todo deslocamento pelo espaço urbano pode, em teoria, ser realizado por ônibus. Essa possibilidade latente configura uma demanda potencial, geral, levada aqui a seu limite para efeitos de argumentação. Evidentemente, há uma série de condicionantes que selecionam os usuários efetivos do transporte público, na chamada demanda “real” do sistema. Em primeiro lugar, o espaço urbano, em especial no processo de urbanização brasileiro, leva a uma fragmentação muito grande da demanda, espalhada de maneira esgarçada e desigual no território. Inicialmente sem condições de servir a todos aqueles que desejam se deslocar, a oferta privada de transporte público buscará os lugares e horários que possam lhe garantir alguma espécie de retorno financeiro consistente. Assim, a oferta do serviço é historicamente baixa ou inexistente em bairros periféricos e nos horários noturnos e aos finais de semana, impossibilitando o acesso à cidade para uma significativa parcela da população. Eis a primeira “côa” do funil da demanda. A demanda potencial também será filtrada por pelo menos dois grandes mecanismos até atingir a demanda efetivamente existente. Considerando que o financiamento do sistema é, historicamente, realizado pelo seu usuário direto, a renda se torna o fator de seleção mais importante no processo produtivo. Na camada de usuários de renda superior, ocorrerá, gradativamente, o chamado “efeito substituição”. Na medida em que têm possibilidades financeiras e sociais de adquirir um veículo automotor próprio, seja carro ou moto, esses usuários abandonam a opção pelo ônibus em seus deslocamentos cotidianos. Essa opção é continuamente estimulada pela precariedade do sistema e pelo status social que o automóvel tem na sociedade contemporânea. Não necessariamente o modo mais rápido, confortável e eficiente, e muitas vezes o modo mais caro15, a relativa autonomia e diferenciação social do veículo próprio contribui para essa opção16.

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A exceção é a motocicleta que tem papel crucial no processo de motorização brasileiro, principalmente entre as faixas de renda mais baixa, em cidades periféricas e na região Norte. 16 Entretanto, é preciso lembrar que a propriedade de um veículo não implica, necessariamente, na realização de todos os deslocamentos por meio dele. É nessa disputa de demanda – a transformação de potencial em real - que os países ditos “desenvolvidos” concentram seus esforços.

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O outro grande mecanismo de filtragem da demanda real ocorre na camada de usuários de baixa renda, que consistem em parte considerável da população brasileira e latino-americana. O fato da remuneração do sistema se dar via pagamento direto feito pelo usuário, em que pese os possíveis subsídios existentes hoje em dia (como o valetransporte e a isenção de alguns impostos), faz com que – a partir do círculo vicioso da tarifa17 – todo reajuste tarifário acarrete, necessariamente, em aumento da exclusão sócio-espacial. Assim, historicamente, grandes segmentos da população urbana brasileira se viam condicionados à segregação espacial pelo transporte, a não ser que o burlassem e o utilizassem gratuitamente – como, de fato, o têm feito desde o início. A população restante ao processo de filtragem representa a demanda real do transporte coletivo por ônibus. Parte significativa deles faz parte da chamada “demanda cativa” do sistema: aqueles usuários que, por não terem opção a não ser o deslocamento por ônibus, estão atrelados ao modo de transporte e suas flutuações. Vivendo em uma situação de instabilidade quanto à sua relação com a cidade, é esse o segmento populacional que compôs as mobilizações populares que serão debatidas nesse trabalho18. 1.2.3. Os funis invertidos da oferta de transporte público – a dinâmica do capital no setor. Depois que a demanda potencial é coada em demanda real, trata-se de analisar agora a forma como a oferta do serviço se estrutura no capitalismo, sob um ponto de vista

da

economia

política

marxista.

Etienne

Henry

(1999b)

classifica

esquematicamente a oferta em 5 graus diferentes de organização capitalista: a produção

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Dinâmica econômica constatada diversas vezes por diversos segmentos nas últimas décadas (a referência mais recente é IPEA, 2013), o círculo vicioso da tarifa é a principal argumentação da crise estrutural do atual sistema de ônibus e será referenciado diversas vezes neste trabalho. Trata-se da seguinte dinâmica: a tarifa é reajustada, as condições econômicas e urbanas criam incentivo para que o usuário de transporte público abandone o sistema e adote a solução do transporte individual. O consequente aumento no número de veículos torna os deslocamentos do transporte público mais lentos e aumentam seus custos operacionais. Por outro lado, a perda de receita tarifária com a diminuição do número de usuários pressiona o equilíbrio econômico-financeiro. A solução é um novo rateio do custo total pelo número de passageiros pagantes, que aumenta a tarifa e pressiona pelo reinício do ciclo. As gratuidades segmentadas, principalmente a dos idosos, concedida federalmente, pressionam ainda mais o sistema no longo prazo, dado o processo de envelhecimento populacional que o Brasil vive. 18 Torna-se fundamental criar uma agenda de pesquisa que possa caracterizar de fato quem são esses usuários, do ponto de vista social, econômico e demográfico. Apesar disso é possível aventar a hipótese de que estes são, em sua maioria, mulheres, negras, com mais de 30 anos. Esse segmento da população é aquele que, nas atuais circunstâncias sociais brasileiras, não tem condições nem econômicas nem burocráticas para migrar para o transporte individual motorizado.

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do serviço; a reprodução simples da atividade; sua reprodução ampliada; a etapa de capitalização e expansão e, por fim, a etapa de concentração e simultânea diversificação do capital. Em outro estudo, de base empírica, essa definição é a aplicada ao levantamento de empresas de ônibus existentes na década de 1990 no Brasil, chegando a uma classificação de oito categorias (não sequenciais ou evolutivas) de empresas, conforme seu porte e forma organizacional (Cf. HENRY, 1999a). a)Autoprodução Como ressaltado na seção anterior, o transporte público, por seus relativos baixos custos, tem uma capacidade maior de atrair ofertantes individuais do que outros serviços públicos. É nesse sentido que se configura o primeiro nível de oferta do serviço: a produção simples, que não necessariamente precisa de uma continuidade no tempo. Ao obter um veículo e acesso a seus insumos (combustível, lubrificante, etc.), uma pessoa pode ofertar um serviço de transporte a partir de sua própria força de trabalho. De fato, Não é necessário maior profissionalismo além dos conhecimentos básicos de direção e mecânica para produzir essa mercadoria-serviço. E, para vendê-la, basta ter um reconhecimento intuitivo da demanda, aliado a um certo acesso aos mecanismos que permitam combinar receita diária e financiamento do veículo [...]. Do ponto de vista comercial, estas são as condições básicas da autoprodução de um serviço, diferindo muito pouco do que acontece em outras atividades comerciais ou artesanais. (HENRY, 1999b, p. 388).

De fato, verifica-se historicamente que a oferta de ônibus em todos os países da América Latina começou dessa forma, na chamada “produção artesanal” do serviço. Esse modelo de oferta ainda existe de maneira latente, em variadas dimensões, nas cidades brasileiras e, muitas vezes, foi procurada como saída de ganho financeiro para segmentos afetados por crises econômicas, como ocorreu no fim da década de 1990, com o fenômeno dos perueiros em meio à crise econômica do Real. Uma questão relevante desse fenômeno é que a maioria dos ofertantes não se adéquam a uma oferta com regularidade de horários e itinerários. Era comum observar na cidade de Belo Horizonte, durante o fenômeno dos perueiros – que em muito se assemelha à categoria dos autoprodutores -, a busca contínua e aleatória por passageiros e a oferta esporádica, geralmente nos horários de pico. Uma “produção simples” dentro de uma cidade com uma sistema já regulado e em operação se dá, assim, pelo “roubo da demanda” consolidada do transporte. É a possibilidade desse fenômeno que enseja, desde o começo, a regulação do serviço pelo poder público. 32

Cabe aqui a reflexão sobre a natureza capitalista desse estágio de prestação do serviço. Do ponto de vista da formação de valor, a autoprodução impede que haja a apropriação de excedente não-pago, a mais-valia, e, portanto, acumulação no sentido capitalista clássico. Evidentemente, como ocorre com outros produtos artesanais e com o comércio, há uma margem de lucro que enseja a oferta do serviço. Ela pode se dar por meio da exploração de grandes demandas, por meio da regulação do preço acima do valor real de seu trabalho e também, recorrentemente, por meio do prolongamento exaustivo da própria jornada de trabalho. Em outras palavras, o ofertante do serviço compensará com volume de trabalho aquilo que não consegue obter em produtividade. De fato, a extensa jornada de trabalho era a principal reclamação dos perueiros belohorizontinos assim que foram regularizados como prestadores de “transporte coletivo suplementar” na cidade, no ano de 2001. Para garantir algum retorno financeiro e a regularidade do serviço, uma vez que inicialmente estavam proibidos de contratar funcionários, muitos perueiros chegaram a estender sua jornada para 12, 14 e até 16 horas de trabalho diário19. b) Reprodução simples da atividade Se o prestador dessa autoprodução do transporte acumula capital suficiente, ele pode começar a contratar ajudantes e a estruturar o serviço de uma maneira mais ampla. A regularidade do serviço e, principalmente, a existência do trabalho assalariado configuram o nível de reprodução simples da atividade. Nesse grau de organização, a atividade já consegue se autossustentar e não está tão sujeita a variações em seu padrão de oferta e demanda como no caso anterior. Há uma quebra com o espontaneísmo precedente e a busca por uma formalização. Apesar disso, o produtor ainda tem pouco poder de atuação na economia urbana, e se encontra muito vulnerável a dinâmicas mais amplas da cadeia produtiva em que está inserido. Henry coloca que há uma grande dependência do prestador de serviço em relação à indústria automobilística, aos mecanismos de acesso cooperativo a peças e combustível, à formação comum do pessoal que trabalha na condução e na parte mecânica e à dotação de vias e equipamentos urbanos. Tal dependência se estende também para as formas urbanas [...] e sua estruturação em fluxos e horários, sendo que, à diferença da mercantilização de outros bens, o transporte não pode ser estocado, nem a demanda aglomerar-se em excesso. (HENRY, 1999b, p. 389).

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Esses relatos foram prestados por antigos perueiros nas audiências públicas para a nova licitação do transporte coletivo suplementar em Belo Horizonte, nos meses de fevereiro (em audiência obrigatória pela lei de licitações) e março (em audiência na Câmara Municipal) de 2015.

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É nesse sentido que aspectos como o conhecimento geográfico dos itinerários e de sua dinâmica cotidiana são fundamentais para a permanência dos prestadores do serviço nessa etapa. Para além disso, é de se notar que essa fragilidade ainda enseja um cenário de competição mais duro, relacionado ainda à consolidação da operação da empresa nos bairros da cidade e o impedimento da entrada de outras empresas. É nessa transição da forma de operação que se observa a importância que têm as relações entre o setor privado e os agentes do poder público. Relações de favorecimento, compadrio e, esporadicamente, o uso da força, foram e muitas vezes ainda são fundamentais para garantir a permanência dos empresários. A década de 1950, com a aceleração da industrialização e a crise estrutural dos bondes, é o principal momento em que ocorre, nas grandes cidades brasileiras, a transição da fase de “autoprodução” para a de “reprodução simples”, com todas as disputas políticas e contradições que esse processo acarretava. Em Belo Horizonte, apesar do Departamento de Bondes e Ônibus (DBO), órgão público gestor de então, ter estabelecido já em 1953 um regulamento que estabelecia concorrência pública para a oferta de serviço de transporte coletivo, estudos dão conta que Apesar de previstas no regulamento, as concorrências públicas regulares não chegaram a 20 nos anos 50; o “conhecimento” político era o instrumento usual junto ao DBO, segundo alguns empresários pioneiros. [...] Há diversos relatos de quem estava começando a operar sob boicotes e sabotagens por parte daqueles que já possuíam mais de um carro na linha. Muitos dirigiam o seu próprio veículo, faziam a cobrança, a manutenção depois do expediente, administravam a féria para o pagamento do veículo e de suas despesas. Outros operadores, mais capitalizados, entravam no negócio ganhando a concorrência para determinada linha. A longo prazo, no entanto, o sistema restringiu a participação de pequenos empresários, que não aguentavam o ritmo de trabalho e, descapitalizados, passavam o veículo e a concessão para outro empreendedor. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 169).

Esse relato aponta para uma dinâmica crucial no processo de modernização capitalista: à medida que a disputa exige maior manejo de recursos, a tendência do setor é concentrar capital. Assim, ao longo da década de 1950, os empresários mais capitalizados começam a se consolidar na operação do sistema. Mas, fato indissociável, à coerção econômica soma-se uma coerção política e mesmo física. Esses recursos nunca estiveram ausentes na história do capitalismo e é no mínimo ingênuo tentar entender a dinâmica de mercado sem essa dimensão. Nesse sentido, a retórica liberal do mercado como melhor alocador de recursos falha ao considerar como dimensão ética e comportamental humana apenas as dinâmicas de oferta e demanda utilitaristas.

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Outro aspecto essencial, a ser observado ao longo de toda a trajetória de formação do transporte público, é que a necessária intervenção reguladora do poder público na iniciativa privada se deu no sentido da concentração do capital do setor. Por trás dessa intenção está o entendimento de que é necessária uma escala de operação significativa para lidar com as proporções do processo de urbanização que estava ocorrendo. Essa noção de economia de escala e, posteriormente, de um monopólio natural é fundamental para a atuação do setor, ainda que tenha sido, em muitas das vezes, uma elaboração a posteriori ao processo de regulação em si (ver BRASILEIRO, 1996). Um aspecto fundamental da passagem da fase de autoprodução para a de reprodução simples da atividade é a internalização da manutenção dos veículos, com a criação de oficinas próprias, e o processo de assalariamento da força de trabalho, que acarreta em relações de hierarquia. Elemento da modernização, a introdução da força de trabalho assalariada no processo produtivo caracteriza, irreversivelmente, a tendência capitalista da prestação do serviço, e a coloca em outra esfera de disputa. Nesse sentido, é fundamental compreender que a coincidência espaço-temporal da produção e realização da mercadoria confere à força de trabalho um status diferenciado dos outros setores, com os trabalhadores possuindo um poder maior sobre suas condições de trabalho do que os de outros processos produtivos. Etienne Henry comenta da seguinte forma: O domínio quase exclusivo da condição concreta de execução do serviço concede força considerável às organizações trabalhistas e sindicais dos transportes, à diferença do que ocorre nas atividades fabris ou comerciais, em que a ação de produzir fica afastada da realização comercial da mercadoria ou vice-versa. (HENRY, 1999, p. 392).

O poder de barganha dos trabalhadores deve ser relativizado dentro das condições efetivas de trabalho durante o processo de modernização brasileiro. É fato que o setor necessita de uma força de trabalho continuamente presente para produção/realização da mercadoria, mas, assim como em outros setores capitalistas, há pressão nas condições de trabalho para que se possa gerar a maior produtividade possível. Nesse sentido, depois que os empresários deixaram de ser empreendedores individuais autônomos e passaram da fase de “autoprodução” para a fase “reprodução simples da atividade”, os seus empregados, submetidos a um regime assalariado capitalista tradicional passaram a ser pressionados de todas as maneiras. Assim, é recorrente na literatura sobre o tema relatos da exploração de longas jornadas de 35

trabalho (algumas chegando a 16 horas por dia), exploração de menores para o serviço de cobrador, não pagamento do salário mínimo, entre outras.20 Essa situação de exploração também enseja a organização política da força de trabalho. Em Belo Horizonte, o Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário (STTR-BH) da cidade foi fundado no fim de 1950. O que diferencia o serviço de ônibus dos outros setores não é a necessidade de aumento da mais-valia relativa e absoluta, que é inerente à dinâmica do capital, e sim a dificuldade de ampliação da produtividade do sistema por meio da introdução de capital constante mais produtivo. Em outros termos, é grande a dificuldade de automação do processo produtivo, como prova a resistência dos cobradores em seus empregos apesar da introdução dos créditos eletrônicos. A operação é complexa, lida com grande quantidade e fluxo de pessoas. Nesse sentido, o setor possui alta empregabilidade. Como a expansão de sua produção está diretamente vinculada com a operação do serviço, diferentemente do que é comum na dinâmica capitalista, o crescimento em escala de sua operação não diminui a proporção de capital variável (i.e. a força de trabalho) utilizada. Sob esse ponto de vista, existe uma dinâmica nesse setor contrária à lei tendencial da queda da taxa de lucro (em que o capital constante aumenta em proporção ao capital variável), pois a produção de trabalho vivo ainda tem uma proporção grande em relação ao trabalho morto materializado. Entretanto, não se pode ignorar que a pressão para o aumento de produtividade, no sentido de realizar economia de capital variável, também é política. Assim, a pressão para a cobrança eletrônica no sistema e para a eliminação dos cobradores enquanto força de trabalho necessária à operação do serviço é contínua na história do setor no Brasil. Configurando cerca de 20% dos custos trabalhistas, os cobradores sempre foram foco de ataque por parte dos empresários. É revelador o fato de que, após os movimentos de junho de 2013, a prefeitura municipal de São Paulo tenha feito um acordo com os empresários, no qual elimina a presença dos cobradores, ao mesmo tempo em que amplia a gratuidade para alunos de escola pública (SÃO PAULO, 2014). A natureza do capitalismo é a reprodução ampliada de seu sistema. Nesse sentido específico, apesar de empregar força de trabalho assalariada, Henry não reconhece o estágio da reprodução simples como de natureza puramente capitalista. 20

Em Belo Horizonte, no começo da década de 1960, os relatos jornalísticos davam conta de que cerca de 90% das empresas da cidade não respeitavam a legislação trabalhista. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 198),

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Antes o associa ao estágio “manufatureiro” descrito por Marx, no qual a atividade artesanal se faz perene. Entretanto, considera-se que essa inferência do autor é equivocada, uma vez que a existência do consumo de força de trabalho e da apropriação de mais-valia, bem como de uma divisão social do trabalho, são características capitalistas “puras” e já predispostas à acumulação ampliada, como afirma Marx no Capital.21 c) Reprodução ampliada da atividade O principal fundamento para a reprodução ampliada do serviço, neste enfoque, é a divisão entre a propriedade da empresa e seu processo produtivo. Em outras palavras, o definitivo descolamento do empresário/proprietário da empresa em relação à operação cotidiana do serviço. O proprietário deixa de ser motorista e/ou mecânico de seu serviço para passar a ser o administrador. Em teoria, à medida que a empresa se moderniza, a tendência é que esse distanciamento cresça mais e que prescinda também das atividades de gestão. Entretanto, o caráter familiar das viações brasileiras e a importância das relações patrimonialistas com o Estado e paternalistas com os funcionários vão obscurecer essa lógica evolutiva de modernização (Cf. CANÇADO et. al., 1999). O fundamental aqui, de qualquer forma, é que – uma vez separado do volante – o empresário busca garantir o capital para a reprodução cotidiana (simples) e para o investimento na atividade (ampliada). Em termos históricos, a reprodução ampliada da atividade de prestação de serviço de transporte por ônibus se realizou durante a urbanização acelerada brasileira – entre as décadas de 1960 e 1980. Como se verá no capítulo 2, a vertiginosa e precária produção do espaço urbano naquela época demandava infraestruturas de porte inédito na realidade brasileira. No caso do transporte público, essa ampliação de oferta passava, inevitavelmente, por uma capacidade de operação contínua que, por sua vez, demandava 21

Marx se refere à atividade manufatureira nos seguintes termos: “A divisão manufatureira do trabalho cria, por meio da anáalise da atividade artesanal, da especificação dos instrumentos de trabalho, da formação dos trabalhadores parciais, de seu agrupamento e combinação num mecanismo total, a articulação qualitativa e a proporcionalidade quantitativa dos processos sociais de produção – portanto, uma determinada organização do trabalho social, desenvolvendo, assim, ao mesmo tempo, uma nova força produtiva social do trabalho. Como forma especificamente capitalista do processo de produção social [...] tal divisão é apenas um método particular de produzir mais-valor relativo ou aumentar a autovalorização do capital [...] a expensas dos trabalhadores. Ela não só desenvolve a força produtiva social do trabalho exclusivamente para o capitalista, em vez de para o trabalhador, como o faz por meio da mutilação do trabalhador individual. Ela produz novas condições de dominação do capital sobre o trabalho. E assim ela aparece, por um lado, como progresso histórico e momento necessário de desenvolvimento do processo de formação econômica da sociedade e, por outro, como meio para uma exploração civilizada e refinada.” (MARX, 1867, p. 438)

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uma economia de escala equivalente. Assim, a internalização da manutenção dos veículos ganha importância crucial, bem como a gestão sobre os trabalhadores, agora já divididos em diversos setores – oficinas, garagens, ônibus, escritórios, etc. Sobretudo, torna-se necessário criar condições para acumular capital que possibilite a renovação e expansão da frota. Nesse ponto, a forma histórica de remuneração do serviço é essencial para dar dinâmica ao setor. O fato de ser remunerado continuamente via tarifa, com o pagamento de cada passageiro que lhe utiliza, dá grande liquidez aos empresários de ônibus. Com um número de passageiros transportados por dia que pode atingir a casa dos milhões, dependendo do porte da cidade, a arrecadação cotidiana de receita configura um capital local de significativa relevância e liquidez, que, ao longo do tempo, pode ser transformado em capital financeiro. Em outras palavras, o volume de dinheiro arrecadado cotidianamente confere a esse setor uma grande rotatividade de capital, que muitas vezes pode compensar sua rentabilidade de curto prazo, relativamente baixa. Se comparado a outras atividades da economia urbana, esse é o setor com maior rotação de capital, ganhando do comércio varejista em volume e da construção civil em velocidade. Essa liquidez confere ao setor, atualmente, uma tendência à financeirização, com a criação de ativos e produtos financeiros, e a possibilidade de utilização de um lastro que entra em consonância com as mudanças globais do capitalismo. À medida que o setor se moderniza, garantir a inserção desse capital financeiro em circuitos locais e globais passa a ser ponto crucial e estratégico para as empresas. O processo crescente de financeirização tem sido observado empiricamente nas grandes cidades brasileiras como é caso recente das contas em paraísos fiscais dos grandes donos de empresa de ônibus do Rio de Janeiro (Cf. RODRIGUES, 2015). Em Belo Horizonte, as licitações mais recentes instituíram, por contrato, o recolhimento compulsório de 1% da receita tarifária e sua aplicação em instituições financeiras como forma de dar uma nova dinâmica e inserção ao setor (ver BELO HORIZONTE, 2008b). A característica da rotatividade do capital se encaixa também dentro da elaboração teórica da economia política marxista. Como descrito, o setor possui uma baixa composição orgânica do capital, isto é, uma grande proporção de capital variável em relação ao fixo. Isso significa que esse setor do capital comanda, em relação à sua quantidade de capital constante (veículos, garagens, oficinas, etc.) um volume relativamente maior de força de trabalho para realizar o processo produtivo (motoristas, 38

cobradores, despachantes, mecânicos, etc.). Em que pese a produtividade relativamente baixa em função dessa característica - isto é, a baixa taxa de mais-valia relativa - o setor a compensa com o volume de valor produzido, ou seja, com maior massa de mais-valia, a ser recapitalizada. Na perspectiva marxista, a rotatividade do capital pode ser um elemento a se contrapor à queda tendencial do lucro. Mas, para conseguir manejar, de fato, as vantagens desse aspecto, o capitalista precisa também ter capacidade de comando sobre uma grande massa de força de trabalho que, inadvertidamente, traz no bojo de sua mercadoria seus respectivos seres humanos trabalhadores. Esse fato, evidentemente, gera grande dificuldade de gestão, uma vez que – como mencionado – o controle do processo produtivo tem grande dependência dos trabalhadores na sua operação. Uma vez que a dinâmica de demanda do transporte tem picos e variações diárias e geográficas, adequar seu atendimento exige criar uma complexa flexibilidade do trabalho. No Brasil, fazem parte desse processo as intrincadas relações políticas e trabalhistas, que variam entre coerções e cooptações, muitas vezes gestadas ao longo de muitos anos entre sindicatos e outros grupos de interesse. Em outras palavras, a busca pelo aumento da produtividade aqui demonstrada tem seu foco na mudança da natureza das relações sociais de produção. Esse aspecto, mais político do que técnico, do processo de modernização das empresas de ônibus é singular e relevante para a compreensão de sua relação com a produção do espaço urbano e com o capitalismo em geral. Para situar essa singularidade, vale aqui a longa citação do artigo de Henry: A administração moderna é menos técnica do que institucional e a direção do processo atinge mais as regulamentações do que as inovações. O porte da empresa, ou o limite de seu crescimento produtivo, não depende do capital fixo, mas sim da operacionalidade. Ou seja, claramente neste caso, as economias de escala dependem do controle que se conseguir manter sobre a organização do trabalho, enquanto são as exigências trabalhistas que determinam até que ponto uma empresa é “manejável”. Eis aqui o verdadeiro sentido da economia de escala no setor, no qual a adaptabilidade que se credita ao autoprodutor simples – uma vantagem em si – não pode ser desconsiderada quando se compara este tipo de operação com aquela efetuada por grandes empresas. Nestas, o gigantismo pode ser prejudicial: devido ao peso excessivo do fator mão-de-obra, elas acabam perdendo o que ganharam em acumulação de capital (veículos, por exemplo). Enquanto se mantiver o princípio de uma cobertura total dos custos de produção pela tarifa paga pelo passageiro, sem subsídio externo à atividade, o salário do trabalhador do transporte importa mais do que as tarifas cobradas ao conjunto dos trabalhadores. (HENRY, 1999, p. 393, grifo meu).

Assim, existem características específicas do processo produtivo do transporte público que tornam seu processo de modernização e expansão singular. A economia de 39

escala não tem, aqui, a mesma simplicidade lógica de outros setores econômicos. Rotatividade do capital, liquidez, financeirização, controle dos aspectos operacionais pelo trabalhador, dependência do “capital variável” e o aspecto espacial da realização da mercadoria se combinam de maneira complexa, estabelecendo os parâmetros que balizam o acúmulo de capital no setor, mas também dando condições para que movimentos sociais e trabalhadores possam buscar a superação da natureza capitalista do serviço. d) As duas últimas etapas: capitalização e expansão do serviço, concentração e simultânea diversificação do capital A liquidez do sistema de transporte público constitui sua característica diferenciada para atuar na economia urbana. Diferentemente do processo de “remuneração do capital investido”, tratado aqui a longo prazo (e com vários tipos de regulação, como se verá na próxima seção), a entrada da remuneração cotidiana possibilita que o capital atue em outros setores para se dinamizar. Esse ponto é fundamental quando se compreende que há um limite operacional e econômico para expansão de um sistema local de transporte por ônibus, dentro da lógica capitalista. Devido às peculiaridades demonstradas para a composição orgânica do capital e a expansão da produtividade do setor, a dinâmica de reprodução ampliada impõe que o capital busque outros mercados de atuação antes de tentar ampliar sua oferta em um mercado em que já atua. Essa etapa da modernização empresarial impõe uma concorrência por plantas de produção, como apresentado na seção anterior, que gera uma dinâmica oligopolista no setor. Empresas bem-sucedidas e capitalizadas podem, com mais facilidade, ofertar transporte para cidades médias e pequenas – nas quais o volume de dinheiro arrecadado não é tão alto, mas a taxa de lucro é maior devido à fraca ou ausente atuação do poder público local. Esse processo gera uma concentração do capital que é facilitada quando os maiores empresários conseguem combinar suas ações, por meio de uma organização regional ou nacional. A oligopolização como forma de preservar os interesses das maiores empresas foi gradativamente se construindo como prática administrativa no cenário nacional. Dessa forma, uma outra etapa do processo de modernização brasileiro começa a ocorrer na segunda metade da década de 1980, com a aprovação da lei do valetransporte que alivia o financiamento das empresas prestadoras e com a fundação, em 40

1987, da Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano – NTU. A abrangência do capital torna-se nacional, para todos os efeitos políticos e econômicos. Assim, empresários começam atuar na diminuição de custos, com lobby sobre a legislação trabalhista e tributária sobre os principais insumos, bem como a dividir o mercado. A partir desse momento, o fluxo de capital do setor ganha liberdade para seguir um triplo processo pelo qual há tempos pressionava. Em primeiro lugar, passa por uma “acumulação vertical” em sua cadeia produtiva, fortalecendo as ligações com a indústria automobilística e buscando internalizar alguns processos produtivos e de compra e venda. É nessa dinâmica, por exemplo, que as carrocerias CAIO Induscar, segunda maior indústria brasileira de fabricação de carrocerias para ônibus, são incorporadas por um grupo econômico de operação de ônibus, o grupo Ruas, do empresário lusobrasileiro, José Ruas Vaz, o segundo maior do Brasil (Cf. PRIMI & RODRIGUES, 2015; CREDENDIO & MONTEIRO, 2013) . A aquisição ou proximidade políticaempresarial com a indústria automobilística e de autopeças faz com que a aferição dos verdadeiros custos de manutenção e investimento das empresas de ônibus se torne cada vez mais difícil de realizar na prática, pois estes podem ser maquiados ou fraudados em processos internos, não só políticos como financeiros22. Como se verá adiante, esse aumento de poder de mercado do setor privado é uma das maiores dificuldades para a atuação efetiva do poder público. Em segundo lugar, o capital segue uma dinâmica de “expansão lateral”, abrindo e disputando novos mercados urbanos, além de passar a atuar no transporte interurbano de passageiros e no transporte de carga, e até no transporte aéreo de passageiros. A disputa por plantas de produção atinge então um novo patamar, principalmente para espaços urbanos mais vulneráveis, como são as cidades pequenas e médias. A ampliação de mercado consolida a oligopolização e dá a esta contornos de concorrência monopolística. A viação Saritur, que atualmente domina 70% do mercado da Região Metropolitana de Belo Horizonte e possui uma série de concessões de transporte interurbano é um grande exemplo desse processo.23 A empresa Gol Linhas Aéreas

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A prática do “arrendamento mercantil” ou leasing para a aquisição dos ônibus, na qual o comprador paga apenas a depreciação do capital para a instituição financeira, que em teoria é proprietária daquele capital, é um dos mecanismos contemporâneos legais para se burlar uma verdadeira aferição dos custos do transporte público. 23 Informações declaradas por parlamentares e gestores em audiência pública sobre o transporte metropolitano, realizada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, no dia 19 de março de 2015.

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pertencente ao Grupo Áurea, o maior grupo econômico de transporte urbano do país, também compõe esse cenário (Cf. PRIMI & RODRIGUES, 2015). Por fim, o capital também se diversifica para outras áreas da economia urbana, regional e nacional. Nestes espaços irá seguir, evidentemente, a lógica própria de cada setor. Inicialmente, é mais fácil para o capital das empresas de ônibus atuar em outras atividades urbanas como construção civil e prestação de serviços, pela proximidade das relações cotidianas com o processo. Entretanto, uma vez acumulado, o capital abstrato não reconhece limites e pode se expandir para as mais variadas áreas – de instituições financeiras à indústria alimentícia. Encaixam-se nesse cenário o grupo Belarmino, 4º maior do Brasil e sócio no Pastíficio Selmi, e o grupo Guanabara, do empresário carioca Jacob Barata, 3º maior grupo do Brasil. e) A convivência dos modos de produção de transporte coletivo O esquema analítico aqui debatido se constitui em importante ferramenta para abordar a complexa realidade do transporte público por ônibus em sua trajetória. Mas, evidentemente, como em todo modelo, as dinâmicas que se buscam retratar são modeladas de forma abstrata e ideal. Para avançar, é necessário não só abordar dados empíricos e classificáveis, mas também saber dialogar com as diversas formas de conhecimento que se produz a respeito do transporte público, dos engenheiros de transporte aos usuários cotidianos, da falta de debate de vários dos atuais gestores públicos à juventude das periferias que desafia as imposições e anda de graça no ônibus – subindo pela porta de trás, pulando catraca ou pegando carona de bicicleta. Nesse sentido, a dinâmica exposta aqui não pode ser tomada de maneira esquemática ou evolutiva. A economia política e sua crítica conseguem dar clareza para o sentido do capital em seu processo de acumulação, mas as empresas existentes na realidade concreta das cidades apresentam grandes variações e singularidades. O levantamento feito pelo projeto de pesquisa de cadastramento de empresas na década de 1990, Onibucad (HENRY, 1999b), identificou um processo de concentração empresarial que avançava ao longo das décadas. Entretanto, basta uma breve circulada por uma cidade como Belo Horizonte para se perceber que a realidade é bem mais complexa. De fato, apesar de sua trajetória de modernização, várias formas de transporte coletivo convivem juntas, formal e informalmente. O espaço continua em disputa de sentidos. Dos novos perueiros, realizando trajetos metropolitanos esporádicos, aos motoristas de vans de transporte universitário; das grandes empresas de 42

ônibus com sua nova frota de veículos BRT ao sistema de “carona remunerada”24 organizado pela internet e ao fenômeno recente do Uber; modos de produção e formas de convívio se misturam continuamente no espaço metropolitano. Assim, No pós-fordismo do capitalismo periférico, o peculiar reside justamente na combinatória de elementos de extrema modernidade, iguais ao encontrados em empresas que lideram os transportes urbanos, com outros de caráter ‘arcaico’, tal como são comumente catalogadas em formas remanescentes de produção e reprodução simples da atividade. O “pós” é aqui também um “pré”, assim como as organizações secundárias coexistem com as primárias e o econômico com o político. (HENRY, 1999, p. 398)

Essa realidade diversa é ao mesmo tempo obstáculo e potência para a superação da dinâmica capitalista do transporte público. O aspecto comum e compartilhado do espaço público e do deslocamento pela cidade insiste em aparecer, em que pese o poder e a expansão da esfera privada nas últimas décadas e a submissão e conluio com os operadores privados que, esporadicamente, o poder público realiza. É sobre essa quase sempre promíscua relação entre esses dois setores na trajetória do transporte urbano que a próxima seção tratará.

1.3. – A modernização empresarial do setor de ônibus e o poder público: patrimonialismo, resistências e favorecimentos. A pressão do tempo, da rapidez, é um imperativo e, mesmo antes das novas tecnologias de transporte por combustão virem à tona, o espaço urbano era condicionado – por meio do poder público – para possibilitar os fluxos. A circulação passa a ser entronizada como um valor fundamental já na sociedade do século XIX (Cf. MONGIN, p. 82) e o fluxo, nos termos da economia política, é um dos elementos centrais do processo de valorização – a lógica do capital é diminuir ao máximo possível o seu próprio tempo de giro, na sua contínua transformação em mercadoria e capital ampliado –, e elemento de distinção social. O fluxo pelo espaço significa também exercício de poder – social, político e econômico - e, desde o começo, o Estado moderno está na linha de frente do provimento e impedimento dos acessos ao urbano. Das reformas em Paris realizadas pelo Barão de Haussmann, até os anacrônicos viadutos levantados hoje em dia25, existe

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Carona remunerada é uma evidente contradição em termos, uma vez que a definição de carona é a sua gratuidade. 25 Estudo do Instituto de Políticas para o Transporte e Desenvolvimento (ITDP) demonstra que o custo de manutenção dos viadutos é mais alto que o de sua demolição e que, em todas as cidades que as estruturas

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uma questão claramente política e seletiva na construção da estrutura física de trânsito e na concepção e regulação do sistema de transporte urbano na cidade. A quem, de que forma e em que momento se dá acesso ao espaço são questões fundamentais para a pesquisa urbana, a serem perguntadas continuamente. O que se buscará apresentar nessa seção é como a relação entre o poder privado e o poder público se construiu historicamente na questão do fluxo pelo espaço urbano por meio do transporte público. A intervenção do poder público no transporte coletivo (ofertado de maneira privada ou pública) se encontra em sua gênese e o acompanha desde então. Entretanto, os aspectos nos quais este busca intervir, bem como o alcance dessa regulação, mudam profundamente nesses 120 anos de história do transporte público moderno. Da regulamentação do acesso, condições de circulação e comportamento da população dentro dos veículos, o poder público passa a se preocupar com a rentabilidade da atividade, sua escala e abrangência, bem como a forma de remuneração. Com raízes históricas na consolidação da oferta de bonde, ainda no fim do século XIX, a trajetória de íntima relação entre o poder público e o privado na questão do transporte teve grandes consequências para diversos aspectos da realidade brasileira. Influiu no processo de modernização e concentração de capital do setor, nas linhas gerais da urbanização e da estruturação do espaço brasileiro, e no estabelecimento das características históricas do poder público local e sua relação com a sociedade. 1.3.1. Circulação e privilégio: gratuidades e itinerários do transporte público em suas origens A tarifa, as gratuidades segmentadas26 e os descontos são tão antigos quanto o próprio transporte público no Brasil. Uma vez que a lógica da remuneração do transporte está baseada no pagamento por quem o utiliza, algo que por sua vez tem relação com a origem privada do serviço, a pecúnia cobrada estabelece um mecanismo de seleção de quem poderá ou não se locomover de maneira mais rápida pela cidade. O livre acesso ao transporte público surge nesse momento como uma forma de distinção social, vinculada, portanto, a uma política de estabelecimentos de privilégios, tão antiga elevadas de trânsito foram destruídas, o trânsito ganhou mais fluidez e o número de viagens por transporte coletivo aumentou. De fato, um viaduto é anacrônico por se propor a resolver um problema a partir de uma perspectiva rodoviarista obsoleta, sendo, na prática, o modo mais fácil de conectar dois engarrafamentos (cf. ANDRÉS, 2014). 26 Entendidas aqui como em oposição às gratuidades universais. Gratuidade concedida a determinados grupos sociais em determinadas circunstâncias (horários, trajetos, número de viagens, etc).

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quanta a própria formação da sociedade brasileira. Nesse sentido, autoridades e figuras de poder são as primeiras beneficiárias das gratuidades. Note-se aqui que, por onerar de maneira seletiva a população, nunca esteve no bojo da concepção do transporte público brasileiro a perspectiva de universalização completa, pelo menos até a década de 1990. A lógica da gratuidade segmentada, da distinção e do privilégio social, é algo que permaneceu também na agenda de luta dos movimentos sociais. Assim, ainda que sob a perspectiva de inclusão dos menos favorecidos e das pessoas com deficiência, as diversas categorias sociais se movimentaram apenas no sentido de uma gratuidade para o seu segmento, o que se verifica pelo menos até a década de 1990 (Cf. OLIVEIRA, 2002). O surgimento do Movimento Passe Livre em 2005 e a adoção da luta por tarifa zero no ano seguinte, traz em sua concepção uma ruptura historicamente inédita, como se buscará demonstrar no capítulo 3. Voltemos à gênese dessas questões. Quando é inaugurado o sistema de bondes elétricos em Belo Horizonte, em 1902, cinco anos após a fundação da cidade, o primeiro regulamento já concedia gratuidade no uso “ao Prefeito, chefe e delegado de polícia; diretor e ajudante técnico, agente e subagente do serviço”. Identificados pelos respectivos uniformes completos, são autorizados a viajar gratuitamente em cada carro, quando em serviço e em pé na plataforma de trás, “um praça da polícia armada, um carteiro do correio e um estafeta do telégrafo”. Ainda na plataforma traseira, [...] “um fiscal da Prefeitura” e [...] até “dois empregados da eletricidade”. (OLIVEIRA, 2002, p.31).

Vê-se então que as figuras de poder e funcionários públicos considerados essenciais ao funcionamento do serviço e da cidade são as figuras beneficiadas nas primeiras regulamentações. É importante ver a diferença entre aqueles que podem viajar sentados e na frente do veículo (Prefeito e autoridades), daqueles que podem viajar apenas em pé, e em serviço (polícia, carteiro e telégrafo). Além das gratuidades totais, há os chamados “descontos”, reduções tarifárias que visam um determinado grupo social ou a aquisição antecipada de receita por venda de vários bilhetes antecipadamente. Essa prática também surge junto com o transporte público. Marcos Fontoura de Oliveira, no primeiro estudo de fôlego sobre a questão das gratuidades no Brasil e em Belo Horizonte, relata políticas de descontos para cidades como Recife já em 1871 e meia-passagem para estudantes já em 1902, em Belo Horizonte (Cf. OLIVEIRA, 2002, p. 31 e 65). A política de privilégio no acesso ao espaço tinha uma relação clara com os regulamentos sobre o comportamento dos usuários dentro do transporte público. 45

Vinculado a uma noção de civilidade e asseio específica das elites nacionais e europeias, já no regulamento de 1902 era uma das funções do condutor (o equivalente ao cobrador do ônibus) estabelecer a vigilância e impedir o acesso ao veículo por elementos “loucos, ébrios e turbulentos [...] indivíduos maltrapilhos e descalços.” (Decreto nº 1.535 da Prefeitura de Bello Horizonte, de 1902, citado por FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 44). Às vezes, a distinção era feita explicitamente pela separação em veículos de primeira e segunda categorias, sendo que “Nos bondes de primeira classe, o indivíduo limpo, calçado, engravatado e de paletó e sem muito embrulho ou pacote na mão (...) podia viajar, em bonde ou em trem.” (FREIRE, 1984 apud OLIVEIRA, 2002, p. 145). A concepção comportamental continua ao longo das décadas, estando já no primeiro regulamento para auto-ômnibus, de 1930, no qual à semelhança dos bondes, [também se] proibia o embarque de passageiros embriagados, indecentes, maltrapilhos, de pessoas atacadas por moléstias repugnantes ou infecto-contagiosas. Também não era permitido o embarque de portadores de armas carregadas, materiais inflamáveis ou objetos cujo cheiro ou natureza fossem inconvenientes.(FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 111)

A perspectiva continua no regulamento de 1943: “Os trocadores [deveriam] impedir vozerio, ‘altercações, falta de respeito nos veículos; [bem como a] entrada de passageiros maltrapilhos’” (ibid. p.145). Em 1953, as exigências de “disciplina e controle dos passageiros permanecia” (ibid., p. 168), bem como em 1963 (ibid., p. 210). Este é o último registro de controle comportamental do usuário pelo poder público feito pelo estudo da Fundação João Pinheiro, mas não é difícil observar que a tendência ao controle da civilidade permanece nas crônicas e debates desde então. A contrapartida da questão da gratuidade como privilégio é a necessidade controle de fluxo e renda. Assim, mecanismos de controle e seleção não demoram a surgir no transporte por ônibus. O primeiro e mais simbólico é a catraca, para separar e contabilizar pagantes e selecionar usuários. Essa barreira física27 será introduzida em Belo Horizonte pelos empresários no ano de 1957, o motivo alegado é a sonegação de renda por parte do cobrador, que recebia o valor da passagem e não entregava o bilhete ao passageiro (FUNDAÇÃO JOÃO PINHIERO, 1996, p. 175). A catraca, oportunamente veio também para intimidar a sonegação por parte do usuário e aprofundar no imaginário a lógica de acesso mediante pagamento. Nessas últimas seis 27

Lúcio Gregori, ex-secretário de transportes da cidade de São Paulo que será muito referenciado neste trabalho, costuma dizer que essa estrutura de ferro de mais de 20 quilos e 1,20 metro de altura é um verdadeiro instrumento medieval, na aparência e no propósito.

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décadas, o esforço por controle só aumentou, com o sistema de bilhetagem eletrônica e a tentativa cada vez maior de associá-los a usuários individualmente. Cabe mencionar, ainda, que a lógica da catraca conheceu variações na forma, que lhe exacerbavam o propósito controlador, como é a questão do “chiqueirinho”, direcionador de fluxo para a catraca que vigorou no começo da década de 1990 em Belo Horizonte, mas que não foi completamente abolido no Brasil28. A concepção das gratuidades e do comportamento no transporte público ajuda aqui a ver como o poder público concebia, no início da República, a questão do espaço urbano. A especificidade belo-horizontina deve ser destacada em dois aspectos: em primeiro lugar, era uma cidade recém-inaugurada, com um propósito político e econômico claro de retomar o protagonismo mineiro há muito perdido no cenário nacional e com uma proposta estética e urbana inspirada nas renovações urbanas da Europa e Estados Unidos. Tudo era amplo e monumental, e a elite para qual o país se construiu deveria usufruir desse espaço. Em segundo lugar, diferentemente das concessões de bondes elétricos na maioria das grandes cidades brasileiras, o sistema se iniciou sendo ofertado pelo poder público. Assim, a consolidação do capital estrangeiro no fornecimento de energia-transporte para as cidades na primeira república foi fundamental para a consolidação de uma estrutura urbana esgarçada e mercantilizada. Se, em uma primeira consideração, o fato do poder público em Belo Horizonte ser o provedor do transporte pode parecer algo favorável ao interesse geral, o caráter elitista e segregador do Estado logo ficará patente. Assim, além da concessão de privilégios de circulação descrita anteriormente, a expansão do sistema – precário já no nascedouro – atenderá aos interesses políticos e econômicos das elites em primeiro lugar. Assim, a primeira expansão, para o bairro da Serra em 1905, foi assim comentada por um jornal coevo: desejo da Prefeitura em atender interesses pessoais do que de ordem pública e econômica. (...) E assim em vez de prolongar as linhas de bonde para os bairros mais populosos da cidade, como era racional, ella voltou os olhos para a rua do Chumbo [atual rua Estevão Pinto, no bairro Serra], onde há apenas algumas chácaras e vivendas luxuosas, empenhadas em levar o bonde à porta dos felizardos moradores da Tijuca horizontina (...). Dizer que não podia, pelo estado precário de suas finanças, executar todo o plano de melhoramentos de viação elétrica não justifica. Cumpria-lhe primeiramente atacar os serviços mais urgentes. Dest’arte deviam-se estender os trilhos de bondes, primeiramente para a Lagoinha e Barro Preto, para onde é maior o trânsito. (Jornal A Época, 1904, p.1, citado por FUNDAÇÂO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 51). 28

O chiqueirinho só acabou nos ônibus da cidade de Salvador no ano de 2014 (Cf. CARIBÉ, 2014)

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É sintomático constatar que essa pressão das elites para lhes direcionar as facilidades na circulação e no acesso ao espaço urbano é algo que pautou a história brasileira do século XX. De infraestruturas de trânsito e seus supostos benefícios às estações de metrô, as manipulações dos recursos se sucedem. Recentemente, o debate de mais de 25 anos sobre a expansão do metrô de Belo Horizonte ganhou um novo capítulo, ao ter anunciada que a linha Lagoinha-Savassi, de pouca extensão e voltada para a faixa de renda mais alta da cidade, estaria com projetos mais adiantados, em detrimento da expansão para o Barreiro, demanda histórica da população (FONSECA, 2015)29. 1.3.2. - Infraestrutura, escala e produção do espaço urbano – as origens das concepções de regulação no transporte público. Como se discutiu nas seções 1.1. e 1.2., o ônibus, enquanto meio de transporte público na cidade, teve um começo tímido, com uma iniciativa privada improvisada e artesanal. Com a significativa exceção da cidade de São Paulo, que já os desenvolve na década de 1930, a abertura de espaço para o crescimento das empresas de ônibus só se dá, de fato, após a Segunda Guerra Mundial. Antes, e durante muito tempo, predominou, hegemônico, o sistema de transporte por bondes elétricos. A sua forma de gestão, concessão e trajetória, deixou uma enorme influência para o sistema vindouro. No século XIX, antes da existência dos bondes elétricos, as poucas cidades brasileiras que tinham dimensão significativa para a existência de transporte público o forneciam por meio do bonde por tração animal, com oferta fragmentada e realizada por empresas “artesanais” familiares (HENRY & ZIONI, 1999). A revolução tecnológica da eletricidade em massa possibilitou o advento do bonde elétrico e atraiu o interesse dos governantes para que esse sistema fosse implementado, no bojo do velho sonho brasileiro de modernidade estrangeira. Necessitando da construção de uma considerável infraestrutura de trilhos e um sistema de geração e distribuição de energia, o aporte de investimentos para se implementar esse modo de transporte excedia, na maioria das vezes, a capacidade financeira das gestões locais brasileiras. Por outro lado, a passagem do século XIX para o XX marca a expansão capitalista norteamericana e uma nova etapa no processo de internacionalização do capital (Cf. FREEMAN e LOUÇÃ, 2001). 29

Entretanto, há que se ponderar essa questão em termos da atração de viagens também. Apesar de ser historicamente um local de moradia da população de mais alta renda da cidade, o bairro da Savassi é também um dos maiores concentradores de oferta de emprego, de maneira que o transporte público de alta capacidade para essa região não seria, necessariamente, um empreendimento elitista.

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O crescente mercado urbano brasileiro se mostrou assim um ambiente promissor para as inversões de capital estrangeiro. Estavam dadas as condições para a hegemonia estrangeira no fornecimento de transportes e energia na 1ª República brasileira. Esse ponto é fundamental para a história econômica brasileira, na lógica capitalista de abstração do valor de uso para a realização do valor de troca, esse capital foi atraído para a oferta de transporte por sua rentabilidade, posição estratégica e ausência de interesse do poder público, e não por um objetivo urbano específico, como observam Zioni e Henry: o transporte foi quiçá um pretexto para a entrada do capital estrangeiro na economia brasileira, em cujo quadro nem a urbanização nem os serviços faziam parte das atenções do Estado ou dos capitais locais (HENRY & ZIONI, 1999, p.129).

Dessa maneira, as empresas que ganharam o direito de fornecer e explorar o transporte urbano sobre trilhos tinham sua origem em grupos canadenses, norteamericanos, ingleses e – com menor frequência – alemães e franceses. Assim, tinham certa experiência de gestão no chamado “modelo anglo-saxão de exploração integrada de recursos de transporte e energia hidrelétrica.” (Cf. HENRY & ZIONI, 1999, p. 127). A magnitude do aporte de recursos e da necessidade de criação de infraestrutura elétrica não era de menor importância. Diferentemente do bonde por tração animal, que o precedeu, e do transporte sobre pneus, décadas depois, o modo do bonde aqui ofertado precisava de uma escala mínima para iniciar suas operações. E essa diferença de escala em muito interferirá na concepção da regulação dos serviços no século XX. Independentemente da abordagem teórica que se dê, é fato que o investimento em infraestrutura segue uma lógica diferenciada daquela encontrada na maioria dos empreendimentos capitalistas. A escala geográfica e a necessidade de transformação física do entorno é um desses aspectos, bem como o longo ou longuíssimo prazo de retorno do capital investido. Essas características fazem com que o poder público interceda nesses cenários, garantindo um mercado exclusivo para o ofertante do serviço, uma vez que a concorrência seria ineficiente e prejudicial. Os serviços básicos de infraestrutura como água, esgotamento, eletricidade, ferrovias, gás, entre outros, apresentam-se também como serviços com alta dificuldade de “auto-provimento” individual e de indivisibilidade da oferta. Os desafios de se construir a infraestrutura básica, ou as condições para acumulação primeira de capitais, se encontravam presentes no primeiro processo de modernização/urbanização pelo qual passaram as cidades 49

brasileiras na virada do século XIX para o XX e regularam as relações entre o poder privado e o poder público. O serviço de bonde, por estar inevitavelmente indissociado de sua infraestrutura, também segue a mesma lógica de oferta. Entretanto, o serviço de transporte por ônibus, por geralmente não prescindir de infraestrutura própria30 e sim utilizar-se daquela que é compartilhada pela maioria dos veículos individuais e coletivos da cidade, não se enquadra na categoria das grandes inversões de capital de longa maturação. De fato, Orrico Filho & Santos apontam que os investimentos [no provimento de transporte público por ônibus] são, relativamente, de pequena monta e podem ser realizados modularmente, em resposta ao crescimento da demanda. Pelo lado do mercado, as linhas de ônibus em uma área urbana, em geral, se intercruzam e, frequentemente se sobrepõem. No tocante ao consumo, por fim, existe real e concreta possibilidade de auto-provimento, pelo menos para uma determinada parcela da população. (ORRICO FILHO & SANTOS, p. 196, 1996).

Essa contradição entre o porte e a maleabilidade do transporte por ônibus e a escala da demanda a qual este é, de certa forma, chamado a cobrir – em virtude do duplo processo de urbanização e crise estrutural do transporte por bonde – terá forte influência sobre o caráter da oferta privada de ônibus, seu processo de modernização e sua relação com o Estado. Para caracterizar o cenário urbano e social no qual a oferta de ônibus se desenvolveu, na segunda metade do século XX, é necessário antes voltar e pontuar os principais aspectos da ascensão e queda do sistema de bondes. Em Belo Horizonte, a oferta pública de transporte durou pouco. Em 1912, por problemas de financiamento no fornecimento de infraestrutura, os serviços de iluminação, bondes e telefonia foram arrendados por um prazo de 53 anos, previstos em contrato para a empresa Sampaio Corrêa & Comp. Diferentemente do cenário nacional de domínio do capital estrangeiro, essa companhia tinha capital 100% nacional, e seus gestores eram da cidade do Rio de Janeiro. Novamente, a cidade persistia como uma exceção à regra geral. A oferta do transporte permanecerá sob monopólio privado ao longo de 14 anos, quando é encampada pelo governo do estado de Minas Gerais. Durante esse período, diferentemente de suas similares estrangeiras, a capacidade de ampliação da infraestrutura da empresa será muito baixa: relatos dão conta de que a extensão das linhas de bondes em 1919 era praticamente a mesma de 1912 (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 68). A baixa dinâmica econômica que Belo 30

A exceção é feita a sistemas de pista exclusiva segmentada, como é o caso do BRT – Bus Rapid Transit – entretanto, para o contexto histórico de formação das empresas brasileiras esse tipo de sistema pode ser descartado na análise.

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Horizonte apresentou na década de 1910, agravada pela ocorrência da 1ª Guerra Mundial, contribuiu para que sua infraestrutura instalada pouco se expandisse. Entretanto, já na virada da década, a economia belo-horizontina volta a se aquecer, a população local volta a crescer em um ritmo considerável. Contudo, o aumento da demanda não conseguia ser atendido por um correspondente aumento na oferta, tornando o sistema cronicamente débil e gerando reclamações cotidianas na jovem capital do estado. Os sucessivos insucessos da Sampaio Corrêa em ampliar a infraestrutura de eletricidade e transporte em Belo Horizonte fizeram com que, em julho de 1926, o governo estadual interviesse e encampasse os serviços, indenizando a companhia em 10 mil contos de réis (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 78). A intervenção estatal para recuperar a capacidade de atendimento é robusta naquele momento. Assim, a abertura de crédito estatal acarretou em reformas e construções de novos abrigos, ampliações de linhas e recuperação da potência instalada, que aumentou em 2,5 vezes em um período de três anos (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 83). Nesse meio tempo, a dificuldade de manutenção do sistema ainda persistia, e o governo aumenta – pela primeira vez na história do serviço – as tarifas dos bondes e da energia elétrica em 100% de seu valor. Além disso, estiagens e perdas de potência fazem a prefeitura investir também em um sistema de auto-ômnibus, complementar à demanda dos bondes e concomitante à oferta privada do serviço, que começava a aparecer. A vinda do capital estrangeiro para o sistema de bondes e energia elétrica em Belo Horizonte se dá de maneira tardia e, em algum sentido, devido a um oportunismo político do presidente do estado, Antônio Carlos Ribeiro Andrada. Em 1929, o sistema foi arrendado à American & Foreign Power Company (Amforp), subsidiária do grupo norte-americano General Eletric, que competia com o monopólio da Light no Brasil, pelo valor de 34 mil contos de réis. O arrendamento se deu sem concorrência pública e foi realizado de maneira estranhamente célere, em menos de dois meses (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 87). Paul Singer, em sua clássica obra Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana dá conta de que o motivo da transação é político: o Presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos, estava preparando o movimento armado de 1930 e tinha-se comprometido a contribuir para ele com 6 mil contos (Paraíba daria 2 mil e o Rio Grande do Sul 8 mil contos). Como o governo mineiro, boicotado pela União, não consegue levantar o dinheiro, recorreu à venda do sistema elétrico e de bonde de Belo Horizonte. [...] [A venda ocorreu] sem concorrência

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pública, às pressas, sem critério, e por um preço não muito superior à metade de seu valor real. (SINGER, 1968. p. 260).

Além da obscuridade e oportunismo dessa transação financeira, os termos do contrato firmado também seriam danosos à cidade. Além de repassar uma série de imóveis públicos para a empresa, e garantir o direito de desapropriação de terrenos, o poder público aceitou a cláusula que condicionava a expansão dos trilhos a uma rentabilidade mínima de dez por cento do capital investido (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 90), que terá profundos impactos na formação do espaço urbano e desenvolvimento do transporte na capital. Esse episódio revela de maneira exemplar o caráter patrimonialista que o poder público desenvolve em relação aos serviços urbanos na história brasileira. A compreensão desse traço histórico é fundamental para se debater os objetivos e formas de atuação dos movimentos sociais por mobilidade urbana. O poder público brasileiro, em que pese a recente trajetória de implantação da democracia representativa, constrói historicamente uma relação de posse privada para com os serviços e políticas que oferta. De Antônio Carlos a Adhemar de Barros, de Newton Cardoso a Jânio Quadros e Paulo Maluf, o transporte público sempre foi objeto de manipulação e disputa política. Dessa maneira, a maioria das vezes o poder público atua como mais uma instância autoritária e discricionária – a exemplo do setor privado – sacrificando o interesse coletivo em prol de interesses individuais. Nesse sentido, o controle popular dos rumos do transporte é tarefa muito mais profunda do que se imagina e deve passar não apenas, necessariamente, pela mudança da natureza do Estado bem como pela superação das atuais relações sociais de produção e propriedade. A década de 1930, entretanto, marca o começo da crise estrutural do sistema de bondes, bem como do modo ferroviário de maneira geral. Pela combinação das circunstâncias, esse aporte tardio do capital norte-americano em Belo Horizonte vai se demonstrar cronicamente insuficiente para lidar com as transformações pelas quais a cidade passava, e a sua almejada rentabilidade nunca irá se viabilizar. Com a industrialização, a natureza do espaço urbano muda irreversivelmente e a realização de sua infraestrutura não pode se dar mais nos termos propostos no começo do século. A falha em enxergar essas mudanças, por parte dos gestores públicos e por vezes também das empresas privadas, terá efeitos perversos e duradouros na produção do espaço urbano e na estruturação do sistema de transporte público.

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O ritmo de urbanização brasileira se acelerou significativamente no pós-1930. O êxodo rural, conjugado às altas taxas de fecundidade, exigia da economia brasileira e de suas cidades uma escala de funcionamento sem precedentes. Esse cenário fez com que se buscasse não só a regulação do transporte público por ônibus como, principalmente, a ampliação da sua oferta ao máximo possível. A leitura teórica que balizou os debates e as diretrizes para essa ampliação estava calcada no nacional-desenvolvimentismo, típico da 4ª República (1945-1964). É nesse momento que surge a noção de monopólio natural para o sistema de ônibus. A crise do sistema de bondes já era forte em todo o país quando, em 1946, a prefeitura municipal de São Paulo criou a Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC) para gerir todo o sistema de transporte da cidade, nos dois principais modos de transporte da cidade, bondes e ônibus. É necessário ter noção da magnitude dessa medida: na maior metrópole brasileira, maior centro dinâmico da economia do continente sul-americano, vivendo o começo do maior processo de urbanização do século XX, é decretado o monopólio público do sistema de transportes. A medida arrojada é fruto de sua época e da maturação de um debate sobre Estado, interesse público, desenvolvimento econômico e monopólio, como apontam Henry e Zioni (1999, p. 133). O professor e ex-prefeito de São Paulo, Luiz Ignácio de Anhaia Mello é apontado aqui como o precursor, no campo do Direito, das bases que fundamentaram essa medida e formaram as doutrinas do direito administrativo e urbanístico brasileiro, em obras escritas na década de 1930 e 1940. Mello coloca os princípios de interesse e utilidade pública do serviço de transporte coletivo como fundamentais em sua defesa pelo monopólio. Esses são fundamentos que de fato foram sistematicamente ignorados pela maioria dos governantes brasileiros. Entretanto, a concepção de efetivação desses princípios que o autor elabora se apoiam em um controle monopolista de larga escala pelo Estado. A questão é que este controle não necessariamente levaria à consolidação desses princípios, do ponto de vista de sua efetividade econômica, política e social. Sua proposição de monopólio natural, como se viu anteriormente, não se encaixa perfeitamente em um sistema como o de ônibus, que não tem uma economia de escala e uma maturação de investimentos tão claras como os serviços de energia e saneamento. De fato, parece ser na brecha da falha desse argumento que se infiltraram as concepções neoliberais que reforçaram o poder privado do setor na década de 1990.

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Ademais, apesar do privilégio (e insuficiências) que a explicação a posteriori dessa tentativa de implantação de monopólio pode ter, parece claro que não havia condições financeiras para dar conta da dinâmica urbana que se acelerava. Mas, principalmente, houve fragilidade técnica e política na imposição de uma solução populista, sem a perspectiva de mobilização social para sua sustentação, necessária para se dar conta de uma solução tão fundamental ao cotidiano da metrópole. Esse fatores parecem ter minado no nascedouro a solução. A falta de apoio e diálogo das classes populares é evidente e sintomática: no mesmo ano de sua criação, a CMTC se viu obrigada a majorar as tarifas que estavam congeladas há 40 anos, o que causou uma revolta popular sem precedentes - o quebra-quebra de ônibus de 1947 é histórico, e inutilizou, de partida, mais de um terço da frota de veículos da cidade (ver MOISÉS (1984) e a seção 2.3.1. deste trabalho). Assim, parece ser justamente na ausência de debate sobre um controle popular do transporte, abrangente, que efetivasse seu papel de interesse público e fosse capaz de transpor a natureza do Estado, que os movimentos sociais, em sua relação com o poder público, falharam por muito tempo em construir uma alternativa que disputasse efetivamente a realidade cotidiana e o espaço público. A encampação pelo Estado das empresas privadas operadoras do sistema de bonde foi uma tendência nacional durante a 4ª República. A crise de rentabilidade do sistema se deu por vários fatores: incapacidade de expansão da infraestrutura na velocidade do crescimento da cidade; dificuldades de compra de peças e equipamentos devido à crise cambial; um déficit sistemático na remuneração via tarifa que, diferentemente dos ônibus, tinha um reajuste muito lento31; uma organização sindical forte de seus trabalhadores, que exigiam reajustes salariais justos e, por fim e principalmente, o grande investimento na estrutura rodoviarista cuja força motriz, o petróleo e seus derivados, era muito mais barata e acessível à época (Cf. BRASILEIRO & HENRY, 1999). É preciso compreender que, a exemplo de outras crises gerais e/ou setoriais no capitalismo, o Estado interveio com o propósito de realizar a socialização das perdas daquele setor. Em que pese a essencialidade do serviço, sua própria mercantilização e ausência de políticas de controle popular fizeram com que a esfera pública herdasse uma situação verdadeiramente alarmante, com grandes passivos financeiros, na maioria das cidades. Assim, em 1949, em Belo Horizonte, a Prefeitura 31

Como se viu, a tarifa do bonde em São Paulo permaneceu congelada entre os anos de 1909 a 1947. Em Belo Horizonte, o primeiro aumento de tarifa se dá em 1928, 26 anos depois da inauguração do sistema. O aumento seguinte se dará 17 anos mais tarde, em 1945 (DBO, 1962).

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encampa os serviços da Amforp (que os prestava sob a alcunha de “Companhia de Força e Luz de Minas Gerais”), o mesmo ocorrendo em uma série de cidades na década de 1950 e no Rio de Janeiro, em 1962 (Cf. ORRICO FILHO & SANTOS, 1999). Nesse cenário, é possível constatar que o poder local nas grandes cidades brasileiras entendia ser necessário, com maior ou menor escala de elaboração e ação, o provimento direto do transporte público. Por trás dessa concepção está a elaboração do conceito de monopólio natural, principalmente em função da escala necessária para operação e ampliação do serviço. Ao longo dos anos, essa atuação acarretou em favorecimento político de prestadores já estabelecidos e influentes, concomitantemente a um desprezo ou perseguição aos fornecedores individuais ou “autoprodutores”. Em suma, o poder público atua para ativar a reprodução ampliada do capital no setor em detrimento de uma estrutura que considerava arcaica, pré-moderna. Essa é uma diferença primordial em relação ao mesmo processo de fornecimento de serviço de ônibus no resto da América Latina, como apontam Brasileiro & Henry (1999). Nesses países, as empresas sempre estiveram relativamente pulverizadas, com grau de produção artesanal típico do autoprovimento ou da empresa familiar. Assim, o transporte por ônibus é alçado rapidamente à categoria de hegemônico, graças ao desenvolvimento da indústria automobilística e das políticas rodoviaristas em todo o país. Na década de 1950, sua regulação nas grandes cidades transita entre a tentativa de monopólio natural exclusivamente ofertado pelo poder público (no caso de São Paulo) ao estabelecimento da concepção monopolística como um mecanismo de incentivo à iniciativa privada e à concentração de capital das empresas. Na maior metrópole brasileira, o banimento das empresas privadas para operar apenas na zona rural perdia rapidamente sua efetividade à medida que a cidade crescia e que a própria CMTC não possuía capacidade de investimento para ampliação da frota. A infiltração do transporte privado passa de “complementar” para essencial, no surto de privatização desregulamentada promovida pelo prefeito Adhemar de Barros (1957-1961)32. Este flexibilizou a restrição à operação das empresas a tal ponto que a participação da CMTC no número total de viagens passou de 87% para 22% do total entre 1957 e 1960, chegando ao nível de, em um mesmo dia realizar “54 concessões, ditas ‘precárias e revogáveis’ [...] sem concorrência pública. O mercado de transporte urbano se transformou pela inclusão de mais 16 empresas às 19 anteriores”. (Cf. HENRY e 32

Figura política controversa, conhecida pelo famoso bordão “Rouba, mas faz.”.

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ZIONI, p. 139). A prática clientelista, típica da política brasileira e da fragilidade de suas instituições democráticas, alcançou seu paroxismo populista na prefeitura de Adhemar, minando gravemente a já declinante capacidade de intervenção pública no setor, e levantando uma vez mais a questão – para os tempos atuais – da necessidade histórica de um controle popular efetivo do transporte. O que se busca demonstrar nessa trajetória é que, gradualmente, a prerrogativa de monopólio natural do serviço de ônibus, enquanto conceito teórico em maturação e prática empírica dos órgãos gestores, transitou da esfera pública para a esfera privada enquanto segmento capaz de ofertar o serviço e, assim, construir as condições de reprodução ampliada do setor. As regulações do poder público passaram a se concentrar nos requisitos mínimos para a oferta, e a criar mecanismos de proteção dos operadores mais antigos. No Rio de Janeiro esse processo data desde os anos 1930, quando se exigia a frota mínima de seis veículos para prestação do serviço. À medida que as décadas se sucedem, esse requisito mínimo se eleva cada vez mais, com o intuito de realizar uma concentração de capital no setor: em 1967, o tamanho mínimo de empresa operadora passou a ser de 60 veículos, reduzindo-se – principalmente através de aquisições – o número de permissionárias de 121 para 54; em 1981, o porte mínimo cresceu para 120 veículos, reduzindo-se o total de operadores regulares no município para 35 empresas; em 1982, seria de 240 veículos o mínimo que cada permissionária deveria exibir; Cabe salientar que, em 1994, por desnecessária face à elevada concentração da atividade, a prefeitura do Rio de Janeiro eliminou a exigência de frota mínima. (ORRICO FILHO & SANTOS, 1999, p. 416)

Belo Horizonte, ainda que tenha empreendido medidas regulatórias de concentração de empresas, o fez em menor escala que os demais municípios e continuou sendo um caso à parte na história do transporte público. Essa opção histórica gerará consequências estruturais no sistema de transporte público na cidade: em 1996, a média de ônibus por empresa33 para Belo Horizonte era de 47,6, a menor dentre todas as capitais pesquisadas, cerca de cinco vezes menor que a média de São Paulo (240 ônibus) e Brasília (229 ônibus) e quase três vezes menor que a do Rio de Janeiro (163 ônibus) (Cf. CANÇADO et. al., 1999, p. 290). Assim, com a decadência definitiva dos bondes e a ascensão do rodoviarismo como política econômica nacional, estava posto o cenário para a reprodução ampliada

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Novamente é importante ressaltar que esse índice advém do número de empresas juridicamente constituídas. A estrutura de propriedade familiar, com vários membros de uma mesma família proprietários de empresas diferentes que, na prática, agem de maneira oligopolista, ainda não foi estudada de maneira aprofundada.

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da atividade de transporte por ônibus, tanto do ponto de vista de sua mediação com o poder público, como no que concernia à atuação dos ofertantes privados. A evolução da oferta mercantilizada, com tendências ao monopolismo e mediada por práticas clientelistas e patrimonialistas, terá profunda relação com a urbanização acelerada dos anos 1960 e 1970. 1.3.3. – Metropolização, hegemonia privada e intervenção federal: o transporte e sua modernização de 1975 a 1988 O golpe civil-militar de 1964 foi o desfecho autoritário de um processo aberto de disputas políticas, no qual as contradições de um Brasil em plena urbanização e modernização já não podiam mais ser ignoradas ou conciliadas à maneira populista anterior. Para aplacar a animosidade que se manifestava nas reformas de base pleiteadas por grandes contingentes populacionais pauperizados no começo da década, o regime militar impôs um modelo de desenvolvimento econômico baseado na repressão e concentração de renda, abrindo caminho para usurpar ainda mais os rendimentos produzidos pela força de trabalho no contexto de um processo de desenvolvimento econômico e transferi-los para uma sobreacumulação do capital. O fim dos instrumentos de participação e representatividade política, conjugados a uma política de arrocho salarial, são alguns dos elementos políticos que serão utilizados pelo Estado como instrumento de atração do capital internacional para investimentos produtivos. É necessário observar nessa ruptura política a transformação estrutural das relações de dominação na sociedade brasileira que possibilitou novas formas de acumulação. As relações de dependência para com o mercado internacional foram também construídas e possibilitadas pelas classes sociais nacionais (CARDOSO; FALETTO, 1969), de tal forma que – como demonstra Evans (1980) – a elite da burguesia nacional, em estreita aliança com a tecnocracia estatal em constituição, liderou um processo de transferência da renda produzida pela força de trabalho da remuneração via salário para o capital, do qual o capital internacional se aproveitou largamente. Instrumentos que eliminavam a reposição salarial e transformavam a inflação em uma forma de sobrelucro eram a evidência – na dinâmica econômica – do autoritarismo necessário ao formato de acumulação capitalista brasileiro, o qual tinha na eliminação e cooptação dos sindicatos e oposições políticas em geral outro de seus suportes. Era o Estado, representado pelos

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militares e pela tecnocracia, aplicando seu modelo de desenvolvimento, que será diferenciado conforme setor econômico e região. Dessa maneira, de forma muito mais intensa a partir da segunda metade da década de 1960 até o fim da década de 1970, com ênfase para o período do “milagre econômico” (1968-74), o processo de desenvolvimento econômico será capitaneado pelo Estado, que aumenta a sua participação na divisão das rendas do capital, e a utiliza para criar a infraestrutura necessária – energia, comunicação, finanças, infraestrutura rodoviária – para atrair o capital internacional e favorecer a elite da burguesia nacional em seus investimentos. De acordo com os dados apresentados por Evans (1980, p. 196), a participação do capital estatal é a única a aumentar entre as 300 maiores empresas do setor de transformação industrial, entre os anos de 1966 e 1972, passando de 17% para 30%. Quando se leva em conta que este é o período de maior média de crescimento econômico brasileiro já registrado, pode-se ter uma dimensão do esforço do aparato estatal neste momento para atuar também como produtor. A mudança da natureza do Estado e de suas relações sociais e econômicas afeta, de maneira diferente, o setor de transporte por ônibus e os serviços de atribuição local de forma geral. Com sua capacidade de intervenção econômica bastante ampliada, a concepção de desenvolvimento preconizada pelos militares voltava-se para as grandes obras de infraestrutura (e.g. Usina Hidrelétrica Itaipu Binacional e o Programa Especial de Vias Expressas - PROGRESS), os grandes “desbravamentos” territoriais (e.g. a “conquista” da Amazônia e a mal-fadada Transamazônica) e a atração de capital estrangeiro que pudesse se encaixar nesse projeto (e.g. a FIAT, inaugurada em Betim em 1974, ainda que neste caso a iniciativa de atração tenha partido do governo estadual). Do ponto de vista do projeto político civil-militar que ascendeu ao poder, importava garantir condições de reprodução para uma classe média em crescimento e, quando muito, um operariado fabril de ponta, necessário à manutenção do projeto. De fato, durante muito tempo, a grande massa pauperizada que consubstanciava a urbanização não tinha suas condições de vida como algo que suscitasse alguma política pública do governo, apesar de ser elemento central e indispensável para a acumulação de capital que estava em curso. Dessa forma, até o começo da década de 1970, a questão dos transportes urbanos seguia a linha geral da maioria dos governos de antes e depois: Análises diversas coincidem no fato de que à expansão viária nacional, bem ou mal sucedida segundo os autores, reduz-se o que se poderia chamar de política de transportes no Brasil desde o início do século XX. Aparece nitidamente maior interesse pelas cargas do que pelos passageiros, pela base

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produtiva do que pelo interior, pelo regional do que pelo urbano. [...] concorda-se em que, no Brasil, a política de transporte urbano mal chegou a ser mais de que um subproduto da política de transporte, sem objetivos nem meios próprios – com rara exceção na segunda metade da década de 70 [...] Assim, de forma implícita, tudo foi deixado em aberto para que o setor rodoviário, sob impulso da iniciativa privada, viesse a predominar nos serviços de transporte urbano nas cidades. (Brasileiro & Henry, 1999, pp. 589, grifo meu).

Nesse sentido, os serviços urbanos ou a garantia de direitos a nível local eram conscientemente deixados em segundo plano e se configuravam como uma consequência de um desenvolvimento econômico mais amplo. Entretanto, as deseconomias geradas pelas aglomerações urbanas hipertrofiadas já não podiam ser mais ignoradas. Em outras palavras, as dificuldades no deslocamento cotidiano, como se argumenta na introdução deste trabalho, deixam de ser um problema só dos pobres e passam a afetar a base de apoio do regime, bem como sua proposta econômica. Entretanto, é fundamental reconhecer também que a iniciativa governamental só ocorreu porque a questão do transporte público foi (e ainda é) um dos principais elementos de mobilização popular, mesmo em um contexto autoritário. As depredações de ônibus, trens e estações, que serão descritas no capítulo 2, dão a dimensão da pressão popular nesse setor econômico. Assim, a década de 1970, depois de nove anos dos militares no poder, irá conhecer uma primeira tentativa de planejamento regional das metrópoles e de política federal na questão do transporte público. A centralização federal de recursos, pessoal técnico e elaboração, bem como o autoritarismo ao qual as outras esferas federativas estavam submetidas, foram as principais características da elaboração de políticas públicas dessa época. 1.3.3.1 – A política federal para o transporte público A criação das primeiras nove regiões metropolitanas do país, em 197334, é um marco na tentativa do poder público de mudar sua relação com o serviço de transporte urbano. Estabelecida como serviço comum aos municípios componentes da região, a concessão de transporte público passa a ser responsabilidade da esfera estadual. Assim, vários órgãos de planejamento começarão a se constituir. Em Minas Gerais, é constituída a Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo

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A lei complementar federal nº 14, de 8 de junho de 1973, estabelece as regiões metropolitanas de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Recife, Curitiba, Belém e Fortaleza. Um ano depois é criada a região metropolitana do Rio de Janeiro.

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Horizonte - PLAMBEL (1974)35. Ainda assim, a capacidade de intervenção na questão do transporte público era baixa. O fato de ter sido tratado sempre pela esfera local, muitas vezes com boa vontade, mas na maioria das vezes sem condições necessárias para uma efetiva alteração da realidade, fez com que o transporte público ganhasse uma nova urgência naquele momento de desenvolvimento do espaço urbano. Na verdade, em um cenário de surgimento de cidades médias e grandes que também demandavam pelo serviço, para além das já reconhecidas metrópoles, tornou-se claro que não havia uma política sistemática para o tratamento e normatização mínima da questão, que ficava à mercê de acordos entre setor privado e políticos, isso quando havia capacidade empresarial de investimento. A crise energética induzida pelo choque do petróleo de 1973 apenas deixou mais clara e urgente essa questão. É nesse cenário que a questão do transporte coletivo urbano é incluída pela primeira vez na Política Nacional dos Transportes. Estabelece-se, pelo decreto lei nº 6.261 de 14/11/75, (BRASIL, 1975) o Sistema Nacional de Transportes Urbanos (SNTU), definido como o conjunto dos sistemas metropolitanos e sistemas municipais nas demais áreas urbanas [que se constitui a partir da] infraestrutura viária e as de articulação com os sistemas viários federal, estadual e municipais. [...] os sistemas de transportes públicos sobre trilhos (metrô, ferrovia de subúrbio e outros), sobre pneus, hidroviários e de pedestres. (BRASIL, 1975).

Assim, o SNTU possuía uma estrutura própria e, finalmente, um aporte de recursos próprios: 18% do imposto sobre lubrificantes e combustíveis e 12% da taxa de licenciamento de veículos (Cf. BRASILEIRO & HENRY, 1999, p. 79). Cria-se também a Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU), o Fundo de Desenvolvimento dos Transportes Urbanos (FDTU), e preconiza-se a criação de Empresas Metropolitanas de Transporte Urbano (EMTU)36. Além disso, o “Grupo de Estudos para Integração da Política de Transportes” (GEIPOT), criado na esfera federal em 1965, ganha outro papel e importância nesse contexto (SANTOS, 2014). Por trás de toda essa intervenção federal, existia uma perspectiva política clara: a escala de desenvolvimento urbano brasileiro já não podia ser suprida, no transporte público, por agentes individuais, produção “artesanal” e amadores. Baseando-se no 35

A PLAMBEL surge, de fato, em 1971, como Superintendência do Plano Metropolitano de Belo Horizonte, vinculada à Fundação João Pinheiro. Em 1974, é transformada em autarquia e cindida da FJP. 36 Seriam criadas empresas nas regiões metropolitanas de São Paulo, Recife, Goiânia. Belo Horizonte, no caso da Metrobel que será explorado a seguir, assumiu um arranjo organizacional distinto para sua EMTU, com a participação dos diversos entes da federação.

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longo debate que tem suas origens na década de 1940, era necessário modernizar rapidamente o sistema e fornecer a ele escala suficiente para atuação no cenário urbano de então, em outras palavras era necessário garantir as condições de monopólio natural do setor. Do ponto de vista da estrutura tecnocrática, o fundamental era promover capacitação, profissionalização e concentração empresarial (Cf. BRASILEIRO, 1996). Sintomaticamente, a dimensão da participação e controle popular, assim como a própria dinâmica urbana que levou à necessidade diária de deslocamentos nessa magnitude, não eram elementos colocados em questão na política nacional. Nesse sentido, já no seu lento e gradual processo de desestruturação, o governo militar fez o que sabia fazer de melhor como um gestor do Estado capitalista: articular interesses privados e promover a reprodução ampliada do capital, com base na concentração. Do ponto de vista da dinâmica do capital do setor, como apresentada na seção anterior, nesse momento não há mais lugar competitivo para o ofertante que não se submeter às necessidades modernizadoras capitalistas da reprodução ampliada da atividade. Anísio Brasileiro comenta que a política nacional foi uma convergência de interesses dos vários atores dos transportes urbanos. O Estado federal intervém no setor, pois precisa reequilibrar a matriz energética do país e fazer face aos movimentos reivindicatórios; as grandes empresas fabricantes de chassis e de carrocerias precisam de um mercado para seus produtos; as pequenas empresas de ônibus necessitam de subsídios e de segurança para poderem investir; os poderes públicos municipais, sem condições financeiras, outorgam ao Estado a gestão dos transportes públicos urbanos. (BRASILEIRO, 1996, p. 270).

A visão de uma política de conciliação geral de interesses expressada aqui pelo autor, se não está inteiramente equivocada, ao menos mostra uma leitura parcial da dinâmica de concentração do setor. Como se verá no fim da década de 1980 e principalmente na década de 1990 (e não só para o setor do transporte público), quando ocorre a crise generalizada da capacidade de intervenção e gestão estatal, o setor privado – que sempre foi beneficiado e fortalecido nas políticas do Estado – já se estrutura por si próprio e prescinde, em grande medida, da esfera pública. Nesse cenário, como de costume, a população permanece sem possibilidades de atuação nessa importante questão cotidiana. Entretanto, é indiscutível que, com as políticas federais executadas entre 1976 e 1984, as condições de transporte público tenham melhorado consideravelmente em relação ao período anterior. Além de se iniciarem na maioria das metrópoles as obras para a construção de sistemas de metrô, houve três resultados concretos aferidos pelos 61

que estudam o período: a) uma racionalização dos itinerários, paradas e terminais, além do subsídio para renovação da frota; b) a formação de um corpo de profissionais atuando em organismos públicos federais, estaduais e locais, com capacitação técnica e troca de experiências no exterior; c) a capacitação de técnicos para operarem no sistema e nas empresas, com formação nas universidades (Cf. BRASILEIRO & HENRY, 1999). Dentre esses resultados, há mais um, considerado positivo pelos autores, mas relativamente controverso como já explicitado aqui: a concentração empresarial e a eliminação dos proprietários individuais. Se a concentração propiciou uma atuação mais eficiente e moderna do setor privado, não é certo que o fortalecimento do poder de mercado e barganha do setor privado seja necessariamente benéfico para a cidade, se tomado do ponto de vista da efetivação do transporte como um direito social, que permeia este trabalho. Outro avanço nacional considerável nesse período foi o lançamento, pelo GEIPOT, do Guia de Instruções Práticas para o Cálculo das Tarifas de Ônibus Urbanos, de 1982,

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no mesmo ano em que a autorização de alteração de preço das

tarifas de ônibus é transferida para as prefeituras e retirada da alçada federal38 (Cf. AFFONSO, 1987, p. 107). Esse manual é utilizado como referência até hoje para o cálculo de tarifa da grande maioria dos municípios brasileiros, em especial os de pequeno e médio porte. A famosa “planilha GEIPOT” estabelece um modelo econômico de aferição e remuneração pelos custos do sistema que, no mínimo, suscitou diversas disputas políticas e judiciais desde então. Historicamente, desde quando existe oferta privada do serviço, a base de cálculo da tarifa se dá pelo princípio do rateio do custo total do sistema (incluindo aí a eventual remuneração de capital do prestador privado) pelo total de passageiros. Assim, a planilha GEIPOT propõe a identificação de todos os insumos e fatores produtivos utilizados para se prestar o serviço. Em seguida, calcula seu custo total a partir da multiplicação da quantidade e preço dos insumos utilizados pelos chamados

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A metodologia de cálculo tarifário a partir de planilhas de custos já era implementada pelo Conselho Interministerial de Preços (CIP) desde 1978, o grande mérito do GEIPOT foi o estabelecimento de coeficientes técnicos de produtividade e a divulgação da metodologia a nível nacional. (informações obtidas a partir de conversas com João Luiz da Silva Dias). 38 Segundo João Luiz da Silva Dias, a responsabilidade pela alteração de preços voltou à alçada municipal após o quebra-quebra de ônibus de Salvador, 1981 (ver capítulo 2 desta dissertação). O CIP era utilizado como “bode expiatório” pelas prefeituras, que muitas vezes se apoiavam no aval federal para beneficiar as empresas e realizar superfaturamentos.

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“coeficientes de consumo”, que são índices de produtividade de cada um destes, estipulados a nível nacional a partir de estudos técnicos. Na metodologia GEIPOT, o custo total se divide em custo fixo e custo variável, além de impostos e taxas. No custo variável estão elementos como combustível, lubrificantes, rodagem, peças e acessórios. No custo fixo, por sua vez, há as despesas com pessoal, as despesas administrativas e o custo com capital (depreciação e remuneração do capital – veículos, máquinas e almoxarifado), o custo com o capital investido é, portanto, um dos elementos centrais dessa metodologia. A planilha GEIPOT foi durante muito tempo a base e a justificativa para a remuneração por custos dentro do sistema de concessão brasileiro. A premissa de controle dos gastos e da prestação de serviço de cada empresa é louvável, mas se mostrará insuficiente perante o imenso e desigual poder econômico e político que o setor privado adquiriu, a partir do próprio processo de modernização. Como se verá nas décadas de 1990 e 2000, a falta de controle público e popular do transporte público, e a natureza intrínseca da motivação para a operação privada do sistema, foram elementos que minaram completamente a capacidade de estabelecimento de justiça e equidade social na remuneração do serviço, com a qual a planilha GEIPOT buscava dialogar. De construção de esquemas de financiamento dentro da cadeia vertical do setor, até a fraude e a utilização dos mais diversos instrumentos financeiros para burlar o controle dos custos, as empresas de ônibus fizeram da planilha GEIPOT mais um episódio da longa história da “caixa preta dos transportes”. 1.3.3.1.1. – METROBEL: a experiência belo-horizontina de intervenção pública Expressão das contradições da época de abertura democrática e tentativa de intervenção pública, a Companhia de Transportes Urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte – METROBEL – tem papel fundamental na história do transporte público na cidade e no Brasil. A atuação de sua primeira gestão provocou mudanças radicais na cidade, a partir das próprias diretrizes de modernização do governo federal. A reação das empresas de ônibus de Belo Horizonte a essas intervenções também será exemplo do desenvolvimento do setor nos anos seguintes. Criada em 1978 e efetivada em 1980, com uma composição híbrida de capital, a METROBEL tinha participação majoritária do governo do estado de Minas Gerais (51,22%), e participações minoritárias do governo federal – via EBTU (20%), da prefeitura de BH (22,75%), das prefeituras das demais cidades da RMBH e do DER 63

(6,03%) (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1999, p. 275). Assim, a partir da própria estrutura de capital, tentava-se ao máximo articular as diversas esferas federativas na gestão do transporte. O cenário no qual a METROBEL foi chamada a atuar era bastante complicado, pois ao incipiente, mas já significativo, aumento do número de carros individuais na RMBH somava-se um sistema de transporte público precário, desordenado, com linhas radiais e desarticuladas entre si. Em sua primeira gestão, sob a presidência de João Luiz da Silva Dias, a METROBEL procedeu com a implementação de dois grandes projetos (idealizados anteriormente pela PLAMBEL) que seriam o carro-chefe da rearticulação do sistema de transportes e trânsito da cidade e uma mudança fundamental nas relações do poder público com as empresas de ônibus. Eram eles o Projeto da Área Central (PACE) e o Programa de Organização do Transporte Público (ProBus). Um projeto essencialmente de trânsito, o PACE racionalizou a circulação pelo espaço central da cidade ao eliminar trânsito de passagem em vias locais, fechar quarteirões proibindo a circulação de veículos, criar corredores de transporte e proibir estacionamento em algumas vias arteriais (Cf. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 276). Apesar de focalizado, o projeto teve consequências para o trânsito de toda a cidade e é até hoje uma referência de preferência ao pedestre e ao transporte nãomotorizado. Indissociável ao PACE e a sua execução, estava a implementação do ProBus, que alterou completamente todo o sistema de ônibus da cidade – a partir da diretriz de racionalização dos itinerários. Assim, o ProBus acabou com a profusão de linhas radiais (que ligavam o bairro ao centro, onde tinham o ponto final), buscando diminuir também a distância que o usuário percorria para fazer a conexão entre dois pontos. O novo sistema reformulou as linhas, com novo padrão de números e cores, implantando linhas expressas (diretamente bairro-centro), semi-expressas (bairro-centro com paradas) e as diametrais (que faziam a ligação entre dois bairros, passando pelo centro). A implantação do novo sistema ocorreu de uma vez só, durante um final de semana. Apesar da informação prévia, o impacto dessas mudanças foi de tal magnitude que o dia 12 de julho de 1982 ficou conhecido como “o dia que a cidade parou” (DIAS, 2013), deixando a população não só desnorteada, como bastante revoltada. As mudanças – necessárias de um ponto de vista técnico que privilegia o transporte público – só foram efetivamente realizadas graças às brechas excepcionais que o período de abertura 64

política dava aos órgãos públicos. Nesse sentido, a METROBEL em sua primeira gestão conseguiu a façanha de se valer de uma base de apoio autoritária (as três instâncias governamentais, em graus diferenciados) para implantar um projeto que ia, em grande medida, contra os interesses conservadores da própria base partidária do governo; por outro lado, implantava um projeto que, do ponto de vista da mudança das condições de deslocamento, favoreceria as camadas de renda mais baixa da população, mas que sofria oposição delas e de suas lideranças comunitárias devido ao seu cunho tecnocrático e a incapacidade política crônica de gerar um processo de diálogo e mobilização pública. No bojo dessas transformações, a implantação da tarifa única no sistema, por meio da Câmara de Compensação Tarifária (CCT) foi um dos elementos que mais atingiu a estrutura organizacional das empresas e acarretou destas uma reação. A CCT é um instrumento de gestão e distribuição de recursos que permite a visualização do transporte público como um sistema e abre caminho para efetivação de sua função social. Seu princípio básico é a redistribuição da receita tarifária arrecadada em todo o sistema: assim, as linhas com maior número de passageiros e menores custos – superavitárias – compensariam aquelas com menos passageiros e maiores distâncias, deficitárias, portanto. Ainda que continue a se basear na arrecadação da tarifa, o controle público e prévio de toda a receita do sistema é premissa e instrumento fundamental para que o poder público possa direcionar o poder privado e efetivar a oferta de transporte público onde esta não é viável do ponto de vista capitalista. Esse subsídio cruzado da CCT se dá apenas na transferência de recursos entre usuários, mas, considerando que, em condições normais, as linhas superavitárias circulam em regiões com uma renda mais alta e as deficitárias em espaços periféricos de renda mais baixa, o instrumento dá um primeiro passo na direção da equidade no financiamento do sistema. Essas mudanças, que também reduziram o número de linhas e ônibus nas ruas, atingiram de forma mais dura os empresários mais inertes ou frágeis. No bojo da modernização do órgão gestor, houve um esforço para a realização de um tratamento homogêneo de todos os empresários por parte do poder público. A pressão do novo sistema fez com que, mais uma vez, o setor passasse por um processo de concentração de capital, eliminando as empresas mais “artesanais”. O número de empresas operadoras na RMBH passa de 139 para 79 apenas no período de implantação do

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ProBus39 (Cf. CANÇADO, et. al., 1999, p. 296). Com sua influência particular diminuída, rapidamente os empresários notaram que qualquer concorrência entre eles seria mais prejudicial. Nesse contexto, o órgão de classe SETRANSP – Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte – ganhou grande poder de representação, passando a mediar toda a interlocução entre o órgão público e as operadoras e avançando, a partir disso, na profissionalização de sua estrutura. Há, objetivamente, uma mudança geracional na condução do órgão, com os filhos dos pioneiros, profissionais com formação universitária, assumindo a diretoria do sindicato. Esse processo de articulação de classe rapidamente se elevará para o cenário nacional, com significativo protagonismo dos empresários belo-horizontinos. Nesse sentido, a modernização capitalista em direção à reprodução ampliada do setor também se dá como reação à tentativa de controle público das condições operacionais e de mercado, a literatura no tema ressalta a pressão que fez o setor se organizar: As empresas viram-se obrigadas a um maior controle na produção de serviços, para atenderem às determinações do novo órgão gestor: itinerário, número de viagens, horários, tempo médio de viagem, frota, número de trabalhadores, índice de ocupação dos veículos, instalações, etc. (CANÇADO et. al., 1999, p. 298). As modificações no sistema de transporte levaram ao início de uma profissionalização das empresas operadoras, quando a segunda geração dos pioneiros do transporte na cidade passou a dirigir essa organização e também assumiu o comando do sindicato. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 279).

Entretanto, as condições políticas que possibilitaram a atuação tão contundente da METROBEL rapidamente se esvaneceram. Em meio ao aumento da inflação e à crise da dívida, o Estado perdia capacidade de intervenção ao mesmo tempo em que novos interesses políticos se rearticulavam em nível local, estadual e nacional. Nesse contexto, não foi dada, por parte do governo estadual, continuidade para a capacidade de intervenção da METROBEL. À medida que o órgão ia sendo reformulado, o setor empresarial, rearticulado, avançava e pressionava por maior controle do sistema. Em meio a esse processo, o empresário e então prefeito de Contagem, Newton Cardoso, é eleito governador do estado e, em seu primeiro ano de governo, cumprindo uma promessa de campanha, extingue a METROBEL, criando a TransMetro (Transportes Metropolitanos). Nesse processo, o controle e operação da CCT é transferido para o sindicato patronal das empresas de ônibus, que ganha um instrumento 39

É importante notar que, apesar dessa redução, o número de empresas operadoras do sistema continuou a ser significativamente maior do que a média nacional à época.

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de barganha importante ao mesmo tempo em que a possibilidade de transparência do sistema é perdida. A TransMetro passará seus anos de existência sem conseguir exercer, efetivamente, uma intervenção no sistema, e a gestão de Newton Cardoso será marcada por desvios de verbas – entre as quais está o cancelamento da implantação do trólebus na cidade – suspeitas de corrupção, e práticas de favorecimento e clientelismo. Apesar de retomada, alguns anos depois, no contexto da prefeitura democráticopopular de Patrus Ananias (1993-1996), muitas das condições de intervenção e controle do sistema a partir da perspectiva de Estado construída no século XX estavam ruindo. De fato, em meio ao avanço neoliberal e o desmoronamento de um modelo fordista tardio, quem conseguisse articular autonomamente mais poder econômico ganhava a dianteira. Não é por acaso que, nesse contexto, em 1987, a Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano é fundada. 1.3.3.1.2. - Vale-transporte e municipalização Em âmbito nacional, o esgotamento do modelo de desenvolvimento dependente brasileiro, no começo da década de 1980, afetou também a oferta de transporte público no Brasil, na relação entre o setor privado, as empresas públicas de transporte rodoviário e a capacidade estatal de construção de infraestrutura. Sem a possibilidade de financiamento externo e sem dinâmica interna, a grande estrutura estatal brasileira montada pelos militares se esfacelava rapidamente. Havia um descompasso entre a capacidade de investimento do governo federal e as soluções necessárias diante da infraestrutura viária e de frota existente para o setor de transporte público. Além disso, o financiamento do sistema – que persistia na exclusividade da tarifa paga pelo usuário – estava se mostrando sistemicamente débil em função do achatamento salarial da crise da dívida, ao mesmo tempo em que uma série de gratuidades segmentadas eram aprovadas nos níveis locais40. As empresas de ônibus, diante desse cenário, agiam de forma a minimizar suas perdas, adiando ao máximo possível a renovação de frota e evitando sua ampliação. As condições de deslocamento no transporte público naquele momento atingiram seu zênite, com baixa cobertura espacial e altíssimos graus de lotação dos ônibus (ver HENRY & ZIONI, 1999, para o caso de São Paulo, e FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, cap. 7, para o caso de Belo Horizonte).

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Idosos (antes da constituição federal de 1988), ex-combatentes e pessoas com deficiência física, mental e visual são algumas das categorias contempladas pela gratuidade nos anos de 1985 e 1986 em Belo Horizonte (Cf. OLIVEIRA, 2002, pp 40-42).

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Em meio à crise, duas mudanças significativas vieram retomar a dinâmica financeira e amenizar o setor: o vale-transporte e a definitiva municipalização do serviço. O vale-transporte surge como uma forma de subsídio direto a usuários selecionados, que acaba atuando como ampliação de mercado das empresas, sem contudo interferir na formação da tarifa. A lei federal nº 7.418 de 1985 (BRASIL, 1985) instituirá que o trabalhador gastará no máximo 6% de seu rendimento salarial com os custos de deslocamento entre a casa e o trabalho, cabendo ao empregador o custeio da parcela de custo restante. Sobre o impacto dessa medida, a Fundação João Pinheiro comenta que se o vale-transporte veio reforçar um quadro de redistribuição dos custos operacionais entre trabalhador, empregador e governo, sua operacionalização pelas empresas privadas chegou a significar uma nova fonte de renda. Numa economia inflacionária, a venda dos vales-transportes representava uma receita antecipada que gerava aplicações no mercado financeiro. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 293)41.

O vale-transporte se coloca como uma primeira forma, a nível nacional, de redistribuição dos custos do transporte público para além do usuário direto. Entretanto, sua concepção apresenta uma série de limitações que minaram rapidamente sua efetividade no propósito de garantir o acesso ao transporte como um direito social. Em primeiro lugar, a lei não garante o controle da receita por parte do poder público. Pelo contrário, seu artigo 5º estabelece que é a empresa operadora que será obrigada a emitir e comercializar o benefício. Nesse sentido, esse aporte financeiro não faz parte do orçamento geral do município e não pode ser utilizado para a melhoria das condições de transporte para todos. O controle dessa receita por parte dos operadores avança o processo de financeirização do sistema, ao qual o setor já possuía grande propensão. Antecipação de receita, investimentos e especulação financeira local passam a se determinar mutuamente. Em segundo lugar, e de maneira mais grave, o subsídio se dá única e exclusivamente a partir da lógica “produtivista” do espaço urbano. Em outras palavras, o único direito de mobilidade que o Estado irá garantir é aquele deslocamento da casa em direção ao trabalho. Nos termos da economia política da urbanização, só deveria ser subsidiado aquele trânsito que garantisse a realização da mercadoria que gera o 41

É de se notar que, enquanto existia como um papel, o vale-transporte possuía uma liquidez que gerava um mercado paralelo e clandestino em sua comercialização. A partir do momento em que foi transformado em créditos eletrônicos, no começo da década de 2000, o vale-transporte passou a ser uma receita antecipada exclusiva das empresas que, a partir dele e da rotatividade diária de capital, atuam no mercado financeiro local.

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excedente expropriável: a força de trabalho. Ao transportá-la para o espaço de produção de mercadoria e expropriação de mais-valia, garantem-se apenas as condições gerais de produção e, mesmo assim, apenas o processo de valorização exclusivo da lógica fordista. Qualquer outro propósito de deslocamento – para lazer, saúde, utilização do espaço público – será necessariamente uma atribuição privada do usuário. Ainda que se possa argumentar que a renda economizada pelo trabalhador pode servir para custear esses outros deslocamentos, o recorte da intencionalidade é claro: apenas trabalhadores formais e seus deslocamentos produtivos serão objetos de política pública. A mesma argumentação pode, em alguma medida, ser colocada em relação ao benefício do passe estudantil e outros benefícios setoriais. Nesse sentido, a lógica discricionária do Estado, ao controlar o fluxo e o acesso ao espaço, permanece a mesma apontada no início dessa seção: deslocamento como concessão e privilégio, imiscuído dentro da complexidade da estrutura social, uma cidadania regulada e de privilegiados, nunca uma garantia plena de direitos, uma universalidade. O vale-transporte rapidamente será reconhecido como obsoleto e insuficiente (BRASILEIRO & HENRY, 1999, p. 98), em que pese o fato de sua existência ser utilizada até hoje como argumento político de manutenção da atual estrutura de concessão e gestão42. A década de 1980 também culminou na Assembleia Constituinte e em um momento de grande transformação da estrutura política do Brasil. Auge do processo de luta e elaboração de uma série de movimentos sociais que tiveram suas origens no fim da década de 1970, inclusive na luta por melhorias das condições de transporte, a Constituição de 1988 configurou os avanços e limites de uma disputa dentro da institucionalidade de uma democracia representativa. Vinte e sete anos após sua aprovação, muitos de seus elementos progressistas foram ignorados ou se perderam e vários dos seus dispositivos conservadores permanecem vigorosamente ativos. No que tange à questão do transporte público urbano, duas alterações são significativas. Em primeiro lugar, institui-se, a nível nacional, a gratuidade do transporte público para as pessoas acima de 65 anos (BRASIL, 1988, Artigo 230, parágrafo 2º). Gratuidade segmentada, a não vinculação de seu financiamento com algum recurso orçamentário específico abre possibilidade para que a repartição de seus custos se dê

42

Em diversas ocasiões públicas, entre 2011 e 2015, o atual presidente da BHTRANS e seu Diretor de Transportes Públicos afirmaram que o vale-transporte representa hoje 40% do total de passagens pagas no sistema, insistindo que já havia, dessa maneira, uma política de subsídios na cidade e que era, portanto, inaceitável alterar a fórmula de revisão tarifária, reduzir a tarifa ou subsidiá-la diretamente.

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sobre o usuário pagante. Não estando direta e proporcionalmente vinculada à renda, essa medida dificilmente contribui no avanço da equidade no financiamento do sistema, ainda mais em um cenário de envelhecimento contínuo da população. A principal mudança, entretanto, foi a nova divisão federativa brasileira, com redefinição das atribuições de cada ente. Nesse sentido, a responsabilidade pela concessão do transporte público urbano passa a ser, definitiva e legalmente, exclusividade municipal. A experiência anterior, de autoritarismo e concentração das atribuições e recursos na esfera federal, foi um dos principais motivos para essa mudança. Em que pese a legitimidade de se construir autonomia local sobre os serviços urbanos, a complexidade do setor econômico e sua própria organização empresarial a nível nacional exigiam que a solução dessas atribuições passasse por uma orquestração mais trabalhada entre os diversos níveis federados. A história dos últimos 25 anos do transporte público fornece um ponto de vista privilegiado para compreender as falhas de alcance dessa medida, principalmente a nível metropolitano. A efetividade da atribuição do transporte público ao poder local teve efeitos imediatos na recuperação do setor privado de ônibus, uma vez que burocraticamente tornou-se mais fácil aos empresários sobrepor linhas, pressionar por reajustes tarifários, realizar disputas políticas e seccionar mercados. Anísio Brasileiro e Etienne Henry comentam que: Nessa brecha desatou-se outra estratégia de recuperação econômica por parte dos empresários, duplicando suas bases de oferta, deslocando capital rodante e investimentos de um setor para outro e apoiando-se nos resultados operacionais de um para justificar demandas de aumentos tarifários em outro. As reivindicações de soberania dos municípios entre si, e de todos frente aos estados, cancelou a possibilidade de eles se posicionarem frente a tal recomposição da oferta, assim como de empreenderem ações coordenadas de planejamento estratégico. (BRASILEIRO & HENRY, 1999, p. 99).

A realidade vivenciada pelos municípios desconstruiu, lamentavelmente, as intenções colocadas pela Constituição Cidadã na questão do transporte público. Assim como para outras questões, é necessário sistematizar o acúmulo político e técnico dessas últimas décadas para romper paralisias e avançar no sentido de uma reformulação não só de aspectos legais e burocráticos da questão urbano, no qual o país já tem bastante acúmulo (Cf. MARICATO, 1999 e 2013). Cabe aqui questionar a legitimidade da atual estrutura de poder, a oficial e a não-oficial, e avançar para construir a efetividade de um controle popular do transporte. Caso contrário, permanecer-se-á em uma paralisia, à mercê da crise urbana e das políticas econômicas de acúmulo de capital, tal qual foi toda história do transporte urbano no Brasil, com raras exceções. 70

A década de 1990, nesse sentido, será a época de experiência dessas honrosas exceções municipalistas e de seus limites. Ao mesmo tempo, as mudanças na natureza do Estado, na dinâmica econômica nacional e mundial, bem como no processo de urbanização vivenciado até então, estabelecerão parâmetros profundamente diferentes para a disputa dos rumos das cidades e do transporte. Esse período de inflexão é percebido de maneira diferente por cada um dos atores políticos envolvidos na questão. Cabe agora delineá-lo. 1.4. – Inflexão social na década de 1990: o sopro democrático-popular, neoliberalismo e motorização. Desde a década de 1970, a natureza do capitalismo esteve mudando significativamente. Entrava em colapso o assim chamado sistema fordista de acumulação, no qual o pacto velado entre os rendimentos do capital e do trabalho, por meio da intermediação ampla e contínua do Estado, possibilitou um acúmulo de capital sem precedentes, conhecido como a “Era de Ouro” do capitalismo (1945-1970) (Cf. HOBSBAWN, 1994). Nesse cenário, os países fora dos centros dinâmicos da economia mundial foram atingidos de maneira tardia e desigual. Enquanto a ideologia neoliberal avançava decididamente na Inglaterra e nos Estados Unidos, sob o comando de Thatcher e Reagan, a América Latina se via às voltas com o processo de retomada democrática, depois de longos e duros anos de regimes militares. A dinâmica econômica, evidentemente, era indissociável da política. Assim, no Brasil, mesmo depois da Constituição de 1988, havia uma disputa entre a natureza do Estado, a necessidade de garantia de direitos, de inclusão no mercado, a constituição de um setor privado pujante e a ampliação da recémconquistada e ainda frágil democracia. Esses aspectos, sobrepesados de maneiras diferentes pelos diversos setores sociais, se consubstanciaram, em grande medida, em duas perspectivas para o país: o projeto democrático-popular e o projeto neoliberal, perspectivas divergentes, mas não irreconciliáveis ou necessariamente antagônicas, como a história mostrou. O setor de transporte público por ônibus vivenciará essa disputa a partir de vários atores, e, pela primeira vez, terá problemas sérios em se adequar à forma como o sistema de mobilidade urbana e a produção do espaço passaram a se relacionar. Até meados da década de 1990, por maior que pudesse ser sua crise econômica, o setor de transportes públicos trabalhava sempre com projeções de aumentos anuais de 71

demanda. Havia sido assim durante toda sua história e não havia motivos para se pensar que ocorreria de maneira diferente. A urbanização, a constante vinda de pessoas para as cidades, constituía um mercado cativo em constante crescimento. De pioneiros artesanais a grandes empresas, os empresários de ônibus brasileiros tinham atravessado grande diversidade de situações e relações com o poder público – de enfrentamento a compadrio, de pressão por modernização e concentração a erros de dimensionamento, tudo havia sido experimentado – mas, a demanda e a pressão pelo aumento da oferta eram fatores perenes dessa narrativa. Com as mudanças de regulação na década de 1980 o setor ganhou força e se modernizou, construindo uma inédita estrutura profissional. A articulação a nível nacional organizava o mercado e suas disputas, e, depois da criação da NTU, a categoria passou a ter influência decisiva na Confederação Nacional dos Transportes (CNT). Em 1987, Camilo Cola, proprietário fundador da Viação Itapemirim, à época a maior empresa de transporte rodoviário de passageiros (urbano e interubano) do Brasil, foi eleito presidente da CNT e passou a um processo de elevação do setor ao mesmo patamar que outras organizações de classe, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), do Comércio (CNC) e da Agricultura (CNA) (Cf. BRASILEIRO & HENRY, 1999, p. 107). O setor de transportes, com a categoria de transporte de passageiros como seu carro-chefe, ultrapassou o nível de um setor econômico coeso e passou a se constituir política e economicamente como um grande ramo da dinâmica econômica nacional, com significativa capacidade de influência nos rumos do país. De pressão para políticas de infraestrutura até escolha de ministros, o setor promovia a modernização capitalista ao mesmo tempo em que garantia o vigor de programas de capacitação para seus empregados, por meio do Serviço Social do Transporte, o sistema SEST/SENAT43. A reprodução ampliada do capital no setor estava consistente e pronta para iniciar o processo de diversificação, enquanto atendia ao aumento da capacidade produtiva. A primeira metade da década presenciou um período de crise econômica com aceleração inflacionária, além de um amplo desmonte da estrutura estatal e avanço do capital privado internacional em uma série de setores. Nesse contexto, as políticas nacionais para o transporte público, já bastante enfraquecidas, foram rapidamente

43

“Ressalte-se ainda que o SEST/SENAT foi criado em momento de questionamento nacional quanto à continuidade de outros serviços congêneres como o da Indústria e do Comércio (SESI e SENAC), demonstrando o poder de mobilização política da categoria, capitaneado por lideranças mineiras” (CANÇADO et. al., 1999, p. 300).

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abandonadas. O fim da EBTU em 1990, (BRASIL, 1990) e de vários órgãos metropolitanos, como a própria TransMetro na RMBH (extinta em 1994, depois de perder prerrogativas de regulação de sistemas municipais), mostra claramente que a esfera estadual e federal deliberadamente se retiraram da organização do transporte público, mesmo tendo em conta seu caráter conurbado e regional e a necessidade de aporte de recursos. É em um cenário de simultânea crise econômica, fortalecimento da organização empresarial enquanto classe, e retirada de cena do poder público federal e estadual que o poder municipal é chamado a regular o setor de transporte público. A forma como as prefeituras recém-eleitas para o novo período democrático irão lidar com a questão marcará fortemente o debate teórico e institucional a respeito das formas de conceder, regular, ofertar e gerir o transporte no Brasil. Os limites de atuação do poder municipal e a disparidade de poder de barganha com as empresas privadas serão questões relevantes. Não buscando esgotar um cenário tão diverso, apresentam-se aqui alguns aspectos da experiência de dois governos populares no começo da “Nova República”. 1.4.1. – São Paulo e Belo Horizonte: a experiência do projeto democrático-popular nos transportes Em 1988, Luiza Erundina foi eleita a primeira prefeita da maior metrópole do país. Na época no Partido dos Trabalhadores, a prefeita iniciou uma gestão de corte popular, que visava experimentar e implantar na cidade o acúmulo dos debates e movimentos sociais que constituíram o PT e outras organizações, além da abertura democrática a partir do começo da década. A chegada da esquerda ao poder na cidade de São Paulo foi vista como um desdobramento das lutas dos movimentos sociais de então (HENRY & ZIONI, 1999, p. 151) e um posicionamento da periferia paulistana pela ruptura com o status quo. A prefeitura era o primeiro grande desafio do projeto democrático-popular no poder executivo de uma democracia representativa. Os serviços públicos, e em especial o transporte coletivo, foram a principal plataforma de campanha naquelas eleições. As condições do transporte nos anos 1980 eram extremamente precárias e a cidade, com uma população metropolitana que ultrapassava a faixa dos dez milhões de habitantes, vivenciava graves problemas em todo o seu sistema de mobilidade urbana. Nesse cenário crítico, os seguintes objetivos foram traçados: 73

criação de condições para o crescimento expressivo da frota de ônibus; redução de sua idade média; absorção de demandas não atendidas com abertura de novas linhas e busca de efetiva melhoria de nível do serviço ofertado(HENRY & ZIONI, 1999, p. 151).

Para dar conta dessa reformulação dentro do novo cenário institucional, a prefeitura procedeu com a chamada “municipalização” do transporte público. Um termo que carregou diferentes significados ao longo do tempo, controversos até hoje, a municipalização paulistana visava alterar o modelo de concessão e remuneração dos serviços de ônibus na cidade equalizando a rentabilidade das empresas a partir da remuneração por custos (Cf. SINGER, 1996, p. 151). A proposta se assemelha à CCT de Belo Horizonte de 1982, mas possui uma diferença fundamental: se na Câmara de Compensação, a fonte de recursos para a remuneração se baseia principalmente na receita tarifária e, quando muito, em receitas acessórias do sistema de ônibus, na proposta de municipalização paulistana a remuneração do serviço passa a integrar a esfera orçamentária municipal, o que também é válido para a arrecadação tarifária. Assim, a remuneração passa a ser uma questão de garantia de prestação de um serviço público, não tendo mais o seu valor vinculado à rentabilidade geral e média do sistema e desenvolvendo, na prática, o instrumento do subsídio público. A municipalização do serviço, colocada nesses termos, possibilitou uma recuperação do serviço de transportes públicos sem precedentes. A mudança na forma de contratar e remunerar os empresários os estimulou a ampliar a frota, que cresce em 2.300 veículos em menos de um ano, o que equivalia a 25% da frota anterior existente. Lúcio Gregori, o terceiro e último secretário de transportes da gestão Erundina relata que, uma vez que a remuneração se desvincula por completo do número de passageiros transportados, cabia ao poder público identificar e dimensionar a demanda por transporte e contratá-la junto aos empresários, que colocavam mais veículos em operação44. A coordenação entre mudança na regulação, mobilização social e pressão política junto aos empresários conseguiu em pouco tempo recuperar a crise estrutural que os empresários passaram à população na década de 1980. Na municipalização, “a tarifa podia manter critérios de caráter social, justificando, além do subsídio cruzado entre operadores – privados e público –, um substancial aporte orçamentário do município.” (HENRY & ZIONI, 1999, p. 153). Em conjunto com a implantação do Conselho Municipal de Tarifas (COMTAR) para dar 44

Essas informações foram relatadas por Lúcio Gregori em conversas pessoais, e podem ser verificadas no relatório de 1992 da CMTC (SÃO PAULO, 1992).

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transparência e controle aos procedimentos de arrecadação e remuneração, essas medidas eram elementos básicos para possibilitar a implantação da “Tarifa Zero” no sistema de ônibus. A ideia de gratuidade universal do sistema de transporte público se insere no contexto da luta pela consolidação de direitos fundamentais. Paul Singer a coloca no mesmo rol do ensino público, assistência pública à saúde, iluminação pública, o serviço de trânsito e o policiamento, (SINGER, 1996, p. 148), todos prestados até hoje de maneira gratuita e universal, garantida pelo orçamento público. Em outros termos, é o próprio contexto da trajetória dos movimentos sociais que põe a tarifa zero em pauta na sociedade. A quebra da lógica de remuneração direta do serviço pelo usuário desconstrói, na relação cotidiana, uma das dimensões que fazem do transporte uma mercadoria: a utilização do serviço vinculada a um pagamento imediato. Ainda que a tarifa zero seja conciliável com a oferta privada de transporte e, portanto, com sua natureza capitalista – com apropriação de excedente e reprodução ampliada -, é necessário reconhecer que a prática que se propõe é uma ruptura com toda história do transporte público brasileiro, pago na hora da utilização desde suas origens. Apesar de ter diálogo explícito com as propostas de teto tarifário, feitas pelos movimentos sociais na década de 1980, a gratuidade universal é também uma ruptura com a dinâmica dos movimentos sociais no transporte e uma desconstrução da lógica das gratuidades segmentadas, que dividia a sociedade e consumia muita energia mobilizadora para sua efetivação. A proposta não chegará nem ao plenário da Câmara Municipal, como se verá na seção 2.5.1 desta dissertação. Mas sua inserção como princípio e bandeira de luta estará iniciada, e será retomada em 2005, quinze anos após sua primeira proposição. Nesse meio tempo, o país vivenciará outras experiências de recorte “democrático-popular” em seus sistemas locais de transporte público, como também o enfraquecimento dos movimentos sociais “clássicos” (entendidos aqui como aqueles surgidos do processo de redemocratização) além do agravamento das condições de deslocamento pelo aumento da motorização.

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1.4.1.1. Belo Horizonte e a proposta de controle cidadão do transporte No contexto da mudança das atribuições federativas, Belo Horizonte criou no ano de 1991 a BHTRANS – a Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte45 –, com as prerrogativas de centralizar o controle de fiscalização, gestão e concessão das atribuições de trânsito e de transporte público na cidade, que à época estavam fragmentadas entre os diversos órgãos estaduais e federais, ainda que estes estivessem com sua estrutura fragilizada. Com um começo tímido, suas atribuições e orçamento foram significativamente ampliados no governo de Patrus Ananias (1993-96). Sob a presidência renovada de João Luiz da Silva Dias e, depois, Antônio Carlos Pereira, institui-se o Sistema Municipal de Transporte Coletivo de Belo Horizonte, revogando-se a atribuição da ainda existente TransMetro. Além disso, e de forma fundamental, o controle da Câmara de Compensação Tarifária é retomado pelo órgão público, revogando-se a delegação feita à SETRANSP (Cf. OLIVEIRA, 2002, p. 45). Essa é a principal medida para se buscar, a exemplo do município de São Paulo, a retomada da qualidade e da ampliação da frota, além de estabelecer a tarifa como um preço público que pode se situar abaixo do custo médio, se necessário. João Luiz relata que a retomada do controle público sobre a operação do sistema possibilitou a melhoria de frota, a partir do estabelecimento de especificações mínimas para o veículo: ônibus com motor traseiro, com uma melhora significativa nas condições de trabalho do motorista, além de “porta de 1,10 metros, suspensão a ar, transmissão automática e piso rebaixado nas entradas.” (DIAS, 2014, p. 130). Além disso, a CCT possibilitou que se controlasse a oferta e o preço do ônibus. Um ano e meio após sua retomada, a instituição do Plano Real e a estabilização da moeda a nível nacional possibilitaram significativos superávits de arrecadação no sistema, com o fim dos constantes reajustes tarifários. Nesse sentido, a partir de uma visão do transporte como direito social para acessar a cidade, a prefeitura experimentou de maneira inédita a gratuidade universal do sistema. Batizada de “Passe Passeio”, a experiência ocorreu em duas ocasiões: 1º de janeiro e 1º de maio do ano de 1995, além de estabelecer um desconto de cerca de 75% no valor da tarifa nos demais feriados daquele ano (Cf. OLIVEIRA, 2002, p. 46), mantendo a oferta dos dias úteis. A medida foi inédita e revolucionária em vários aspectos, e sua história, desdobramentos e potencialidades 45

Lei municipal 5.953 de 31 de julho de 1991 e Decreto municipal nº 6.985 de 30 de setembro de 1991.

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ainda demandam um estudo mais detalhado. Entretanto, cabe aqui pontuar o comentário de João Luiz sobre o caso: O Passe Passeio significava tarifa zero para os ônibus de Belo Horizonte em feriados, com programação de dia útil. A pressão de demanda pelo transporte era tão grande nesses dias que, posteriormente, colocamos a tarifa a dez centavos com a intenção de pagar um bônus aos motoristas e cobradores que trabalhassem naquele dia46, uma vez que a quantidade de passageiros, principalmente nas proximidades de lugares como o Zoológico, tornava o trabalho mais intenso. Essa experiência revelou uma demanda de transporte reprimida e oculta pelo alto custo de circular na cidade. Apesar da euforia causada nos dias de tarifa zero, o projeto não durou mais que três feriados. Houve muita pressão dos empresários, que conseguiram que o Tribunal de Contas inibisse o projeto, alegando ser proibido abrir mão de uma receita em lei, apesar de o custo do Passe Passeio ter sido bancado pela receita superavitária do próprio sistema de transporte. (DIAS, 2014, pp. 126-7).

A experiência Belo-horizontina de gestão do transporte, que terá alterações já em 1998 com a primeira licitação de serviço de transporte por ônibus realizada no país, é um marco significativo para a avaliação dos limites e possibilidades do modelo de gestão ali realizado. Apesar dos entraves em outras esferas federais, a experiência foi bem-sucedida enquanto havia condições políticas para o controle e a mobilização popular que se sobrepusessem às tentativas de influência por parte das empresas privadas. A partir do momento em que estas conseguiram direcionar as políticas públicas de Belo Horizonte, seja a partir de cooptação e negociação, seja por pressão econômica e enfretamento político, as condições de controle rapidamente se desfizeram rumo a uma situação insustentável. 1.4.2. – Neoliberalismo e as mudanças nos debates teóricos Como já pontuado anteriormente, a crise fiscal e política do Estado em todo o mundo ocidental a partir da década de 1980 teve profundos impactos na forma como as cidades se organizavam e se desenvolviam. A ascensão da ideologia neoliberal também ganhou espaço e influência na questão da mobilidade urbana e do transporte público brasileiro, em um contexto em que a União se retirava claramente de qualquer tentativa de criação de uma política nacional de transporte público, relegando a mobilidade urbana à dinâmica da omissão pela política econômica, com o fortalecimento do setor automobilístico.

46

Segundo Marcos Fontoura de Oliveira, “análise realizada na época sobre o efeito da medida indicou que a maioria dos usuários preferiram o menor preço à gratuidade e que a maioria dos motoristas e cobradores , ao contrário, preferiram o dia de tarifa normal” (OLIVEIRA, 2002, p. 48).

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É necessário compreender que esse debate não ocorre sem motivo. A falência do Estado e seu modelo intervencionista tal como tinha sido historicamente gestado – a partir de uma perspectiva autoritária e de uma atuação direta no setor produtivo – era uma questão que envolvia todos os aspectos do cotidiano. Assim, acadêmicos e pesquisadores do assunto não só procuravam debater os motivos que levaram a tal situação, como buscavam soluções e alternativas ao modelo estatista, que não necessariamente deveriam apontar para a desregulamentação e o privatismo. No Brasil, a questão da mobilidade urbana, em seus aspectos de transporte e trânsito, ganhava cada vez mais estudiosos e estrutura de pesquisa. Assim, a Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, fundada em 1977 por iniciativa do Metrô de São Paulo e outros gestores público, bem como a Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes – ANPET, fundada em 1986, passavam a se debruçar sobre o tema e buscar debater experiências nacionais e internacionais à luz de variados modelos interpretativos. Cabe ressaltar uma ausência relevante nesse tema: a pesquisa urbana e regional não conseguiu desenvolver um debate continuado, tampouco envolver seus principais centros de pesquisa na questão. A ausência do tema na sua relação com a produção do espaço urbano expressa também as consequências de uma concepção de planejamento dividida e esterilizada em disciplinas e segmentos estanques. É nesse momento da década que foram elaboradas as principais referências utilizadas no debate desta dissertação até agora. Ônibus urbano: Regulamentação e Mercados (ORRICO FILHO et. al., 1996) e Viação Ilimitada: Ônibus das cidades brasileiras (BRASILEIRO & HENRY (orgs.), 1999) são obras extensas e ricas em diversidade de experiências municipais, regionais e internacionais que expressam um acúmulo histórico de anos de pesquisa e vivência técnica da questão. A história do transporte público, bem como o debate teórico a respeito de sua dinâmica econômica e regulação configuram elementos de referência histórica. Nesse sentido, sua elaboração expressa também as contradições e limitações de seu tempo. Assim, a partir de um acúmulo de experiências locais e de uma rica trajetória do transporte público, esses autores buscaram debater os limites dos modelos teóricos que balizavam a regulação (ou sua ausência) dos mercados urbanos. A perspectiva da época permeava a questão, e a noção de monopólio natural que se colocava desde a década de 1940, como apresentado neste capítulo, era colocada em xeque junto com a perspectiva

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do Estado interventor que esboroava. A obra de Orrico Filho (1996) é que se debruçará sobre essa questão. A partir da renovação da perspectiva liberal, isto é, do poder regulador de oferta e demanda do mercado, o debate sobre a regulação da operação privada no setor de transporte por ônibus passava por duas abordagens opostas: por um lado, a teoria do monopólio natural e, por outro, a teoria dos mercados “plenamente contestáveis”, mais próximos da livre concorrência. Se a perspectiva de monopólio natural parte do pressuposto de que a escala e a exclusividade de operação do mercado tornam a competição ineficiente, a teoria dos mercados plenamente contestáveis, por sua vez, pressupõe que os custos fixos do setor são relativamente baixos, o que eliminaria barreiras econômicas à entrada, possibilitando que a livre concorrência possa ser emulada. Idealizada pelo economista americano William Baumol na década de 1980, a teoria parte de um modelo no qual a ausência de economia de escala, monopólio tecnológico e experiência de mercado para a operação do serviço são elementos prévios. De acordo com Santos e Orrico Filho A teoria dos mercados contestáveis prognostica que a mera ameaça de entrada e de competição levará empresas mono(oligo)polistas a praticarem preços iguais aos custos médios, produzindo a um nível máximo de eficiência técnica, ou seja, a um custo mínimo para um dado nível de produção. (SANTOS & ORRICO FILHO, 1996, p. 30).

No limite, a teoria busca igualar um mercado que tem falhas a um mercado virtualmente aberto à livre entrada, pressionando para que a regulação pública crie condições para tal. No contexto do transporte público, essa teoria foi importante para argumentar em favor de maiores elementos de concorrência no mercado privado e uma menor intervenção do poder público. Apesar de a teoria não ser absorvida em sua integralidade no Brasil, seu principal fundamento permaneceu. A relevância da concorrência no setor, que pode se dar em três níveis (por plantas de produção; por distribuição de receitas ou por passageiros), torna-se crucial no contexto da década de 1990. O princípio da competição será entendido como fator fundamental da eficiência no sistema, tornando-se a principal perspectiva a informar as novas regulações, processos licitatórios e concessões na área de transportes públicos. Nesse sentido, gradativamente, os instrumentos de controle público vão sendo transferidos à iniciativa privada, desconstruindo a breve experiência de municipalização vivida na década de 1990 e consolidando a hegemonia das empresas de ônibus que se conseguiram atingir a escala nacional. 79

Para além do debate teórico, outras mudanças na realidade brasileira irão afetar a questão do transporte público em direção a uma renovação de perspectivas. A partir de 1994, quando a estabilidade monetária e a paridade cambial elevam o poder de compra da população, a política federal para os transportes urbanos resumia-se à liberalização da importação de veículos e a atração de um maior número de indústrias automobilísticas, enquanto em escala nacional promovia-se a concessão de rodovias e privatização

ou

desativação

da

remanescente

infraestrutura

ferroviária

(Cf.

BRASILEIRO & HENRY, 1999, p. 110). Dessa maneira, um dos principais pressupostos de sustentação do monopólio natural, a dificuldade de substituição ou autoprovimento do produto-deslocamento, estava se tornando rapidamente obsoleta devido à ampliação sem precedentes do poder do mercado privado, tanto em toda cadeia de produção da indústria automobilística, como das próprias empresas de ônibus. Enfraquecido política e ideologicamente, o controle público e popular do transporte urbano enfrentará uma fase inédita na história urbana brasileira: o vertiginoso processo de motorização e a expansão e simultâneo esgarçamento dos espaços periféricos. 1.4.3. – O processo acelerado de motorização e a mudança na urbanização O gráfico abaixo resume os últimos 20 anos na história do transporte coletivo por ônibus e na motorização brasileira. São números relativos, comparados ao ano-base de 1994, de lançamento do Plano Real e do início da série histórica da NTU. Dizem respeito ao licenciamento anual de novos veículos (importados e nacionais) e ao número de passageiros transportados por ônibus em nove capitais brasileiras47. O valor absoluto é importante de ser compreendido também, para que se veja que as naturezas dos números são diferentes: 1,4 milhão de veículos licenciados no ano de 1994 e 3,8 milhões no ano de 2013; 442,5 milhões de passageiros transportados mensalmente nas nove capitais mencionadas em 1994 e 329,8 milhões no ano de 2013. O próprio valor das cifras diz algo a respeito do gigantismo crônico das questões brasileiras.

47

Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

80

Gráfico 1- Variação no licenciamento anual de veículos e no transporte de passageiros por ônibus 1994-2013 300

Variação Relativa de licenciamento anual de veículo e nº de passageiros de ônibus transportados - 1994-2013 (1994=100) 269,98

250 Veículos licenciados por ano 200

150 139,28

138,15

110,00

100

100,00

102,03

106,74

105,96

78,76

79,44

Nº de passageiros de ônibus transportados por ano

90,08 71,53

74,53

50

0 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Fonte: elaboração própria a partir de ANFAVEA(2015) e NTU(2014).

A perspectiva de 20 anos faz com que a curva da demanda de ônibus se suavize relativamente, mas as alterações em sua trajetória são verdadeiramente drásticas. Desde 1995, quando houve o pico histórico de demanda no setor, a perda relativa é da ordem de 30%. A estabilidade relativa de 2003 em diante não melhora a situação ao se constatar que, nesse cenário, foi constante o aumento, no Brasil, do número de viagens cotidianas, de veículos licenciados, de espaço produzido e de população urbana. Entretanto, a perda crônica de demanda relativa, como se pode observar pelo gráfico, começa a se acentuar a partir de 1999. Esse período de latência no fim da década de 1990 explica em parte a inércia, tanto do poder público, quanto das empresas de ônibus, em se tomar alguma medida em relação ao fenômeno. Ironicamente, as duas obras de referência aqui citadas se encontram justamente nesse período de “transição”. Assim, expressam um grande acúmulo do passado, que suscita debates genuínos, mas podiam apenas imaginar vagamente a magnitude das mudanças que se avizinhavam. Já a curva de licenciamento de veículos não consegue ser abrandada pela perspectiva temporal. Sua alteração ao longo dos anos é brusca e expressa um país em sua eterna busca por uma modernização tardia e, em grande medida, estrangeira. Os números da década de 1990 são melhor explicados pela estabilidade monetária, paridade 81

cambial e pela liberalização da importação de veículos (Cf. BRASILEIRO & HENRY, 1999, p. 113). A crise do dólar em 1998 faz com que haja uma breve queda acentuada, logo retomada pela dinâmica de mercado brasileira, com a capacidade instalada da indústria automobilística bastante ampliada. A vertiginosa curva ascendente da década de 2000, a partir do governo Lula, em 2003, explicita tanto uma altíssima demanda reprimida como a ausência de modelos alternativos de transporte urbano para além do deslocamento privado. Mesmo com dados tão gritantes, a impressão que se tem, quando são observadas as políticas públicas e debates realizados desde então, é que a sociedade não se deu conta da magnitude da mudança pela qual passou e ainda passa. A década de 1990, como se vê, é sua antessala, o ponto de inflexão que altera as circunstâncias e prepara o caminho para a mudança. A inflexão aqui apresentada possui quatro componentes mais ou menos interligados entre si. Em primeiro lugar, a consolidação das empresas de ônibus como um ator político nacional, depois de passarem por um contínuo processo de modernização. Essa situação permitiu que o setor pudesse exercer influência sobre mudanças na legislação, novos investimentos e infraestrutura, bem como coordenar suas ações para enfrentar tempos de crise, dividir mercados e integrar sua cadeia produtiva. O grande poder de mercado das empresas de ônibus, conjugado à demanda crescente até o meio da década, dá o segundo elemento desse ponto de inflexão. O debate e as mudanças nas formas de regulação do serviço vão minar rapidamente o controle municipal que se ensaiou, em favor de um maior poder de decisão das empresas. A perspectiva neoliberalizante, que tem no princípio da concorrência seu principal argumento, será – em maior ou menor escala – o elemento teórico novo a compor as discussões políticas de concessão e licitação na década seguinte. O setor de ônibus não se encerra em si mesmo. Pelo contrário, sua trajetória está necessariamente ligada à dinâmica de produção do espaço urbano no qual atua. Assim, as grandes taxas de urbanização e periferização, que conformaram sua ascensão enquanto modo de transporte dominante, rapidamente se arrefeceram, a partir da década de 1980. Se os municípios centrais das metrópoles já cresciam a taxas menores que sua periferia, as últimas três décadas apontam para uma diminuição geral no ritmo de crescimento populacional e urbano, acompanhada de uma produção do espaço urbano ainda mais esgarçada em relação à composição da metrópole. Dessa maneira, não há 82

mais perspectiva de criação e expansão de mercados para os ônibus como havia anteriormente. A nova periferização, menos densa e mais afastada do centro, não fornece condições para a oferta privada do transporte público e, antes, se baseia no transporte motorizado individual de baixo custo. Pode-se propor que essa dinâmica configura uma nova etapa na história da urbanização brasileira. Por fim, as condições econômicas brasileiras finalmente preparam o cenário para um processo de motorização em massa. Iniciado de maneira relativamente tímida na década de 1990, o processo já guardava significativa diferença com a motorização pretérita, realmente voltada para a faixa de mais alta renda da sociedade. A popularização do carro, sem nenhuma perspectiva mediadora ou paliativa, irá ganhar outras proporções na década seguinte, mas já consternava o setor de ônibus. O autoprovimento do transporte parece se tornar a solução hegemônica, nas palavras de Henry e Brasileiro: “Agora está se acabando a soberba de quem dirige lá do alto, seguro de que sempre haverá demanda cativa para encher o ‘bumba’” (BRASILEIRO & HENRY, 1999, p. 112). Esses quatro fatores compõem o ponto de inflexão da longa trajetória do transporte público e do serviço de ônibus no Brasil. Se a década de 1990 foi a antessala da profunda crise de mobilidade que vivemos atualmente, a década seguinte foi seu salão de festas. Seus efeitos ainda estão sendo sentidos e sua dinâmica, embora arrefecida, continua presente. De grandes levantes populares a pequenos conflitos cotidianos, o cenário é incerto e tortuoso, mas também aberto em possibilidades. É para os últimos 15 anos dessa história que este trabalho se voltará agora. 1.5 – A mobilidade urbana como um problema social: as recentes disputas da década da motorização 1.5.1. – Perueiros: instabilidade, confronto e cooptação48. A década de 1990 se encerra com a veloz entrada de mais um ator no cenário da mobilidade urbana: o transporte clandestino (ou “perueiros”) se amplia em todas as grandes cidades do Brasil. Beneficiados pela liberação da importação de veículos e pela consequente entrada no mercado dos chamados “veículos utlitários” (vans, bestas, furgões, etc), os perueiros iniciam a oferta de transporte clandestino em virtude de dois 48

Uma referência de pesquisa para este tema que o escopo desta dissertação não abrangeu é a dissertação de mestrado de Leando Cardoso, de 2003, Transporte alternativo – riscos e possibilidades, reflexões sobre o caso de Belo Horizonte.

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principais motivos: em primeiro lugar, o desmonte do aparato estatal e a abertura para o exterior haviam aumentado, de maneira drástica, o desemprego no mercado formal de trabalho. Sem seguridade social, a população buscava criar toda a sorte de alternativas para sobrevivência. Com uma necessidade maior de aporte de capital que a dos camelôs (cujo fenômeno lhe é contemporâneo), os perueiros eram compostos também de desempregados do setor público que vendiam seus pertences para disputar as falhas de cobertura na oferta de transporte urbano49. Assim, a entrada relativamente fácil e flexível no mercado de transporte urbano era acentuada pela fragilidade da cobertura do serviço nas periferias, a dificuldade de acomodar a demanda no horário de pico, além da rapidez e da versatilidade dos itinerários no transporte “alternativo” e também em relação a preços50. Ironicamente, mais de 50 anos depois dos pioneiros do transporte público, que agora eram chamados pela imprensa pejorativamente de “barões da catraca”, um novo foco de transporte artesanal autoproduzido surge nas cidades. Essa situação demonstra que, em uma sociedade de economia pós-fordista, com grande diversidade nas tipologias de ocupação do espaço urbano, a lógica homogeneizante intrínseca ao processo de acumulação de capital não consegue se desenvolver, tampouco no transporte público. As diversas necessidades e desejos que surgem na verve urbana não podem ser atendidas por um único e padronizado modo de transporte. De moto-táxis que fazem caminhos morro acima nas favelas cariocas às vans fretadas que oferecem transporte para bairros e cidades da periferia, a demanda de desejos é múltipla. Essa diversidade, que só poderia ser tratada e incorporada de maneira adequada à cidade a partir de um contexto de disseminação de um controle popular do transporte autônomo e capilarizado, recebeu, na transição do século, uma dupla resposta, complementar: cooptação e repressão. Assim, era necessário ao poder público estabelecer um equilíbrio entre a necessidade de flexibilidade de transporte da população e a tendência à superoferta que a facilidade e não-regulamentação do serviço geravam. Além disso, diversos interesses políticos de atores poderosos entravam em cena e era preciso, de alguma forma, 49

Essa caracterização é baseada nas conversas e convivência política com os remanescentes dos antigos “perueiros” de Belo Horizonte, atuais permissionários do transporte suplementar, por ocasião do novo processo licitatório em curso no ano de 2015. 50 Geralmente mais caros que os ônibus convencionais, o transporte clandestino podia adequar seu preço conforme o perfil do passageiro transportado. As únicas vezes que, enquanto estudante de ensino fundamental, entre meus 10 e 12 anos, paguei meia-passagem no transporte público em BH foi quando utilizava as vans dos “perueiros”.

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conciliar entre eles. A situação teve saídas diferentes em cada cidade brasileira. No Rio de Janeiro, o poder público não conseguiu desarticular o transporte clandestino, que permanece até hoje como uma das principais formas de deslocamento na cidade, coexistindo com o transporte regular e o individual. Em São Paulo, o setor do transporte “alternativo” foi usado como massa de manobra política, ainda nos anos 1990, por Paulo Maluf para desestabilizar setores de transportistas consolidados. Usando essa influência e a cooptação para o sistema regular, o prefeito de 1993 a 96 conseguiu articular uma base popular de apoio que garantiu a eleição de seu sucessor, Celso Pitta. Este, por sua vez, regularizou definitivamente os perueiros que, assim entraram nos contratos de concessão da década seguinte. Muitos deles, hoje em dia, já atravessaram os estágios de modernização capitalista e são, eles próprios “caciques do transporte”. De forma surpreendente, hoje, os antigos perueiros possuem 40,5% da frota de ônibus e 43% do faturamento anual do sistema de transporte público por ônibus de São Paulo (Cf. BERGAMIN JR., 2015). Já em Belo Horizonte, a questão dos perueiros se desenrolou de maneira diferente. Com um rápido inchaço na oferta, a partir do ano de 2000, o sistema começa a dar sinais de ineficiência e a atrair ofertantes de fora do estado e do sudeste. Amparados por liminares judiciais que os permitiam circular, a situação gerava um grande conflito na cidade. Os empresários de ônibus, através de seu sindicato, distribuíam panfletos na cidade alertando sobre o caos futuro que os clandestinos gerariam. Pressionada, a prefeitura consegue liminar na justiça revogando as permissões dos perueiros e o conflito sobe para o patamar da esfera estadual. Com protestos pela cidade, inclusive com catraca liberada, os perueiros demandam uma licitação que os regularize. Com a circulação proibida pela justiça, restava ao poder público utilizar a força física para fazer cumprir a decisão. O impasse colocou em conflito o então governador Itamar Franco, que tinha comando sobre a Polícia Militar, favorável a uma solução conciliada, e o então prefeito Célio de Castro, para quem as negociações haviam se encerrado51 (FOLHA DE SÃO PAULO, 2001). No dia 19 de julho de 2001, o confronto estava instalado, os perueiros ocuparam a praça sete com seus veículos e a Polícia Militar interditou mais de 150 quarteirões do centro da cidade. A batalha 51

“Itamar Franco – pré-candidato à Presidência da República – buscava esgotar as negociações. O governador temia uma exploração política dos resultados de um eventual confronto entre sua polícia e os trabalhadores do transporte clandestino. Possível candidato da centro-esquerda ao governo do estado, Célio vem adotando uma postura de não negociar mais com os perueiros, que se tornaram a principal dor de cabeça de seu segundo mandato, iniciado em janeiro.” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2001).

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campal, a mais expressiva da história da cidade até então, resultou em mais de 30 presos e encerrou o transporte clandestino na cidade. A prefeitura optou então por criar o sistema de “transporte suplementar” de Belo Horizonte, concedendo 300 permissões de operação em linhas pré-estabelecidas. Sinal dos tempos e da incapacidade de se lidar com a crise da mobilidade urbana, além de indicar uma opção seletiva de interesses, a prefeitura, já na época, cortou em 700 o número de licitações demandadas. Catorze anos depois, no fim do prazo da primeira licitação, a oferta que está na mesa é a dos mesmos 300 veículos iniciais, em que pese o aumento na taxa de motorização e na população da cidade. Para o que importa observar nessa pesquisa, o fenômeno dos perueiros se insere na crescente complexidade das cidades brasileiras contemporâneas. Expressão da incipiente motorização, a dificuldade de lidar com os perueiros demonstra, no âmbito do poder público, a inércia em se criar soluções perante a velocidade de mudança do cenário urbano. A solução pela esfera privada e a incapacidade de efetivar a natureza pública e compartilhada do espaço urbano são traços definidores da crise urbana que se agravava. 1.5.2 – Motorização acelerada e a crise urbana contemporânea Como se viu nos gráficos apresentados ao longo deste trabalho, a década de 2000, principalmente a partir de 2003, foi o período da mais intensa motorização vivida pela sociedade brasileira. Em 12 anos, 31 milhões de novos carros e 17,5 milhões de novas motocicletas foram incorporadas ao espaço das cidades brasileiras (Cf. DENATRAN, 2003 e 2015). Não há dimensão em tonelagem de ferro, aço, borracha, plástico e vidro que explique o impacto na vida cotidiana da entrada desses novos autômatos, nem em velocidade, nem em massa física deslocada por dia, nem em gasto de energia, nem em queima de combustíveis fósseis. Fato é que, qualquer um que tenha vivido os últimos quinze anos em alguma grande ou média cidade brasileira se deu conta de que o espaço das ruas se tornou crescentemente mais congestionado, poluído e perigoso. Essa explosão do número de veículos é fruto da única política de transporte urbano efetiva dos últimos governos federais: a solução, por omissão, privatista e motorizada como consequência de uma política econômica oligopolista e pragmática. Selecionando os aspectos mais conciliadores do programa democrático-popular construído ao longo das décadas, o governo federal do PT, ao chegar ao poder em 2003, 86

não traduziu as antigas aspirações das camadas de mais baixa renda em um outro “projeto civilizacional” brasileiro ou uma nova forma de se relacionar com o espaço construído. Pelo contrário, os programas do governo acabaram buscando a incorporação rápida dos excluídos ao modelo-padrão vivido pelas elites, historicamente. Assim, pouco se fez no sentido da universalização de direitos ou no combate às dinâmicas excludentes do mercado. Ao buscar uma ampliação quantitativa do mercado interno nos mesmos padrões que ele havia se reproduzido ao longo do século XX, o modelo neodesenvolvimentista do governo federal gerou um impacto energético sem precedentes sobre as cidades brasileiras, que rapidamente se traduziu em uma aguda crise urbana, além de demandar gigantescas obras de infraestrutura território afora, com todos os conflitos sociais por elas gerados. Há uma série de motivos que explicam a explosão motorizada brasileira. O acesso ao mercado por uma demanda longamente reprimida é um deles, mas não o único nem o principal. Se a diferenciação social construída pela ideologia dominante do automóvel52 é um dos principais fatores para a aquisição de carros e motos, esse fator não justifica sozinho a utilização contínua do carro para todos os deslocamentos cotidianos, inclusive os de curta distância. A autonomia do veículo próprio, aliada à baixa cobertura de um sistema de transporte público que nunca precisou se preocupar com a sua demanda (e, portanto, tratou-a de maneira displicente), são alguns dos motivos da profunda introjeção da cultura rodoviarista no inconsciente coletivo. Vários outros fatores poderiam ser apontados e desenvolvidos, mas este não é o escopo deste trabalho. Cabe aqui apenas indicar que o setor de empresas de ônibus se viu completamente atropelado pela motorização brasileira, sendo incapaz de viabilizar a recuperação de sua demanda. Essa inércia se explica tanto por uma longa trajetória de proteção de mercados e comportamento avesso a riscos, como pela incapacidade do poder público de propor soluções. Fato é que as condições de deslocamento das grandes cidades pioraram significativamente nos últimos anos. As taxas de congestionamento, os tempos de viagem, as velocidades médias, o afluxo nos horários de pico, todos esses sintomas da crise da mobilidade são vivenciados cotidianamente por uma população atenta às falas dos “helicópteros do trânsito”. Com a bolha imobiliária gerada pela política habitacional, as periferias se reproduzem em espaços cada vez mais distantes, a cidade 52

“Apaixonados por carro, como todo brasileiro” é um antigo e conhecido slogan publicitário da rede de postos de combustíveis Ipiranga.

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se esgarça, e os deslocamentos aumentam em número e distância. Nesse cenário caótico, a mobilidade urbana se torna a questão social da vez, sendo utilizada e manipulada por inúmeros grupos políticos com os mais variados interesses. A disputa por soluções fáceis ganha o cenário eleitoral, e a inércia do rodoviarismo e suas obras de infraestrutura torna-se um fator de agravamento do círculo vicioso. 1.5.3 – Inércia rodoviarista: a persistência das obras viárias como política pública “Governar é abrir estradas.”, a frase, pronunciada em 1929 por Washington Luís, último presidente da Primeira República, se encaixaria facilmente no discurso da grande maioria dos governantes brasileiros das últimas décadas. As grandes obras e a transformação do espaço sempre atuaram como fetiches de governos eficientes e comprometidos com a transformação social e, em um contexto de proliferação de congestionamentos e deterioração das condições de deslocamento, com o número de carros aumentando a cada dia, a solução mais fácil e imediata parece ser, de fato, a proposta de ampliação da infraestrutura rodoviária. Assim, tamponamento de rios, construção de viadutos, duplicação de avenidas, alargamento e construção de novas vias são entendidas e propagandeadas como as soluções de emergência para um problema que se agrava. As soluções de infraestrutura de trânsito não ficaram, portanto, relegadas ao passado do nacional-desenvolvimentismo militarista. Sucessor de Erundina na prefeitura de São Paulo, Paulo Maluf se elege tendo como plataforma a necessidade imperativa de obras viárias. Entrega sua gestão ampliando a Avenida Faria Lima e construindo o túnel Ayrton Senna, de sete quilômetros de extensão (Cf. HENRY e ZIONI, 1999, p. 158), alguns anos depois, seu sucessor procederá com a viabilização da construção da ponte estaiada. Todas obras com vultosos aportes orçamentários, nas quais não é permitido o trânsito de ônibus, pedestres ou bicicletas. As políticas rodoviaristas, entretanto, não são privilégio de políticos tidos como conservadores. Em 1996, ainda no governo de Patrus Ananias, é aprovado em Belo Horizonte um novo Plano Diretor (BELO HORIZONTE, 1996), a maior proposta de reestruturação do espaço urbano na história da cidade. Dentre os inúmeros diagnósticos que conformaram o Plano, contata-se a estrutura viária centro-radial da cidade. Um fenômeno comum à maioria das cidades brasileiras, em Belo Horizonte e na Região Metropolitana os deslocamentos entre pontos relativamente próximos demanda um desnecessário trajeto até o centro da cidade. 88

Como parte do conjunto de instrumentos e diretrizes para a reestruturação urbana de BH, estava o “Programa de Estruturação Viária de Belo Horizonte” o VIURBS, que adquiriu o nome-fantasia de “Programa Corta-Caminho” na prefeitura de Márcio Lacerda (2009-2016). Esse programa estabelece um conjunto de mais de 100 intervenções viárias na cidade, de maior ou menor porte, com o propósito de desconstruir a estrutura centro-radial da cidade. Elencadas de acordo com critérios de prioridades, as intervenções têm sido executadas desde então, consumindo vultosos recursos do município (ainda que oriundos de bancos de desenvolvimento) e gerando problemas sociais de habitação. Nos últimos quatro anos fiscais, o programa consumiu uma média anual de R$250 milhões de reais, entre custos com empreiteiras, remoções e reassentamentos. Ainda que se possa discutir, do ponto de vista de engenharia de trânsito, a eficiência de cada uma dessas intervenções, em nenhum momento outra proposta de cidade, de velocidade cotidiana (e, portanto, tempo-espaço urbano) foi pensada e debatida. A necessidade de inclusão do automóvel e facilitação do seu fluxo tem sido um imperativo nas políticas públicas brasileiras, e seus custos sociais e econômicos ainda não foram realmente avaliados. Só recentemente grupos e movimentos sociais passaram a questionar de maneira sistemática e radical essa concepção. Em um cenário de ampliação da motorização, a inércia em se interromper a política de ampliação de infraestrutura viária pode chegar a patamares de crise urbana irreversíveis. 1.5.4 – Crise do controle público: as mudanças na regulação do transporte na década da motorização A modernização das empresas de ônibus, com o fortalecimento de sua influência política, foi um fator crucial para as mudanças no modo de regulação do transporte na década da motorização. Enfrentando uma crise estrutural de demanda, os empresários do transporte público, historicamente avessos a riscos, manipularam todas as variáveis em seu poder (não necessariamente de maneira legal) para garantir a rentabilidade e adaptabilidade de seu setor. Assim, o modelo entendido como remuneração pelo serviço contratado de transporte público realizado será alvo de investidas empresariais. O controle da receita tarifária e a remuneração por serviço prestado, a partir dos custos do sistema e do qual a “planilha GEIPOT” é o grande exemplo, tornam-se cronicamente deficitários ao longo dos anos. Como empresas privadas, as operadoras do serviço estão interessadas em 89

maximizar seus lucros a partir da manipulação de todas as variáveis que têm à disposição. Quando a remuneração é por custos, a partir de uma receita centralizada pelo poder público, os fatores que aumentam ou diminuem a receita estão vinculados diretamente ao consumo dos insumos utilizados na produção do serviço: de pneus e lubrificantes a óleo diesel, salários e o próprio veículo. Perceba-se aqui que, nesse modelo, o número de passageiros transportados não interfere na remuneração do prestador, e, portanto, não é considerado por este uma variável relevante.53 Dessa maneira, e no limite, interessa às empresas receber o maior valor possível por seus custos. Isso significa que na planilha de custos estas buscarão declarar um consumo maior, enquanto na prática da operação procurarão diminuir ao máximo os gastos e prolongar a vida útil de seus recursos. Do ponto de vista da planilha GEIPOT, isso significa atuar sobre duas das três variáveis de remuneração de cada item: quantidade consumida e preço do insumo, uma vez que o coeficiente de consumo, entendido aqui como um índice de produtividade, é estabelecido por parâmetros técnicos pré-estabelecidos, que possuem assim uma resistência maior a mudanças. Um exemplo simples ajuda a entender o que está em jogo: se o coeficiente de consumo para um pneu é estabelecido como uma vida útil de 55 mil quilômetros, a empresa buscará um sobrelucro a partir de duas estratégias, não necessariamente excludentes entre si. Em primeiro lugar, buscará aumentar a produtividade de seu pneu para mais quilômetros que o estipulado na planilha: a diferença entre a vida útil prevista na planilha e a realizada de fato no veículo configura um sobrelucro que entra na zona cinzenta entre ganho de produtividade e apropriação ilícita, uma vez que um pneu sobrecarregado pode de fato degradar as condições de operação do serviço. Em segundo lugar, a empresa pode tentar burlar a sua remuneração devida a partir da fraude no preço de compra, declarando um custo unitário de pneu maior que o preço real com que foi efetivamente adquirido, se valendo de ligações na cadeia produtiva e falsificações. Ou seja, busca-se atuar sobre os parâmetros quantitativos, de preço e quantidade, e qualitativos, de produtividade. Para evitar esse tipo de fraude do poder privado, o poder público precisa ter uma estrutura fiscalizadora eficiente. Na prática, no cenário de remuneração por serviço prestado, é exigida uma dupla estrutura de controle: a 53

Em um modelo em que a remuneração era feita 100% por serviço prestado, como é o caso de Belo Horizonte. A “municipalização” experimentada em São Paulo, por sua vez, levava em conta o número de passageiros transportados como responsáveis por 20% da remuneração total. Essa mescla entre serviço prestado e passageiros transportados na remuneração é conhecida como “fator B” (cf. SANTOS & ORRICO FILHO, 1996).

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fiscalização da operação e dos seus parâmetros e o controle e aferição dos custos e da eficiência da produção, fazendo com que seja necessário ter acesso a dados cotidianos de toda a frota como distância percorrida, quantidade de insumos gastos em cada viagem, passageiros transportados, valor de mercado dos insumos, entre outras. O custo e a efetividade de uma estrutura desse porte são elementos que tornaram a remuneração por serviço prestado cada vez mais questionada, dentro do debate na área. A questão é justamente uma disputa entre a capacidade e alcance do Estado e os subterfúgios que a empresa pode construir nesse cenário. Colocado em outros termos, torna-se claro que há uma disputa sobre o poder político efetivo de cada um destes agentes do sistema. À medida que o setor se moderniza, verticalizando sua estrutura na cadeia produtiva, horizontalizando seu capital em outros espaços urbanos e diversificando seu investimento para outros segmentos, torna-se cada vez mais difícil para o poder local conseguir identificar fraudes ou sobrelucros indevidos. O cenário descrito por João Luiz para a década de 1980 se amplia e complexifica: Uma das coisas que mais aconteceram [naquela época] foi a inclusão de ônibus na planilha de custo da empresa, mas que, de fato não foram acrescentados no serviço. Uma vez em consultoria pela Fundação João Pinheiro no Proálcool, visitando usinas no Sul de Minas, encontrei ônibus de serviço urbano de Belo Horizonte em Guaxupé, com trabalhadores que tinham sido buscados no norte de Minas e que estavam lá cortando cana. E os ônibus lá, parados. Além disso, onde há ônibus parado, há tripulação fantasma, que era também incluída nas planilhas de custo das empresas. (DIAS, 2014, p. 129).

Para evitar esse tipo de fraude torna-se necessário uma vivência da regulação do sistema e um conhecimento pessoal de seus atores, para além de um conhecimento técnico-padrão de engenharia de trânsito. Outros tipos de superdimensionamento de custos e subdimensionamento de receitas podem ser exaustivamente citados: a falsificação de notas fiscais de compra de insumos, a partir da inclusão dos fornecedores na cadeia produtiva, oficial ou extra-oficialmente, por meio de “laranjas”; subdimensionamento de receita tarifária por meio de fraude manual ou eletrônica nas catracas – com conivência ou participação ativa dos trocadores e outros funcionários; a declaração de viagens “fantasma”, não realizadas na prática ou realizadas de maneira muito mais rápida (portanto mais barata) do que o declarado; falsificação do balanço financeiro por meio do desvio de receitas para empresas do mesmo grupo; superdimensionamento da taxa de remuneração e depreciação do capital, enquanto os veículos velhos são repassados para outras empresas em outros municípios, etc., etc. A lista pode seguir conforme a criatividade e a falta de fiscalização permitirem. 91

É importante perceber nesse cenário que a natureza da prática ilícita não está ligada necessariamente à forma de regulação e remuneração do serviço, e sim ao poder de mercado das empresas de ônibus e, portanto e em última instância, à necessidade intrínseca do capital de maximizar seu lucro por todos os meios. O que se quer dizer aqui é que, em um sistema no qual a estrutura do capital se complexifica, é mais difícil estabelecer parâmetros de remuneração “justa” ou diferenciar práticas empresariais lícitas e ilícitas, principalmente na ausência de estruturas de controle popular. No capitalismo contemporâneo, a “zona cinzenta” se torna cada vez mais ubíqua, em que pese o avanço dos elementos de controle tecnológico. Isso posto, cabe aqui uma pequena digressão. Nesse contexto turbulento, é necessário estabelecer parâmetros de atuação para por as coisas em perspectiva. A natureza abrangente do transporte público no tempo-espaço urbano exige, para seu controle efetivo, uma capacidade de mobilização popular simultaneamente potente, flexível e paciente. Em outros termos, parece claro que, dada a miríade de situações do transporte público, só o seu usuário – cotidiano ou esporádico – é capaz de construir uma base para a fiscalização eficaz que possa dar conta dessa diversidade. Ao estabelecer uma relação com o transporte que o possa situar no patamar dos direitos fundamentais e do patrimônio comum de sua cidade, o usuário, em conjunto com os trabalhadores envolvidos na operação do sistema, pode não só identificar situações irregulares como passar, de fato, à fase da construção de novas perspectivas para o sistema. Nesse ponto, as questões técnicas e fora do ambiente do veículo tornam-se parte desse processo de mobilização, e não uma questão burocrática, afeita apenas à esfera gestora e empresarial. O ponto fundamental aqui é que, a partir de uma perspectiva do comum, a sociedade em seu cotidiano é colocada como o principal ator de uma retomada daquilo que lhe é de direito. O “poder público” do estado moderno, tal como o conhecemos, sempre esteve à mercê de interesses privados e casuísmos oportunistas. Nos últimos 20 anos, com o crescimento do poder privado, o estado perdeu sua capacidade de intervir, quando não abdicou deliberadamente de suas prerrogativas. A retomada pela mobilização e ressiginificação do transporte público parece ser um longo caminho, mas o que mais apresenta possibilidades reais de transformação, justamente por voltar à raiz do problema. O cenário da retirada do poder público na década de 2000 gerou impactos diferenciados conforme as cidades. Sem o apoio do governo federal, que desde meados 92

de 90 praticava a política privatista para o transporte urbano, as cidades médias e pequenas se encontraram desamparadas do ponto de vista financeiro e técnico. Assim, a planilha GEIPOT, que informava a remuneração do serviço prestado e servia de parâmetro para o estabelecimento da tarifa, teve sua última atualização em 1996, permanecendo inalterada nos últimos 19 anos (Cf. SANTOS, 2014) e, mesmo assim, pouco foi usada como padrão de estabelecimento da tarifa nesses municípios. A estrutura obsoleta e ultrapassada da remuneração faz com que os municípios menores sejam locais de grande lucratividade para as empresas de ônibus, compensando em rentabilidade o relativamente baixo volume retornado. Assim, os municípios menores se tornam locais estratégicos para o giro de capital das empresas modernizadas. Enquanto isso, nas grandes cidades, a estrutura de remuneração por custos era utilizada ao máximo como salvaguarda contra a crise de demanda. Em Belo Horizonte, a capacidade de controle da receita e remuneração das empresas era cada vez mais fragilizada. Em um cenário de 65 concessionárias do serviço, a suscetibilidade da prefeitura às demandas empresariais, além do aumento do preço dos insumos, bem como a receita exclusivamente tarifária acabou por gerar um círculo vicioso de déficit da câmara de compensação tarifária a ponto de constituir uma dívida de mais de R$470 milhões do município com as empresas. O montante, virtualmente impagável e questionável do ponto de vista legal, foi reconhecido durante a prefeitura de Fernando Pimentel na forma da lei municipal 9.018/05, que negocia um débito de 290 milhões de reais, e da lei municipal 9.314/07, que renegocia o mesmo débito em um valor de 470 milhões de reais (ver BELO HORIZONTE, 2005 e 2007). A negociação envolveu o perdão de impostos devidos pelas empresas de ônibus, além de um parcelamento de longo prazo, com término previsto para o ano de 2022, com correção monetária e juros de 12% ao ano.54. Essa “falência geral” de Belo Horizonte foi um divisor de águas na história da gestão do transporte público brasileiro. A cidade, tomada como referência de gestão pública durante vários anos, viu seu modelo próprio de “municipalização” do transporte ruir em pouco tempo, em meio a uma situação política nebulosa, para se dizer o

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É possível conferir o valor devido e pago pela Prefeitura de Belo Horizonte a diversas empresas de ônibus ao longo dos anos no Sistema de Dados Contábeis da Caixa Econômica Federal, disponível em http://bit.ly/1pcT6lv, e selecionar o município de Belo Horizonte, poder Executivo, órgão Prefeitura Municipal e selecionar a declaração anual de Cadastro de Operações de Crédito para o ano-base pós 2008. É de se notar que essa taxa de juros anual de 12% é mais do que o dobro da média paga a outras dívidas contraídas pela PBH.

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mínimo. A incapacidade de gestão e pagamento do sistema foi o exemplo final para que técnicos, gestores e estudiosos do tema advogassem o fim do controle público de receita e um novo modelo de remuneração e reajuste tarifário, com a consequente ampliação da atuação das empresas no sistema, sob o argumento de que elas assumissem também alguns dos riscos da operação. O posicionamento assumido argumentava que era necessário dar mais dinâmica ao sistema. Assim, pleiteia-se a volta do modelo de remuneração por tarifa auferida, tendo como uma de suas bases o seguinte argumento: Sob a ótica estrita do processo de remuneração, o modelo desenvolvido pela tarifa auferida se mostra mais próximo do esperado como um elemento de competição. Ao relacionar a remuneração do operador à demanda da linha, as estratégias operacionais passam a ser variáveis determinantes da receita. (p. 67-8, OLIVEIRA, 2013)

Assim, a nova licitação, publicada em julho de 2008 e efetivada em novembro do mesmo ano, buscou mudar completamente as diretrizes e a forma de atuação das empresas no sistema de transporte público. A começar pelo prazo estabelecido de 20 anos, no qual uma taxa interna de retorno de 8,95% sobre o investimento, é acordada e periodicamente verificada. A principal mudança, entretanto, foi na forma de remuneração do sistema. Desde a unificação tarifária feita pela METROBEL em 1982 – com a exceção do período entre 1987 e 1993, de gestão privada da CCT –, o sistema funcionava há 26 anos por meio da remuneração pelos custos do sistema e pelo serviço prestado. De um funcionamento exemplar na década de 1990, o colapso geral do sistema abriu caminho para que a forma de remuneração por tarifa auferida fosse implantado integralmente. Nesse sentido, no novo contrato, 98,5% da receita do sistema advém do pagamento direto de tarifa pelo usuário, sendo os 1,5% restantes advindos de receita com o sistema de bilhetagem eletrônica e mídia-ônibus (Cf. E&Y, 2014). A receita tarifária passou também a ser arrecadada pela Transfácil (representante, por meio do sindicato municipal, das 40 empresas concessionárias) que a gerencia e distribui entre as empresas componentes do sistema conforme as regras internas definidas pelos consórcios. O reajuste tarifário deixa de ser realizado conforme a planilha de custos GEIPOT e passa a se dar de acordo com a variação de cinco preços de insumos préestabelecidos contratualmente: mão-de-obra, combustíveis e lubrificantes, pneus, veículos e “outras despesas”, cada um com um peso diferente na equação (Cf. cláusula 11 do contrato, BELO HORIZONTE, 2008b). A aferição da variação se dá por meio de 94

índices nacionais, medidos pelo IBGE ou pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), com a data de reajuste estabelecida para o dia 29 de dezembro de cada ano. A introdução de uma planilha paramétrica, sem relação real com os custos concretos do sistema, era justificada com a intenção de dar mais clareza e confiabilidade ao processo de reajuste, embora o valor dos índices e a própria intenção de reajuste tenham sido omitidos em diversas ocasiões desde 2008. Para garantir a rentabilidade e corrigir desvios da fórmula, o contrato também estabelece que a cada quatro anos seja realizada uma revisão tarifária, com o “intuito de repassar ao valor da tarifa os ganhos de produtividade obtidos pela concessionária” (BELO HORIZONTE, 2008b, p. 42). O contrato prevê o levantamento dos dados “técnicos, operacionais, financeiros, patrimoniais e econômicos necessários para a avaliação dos ganhos de produtividade da concessionária” (ibidem, p. 42). Depois de mais de seis meses de atraso, em abril de 2013, a prefeitura de Belo Horizonte contratou a multinacional Ernst & Young para realizar uma “verificação independente” do sistema e levantar esses dados. O levantamento e conclusão foram polêmicos, e viraram objeto de disputa na justiça, como se verá no capítulo 3. Por fim, outro fator introduzido pelo novo contrato e que vale a pena ser mencionado é a instituição de um “Fundo Garantidor do Equilíbrio Econômico e Financeiro” (FGE) entre as empresas componentes do consórcio. O FGE estabelece o depósito compulsório de 1% da receita mensal auferida o que, no cenário de Belo Horizonte, é um valor que gira em torno de R$10 milhões de reais por ano. Esse fundo prevê operações financeiras e socorro às empresas em caso de desequilíbrio no sistema. Na prática, atua como a institucionalização do capital financeiro do setor, relativamente alto devido a sua grande rotatividade, e sua inserção em circuitos globais de acumulação. Essas profundas mudanças na forma de regulação do sistema trouxeram grandes consequências para a mobilidade urbana da região, as disputas políticas e os movimentos sociais contemporâneos. Por ora, é importante afirmar que o sistema mudou sua remuneração por serviço prestado para uma remuneração por tarifa auferida. Essa mudança, debatida e forjada durante as inúmeras inflexões da década de 1990, representa uma reacomodação do sistema depois do processo de motorização. Ao contrário do serviço prestado, a remuneração por tarifa auferida tem sua principal variável de retorno no passageiro transportado. Nesse sentido, interessa às empresas 95

transportar o maior número de passageiros ao menor custo possível. Assim, a primeira consequência dessa mudança é o forte incentivo à redução de oferta do transporte público55. Os horários considerados não-rentáveis, com uma baixa demanda real (mas não necessariamente uma baixa demanda potencial, é importante ressaltar), são os primeiros a ser atingidos nessa lógica: horários noturnos (principalmente entre 0h e 4h da manhã) e horários aos finais de semana, em especial o dia de domingo. Dessa maneira, é como se a nova regulamentação sucumbisse e abrisse caminho para a hegemonia do privatismo no transporte individual: todos aqueles deslocamentos que podem ser efetuados por carros e automóveis serão priorizados. Outro segmento atingido é o dos bairros distantes e periféricos, cujo custo mais alto para o atendimento passa a não compensar mais economicamente, os horários do transporte público são diminuídos durante os dias de semana e de forma ainda mais intensa no horário noturno e nos finais de semana, quando é possível que não haja nenhuma oferta de fato. Nesse sentido, a remuneração por tarifa, ao incentivar a baixa oferta, é um retrocesso na luta pela efetivação do transporte público como um direito universal. Sua lógica de mercado é incrementada em detrimento de sua importância social. O poder público chega a argumentar que uma vez retirado da árdua tarefa de fiscalização de custos, pode se dedicar com mais efetividade ao controle de qualidade do sistema. Mas o que tem se verificado na prática é uma condescendência muito grande por parte dos gestores com as empresas de ônibus em Belo Horizonte, as quais, muitas vezes, optam por furar horários não-rentáveis ao saber que a sanção que receberão ainda compensará financeiramente a escolha56. Assim, o novo modelo de concessão tem mais uma grave consequência, a diminuição do controle público sobre o serviço. Com a internalização da CCT (que deixa de existir publicamente e passa a se encontrar no fórum privado do sindicato) e da gestão operacional do serviço, o poder público – e por consequência indireta a sociedade – fica alijado de um conhecimento a respeito dos custos e receitas do transporte público minimamente mais transparente. Além disso, o incentivo econômico à baixa oferta faz com que, na prática, a programação de linhas e horários seja uma

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Esse incentivo é explicitamente reconhecido e entendido como um fator de eficiência pela atual gestão da BHTRANS, em especial o diretor de Transportes Públicos, Daniel Marx Couto, em falas públicas e em publicações acadêmicas (ver COUTO & SOUZA, 2015). 56 Em que pese o estabelecimento, pelo contrato, de um intervalo máximo no quadro de horários entre dois ônibus, o que tem ocorrido na prática é que as multas aplicadas pela BHTRANS às empresas de ônibus não são pagas e entram, quando muito, na fila da dívida ativa do município.

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prerrogativa das empresas de ônibus e não mais do poder público, e ainda menos da sociedade civil organizada. Assim, as demandas por ampliação de trajetos e horários e criação de novas linhas, conquistadas geralmente depois de um processo árduo de luta, ficaram ainda mais difíceis de serem atendidas, uma vez que caem na prerrogativa da decisão empresarial. Na prática, o que se tem observado no cenário belo-horizontino é que essas alterações só têm ocorrido a partir da velha prática clientelista de troca de favores entre a esfera política e a empresarial. Adicionalmente, em Belo Horizonte, a recente implantação do BRT como um sistema tronco-alimentado tem agravado a distância do usuário com a possibilidade de controle de seu serviço. Sistema que substituiu linhas diretas bairro-centro pelo de baldeações, o BRT na prática acabou transferindo o tempo de espera do veículo para o usuário. Isto é, se a produtividade do serviço aumenta para o empresário, com ônibus que transportam mais pessoas em menos tempo por um trajeto menor, o usuário viu muitas vezes seu tempo de deslocamento aumentar, com desgastantes transbordos com filas, espera e incômodos, em um sistema que dificilmente funciona de maneira sincronizada. Assim, como ressalta o Movimento Passe Livre de São Paulo: A política de construção de terminais se revela assim, uma política de transferência dos custos da ineficiência do sistema de transporte da cidade para os usuários. Quando o acesso à cidade é um benefício e não uma conquista, ele é concedido seguindo a lógica de quem concede, numa direção inteiramente diferente do direito ao transporte construído a partir das necessidades dos usuários. (MOVIMENTO PASSE LIVRE – SÃO PAULO, 2013).

Ou seja, a eficiência técnica é balizada pelos princípios daqueles que detém o poder sobre o transporte público, e os ganhos de produtividade são antes privatizados pelas empresas do que repassados aos usuários. A tentativa de legitimação do desmonte do poder público sobre o transporte por meio de critérios “técnicos” talvez seja o elemento mais perverso desse cenário construído na década de 2000. Como se mostrou exaustivamente ao longo deste capítulo, o principal elemento de influência na conformação do sistema de transporte público é o poder de mercado das empresas privadas. Ao buscar dar uma legitimidade técnica, por meio de índices e modelos econômicos, a um sistema que prioriza a redução da oferta e do controle por parte da população, o poder público abdica de forma decisiva de seu papel enquanto efetivador de direitos sociais e contribui significativamente para o agravamento da crise urbana e ambiental do novo século. O cenário colocado, entretanto, não é algo certo, e novos atores passam a surgir. 97

1.5.5. – Crise social da mobilidade: a instabilidade de um novo cenário Todos os fatores aqui apresentados contribuíram para a geração de um cenário de crise urbana e instabilidade social manifestado nos últimos anos nas cidades brasileiras. Motorização acelerada, políticas rodoviaristas e mudanças na concessão e operação do serviço de transporte, todos contribuem para que hoje seja cada vez mais caro, difícil, demorado e desconfortável circular pelas cidades brasileiras. A rapidez e profundidade das transformações deixaram expostas várias feridas na sociedade: do aprofundamento da segregação espacial à violência no trânsito, da piora da qualidade de vida aos deslocamentos cada vez mais longos. Nesse sentido, não há uma resposta simples para a questão trazida por junho de 2013: os levantes foram e não foram por 20 centavos, simultaneamente. O “mal-estar da civilização brasileira” se dá no cotidiano e em suas negações a direitos básicos, mas também se expressa de uma maneira econômica bastante concreta. É necessário compreender que a mobilidade urbana é um traço definidor de nossa vida em sociedade e que atua profundamente nas dimensões da percepção espaçotemporal de todos os cidadãos. Assim, tratar de transporte público é também discutir a relação com o outro e as possibilidades de transformação social, por meio da questão da mobilidade. Este capítulo buscou mostrar que a configuração do sistema de transporte por ônibus no Brasil é uma questão complexa e sua trajetória guarda uma profunda identidade com a história política, econômica e urbana do país. Instados pelo poder concreto de acumulação capitalista, a mercantilização do deslocamento urbano atravessou décadas e se imiscuiu às práticas políticas brasileiras para se consolidar. Adaptando-se conforme as circunstâncias, os empresários de ônibus aproveitaram a oportunidade de ampliação acelerada das cidades brasileiras e estabeleceram sua hegemonia. Entretanto, na apresentação dessa dinâmica neste capítulo, um elemento fundamental ficou ausente: a forma como a população se organiza, reage e busca determinar as condições de transporte com as quais são confrontadas. Esse assunto será abordado pelo capítulo seguinte, no qual se buscará delinear de forma mais clara as relações entre mobilização popular, produção do espaço urbano e conformação do sistema de transportes.

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CAPÍTULO 2 – AS MOBILIZAÇÕES POPULARES PELO TRANSPORTE NO CONTEXTO DA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO BRASILEIRO 99

O espaço urbano brasileiro teve, ao longo de sua trajetória histórica de formação, diferenciados significados para o desenvolvimento da sociedade nacional. Marcado por uma contradição primeira em sua gênese colonial – a de se voltar para a acumulação econômica estrangeira e se afirmar como espaço de controle político, mas não de produção econômica (cf. OLIVEIRA, 1977) –, o urbano só ganhará verdadeira hegemonia nos processos socioespaciais brasileiros a partir da década de 1930. Durante essa longa trajetória, a questão dos transportes urbanos – entendida aqui como o conjunto das formas de deslocamento das pessoas e mercadorias pela cidade57 – começará a se tornar fundamental para as cidades brasileiras a partir da abertura de um processo amplo e contraditório de modernização capitalista, que tem seu marco histórico no ano de 1850, com a Lei de Terras e a proibição da importação de escravos. Em sua abertura lenta, gradual e segura para o “livre mercado” de terras e força de trabalho, a elite brasileira começa a ressignificar o espaço urbano e este passa a assumir uma dimensão que impõe deslocamentos cotidianos significativos à sua população. Dessa forma, a reprodução do modo capitalista de produção é o contexto que abre as relações entre a conformação de um sistema de transportes urbano e a produção do espaço urbano brasileiro. Aqui, há um componente fundamental ainda não mencionado: as relações sociais da população citadina em seu cotidiano. A forma pela qual as necessidades econômicas e sociais da população se desenvolveram no contexto urbano representa a questão central para se debater a relação entre a produção do espaço e a produção dos transportes. Histórica e profundamente segregada, a sociedade brasileira reproduzirá para a questão dos transportes suas contradições de origem: este sistema se configurará, portanto, como cronicamente insuficiente; um instrumento de acumulação de capital, além de um elemento de diferenciação social que servirá mais ao privilégio das elites do que às necessidades sociais. Elemento de conflito político, os transportes urbanos se conformam como questão de disputa entre as várias classes 57

Apesar de ser mais abrangente, a expressão “mobilidade urbana” não será utilizada neste capítulo, por se entender que sua construção enquanto conceito é recente e historicamente situada. De fato, até o começo deste século, metodológica e politicamente as abordagens entre a questão dos transportes públicos e a do trânsito eram distintas. O conceito de mobilidade urbana, ainda impreciso e em disputa (cf. OLIVEIRA, 2014), busca dar uma única dinâmica para esses dois aspectos. Oliveira (2014) o define como “a condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano, ainda que apenas de passagem por ele, aí incluindo a diversidade de imperativos que constrangem ou estimulam esses deslocamentos” (idem, p. 64). Essa conceituação é a que mais se aproxima dos aspectos que estão sendo aqui tratados, mas, em termos da abordagem histórica, esse entendimento por meio de tal conceito não estava presente na linguagem e imaginário dos atores envolvidos. As mobilizações populares lutavam por condições objetivas de deslocamento, pela existência de um transporte coletivo e pela melhoria de suas condições.

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sociais desde sua origem, suscitando diversos posicionamentos políticos, materializando uma relação de espoliação urbana que sempre teve a capacidade latente de gerar violentas revoltas e – nas últimas quatro décadas – fomentar movimentos sociais e organização popular. É a trajetória da disputa social pelo transporte, dentro do contexto de produção do espaço urbano brasileiro, que este capítulo buscará abordar. Para tanto, fazem-se necessários alguns esclarecimentos sobre os principais conceitos utilizados nessa aproximação que busca identificar uma dinâmica de atuação e propor uma periodização específica dentre as diversas leituras possíveis que a questão incita. 2.1. Alguns esclarecimentos conceituais 2.1.1. - Localização e renda da terra O transporte se torna elemento fundamental na reprodução das relações sociais cotidianas a partir do momento em que há distâncias significativas a se percorrer entre os locais de produção e consumo de serviços e mercadorias, os espaços de fruição e, principalmente, os locais de habitação das diversas classes sociais dentro de um mesmo aglomerado urbano. Isto é, ele se torna relevante quando o deslocamento abrange mais que a necessidade de indivíduos isolados e se refere a grupos de pessoas, influindo no processo de reprodução simples e ampliada de uma coletividade. A diferenciação do espaço, dessa maneira, tem relação direta com a complexificação da divisão social do trabalho, as dinâmicas de aglomeração e o desenvolvimento das necessidades cotidianas. Essa dinâmica, por sua vez, não pode ser tomada de maneira abstrata. Os assentamentos e deslocamentos se dão sobre o espaço urbano historicamente produzido e reproduzido. O palimpsesto que caracteriza a cidade ao longo de sua história dá variados significados culturais, econômicos e sociais para os espaços produzidos pelo trabalho humano coletivo, que têm assim seu direito de fruição enquanto valor de uso e a apropriação enquanto valor de troca em constante disputa. Elemento que combina dinâmicas históricas, econômicas e sociais, o ponto central para a abordagem da disputa social pelo transporte, no que tange sua relação com a produção do espaço, é a caracterização da dinâmica da renda da terra urbana. A forma como a terra se torna uma mercadoria no sistema capitalista, com o acúmulo do trabalho possibilitando a formação de excedentes e sobrelucros,, difere de maneira 101

significativa de outros processos produtivos capitalistas ou outras mercadorias consideradas de maneira mais abstrata. De partida, é preciso evitar um erro conceitual relativamente comum: o de tratar a terra (espaço) como apenas um suporte físico, “solo”, receptáculo no qual as relações sociais se reproduzirão. Em que pese sua característica intrínseca como elemento físico mais ou menos quantificável (uma localização, latitude e longitude exatas, características do solo, etc.), não se pode tomar a terra como algo da “natureza”, apartado de um processo histórico. De fato, considerar a terra urbana produto não produzido, só porque sua base material o é, é o mesmo que reduzir um produto produzido à sua matéria-prima. Reduzir a terra urbana a apoio físico é não só reduzi-la à sua condição de matéria-prima, como também a seu aspecto mais inconsequente e irrelevante, o “começo da mobilização do espaço para permitir sua produção”, segundo Lefebvre. (VILLAÇA, 1998, p. 71).

A terra urbana – enquanto espaço urbano produzido historicamente – traz em seu bojo um acúmulo de trabalho humano muitas vezes imensurável, pois socialmente produzido através do tempo. É preciso entender a produção de sua renda diferencial no contexto capitalista como um elemento que provém de características socialmente determinadas (portanto não intrínsecas ou naturais). De fato, é evidente que três terrenos com as mesmas “dimensões territoriais e características de solo”, por assim dizer, têm valores completamente distintos se situados, por exemplo, a 30 quilômetros de uma via rural, ou em um local de expansão urbana, como os bairros do vetor norte da RMBH, ou no centro financeiro de uma cidade global como Nova York. Torna-se claro também que o principal fator a gerar essa diferença é o local onde se encontra cada um desses terrenos. Assim, no que concerne ao espaço urbano, a localização será tomada como um elemento conceitual central, que liga o desenvolvimento dos sistemas de transporte com a produção do espaço. Tomemos esse conceito mais atentamente. A localização é o elemento que relaciona o espaço urbano ao todo mais amplo ao qual ele pertence. Ainda que se possa caracterizar uma localização em termos relacionais a uma outra localização (i.e. como um elemento pontual), sua definição não se completa se não for relacionada ao conjunto da cidade como um todo, de maneira simultânea. A capacidade que uma localização oferece de acesso a serviços urbanos essenciais, aos espaços da cidade e a seus valores de uso, e a possibilidade de reapropriação de espaços urbanos historicamente construídos (ressignificação enquanto possibilidade de fruição do espaço), é o que define seu valor de uso de maneira mais ampla. Com tudo isso, o acesso que a localização estabelece com a cidade enquanto 102

elemento vivo e pulsante da sociedade contemporânea é mais amplo do que a simples enumeração de possibilidades econômicas pode demonstrar, tornando-se o principal fator de disputa na questão dos transportes. Flávio Villaça coloca a localização nos seguintes termos: A terra urbana só interessa enquanto “terra-localização”, ou seja, enquanto meio de acesso a todo o sistema urbano, a toda cidade. A acessibilidade é o valor de uso mais importante para a terra urbana, embora toda e qualquer terra o tenha em maior ou menor grau. Os diferentes pontos do espaço urbano têm diferentes acessibilidades a todo o conjunto da cidade. A acessibilidade de um terreno ao conjunto urbano revela a quantidade de trabalho socialmente necessário despendido em sua produção. Quanto mais central o terreno, mais trabalho existe despendido na produção dessa centralidade, desse valor de uso. (VILLAÇA, 1998, p. 74, grifos do autor).

Depreende-se dessa construção que a relação localização-cidade só tem sentido quando se toma a urbe como um todo, quando se entende que esta funciona como um conjunto materializado e socialmente coordenado de trabalho acumulado ao longo da história, e que a especificidade de cada localização só existe em sua composição com a totalidade da cidade, tornando-se, nesse sentido, intrinsecamente urbana (cf. VILLAÇA, 1998, p. 24). A localização se constitui, assim, como um elemento central da diferenciação de valor da terra, e a acessibilidade como seu atributo de valor de uso. Como toda mercadoria, esses elementos são disputados na terra urbana para se transformarem em atributos de valor de troca, em equivalentes gerais intercambiáveis. A partir desses termos, é possível pensar a relação da produção do espaço urbano com o desenvolvimento dos sistemas de transporte na cidade. É o conjunto das vias, do espaço construído e dos diversos modos de transporte, que aqui serão conceituados como um sistema, que possibilita a geração e a diferenciação da acessibilidade na cidade. Nesse sentido, a abordagem buscada aqui é, de alguma forma, tributária das análises urbanas de caráter “estrutural” que reconhecem “o papel central da oferta de acessibilidade através da construção de vias e sistemas de transporte” (MALTA FILHO, 1989, p. 27) e que eram elaboradas desde o começo do século XX, a uma maneira descritiva e monografista, por assim dizer. Esses aspectos aqui serão apenas traçados dentro de um contexto de desenvolvimento das mobilizações populares pelo transporte, como forma de indicar uma agenda de pesquisa para a abordagem da relação entre sistemas de transporte e produção do espaço. Assim, faz-se necessária mais uma ressalva sobre a forma como essa acessibilidade tem sido relacionada à dinâmica urbana. 103

Flávio Villaça, ao ressaltar a importância da dinâmica do transporte, alerta para a questão dos interesses de classe e o perigo do que chama de “determinismo tecnológico dos transportes”, isto é, analisar o sistema de transportes apenas pela tecnologia de deslocamento predominante. Mesmo assim, existe em seu trabalho uma tendência a caracterizar a questão da acessibilidade unicamente a partir da estrutura urbana construída para esse fim. Nessa visão, os elementos que condicionam a relação causal entre estrutura e acessibilidade são tão somente as vias construídas no espaço urbano. Assim, Villaça e outros autores consideram que a estrutura viária é o principal elemento que induzirá tanto a diferenciação do espaço intra-urbano58, por meio de caminhos de ferro, terra ou asfalto, como a urbanização, quando se tratar de vias de ligação regional. De fato, se automaticamente se relaciona o trânsito de pessoas e mercadorias à existência de vias (sejam férreas ou de rodagem), parece imediata a relação entre urbanização, diferenciação do espaço intra-urbano e a estrutura urbana de transportes. Mas o que se busca afirmar neste trabalho é que as estruturas de transporte são fatores necessários, mas não suficientes, para ensejar uma dinâmica urbana de valorização por meio da acessibilidade. Por isso, propõe-se aqui a construção de um conceito de “sistemas de transportes urbanos”, como algo que traz em si não só a infraestrutura de acesso ao espaço urbano como também, e principalmente, seu “estofo” sócio-econômico historicamente construído. Nesse sentido, as condições que permitem que pelos trilhos circulem locomotivas de carga ou de passageiros, ou que, contrariamente, as mesmas sejam abandonadas, são os elementos concretos para balizar a relação que se quer tratar entre produção do espaço e desenvolvimento do sistema de transportes, e não apenas sua existência física. É especificamente na questão do conteúdo sócio-econômico do sistema de transportes que a disputa política entre as classes urbanas tem seu papel preponderante: de reclamações cotidianas às revoltas, de conluios políticos a movimentos organizados, de iniciativas comunitárias a inversões de capital estrangeiro, é a mobilização cotidiana das classes em disputa dos benefícios gerados pelo trabalho social nas localizações urbanas que gera, de fato, um sistema de transportes e o relaciona à produção do espaço.

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O conceito “intra-urbano” é apresentado por Flávio Villaça quase como uma provocação teórica: o autor busca ressaltar a diferenciação interna do espaço urbano em oposição àquilo “que grande parte da recente literatura espacial progressista tem chamado de espaço urbano [mas que] refere-se, na verdade, ou ao processo de urbanização genericamente abordado, ou a espaços regionais, nacionais, continentais e mesmo planetário.” (VILLAÇA, 1998, p. 18).

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É nesse sentido que se configura o estudo da inserção dos ônibus no processo brasileiro de metropolização acelerada a partir da década de 1960, ou o processo de decadência do modo ferroviário a partir da década de 1930. Da mesma forma, pode-se entender a atual proliferação de motos e carros por todas as vias e a crise de demanda dos ônibus: os fatores que ensejam ou restringem a busca pela concretização de um acesso sistemático e cotidiano a um espaço - por meio de iniciativas privadas ou públicas, coletivas ou individuais - são tão fundamentais para a produção do espaço como a construção de vias urbanas como estrutura do sistema, e a organização das classes sociais é elemento importante nesse processo. Assim, é fato que a trajetória capitalista do setor de ônibus no Brasil é elemento imprescindível, tanto para a compreensão das relações entre transporte urbano e produção do espaço, como para entender a formação da acessibilidade enquanto valor de uso na cidade. Entretanto, esta leitura torna-se incompleta se a pressão popular e a disputa, por parte de movimentos organizados, dos direcionamentos desses elementos não for levada em conta. O mesmo vale para outros momentos históricos, não tão aprofundados neste trabalho: para a atual hegemonia do transporte individual automotivo, para os coletivos férreos - os antigos bondes ou os sempre desejados metrôs - e também, em outra escala espacial, para as bicicletas e a circulação a pé, enquanto alternativas não-motorizadas de deslocamento. Na maioria das vezes convivendo no mesmo tempo-espaço, cada um desses elementos possui um papel diferenciado na construção dessa dinâmica, visto que disputam o espaço e a hegemonia da circulação na cidade. Espera-se que a explicitação dos condicionantes políticos e econômicos que caracterizam a formação ampla de um sistema de transportes seja suficiente para evitar os “determinismos tecnológicos do transporte” e as soluções imediatistas dos problemas urbanos pela implantação de novos modos de transporte, tão presentes nesse tema, tanto em sua esfera política como acadêmica.59 59

É necessário refutar o fetichismo tecnológico que povoa o debate sobre os transportes urbanos. Diretamente correlacionado com o tecnicismo que aparta a questão do transporte público de suas contradições econômicas e políticas, o fetichismo tecnológico dos transportes procura relacionar todo o desenvolvimento do espaço urbano (especialmente aquele que não ocorreu, em um exercício inócuo de contra-factualidade) à estrutura do transporte público. Dessa maneira, é muito comum encontrar afirmações como aquelas que associam a estrutura urbana esgarçada de nossas metrópoles exclusivamente à ausência de transportes públicos de alta capacidade como o metrô, ou média capacidade como o monotrilho e o VLT, que pudessem direcionar o desenvolvimento urbano. Para um exemplo dessa perspectiva, ver o projeto de expansão do metrô paulistano apresentado por Csaba Deák em Elementos de uma política de transportes para São Paulo (1999). Na esfera política, a versão mais caricatural dessa tendência se encontra no cinco vezes candidato a presidência da república pelo PRTB, Levy Fidélix, e sua plataforma de “Aerotrem”.

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2.1.2 – A questão da inflação A forma de remuneração e cobrança do sistema de transporte público ao longo da história é um dos principais elementos que explicam a relação entre este sistema, a produção do espaço e as mobilizações populares. Em outros termos, a maneira como são gerados e distribuídos os custos e excedentes do sistema de transporte é componente fundamental na relação da população com seu espaço. Dessa forma, ao se analisar as mobilizações populares, não se pode ignorar a dimensão da inflação e do custo de vida como aspecto formador de uma cultura política e econômica do cotidiano.60 De fato, a forma, a frequência e o motivo pelos quais os preços das principais mercadorias do cotidiano aumentam em relação ao poder de compra informam quase uma “economia moral das multidões” urbanas, para usar a formulação do historiador Edward Thompson. Nos 140 anos de mobilizações populares descritos, a reação da população ao aumento das tarifas também varia conforme o contexto inflacionário vivido. A seguir, este trabalho traz uma breve sistematização de um levantamento da inflação brasileira entre os anos de 1879 a 2014. Evidentemente, até pelo menos 1945, nos chamados períodos “pré” e “proto” estatísticos, o índice foi calculado de maneira indireta e retroativa, apenas para a cidade do Rio de Janeiro. Desse ano em diante, o índice tomado como referência é o Índice Nacional de Preços da Construção Civil (INCC), que, como índice mais antigo a ser sistematicamente mensurado, atua como uma boa aproximação para o cenário. O quadro a seguir apresenta um resumo aproximado da inflação acumulada e anual, para períodos selecionados: Tabela 1 - Quadro resumo da inflação brasileiro (1879-2014) Quadro resumo da inflação brasileira (1879 - 2014) Inflação Taxa média de Período acumulada inflação anual 1879 - 1945 1945 - 1964 1964 - 1979 1979 - 1994 1994 - 2014

1.369% 3.214% 6.623% 1,671x1016% 473%

4,04% 17,97% 32,25% 552,94% 8,08%

Fonte: Ipeadata, a partir de INCC (entre 1945 e 2014) e BRASIL. Ministério do Trabalho, Industria e Comércio. Serviço de Estatística da Previdência do Trabalho (1879-1945).

O que importa reter do histórico inflacionário brasileiro são as dinâmicas distintas que ele estabelece com a população. Assim, como se verá, durante um grande período que vai do Brasil Império, percorre toda a 1ª República e parte da Era Vargas, 60

Em termos de expectativa da população em relação ao que é mercantilizado e à sua dinâmica de preços cotidiana.

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não há uma forte pressão inflacionária, a não ser em anos atípicos. É de se aventar a hipótese de que, por se tratar de um processo de urbanização ainda incipiente – que acarretava em um mercado urbano e regional ainda em formação – e de uma economia ainda em processo de monetização, havia pouca pressão sobre os preços do cotidiano. De maneira que, até 1947, reajustes dos preços do cotidiano eram recebidos com muita surpresa e, não raro, revoltas. Outros períodos estabelecerão dinâmicas distintas com as mobilizações populares. É o caso da pressão inflacionária dos últimos anos antes do golpe de 1964, que atinge também o preço dos transportes públicos e coloca sua disputa na ordem do dia, com manipulações e locautes por parte dos empresários, por um lado, e mobilizações de sindicatos e entidades estudantis, por outro. O que é claro nesse contexto é que havia uma disputa em aberto pelos excedentes econômicos gerados pelo processo de modernização. A década de 1980 apresentará um contexto semelhante, mais aguçado. Em um cenário de crise política e econômica, a hiperinflação gera uma nova dinâmica na organização dos movimentos. De fato, a pressão que se fazia era para que o reajuste tarifário tivesse uma periodicidade estabelecida e não excedesse a inflação geral. A disputa se inicia para que os reajustes sejam apenas anuais, a década prossegue com uma pauta de semestralidade no reajuste e os movimentos sociais se veem, já em 1988, às voltas com a tentativa de barrar um acordo governamental em que a tarifa teria um reajuste mensal “de acordo com os índices do IPC, além de reajustes automáticos toda vez que houvesse um aumento dos combustíveis” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 304). O valor nominal da tarifa deixa de ter importância e é sua relação com o custo de vida geral que começa a ser disputada, são dessa época as disputas pela indexação da tarifa a uma porcentagem máxima do salário mínimo, a conquista do valetransporte e a própria ideia de Tarifa Zero. Por fim, há que se atentar para o contexto de inflação “sob controle” dos últimos 20 anos, no qual o reajuste tarifário volta a ser uma questão em disputa e as mais diversas justificativas técnicas surgem para que este ocorra. A recente tendência de indexação da tarifa à inflação dos insumos pode significar uma retomada de algumas das dinâmicas de luta da década de 1980. A análise da trajetória histórica desses movimentos poderá revelar alguns aspectos nesse sentido.

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2.1.3. – Mobilização popular e transporte urbano Abordar a questão dos transportes urbanos, em especial os coletivos, a partir da ótica da mobilização popular não é uma tarefa simples. Elemento fundamental para o funcionamento de qualquer cidade contemporânea, os transportes abrangem o tempoespaço urbano de maneira virtualmente ubíqua e perene. Diferentemente da questão da habitação - fundamental para a reprodução da vida, porém elemento estático, fixo no espaço - o fato do transporte se configurar como um serviço que só existe durante sua realização e que, portanto, deve ser cotidianamente reproduzido, faz com que a sua realização efetiva exija grande capacidade de mobilização. Isto porque demanda não só uma intensidade que dê conta do espaço da metrópole, como também uma regularidade no tempo que possa garantir a estabilidade e continuidade de suas condições. Intensidade e perseverança aqui são palavras a serem levadas a sério, como um horizonte sempre reposto nos processos de mobilização popular por transporte. Não por acaso, ao se realizar uma visão rápida e geral da longa relação da população das grandes cidades latino-americanas com o transporte, constata-se quase que intuitivamente que esse foi sempre um fator explosivo – capaz de mobilizar grandes contingentes de energia política. Para citar um exemplo marcante, foi a questão do transporte de mercadorias e pessoas que se tornou o elemento crucial de disputa pela estabilidade política do governo socialista de Salvador Allende no Chile (1970-73): instigada por questões estrangeiras, a burguesia chilena financiou um locaute de todo o transporte chileno no começo de 1973, como forma de escassear as mercadorias nas cidades e impedir os trabalhadores de chegarem ao seu serviço. Como resposta, e em um exemplo de mobilização popular dos mais notáveis da história, a população dos bairros pobres que apoiava o governo organizou-se para autoprover o transporte que lhe havia sido boicotado. São históricas as imagens de tratores e caminhões abarrotados de trabalhadores e mercadorias, em um esforço de resistência que durou semanas e garantiu a continuidade da dinâmica econômica do país, além de contornar uma instabilidade política plantada por setores antidemocráticos. Não por acaso, após o fracasso de dois locautes no transporte, a burguesia chilena, associada aos interesses norte-americanos e a alguns segmentos das forças armadas, só pôde apelar para a violência armada como forma de findar o governo Allende. (cf. WINN, 2009) No Brasil, por sua vez, grande parte das maiores revoltas populares da última centena de anos têm no transporte seu estopim. Da Revolta do Vintém (1879-1880) 108

ainda no Brasil Império às célebres “Jornadas de Junho” de 2013, passando por grandes enfrentamentos e depredações ao longo de todo o século XX, todas lidaram com o fator explosivo das condições do transporte e sua relação com o cotidiano de espoliação das cidades. Em sua maioria explosões inesperadas e incontroláveis de indignação, essas revoltas expressam reações a contradições que se repõem continuamente na vida urbana e que informam a própria estrutura de relações sociais da população. O grande desafio dos movimentos sociais organizados a partir da questão dos transportes, desde suas primeiras formas na década de 1970, é dar vazão e objetividade a uma energia que se expressa de maneira espontânea e que diz respeito muitas vezes a toda uma condição de existência na cidade contemporânea e não apenas a aspectos específicos das condições de deslocamento cotidiano. Em outros termos, aos movimentos sociais por transporte é necessário lidar com uma série de contradições: entre a solução de demandas pontuais e um todo sistêmico que as reproduz; entre a potência e o deslumbramento da espontaneidade e a necessidade – muitas vezes desestimulante – da persistência de longo prazo; entre a objetividade contundente da ação direta e a necessidade burocrática do saber técnico; entre as condições de um deslocamento urbano desgastante e as condições mais amplas que geram a necessidade desses deslocamentos. A persistência dessas questões, associadas ao processo de produção do espaço urbano que as aguça ou ameniza, será o objeto de debate deste capítulo. 2.1.4. – Periodização Abordar uma dinâmica de mobilização popular dentro de um contexto de transformações sócio-espaciais abre espaço para distintos recortes temporais. De fato, ao longo do levantamento e sistematização dos dados e fatos aqui narrados, várias linhas de tensão se apresentam como possíveis fios condutores da narrativa: as formas de expressão e organização popular e as políticas governamentais; a diferenciação do espaço intra-urbano e a pressão econômica e demográfica da urbanização; a transição tecnológica dos modos de transporte hegemônicos e suas questões intrínsecas; as formas de organização do capital no transporte – se monopolista ou fragmentado, se nacional ou estrangeiro, se público ou privado; os períodos de relativa abertura democrática alternados com períodos de repressão e autoritarismo e sua relação com a mobilização popular; entre outros. Apesar de todos os temas se interrelacionarem, o mais importante a ser debatido nesse capítulo é a reação popular às condições de deslocamento cotidiano. Para abordar 109

a questão, é necessário explicitar a produção do espaço urbano como um dos principais condicionantes das contradições dos sistemas de transportes que, no entanto, só se revelam como uma questão social quando a estrutura dominante não pode mais ignorar as expressões da população em relação ao tema. Dessa forma, apesar de relevantes, as características tecnológicas e econômicas do modo de transporte dominante são colocadas em segundo plano, abordando-se mais as condições de sua reprodução ampliada. Para dar clareza a esse recorte histórico, as organizações populares em torno da questão dos transportes e principalmente as revoltas e manifestações serão colocadas como os “fatos originários” a partir dos quais as relações entre o sistema de transportes e a produção do espaço se explicitarão. O capítulo buscará, assim, traçar o debate sobre as transformações econômicas, políticas e sociais que culminam em contestações ao sistema de transporte em suas mais diversas formas: abertas ou veladas, educadas ou explosivas, organizadas ou espontâneas. Evidentemente, há fatos que geram mudanças políticas e cortes temporais mais profundos. Assim, propõe-se aqui a Revolta do Vintém de 1880 como evento inaugurador da relação entre transporte, política, espaço e sociedade que abre o contexto urbano de um país não industrializado e urbanizado, que buscava ainda as diretrizes para seu processo de modernização. O quebra-quebra dos ônibus e bondes em São Paulo, em 1947, evidencia, por sua vez, as contradições de um processo de urbanização em aceleração, fenômeno sobre o qual a 4ª República e o populismo não conseguem conciliar. Os constantes e violentos quebra-quebras de trens e ônibus na segunda metade da década de 1970 e os movimentos reivindicativos de transporte coletivo que vieram em sua esteira demonstram, por sua vez, o esgotamento do modelo autoritário e concentrador de renda do desenvolvimento econômico militar proposto pelo golpe de 1964, em um contexto de reprodução ampliada e acelerada dos espaços metropolitanos periféricos. Por sua vez, a redemocratização e as organizações populares que buscam respaldo institucional para suas demandas, no contexto do início do processo de motorização acelerada, irão vivenciar um arrefecimento da mobilização popular conjugada a um recrudescimento da organização do capital privado no setor. O veículo próprio passa a ser uma política de transporte voltada também para a assim chamada “classe C”, e a mobilidade das grandes cidades avança mais um estágio em sua crise estrutural. A falta de políticas institucionais e de mobilização dos setores alinhados às práticas dos movimentos do fim da década de 1980 gera uma espécie de “vácuo 110

político” que começa a ser preenchido na década de 2000, como se verá no capítulo 3, quando novos setores, principalmente de jovens, passam a se mobilizar na questão dos transportes e da mobilidade urbana. São dessa época a Revolta do Buzu em Salvador (2003), as Revoltas da Catraca em Florianópolis (2004 e 2005) e a fundação do Movimento Passe Livre (2005). O processo de reorganização que muitas vezes passa, deliberadamente, à revelia das formas tradicionais conhecida pelas organizações de esquerda culmina em mais uma revolta fundante de uma nova cultura política, as assim chamadas “Jornadas de Junho” de 2013, que se alastraram pelo país e derrubaram o aumento tarifário em mais de 100 cidades. 2.2. Indignação perene e revolta esporádica na cidade densa: a questão do transporte urbano até 1945 O que se tem da relação da população com o sistema de transportes que se estruturava dos meados do século XIX até o começo da década de 1930 é aquilo que os jornais da época registravam do cotidiano, além de relatos literários, memorialísticos, biográficos ou fictícios. O registro aqui é repassado a partir da análise de estudos e não houve, para este trabalho, uma pesquisa a fontes primárias. Dessa maneira, fontes secundárias - como livros e artigos sobre a história dos transportes, revoltas populares e outras questões - são a principal referência para o tema. A partir da década de 1930 é possível perceber outras fontes para a questão do transporte, como a organização dos sindicatos de motorneiros e condutores, debates na imprensa e estudos acadêmicos que abordam diretamente o assunto. O essencial nessa época histórica é perceber que a relação da população com o transporte coletivo traduz uma série de dimensões da própria sociedade nacional que estava se transformando. Um elemento de crônica do cotidiano, a forma como os habitantes urbanos se expressavam a respeito da forma que percorriam a cidade, traduz seus anseios, a relação entre as classes sociais, e a própria percepção de um tempoespaço urbano que estava se alterando profundamente. Para além do cotidiano, as revoltas populares em torno da questão mostram uma cultura política urbana em formação, com incipientes tentativas de ressignificação do espaço público e da relação entre as classes (cf. GRAHAM, 1991).

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2.2.1. – A Revolta do Vintém O transporte público no Brasil surge já cronicamente incapaz de atender às demandas que a dinâmica urbana lhe colocará. Fruto da lógica tarifária e da iniciativa privada, os primeiros sistemas de bonde já se voltarão prioritariamente para o atendimento de uma demanda solvável. Nesse sentido o transporte se estrutura em torno das necessidades de uma classe média e alta, atendendo apenas incidentalmente as regiões e a população de baixa renda, que começavam a surgir nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. No principal cenário político da elite brasileira, o sistema de bondes por tração animal surge de maneira generosa em meados do século XIX na então capital do Império, chegando a impressionar visitantes estrangeiros que mencionam o sistema de bonde como “expressão da mais democrática igualdade”, considerando que “seria mais fácil sugerir melhoras nos meio de transporte existentes em Londres do que nos do Rio” (cf. CARVALHO, 2015). Se de fato há uma democratização da circulação por certos espaços da cidade, a dinâmica de crescimento urbano e de aumento constante de uma população pobre gera ao menos três fatores adversos: em primeiro lugar, um incômodo das elites ao contato com a população segregada, buscando assim se afirmar a partir de diferenciações sociais como o bonde de luxo e o os trajetos direcionados para as regiões de valorização; em segundo lugar, um aumento inesperado na demanda pelo sistema que passa a ser percebido como cronicamente insuficiente, com uma abrangência espacial e temporal reduzida; e, por fim, a criação de uma dependência de toda a população em relação aos deslocamentos cotidianos e que passa a ser crucial para sua dinâmica econômica e social. De fato, o debate na imprensa coeva a respeito dos bondes, por ocasião da aprovação do imposto de um vintém sobre a tarifa de bonde do Rio de Janeiro, em 1879, dá a impressão de dois tipos de usuários: Por um lado a população mais abastada procurava os bairros afastados por “prazer de luxo”, optando por ocupar os recantos longínquos mais aprazíveis da cidade. E dependia, em parte, dos bondes como meio de transporte. Por outro, a gente pobre da corte procurava estabelecimento nos bairros mais distantes, em geral mais insalubres, por que os preços das casas permitiam uma certa “comodidade” no orçamento familiar. Nestes últimos, os bondes eram indispensáveis para o deslocamento diário dos trabalhadores para o centro da cidade. (JESUS, 2006, p. 75-76 com base na Gazeta de Notícias e no Jornal do Commercio).

O imposto do Vintém, que correspondia à menor unidade monetária de então, foi aprovado pelo Parlamento Imperial como um valor a ser pago além da tarifa de bonde, no momento de sua utilização, e concebido como medida para sanar as contas do 112

governo, em dificuldades financeiras. Antes de ser posto em prática, no dia 1º de Janeiro de 1880, a aprovação da taxa já gerava grande discussão e insatisfação na cidade, também pelo fato de haver flagrante desigualdade de renda entre os tipos de usuários que pagariam o imposto. É interessante notar que – de maneira distinta a uma percepção que é naturalizada contemporaneamente – a regressividade na renda que a tarifa constitui como forma de financiamento do serviço, com os mais ricos pagando proporcionalmente menos que os mais pobres para circular, era um fator perceptível para a população de então e serviu como argumento nas discussões (cf. JESUS, 2006). O primeiro aumento tarifário de vulto na história brasileira – medida voltada para o poder público, que não se configurava como uma receita adicional para as empresas, é importante frisar - impressiona pela virulência com que foi recebido, tornando célebre “A Revolta do Vintém” como um dos eventos que marcaram o começo do fim da monarquia (cf. GRAHAM, 1992). Em uma cidade que não via manifestações populares significativas há pelo menos 16 anos, a reunião de mais de 5 mil pessoas no Largo de São Cristóvão no dia 28 de Dezembro de 1879, convocadas por políticos republicanos ilustrados, demonstra o quanto o transporte público e sua tarifa influíam no cotidiano da população. Na ocasião, a população marcha em direção ao Palácio Imperial, onde é recebida por uma linha da cavalaria e por fileiras de policiais armados que os impedem de avançar. A manifestação então retorna e se dispersa em tranquilidade e apenas muito tarde Dom Pedro II envia a anuência para receber uma comissão dos manifestantes, que já então se recusa a ir ao encontro do monarca. Nos dias seguintes, a animosidade cresce na capital do país enquanto oposicionistas incitam a população a não pagar o imposto ao circular de bonde. De fato, no dia 1º de janeiro, “algumas empresas de bondes instruíram os condutores para que não insistissem em cobrar o vintém dos passageiros que se recusassem a pagar, evitando assim maiores transtornos” (JESUS, 2006, p. 78), mas mesmo assim grande parte da população o pagava. Ao meio-dia, uma manifestação de 4 mil pessoas toma o centro da cidade e segue em direção ao Largo de São Francisco, ponto final dos bondes do centro. É nesse momento que a violência da revolta estoura: manifestantes tomavam os bondes, espancavam os condutores, esfaqueavam os animais usados como força de tração, despedaçavam os carros, retiravam os trilhos e, com eles, arrancavam as calçadas. Em seguida, utilizando os destroços construíam barricadas e passavam a responder à intimidação da polícia “com insultos, pedradas, garrafadas e até com tiros de revólver”. Os bondes atravessados no chão tinham praticamente a mesma largura das ruas do centro da cidade e, cheios de paralelepípedos, formavam barricadas que

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fecharam, por exemplo, o quarteirão da rua Uruguaiana entre a do Ouvidor e a Sete de Setembro. (JESUS, 2006, p. 79). No final da tarde, as companhias de bondes suspenderam todo o serviço. A polícia, malsucedida na tentativa de conter os amotinadores juntou-se a mais de 600 soldados de infantaria e cavalaria de exército para enfrentá-los na rua Uruguaiana. As ordens do comandante Antônio Enéas Gustavo Galvão eram de tomar as barricadas e de quebrar a resistência, dispersando, dessa forma, os revoltosos. Para tanto, Galvão ordenou que a cavalaria atacasse a multidão. Soldados avançaram para as barricadas, espadas desembainhadas. Alguns dispararam tiros. [...] [No fim da noite] enquanto médicos tratavam dos quinze ou vinte feridos, três homens jaziam mortos na rua Uruguaiana. O motim do Vintém tivera seus mártires; velas acesas guardavam os lugares em que tinham tombado. (GRAHAM, 1992, p. 218).

Nos dias seguintes, a revolta arrefeceu e apresentou incidentes isolados de depredação de bondes e trilhos, além de saques a armazéns e lojas. No dia 5 de janeiro já nenhum incidente atípico era registrado pela polícia local. As reuniões de grupos opositores - parlamentares ou não - continuaram ao longo das semanas e a própria imprensa rapidamente se posiciona contra a taxa do vintém. Abalado por acontecimentos sem precedentes no Império, o gabinete de governo acaba sendo inteiramente substituído em março daquele ano. Apesar da taxa permanecer sendo cobrada, de fato, até o mês de março, ela deixou de ser paga por um número cada vez maior de usuários e permaneceu como letra-morta até 5 de setembro de 1880, quando foi revogada (cf. GRAHAM, 1991, p. 229). Profundamente marcante, a primeira revolta popular contra as condições do transporte público não irá apenas abalar a estrutura política da monarquia em decadência, ela estabelece precedentes de como as más condições de vida da população podem se manifestar em revoltas canalizadas pelo e contra o transporte público: o fio que percorre a cidade, conecta vidas, espaços e cotidianos – no limite, consciências. Simultâneo lugar de encontro e de passagem, o transporte público funciona quase como uma transição entre a vida pública e a privada, que deixa a escolha entre a reprodução de um sistema ou fuga das condições de alienação que atam a maior parte da população a um labor cujos frutos lhe são continuamente expropriados. A mudança imediata nessas condições de deslocamento - materializadas por uma elevação do volume de dinheiro pago, pelo aumento do equivalente geral com o qual aquela passagem-transição é negociada - pode ser o estopim, o despertar para todo um conjunto de condições opressoras às quais a grande parcela da população urbana pobre é submetida. De fato, é de se notar nessa revolta uma característica marcante daquele período: ela se inicia entre as classes médias e relativamente remediadas da cidade e se espalha de maneira incontrolável e violenta para as camadas mais pobres da população, que não 114

necessariamente eram usuárias cotidianas daquele serviço, exatamente pela existência da tarifa. Assim, essa revolta social, como muitas outras, é manifestação contra um abuso político e econômico proveniente de uma ordem social já esgarçada e fragmentada. Nesse sentido, a metáfora maoista da fagulha na pradaria seca, utilizada por Carlos Vainer (2013)61 para explicar as “Jornadas de Junho” procede em parte, mas não pode se transformar em explicativo geral. As condições políticas e organizativas que levam uma parcela da população à ação direta são frutos de anos de maturação de uma série de relações e propensões políticas implícitas que, para eclodir, contam sempre com algum acontecimento externo mas, frequentemente, também com o impulso de algum grupo político organizado. De qualquer forma, é fato que as mudanças reais que as revoltas podem acarretar dependem de circunstâncias relacionadas à capacidade de empoderamento e organização das massas e grupos políticos durante períodos mais extensos. Por fim, é necessário ressaltar um aspecto que torna a Revolta do Vintém especialmente significativa para a história política brasileira. Ela inaugura o urbano enquanto elemento político no Brasil. Pela primeira vez, os cidadãos urbanos se estabelecem como uma força de pressão nos rumos do debate político e suas necessidades cotidianas são levadas em consideração. O espaço de encontro e reprodução cotidiana da cidade se estabelece como elemento criador de política, como ressalta Graham: O jogo de interesses unicamente urbanos, então redefinido, e o estilo político também tipicamente urbano que também se delineou por meio de comícios de ruas e passeatas, de reuniões públicas e palestras, recitais e uma imprensa militante, tiveram origem com o Motim do Vintém e passariam a caracterizar o Rio de Janeiro dos anos [18]80. (GRAHAM,1991, p. 21)

O ar da cidade libertava e gerava novas contradições que eram trazidas e levadas ao longo dos trilhos de bonde. 2.2.2. - Primeiras modernizações, a cidade densa e o congelamento de tarifas Se é difícil ainda precisar o impacto que a Revolta do Vintém teve sobre a política de transporte urbano dos municípios brasileiros na 1ª República, há um elemento factualmente claro: os aumentos tarifários foram consideravelmente raros 61

Em seu texto “Quando a cidade vai às ruas”, Vainer busca explicar as manifestações de 2013 como uma consequência do processo de neoliberalização da cidade e de desconstrução do espaço público. A venda desses espaços, exacerbados pelos megaeventos que se avizinhavam, evidenciava as contradições que criaram “a pradaria seca” de condições urbanas na qual a luta contra o aumento foi a fagulha incendiária.

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durante todo o período que o sistema de bondes vigorou como modo de transporte hegemônico. Em que medida o medo de revoltas populares como a do Vintém foi um elemento que influenciou o poder público e privado a buscar alternativas de financiamento não-tarifárias ao sistema, é uma questão que está em aberto e que necessita de pesquisa documental específica62. O fundamental aqui é que nessa conjuntura, as condições do transporte e sua abrangência territorial – e não especificamente a tarifa – é que passaram a ser a principal questão que mobiliza a população em torno do transporte público durante anos63. Sistema de larga infraestrutura e aporte de capital, que rapidamente suplanta seus concorrentes que utilizavam tração animal, o bonde elétrico é visto aqui como elemento de modernidade e civilização. De fato, o Rio de Janeiro, é a quarta cidade no mundo a implantar o sistema (cf. STIEL, 1984), que se consolida na esteira de projetos higienistas e reformistas do começo da república. Entretanto, nas duas maiores cidades do país, e mesmo na nascente Belo Horizonte, o sistema rapidamente se revelará como estruturalmente insuficiente para a dinâmica da demanda que se estabelecia. Dessa maneira, os bondes elétricos acabam por se tornar um elemento condicionante da compacidade das maiores cidades de então, pois sua dinâmica econômica não era capaz de estabelecer acessibilidade a preços razoáveis para espaços urbanos (ou a se urbanizar) distantes dos centros. Assim, no início do Brasil republicano, a população urbana pobre ainda se concentrava, em grande medida, em cortiços e favelas nos centros das grandes cidades. Para Teresa Caldeira, os bondes são o principal motivo para o estabelecimento desse “primeiro padrão de segregação” em São Paulo: Uma das principais causas da concentração da cidade [de São Paulo] era que o transporte coletivo baseava-se no sistema de bondes, que requeria instalações caras e, portanto, expandia-se lentamente. Porque esse sistema cobria apenas uma pequena área da cidade, era difícil desalojar os moradores pobres do centro da cidade, onde trabalhavam. O lançamento de um sistema de ônibus, associado à progressiva abertura de novas avenidas, possibilitou a expansão da cidade em direção à periferia. (CALDEIRA, 2000, p. 217).

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PACHECO (1992) e VITTE & IMAEDA (2007) citam a necessidade de garantir o monopólio do fornecimento de energia elétrica em São Paulo, que se encontrava ameaçado por novos entrantes, como principal fator de barganha para que a Light oferecesse o congelamento da tarifa de bonde ao nível de preços de 1900 até o fim de sua operação. O debate parlamentar sobre a proposta de aumento tarifário feita pela Light em 1926, em seu “Plano Integrado de Transportes” é um indicativo para a pesquisa nesse tema. 63 É fundamental notar que, com o preço nominal congelado, as tarifas tinham seu preço real diminuído anualmente em virtude do processo inflacionário. A inflação acumulada entre 1879 e 1930 é de 720% (custo de vida pela alimentação, na cidade do Rio de Janeiro), e até 1945 de 2.400% (cf. IPEADATA).

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A mesma dinâmica é constatada por Berenice Guimarães para a cidade de Belo Horizonte: A deficiência do serviço de transporte – o bonde - constituía-se em um dos fatores responsáveis pela formação e expansão de favelas no centro da cidade, uma vez que os trabalhadores preferiam morar no centro, próximo ao local do trabalho, em virtude da dificuldade e do preço do deslocamento. (GUIMARÃES, 1991, p. 122)

Nesse sentido, a pressão pelo espaço, por sua localização e acessibilidade, se ampliava à medida que a população das cidades crescia a altas taxas, condicionadas por uma dinâmica econômica mais ampla que a de seu espaço intra-urbano64. Como cita Raquel Rolnik (1997, p. 165), a densidade de habitantes por hectare em São Paulo no ano de 1914 era de 110, mais que o dobro do valor de 53 habitantes/hectare encontrado em 1963, 5 décadas depois – quando a população era dez vezes maior e o sistema de bondes estava em seu fim e o de ônibus já plenamente hegemônico. A pressão pelo adensamento variava entre aquele espontâneo, fruto da iniciativa das classes baixas, e o induzido, necessário para o desenvolvimento econômico. Essa contradição se explicitava em Belo Horizonte, como uma cidade planejada com necessidade de afirmação econômica que buscava força de trabalho. Assim, a pressão política das classes possuidoras buscava discernir, no discurso, as “classes perigosas” e indesejáveis daqueles trabalhadores necessários ao desenvolvimento. Torna-se necessário, assim, direcionar o crescimento urbano. E é a partir do interesse econômico que as localizações buscarão ser efetivadas e ocupadas, condicionadas pelo sistema de transportes: Pequenas lojas de artesãos, armazéns, curtumes e algumas poucas fábricas têxteis relativamente grandes seguiam o Arrudas na direção do perímetro da zona urbana e do Barro Preto. A linha de bonde “Prado”, que passava por ali, fornecia os meios para obter trabalhadores para esses estabelecimentos. A localização estratégica do Barro Preto encorajou os empresários das indústrias têxteis a exigir do prefeito a doação de títulos de propriedade para esses trabalhadores a fim de dar certa estabilidade à força de trabalho na cidade. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 55).

Assim, identifica-se uma dinâmica espacial latente: o adensamento das localizações às quais o transporte público proporcionou acessibilidade. A relação do mercado imobiliário com o transporte público se delineava então. Em São Paulo, o capital estrangeiro da Light irá articular a geração de energia elétrica com a expansão do sistema de bondes, adquirindo terras inundáveis e terrenos ao longo dos trilhos para fortalecer o poder de atuação de seu capital financeiro (FRANCA, 2013). Já em Belo 64

Belo Horizonte chega aos 40 mil habitantes em 1912, com um crescimento anual de 9,6%. São Paulo sai de 65 mil habitantes em 1890 para 240 mil no ano de 1900, com a impressionante taxa de 14% de crescimento anual (cf. CALDEIRA (2000), SINGER (1968) e Fundação João Pinheiro (1996)).

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Horizonte, a ausência de uma empresa monopolista do porte da Light faz com que o mercado imobiliário seja mais disputado: Nesse período [da década de 1920, com baixa expansão da rede], as linhas de bonde teriam intensificado e possibilitado a especulação, o parcelamento de novas áreas e a construção de novas residências, ao longo do seu percurso e fora dele, onde os empreendedores pudessem antever a expansão de serviços em futuro próximo. O impulso à construção civil aumentou a importância dos transportes urbanos. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 76).

A insuficiência estrutural do transporte público e sua relação com a produção do espaço, principalmente na questão da habitação das classes de baixa renda, é, dessa forma, o principal aspecto que aflora do tema no período da 1ª República. A habitação e as condições de “higiene e circulação” da cidade são as principais questões debatidas pela sociedade, e o transporte aparece nesse contexto apenas como elemento para o poder público implantar sua concepção higienista de cidade e justificar o manejo da sua população pobre, como nos alargamentos de ruas para a passagem de bonde vistos em São Paulo no começo do século (cf. VITTE & IMAEDA, 2007, p. 71). Para uma sociedade profundamente desigual como a brasileira, era evidente que mesmo a tarifa em queda anual ainda era um elemento de grave segregação espacial. Entretanto, os relatos dão conta de que a população se via às voltas com as questões de manutenção, limpeza e expansão do transporte, manifestando sua indignação em constantes reclamações aos jornais65. Apesar disso, poucos distúrbios populares são direcionados aos bondes e é certo afirmar que nenhuma mobilização popular mais ampla se dava nesse sentido, com exceção de algumas importantes greves66. O bonde era assim imediatamente associado à acessibilidade, e a cidade se estruturava em grande medida em seu entorno. A dinâmica de produção do espaço condicionada ao sistema de bondes atingia seu limite estrutural, e a pressão pela ocupação de novos espaços e novas soluções que possibilitassem viabilizar novas localizações aumentava. O automóvel, inovação 65

Evidentemente, há um recorte de classe e de “literacidade” quando se toma os relatos dos jornais e as reclamações que lhes são enviadas como elemento explicativo de uma época. O jornal atua como reconstituição de uma certa memória coletiva de uma população alfabetizada. Para apresentar outros aspectos, é necessário um processo de pesquisa específico mais aprofundado. 66 Belo Horizonte testemunha, em 1934, sua primeira “greve selvagem”: a dos empregados da Companhia Força e Luz (CFLMG), fornecedora de energia elétrica e do sistema de bondes da cidade. A greve indicava a dificuldade do pacto corporativista de conciliação de classes proposto por Getúlio Vargas. Sendo iniciada por fora do sindicato e em reação às condições de trabalho precárias e opressoras, a greve durou sete dias e mobilizou grande parte da cidade em sua disputa, incluindo aí os estudantes do Ginásio Mineiro, universitários da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, os sindicatos têxtil e da construção civil. Com um taxista morto, vários feridos e mais de 80 presos, a greve não foi capaz de efetivar suas reivindicações perante a aliança entre a CFLMG e o governo estadual e municipal. Mesmo assim, abriu precedentes de enfrentamento e organização em Belo Horizonte (cf. ANASTASIA, 1997).

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tecnológica revolucionária da virada do século já era uma realidade e impulsionava a economia mundial, capitaneada pelos EUA. Já no começo do século, os primeiros veículos começam a circular nas cidades, mas é apenas na década de 1920 que o transporte coletivo rodoviário se apresentará como um modo capaz de influir na dinâmica espacial das cidades. Em 1923 é inaugurado o primeiro serviço de auto-omnibus de Belo Horizonte, com a empresa Ladeira & Raso.67 É interessante notar que a época dos primeiros empreendedores se dá relativamente mais cedo do que em outras cidades, com exceção de São Paulo, e é justificada pelo fato de haver constantes reclamações sobre o sistema predominante de bondes e impulsionada pela expansão urbana, o que levou o setor público à alternativa do serviço de auto-ônibus. Desde então, pequenos e improvisados carros sobre rodas passaram a percorrer ruas e bairros, inaugurando uma nova era nos transportes coletivos. (Cançado et. al, 1999, p. 294)

A necessidade de expansão urbana a preços acessíveis advinha também do “espectro Haussmanniano” de higienismo e expulsão dos pobres que rondava as cidades brasileiras, e começava a estabelecer as novas prioridades do sistema. Nesse ponto de transição, há embates ainda sobre as direções das políticas públicas em torno do transporte. O caso de São Paulo é novamente emblemático. Com um sistema deficitário e pressionado, em 1926 a Light propõe para a prefeitura de São Paulo um “Plano Integrado de Transportes”, no qual estabelece cinco pontos para a recuperação do sistema: 1. Aumento do número de bondes; 2. Ampliação da rede; 3. Administração do serviço de ônibus em coordenação com os bondes; 4. Implantação de um sistema de bondes expressos com linhas troncos e pontos terminais subterrâneos; 5. Implantação de uma rede de metrô para, no futuro, substituir as linhas de bondes. (cf. VITTE & IMAEDA, 2007, p. 71). Observe-se aqui um ponto de inflexão das políticas públicas: pressionada para dar atendimento a uma demanda cada vez maior, a concessionária monopolista do transporte público propõe uma expansão de sua capacidade, baseada no modo ferroviário, com o modo rodoviário reconhecido como elemento complementar do sistema. Em termos de dinâmica urbana, a consequência dessa proposta era a manutenção da lógica de ocupação adensada na cidade. Arremessado para os meandros 67

Conforme Fundação João Pinheiro, 1996, p. 72. A primeira regulamentação do serviço é feita três anos depois, pela lei nº 312 de 28/10/1926.

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das disputas políticas e técnicas do corpo tecnocrático da prefeitura de São Paulo, o Plano foi alvo de barganhas e em 1927 foi definitivamente refutado. Regina Pacheco (1992) ressalta que a rejeição se deu pela atuação de uma “nova categoria de funcionários públicos – aqueles dotados de um saber técnico sobre os problemas urbanos, formados geralmente na Escola Politécnica” (PACHECO, 1992, p. 209). A ideia da engenharia – urbana e de trânsito – como elemento de resolução da questão urbana se afirmava primeiro frente a uma negativa, e logo construiu sua própria concepção propositiva: o Plano de Avenidas Prestes Maia. Esse plano busca dar termo às contradições de ocupação do espaço urbano a partir de uma visão inspirada na dinâmica norte-americana: ampliação do sistema viário para a construção de uma cidade com baixa densidade, território extenso, apoiada pela predominância do transporte individual. Se no cenário regional e nacional a hegemonia ferroviária já estava colocada em xeque - com o crescente entendimento de que a indústria automobilística deveria ser a base do desenvolvimento econômico brasileiro - no espaço intra-urbano o plano Prestes Maia é o grande ponto de inflexão. Sua concepção espacial moldará as principais questões sobre transporte urbano e a mobilização popular que a elas reage nas próximas décadas. A sua implantação será decisiva para a conformação da cidade nas décadas que se seguem. O plano vê a cidade como fluxo, mobilidade, deslocamentos: é a cidade da rapidez, do descongestionamento, a cidade do capital industrial, que deve substituir a cidade do capital mercantil adensada e pouco segregada das primeiras décadas do século. Na nova perspectiva, o discurso da descontaminação é transformado no discurso do descongestionamento. (PACHECO, 1992, p. 209).

De fato, a ideia de imposição do fluxo contínuo se encaixava como continuidade da narrativa da limpeza das artérias da cidade para impedir seus miasmas pútridos. A abertura de avenidas e o fim do adensamento pareciam a melhor opção. A grande contradição que permanecia era a profunda desigualdade social. Padecendo dos renitentes vícios elitistas, o plano busca uma solução espacial para uma realidade social calcando-se em uma dinâmica estrangeira. Os poucos automóveis da época têm seu espaço ampliado sobremaneira, e para a grande maioria da população restou o sistema de ônibus e sua lógica de desbravamento das periferias para transformá-las em espaços acessíveis. Para a crescente população urbana, o transporte público se tornava cada vez mais crucial, mas agora havia uma diferença fundamental: com a mudança da tecnologia de bondes para ônibus, e da forma econômica – de monopólio para os diversos empreendedores -, os aumentos tarifários passam, pela 120

primeira vez, a serem recorrentes e a qualidade, bem como a simples existência do serviço, se tornam questões centrais para a existência desses indivíduos no espaço urbano. A organização e luta da população em torno dessa questão se dará de maneira diferenciada conforme a correlação de forças sociais e a abertura democrática ou repressiva do sistema político. 2.3. Ônibus, “pioneiros urbanos” e a precária conciliação de classes: o transporte público no período populista (1945-1964) No período relativamente democrático que sucede a 2ª Guerra Mundial, a sociedade brasileira já vivia plenamente as contradições de uma urbanização em aceleração. O precário sistema de transportes de sua maior cidade, São Paulo, há muito tempo se encontrava suplantado pela pressão populacional urbana. Sua população, de 1,3 milhão em 1940 cresce a uma taxa de mais de 5% ao ano e a produção do espaço urbano, de maneira extensiva e fragmentada, já tinha como contrapartida de sua existência o sistema de transporte baseado no ônibus, legal ou clandestino: Muitos dos “subúrbios-loteamentos” despontam em áreas sitas fora dos principais eixos de circulação rodoviária, junto às estradas secundárias ainda não servidas por ônibus. Os primeiros moradores, quase sempre pessoas humildes, fazem o papel de pioneiros. Por muito tempo deslocam-se a pé à estrada transitada por ônibus. Estes são apenas estendidos ao lugar depois de já contar com povoamento razoável, assegurando rentabilidade à linha. Contudo, a partir de 1940, tornam-se mais numerosas nos arredores paulistanos as estradas percorridas por ônibus. O comércio imobiliário soube muito bem tirar proveito desta vantagem, dela fazendo grande alarde em sua publicidade, sempre exagerando o número de linhas de ônibus e minimizando o tempo de percurso. (LANGEMBUCH, 1971 citado por VITTE & IMAEDA, 2007, p. 77)

Forma-se, então, uma aliança tácita entre o capital imobiliário e o capital do setor de ônibus, que por vezes se dará de maneira explícita e intencional e em outras ocasiões de maneira fragmentada e desencontrada. De qualquer forma, o fio condutor passa a ser a capacidade de “desbravamento” que o sistema de ônibus tem, e sua consequente inserção profunda no cotidiano e nas necessidades da população. Nesse contexto, novamente um aumento tarifário dará a dimensão dessa ligação. 2.3.1. – O Quebra-Quebra de 1947 Em 1937, a Light comunica ao prefeito de São Paulo que abriria mão da concessão do serviço de bonde assim que o contrato se finalizasse, em 1941. Entretanto, as circunstâncias da 2ª Guerra Mundial fizeram com que o governo federal interviesse e obrigasse a empresa a prestar o serviço até 1946 (cf. VITTE & IMAEDA, 2007). Para 121

seu lugar, o município de São Paulo concebeu a Companhia Municipal de Transporte Coletivo (CMTC) que teria prerrogativa de operação de todos os bondes e ônibus dentro do perímetro urbano do município. Quando o município retoma a administração do sistema de transporte público, o percebe absolutamente deficitário, com uma tarifa que permanecia congelada ao preço do ano de 1900 e que se estabelecia como única fonte de receita para o novo sistema. De fato, diante dessa situação e sem a perspectiva de um subsídio ou mesmo de uma responsabilização da Light – em um claro processo de socialização das perdas –, o governo do estado, no início da gestão Adhemar de Barros, decide aumentar a tarifa em 50 centavos, duplicando seu preço. Apesar de ser criticado na imprensa e na Assembleia Legislativa pela oposição, o aumento se efetuou no dia 1º de agosto de 1947 sem que nenhuma manifestação em oposição fosse convocada. A exemplo da revolta ocorrida há quase 70 anos, os eventos que se seguiriam impressionam por seu ímpeto, espontaneidade e, nesse caso, também pela simultaneidade. Pela manhã, os trabalhadores e a população em geral mantém a rotina normal de vida da cidade, sem dar qualquer sinal do que iria acontecer a partir das 11 horas, quando as primeiras turmas de trabalhadores começam a deixar as fábricas para o horário de almoço e descanso. De repente, em diversos pontos da cidade – Largo São Francisco, Praça João Mendes, Praça do Patriarca, Vale do Anhangabaú, Praça da Sé, pontos da rua da Consolação, rua da Liberdade e diferentes bairros – grupos de populares tomam a iniciativa das depredações, quebrando vidros dos veículos de transporte, ateando fogo às cortinas e destruindo bancos, relógios de marcação de passagens e tudo o mais. Segundo os relatos dos jornais, as iniciativas de pequenos grupos são imediatamente acompanhadas por populares que estão nas filas de ônibus ou bondes e recebem a adesão de pedestres que passavam pelos locais. Não há, nesses fatos, indícios de organização prévia no que acontecia então. Entre as onze da manhã e as quinze horas da tarde são incendiados centenas de ônibus e bondes nos locais mencionados, e onde os veículos ardiam, começa a se juntar uma multidão que, segundo as descrições da imprensa, não esconde o seu entusiasmo com o espetáculo de veículos destruídos. (MOISÉS, 1981, p. 54).

A manifestação segue em vários pontos da cidade e, ao fim da tarde, uma multidão se junta e tenta invadir a sede da Prefeitura Municipal, que só não é depredada e incendiada porque a turba é impedida pela contenção da cavalaria e infantaria da Força Pública. O saldo da revolta, além de inúmeros feridos e 350 detidos, é de 15 ônibus e 15 bondes completamente destruídos, 30 ônibus e 150 bondes irreversivelmente danificados e 100 ônibus e 400 bondes parcialmente danificados (cf. MOISÉS, 1981). Cerca de um terço da frota de transporte público da maior cidade da América do Sul foi destruída em apenas 4 horas de revolta popular. O dano é tão grande 122

que apenas 7 anos depois a cidade consegue equiparar sua frota pública ao nível de 1947. Como se pode constatar, a depredação dos veículos é um elemento permanente nas explosões populares contra o transporte público. Essa questão vai se tornar fundamental na década de 1970, na crise da ditadura, com a frequente depredação de trens suburbanos e estações em função das péssimas condições de deslocamento. Apesar dessa ação direta gerar a contradição da destruição do meio de deslocamento e a piora objetiva do transporte coletivo, ela torna evidente o próprio distanciamento que a população usuária tem das condições de seu cotidiano urbano. O ataque ao meio de transporte demonstra que a população não reconhece o serviço como algo que lhe pertença em qualquer sentido, ou como algo lhe gere benefícios. Em outras palavras, a depredação explicita a alienação das condições objetivas de reprodução da vida à qual a população está submetida, bem como sua tentativa de rompimento. Além disso, é fato que as revoltas buscam em seu desenrolar identificar os responsáveis pelas condições do transporte e por sua possível melhoria: a tentativa de invasão da prefeitura no quebra-quebra de 1947 não pode ser vista como algo ao acaso. É no sentido de criar uma situação incontornável, impossível de ser ignorada para as autoridades públicas, manifestação de uma situação insuportável e inaceitável, que a espontaneidade das depredações se direciona. Até aquele momento, entretanto, é necessário destacar que as revoltas não tinham se voltado contra os agentes privados da operação do transporte. A imprevisibilidade da irrupção violenta, que ao longo da revolta se volta contra um ou outro alvo, faz com que nem a própria esquerda organizada de então – em linhas gerais o Partido Comunista Brasileiro, em breve período de legalidade – corroborasse com as manifestações de imediato. De fato, apesar do inquérito policial não ter evidenciado nenhuma premeditação, não faltaram – por muitas décadas – aqueles que atribuíssem essa e outras revoltas aos mais diversos motivos conspiratórios68. Estivessem “as massas” conscientes dos desdobramentos diretos da revolta ou não, fato é que uma das primeiras consequências do quebra-quebra de 1947 foi a piora 68

Waldemar Stiel, autodidata e um dos pioneiros da sistematização da história dos transportes brasileiros, não hesita em atribuir o Quebra-quebra de 1947 à ação de empresários de ônibus infiltrados que, insatisfeitos com o monopólio da CMTC, buscavam abrir mercado insuflando a violência (STIEL, 1984). O próprio governador Adhemar de Barros atribuirá, no ano seguinte, a responsabilidade do incidente aos comunistas, quando estes estão convenientemente proscritos. Já o Partido Comunista Brasileiro atribui a revolta a um espontaneísmo vazio, desprovido de sentido revolucionário. (cf. MOISÉS, 1981).

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objetiva das condições do serviço público e uma abertura maior para a atuação de empreendedores privados do transporte em um cenário de contínua expansão da periferia. Como apresentado no capítulo anterior, a prefeitura buscava implantar um monopólio público do serviço para a área urbana do município. Com a brusca diminuição da frota e a incapacidade orçamentária de lidar com a proposta diante de prioridades contraditórias, o cenário se tornou mais propício para atuação de empresários tanto na dita “área rural” como, de maneira virtualmente clandestina, na área urbana. É o início, de fato, da hegemonia do transporte por ônibus, baseada em uma demanda continuamente crescente. 2.3.2. – Populismo e aceleração do processo de urbanização No período do populismo, o processo de integração do território nacional, urbanização e modernização se acelera. No paroxismo das periferias de São Paulo estava evidenciado um processo que acontecia a nível nacional: as grandes cidades se tornando cada vez maiores, de maneira extensiva e “improvisada”. Milton Santos identifica esse momento do processo de urbanização brasileiro como “urbanização concentrada”, na qual o número de cidades com mais de 100 mil habitantes irá crescer rapidamente, capitaneado pelas grandes metrópoles (cf. SANTOS, 1993, p. 82). No mesmo sentido, em seu célebre ensaio sobre o “ovo de Colombo” do processo urbano brasileiro, Francisco de Oliveira argumenta que o estabelecimento da urbanização como processo hegemônico no Brasil necessita de uma conciliação de classes para a superação das oligarquias rurais. O processo amplo de modernização, que traz consigo desde a industrialização até a nova forma de produção periférica das cidades, se baseia na afirmação de um proletariado como um de seus agentes criadores, além de ser, o processo em si, o próprio conteúdo do novo. Na urbanização que se apresenta no imaginário coletivo como possibilidade de mobilidade social para uma população absolutamente pauperizada, além de uma espécie de ressignificação das bases primeiras do país, o Estado – que se busca se afirmar, ainda que precariamente, assumindo funções como educação, saúde e o próprio transporte público – surge com um aparente pacto entre as classes: o populismo. [em função da] luta econômico-política contra as oligarquias rurais, esse Estado recém-nascido, ajudado pela classe operária, mas já de propriedade da burguesia industrial, não poderá ser repressivo, nem explorador. O populismo é essa face não-repressora do Estado burguês brasileiro. O que é o urbano no populismo? O urbano é principalmente o laissez-faire da constituição da classe operária e das outras classes trabalhadoras urbanas e simultaneamente

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a constituição da própria burguesia industrial. O urbano é principalmente o movimento de migração campo-cidade e a desarticulação das “economias regionais”; o urbano é uma poderosa acumulação de capital, fundada simultaneamente no confisco de uma mais-valia em expansão [...], na manutenção do status quo no campo [...]. O urbano nesse período é a afirmação da sede urbana da produção e do controle político-social; é a negação do campo. (OLIVEIRA, 1977, p. 72, grifos do autor)

Como se vê, esse aparente pacto entre as classes foge ao controle quando a classe trabalhadora em formação nega seu papel de “autoconstrução”, que passa por uma espoliação tacitamente acordada. As periferias nascentes tornam-se “o lugar aonde as pessoas chegam antes da cidade”, diferentemente dos bairros pobres adensados da 1ª metade do século XX. Nesse contexto, a cidade deve alcançar o lugar geográfico onde a classe – migrante e pauperizada - se percebe e se faz, e para cada serviço urbano a dinâmica de conquista de sua chegada é diferente. No caso do transporte público, como se vê, essa época era de plena oportunidade para autoformação de uma burguesia dos transportes que busca disputar o monopólio da prestação de um serviço que se vislumbra altamente rentável em um horizonte próximo, quando da consolidação desses assentamentos. Para a população que chega, o pacto tácito também está dado, e as precárias condições da vida cotidiana são, em geral, aceitas como uma barganha para uma melhoria futura. De fato, na complexa composição de classes do populismo brasileiro, o “futuro” figurava sempre como o horizonte de apaziguamento das animosidades. A conciliação de classes nesse sentido é uma disputa em aberto, que passa pelo campo do simbólico e pela capacidade de organização e movimentação política de cada um dos setores envolvidos. É esse contexto que possibilita que as empresas de ônibus, em crescente organização capitalista, possam fazer uma propaganda como a que segue: Chegamos primeiro... e trouxemos conosco o progresso! Quem chega primeiro às vilas e aos bairros nascentes são os ônibus dos Concessionários. Chegam trazendo conforto, antes da água, da luz, do calçamento, mesmo em locais distantes onde jamais irão os ônibus elétricos. E mesmo no começo, quando o serviço ainda é deficitário, muita gente já está ganhando. Ganham os proprietários, que já podem construir, para morar ou alugar. Ganham os moradores, que podem ir e voltar do serviço. Ganham as esposas e seus filhos, que podem ir confortavelmente às compras ou às aulas. Ganham os comerciantes, que encontram condições para iniciar seus negócios. Ganham ainda os proprietários, com a imensa valorização dos lotes e das casas.

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E ganha principalmente o povo, porque assim a cidade vai crescendo, sem pesar aos cofres públicos, sem custar mais impostos. Esta é mais uma maneira pela qual servimos à cidade. É mais um motivo pelo qual nos orgulhamos de ser concessionários. Campanha feita pelo Sindicato das empresas de transporte público de Belo Horizonte, 1963. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 199).

Esse texto revela a síntese da concepção populista e da disputa entre os diversos atores sociais em uma época na qual as contradições do processo acelerado de urbanização ainda não haviam encontrado sua “solução” autoritária. Além disso, demonstra claramente a forma como as empresas de ônibus eram agentes ativos no processo de produção do espaço. O sentido da mensagem é mais claro quando se questiona a razão de ter sido escrita e divulgada. Em outros termos, a necessidade de uma campanha publicitária por parte das empresas de ônibus revela a grande impopularidade que esse segmento possuía na sociedade e a necessidade de disputar seu imaginário. A impopularidade das empresas de ônibus advém não apenas das condições objetivas da prestação de seu serviço, mas também de um imaginário coletivo que é resultado da contínua movimentação de segmentos sociais e grupos políticos que se encontram em um processo de fazer-se a si mesmos enquanto classes. No período em que as empresas consolidam a reprodução simples de sua atividade e buscam condições para a sua reprodução ampliada, os agentes políticos da disputa pelo transporte público se consolidam. É nesse contexto que o Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário de Belo Horizonte (STTR-BH) é criado, no dia 2 de dezembro de 1950, em decorrência de uma das primeiras greves da categoria, em novembro do mesmo ano (cf. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 161). O próprio setor do capital também vê a necessidade de se organizar, muito em função da necessidade de garantir mercado e impedir os efeitos perversos de novos entrantes, de fato até essa época: Existiam represálias e sabotagens, por parte daqueles que tinham maior poder de pressão, para que um pequeno proprietário vendesse sua concessão ou mudasse de linha, eliminando-se a concorrência. Um tipo usual de sabotagem era a “estratégia sanduíche”, quando um motorista era forçado a trafegar entre dois carros muito próximos de outro proprietário. Assim, ele transportava poucos passageiros e sua renda diminuía. (FJP, 1996, p. 170).

É dessa forma, e como consequência de um longo processo de pressão por aumento da tarifa, envolvendo fraudes, ameaça de locautes, e disputas nos corredores políticos – evidenciando assim como essas práticas são históricas – que é formado, em 1954, o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte 126

(SETRANSP). A coesão do setor como estratégia de autopreservação e o autorreconhecimento da classe em seu próprio movimentar-se é que definem essa fase do processo urbano nas grandes cidades brasileiras. Ao mesmo tempo, a população passa a se movimentar politicamente de maneira mais intensa. Diante de serviços urbanos estruturalmente insuficientes e de um contexto inflacionário com pressão constante para reajuste tarifário, as insatisfações aumentam cada vez mais e a luta organizada também. Em Niterói, 1959, nova explosão de revolta: diante do aparato militar que visava combater a greve dos trabalhadores do serviço das Barcas, uma multidão de 30 mil pessoas enfrentou as tropas armadas e atacou não só a estação de barcas como também a residência dos donos da Cia. Cantareira, operadora do serviço. O saldo foi de cinco mortos, 118 feridos, um ônibus destruído, um jipão dos fuzileiros, um ônibus elétrico, um bonde, um restaurante, duas lanchas e um clube incendiados, oito prédios destruídos, além de um estaleiro, uma serraria e uma rádio-patrulha (MOISÉS & MARTINEZ-ALIER, 1977, p. 58)69.

Em Belo Horizonte, na década de 1950 o jornal O Binômio passa a abordar e satirizar a situação do transporte público. Em 1953, usuários do bairro Pompéia – na região leste da cidade - organizam uma inédita greve de passageiros, negando-se a utilizar o transporte e impedindo outros passageiros de o fazerem até que as condições do serviço melhorassem70. Bondes e ônibus são alvos de ataques em ocasiões esporádicas durante esses anos, e à medida que o cenário de crise urbana avança na década de 1950, os ânimos se acirram. Por ocasião de um aumento de tarifa em 1960, o III Congresso Sindical de Minas Gerais divulga nota contra qualquer majoração nos preços dos transportes, líderes sindicais e estudantis se movimentam e organizam passeatas que conseguem um raro recuo de uma prefeitura sob constante pressão. É um dos primeiros posicionamentos sobre o tema que envolve entidades sindicais e estudantis. Nesse cenário, os trabalhadores rodoviários denunciam as jornadas de trabalho de 14 horas, o pagamento abaixo do salário mínimo e o uso de trabalho infantil para a função de trocador. Além disso, a pressão da população fez com que a prefeitura fiscalizasse o sistema e constatasse que mais da metade da frota da cidade estava sem condições adequadas de tráfego (cf. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 172). A mobilização também se deu pela implantação do horário noturno, exigido por garçons, 69

Para mais detalhes sobre o contexto da Revolta das Barcas, consultar NUNES (2000). A manifestação dura apenas um dia, e é encerrada depois da intervenção violenta da polícia. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 172) 70

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cozinheiros, jornalistas, jornaleiros, carteiros e políticos, e conseguiu sua implantação no começo da década de 1960, além de outras vitórias pontuais: suspensões, minoração ou adiamento dos aumentos, além de elaboração de projetos de lei para melhoria das condições de transporte. São essas circunstâncias bem concretas, de mobilização da população, que fazem os concessionários buscarem mudar sua imagem por meio da propaganda. A disputa pela apropriação dos excedentes gerados pelo processo de modernização brasileiro se acirra no começo da década de 1960, entre outras razões em virtude da entrada do capital internacional em cena. À medida que as contradições urbanas se agudizam, os velhos instrumentos de pressão das empresas começam a gerar crescentes tensões sociais. É assim que, em 1963, a pressão por mais um aumento tarifário dá os contornos da capacidade de mobilização que estava colocada em jogo. O aumento da tarifa é seguido de uma greve de motoristas, que não têm seu salário reajustado. Os empresários são coniventes para forçar uma nova majoração71 e tentam retirar os ônibus de circulação, no que são impedidos pela polícia militar, que apreende 20 ônibus saindo da cidade. Ao mesmo tempo, voluntários da sociedade civil se prontificam a guiar os ônibus paralisados, as forças armadas intervém na greve e obrigam os veículos a circularem, enquanto “dirigentes estudantis, em carros com altofalantes, percorriam a cidade esclarecendo a população sobre a ilegalidade da greve” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 202). Como se vê, a composição de forças políticas à época não é tão clara como se imagina a um primeiro momento, havendo, para esse caso específico, uma oposição entre população-governo do estado-forças armadas, de um lado, e prefeitura e os empresários de ônibus, em uma relação de chantagem e paternalismo com os trabalhadores rodoviários, do outro. Os rearranjos de posição serão frequentes e contínuos nos meses derradeiros da 4ª República. Do episódio, fica patente a capacidade e vontade de mobilização da população em relação aos serviços urbanos em um contexto de incerteza e impasse. Assim como no Chile de Allende, embora de maneira incerta e obscura, a questão dos transportes é capaz de mobilizar grandes contingentes de energia política.

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Segundo relato de João Luiz da Silva Dias, a greve foi induzida pelo então prefeito Jorge Carone que alegou às empresas de ônibus que não poderia realizar um reajuste “a frio”, afirmando que se as empresas de ônibus não podiam fazer greve, que seus motoristas fizessem.

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O golpe civil-militar de 1964 interrompe a incipiente, porém concreta, organização da população em torno da reivindicação dos serviços urbanos. A ambiguidade do posicionamento do Estado em sua postura de conciliação é abandonada, e a posição pelos interesses do capital mais dinâmico – a burguesia nacional associada ao capital estrangeiro – passa a ser claramente assumida. Parte-se para acumulação do capital por meio de ostensivas políticas de concentração de renda, da retirada explícita da remuneração da classe trabalhadora na repartição dos excedentes. O urbano, enquanto fenômeno e qualitativo torna-se, nas palavras de Francisco de Oliveira, [...] a antinação. É o assentamento definitivo da produção e do controle político-social na cidade, por certo, mas a cidade agora é todo o país; é não somente o “apertar o cinto” do subperíodo anterior: é colocar, pela repressão, toda a massa trabalhadora sem calças; não há necessidade de “apertar o cinto”. O urbano agora é a unificação do mercado de trabalho propriamente urbano e rural: é “bóia-fria, acumulação e miséria” (OLIVEIRA, 1977, p. 73).

Nesse contexto, as periferias crescerão e se tornarão mais precárias. Mais do que isso, da mesma forma que a força de trabalho se torna ainda mais um elemento sob arrocho e necessário para o desenvolvimento econômico, a produção do espaço das periferias é a contrapartida sistêmica da urbanização e da criação de centralidades daquele momento. É em um contexto de forte espoliação urbana que as empresas de ônibus atuarão para consolidar monopólios. Mas é também no cenário da precariedade do urbano que a população se insurgirá e, com muita persistência, construirá as bases políticas para a derrubada do regime militar. 2.4. A metropolização acelerada como processo hegemônico: espoliação urbana e o surgimento dos movimentos organizados em torno do transporte coletivo (décadas de 1970/1980) “Pode o Estado solucionar o chamado problema de transporte urbano? Pelo tamanho do excedente que maneja, pode; mas, se esse excedente provém em parte da produção automobilística, então não pode.” Francisco de Oliveira, 1977, p. 75.

O modelo de desenvolvimento econômico e urbano capitaneado pelo regime militar no Brasil durante as décadas de 1960 e 1970 estabelece, para o processo de produção do espaço periférico das grandes cidades brasileiras, um novo patamar quantitativo e qualitativo72. O processo de concentração se evidencia espacialmente a 72

Milton Santos destaca essa mudança no processo de produção do espaço: “a partir dos anos 1960, e sobretudo na década de 1970, as mudanças [no processo de urbanização] não são apenas quantitativas,

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partir de um monocentrismo nas formas urbanas: a concentração de empregos, serviços e equipamentos urbanos em geral nos centros das grandes cidades cria altíssimos graus de dependência na conurbação. A dimensão desse fato é apresentada nas primeiras pesquisas origem-destino feitas nas metrópoles, onde se constata um grande número de municípios periféricos, com grande contingente populacional, nos quais mais de 60% da força de trabalho se deslocava para outro município para trabalhar. Em São Paulo, no ano de 1977, esse montante chegava a 67% da força de trabalho de alguns municípios e regiões periféricas intra-municipais que perfaziam um total de 380 mil trabalhadores. Além destes, outros 1,5 milhão de pessoas trabalhavam em um município distinto daquele em que moravam, uma média de 48,3% da força de trabalho total. (cf. AFFONSO, 1987, p. 77-8). O contexto torna-se mais complexo à medida que a extensão e o esgarçamento do tecido urbano passam a transbordar os limites territoriais dos municípios-sede e a se espraiar em direção a municípios periféricos - metropolitanos e dependentes - partes componentes do mesmo aglomerado urbano. Esse movimento é identificado por Milton Santos como a etapa de metropolização da urbanização brasileira (cf. SANTOS, 1993, p. 82), uma nova etapa da concentração espacial e econômica nacional. Nesse sentido, cabe aqui retomar a lógica de renda da terra e diferenciação apresentada no começo deste capítulo. A metrópole, em toda sua extensão do centro à periferia, constitui-se em um único conjunto, um aglomerado urbano interdependente entre si, embora o grau dessa dependência varie territorialmente. Tomada, assim, como um todo, a lógica da localização permanece: a renda da terra e a disputa pelo espaço se dão pelo atributo que relaciona a acessibilidade daquele espaço a todo o conjunto urbano restante, manifestado em seus valores de uso (em equipamentos e serviços urbanos). Na década de 1960 e 1970, as taxas de crescimento demográfico e urbano brasileiras ainda eram altíssimas73, e ao processo de esgarçamento metropolitano corresponderá um adensamento de classes mais altas nas zonas nobres, estas últimas com capacidade de exercer um poder político e econômico ainda mais livre do que anteriormente e, portanto, em melhores condições de assegurar as localizações mais valorizadas. Note-se mas também qualitativas. A urbanização ganha novo conteúdo e nova dinâmica, graças aos processos de modernização que o país conhece e que explicam a nova situação” (SANTOS, 1993, p. 67). 73 A Região metropolitana de Belo Horizonte cresceu a uma taxa de 5,8% ao ano na década de 1960 e 5,79% ao ano na década de 1970. Já a Região Metropolitana de São Paulo apresentou, para o mesmo período, taxas de 5,96% e 5,53%, respectivamente. Em números absolutos, isso significou um acréscimo populacional de 1,8 milhão de pessoas na RMBH e de 7,8 milhões de pessoas na RMSP em um período de 20 anos (Cf. IBGE 1960, 1970, 1980).

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que esse período da história urbana brasileira tem, entre outras razões devido à repressão política, uma baixa reprodução de favelas – solução popular e autônoma da disputa por localização.74 A lógica de complementaridade entre o adensamento dos centros e a formação extensiva de periferias é sustentada pelas altas taxas de exploração da força de trabalho (em processo de precarização e terciarização) e por aquilo que Lúcio Kowarick definiu como espoliação urbana que constitui o somatório de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, apresentados como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência, e que agudizam ainda mais a dilapidação realizada no âmbito das relações de trabalho. (KOWARICK, 1979, p. 59).

À época, essa formulação se deu fundamentalmente em torno da questão da moradia e do próprio princípio da autoconstrução como mecanismo que rebaixa os custos de reprodução da força de trabalho. Em comparação, pouca atenção de estudos teóricos e acadêmicos foi dada para a questão dos transportes urbanos enquanto serviço de consumo coletivo gerador de espoliação, ainda que este fosse um fator central no cotidiano e na retomada política no fim da década de 1970. O fato de que o transporte coletivo se dava de maneira hegemonicamente privada talvez desviasse a atenção do montante que ele representava nos custos e no tempo de reprodução da força de trabalho metropolitana. Mas a espoliação que ocorria nos transportes era dolorosa e crescentemente concreta. Ela se dava tanto na dimensão da expropriação da remuneração da força de trabalho, que deveria arcar ela própria com a totalidade dos custos de seu deslocamento e de sua unidade familiar, como na dimensão do tempo de vida que lhe era subtraído. De fato, a partir de relatos de trabalhadores que gastavam de 3 a 6 horas de seu dia dentro do transporte público (cf. MOISÉS & MARTINEZALIER, 1977; AFFONSO, 1987), é necessário fazer a ressalva conceitual nessa questão. No que concerne ao tempo perdido, a relação social não era exatamente de espoliação, no sentido de que há uma retirada indevida de um excedente (de tempo ou de força de trabalho) em benefício de outra classe social proprietária dos meios de produção. A baixa eficiência no sistema de transporte configurava uma relação de puro desgaste no modo de produção capitalista, pois o tempo perdido no deslocamento para o trabalho, bem como o desgaste físico e psicológico que isso acarretava, afetava a 74

Em Belo Horizonte, apesar da população favelada crescer em 100 mil pessoas entre 1964 e 1981, sua proporção na população passa de 14,75% para 12,91%. Já em 1985, a quantidade de residentes em favelas mais que dobra, chegando a 550 mil, 29% da população do município. (cf. VELOSO, 2013, p. 40 e COSTA, 1994, p. 73).

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produtividade como um todo, também do ponto de vista do capital. Evidentemente, há uma grande diferença entre um problema de “produtividade econômica” e um desgaste físico, psicológico e emocional que atinge o próprio cerne do indivíduo. As condições desumanas de transporte estavam atingindo muito mais do que a economia. E, mais uma vez, são as revoltas populares espontâneas que darão a medida do problema. 2.4.1. – Os quebra-quebras da década de 1970 Com a metropolização e a crescente pauperização das camadas populares, os trens suburbanos das grandes metrópoles passaram a ter um papel crucial. Herdeiro da antiga dinâmica ferroviária da passagem do século XIX para o século XX, esse meio de transporte, durante o processo de metropolização, já se encontrava extremamente sucateado e abandonado pelas políticas públicas. As estações eram precárias e as composições extremamente antigas, em permanente estado de manutenção75. O principal agravante era a superlotação: em 1975, o transporte ferroviário de subúrbio de São Paulo transportava 900 mil passageiros diariamente e o do Rio de Janeiro, 700 mil. Ao impressionante crescimento de demanda, que havia aumentado em 400% entre 1964 e 1974, junta-se um quadro de redução de carros que faz com que cada composição do Rio levasse, em média, 3.500 passageiros a mais que sua capacidade nominal (de 1.500 para 5.000) e as composições de São Paulo levassem 133% a mais de passageiros que sua capacidade (700 passageiros para uma capacidade de 300) (cf. MOISÉS & MARTINEZ-ALIER, 1977). Em um cotidiano de exploração por meio de panes, atrasos e pingentes76 – que muitas vezes se acidentavam fatalmente – não foi de se espantar a proporção e a violência da revolta. Assim, em outubro de 1974, o enguiço e a consequente paralisação de uma composição entre as estações Augusto Vasconcelos e Santíssimo (Baixada Fluminense), no horário de maior movimento na Central do Brasil, levou cerca de 3 mil passageiros, “irritados com os constantes atrasos dos trens”, a atear fogo a três vagões e a apedrejarem outros 12.[...] Simultaneamente, no mesmo dia [16 de outubro de 1974], em Brasília, parte da população das cidades-satélite depredava 40 ônibus. Reagia, assim, contra a introdução de um sistema hierarquizado de transporte de ônibus e aumento de tarifas. [...] no dia seguinte, as autoridades locais decidem abolir o Decreto 2729, que aumentara o preço das passagens, e estabelecem o sistema de

75

Para se ter uma dimensão, em Belo Horizonte, no começo da década de 1980, a composição mais nova era de 1948 e a mais antiga, de 1926 (cf. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 268). No Rio de Janeiro, em 1975, havia carros de 1937, 1956 e 1965. Além disso, 408 dos 819 carros de transporte suburbano disponíveis encontravam-se em conserto (cf. MOISÉS & MARTINEZ-ALIER, 1977, p. 24). 76 Passageiros que se penduravam para fora da condução (seja bonde, ônibus, ou trem) por falta de espaço devido à superlotação.

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ônibus e a tarifa antiga única para as cidades-satélite. (MOISÉS & MARTINEZ-ALIER, 1977, p. 31)

Esses primeiros acontecimentos são marcantes como insurgência, noticiada na imprensa, da insatisfação latente das classes de renda baixa com a contínua espoliação que sofriam. É fundamental notar que, apesar do contexto de aumento da repressão estatal, essa insatisfação não é proveniente ou capitaneada por nenhum dos diversos “grupúsculos” políticos e frações de organizações marxistas que haviam se formado nos anos anteriores. Revolta surpreendente para os grupos políticos organizados, a sonhada “classe proletária como agente revolucionário” se mostrava avessa a direções e representações. De fato, é a própria movimentação espontânea, reação à barbárie, que vai dar aos “de baixo” um sentido de identidade entre si, algo que lhes unifica, e no processo da revolta também indica contra quem a luta deve ser feita. Na movimentação que as camadas pauperizadas realizam, e apenas nesse processo, é que elas podem se identificar como “classe”, no sentido marxista corrente, como um grupo que partilha o mesmo lugar nas relações sociais de produção. No sentido proposto pelo historiador Edward Thompson (1991), a classe e a consciência de classe são um último estágio de um processo histórico real que traz em si o desenvolver de uma cultura, expectativas e lutas comuns e especificamente situadas. Em outros termos, o que dá identidade a algum grupo é a luta de classes que este desenvolve e não o contrário: não há uma consciência a priori do que se é ou do que se deveria ser. De tal maneira que esse foi o principal erro da fórmula leninista adotada pelas organizações de esquerda à época da ditadura: a classe não é um conceito estático e abstrato ao qual às massas devem se identificar e assumir uma consciência que, se não possuem, lhes deve ser trazida externamente por uma vanguarda iluminada. É a autonomia e, em certo grau, a própria espontaneidade da luta contra as condições objetivas de opressão que a farão se entender como um grupo social coeso, seja este qual for, e se organizarem. Em um novo processo de fazer-se classe, esse amplo segmento da população identificava o Estado como o alvo a ser questionado, à medida que seu modelo de desenvolvimento e acumulação se mostrava estruturalmente em crise. Diferentemente das revoltas que foram abordadas até agora, o estopim da depredação dos trens não era necessariamente devido a um aumento tarifário, e sim em função das condições do sistema em si. Nesse mesmo sentido, a estrutural insuficiência de um sistema rígido que requer grandes investimentos monopolísticos como o ferroviário, não poderia ser resolvida imediatamente, pelo menos não a partir dos 133

compromissos estruturais que o Estado havia assumido com a burguesia internacional associada, como ressalta Francisco de Oliveira na epígrafe desta seção. De fato, a revolta demonstra uma política governamental de deliberada precariedade para a população de renda baixa. As “massas” demonstravam que essas condições impostas haviam atingido um limite objetivo, mas a solução concreta para o problema do transporte não se anunciava no horizonte. Essa situação gera duas dinâmicas que se desdobrarão no último decênio da ditadura militar: por um lado, o aumento das revoltas populares e depredações do transporte público; e por outro, a possibilidade de organização popular para lutar pelas melhorias na questão e por algum poder popular nas determinações do transporte. A partir de 1974, as revoltas e depredações do transporte público, em especial dos trens metropolitanos, se torna um elemento constante na dinâmica política do país. O presente trabalho fez um levantamento e compilação dos principais ocorridos entre os anos de 1974 e 1981, a partir de três fontes secundárias, que por sua vez se basearam em entrevistas e matérias da imprensa: o trabalho de José Álvaro Moisés e Verena Martinez-Alier, de 1977; a compilação de Edison Nunes, de 1981; e a dissertação de mestrado de Nazareno Affonso, de 1985. A relação completa dos ocorridos encontra-se no Apêndice I, na tabela a seguir são apresentados os eventos considerados mais relevantes e emblemáticos

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Data

Local RMRJ - Estações 16 de Auguesto 1 outubro de Vasconcelos e 1974 Santíssimo

TABELA 2 - RELAÇÃO DOS PRINCIPAIS QUEBRA-QUEBRAS DE TRANSPORTE COLETIVO NAS METRÓPOLES BRASILEIRAS ENTRE 1974 E 1981 Motivo Reação da população nº de participantes Reação do governo Enguiço do trem

Incêndio em 3 vagões e apedrejamento de outros 12.

16 de Mudança no Brasília - cidades2 outubro de sistema de ônibus e Depredação de 40 ônibus satélite 1974 aumento da tarifa

5

9 estações da 11 de julho baixada de 1975 fluminense

Atraso nos trens

Depredação com paus e pedras, fogo em dois vagões, destruição de móveis, destruição de sinalização, queima de arquivo. Enfrentamento com a polícia.

3 mil

Intervenção da polícia ferroviária

Parte da população das cidadessatélite

Repressão pela polícia militar e revogação do aumento pelo governo do Distrito Federal

"multidão"

Intervenção da polícia militar, brigada de paraquedistas, prisão de 8 pessoas. Posicionamento do ministro dos transportes

Referência MOISÉS & MARTINEZALIER, 1977, p. 31 MOISÉS & MARTINEZALIER, 1977, p. 31 MOISÉS & MARTINEZALIER, 1977, p. 36

19 de julho RMRJ - estação 6 de 1975 Magno

Dia seguinte ao acidente na Estação Nenhuma, devido ao ostensivo patrulhamento Magno que deixa 14 10 mil usuários atingidos militar mortos e 370 feridos

Patrulhamento ostensivo com Polícia Militar, Polícia Ferroviária, Polícia do Exército, Bombeiros, Exército e Aeronáutica. Visita do Presidente Geisel à estação para que se tome providências.

MOISÉS & MARTINEZALIER, 1977, p. 39

7 de 9 fevereiro de 1977

Atrasos de ônibus

Depredação de 5 ônibus da viação Venda Nova 1 mil passageiros

60 policiais, bombas de gás lacrimogêneo.

NUNES, 1981, p. 95

Atrasos de ônibus

Depredação de dois ônibus

Declaração de apoio do Secretário Municipal de NUNES, 1981, Transportes para pressionar as empresas de p. 96 ônibus

12

Belo Horizonte

28 de março São Paulo de 1978

200 pessoas

6 de 16 dezembro de 1979

RMRJ - Estações Comendador Soares, Nova Iguaçu e Austin

3 estações incendiadas, 9 composições depredadas, sendo 4 destas incendiadas. Avaria de uma Destruição de estação sub-elétrica. 12 vagões composição, completamente destruídos, 12 com Cerca de 5 mil passageiros retenção dos trens possibilidade de recuperação e 35 atingidos parcialmente. Ataque à polícia militar e policiais feridos.

7 de 18 dezembro de 1979

RMRJ - Estação Agostinho Porto

Não informado

RMSP - Estação 9 de abril de 24 Engenheiro 1980 Gualberto 6 de 30 fevereiro de 1981 34

agosto de 1981

Pane elétrica no sistema

RMSP - Estações Atraso e Artur Alvin e Vila interrupção do Matilde sistema Salvador, Bahia

Aumento tarifário nos ônibus

Depredação de dois vagões

Cerca de 100 pessoas

Depredação e incêndio. 4 estações atingidas, uma delas incendiada. 5 composições, em um 4 mil pessoas total de 30 carros, atigindas, dois vagões queimados. Bilheterias saqueadas. Cinco vagões e uma estação incendiada, depredação de 50 ônibus, um carro, uma 15 mil pessoas kombi, 4 viaturas da polícia e uma do corpo de bombeiros, saque das bilheterias. Incêndio de 10 veículos e depredação de 500.

População soteropolitana usuária do transporte coletivo

Polícia Militar, Exército e Bombeiros

NUNES, 1981, p. 98

Sem intervenção

NUNES, 1981, p. 99

Repressão da polícia militar e do corpo de bombeiros

NUNES, 1981, p. 101; AFFONSO, 1987, p. 101

As forças militares não conseguiram intervir. Declaração de pesar do Ministro dos Transportes.

NUNES, 1981, p. 103

Repressão das forças militares, 54 presos, 48 feridos, 1 morto. Posteriormente recuo e redução parcial da tarifa pela prefeitura.

AFFONSO, 1987, p. 104

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Foram selecionados onze ocorridos de um universo de 34 sistematizados, para se dar a dimensão dos acontecimentos. Todos eles atingem grandes proporções de população envolvida e veículos danificados. A exceção é o evento de número 12, que teve uma dimensão relativamente baixa e está compilado devido à inédita reação do poder público: a declaração de compreensão da depredação realizada pelo secretário municipal de transportes de São Paulo para pressionar as empresas de ônibus. A característica fundamental de todos eles, entretanto, é sua enorme repercussão em todas as esferas de poder da sociedade – da midiática à governamental. Nesse sentido, os quebra-quebras da década de 1970 são ocorridos impossíveis de serem ignorados ou censurados pelo governo federal. Em outras palavras, os governantes são obrigados a dar uma resposta. Assim, a primeira medida que invariavelmente o Estado tomou em relação a todos esses ocorridos foi o aumento da repressão e do contingente de segurança. Na impossibilidade de uma solução imediata das causas, se apela para a contenção à força dos sintomas, em uma postura historicamente reincidente das elites brasileiras. Dessa maneira, aparatos como Polícia Militar, Polícia Ferroviária Federal, Polícia do Exército, Infantaria do Exército, Corpo de Bombeiros, Infantaria da Aeronáutica e até a Brigada de Paraquedistas do Exército foram mobilizados na tentativa de conter e evitar os tumultos. A eficácia dessas medidas foi bastante volátil, e muitas vezes a repressão não foi capaz de conter o ímpeto de destruição da multidão. De fato, diversas vezes a própria repressão parecia não dar alternativa à população: Carecendo de meios para atingir diretamente o agente responsável pela gestão dos serviços de transporte que lhes são oferecidos – o próprio Estado – devido à relação de forças existentes, as massas populares manifestam sua revolta depredando aquilo que está a seu alcance imediato, os trens e as estações. A presença constante e maciça das forças repressivas, assim como a ausência de órgãos legítimos de reivindicação, não permitem outra maneira de agir. (MOISÉS & MARTINEZ-ALIER, 1977, p. 33).

A exemplo do que ocorreu no grande quebra-quebra de 1947, não faltaram momentos em que as autoridades atribuíssem as revoltas a indivíduos infiltrados e insidiosos comunistas que insuflavam as massas, e procuravam fazer o “estouro da boiada”. Entretanto, na maioria das vezes, depois de várias apurações, a própria polícia se vê obrigada a admitir que as depredações se deram de forma não premeditada. Essa primeira postura do poder público foi, em várias ocasiões, sucedida pela admissão de que o sistema de fato era precário e que medidas emergenciais precisavam ser tomadas. Mais do que isso, em vários momentos a situação de revolta e instabilidade 136

se tornava tão alarmante que foi necessária a presença imediata dos políticos responsáveis para contornar a situação. O caso mais exemplar desse cenário se dá no incidente de número 6 da tabela apresentada: depois de uma semana de intensas depredações, um trem suburbano descarrila, matando 14 pessoas e ferindo outras 370. O temor pela revolta popular faz o então Presidente da República, general Ernesto Geisel, se dirigir imediatamente à sede da Rede Ferroviária Federal (RFF) e convocar o ministro dos Transportes, o presidente da RFF, o governador do estado, o ministro da Justiça e os comandantes do I Exército e I Distrito Naval (cf. MOISÉS & MARTINEZALIER, 1977, p. 39). Estava em jogo, como se vê, a própria estabilidade do regime de poder de então. É necessário também situar nas depredações o papel indireto do sistema de ônibus, hegemônico no contexto do sistema de transportes metropolitano. São recorrentes os relatos de aumento significativo no número de passageiros dos trens metropolitanos quando das majorações tarifárias dos ônibus, que seguiam uma dinâmica diferente daquela do serviço estatal. Exemplo claro, a semana de intensas depredações no Rio de Janeiro em dezembro de 1979 ocorreu em um contexto em que tanto as tarifas dos trens como as dos ônibus foram majoradas em um intervalo muito curto. Mais caro, o preço da circulação no ônibus obriga uma população em crescente pauperização a “optar” pelo trem suburbano, que não tem capacidade física de suportar a sobrecarga. Por fim, há um componente em todo o contexto das revoltas e dos movimentos em torno do transporte no fim da ditadura que é necessário destacar: a forte presença da ética do trabalho em toda a população envolvida. Em um país em que era recomendável andar com uma carteira de trabalho para evitar a prisão por “vadiagem”, não é surpreendente que toda a lógica do transporte da metrópole – desde sua oferta aos movimentos organizados reivindicativos – se estruture em torno das atividades produtivas. No contexto da metropolização, o excedente estrutural de força de trabalho era evidente e, assim como no conceito de exército industrial de reserva de Marx, sistêmico ao processo de espoliação e concentração dos excedentes econômicos. Nesse sentido, a luta para garantir algum acesso no sistema formal era forte e passava também por ter condições concretas de vender sua força de trabalho: entre outras necessidades, era preciso chegar a tempo no expediente. É esse contexto que propicia o surgimento de novos atores em cena: Ainda distante dos movimentos urbanos mais amplos que caracterizariam a segunda metade dos anos 70, o que os usuários mais enfatizavam era a sua

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condição de trabalhadores submetidos à demora excessiva nos trajetos, entre a casa e o trabalho, dos ônibus, que, muitas vezes, não tinham condições de tráfego, enfrentando patrões que não aceitavam os problemas como justificativas para atrasos. (Fundação João Pinheiro, 1996, p. 244).

Não por acaso, desde marchinhas de carnaval a charges políticas, o tema do atraso do transporte como causa de demissão havia sido uma questão presente no cotidiano e no imaginário da população. Nas revoltas, é grande a presença de relatos sobre as demissões que os atrasos geravam, pois os patrões não aceitavam mais os bilhetes de atrasos emitidos pela Central. Com essa lógica profundamente arraigada no inconsciente da população, o estabelecimento de uma relação unívoca entre transporte e produtividade reforça a imagem de que a tarifa é de fato necessária e inibe outras formas de apropriação do espaço, por lazer, ócio ou errância. Entretanto, é em torno da lógica do trabalho, e em meio a um cenário de revoltas esporádicas, que os movimentos sociais ganharão força no fim da década de 1970. 2.4.2. - Os Movimentos Reivindicativos por Transporte Coletivo Em meio à crise econômica e urbana, uma nova forma de organização passa a emergir nas periferias das cidades. Esses novos atores em cena possuíam um forte sentimento comunitário, calcado na necessidade de construírem para si os próprios meios de consumo coletivo dos bairros que estavam formando, e combinavam elementos históricos das organizações políticas pré-64 com experiências de resistência vividas no período autoritário. Nesse cenário é de se enfatizar o papel da igreja católica, por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), da Ação Católica Operária (ACO) e da Juventude Operária Católica (JOC) que, dentre outras ações, fomentava a mobilização popular por meio de sua própria infraestrutura, capilaridade e legitimidade perante a população. Dessa forma, a luta é fortemente territorializada e ganha conteúdo na reivindicação por melhores condições urbanas em cada bairro em formação. Além da moradia, o transporte se apresenta como a principal necessidade urbana nesse contexto. Sua preeminência no cotidiano dos moradores faz com que estes se associem e criem grupos para lutar especificamente pelo transporte coletivo. Assim, para todos os efeitos, no período que vai do fim da ditadura até a redemocratização, os movimentos que se organizaram para reivindicar melhoria na qualidade e no quadro de horários do transporte, lutar contra aumentos tarifários, pela criação de novas linhas e aumento da frota, serão caracterizados aqui como “Movimentos Reivindicativos por Transporte Coletivo” (MRTC), para se utilizar a caracterização feita por Nazareno 138

Affonso em sua dissertação Chega de enrolação, queremos condução! (1987). É importante notar que essa denominação revela dois aspectos principais: em primeiro lugar, é a primeira vez que se constituem movimentos para tratar especificamente da questão do transporte urbano. Alvo de revoltas constantes na história urbana brasileira, em outros momentos o transporte coletivo esteve na pauta de diversas organizações, como partidos, sindicatos e entidades estudantis. Estas, porém possuíam um horizonte de transformação mais amplo e priorizavam essa pauta conforme a conjuntura política de então. Em linhas gerais, essas organizações mais amplas se dedicavam ao tema do transporte apenas quando algum fator novo ocorria, como um aumento tarifário, acidentes ou revoltas populares. Em segundo lugar, os MRTC estruturavam sua organização a partir de questões pontuais - mas imprescindíveis - do sistema de transporte coletivo, tais como a reivindicação de uma nova linha, aumento do quadro de horários, ônibus novos, ou a diminuição da tarifa. Em seus primeiros anos, raramente as reivindicações se davam no questionamento do sistema de transporte público como um todo, no que tange, por exemplo, sua forma de concessão e de remuneração. Sobre esse aspecto, entretanto, a presente pesquisa constatou que com o passar dos anos e a ampliação geográfica das articulações políticas, os movimentos que se consolidaram chegaram de fato a fazer propostas mais amplas sobre mudanças sistêmicas, bem como a disputar aspectos técnicos. Por fim, ainda nesse sentido, é importante ressaltar que os MRTC, por sua especificidade na trajetória urbana brasileira, não questionavam o sistema de mobilidade urbana como um todo. Isto é, aspectos como a prioridade para os carros, a disputa entre os modos de transporte, a perspectiva de obras rodoviaristas e principalmente a necessidade cotidiana de longos deslocamentos não compunham a pauta de discussão e questionamento dos MRTC. Como uma linha geral, como revela o emblemático título da obra de Nazareno, o que os MRTC queriam eram condições de deslocamento na cidade, não importando a forma; queriam a oferta de transporte entre a casa e o trabalho, especialmente. A mobilidade urbana como tema, conceito e questão social só irá emergir duas décadas mais tarde. O transporte por ônibus detinha a hegemonia nos deslocamentos, e seu processo de expansão, como explicitado neste trabalho, seguia uma lógica específica que conformará também a forma de atuação dos MRTC. O veloz processo de crescimento demográfico e urbano conformava, para as empresas de ônibus, um mercado cativo em 139

contínua expansão. Assim, na metropolização acelerada, a disputa das empresas de ônibus era para garantir a sua área de atuação e as condições de expandi-la, por isso o papel de “pioneiras” urbanas. Uma vez que era garantida por uma empresa a operação das principais linhas de uma periferia em expansão, embora em um primeiro momento elas pudessem se apresentar como deficitárias, o que se verificou foi uma contínua criação de ramais (extensões de linhas) para os bairros nascentes no entorno. Como a população não tinha nenhuma outra opção para se deslocar, essa dinâmica seguia a lógica do menor custo possível, com o aumento da taxa de ocupação dos veículos. O caso de Belo Horizonte apresenta bons exemplos dessa dinâmica na década de 1970. Assim, as duas regiões mais populosas e pauperizadas que estavam se consolidando na capital mineira – Barreiro, ao sul, e Venda Nova, ao norte – tinham a maior parte de suas linhas de ônibus controlada por apenas uma empresa em cada área: a viação “Barreiro de Cima” e a viação “Venda Nova”, respectivamente. A relação entre empresa de ônibus, produção do espaço e mobilização popular será fundamental para ambas as regiões, mas ocorrerá de maneira diferente em cada uma. Em Venda Nova, no ano de 1977, a depredação de cinco ônibus por mais de mil passageiros revoltados com o atraso de mais de duas horas (evento de número 9 na tabela) gerou grande repercussão e debate na cidade, com medidas imediatas por parte da empresa (compra de mais 10 veículos) e um pacote de investimentos e financiamentos por parte do governo federal e estadual (cf. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 252). É possível que, embora fosse continuamente pleiteado para a região o fim do monopólio da viação Venda Nova e a tarifa única, o destensionamento da situação a partir das medidas anunciadas fez com que a organização dos moradores não avançasse mais e tampouco se unificasse entre os bairros, como ocorreu em outras regiões. Já o caso do Barreiro se assemelha ao dos movimentos que se formavam nas cidades periféricas da RMSP, como Embu e Taboão da Serra, estudados por Nazareno Affonso. Nessa região belo-horizontina, foi a partir de um instrumento de comunicação eficaz e amplo - o Jornal dos Bairros - que a condição do transporte público na região começa a ser sistematicamente denunciada por moradores que leem e escrevem ao periódico. Identificando um dos principais problemas da região, o jornal realizou uma pesquisa em mais de 30 bairros para aferir as condições do transporte, reunindo assim elementos concretos para constatar o que era evidente no cotidiano: ônibus superlotados

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e precários, percursos longos e baldeações, passagens caras, más condições de trabalho para motoristas e cobradores, etc. No município de Embu, no ano de 1979, o papel de instrumento de comunicação foi assumido pelas CEBs que, a partir de uma mobilização por meio de panfletos e de porta em porta, começa a debater os problemas cotidianos do transporte. Da mesma maneira que no Barreiro, uma pesquisa sobre as condições de deslocamento é realizada – dessa vez com o apoio do Grêmio Politécnico da USP – e os mesmo problemas são constatados, com ênfase para a questão das baldeações, um sintoma dos bairros periféricos. Assim, é interessante notar que a fórmula de pesquisa com moradores e trabalhadores foi seguida por diversos outros MRTC e constituiu um elemento de partida e mobilização. De fato, é possível traçar um formato comum dos MRTC em São Paulo e em Belo Horizonte77, tanto nos seus aspectos organizativos como em suas principais reivindicações: ambos partem de pesquisas e tentativas de comunicação mais amplas (1º momento) e a partir dos resultados iniciam reuniões de mobilização comunitária (2º momento). Essas reuniões, por meio também de um trabalho de agitação e panfletagem, tendiam a crescer e se estruturar em reuniões mais amplas com a participação de muitos bairros (3º momento) que, por sua vez, organizam assembleias nas quais convocam as autoridades responsáveis pela resolução do problema (4º momento) e acarretam assim uma reação, nem sempre consequente, dos governantes (5º momento). As reivindicações também coincidem nas periferias de São Paulo e Belo Horizonte: além do já esperado pedido pelo aumento do número de ônibus, melhoria dos veículos e redução na tarifa, invariavelmente são requisitadas linhas diretas para o centro da cidade. Essa reivindicação é sintomática e demonstra a maneira como a expansão do serviço pelas empresas nas periferias se dava por meio de ramais e linhas alimentadoras, com baldeações. A transferência do tempo de espera do veículo para o usuário é, como se vê, uma antiga estratégia dos empresários para a simultânea ampliação e manutenção do monopólio do sistema. É a partir dessas semelhanças que os principais fatos da trajetória de luta desses movimentos podem ser narrados: no começo 77

É importante ressaltar que, apesar de seguirem a mesma dinâmica, reivindicações em São Paulo e em Belo Horizonte têm ordens de grandeza distintas. Influir em um sistema do porte da cidade de São Paulo é consideravelmente mais difícil do que em um do porte da cidade de Belo Horizonte. A dificuldade de se obter retornos a partir da economia de escala, como debatido no capítulo 1, torna o sistema mais avesso a alterações.

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de 1978, reuniões comunitárias no Barreiro – em que comparecem mais de 22 associações comunitárias e de 600 pessoas, com a presença da Secretaria Municipal de Transportes e do dono da viação Barreiro de Cima – exigem a volta das linhas diretas para o centro e concorrência entre as empresas, o que ocorre efetivamente um ano depois (cf. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, pp. 256-260). Já na cidade de Embu, em fevereiro de 1979, uma assembleia é realizada como resultado de mais um mês de reuniões e nela comparecem 500 pessoas. Diante da ausência das autoridades competentes, realiza-se uma manifestação com 200 pessoas em frente ao órgão responsável pelo transporte público. Abaixo-assinados com mais de 10 mil assinaturas são instrumentos fundamentais em ambos os casos. A mobilização dá resultado e a linha direta para São Paulo é conquistada, embora seja retirada de circulação nove meses depois (cf. AFFONSO, 1987, cap. 5). Nos últimos anos do regime militar, experiências como a de Embu e do Barreiro se repetiram em vários municípios e bairros periféricos das grandes cidades do país78. Dentro de um contexto de pressão pela abertura democrática e pela conquista de direitos, os MRTC se colocaram como movimentos pioneiros de questionamento e diálogo para a resolução de problemas concretos, assemelhando-se aos movimentos de mães da periferia e aos de luta contra a carestia. Sua experiência era inédita para muitos de seus participantes, que tinham se formado politicamente nos anos de ditadura militar. Os resultados concretos que eram alcançados, como implementação de novas linhas, mudanças de trajetos e melhorias nas condições do transporte em geral, davam a dimensão da capacidade política latente na luta e na organização. Por outro lado, os labirintos burocráticos com que estes movimentos muitas vezes se depararam, bem como a alta concentração de poder na mão de poucos governantes e a ineficácia de vários instrumentos de luta dos quais lançaram mão – em especial os abaixo-assinados – constituíam um aprendizado sobre os limites concretos da luta por questões setoriais em um âmbito institucional. De fato, muitas das lideranças comunitárias que surgiram nesses movimentos acabaram se engajando em processos de transformações mais amplos e em disputas eleitorais, muitas vezes arrefecendo a própria força de reivindicação de seus bairros em favor de algo mais amplo (cf. FUNDAÇÃO JOÃO

78

Nas duas obras analisadas, são ainda citados MRTC nos municípios de Contagem, Ibirité, Osasco, Guarulhos, Taboão da Serra, Santo André, Carapicuíba, São Bernardo, Mogi das Cruzes e Mauá. Além de bairros como Jardim América, Vila Ventosa, São Domingos em Belo Horizonte e a região Leste em São Paulo.

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PINHEIRO, 1996). Dessa maneira, um problema que vai se mostrar comum na história dos movimentos em torno do transporte público surge já nas primeiras organizações: como manter a mobilização popular forte em um contexto de longo prazo com grande disparidade de correlação de forças? 2.4.3. – As Associações de Usuários de Transporte Coletivo Na trajetória dos MRTC na década de 1980, com o impulso da criação de novos partidos e sindicatos livres das amarras autoritárias, a disputa institucional ganha força e, em vários locais, a partir da influência da experiência do Partido dos Trabalhadores, o passo seguinte foi a instituição de associações de usuários. A primeira Associação dos Usuários do Transporte Coletivo (AUTC) do país foi fundada em novembro de 1983 no município de Santo André (cf. AFFONSO, 1987, v. II, p. 38), e estabelece como principal objetivo a construção de uma estrutura de fiscalização da qualidade e do preço do transporte, a partir de controle da planilha de preços e do quadro de horários. Nesse sentido, a AUTC de Santo André identifica e busca dar resposta a uma das principais questões que concernem à luta pelo transporte público: a necessidade de uma mobilização constante, abrangente no tempo e no espaço, para fiscalizar e garantir efetividade em um serviço que é perene e cotidianamente reproduzido. A experiência passa a se multiplicar nos municípios da RMSP, todas com clara influência do Partido dos Trabalhadores. Em Guarulhos, a AUTC é criada depois do trabalho de uma Comissão Especial sobre a Política de Transporte no Município, formada por vereadores do PT, que propõe, entre outras medidas, a criação de uma empresa municipal de transporte. Em Osasco, articula-se um “Conselho Popular Comunitário” que atua diretamente na fiscalização do serviço, por meio de uma Comissão de Tarifas, com 380 fiscais que buscam fiscalizar os custos do transporte em tempos de inflação alta. No município de São Paulo, o movimento passa a se estruturar fortemente na Região Leste, onde, novamente com apoio do Conselho Estadual de Transportes do PT, cria-se um boletim informativo denominado Sucata, que convocava a formação de uma AUTC na regional. Outros informativos são criados, como parte do acúmulo da experiência bem-sucedida em outros lugares, tais como Catraca na região Sul de São Paulo, e O Passageiro, este realizado pela articulação dos movimentos na RMSP: a Comissão Metropolitana de Usuários de Transporte (COMUT) (cf. AFFONSO, 1987, cap. 6). 143

A Associação de Usuários de Transporte Coletivo da Grande Belo Horizonte é criada alguns anos depois, em maio de 1987 e inicia sua luta contra os aumentos cada vez mais frequentes de tarifa. Para tanto, articulava manifestações de rua com ações na justiça e pressão na Assembleia Legislativa e na Câmara Municipal de Belo Horizonte. Em julho de 1989, a AUTC realiza o “I Seminário Sobre a Luta pelo Transporte Coletivo na Grande BH” estabelecendo uma pauta prioritária de reivindicações: estatização do transporte coletivo; criação de uma tarifa social; criação de um fundo de subsídio ao transporte coletivo e participação popular nas decisões. (cf. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 305). A construção de uma articulação regionalmente mais ampla continua ao longo dos anos 1980. Percebendo a dificuldade de manutenção das conquistas pontuais dentro dos MRTC, bem como o grande desgaste que a fragmentação e dispersão dos movimentos gerava nos militantes e mesmo no foco das lutas, há uma tentativa de reverter um arrefecimento que as lutas tiveram no meio da década, a partir da criação de articulações nacionais (cf. MANCE, 1991). Nesse sentido é que surge a Articulação Nacional da Luta pelo Transporte (ANLUT), como uma tentativa de se contrapor aos avanços dos empresários organizados a nível nacional na NTU e na CNT. Assim, realiza-se em 1988 o “I Encontro Nacional de Lutas por Transporte”, em Fortaleza. O Encontro definiu quatro pontos de ação para a luta pelo transporte: 1 - Estatização das empresas com controle popular, a partir do controle público da receita e da remuneração por quilômetro rodado; 2 – Estabelecimento da tarifa social com um valor de no máximo 6% do salário mínimo; 3 – Melhoria do serviço por meio de participação popular na criação de novas linhas e melhoria da infraestrutura viária; e 4 – controle tarifário e definição das prioridades de investimento a partir de um Conselho de Transporte, com participação dos trabalhadores rodoviários, legisladores e movimentos sociais. (Cf. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 304). Entretanto, a avaliação posterior é de que essa articulação teve pouca efetividade em encaminhar uma pauta a nível nacional para uma questão da qual as esferas de governos federal e estaduais estavam cada vez mais se retirando. Como se percebe, o processo de criação de AUTCs e de articulação de movimentos locais pressupunha uma tentativa mais ampla de integração de mobilizações populares com uma disputa institucional por mudanças efetivas. Buscavase, assim, o diálogo entre um trabalho de base nos bairros periféricos com uma disputa 144

das diretrizes técnicas e burocráticas do sistema. Em grande medida, na década de 1980 essa articulação encontrava ressonância e sua própria força motriz em organizações mais amplas, das quais o Partido dos Trabalhadores era o principal exemplo. Essa lógica teve grande força durante a década de 1980 e teve seus principais desdobramentos e desafios nas experiências de administrações municipais do PT, a partir das prefeituras de Celso Daniel em Santo André e de Luiza Erundina em São Paulo. Por outro lado, esse processo apresentou uma série de contradições intrínsecas ao seu próprio desenvolvimento, que giravam em torno do papel dos movimentos populares nos projetos políticos mais amplos. Durante grande parte da década de 1980, o movimento popular foi enxergado pelas forças de esquerda e de direita como sendo um elemento tático para a construção de um projeto mais amplo. No caso das forças políticas de direita, a intenção em relação aos movimentos populares de bairros era conservadora, isto é, mantê-los atrelados a uma política de favores e de manutenção do status quo da estrutura de poder, que inevitavelmente teria que dialogar com a periferia na nova correlação de forças políticas da redemocratização. Já a esquerda, em um primeiro momento, concebe os movimentos populares como um elemento de fortalecimento de suas estruturas estratégicas – o partido e o sindicato – que seriam os únicos capazes de criar as condições para a superação do capitalismo, a partir de um entendimento de que a única contradição sistêmica a ser superada é aquela entre capital e trabalho. Assim, muitas vezes os resultados e o desenrolar das lutas dos MRTC são deixados em segundo plano, sendo vistos até como uma sementeira de lideranças, cujas melhores deveriam posteriormente ser melhor aproveitadas na ação sindical ou partidárias – esferas consideradas realmente estratégicas para a transformação estrutural do país. (MANCE, 2007, p. 4).

De fato, a falta de uma concepção estratégica dos movimentos populares, de construção do movimento como algo em si mesmo, que, portanto, deve manter autonomia e independência na sua atuação em relação a outros órgãos, gerará uma série de contradições. Uma das mais relevantes foi a incapacidade de manter a continuidade da mobilização popular por mudanças, submetida muitas vezes a uma espécie de permutação para assumir compromissos institucionais mais complexos. Se, por um lado, havia o entendimento da necessidade de propostas sistêmicas e globais, a dificuldade de conciliar essa movimentação com conquistas reais de mudanças, mesmo que pontuais, e com um processo de engajamento da periferia deixava o movimento muitas vezes à mercê de uma atuação majoritariamente “técnica”. Essa contradição é uma dificuldade 145

vivida pelo Movimento Tarifa Zero em Belo Horizonte, como se verá no capítulo seguinte. Em que pese o fato de estes não estarem atrelados a nenhuma estrutura governamental ou partidária, a análise que se segue, da Fundação João Pinheiro sobre o fim da década de 1980 poderia, em grande medida, ser aplicada também aos dias de hoje: Das reivindicações tidas como fundamentais, vê-se que a discussão avançara na percepção das deficiências e dos limites de uma luta voltada para questões imediatas e localizadas, buscando a constituição de uma política e de um planejamento global. Essa nova fase do movimento se deu de forma totalmente diversa das lutas dos períodos anteriores. Aos poucos os integrantes desse movimento foram suprindo a falta de um saber técnico imprescindível à discussão de questões, como planilha de custos, definição de tarifas, administração da CCT, mas a carência de recursos financeiros e o não-envolvimento da população dificultavam sua ação. O movimento funcionou muito mais em nível institucional, prestando depoimentos junto a CPIs do transporte e movendo ações na Justiça. A população nunca foi realmente mobilizada para a obtenção de políticas mais benéficas aos usuários. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1996, p. 305).

De maneira mais ampla, essa mobilização encontrou seu limite na resiliência do capital do setor de ônibus que soube também se organizar fortemente e utilizar dos elementos políticos e econômicos que possuía para consolidar vantagens econômicas em um contexto de desmonte neoliberal. De fato, observa-se aqui que, na passagem da década de 1980 para a de 1990, estava em jogo uma mudança de paradigma das formas de reprodução do capitalismo. A maneira pela qual as diversas classes sociais e os setores do capital irão lidar com as rápidas mudanças em um processo de crise e reestruturação produtiva é o que definirá algumas das diretrizes do momento seguinte. Na Europa e nos Estados Unidos, o desmonte do Estado de bem-estar social avançava rapidamente em conjunto com um processo de flexibilização da produção e de consequente liberalização da distribuição dos excedentes, que já não mais se concentravam na esfera estatal e eram repartidos entre capital e trabalho. Profundamente dependente da economia global, em virtude de sua pauta de exportações e da dívida externa, o Brasil tinha a capacidade fiscal e de investimento público sistematicamente minadas. Nesse sentido, a proposta de estatização do transporte coletivo, presente na formulação de todas AUTCs e em suas articulações regionais e nacional, se mostrava politicamente frágil e pragmaticamente distante. A figura do Estado como produtor direto de bens e serviços é um elemento bem presente no imaginário do desenvolvimento econômico do século XX, seja este afeito a perspectivas capitalistas ou comunistas. No Brasil, é sempre importante lembrar que o milagre econômico do período da ditadura militar (1968-1974) foi o período em que o 146

Estado mais atuou e cresceu sua participação na economia (cf. EVANS, 1980). Distante de se estabelecer na economia para proporcionar acesso a direitos, a atuação estatal visou garantir um excedente que seria facilmente manejável na atração do capital estrangeiro e em obras de infraestrutura. A crise estrutural do modo fordista de produção fez com que o Estado autoritário brasileiro passasse a prerrogativa do controle dos excedentes econômicos diretamente para o capital privado. De fato, como se viu no capítulo 1, a única tentativa federal de intervenção no setor dos transportes públicos rapidamente se desestruturou a partir de 1984. Dessa maneira, a potência do capital privado, que se articulava a nível nacional e flexibilizava sua atuação, dificilmente poderia ser efetivamente contraposta por um modelo de estatização rígido e sem capacidade de inversão de recursos. Apesar do crescimento urbano e demográfico ter-se arrefecido sobremaneira, essa proposta em muito se assemelhava àquela que se experimentou em São Paulo na década de 1940: na prática, a estatização não dava conta de prestar o serviço, inclusive porque era continuamente minada pela força das empresas privadas. Entretanto, há que se reconhecer o mérito da proposta de estatização que é consequência da articulação nacional de luta pelo transporte na década de 1980. Em primeiro lugar, ao estabelecer uma meta cuja efetivação concreta estava distante no horizonte político, a ANLUT reconhecia que era necessário mudar estruturalmente as condições políticas e econômicas brasileiras, configurando assim uma perspectiva revolucionária na qual incluía também a expropriação dos detentores dos meios de produção. Em segundo lugar, apesar da força do termo “estatização” remeter a um imaginário de autoritarismo, a ANLUT reconhecia a imperativa necessidade de construção do controle popular dos transportes como única maneira de prestar um serviço digno. Assim, em suas formulações, os MRTC sempre frisavam a construção da prestação do transporte a partir de um “processo progressivo e consequente de gestão através de um Conselho de Trabalhadores e de Movimentos Populares de Transporte” (AFFONSO, 1987, v. II, p. 47) no qual o controle popular da arrecadação e da remuneração dos serviços tinha papel central. Essa proposta é essencial para o desenvolvimento de um novo sistema de transportes, e, ainda que tenha tido grandes dificuldades de existir na prática dos governos municipais de perspectiva democráticapopular da década de 1990, é um dos principais elementos resgatados pelos novos movimentos sociais na década de 2000. 147

2.5. Convergência das narrativas: aprendizados e contradições dos governos democrático-populares na década de 1990. Nessa dupla narrativa da trajetória do transporte público que esta dissertação busca realizar, por um lado por meio do processo de formação capitalista das empresas de ônibus e por outro por meio do processo de mobilização popular no contexto da produção do espaço, é revelador que, para a década de 1990, os dois eixos convirjam em um só debate. Em que pesem todas as contradições do avanço do neoliberalismo no fim do fordismo periférico, a experiência democrático-popular de governos municipais a partir de 1988 se estabelece como uma primeira tentativa real de mudança no setor dos transportes e leva consigo o acúmulo das mobilizações populares anteriores. A lida com as contradições das esferas governamentais, da democracia representativa, do próprio arranjo interno dos movimentos sociais, bem como do poder e alcance do capital privado seriam os grandes desafios que marcarão essa convergência entre o Estado como esfera mediadora e um primeiro projeto político das mobilizações populares. 2.5.1. – Tarifa Zero e a “ética do trabalho” Na década em que os padrões de crescimento urbano, crescimento demográfico, desenvolvimento econômico e mobilidade urbana mudam significativamente, não houve nenhuma revolta popular de maior vulto79 que pudesse ser considerada como inauguradora de uma nova dinâmica entre o sistema de transportes, a produção do espaço e as mobilizações populares. Se essa ausência é um sintoma de um processo de transição, a experiência dos movimentos em relação aos novos governos também pode indicar outros aspectos. Além disso, a atuação do movimento estudantil, em especial o de secundaristas, em torno da pauta do transporte – especificamente da gratuidade de deslocamento para estudantes – será um novo elemento nessa dinâmica, que deixará consequências na formação dos novos movimentos na década de 2000. No conjunto das experiências de governo, o que está colocado em perspectiva é a questão da autonomia dos movimentos populares em criarem e avançarem nas suas próprias pautas, independentemente de questões pragmáticas de projetos políticos mais amplos, tais como governabilidade, conciliação de interesses, entre outros.

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Como “maior vulto” entenda-se revoltas e depredações que interrompam significativamente o funcionamento normal do sistema de transporte e tenham grande repercussão midiática. As depredações esporádicas de ônibus e trens continuavam, ainda que em pequena escala, como ressalta, por exemplo, Lúcio Gregori (2008).

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Dessa forma, continua a ser emblemática e reveladora a experiência do projeto Tarifa Zero na prefeitura de Luiza Erundina em São Paulo, apresentada em suas linhas gerais no capítulo anterior. Singer (1996) e Gregori (2008, 2010) relatam os debates e reações internas do governo do PT em sua primeira experiência administrativa. Alheio às já então agressivas disputas internas no partido, Lúcio Gregori se torna a terceira pessoa a assumir a pasta da secretaria de transportes do município naquele governo, após complicadas passagens de seus antecessores, e é encarado naquele momento como uma solução provisória para uma situação crítica. Naquele contexto, além da caótica situação de um transporte público absolutamente sobrecarregado, o governo do PT já experimentava as contradições entre governo e movimento popular, que se manifestavam, por exemplo, nas estruturas de participação e planejamento do sistema de transporte, cooptadas e sem autonomia. A exemplo do que irá ocorrer com as Comissões Regionais de Transporte e Trânsito (CRTTs) de Belo Horizonte nesses últimos anos, Lúcio relata o caráter clientelista do departamento de Ação Comunitária da CMTC: Com base no negócio de movimentos populares e democracia participativa, a CMTC entrou na onda e fez um departamento que era a Ação Comunitária, para ir aos bairros ouvir opiniões, fazer reuniões com os usuários, funcionando como captador dos problemas para ajudar a melhoria dos serviços. Proposta até interessante. Só que, na prática, essa Ação Comunitária acabava sendo ligada a vereadores, ou candidatos a vereadores, ou gente que tinha projeto político e que era ligado naquele pedaço. Era assim: o vereador chegava: “Pô, aquela linha de ônibus termina aqui, precisava fazer uma extensão pra lá”. A Ação Comunitária vinha, fazia um relatório [...] e o que se fazia? Pegava-se a linha de ônibus da CMTC – a gente chama isso de extensão – pegava dois ônibus em certas horas, ia mais adiante e voltava. Como você não acrescentava nada, na verdade, o serviço ia ficando cada vez mais embananado. Porque você tinha tirado dois ônibus daqui, esse serviço piorava e aquele quebrava um galho. Mas acho que fazia parte de um esquema de articulação política eleitoral. (GREGORI, 2008)

A ausência de uma solução sistêmica privilegiava alternativas pontuais, que eram encaradas por sua vez como um elemento de troca de favores na estrutura institucional do governo. A solução, necessária, de demandas imediatas aparece como um elemento de esvaziamento da autonomia dos movimentos, ao reforçar uma estrutura hierárquica de poder. Nesse sentido, há uma disputa interna nos governos democráticopopulares na relação com os movimentos populares na qual prevalecia uma visão que não reconhecia como central no novo projeto político a construção do empoderamento desses movimentos - isto é, torná-los centrais e estratégicos. Mais do que isso, já naquele momento, a concepção tática de um movimento popular como base de apoio de 149

um projeto político mais amplo que chegava finalmente ao poder transitava sem muita dificuldade para uma concepção conservadora desses próprios movimentos, na qual a manutenção dos poderes e privilégios passa a ser o objetivo em si. Uma certa ética do trabalho, enquanto elemento que legitima a ascensão social do trabalhador na dinâmica capitalista, já então se fazia presente de maneira subjetiva, mas se explicitaria nos debates em torno da proposta de tarifa zero. Ao apresentar a proposta de financiamento indireto do transporte público, com subsídio integral no momento da utilização, Lúcio Gregori ganha a adesão imediata e entusiástica da prefeita Luiza Erundina, que vê no projeto a síntese da proposta de redistribuição de renda petista, em uma proposta radical e ousada (cf. SINGER, 1996, cap. 7). Apesar da posição da prefeita, a recepção interna no PT foi bastante difícil. Os motivos alegados para a animosidade com o projeto são variados, desde a “falta de debate interno” e a ausência da proposta no programa original de governo à dimensão orçamentária e política da proposta. Entretanto, ao se analisarem os depoimentos em torno da proposta, pode-se chegar à conclusão de que a principal resistência em relação à Tarifa Zero era a quebra com a lógica produtivista e de mercado que esta propunha para o transporte público. De fato, dentro e fora do governo, o que mais foi repetido é que “muita gente tomaria ônibus meramente para passear e bandos de jovens turbulentos aproveitariam a oportunidade para farrear, incomodando os demais passageiros” (SINGER, 1996, p.140). A lógica de que o transporte era ligado unicamente a necessidades produtivas e a uma ética do trabalho aparece, em toda sua clareza, na posição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando perguntado à época sobre o assunto, afirmando que “O trabalhador não precisa de ônibus de graça, o trabalhador precisa ganhar bem para pagar um sistema decente.”80 (cf. GREGORI, 2008). Arraigada por mais de um século de história de segregação urbana, a concepção do transporte enquanto mercadoria e não como um direito social se concretiza no fetichismo da tarifa, a imagem de que a qualidade do serviço é diretamente proporcional ao valor pago na sua utilização e de que o transporte, bem como o acesso à cidade, se caracteriza como um privilégio 80

16 anos depois, já como Presidente da República, Lula reitera sua fala, por ocasião de um protesto do MPL de Aracaju: "A idade é boa por isso. Quando a gente chega a ter 60 anos de idade, atinge a maturidade. Quando governa o Brasil, a gente tem seriedade. A gente não pode ficar entendendo que pode chegar um grupinho de pessoas e falar: ‘eu quero cinema de graça, eu quero teatro de graça, eu quero ônibus de graça’. Eu também quero tudo de graça, mas nós temos de trabalhar." E completou: "Me desculpem, mas a nossa massa encefálica é mais inteligente do que vocês pensam. Nós sabemos mais do que vocês pensam." (FOLHA DE SÃO PAULO, 2006)

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daqueles que se adéquam ao sistema e que por isso podem exercer seu poder de mercado (Cf. GREGORI, 2010). Mesmo no começo dos MRTC, a tarifa era questionada apenas pelo seu valor, e não por sua existência. Em uma passagem sobre o movimento em Embu, em 1979, Nazareno Affonso descreve que nas reividincações da comunidade Já havia sido decidido, em reuniões anteriores, que a luta deveria se voltar para a defesa do aumento das tarifas na mesma proporção do crescimento do salário. Argumentavam, porém, que o problema não é a tarifa, mas o salário miserável que recebe o trabalhador. (AFFONSO, 1987, v. II, p. 12, grifo meu).

A abolição da tarifa atinge um dos próprios fundamentos ideológicos do sistema de transporte urbanos, tal qual ele se formou no capitalismo periférico. É forçoso ressaltar, entretanto, que essa concepção que povoa o imaginário da população foi também registrada concretamente em experiências isoladas de linhas gratuitas de ônibus. Marcos Fontoura de Oliveira menciona o caso da Vila Fazendinha, região Leste de Belo Horizonte, onde, em 1995, foi criada uma linha de ligação dos moradores ao ponto final de uma linha já existente. Essa linha foi implementada de maneira gratuita, mas, a pedido das próprias lideranças comunitárias, a cobrança de passagem passou a ser realizada. A análise de agentes comunitários da BHTRANS é reveladora, nesse sentido: Numa região desprovida de atendimento de transporte, áreas de lazer, escola, com taxas consideráveis de desemprego e rodeada por favelas, a circulação gratuita dos ônibus tornou-se “o acontecimento”. Este passou a suprir outras necessidades, além daquelas consideradas reais. [...] Para os setores mais organizados, afeitos aos mecanismos de negociação com as instituições públicas, dotados de uma auto-imagem moralmente superior, fundamentada na ética do trabalho, a apropriação dos ônibus pelos “desocupados” era insustentável, uma vez que não podiam ocupar os lugares assentados e eram obrigados a conviver com a irreverência dos que não estavam trabalhando. (PEIXOTO & DUTRA, 1996, p. 39, citados por OLIVEIRA, 2002, p. 77, grifo meu).

Esse caso, bem como a má avaliação feita pelos usuários das seis linhas gratuitas de Cidade Tiradentes, em São Paulo, (cf. OLIVEIRA, 2002, p. 83), não pode ser tomado como uma dimensão da realidade de um projeto de tarifa zero para o Brasil. Nos casos citados, a lotação e a precariedade do serviço permaneceram ou pioraram, enquanto a lógica intrínseca da proposta é justamente a ampliação do sistema e a melhoria das suas condições. Por isso, é concomitante ao projeto a mudança da forma de contratação e remuneração do sistema como um todo, para que o poder público possa dispor e realocar os veículos conforme a demanda real e potencial. 151

De qualquer forma, as duas reações contrárias à Tarifa Zero apresentadas revelam concepções que se desenvolveram no seio dos movimentos populares da década de 1980 e irão ser fundamentais para explicar as políticas de transporte dos últimos 20 anos e a consequente motorização acelerada da sociedade brasileira. Quando reafirma a necessidade da tarifa para um transporte público de qualidade, Lula deixa transparecer o desdobramento da lógica do trabalho como a afirmação social do projeto político que estava sendo construído: o reconhecimento do mercado como instância provedora de direitos e cidadania. Em outras palavras, inverte-se o problema do capitalismo: o não-acesso ao mercado é tomado como um elemento de espoliação da população, e não o processo de mercantilização das relações cotidianas em si. Na década de 1990, em um contexto de avanço do neoliberalismo, no qual a desigualdade de renda e a pauperização avançaram fortemente, o acesso ao mercado se torna uma das principais bandeiras do PT e da grande maioria dos movimentos populares a ele ligados. A formulação de políticas públicas também passa por essa concepção, como se evidencia em teóricos como Ermínia Maricato e Francisco de Oliveira: Francisco de Oliveira destaca como especificidade da periferia capitalista sua formação sob uma racionalidade que, contraditoriamente, não se realiza. Ela afirma o mercado “como o lugar onde você exercita o seu direito e a capacidade de escolha” sem, no entanto, apresentar esse mercado que seria o lugar da autonomia (Oliveira, 2000). Essa reflexão tem uma evidência empírica clara no restrito mercado habitacional formal, que atinge menos de 50% da população brasileira, como veremos adiante. (MARICATO, 1999, p. 134)

O corolário dessa concepção é a ideia de prover acesso ao mercado para garantir os direitos fundamentais da população e seu desdobramento é o atual projeto neodesenvolvimentista. A paridade cambial, com o Plano Real em 1994, é o primeiro passo nesse sentido e as políticas de renda mínima e redistribuição de renda buscam dar acesso ao mercado para a população de baixíssima renda, sem, no entanto, buscar romper suas contradições. A renda distribuída é totalmente proveniente do trabalho enquanto fator produtivo, enquanto a renda do capital permanece intocada ou incentivada ao longo dos últimos 20 anos.81 A partir da lógica da renda, do mercado e do crescimento econômico (outro termo para a velha “acumulação de capital”) é que é possível explicar a política de transporte urbano por meio da solução individual

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A estrutura tributária continua altamente regressiva, incidente sobre o consumo e retirando até 40% do rendimento do trabalhador com dois salários mínimos. O capital, nesse sentido, continua auferindo grandes rendimentos, e em especial o capital financeiro, por meio do serviço da dívida que consome cerca de 48% do orçamento federal. (cf. AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA, 2012)

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motorizada que vigora no país há 20 anos, como mostrado no capítulo 1. Ao seguir a lógica neodesenvolvimentista, a frase de Lula dita em 1990, que pode ser tomada como a concepção política hegemônica dentro do PT à época e atualmente, poderia se metamorfosear, sem maiores esforços, para a seguinte hipotética afirmação que, ainda que fictícia, expressa bem a política de transportes das últimas duas décadas “O trabalhador não precisa de ônibus de graça, o trabalhador não precisa de ônibus, ele precisa ganhar bem para comprar um carro, ou uma moto na pior das hipóteses, para poder chegar ao trabalho.”82. Por boicote de toda a base aliada, a proposta de Tarifa Zero para São Paulo não chega nem ao plenário da Câmara Municipal, apesar de pesquisa encomendada pela prefeitura mostrar uma reversão no quadro de rejeição da ideia. Após uma campanha publicitária de esclarecimento, 65,3% eram favoráveis a proposta, contra um valor de 43% dois meses antes. (cf. GREGORI, 2008). O desgaste gerado na Câmara pelo não encaminhamento da proposta acaba por abrir caminho para a municipalização e a reforma tributária (cf. SINGER, 1996), mas é de se atentar que a deliberada morosidade de grande parte dos vereadores e da base do PT, inclusive desestimulando e mesmo repreendendo a atuação de Núcleos de Bairro Pró-Tarifa Zero, teve grande peso na derrocada da proposta. 2.5.2. – Estruturas de participação popular e os vazios organizativos Outra marca histórica dos governos municipais democrático-populares da década de 1990 é a criação inédita de elementos para a participação popular no planejamento e na gestão das demandas do transporte. Demanda dos MRTC desde a década de 1980, a consolidação dessas estruturas, entretanto, apresentará uma série de contradições. A primeira experiência no gênero, além da já citada “Ação Comunitária” da prefeitura de São Paulo, é o COMTAR – Conselho Municipal de Tarifas – proposto por Paul Singer quando secretário de planejamento da gestão Erundina. Esse conselho foi 82

Léo Vinícius, ex-militante do Movimento Passe Livre de Florianópolis e uma das referências para o debate do capítulo seguinte, resume a perspectiva lulista da seguinte maneira: “Essa é a concepção hegemônica no governo federal do PT: política para o trabalhador é política de poder aquisitivo, de acesso através da compra, de expansão do processo de conversão do valor de troca econômico em valor de trocasigno. A concepção que é deixada de lado é a da política para o trabalhador como política que amplia os direitos sociais, o acesso a bens e serviços gratuitos, fora da lógica da mercadoria. Se quisermos conceituar o lulismo, podemos resumi-lo na seguinte expressão: é a política ancorada na visão de mundo de que país desenvolvido não é aquele em que o rico usa transporte público, mas aquele em que o pobre tem carro.” (VINÍCIUS, 2014, p 14-5).

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concebido como um espaço de discussão técnica e política entre os diversos atores sociais interessados na fixação dos preços públicos, não apenas da tarifa de ônibus, mas também de aspectos como os contratos de coleta de lixo e as tarifas de táxi. Contava assim com a participação dos trabalhadores dos serviços, os empresários, a Câmara Municipal, órgãos da prefeitura e “entidades detentoras de capacidade técnica para acompanhar custos e assessorar a prefeitura neste campo.” (SINGER, 1996, p. 152). Conselho semelhante, voltado para a questão específica da Câmara de Compensação Tarifária, é criado na administração de Célio de Castro em Belo Horizonte e conta com a participação da AUTC da Grande BH, além dos sindicatos patronal e de trabalhadores rodoviários e setores empregadores, como o Sindicato das Empresas de Construção Civil (SINDUSCON) e a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL)83. Paul Singer considera que O COMTAR foi uma inovação institucional de peso. Constituiu um amplo foro de negociação de questões vitais para a cidade, em que a contraposição de interesses públicos e privados, gerais e setoriais interagia com dados concretos, indicadores de limitações objetivas que a vontade política não poderia violentar sem frustrar os seus próprios objetivos. [...] o COMTAR adotou como princípio que suas deliberações seriam tomadas por votos, que tanto os pareceres majoritários como os minoritários seriam enviados à prefeita e que ele se ocuparia de questões de procedimento, como o exame de planilhas de custo, o delineamento de políticas tarifárias e semelhantes, mas não o exame de questões pontuais e concretas, como o reajuste mensal de tarifas de qualquer natureza. (SINGER, 1996, p. 153).

Se de fato esses conselhos muitas vezes obtiveram resultados efetivos, como a redução concreta do preço da passagem de ônibus no caso de Belo Horizonte, sua proposta de conciliação de interesses e objetividade técnica pode gerar limitações que são de ordem política. Ao conferir peso igual tanto para setores representativos do capital como do trabalho, os governos partiam de uma pressuposição de equilíbrio de poder que não se encontrava na prática. O que se verificou ao longo dos anos, nas poucas estruturas representativas que sobreviveram dos governos democráticopopulares, é que, ou estas eram esvaziadas de suas atribuições, ou passavam a responder a uma estrutura orquestrada entre os interesses do capital e do governo, como é o caso do Conselho de Política Urbana de Belo Horizonte. As experiências de orçamento participativo, por sua vez, foram mais exitosas na questão do transporte. Em Belo Horizonte, as nove CRTTs criadas no ano de 1994, uma para cada regional da cidade, possuíam um orçamento próprio do qual podiam dispor 83

Conselho Fiscal da Câmara de Compensação Tarifária de Belo Horizonte, criado pelo decreto nº 9.098 de 31 de janeiro de 1997.

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para intervenções no trânsito, obras viárias e mudanças no transporte público. Esse último ponto é uma diferença fundamental com a atual estrutura existente na cidade, que, pela mudança na concessão do sistema, não consegue incidir sobre nenhum aspecto dos sistemas de ônibus. Assim, extensões de linha e mais veículos eram requisitados à BHTRANS em decisões feitas em assembleias populares amplas que, pelo seu próprio formato, minimizavam os aspectos do clientelismo. Dessa maneira, em 1999, técnicos da BHTRANS relatam que conseguiram atender a 77% das demandas de transporte público solicitadas, colocando mais 58 veículos em circulação84 (cf. AMARAL; MARQUES; PASQUALINI, 1999). É possível aferir que a mobilização popular permanece ativa quando ela produz mudanças concretas na realidade cotidiana. Entretanto, uma tendência geral percebida nas experiências dos movimentos populares que chegaram às institucionalidades foi, de fato, uma cristalização da função tática, por vezes conservadora, de sua atuação. Na década de 1990, a imensa maioria dos movimentos populares era ligada a partidos e/ou sindicatos e a luta estratégica se dava pela derrubada de um governo federal que avançava com a agenda neoliberal. No plano local, muitas vezes esse projeto era colocado em detrimento da efetivação de demandas autônomas que, com o enrijecer das organizações, surgiam cada vez menos. Em um cenário no qual a motorização da sociedade começava a se acelerar e os reajustes tarifários ainda permaneciam periódicos, as únicas manifestações de rua em torno do transporte eram organizadas pelo movimento estudantil, em especial os secundaristas, e majoritariamente pela pauta setorial do passe-livre estudantil, aprovada como bandeira de luta no 28º Congresso da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) em 1988. Ocorre que a mobilização dessas lutas se pautava fundamentalmente pela perspectiva de auto-construção dessas organizações, que se estruturam de maneira burocrática, a partir de diretorias que servem como instrumentos de cooptação, na maior parte das vezes. Assim, ainda que houvesse manifestações da juventude na década de 1990, o que se percebia eram os frequentes recuos, desmobilizações e conluios (cf. MANOLO, 2004). Na transição de cenário que foi a década de 1990, as dificuldades objetivas do transporte público não deixaram de se manifestar. O vazio organizativo e de 84

É de se atentar que esse aumento de frota, uma melhoria objetiva nas condições da população, gera um custo adicional que não foi coberto por recursos orçamentários do município, e acabou por se tornar um dos fatores de geração da dívida da CCT que se agravou na década seguinte.

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mobilização deixado pelos movimentos populares, cada vez mais institucionalizados, passa a ser ocupado aos poucos por uma juventude que não se pauta pela ética do trabalho e tem um profundo repúdio a aparelhamentos por partidos e sindicatos. Fenômeno da juventude em nível mundial, a luta autonomista por uma nova forma de se organizar e estar no mundo também se refletia na luta por uma nova mobilidade urbana – termo globalizante que também surge nesse movimento – que refutava modos motorizados e advogava um acesso radical e livre ao espaço urbano. A experiência desses novos movimentos, em um novo contexto de produção do espaço e de mobilidade urbana, também terá suas revoltas, vitórias e contradições. É o que será apresentado a seguir

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CAPÍTULO 3 – A TARIFA ZERO COMO PROJETO DE TRANSFORMAÇÃO POLÍTICA: novos movimentos na retomada de uma questão urbana

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“Celebração da subjetividade Eu estava há um bom tempo escrevendo [...], e quanto mais escrevia mais fundo ia nas histórias que contava. Começava a ser cada vez mais difícil distinguir o passado do presente: o que tinha sido estava sendo, e estava sendo à minha volta, e escrever era minha maneira de bater e abraçar. Supõe-se, porém, que os livros de história não são subjetivos. Comentei isso com José Coronel Urtecho: neste livro que estou escrevendo, pelo avesso e pelo direito, na luz ou na contraluz, olhando do jeito que for, surgem à primeira vista minhas raivas e meus amores. E nas margens do rio San Juan, o velho poeta me disse que não se deve dar a menor importância aos fanáticos da objetividade: - Não se preocupe – me disse. – É assim que deve ser. Os que fazem da objetividade uma religião, mentem. Eles não querem ser objetivos, mentira: querem ser objetos, para salvar-se da dor humana.” Eduardo Galeano, O Livro dos Abraços, 2005.

Quando a década de 2000 se inicia, muito do fulgor de enfrentamento que os movimentos populares haviam produzido na década de 1980 havia se perdido. Uma nova geração, nascida exatamente no período da redemocratização, não havia tido nenhum contato com processos amplos de mobilização e luta urbana. O projeto democrático-popular já havia experimentado seus primeiros mandatos municipais e se encontrava em meio a um processo de recuo, negociação e mudança de objetivos, em função de uma disputa pelo governo nacional e da aventada “governabilidade”. Em meio a essas circunstâncias, a dinâmica do processo de urbanização e o sistema de transportes também estavam mudando. Esse cenário político e econômico, apresentado nas seções 1.4.e 1.5 deste trabalho, tem significativo impacto no arrefecimento das mobilizações populares por transporte público. Na transição do projeto democrático-popular para a inclusão por via do consumo, um segmento é deixado à margem da equação: a juventude. O terceiro capítulo deste trabalho aborda as revoltas e movimentos contemporâneos por transporte no Brasil, com ênfase na história atual do Tarifa Zero BH. Elemento ainda pulsante e contraditório no cenário político nacional, explicar como se deu a entrada desses “novíssimos atores em cena” depois de uma década de esvaziamento é algo que exige a construção de uma agenda de pesquisa específica e permanente, para a qual este trabalho visa apenas contribuir, sem, contudo, se preocupar em traçá-la. Sumariamente, buscar-se-á aqui o delineamento de duas linhas narrativas para debater a trajetória de luta por transporte do século XXI, que tem na história do Movimento Passe Livre (MPL) seu referencial organizativo e na juventude seu 158

protagonista. Em primeiro lugar, há uma relação dialética entre as condições objetivas e subjetivas que moveram esses atores para a luta nas ruas (cf. POMAR, 2013). Trata-se aqui de condições objetivas de ordem econômica, urbana e material, expressas nas necessidades e relações sociais cotidianas, assim como as condições subjetivas que perpassam uma juventude em busca de sua afirmação e reconhecimento enquanto grupo na sociedade. Para essa juventude, será fundamental a ideia de rebeldia – enquanto inconformidade com as regras sociais estabelecidas –, que se desdobrará em uma profunda revisão dos preceitos organizativos tradicionais da esquerda do século XX. Em segundo lugar, como reverberação interna dessa dialética ao processo organizativo da juventude, há uma disputa e uma série de contradições entre a forma e o conteúdo da luta que se empreende (cf. VINÍCIUS, 2014). Em outras palavras, uma relação de tensão entre o processo e o resultado dessa luta (Cf. ORTELLADO, 2013). Os movimentos autonomistas da década de 1990, organizados em torno da luta contra a globalização, buscavam, por meio da crítica à forma tradicional e autoritária da esquerda marxista do século XX, construir um projeto de emancipação social. A ênfase no processo como uma vivência de outras relações sociais que se quer construir muitas vezes fez por deixar em segundo plano o objetivo político pelo qual se organizava (Cf. CORRÊA, 2011). A necessidade de dar prosseguimento e consequência para a causa, sem deixar de lado a vontade de viver uma experiência libertadora, é que vai traçar a movimentação dessa juventude no século XXI. Antes de passar a uma sucinta apresentação das assim chamadas condições objetivas que informaram a luta pelos transportes e a reconstituição da trajetória desses movimentos, cabe aqui uma breve ressalva metodológica. As referências que informam a história da luta pelo transporte no século XXI advém de textos publicados por militantes de diversos movimentos, de resoluções tiradas em encontros e plenárias nacionais realizadas pelo MPL, bem como de comentários e debates na internet – em notícias e grupos de e-mails. Além disso, faz-se necessário situar um lugar de observação: acompanho a trajetória política da pauta do passe livre e da tarifa zero desde que era estudante secundarista, no CEFET-MG em 2004. Ao longo desses onze anos, pude participar de inúmeras reuniões de frentes ampliadas contra o aumento de tarifas, e estar presente em atividades e debates de diversas organizações estudantis como o Movimento Estudantil Popular Revolucionário (MEPR), PSTU, PCR e PSOL, além de acompanhar o debate nacional que se fez com o resgate da pauta de Tarifa Zero 159

e as atividades de diversos MPLs no Brasil. Ajudando a construir o debate e as ações sobre o tema em Belo Horizonte, pude participar dos protestos de junho de 2013, a luta pela redução da tarifa naquele momento. Participei também da ocupação da Câmara Municipal e da construção do movimento Tarifa Zero BH, desde o seu início. Nesse sentido, ainda que o que esteja sendo apresentado e debatido parta de uma história objetiva e factual que ocorreu e é aqui narrada, a abordagem sobre o tema apresenta incontornáveis elementos de subjetividade. É inevitável na narrativa um lugar de fala de quem participou e viveu diversas lutas desses movimentos, com suas vitórias, contradições e desacertos. Se uma perspectiva de co-pesquisa militante85, na acepção autonomista do termo, não foi suficientemente elaborada durante a pesquisa, é necessário deixar claro que a abordagem que permeia o presente texto parte de um acúmulo construído coletivamente nos movimentos contemporâneos por transporte, partilhado e em contínua transformação por meio do processo de luta. Evidentemente, assumo total responsabilidade pelo conteúdo das análises aqui realizadas, que expressam a minha percepção pessoal da questão, mesmo quando expostas e debatidas com os companheiros de movimento. Nessa escrita fiz também meu processo de compreensão pessoal de uma vivência intensa de questões que fizeram, e ainda fazem, parte de meu cotidiano. Assim, apesar de não me situar como sujeito explícito na narrativa, a tomada de posição é inevitável, e a auto-crítica, implícita. 3.1. Aspectos da metrópole contemporânea: fragmentação e motorização Um panorama geral das transformações na mobilidade urbana contemporânea, sob o ponto de vista da trajetória capitalista das empresas de ônibus, já foi apresentado nas seções 1.4 e 1.5 deste trabalho. Como se viu, os dois aspectos centrais que pautam essa dinâmica são a crise de demanda do transporte público e o avanço vertiginoso no número de veículos particulares. De fato, é o avanço significativo da taxa de motorização nas grandes cidades do país que traça os principais condicionantes da questão da mobilidade. Para se ter um panorama, o gráfico a seguir mostra o crescimento da taxa de motorização para nove capitais brasileiras: 85

Este conceito, formulado inicialmente no contexto das lutas do autonomismo operário na década de 1970 na Itália, é “antes uma pesquisa de subjetividade” da classe produtora, para, a partir do engajamento ativo e coletivo, construir as condições de superação das relações de exploração. Assim, a copesquisa militante: “por um lado, ganha corpo com a experiência e a perspectiva desenvolvida pelos trabalhadores; por outro, compartilha e faz circular os saberes e hipóteses, contribuindo para a auto-organização do movimento, para a geração de uma composição que, a rigor, não existia.” (CAVA, 2012, p.22).

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Gráfico 2 – Evolução da taxa de motorização no Brasil e em 9 cidades selecionadas (2002-2014)

Taxa de motorização no Brasil e em 9 cidades brasileiras (em nº de veículos leves por 1.000 habitantes)

Belo Horizonte

800,00

Curitiba 700,00

Fortaleza Goiânia

600,00

Porto Alegre 500,00

Recife Rio de Janeiro

400,00

Salvador 300,00

São Paulo Média ponderada das 9 cidades

200,00

Brasil 100,00 2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

Fonte: elaboração própria a partir de DENATRAN (2002 a 2014) e IBGE (2002 a 2014)

Como se pode perceber, todas as cidades mais que dobram seus índices de motorização em pouco mais de uma década. Outro fator que salta aos olhos é a diferença da taxa entre cidades da região Sudeste e Sul (Curitiba, Goiânia, Belo Horizonte, Porto Alegre e São Paulo) e as cidades do nordeste (Recife, Fortaleza e Salvador) com a inclusão do Rio de Janeiro. O cenário que esse gráfico delineia é a perda de hegemonia do ônibus no sistema de mobilidade urbana das cidades brasileiras. A opção pelo modo individual e motorizado de transporte se dá fomentada pelo forte incentivo à indústria automobilística e pela ideologia do neodesenvolvimentismo e solução via mercado, de uma maneira geral. Como forma espacial ao mesmo tempo condicionante e resultante desse processo, a fragmentação social e urbana surge como nova maneira de segregação espacial, mais complexa que o padrão centro-periferia que a antecede, como ressalta Teresa Caldeira (2000). Dessa forma, o espaço da cidade passa, cada vez mais, a ser composto por enclaves de classe – condomínios de classe alta, verticais e horizontais (“enclaves fortificados”); novos bairros populares fornecedores de mão-de-obra; consolidação de favelas em meio a regiões de classe média, entre outros. A contrapartida para o acesso aos espaços fragmentados é a opção pelo modo individual e motorizado de transporte. Os enclaves fortificados já se constroem a partir dessa lógica de acesso via motor e 161

exclusão para pedestres, como demonstra Caldeira (2000) para o caso emblemático do bairro do Morumbi em São Paulo. Se a motorização como lógica de deslocamento da classe alta era algo esperado, as novas dinâmicas urbanas também ensejam esse modo para as classes de baixa renda. Mesmo com um arrefecimento do crescimento demográfico, a lógica de formação das periferias pobres não se desfez, apenas se replicou de maneira esgarçada no espaço: enquanto a valorização imobiliária dos centros expulsa a população pobre, muitos destes acabam por conseguir sua habitação em municípios mais distantes, mas ainda ligados econômica e socialmente à dinâmica da cidade central. O documentário de 2011 Uma avenida em meu quintal, realizado pelo programa Pólos de Cidadania, projeto de extensão da Faculdade de Direito da UFMG apresenta esse fenômeno. O filme mostra, a partir do exemplo da abertura da Avenida do Cardoso no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, como a lógica de programas viários e urbanização de favelas acaba expulsando os antigos moradores para outras cidades, como Ribeirão das Neves. Casos semelhantes foram narrados durante a elaboração Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) da RMBH, em 2010. Foi recorrente escutar relatos de prefeitos e vereadores de municípios distantes reclamando do processo de ocupação ilegal de terrenos – segundo eles, a maioria dos novos ocupantes era proprietária de motocicletas, com as quais iam e vinham da cidade. Esse novo processo de periferização nas metrópoles, mais distante e menos denso, não configura uma produção do espaço atrativa para o setor de ônibus como era a metropolização pretérita. Com a perspectiva de implantação de linhas cronicamente deficitárias nessas regiões, e sem enxergar – no médio prazo – qualquer possibilidade de consolidação urbana que possa mudar o cenário do rendimento e lhe garantir uma exploração monopolista, a iniciativa privada não se sente atraída para fornecer o transporte. Nas vilas e favelas e nos bairros pobres consolidados da metrópole, a tendência à motorização também é uma realidade. É isso que mostra para Belo Horizonte o diagnóstico e prognóstico preliminar do Plano Diretor de Mobilidade Urbana, realizado pela BHTRANS (2014):

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Tabela 3 – Variação da taxa de viagens por modo/habitante em Belo Horizonte – modo e grupos selecionados (2002-2012)

Variação da taxa de viagens por modo/habitante - modos e grupos selecionados - 2002 a 2012 Grupo selecionado População Ônibus Metrô Automóvel Motocicleta Vilas e Favelas -4,6% 10% 472% 367% 1977% Baixa renda 5,9% -19% 435% 166% 666% Belo Horizonte 4,2% -17% 169% 107% 618% Fonte: Diagnóstico e prognóstico preliminar do Plano Diretor de Mobilidade Urbana de Belo Horizonte (BHTRANS, 2014).

A magnitude das variações apresentadas demonstra como o transporte coletivo por ônibus foi abandonado em favor do transporte individual motorizado. Uma ressalva é feita ao sistema de metrô, que – com a tarifa congelada e subsidiada pelo governo federal – tornou-se opção para grande parte da população de baixa renda. A motorização assume assim a hegemonia no sistema de transporte urbano brasileiro. Isso não significa, por outro lado, que o acesso ao espaço tenha se tornado mais efetivo e democrático. Ainda que o número de viagens por habitante tenha aumentado, o que se vê é a piora objetiva das condições de transporte86. Em um contexto em que a política de transporte é cada vez mais voltada para a esfera individual, é necessário pensar as consequências para os segmentos sociais mais vulneráveis nessa dinâmica. 3.1.1. – Mobilidade e juventude: a dependência de um sistema heterônomo No cenário da metrópole fragmentada e motorizada, o sistema de transporte por ônibus entra em uma crise estrutural, procurando se preservar a partir da exploração de sua demanda cativa. Assim, aumenta a degradação da condição de deslocamento dos usuários que não têm alternativa de forma de deslocamento, a não ser o transporte público. Entre esses segmentos está a juventude da cidade. Adolescentes que acabaram de entrar no ensino médio, jovens trabalhadores em empregos precarizados, universitários - toda uma juventude está continuamente buscando na cidade o espaço para a expressão de seus desejos e descoberta de si. Encontrar e descobrir novas pessoas e linguagens, experimentar a cidade, transgredir limites – inclusive geográficos - que os 86

Um indicativo geral dessa condição é o aumento do tempo médio de viagem por transporte individual em Belo Horizonte, entre 2002 e 2012, de 20 para 29 minutos e do transporte coletivo de 38 para 69 minutos. Os dados têm como base as pesquisas Origem e Destino e podem ser constatados na página do Observatório de Mobilidade Urbana de Belo Horizonte - http://bit.ly/1MpcyGc .

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conformavam anteriormente, tudo isso está entre os anseios dos jovens, muito além do deslocamento produtivista entre a casa e a escola. Em um sistema de mobilidade urbana no qual o transporte individual motorizado ganha hegemonia absoluta, material e discursivamente, a juventude já se encontra, de início, alijada em seus direitos de acesso à cidade. Para a parcela maior de idade, uma barreira financeira para a aquisição do veículo, bem como do direito e habilidade para conduzi-lo, por meio do burocrático e dispendioso processo de aquisição da Carteira Nacional de Habilitação, se expressa também de maneira simbólica no tolhimento da autonomia de deslocamento do jovem. Outras opções são sempre buscadas e construídas culturalmente: a vida não motorizada, a bicicleta, o skate, etc., mas não conseguem se conformar como uma alternativa sistêmica. Na prática, permanece a enorme dependência da juventude em relação ao transporte público. As mudanças na forma de regulação e oferta do sistema de ônibus afetam principalmente os jovens porque é neles que se expressa mais fortemente uma vontade de viver a cidade em sua multiplicidade de deslocamentos. Quando a mudança do sistema ocorre – com a remuneração por passageiro e não por serviço prestado – há o incentivo econômico à redução da oferta do transporte público. A diminuição das viagens vai se dar prioritariamente nos horários e trajetos que não se adéquam à lógica produtiva clássica do fordismo – mantendo o horário comercial do trabalho e da formação da força de trabalho e diminuindo aqueles em que não há uma demanda cativa significativa. A madrugada e os finais de semana; os bairros distantes, a periferia e os locais de lazer. Esses são os horários e locais mais atingidos pela lógica de redução de oferta do transporte público. Como ressalta Léo Vinícius: Talvez mais do que outra forma que ganha o proletariado nos centros urbanos, é na juventude que a mobilidade transparece cada vez mais como sua própria condição de existência: a mobilidade urbana é condição de viver efetivamente a moratória social ligada ao juvenil. (VINÍCIUS, 2014, p. 13)

Dependentes de um sistema precário e heterônomo, que tolhe continuamente a liberdade de deslocamento, condicionando-a a poucas e esparsas opções, a juventude irá demonstrar sua revolta e sua busca por autonomia e identidade. É nesse setor que se expressarão as principais mobilizações populares por transporte no século XXI e o acúmulo das lutas fará com que a pauta demandada se transforme rapidamente: a própria liberdade e autonomia demandadas fazia com que o passe-livre estudantil, cada 164

vez mais controlado por procedimentos burocráticos, fosse muito pouco para os desejos de vida dos jovens. É a história dessa luta que será apresentada aqui. 3.2. Uma trajetória do Movimento Passe Livre O Movimento Passe Livre (MPL) é um dos mais relevantes movimentos sociais contemporâneos no Brasil. Organizados a partir dos princípios de horizontalidade, autonomia, independência e apartidarismo, a trajetória de sua organização em diversas cidades brasileiras, bem como suas ações e forma de mobilização constituem, por si mesmas, uma ampla agenda de pesquisa. O que será apresentado nesta seção é um resumo dos fatos mais importantes para o surgimento e a trajetória desse movimento, a partir de relatos e reflexões disponíveis publicamente. Não se procurou aqui realizar entrevistas com antigos e atuais militantes do MPL, tampouco enumerar e debater a diversidade existente de MPLs espalhados em várias cidades do país. Por fim, faz-se uma breve narrativa da tentativa de criação de um MPL em Belo Horizonte no ano de 2005 e dos desdobramentos da questão do passe-livre estudantil na cidade. 3.2.1. A Revolta do Buzu Em agosto de 2003, a prefeitura da cidade de Salvador reajustou as tarifas de ônibus de R$1,30 para R$1,50. A partir dos primeiros protestos contra o aumento, convocados por entidades estudantis (cf. MANOLO, 2004, p. 9), a situação ganhou uma dimensão explosiva e generalizada na cidade. Dezenas de milhares de jovens, em sua maioria estudantes secundaristas, passaram a realizar bloqueios diários nas vias de trânsito, paralisando completamente a cidade. As escolas se tornavam pontos de fermentação da revolta, na qual os adolescentes se encontravam e se organizavam para ocupar as ruas. Apesar de ter tido uma disseminação espontânea, como as revoltas apresentadas no capítulo anterior, a Revolta do Buzu difere das apresentadas no capítulo anterior por sua continuidade e por registrar menos violência direta contra o transporte público. A partir dos relatos e do que foi registrado no documentário A Revolta do Buzu, de Carlos Pronzato, pode-se perceber que o que retroalimentou este movimento foi a descoberta, por parte dos estudantes, de sua capacidade de intervenção na realidade concreta. Ser capaz de mudar o funcionamento da cidade e se tornar um ator político no cenário local, com suas reivindicações e ações escutadas e debatidas pela sociedade, dava aos estudantes uma outra dimensão de si e de sua potência. O processo e a forma 165

espontânea e autônoma das manifestações era um ponto de ruptura com práticas do passado e a afirmação de uma geração que ainda não havia descoberto sua capacidade política. A urgência das ruas também se afirmava em Salvador e marcaria o imaginário de toda uma juventude87. Ainda que houvesse um consenso tácito entre os estudantes sobre a derrubada do aumento, o ineditismo – para todos os envolvidos – de um processo autônomo e sem líderes acabou por possibilitar o oportunismo das tradicionais organizações estudantis. Assim, uma comissão de líderes de entidades estudantis como a ABES (Associação Baiana Estudantil Secundarista) e a UBES/BA se autoproclamou representante dos estudantes e formou uma mesa de negociação com o prefeito da cidade. A comissão conseguiu algumas concessões da prefeitura, como a extensão do benefício da meiapassagem para as férias e os domingos e para os pós-graduandos, mas recuou na principal reivindicação – o cancelamento do aumento da tarifa -, comprometendo-se a desmobilizar o movimento. O processo de negociação, registrado no documentário de Pronzato, dá a dimensão do comprometimento que essas “lideranças” tinham com os arranjos institucionais. A grande maioria dos estudantes não se sente representada no processo. A negociação com a prefeitura, ainda que não representasse legitimamente a vontade dos estudantes, acaba por tirar a força crescente dos protestos e gradativamente encerrá-lo. A usurpação do movimento por entidades estudantis aparelhadas, entretanto, tinha ficado bem marcada na memória daqueles que participaram da Revolta do Buzu. E, além disso, havia sido, de maneira inédita, registrada e debatida na internet pela cobertura jornalística do CMI Brasil – Centro de Mídia Independente – portal autogestionado de notícias que terá papel fundamental nos debates de fundação do MPL. A lição sobre construir organizações autônomas que evitassem o aparelhamento88 era clara, e o documentário de Carlos Pronzato era também um registro oportuno para essa reflexão.

87

Manolo (2004) cita acontecimentos protagonizados por crianças de 11 anos discutindo os rumos do ato e tomando as ruas. O movimento é generalizado de tal maneira que pode-se dizer que, hoje, qualquer pessoa que tenha entre 26 e 36 anos e estivesse morando em Salvador à época tenha, de alguma forma, participado da revolta (cf. MOVIMENTO PASSE LIVRE SÃO PAULO, 2013) 88 O termo, jargão muito comum no universo das organizações de esquerda, visa definir a tentativa de utilização de um movimento ou organização, por parte de outra organização, com fins distintos e alheios aos objetivos do próprio movimento inicial. O aparelhamento, em geral, se dá com o intuito de, por meio de novos adeptos e respaldo político, fortalecer a organização que o pratica.

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3.2.2. Florianópolis – a campanha pelo passe livre e as revoltas das catracas89 É na capital catarinense que as bases para organização do MPL seriam construídas. A geografia urbana específica da cidade irá contribuir para tornar o transporte público uma grave questão urbana Com uma população muito pequena para uma capital (360 mil habitantes no município e 700 mil habitantes na área metropolitana) e uma área muito extensa (a ilha tem um comprimento de 54 quilômetros), as distâncias costumam ser grandes e a oferta de transporte público reduzida. A locomoção é muito demorada para uma cidade pequena e os preços são abusivos. (ORTELLADO, 2004).

Em Florianópolis, dessa forma, as contradições geradas por um sistema de financiamento exclusivamente tarifário chegavam a níveis alarmantes para uma demanda cativa de usuários sem alternativa. O transporte coletivo havia se tornado um setor relevante para a economia da cidade que não contava com muitos setores dinâmicos para além do turismo (cf. VINÍCIUS, 2014) e seu controle era, há muito, ligado às famílias de políticos poderosos e tradicionais na região. Nas circunstâncias permanentemente problemáticas do transporte público, foi inaugurado em 2003 um sistema de terminais de baldeação que seria recebido “com grande desaprovação por parte dos usuários desde o momento inicial de seu funcionamento. Com o sistema vieram novas tarifas, mais altas” (VINÍCIUS, 2014, p. 296). Três anos antes, em fevereiro de 2000, um grupo de jovens de uma organização chamada Juventude Revolução (JR), coletivo de juventude ligado a uma tendência interna do PT, de orientação trotskista, chamada O Trabalho, havia iniciado uma campanha para a implantação do passe-livre estudantil na cidade. Partindo de exemplos concretos – como a existência do benefício na cidade do Rio de Janeiro e no estado do Amapá -, o grupo de jovens organizou um processo de coleta de assinaturas para apoiar o projeto de lei proposto por um vereador do PT. Mesmo com o trabalho notável de obtenção de 20 mil assinaturas (5,5% do eleitorado da cidade), o projeto foi reprovado por “questões técnicas” na comissão de constituição e justiça da câmara municipal. Um novo projeto de lei foi proposto, e a experiência fez com que a campanha apostasse no debate e na formação da juventude, pensando ações que pudessem exercer uma pressão direta para que o projeto fosse aprovado. O foco no objetivo específico do Passe Livre Estudantil fez com que a própria JR se alterasse profundamente em termos organizacionais. A ideia de construção de 89

Essa seção é escrita com base em VINÍCIUS (2004; 2005; 2014) e ORTELLADO (2004).

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uma frente em torno da bandeira fazia com que outras discussões programáticas afeitas a uma organização partidária – como, por exemplo, a política externa do governo brasileiro – fossem deixadas de lado. A pressão da direção partidária fez com que a JR rompesse com o PT e se tornasse Juventude Revolução Independente (JRI), em 2002. A escolha por um objetivo claro e por uma forma de organização ampla e democrática, como a decisão por assembleias, iria dar uma grande força ao movimento, que na prática iria ser conhecido como Passe Livre: A distinção entre a Campanha pelo Passe Livre e a JRI seria quase sempre pouco nítida ou quase inexistente. Como a JRI não possuía filiação formal e sua única atuação era na Campanha pelo Passe Livre, não tendo outra organização a mesma participação que ela na campanha, os membros mais ativos da campanha tendiam a ser membros da JRI. Mas não se tratava de angariar quadros ou construir a organização política através do movimento social. A JRI não era um fim, mas sim uma impulsionadora do movimento, injetando até dinheiro seu na campanha quando necessário. (VINÍCIUS, 2014, p. 293).

Assim, quando o sistema de transporte por ônibus passou por transformações, e um reajuste tarifário foi anunciado em junho de 2004, a campanha pelo Passe Livre já tinha uma base ampla de estudantes, um acúmulo de experiência e um objetivo claro para empreender a resistência. A partir do dia 28 de junho de 2004, a Campanha pelo Passe Livre começou a convocar atos contra o reajuste tarifário em frente ao terminal de integração do centro (TICEN). O local acabaria virando ponto de referência para a concentração cotidiana dos jovens (cf. VINÍCIUS, 2004). As manifestações começavam a se espalhar e ganhar outros pontos da ilha. O primeiro objetivo, de interromper a normalidade cotidiana da cidade, já havia sido alcançado. A concentração em frente ao TICEN crescia a cada dia, e, em nova manifestação, uma comissão de vereadores já havia sido enviada para negociação. Tendo aprendido a lição de Salvador, os manifestantes em assembleia apenas comunicaram a única reivindicação do cancelamento do reajuste. Crescia um clima de tensão entre os manifestantes, a polícia militar e os seguranças privados, contratados pelas empresas de ônibus para fazer a segurança dos terminais. No dia 30 de junho há um primeiro grande confronto com a polícia, que chega a repercutir no noticiário nacional. A manifestação aumenta por adesão da esquerda tradicional e também de jovens da periferia. No dia 2 de julho, novo e mais violento conflito, e novamente repercussão nacional. O movimento resistia e convocava um grande ato para a quintafeira seguinte, dia 8 de julho. Na véspera, dia 7 de julho: 168

Por volta das 22:30h sai a notícia de que um juiz federal havia suspendido o reajuste das tarifas por 30 dias, a pedido da OAB. [...] A medida cautelar expedida pelo juiz federal teve como base o clima de combate e a onda de protestos instaurado na cidade. Mais uma vez foi a ação direta em massa que fez a diferença. (VINÍCIUS, 2004).

Não se pode subestimar a dimensão dessa vitória, não apenas para o movimento local e nacional, mas para a própria história das mobilizações populares por transporte. Essa era a primeira vez que um processo de luta, consciente e organizado, conseguia canalizar uma revolta popular espontânea a respeito de um reajuste tarifário e revertê-lo. Para um considerável número de jovens no país todo, que acompanharam a cobertura do movimento por meio do CMI, a vitória era uma inspiração de grande força para a construção de novas diretrizes de luta e organização. Alguns meses depois, o movimento consegue a aprovação da lei do passe livre estudantil na cidade. A data, 26 de outubro, será proposta posteriormente para ser o dia nacional de luta pelo passe livre no Brasil. A conquista só foi possível graças à atuação da Campanha pelo Passe Livre nas ruas, sua demonstração de força e organização no enfrentamento ao reajuste tarifário, e a forma como soube pressionar o novo prefeito e os parlamentares. Entretanto, a estrutura de poderes que buscava garantir o sistema tarifário e o orçamento da prefeitura se mostraram resistentes no longo prazo e, em novembro de 2005, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina suspendeu a lei em virtude de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Ministério Público (Cf. VINICIUS, 2014, p. 314). Em 2005, no fim do mês de maio, a prefeitura decretou novo aumento nas tarifas. A situação trazia à lembrança da cidade os enfrentamentos vividos no ano anterior. Entretanto, as forças policiais agiram já na primeira manifestação, no momento de dispersão do ato, e prenderam quatro integrantes do MPL. Os integrantes conseguiram ser liberados aquela noite sob o pagamento de fiança, mas, por sua própria segurança e pela do movimento, várias das pessoas mais reconhecidas no movimento permaneceram longe das manifestações aquele ano. A direção do movimento, daquela maneira, havia ficado em aberto. Entretanto, essa direção – disputada pelos partidos da esquerda tradicional – não iria ser reconhecida pela massa da população que afluía para o centro da cidade, já condicionada subjetivamente pela lembrança do ano anterior. No segundo dia de manifestações, há forte repressão da polícia e imagens de um integrante do MPL sendo covardemente espancado pela polícia iriam ganhar repercussão

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nacional90. Dois dias depois, uma nova manifestação tenta ser dirigida por meio do tradicional carro de som, e é novamente rechaçada pelos manifestantes. No meio da divisão da manifestação em várias partes, novamente confronto com a polícia e revide dos manifestantes: o terminal central é depredado, bem como a própria Câmara Municipal (cf. VINÍCIUS, 2005, P. 38-9). Nos dias seguintes, cenas semelhantes se seguiram: manifestações dispersas, violência policial e reação por parte da população. Nesse cenário, o prefeito acaba recuando e, no dia 16 de junho, anuncia sua intenção em revogar o aumento. Novamente, e pelo segundo ano consecutivo, o movimento era vitorioso. Ainda que fosse impossível para o MPL assumir o controle da situação, por se encontrar perseguido pelos poderes institucionais, ainda era a reverberação do seu trabalho de base, o respaldo que tinha perante os manifestantes, e a memória de enfrentamento do ano anterior, que deram as condições para que a luta continuasse por 3 semanas até ser vitoriosa. O caso de Florianópolis seria tomado como exemplo nos anos de 2004 e 2005, e em várias cidades a luta contra o aumento tarifário iria ser grande, conquistando seu cancelamento em algumas, como Uberlândia e Vitória. A juventude que ia às ruas tinha em sua memória e sua vontade o reconhecimento da capacidade de luta de Salvador e Florianópolis. A potência que as ruas forneciam a essa juventude seria um elemento fundamental para construir novas organizações na década de 2000. 3.2.3. Encontros nacionais: o surgimento do Movimento Passe Livre91 Os acontecimentos em Salvador e Florianópolis reverberavam na juventude, principalmente em razão da internet como um novo instrumento de comunicação. É nesse contexto que a Campanha pelo Passe Livre em Florianópolis convoca o I Encontro Nacional pelo Passe Livre, em julho de 2004. Reunindo jovens de nove cidades92, o encontro serve como um espaço de troca de experiências e perspectivas políticas, mas não define ainda nenhuma organização mais ampla. Esse encontro deu clara perspectiva autonomista e anticapitalista para os que dele participaram (cf. VINÍCIUS, 2014, p. 299).

90

O vídeo pode ser acessado em http://bit.ly/1EllHls . Rendeu ao cinegrafista Alex Antunes o prêmio Vladimir Herzog (cf. VINÍCIUS, 2005, p. 29) 91 Essa seção está escrita com base em VINÍCIUS (2014), ORTELLADO (2005), POMAR (2005), além das resoluções dos encontros nacionais do MPL disponíveis na internet. 92 Belém, Belo Horizonte, Campinas, Curitiba, Itu, Rio de Janeiro, São Paulo, Sorocaba e Florianópolis (cf. VINÍCIUS, 2014, p. 299)

170

Em janeiro de 2005, em função da grande afluência de ativistas de esquerda que iria se dar no 5º Fórum Social Mundial (FSM), realizado em Porto Alegre, a Campanha pelo Passe Livre Florianópolis convoca uma Plenária Nacional pelo Passe Livre: A Plenária foi organizada pelo Campanha pelo Passe Livre de Florianópolis com o apoio e ajuda de membros do CMI de Florianópolis e de outras cidades, que articularam o espaço para ser realizada a Plenária. Caracol Intergaláctica era o nome do espaço, uma dupla menção aos zapatistas, gerido pela ala, sem dúvida, mais autonomista e libertária da juventude participante do FSM. (VINÍCIUS, 2014, p. 302).

Assim, no dia 29 de janeiro, 250 pessoas representando 29 cidades do país, participaram do encontro que iria fundar o Movimento pelo Passe Livre a nível nacional. Ainda que tenha havido uma tentativa de aparelhamento por uma minoria93, a plenária transcorreu sem maiores incidentes e o conteúdo das resoluções decididas revela o acúmulo que as experiências de Salvador e Florianópolis propiciaram, bem o como o caráter libertário e autonomista da maioria dos presentes: RESOLUÇÕES TIRADAS NA PLENÁRIA NACIONAL PELO PASSELIVRE Sobre princípios gerais O Movimento pelo Passe-Livre é um movimento autônomo, independente e apartidário, mas não anti-partidário. Nossa disposição é de Frente Única, mas com os setores reconhecidamente dispostos à luta pelo Passe-Livre estudantil e pelas nossas perspectivas estratégicas. Os documentos assinados pelo Movimento devem conter o nome Movimento pelo Passe-Livre, evitando, assim, as disputas de projeção de partidos, entidades e organizações. Sobre o Grupo de Trabalho a) Que seja retirado da Plenária Nacional pelo Passe-Livre um Grupo de Trabalho, com membros de cada delegação presente. b) Que não tenha qualquer poder deliberativo, mas meramente de execução de tarefas específicas deliberadas na Plenária através do método do consenso. c) Que esse GT se organize por um grupo de internet. [...] Sobre as perspectivas estratégicas A luta pelo Passe-Livre estudantil não tem fim em si mesma. Ela é o instrumento inicial de debate sobre a transformação da atual concepção de transporte coletivo urbano, rechaçando a concepção mercadológica de transporte e abrindo a luta por um transporte público, gratuito e de qualidade, para o conjunto da sociedade; por um transporte coletivo fora da iniciativa privada. Sobre o dia nacional do Movimento pelo Passe-Livre

93

Algumas pessoas ligadas ao Comando Nacional de Lutas Estudantis (CONLUTE) tentaram colocar uma nota de repúdio à UNE (União Nacional dos Estudantes) nas resoluções da Plenária. Como havia participantes ligados à UNE, era evidente que nenhuma nota – de apoio ou repúdio a qualquer organização – contemplaria o interesse de todos. A proposta foi rechaçada sob os gritos de “Passe Livre Já!”, que buscavam atentar para o objetivo da reunião. (cf. VINÍCIUS, 2014, p. 302-3).

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Ficam convocadas duas atividades simultâneas pelo Passe-Livre em todo Brasil, uma a ser realizada no primeiro semestre e outra no segundo semestre de 2005. A primeira durante a semana do dia 28 de março, dia do estudante, de caráter flexível e de acordo com as possibilidades de cada localidade. A segunda, no dia 26 de outubro, na perspectiva de acontecer simultaneamente, em mesma data, em todo o Brasil, com vistas a projetar e fortalecer nacionalmente o Movimento pelo Passe livre. (MOVIMENTO PASSE LIVRE, 2005)94

A perspectiva da independência em relação a qualquer organização e de autonomia nos processos decisórios eram princípios fundamentais que pautavam o movimento. Além disso, a bandeira do passe-livre estudantil, uma reivindicação concreta e factível, era um horizonte tático traçado para que se desenvolvesse a estratégia de desmercantilização do transporte e sua efetivação como um direito social, ainda que estes dois termos não estivessem literalmente colocados na carta. O MPL surgia então como uma continuidade dos movimentos autonomistas antiglobalização que haviam ganhado força na virada do século e que se organizaram, principalmente, na Ação Global dos Povos. Mas, diferentemente dos que o antecederam, o MPL não colocava como bandeira prioritária pautas abstratas como “a luta contra a globalização capitalista” ou o “fim do imperialismo”. A luta pelo passelivre era objetiva, e alçada ao patamar nacional ganhava força concreta. Havia uma aparente conciliação entre forma e conteúdo: O que importa ressaltar aqui é a orientação estratégica dada à bandeira de luta passe livre. O tema do transporte público embutido nela afeta concretamente a vida cotidiana não só da grande maioria da população urbana, mas o próprio funcionamento da economia da cidade. [...] Além disso, a continuidade da campanha ao longo dos anos é, em maior medida, expressão de uma orientação estratégica, que vê e pensa as ações do presente dentro de uma luta de longo prazo. Diferencia-se assim de muitas atividades e campanhas juvenis e libertárias, que acabam sendo efêmeras, voltadas para ações pontuais que muitas vezes se esgotam em si mesmas. (VINÍCIUS, 2014, P. 298)

Seis meses após o primeiro, ocorreria o 2º Encontro Nacional do MPL, realizado no fim de Julho em Campinas. Todos os relatos a respeito são uníssonos em afirmar que o encontro foi fortemente desgastante, em virtude da atuação sectária de um grupúsculo político: o POR (Partido Operário Revolucionário), que tentou aparelhar o movimento, buscando mudar seus princípios de organização. As quatro pessoas dessa organização presentes ao encontro, reivindicavam que o movimento passasse a ser centralizado e hierarquizado. O evidente contraste com o espírito geral apresentado no Encontro não impediu que o debate da plenária final se arrastasse por cinco horas nessa questão (Cf. 94

Conteúdo disponível em http://www.midiaindependente.org/pt/red/2005/02/306116.shtml

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ORTELLADO, 2005), e atrapalhasse inclusive a redação das resoluções (Cf. VINÍCIUS, 2014). Assim, o II Encontro do MPL serviu para referendar os princípios de horizontalidade e autonomia na organização, isto é, um processo decisório a partir da base, sem hierarquias pré-estabelecidas. Além disso, apontou para a forma federativa de organização, com os diversos MPLs locais tendo completa autonomia decisória. O desgaste da tentativa de aparelhamento também teve outra consequência: na federação e nos encontros seguintes só seriam aceitos membros federados ou que houvessem declarado intenção em federar. O MPL buscava assim fortalecer seus princípios e evitar que o esforço por uma construção nacional fosse solapado por organizações com princípios de organização vertical.95 3.2.4. Uma breve experiência em Belo Horizonte O contexto das vitoriosas e surpreendentes mobilizações empreendidas pela juventude contra o aumento de tarifa e pelo passe livre estudantil serviu como inspiração e incentivo para o surgimento de diversas organizações pelo país. A primeira plenária nacional do MPL, bem como o encontro seguinte, inspirou que movimentos com os mesmo princípios buscassem se organizar em várias cidades. É nesse sentido que Belo Horizonte vai vivenciar sua primeira e breve experiência de Movimento Passe Livre96. Em janeiro de 2005, a cidade vive uma jornada de luta contra o aumento da tarifa, que havia sido reajustada de R$1,45 para R$1,65. Essas mobilizações, ainda que passageiras, vão se dar em caráter mais organizado que as anteriores, com os estudantes secundaristas e universitários espalhando stencils com os dizeres “Passe Livre Já!” e a adesivos onde se lia “R$1,65 é um assalto!” por ônibus e muros da cidade (Cf. ROGER, 2005). A mobilização se desfaz nos meses seguintes, como era característico dessas frentes, mas o desejo de se organizar de maneira autônoma permaneceu, trazido por jovens que estiveram presentes à plenária do Movimento Passe Livre no Fórum Social Mundial. No fim de junho daquele ano, depois da 2ª Revolta da Catraca em Florianópolis, corria o boato na imprensa local que a passagem poderia ser novamente 95

Uma questão que fica em aberto para novas pesquisas é até que ponto esse fechamento do movimento, necessário naquele momento, se enraizou em sua forma organizacional nos anos seguintes, principalmente após junho de 2013. No atual debate sobre os rumos do MPL há várias críticas à autonomia como um dogma em si e a uma espécie de isolamento que esse cuidado causou. 96 A análise aqui realizada tem como base notícias do Centro de Mídia Independente e as mensagens do grupo de e-mails [email protected], que estão disponíveis na internet.

173

reajustada, ainda em julho. Esse motivo é suficiente para que ocorra uma reunião e a criação de um grupo de emails do Movimento Passe Livre BH, e para que uma primeira manifestação com cerca de 200 estudantes fosse feita no dia 1º de julho. A partir da repercussão desse primeiro ato, o MPL-BH passa a se organizar e planejar ações. A proposta inicial era ir ao 2º Encontro Nacional do MPL no fim daquele mês e, enquanto isso, debater os princípios de autonomia e independência do movimento, bem como o caráter anticapitalista do passe livre estudantil, além de fazer avançar a luta por essa proposta e contra o possível aumento. No grupo de e-mails percebe-se que ninguém comparece ao 2º Encontro, porém o contato e diálogo com o grupo nacional, por meio da internet, continua. O grupo passa a discutir a federalização ao MPL nacional. Em que pese a reivindicação do transporte, percebe-se que os jovens reunidos em torno da sigla MPL-BH estavam muito mais desejosos em discutir a forma de seu movimento, impressionados com uma possibilidade latente de subversão da ordem e construção do novo, do que o conteúdo ou as estratégias para fazer avançar a pauta. Os tópicos que pautam o assunto da forma organizativa são os que mais geram respostas e discussões. É dessa maneira que a principal polêmica no grupo é a presença de bandeiras de partidos e outros movimentos nas

manifestações

pelo passe-livre.

A preocupação

com

o

aparelhamento,

principalmente midiático, que os partidos de esquerda muitas vezes praticavam em relação ao movimento estudantil, acaba por ocupar todo o debate. Talvez a falta de acúmulo de experiência em mobilizações de frente ampliada, com diversas organizações, impedisse os integrantes do grupo de perceber que não havia correlação de forças para impedir a presença de bandeiras, por mais antipáticas que estas fossem, e que, sem uma conscientização de longo prazo do movimento estudantil, o rechaço a essas bandeiras iria ser inócuo e caracterizado como prática sectária. Dessa forma, vale colocar a crítica de Felipe Côrrea aos movimentos com inspiração na Ação Global dos Povos: Valorizava-se a cultura e a identidade, mas se perdia a noção política de intervenção na correlação de forças da realidade, fazendo com que o movimento se voltasse mais para si mesmo do que para fora. [...] Propunha-se o novo contra o autoritarismo das antigas formas de organização, não sem promover certa arrogância e impedir a participação de movimentos com bases mais amplas. (CORRÊA, 2011).

Apesar dessas discussões, o MPL-BH avança em sua proposta de organização, principalmente em função do esforço de dois militantes mais ativos. Propõe-se que a 174

organização se dê a partir de comitês locais de luta pelo passe livre, que chegam a ser organizados na UFMG e na UNI-BH. No dia 25 de agosto de 2005, há uma nova manifestação pelo passe livre e em rechaço a um possível aumento. Da mesma forma que a anterior, essa manifestação é mobilizada por diversas organizações além do MPLBH, tais como a Associação Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (AMES-BH, vinculada ao PCR), o MEPR e a juventude do PSOL. Na manifestação comparecem cerca de 500 estudantes, que saem da praça sete e vão em direção à prefeitura. Nesse momento alguns estudantes arremessam ovos em direção ao edifício do governo97, ao que a polícia responde prontamente com repressão: bombas de efeito moral e golpes de cassetete. Muitos estudantes menores de idade ficam feridos e alguns são detidos. Mesmo assim, a manifestação se reagrupa e segue em direção à Praça da Liberdade, em frente a então sede do governo estadual, onde finaliza o ato. Os desdobramentos e debates sobre o ato revelam como o movimento estava incipiente e desarticulado entre si. Uma mensagem enviada ao grupo é reveladora da desorganização e de uma certa ingenuidade revelada no fetiche com a forma: Pessoas, Eu queria fazer algumas críticas à manifestação. Elas são direcionadas muito mais ao momento em que tudo aconteceu do que aos resultados. Foi ótimo que conseguimos marcar uma reunião no CEFET com os representantes das escolas e que conseguimos mostrar que os estudantes não estão mortos e ainda vão dar muito trabalho para a burguesia. Mas, não paramos nesta. Só vamos parar quando conseguirmos tudo o que queremos! Devemos pensar, então, quais são as formas mais eficazes de lutar. Acho que para as próximas manifestações devemos tirar um grupo só para pensar em estratégia na rua, porque, acredito, que essa foi a grande falha da manifestação. Isso teve algumas consequências, por exemplo, pessoas feridas, presas e o resto intimidado e aflito. Acho que esses foram os pontos negativos: 1- Pouca estratégia para lidar com a polícia. - Não tinhamos nada para o caso de enfrentamento; - Pessoas foram presas e feridas, sendo que, na hora, não fizemos nada; 2- Falta de comunicação durante a manifestação: - O tempo todo, ordens contraditórias circulavam ("Senta"! "Levanta"!; "Fecha a rua"! Abre a rua"!) ; - Não tinhamos clareza do que realmente estava acontecendo no todo da manifestação; 3- Desgaste (emocional e físico) das pessoas com a longa caminhada até a praça da liberdade; 97

Não houve forma de pesquisar o motivo para essa ação, mas possivelmente as ovadas foram inspiradas na ação do MPL Florianópolis, na ocasião da aprovação da lei do passe livre estudantil, quando vereadores foram recebidos com ovos pelo movimento.

175

4- As bandeiras; 5- Os pneus e nem os ônibus foram queimados; (mensagem enviada ao grupo de e-mails passelivrebh, 2005)

Independentemente do debate interno, o fato é que não houve continuidade de manifestações depois do ato de 25 de agosto. Por outro lado, não houve o aumento de tarifa aventado pela mídia, de forma que o fator mobilizador se tornava apenas o passe livre estudantil e, portanto, algo que exigia um trabalho mais paciente, de longo prazo. O MPL-BH ainda busca se organizar e faz uma intervenção no dia nacional de luta pelo passe livre (26 de outubro), entretanto percebe-se que aos poucos o desgaste de mobilização aumenta, o encaminhamento das ações vai se concentrando em cada vez menos pessoas e, consequentemente, as atividades vão cessando. No final de dezembro, a tarifa é reajustada para R$1,85 e a incapacidade de se mobilizar contra o aumento fica evidente em um único ato com menos de 50 pessoas e nenhuma atividade no mês seguinte. Assim se encerra a breve história do 1º MPL de Belo Horizonte. Várias razões podem ajudar a explicar a brevidade da organização: a falta de oportunidade de mobilização, com um aumento tarifário ocorrendo estrategicamente no fim do ano; a falta de experiência militante e perspectiva estratégica de longo prazo; o fetichismo com a forma, pela qual se pensava que ações diretas mais violentas necessariamente desencadeariam mobilizações de massa; a força de organizações estudantis tradicionais, com estrutura consolidada, que impediram a aproximação de novos militantes, entre outros motivos. De qualquer maneira, a experiência do 1º MPL-BH demonstra as primeiras dificuldades que a nova proposta de organização, autonomista, iria enfrentar. Depois de dois anos em que grandes manifestações estudantis surpreenderam os governantes municipais brasileiros, os anos seguintes serão de certo refluxo nas ações externas e voltados para um acúmulo e formação interna dos militantes, pelo menos nas cidades em que o MPL estava organizado. 3.2.4.1. - O recente desdobramento da pauta do passe livre estudantil em BH Reivindicação histórica do movimento secundarista, uma política de desconto ou gratuidade tarifária para o estudante belo-horizontino inexistia desde o ano de 1970 (Cf. OLIVEIRA, 2002). A pauta sempre havia mobilizado os estudantes da cidade em manifestações que também tinham o objetivo de fortalecer suas próprias entidades 176

estudantis, geralmente ligadas a estruturas partidárias mais amplas.98 Nesse complexo cenário em que diretrizes nacionais disputavam a construção de entidades locais, uma disputa de tática política se deu no movimento secundarista ao longo da década de 2000. A AMES-BH, entidade que se fortaleceu durante essa década, passou a reivindicar como objetivo o “meio-passe” estudantil, isto é, o desconto de 50% na tarifa, em detrimento da reivindicação pela gratuidade completa para esse segmento. Independentemente dos meandros políticos da disputa pelo meio-passe, que não foram objeto dessa pesquisa, fato é que em dezembro de 2010 a mobilização da AMESBH conseguiu com que um projeto de lei de desconto de 50% na tarifa para estudantes fosse aprovado. A medida encerrava um ciclo de 40 anos sem que nenhuma política para o segmento fosse implantada. Entretanto, sua proposta era bastante limitada. A lei nº 10.106/2011 é sancionada concedendo o subsídio tarifário no trajeto casa-escola-casa para estudantes que morem a mais de um quilômetro do local de estudo, preferencialmente do ensino médio e que tenham, preferencialmente, famílias beneficiárias de programas sociais do governo, como o Bolsa-Família (BELO HORIZONTE, 2011). A palavra “preferencialmente” no texto da lei não é por acaso. Historicamente, a grande maioria das políticas de gratuidade ou descontos segmentados, em especial para os estudantes, segue uma lógica de controle do Estado. Com o argumento da racionalização de despesas, o Estado busca exercer o controle de corpos e finalidades de deslocamento. Um bom exemplo é a recente tentativa do governo do Distrito Federal em limitar a validade da gratuidade estudantil para um horário de uso entre duas horas antes do início da aula e duas horas após seu término (PORTAL G1 DF, 2015)99. Valendo-se do sistema de bilhetagem eletrônica, o governo seleciona linhas e destinos para sua juventude em uma perspectiva produtivista e paternalista, semelhante à lógica do vale-transporte. O meio-passe estudantil em Belo Horizonte atendia em 2013 a 8,5 mil estudantes na cidade, segundo a prefeitura (BELO HORIZONTE, 2013a). Um número bem restrito se comparado ao total de estudantes da cidade. Os procedimentos burocráticos para a obtenção do benefício eram tão altos que os próprios recursos do

98

Cita-se aqui a antiga UCMG (União Colegial de Minas Gerais), vinculada ao MEPR e à Liga Operária Camponesa (LOC); a AMES-BH, vinculada ao PCR; e uma reapropriação da mesma sigla UCMG vinculada à UJS, juventude do PC do B. 99 Notícia disponível em http://glo.bo/1LxdElg

177

município previstos para o meio-passe não eram integralmente gastos, por falta de cadastrados (ver, por exemplo, a execução orçamentária de 2014 no sítio da prefeitura). 3.3. Tarifa Zero como pauta e força motriz: um rastreamento da disseminação da proposta em Belo Horizonte A partir do 2º Encontro Nacional do MPL, a pauta da gratuidade universal do transporte começa a ganhar forma. Tornava-se claro que a dinâmica dos aumentos de tarifas e a segregação espacial não seriam combatidas a partir da pauta do passe-livre estudantil, mesmo quando esta era reconhecida pelo próprio MPL como um “ponto de partida”. Um militante do MPL em Salvador, ao narrar a trajetória de lutas contra o aumento na cidade, afirma que foi em 2006, quando o sistema de bilhetagem eletrônica foi implantado no município, que o Movimento percebeu o círculo vicioso da tarifa – “a bola de neve dos aumentos de passagem” (MANOLO, 2011) – citado no capítulo 1 desta dissertação. A primeira vez que o Movimento Passe Livre teve contato com a proposta de tarifa zero, tal qual foi elaborada no governo de Luiza Erundina, foi no seminário “Transporte Público e Passe Livre: pela desmercantilização do transporte público100, em outubro de 2005. Lúcio Gregori era um dos debatedores e, ao conhecer a pauta de gratuidade estudantil do movimento, fez uma fala questionando a lógica da gratuidade segmentada, que em última instância poderia impactar a tarifa, se seu custeio não fosse feito pelo orçamento municipal. Em seguida, descreveu a lógica do projeto Tarifa Zero e como a gratuidade universal poderia ser implantada.

100

Essas informações foram obtidas em conversas com Lúcio Gregori.

178

Figura 1 - Cartaz para Seminário "Transporte Público e Passe Livre" - organizado pelo MPL-SP. Fonte: arquivo de Lúcio Gregori, enviado por correio eletrônico.

A partir daí, a proposta de Tarifa Zero se consolidou como bandeira do MPL. Lúcio participa do 3º Encontro Nacional, realizado em 2006, e, a partir deste, de diversos encontros e debates pelo Brasil. Aos poucos, a proposta que esteve fora do debate político por 15 anos, volta à pauta em meio ao agravamento da crise de mobilidade e à aceleração da motorização. Para Léo Vinícius, a transformação da bandeira de luta aparece como um desdobramento natural da condição da luta do MPL e da juventude: A tarifa zero veio ao encontro da subjetividade presente na juventude que se mobilizava em torno das questões de transporte e aumento de tarifas. [...] O passe livre universal, mais do que o passe livre estudantil, condizia aos desejos e à dinâmica de vida daquela juventude. Mostrava-se potencialmente mais atrativa, além de apontar muito mais diretamente questões relativas a direitos sociais e direito à cidade. Essa mudança de bandeira portanto não veio ao acaso. Por fundamental que seja o deslocamento à escola, o fato é que os desejos despertados e a subjetividade constituída na própria dinâmica da economia – de produção, consumo e formação da força de trabalho – transbordam em muito os limites de um mundo sob ótica fordista. A fábrica hoje é a própria cidade. E isso já não deveria ser novidade. A cidade é organismo que produz valor, produzimos na nossa própria vida cotidiana, mesmo fora do horário de trabalho, construindo estilos de vida, cultura, novas formas de comunicação... A própria força de trabalho é formada no usufruto da cidade, da sua cultura, nos encontros programados ou inusitados, até mesmo participando de movimentos sociais, muito além dos muros escolares. É a geração de novos

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direitos sociais emergentes dessa subjetividade constituída em um regime de produção cada vez mais pós-fordista que está em jogo, e em última análise é esse o sentido que as ações coletivas dessa juventude carregam consigo. (VINÍCIUS, 2014, p. 13-4).

De fato, a impressão que se tem é que, conforme a realidade econômica e urbana se transformava, a proposta de tarifa zero ganhava cada vez mais força lógica. Sua potência de transformação podia ser sentida nos debates, e a clareza com que trazia as questões da afirmação desses “novos direitos sociais emergentes” era impactante. Em julho de 2009, o blog tarifazero.org é criado na internet, editado por militantes ligados ao MPL. Ao servir de portal de notícias sobre a questão e informar sobre experiências de gratuidade no transporte pelo mundo, o blog passa a dar conteúdo para o debate e a atingir pessoas que não estavam necessariamente interessadas em se tornarem ativistas de movimentos sociais. Em outubro de 2010, a artista plástica e integrante do MPL-SP, Graziela Kunsch organiza um ciclo de debates para o lançamento da revista Urbânia 4, um projeto editorial colaborativo que busca discutir projetos de cidades. Para a mesa intitulada “Deslocamento é lugar”, convida Lúcio Gregori e Thiago Benicchio, criador do blog apocalipsemotorizado.net. Os editores da revista PISEAGRAMA, foram convidados para participar da mediação do debate, o que é feito pela arquiteta Renata Marquez. A PISEAGRAMA era então um projeto editorial belo-horizontino em gestação, recémaprovado em um programa do Ministério da Cultura, cuja primeira revista a ser lançada em janeiro seguinte teria o tema “Acesso”. É no debate “Deslocamento é lugar” que os editores terão contato com as ideias de Lúcio Gregori pela primeira vez. Esse episódio seria apenas um detalhe que poderia ser omitido na narrativa, não fosse pelo fato de que esse encontro é parte importante para compreender características relevantes da trajetória do Tarifa Zero BH, três anos depois. Na ocasião, Lúcio Gregori discorre sobre a proposta e se emociona ao afirmar que a tarifa zero “muda tudo”, toda a realidade cotidiana do espaço. A fala impactante fez com que os editores convidassem Lúcio a escrever um texto para a 1ª edição da revista, quase no prelo. Assim, o breve relato “A iniquidade da tarifa” (GREGORI, 2011) e “Muda Tudo” (KUNSCH, 2011) foram publicados. O fundamental, entretanto, era que a ideia de tarifa zero havia sido colocada como uma das propostas norteadoras do debate que o projeto editorial propunha. Em 2012, no tradicional Festival de Inverno da UFMG, realizado em Diamantina, surge a oportunidade de se criar uma experiência prática de tarifa zero. 180

Aproveitando a frota ociosa de veículos da UFMG, que era utilizada apenas para o transporte de convidados do evento, dois dos editores da PISEAGRAMA e organizadores daquela edição do festival propõem que as vans circulem de maneira regular e gratuita pela cidade. Essa seria uma experiência precursora da “Busona Sem Catracas”, proposta de intervenção urbana que será feita pelo Tarifa Zero BH, dois anos depois. Durante o período de eleições municipais em Belo Horizonte, por ocasião do projeto “Noite Branca” – uma espécie de virada cultural realizada no Parque Municipal – a revista PISEAGRAMA lança sua campanha não-eleitoral, com propostas de transformações urbanas concretas para a cidade. Entre os cinco eixos, sintetizados em frases de fácil assimilação e reprodução101, estava a proposta da gratuidade nos transportes, sintetizada na frase “Ônibus sem catraca”. A campanha é lançada em camisas, cartazes, adesivos e bolsas que rapidamente se esgotam.

Figura 2 - Cartazes da "campanha não-eleitoral" da editora PISEAGRAMA espalhados pela cidade. Fonte: Jornal Hoje em Dia – disponível em http://bit.ly/1KLQIMr

Em todo esse processo, há uma espécie de ruptura discursiva fundamental. É a primeira vez, desde que a proposta foi debatida na prefeitura de Erundina, que é realizado algo como um “apelo publicitário” para a ideia de tarifa zero, para além do trabalho militante do MPL. Nesse sentido, a proposta começa a fazer parte de certa 101

“#Uma Praça por Bairro”; “#Nadar e pescar no Arrudas”; “#Parques Abertos 24h”; “#Carros Fora do Centro” e “#Ônibus sem catraca”.

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paisagem urbana e imaginário coletivo que, ainda que claramente circunscritos a uma classe média universitária, abre caminho para o tema e a introdução do debate na discussão política cotidiana, outro espaço ocupado para além do necessário embate proposto pelo movimento social. 3.3.1. – Um primeiro aparecimento na disputa política institucional Paralelamente ao desenvolvimento da proposta na editora PISEAGRAMA, a Tarifa Zero começa a se fazer presente como pauta em disputas mais tradicionais no espectro político da esquerda. Depois de dois anos sem reajuste, no fim de dezembro de 2010 a tarifa de ônibus em BH sobe 6,52%, chegando a R$2,45. Coletivos de juventude de organizações como o PCR, PSTU, PCB e PSOL se organizam em uma frente ampla para lutar contra o aumento, batizada de “Todos contra o aumento!”102. Sem uma organização específica que pautasse a luta pelo transporte, como era o caso dos MPLs nas outras cidades, a frente ampla tem certa letargia em se formar e reagir contra o reajuste. Assim, as reuniões começam a ocorrer no fim de janeiro -- um mês após o reajuste – e um único ato contra o aumento é realizado no dia 17 de fevereiro de 2011, em conjunto com uma série de manifestações que ocorriam em todo o Brasil, com mais intensidade em São Paulo, onde o MPL-SP protestava contra o reajuste para R$2,70. Além disso, nas reuniões da frente, ficava evidente a falta de informações sobre o sistema de transportes da cidade: dados como quantidade de empresas, proprietários, forma de licitação e concessão eram desconhecidos das organizações integrantes. Além disso, para muitas delas não era tão relevante conhecer essas informações, e sim transmitir, mecanicamente, uma proposta formada em outra esfera de disputa, geralmente de direção nacional. Com a distância temporal em relação ao aumento e a dificuldade de mobilização, a frente ampliada tornou-se, na prática, um espaço para o debate da pauta de passe livre estudantil, uma vez que o meio-passe havia sido recentemente aprovado. Nesse sentido, com maioria de integrantes vinculados ao PSTU, acordou-se que o panfleto da frente teria como subtítulo a pauta pelo “passe-livre já! para estudantes e desempregados”.

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O relato aqui é baseado no grupo de emails [email protected]

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Figura 3 - Panfleto da frente "Todos contra o aumento!", de fevereiro de 2011, em Belo Horizonte. Fonte: tarifazero.org, disponível em http://bit.ly/1JpljkP

O ato pouco repercutiu na imprensa e foi o único realizado pela frente, que depois se juntou às manifestações do movimento “Fora Lacerda!”, que crescia à época. Cabe ressaltar, entretanto, que aquele foi o primeiro momento em que a pauta da tarifa zero foi levada a uma manifestação contra o aumento. Cada força política que compunha o movimento estava livre para distribuir o material de sua organização, se assim o desejasse. Foi assim que o núcleo PSOL UFMG, ao ter contato com as ideias do MPL e do site tarifazero.org buscou pautar a Tarifa Zero nesse ato. No panfleto lia-se: Como implementar a tarifa zero? [...] O plano básico é substituir a lógica do “paga quem usa” pelo “paga quem se beneficia: a tarifa zero seria feita através de um Fundo de Transportes, que utilizaria recursos arrecadados em escalara progressiva. Ou seja: quem pode mais, paga mais, quem pode menos, paga menos, e quem não pode não paga. Por exemplo: o IPTU de bancos, grandes empreendimentos, mansões, hotéis, resorts, shoppings, etc., seria aumentado proporcionalmente, para que os setores mais ricos das cidades contribuam de maneira adequada. Somente dessa forma é garantida a existência de um sistema de transportes verdadeiramente público, gratuito e de qualidade, capaz de distribuir a renda, e acessível a todos, sem exclusão social. (NÚCLEO PSOL UFMG, 2011)103

O panfleto, em linguagem técnica e com alguns equívocos, foi uma primeira tentativa de introdução do debate. No ano seguinte, a proposta seria colocada na campanha eleitoral pela prefeitura da cidade, na coligação PSOL-PCB com o termo

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Disponível em http://bit.ly/1Jn55c2

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“destarifação progressiva do transporte público”. Apesar de modesta em sua incidência política – a candidata a prefeitura da coligação obteve 4,25% dos votos válidos naquele pleito – a tarifa zero enquanto proposta de política pública começava a romper o marasmo dos espaços institucionais. A grande explosão, entretanto, ocorreria no ano seguinte. 3.4. Surgimento e trajetória do Tarifa Zero BH104 Em junho de 2013, a luta contra o aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus municipais e metrô de São Paulo desencadeia uma das maiores mobilizações populares da história brasileira. Em uma conjunção única e oportuna de fatores, centenas de milhares de pessoas foram às ruas em favor de melhores condições de transporte público e com uma ampla e difusa pauta de reivindicações. As circunstâncias que levaram a esses acontecimentos são variadas e ainda objeto de discussão e apropriação de variados grupos políticos, mas pode-se citar, entre outras, a brutal repressão da Polícia Militar paulista aos primeiros atos em São Paulo; a grande cobertura midiática e a repercussão internacional desde as primeiras manifestações; a ocorrência da Copa das Confederações, evento-teste e preparatório para a Copa do Mundo de futebol da FIFA, que não só atraía pela primeira vez a atenção mundial que um megaevento acarreta, como expunha as contradições que cercavam a realização da competição; e, por fim e fundamentalmente, o acúmulo de mobilizações não só do Movimento Passe Livre e correlatos no Brasil todo, como dos Comitês Populares dos Atingidos pela Copa (COPAC). Evento recentíssimo na história brasileira, as manifestações de junho de 2013 foram uma confluência de desejos de transformação, de potências organizativas, de juventudes em busca de uma identidade e da vontade de tomar a cidade como espaço de atuação, de vivência e pertencimento. É essa potência organizativa que rompe a barreira que impedia uma organização autônoma de luta por transportes em Belo Horizonte. A grande confluência que permite a uma série de pessoas – que se sentiam profundamente afetadas pelos problemas da mobilidade urbana – poderem se encontrar e dar início a uma nova organização. Conjunção heterogênea que colocará no mesmo espaço antigos militantes populares das

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História do tempo presente, o corte arbitrário de narrativa dessa trajetória será o mês de junho de 2015. No momento em que essa seção está sendo escrita, entretanto, outra “jornada de lutas” contra um aumento tarifário ocorre em Belo Horizonte.

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AUTCs da década de 1980, anarquistas e autonomistas que buscaram novas experiências durante a década de 2000, integrantes de organizações estudantis e partidos de esquerda marxista tradicional, ativistas independentes e uma série de pessoas que nunca tinham tido experiência de organização política. É essa história que será brevemente relatada aqui. 3.4.1. Acontecimentos de junho de 2013 em Belo Horizonte No dia 10 de junho de 2013, uma segunda-feira, uma reunião ampliada dos movimentos sociais de Belo Horizonte, convocada pelo COPAC, reuniu cerca de 60 militantes no Sindicato dos Professores da Rede Municipal (SINDREDE). Em pauta, estavam as ações de repúdio à Copa das Confederações, que começaria no próximo sábado e da qual Belo Horizonte seria sede de três das dezesseis partidas realizadas. Ainda que a repercussão da jornada de luta contra o aumento da tarifa em São Paulo reverberasse no ambiente, as projeções eram tímidas: por muito tempo debateu-se sobre o local da manifestação contra o primeiro jogo na cidade, na segunda-feira, dia 17: se o mais próximo possível do Mineirão, evidenciando o perímetro de bloqueio estabelecido pela FIFA, ou se na Praça Sete, em função da tradição e da visibilidade. Os argumentos giravam ao redor da baixa capacidade de mobilização e de uma estimativa de que apenas algumas centenas de pessoas compareceriam ao ato. Diante dessa avaliação, decidiu-se por realizar uma chamada nos moldes de uma festa junina para o “1º Avancê do COPAC” e que o local seria a Praça Sete, mais central e acessível. Os desdobramentos das manifestações contra o aumento em São Paulo naquela semana insuflariam os ânimos em todo o país. A mídia repercutia diariamente os atos e a violenta repressão que se repetia, ao passo que as manifestações iam ganhando volume. Temerosos do que poderia ocorrer durante a Copa das Confederações, várias instâncias do governo se posicionavam, e uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais decretava a ilegalidade de qualquer manifestação pública no território estadual, a pedido do então governador, Antonio Anastasia (BAETA, 2013). Uma reunião para pensar ações contra o aumento foi convocada por meio do Facebook para o sábado, dia 15, na Praça da Savassi, e rapidamente recebeu a adesão virtual de milhares de pessoas. A reunião seria posterior à “Copelada”, um campeonato de futebol de rua autoorganizado em que, diferentemente da FIFA, todos e todas poderiam jogar. A adesão e expectativa das pessoas fez com que rapidamente a “reunião” se transformasse em ato, com mais de 8 mil presentes, se deslocando da Praça da Savassi até a Praça da Estação, 185

local onde o jogo de abertura da Copa estava sendo transmitido publicamente para milhares de pessoas. No dia seguinte, domingo, houve uma nova reunião do COPAC para discutir as próximas ações. Nessa reunião, coletivos autonomistas e anarquistas propuseram que fosse convocada para terça-feira, dia 18, uma Assembleia Popular Horizontal (APH), um espaço sem lideranças, autogestionado, em que se pudesse debater os rumos do movimento e suas pautas. A proposta foi acatada e a chamada é feita por meio do Facebook (Cf. RICCI & ARLEY, 2014). A manifestação de sábado e o clima de mobilização nacional fizeram com que o “1º Avancê do COPAC”, no dia 17, já se tornasse, de partida, uma das maiores manifestações da história da cidade. Trinta mil pessoas caminharam da Praça Sete até o estádio Mineirão, onde ocorria o jogo entre Nigéria e Taiti, sendo barradas por uma linha de policiais militares por duas vezes. Na segunda tentativa o cerco é rompido e a repressão policial se inicia, atingindo grandes dimensões.

Figura 4 - Bandeirão "Ônibus sem catraca" em manifestação do dia 22 de junho de 2013 Fonte: foto Mídia Ninja, disponível em http://on.fb.me/1LzhKJz

Na terça-feira, dia 18, ocorre a 1ª sessão da Assembleia Popular Horizontal que reúne para debate cerca de mil pessoas. É importante ressaltar que, nesse cenário, o COPAC atuava como o coletivo político responsável por convocar os atos, amalgamando as reivindicações que, naquela altura, já estavam se tornando bastante difusas. Entretanto, a APH define como exigência central: “a redução da tarifa do transporte público e a instalação do Passe Livre Estudantil e a auditoria dos contratos do transporte público, lutando pela TARIFA ZERO” (Cf. RICCI & ARLEY, 2014, p. 243). Como se vê, a ausência de um coletivo organizado em torno do transporte, como era o MPL em São Paulo, faz com que a pauta fosse mais ampla e não se limitasse a um 186

ponto específico, estrategicamente central. No geral, apesar dos antecedentes da proposta de tarifa zero relatados aqui, o ponto mais forte, colocado na ordem do dia por influência de organizações como a AMES-BH e o PSTU, era o Passe Livre Estudantil. As mobilizações nacionais, naquele momento, faziam parecer que era possível avançar rapidamente na pauta, a exemplo do que tinha acontecido no Distrito Federal, onde se debatia o Passe Livre Estudantil metropolitano. No dia 19 de junho, São Paulo e Rio de Janeiro anunciam revogação do aumento tarifário, enquanto Belo Horizonte permanecia sem posição oficial. O dia 20 de junho foi marcado pela maior adesão popular aos protestos no Brasil inteiro (Cf. SECCO, 2013, p. 75), bem como pela perda de controle de seus rumos pelas organizações de esquerda. Repressão pela polícia, perseguição nas ruas e ataques de grupos de extremadireita são relatados. Em Belo Horizonte, a manifestação reuniu 20 mil pessoas na Praça Sete, em uma quinta-feira sem jogo da Copa das Confederações. O sábado seguinte, dia 22 de junho, foi o momento da maior manifestação de Belo Horizonte, reunindo cerca de 125 mil pessoas que caminham novamente em direção ao Mineirão. Ao chegarem no perímetro FIFA, novos confrontos com a polícia. Na confusão, um manifestante cai do viaduto e vem a falecer 3 semanas depois105. O dia posterior, 23 de junho de 2013, pode ser tomado como o início do que veio a ser posteriormente conhecido como o Tarifa Zero BH106. A 2ª sessão da APH, com cerca de 500 pessoas, propõe como metodologia a divisão em grupos de trabalho (GTs) para trabalhar temáticas específicas107. O GT de transportes, que na 2ª reunião terá seu nome alterado para GT de Mobilidade Urbana, se configura como um dos maiores e abre espaço para o encontro das diversas pessoas que estavam interessadas nesse tema.

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Trata-se de Luiz Felipe Aniceto de Almeida, 22 anos, trabalhador de telemarketing e recém-formado no curso de reparação de aeronaves. Faleceu no dia 11 de julho de 2013, deixando órfã sua filha de um ano de idade. A relação de mortos e feridos nas manifestações de junho de 2013 pode ser conferida neste link: http://bit.ly/1VSsJWX 106 Há que se ressaltar que, durante sua trajetória, o Tarifa Zero BH nunca recebeu uma alcunha definitiva como “coletivo” ou “movimento”. Só recentemente, e por meio da mídia, que o grupo e suas ações têm sido tratados de maneira mais definitiva pelo termo “Movimento Tarifa Zero BH”. 107 Mobilidade Urbana, Reforma Urbana, Educação, Meio Ambiente, Reforma Política, FIFA e Megaeventos, Desmilitarização e anti-repressão policial, Saúde, Direitos Humanos e lutas contra as opressões, Democratização da Mídia, Cultura, e Permacultura eram os Grupos de Trabalho criados pela APH. Destes, os quatro primeiros citados tiveram trabalhos mais concretos e apenas o GT de mobilidade avançou para se concretizar como movimento. Vale ressaltar que, além dos GTs, a APH se propôs uma frente permanente de comunicação e outra de disseminação de assembleias.

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Na mesma noite, um grupo de e-mails com cerca de 200 pessoas é criado. Esse grupo de emails108 será, por vários meses, o espaço virtual de debate do movimento Tarifa Zero. Nessa semana, o prefeito Márcio Lacerda anuncia a intenção da Prefeitura de reduzir a tarifa em 10 centavos. A redução se daria por dois atos administrativos diferentes. Cinco centavos seriam fruto da isenção, para as empresas de ônibus, do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) e era proposto por meio do projeto de lei nº 417/2013, enviado pelo executivo para a Câmara Municipal (BELO HORIZONTE, 2013b). Já os outros cinco centavos seriam por meio do cancelamento da taxa de Custo de Gerenciamento Operacional (CGO), que era repassada diretamente à BHTRANS como parte de sua receita, configurando um montante anual de R$ 25 milhões. Propunha-se que esse cancelamento fosse feito por um decreto da prefeitura logo após a aprovação do PL 417/13 (BELO HORIZONTE, 2013c). Com essa proposta, que traria o preço final para R$2,70 (portanto ainda acima do preço de 2012, de R$ 2,65) a Prefeitura fazia uma dupla manobra. Por um lado, deixava de incorporar à redução da tarifa as isenções de impostos feitas pelo governo federal: o PIS/COFINS, que vigorava desde maio daquele ano, e a isenção de imposto sobre a folha de pagamentos, que vigorava desde janeiro. Essa isenção poderia representar, pelo menos, mais dez centavos de desconto na tarifa. Por outro lado, com o PL 417/13, a PBH buscava atender uma pauta histórica das empresas de ônibus: a isenção total do ISSQN para o setor, que configurava um considerável aporte de recursos para o município. O dia 26 de junho, quarta-feira, havia sido decretado feriado em Belo Horizonte, por ocasião do jogo da semifinal da Copa das Confederações entre Brasil e Uruguai. Em sessão extraordinária, convocada pela manhã, a Câmara aprova em 1º turno o referido projeto de lei. A última das grandes manifestações, por sua vez, parte da Praça Sete em direção ao Mineirão, reunindo cerca de 80 mil pessoas. Ocorrem depredações e incêndios nas concessionárias ao redor, a polícia reprime violentamente quem tenta furar o perímetro FIFA e – após a primeira dispersão do ato – passa a perseguir e prender manifestantes pelas ruas do centro da cidade. Mais uma vez um manifestante cai do viaduto José de Alencar, no perímetro FIFA, e vem a falecer no dia seguinte.109

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[email protected], grupo ativo até o momento de escrita dessa dissertação, será uma fonte de referência para o conteúdo dessa seção. 109 Trata-se do metalúrgico Douglas Henrique de Oliveira, de 21 anos, que faleceu poucas horas depois de sua queda, tornando-se a primeira vítima fatal das manifestações de junho de 2013 em Belo Horizonte.Uma das pautas da ocupação da câmara municipal, na semana seguinte, era que o viaduto fosse renomeado em homenagem ao jovem.

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No dia seguinte, 27 de junho, ocorre a 3ª sessão da APH. Nela é anunciada a aprovação em primeiro turno do referido projeto de lei. Militantes do PT afirmam que a bancada de vereadores do partido irá apresentar duas emendas ao PL: a primeira exigindo que fosse incorporada à redução a isenção dos impostos federais, totalizando uma redução de 20 centavos; e a segunda que as planilhas do sistema de ônibus fossem abertas. A votação em segundo turno estava convocada para o próximo sábado de manhã. É acordado na APH uma manifestação na própria Câmara Municipal para pressionar pela aprovação das emendas apresentadas. 3.4.1.1. – A ocupação da Câmara Municipal110 No dia 29 de junho, sábado, a sessão extraordinária começa cedo pela manhã. Às 08:30 apenas metade dos 200 manifestantes se encontrava dentro do prédio, aqueles que chegaram atrasados estavam impedidos de entrar pela Guarda Municipal. Há conflito com as forças de segurança, que atingem os manifestantes com spray de pimenta. Simultaneamente, o projeto de lei é aprovado em sua forma original, com as emendas da bancada petista rejeitadas. A indignação toma conta dos manifestantes, que decidem imediatamente permanecer na Câmara, em seu saguão de entrada. Começava assim a ocupação da CMBH, que iria durar oito dias. Emblemática para a discussão entre forma e conteúdo dos novos movimentos sociais, a ocupação exigiu da juventude presente uma considerável capacidade de autoorganização. Comissões de alimentação, segurança, limpeza e comunicação foram criadas e trabalhavam com revezamento voluntário dos ocupantes, o que nem sempre era cumprido e gerou algum desgaste. Espaços culturais eram organizados e muitas pessoas de fora contribuíam, trazendo mantimentos e doações. Ao todo, cerca de 500 pessoas participaram e contribuíram para a construção da ocupação. Durante os oito dias, assembleias diárias eram realizadas, bem como as reuniões dos diversos GTs. Ao GT de mobilidade urbana é legada a tarefa de sistematizar as exigências da ocupação, produzir conteúdo técnico para informar sobre as demandas do movimento e para o debate com os representantes do poder público. Não é tarefa fácil, em virtude da exiguidade e complexidade de informações públicas disponíveis. O contrato das empresas de ônibus com o município, por exemplo, não era encontrado no portal de informações da PBH e só estava disponível para a ocupação porque membros do PSOL 110

Os eventos aqui narrados têm como base de referência a página da Assembleia Popular Horizontal no Facebook: https://www.facebook.com/AssembleiaPopularBH e notícias de portais na internet.

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haviam conseguido uma cópia no ano anterior para debater o programa de governo nas eleições. Uma das primeiras conquistas da ocupação foi forçar a BHTRANS a fazer um portal de transparência na internet, no qual disponibiliza, até hoje, uma série de informações que antes só seriam obtidas mediante um calvário burocrático. Assim, a primeira exigência da ocupação era ser recebida pelo prefeito Márcio Lacerda, para apresentar suas demandas. O governo municipal, por sua vez, se portava de maneira intransigente. Em primeiro lugar, tentava condicionar o recebimento de uma comissão à desocupação da Câmara, o que, evidentemente, não foi aceito pelos ocupantes. Em segundo lugar, usou de manobras diversivas e mentiu abertamente sobre a ocupação: na segunda-feira, dia 1º de julho, a prefeitura lançou uma nota na imprensa afirmando que havia convidado os manifestantes para uma reunião para as 19h do mesmo dia e que o movimento teria recusado, buscando passar a imagem de radicalismo e intransigência para os manifestantes. A APH, por usa vez, lança nota esclarecendo que havia informado o presidente da BHTRANS e o secretário de governo de que só realizaria o encontro com o prefeito após a escolha democrática dos representantes da ocupação, o que não havia ocorrido. Afirma ainda o repúdio ao Prefeito Marcio Lacerda e sua forma de fazer política que, em uma decisão arbitrária e de má fé, não entrou em contato direto com a Assembleia Popular, a ação limitou-se a lançar uma nota na imprensa. Esse é o tipo de negociação executada pelo Prefeito, que primeiramente deslegitimou a Assembleia exigindo a negociar com “grupos mais representativos” para no dia seguinte tentar desmobilizar a população e ridicularizar o movimento perante a opinião pública marcando uma reunião às pressas. Convite a uma reunião que sequer chegou às mãos da Assembleia. (APH-BH, 2013a).

Na mesma noite, a Assembleia Popular Horizontal escolhe seus delegados para irem à reunião com a prefeitura, quando e se esta fosse marcada. O processo de escolha demonstra a tentativa de, por um lado, desconstruir ao máximo representações e instâncias de mediação e, por outro, evitar oportunismos e aparelhamentos. Nesse sentido, depois de longo debate sobre metodologia, aqueles que se dispunham a participar da reunião teriam um minuto cada para defenderem seus motivos. Depois que todos os candidatos se apresentassem, a assembleia iria definir a ida de cada um deles por “aclamação”, isto é, o candidato se colocaria em frente à assembleia e os presentes levantariam seus braços se concordassem com que a pessoa o representasse. Caso discordassem, manteriam seus braços abaixados. A decisão seria por contraste e, a princípio, não havia um número limite de representantes nesse primeiro momento. Antes do processo, houve um acalorado debate sobre se a ocupação iria optar pela 190

paridade de gênero na escolha de seus delegados, proposta que foi negada no plenário, mas posteriormente acatada pelos delegados escolhidos. Dessa maneira, 17 ocupantes foram “aprovados” e os únicos candidatos que se apresentaram que não foram escolhidos para a reunião eram, sintomaticamente, de grupos que não estavam construindo organicamente a ocupação da Câmara. Assim, membros do MEPR – no espectro mais sectário à esquerda – e da UJS e do DCE-UFMG (que naquele ano tinha uma gestão cujos membros eram, em sua maioria, da juventude do PT) – no espectro mais governista – foram rechaçados pela ocupação. Antes de passar à pauta de reivindicações, é necessário ressaltar que a ocupação da Câmara serviu como um espaço de rápido aprofundamento dos debates realizados pelo GT de Mobilidade Urbana. Nesse sentido, com o apoio da Auditoria Cidadã da Dívida, que também realizou um “Aulão” na ocupação para explicar a questão do transporte público, o grupo buscou a Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público para uma oitiva na qual apresentou nove denúncias sobre o sistema de transportes de Belo Horizonte, entre descumprimentos do contrato e da legislação. Dentre elas, há que se destacar a denúncia sobre a isenção de ISS – medida que era realizada sem estudo de impacto orçamentário da renúncia fiscal – que ensejará, por parte da Promotoria, um pedido de cassação do prefeito, no ano seguinte. A movimentação política de ocupação da Câmara, entretanto, era um processo mais amplo, e a pauta de reivindicações para a Prefeitura iria refletir as diversas concepções estratégicas e grupos políticos que compunham, naquele momento, a APH. É importante ressaltar que, a exemplo do processo de manifestações que havia tomado o país no mês anterior, a difusão das pautas era algo incontrolável. Sintoma da absoluta separação entre a esfera do Estado e a da Sociedade Civil e da falência das estruturas de democracia representativa, a oportunidade de se fazer ouvir e de exigir poder popular abria espaço para que vários grupos buscassem se afirmar. Assim, na composição heterogênea de ativistas e movimentos sociais que compunham a ocupação, era inevitável que a pauta não se focasse unicamente na redução tarifária, tal como era foco estratégico de luta do MPL nacional, por exemplo. O acúmulo do movimento estudantil tradicional irá se afirmar, bem como o protagonismo das ocupações urbanas nas mobilizações da cidade. Dessa maneira, a pauta de reivindicações se estabeleceu nos seguintes tópicos: 1. Revogação da portaria da BHTRANS de 26 de dezembro de 2012 que institui o aumento da tarifa de ônibus de R$2,65 para R$2,80.

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2. Incorporação imediata na redução do preço da tarifa da desoneração da folha de pagamentos (vigente desde janeiro de 2013) e do PIS COFINS (vigente desde maio de 2013): 3. Divulgação pública dos dados contábeis necessários para a realização de uma auditoria cidadã das empresas de ônibus, com a publicação dos produtos parciais previstos pela auditoria da Ernst & Young. 4. Implementação do Passe Livre para todos os estudantes e desempregados. 5. Agendamento de uma reunião com as ocupações urbanas e o Conselho de Habitação. 6. Agenda de reuniões com demais eixos temáticos da Assembleia Popular Horizontal. (APH-BH, 2013b)

Assim, percebe-se que as reivindicações da ocupação eram – no limite – a redução da tarifa em 35 centavos (15 do cancelamento do aumento de 2012 e outros 20 de todas as isenções fiscais), além da abertura das contas e de criação da gratuidade para estudantes e desempregados (bandeira que era defendida programaticamente pelo PSTU). Os pontos 5 e 6 foram acrescentados à pauta quando esta foi apresentada à assembleia geral da ocupação, refletindo assim a influência de outros movimentos e a necessidade de composição para dar coesão à própria APH. Na noite do dia 2 de julho, o secretário de governo entra em contato com a comissão de comunicação da APH e marca a reunião com o prefeito para o dia seguinte, às 15h. A reunião ainda é adiada em duas horas, mas acaba ocorrendo na prefeitura no dia 3 de julho, às 17h. Todo o processo é transmitido ao vivo pela internet e o vídeo ainda está disponível online111. É necessário deixar claro que aquela era a primeira vez nos cinco anos de governo que movimentos sociais eram recebidos pela prefeitura com uma pauta para negociação. Nesse sentido, a própria reunião é uma demonstração da força das movimentações políticas que estavam ocorrendo, além de se configurar como um grande aprendizado para todos os participantes daquele processo de luta. Depois de uma hora de reunião, em que todos os delegados se posicionaram e a pauta de reivindicações foi apresentada, o prefeito se irrita e a encerra abruptamente. Sem resposta sobre as reivindicações, os representantes da APH decidem permanecer na prefeitura até que a reunião seja de fato finalizada. Diante dessas circunstâncias, o prefeito retorna e as pautas são respondidas ponto a ponto. Ao fim e ao cabo, todas as suas respostas são evasivas, e a única afirmativa é a respeito da incorporação da isenção dos impostos federais na redução tarifária, como se pode ver na nota da APH: [sobre o ponto 1.] Resposta Marcio Lacerda : A revogação da portaria não é possível, mas a prefeitura está buscando, outras formas de redução da tarifas. 111

Link reduzido para o vídeo no site youtube: http://bit.ly/1LemfMj

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[sobre o ponto 2.] Resposta Marcio Lacerda: Para no máximo dia 5 de Julho a respeito do PIS COFINS e considerando os 30 dias de prazo para as empresas concessionárias aplicarem o PIS COFINS. [sic]. [sobre o ponto 3.]Resposta Marcio Lacerda: A publicação será feita de acordo com a orientação da Procuradoria e a Controladoria. [sobre o ponto 4.] Resposta Marcio Lacerda: É impossível, não há recurso pra isso, pois dependendo da sua extensão pode representar um custo que a Prefeitura não tem condição de pagar. O que podemos fazer é uma analise para a possível criação de uma tarifa social. Não é uma prioridade da Prefeitura, mas o prefeito abre a sugestão para a criação de um plebiscito para a população decidir se é ou não prioridade. [sobre o ponto 5.] Resposta Marcio Lacerda: O prefeito firmou esse compromisso. [sobre o ponto 6.]Resposta Marcio Lacerda: O prefeito firmou esse compromisso, de acordo com a sua disponibilidade. (APH-BH, 2013b)

Diante dessas circunstâncias, a decisão em assembleia foi pela continuidade da ocupação até que a tarifa fosse diminuída. A Prefeitura marca uma coletiva de imprensa para a sexta-feira, dia 5 de julho, para anunciar seu posicionamento, mas já indicava uma maior redução tarifária. A APH convoca então uma manifestação para o mesmo dia e horário da coletiva, para pressionar a prefeitura. Demonstrativo cabal de como a espontaneidade das manifestações de junho tinha arrefecido rapidamente, e de como era necessário que os movimentos que compunham a ocupação da Câmara começassem a pensar em processos de mobilização de base, o chamado “7º Grande Ato” não reuniu mais que 200 pessoas na Praça Sete naquele dia. De qualquer forma, o anúncio da Prefeitura era de redução de 15 centavos na tarifa, voltando ao preço original de R$2,65, com a manutenção da taxa CGO e a incorporação da isenção dos impostos federais. Era uma vitória concreta, ainda que parcial, do movimento que buscou se organizar a partir das manifestações de junho. Em um cenário no qual os empresários de ônibus da cidade possuíam articulações políticas a nível nacional e o governo municipal era notório por sua intransigência perante as mobilizações populares, a conquista de mais cinco centavos e a manutenção de uma taxa de financiamento da BHTRANS eram elementos materiais concretos. Para além disso, a experiência gerava elementos de acúmulo sobre a capacidade de mobilização popular, as ações diretas e as mesas de negociação. Se, por um lado, a reunião com o prefeito foi inócua para a maioria das pautas no momento da negociação, por outro gerou repercussão midiática e aumentou o desgaste de sua figura. Entretanto, a ocupação de um prédio público como elemento de pressão era o que dava lastro para que a negociação ocorresse. 193

Dois dias depois do anúncio da redução tarifária, a ocupação da Câmara é encerrada, não antes de um extenso debate em que alguns, mais afeitos à forma e à experiência que estavam construindo naqueles dias, defenderam ferrenhamente a permanência no prédio, mesmo diante do evidente e contínuo esvaziamento de participantes. A ocupação foi o encerramento das “jornadas de junho” em Belo Horizonte, mas, apesar da posterior dispersão de grupos e pautas, a experiência de atuação unitária por uma causa concreta iria se repetir em outras ocasiões, principalmente nas ameaças de despejo de ocupações urbanas nos anos seguintes. No entanto, não demonstraria a mesma potência – e, também, certa ingenuidade – que marcaram aqueles dias. 3.4.2. A campanha pela tarifa zero Na semana seguinte à ocupação da Câmara, o GT de Mobilidade Urbana da APH começou a realizar reuniões periódicas, nas noites de terça-feira. Na primeira delas, no dia 9 de julho, realizou-se uma apresentação sobre a proposta de tarifa zero nos transportes. A formação, que contou com a apresentação da nota técnica nº2 do IPEA, sobre tarifação e financiamento do transporte, bem como o debate sobre experiências de gratuidade nos transportes em várias cidades no mundo, deu-se em função de uma disputa sobre os rumos do movimento. Mais de 80 pessoas compareceram a essa reunião, e as reuniões seguintes teriam uma média de 50 participantes, que poderiam ser divididos em alguns grupos distintos: militantes de organizações de esquerda marxista-leninista, tais como o PCR (e sua juventude secundarista organizada na AMES-BH), o PSTU e algumas correntes internas do PSOL; membros de partidos marxistas de esquerda, mas sem orientação leninista, como o grupo Isegoria, do PSOL-BH; membros da AUTC-BH, vinculados ao PT; ativistas de perspectiva autonomista e anarquista, que viam no grupo a continuidade mais organizada das atividades da APH; ativistas independentes, com posturas variadas; pessoas sem experiência política anterior, que participaram dos acontecimentos de junho e estavam dispostas a construir uma continuidade; e pessoas ligadas à revista PISEAGRAMA. De maneira diferente daquela que ocorreu com o surgimento dos MPLs no Brasil, essa congregação de pessoas era por demais heterogênea para definir princípios imediatos e uma clareza de organização a priori. As trajetórias e perspectivas distintas dos membros que a compunham impediram que estratégias e formas de atuação fossem 194

debatidas mais a fundo. Na prática, a heterogeneidade da composição do GT de mobilidade urbana apresentava aspectos negativos e positivos. Por um lado, construía uma mobilização difusa, que atraía novos integrantes toda semana, e tornava o debate e as ações muito ricos em conteúdo. Por outro, acabava por seguir alguns dos vícios identificados nas mobilizações da Ação Global dos Povos, na qual a perspectiva de curto prazo e os eventos imediatos era o que pautavam as ações, sem um claro delineamento da estratégia de longo prazo (Cf. CORREA, 2011). Além disso, por seu caráter libertário, havia uma dificuldade em se identificar e refutar as tentativas de aparelhamento que surgiriam. Entretanto, essas virtudes e problemas se tornarão mais relevantes apenas com o decorrer do tempo. 3.4.2.1. – O projeto de lei de iniciativa popular Ainda em julho, ocorre a primeira discussão sobre os rumos do GT. A reunião do dia 16 debate a realização de uma campanha para um projeto de lei de iniciativa popular para a implementação da gratuidade total no transporte coletivo por ônibus da cidade. Mesmo dentro de um contexto em que a pauta do MPL havia ganhado considerável força e o debate sobre a tarifa zero estava na ordem do dia, houve resistência à elaboração desse projeto por parte de dois grupos dentro do GT: PCR/AMES-BH e PSTU. Esses grupos propunham que o projeto de lei deveria ser pelo passe-livre estudantil e para desempregados, dentre outras razões, pela maior viabilidade da proposta. Ficava claro, nesse momento, o enrijecimento das estruturas de esquerda tradicional, tão criticadas pelos autonomistas da AGP em diante, que disputavam os rumos do movimento a partir de diretrizes decididas por comitês centrais nacionais. De fato, em vários momentos ficara clara a questão das tentativas de aparelhamento, que em essência desconsideram a capacidade autônoma dos movimentos em debaterem e encaminharem suas questões políticas. O seguinte comentário, feito por Pablo Ortellado sobre ocorridos no 2º Encontro Nacional do MPL, ainda em 2005, se encaixa na discussão: Para o partido [de orientação leninista], a discussão do movimento não acontece na assembleia – ela acontece antes, no âmbito restrito do partido. O partido acredita que o movimento não tem maturidade para adotar sua política revolucionária e, portanto, ele precisa traçar uma estratégia para, aos poucos, conduzir o movimento no sentido que ele determinou. Assim, [...] na assembleia do movimento vão agir de maneira orquestrada e em bloco para que a decisão da assembleia do movimento coincida com a decisão do partido. Mas essa ação em bloco dos militantes do partido destrói a democracia do movimento. Para tentar conduzir a assembleia, os militantes

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do partido não poderão levar em consideração os argumentos divergentes, pois se levarem em conta esses argumentos, estarão abandonando a perspectiva do partido. Os partidários bloqueiam assim o debate, porque apenas fingem escutar – desde o começo eles já têm claro qual a decisão que vão defender até o final e seu trabalho todo consiste apenas em persuadir a assembleia a adotar essa mesma posição de uma maneira ou de outra. (ORTELLADO, 2005).

Apesar da posição dessas organizações, a decisão pela elaboração de um projeto de lei para a tarifa zero nos transportes teve ampla aceitação entre os participantes. Assim, a linha tática do movimento se dava, conscientemente ou não, a partir do acúmulo histórico da trajetória dos MPLs no Brasil, se juntando a campanhas de PLs de iniciativa popular que ocorriam em São Paulo e Distrito Federal, por exemplo. Dessa maneira, os próximos dois meses se voltariam para a construção de uma campanha de mobilização para a coleta das 95 mil assinaturas que seriam necessárias para encaminhar o projeto à Câmara Municipal112. Havia duas comissões permanentes para encaminhar essas tarefas. Uma comissão de elaboração do projeto de lei e uma comissão para a estratégia de comunicação e divulgação da campanha. Os principais aspectos do PL, entretanto, eram discutidos na reunião semanal. Exercício de imaginação de possíveis cenários no qual o transporte seria um elemento que efetivasse o direito de ir e vir e uma nova dinâmica urbana, os debates nas reuniões e o processo de elaboração do projeto de lei foram bastante frutíferos, ainda que nem sempre levassem em conta a real correlação de forças estabelecida na sociedade. Isto é, a capacidade real de conseguir as mudanças concretas por que se lutava, o que implicava o enfretamento de fortes interesses de vários segmentos sociais. Assim, tomou-se como referência o PL de São Paulo, bastante extenso, no qual se estabelecia o regime de concessão do serviço de transportes, um fundo de financiamento do serviço e um conselho de mobilidade urbana. Esses três elementos foram objetos de longos debates no grupo. O mais polêmico, com certeza, foi o debate sobre o regime de concessão para o serviço de ônibus. Havia uma disputa sobre se o projeto de lei deveria ou não contemplar a estatização do serviço de transportes. Questão semelhante já havia sido vivenciada pela JRI dez anos antes, ainda na campanha pelo passe livre em Florianópolis: por ser formada majoritariamente por ativistas de perspectivas anarquistas, as perspectivas anti-estatistas tomaram forma nos termos “municipalização

112

O artigo 29, inciso XIII, da Constituição Federal prevê que projetos de lei municipais de iniciativa popular necessitem de contar com a adesão de pelo menos 5% do eleitorado do município.

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do transporte” e “controle pelo poder público” ao invés de “controle pelo estado” (Cf. VINÍCIUS, 2014, p. 298). No caso do GT de Mobilidade Urbana, a perspectiva anarquista não era tão hegemônica. De fato, não se podia falar nem em um consenso anti-capitalista dentro do heterogêneo grupo. Ocorreu que, naquele cenário, a defesa da estatização dos transportes só foi feita pelos membros do PSTU e PCR; novamente, as duas organizações de perspectiva leninista. O debate, entretanto, foi mais rico e questões relevantes como o processo de desmercantilização do transporte e a possibilidade de autogestão foram aventadas. Ao fim e ao cabo, a proposta para que o PL previsse concessões para empresas privadas prevaleceu sob um ponto de vista pragmático e tático: a disputa jurídica e econômica com o município seria menor, e o processo de convencimento da população – que tem, em grande medida, uma leitura enviesada da questão da estatização – seria mais fácil. A perspectiva do controle popular do transporte, por sua vez, passaria para o debate de criação do conselho de mobilidade urbana. A discussão sobre o conselho de mobilidade urbana em um cenário de tarifa zero passava por suas atribuições e composição. Era consenso que este conselho deveria ser deliberativo e que controlasse a remuneração do serviço de transporte coletivo. A sua composição específica é que se tornou matéria de discussão, mas acordava-se que a maioria deveria ser composta por representantes da sociedade civil. Ao fim, foi proposta uma composição de 17 membros: nove da sociedade civil (um de cada regional da cidade), quatro do poder executivo, um do poder legislativo, um representante das empresas, um representante do transporte suplementar e um representante do sindicato dos rodoviários. A proposta era que os representantes da sociedade civil fossem eleitos mediante um processo de conferência municipal de mobilidade urbana, com etapas em cada uma das nove regionais. Por fim, o fundo de financiamento do serviço de transporte coletivo era pensado de maneira mais abstrata, pois os recursos necessários para a remuneração do serviço deveriam vir de reforma tributária específica e da vontade orçamentária do governo da vez. Todo esse debate era condensado em um projeto de lei com 36 artigos e 13 páginas. Feito o exercício de construção de cenários, cabia agora a luta para colocá-lo em prática. Mas ainda era necessária uma revisão jurídica do projeto que não havia sido 197

elaborado por especialistas. Um dos frequentadores do GT à época conseguiu articular o apoio legislativo da comissão de estudos constitucionais da OAB-MG. A reunião com essa comissão fez com que o conteúdo do PL mudasse significativamente. Para os advogados, a proposta original do GT entrava em conflito com a Lei Orgânica do Município (LOM) que, em seu capítulo XII, trata do “transporte público e sistema viário”. Segundo a avaliação feita, a LOM estabelece claramente a cobrança tarifária do serviço na hora da sua utilização e os procedimentos para tratar de qualquer gratuidade (entendida tacitamente como gratuidade segmentada). Em especial, o artigo 198 da atual LOM, ao deixar claro que para toda gratuidade deve ser criada alguma fonte de recursos, abria um precedente para que o projeto de lei fosse reprovado já na Comissão de Legislação e Justiça. Mesmo entendendo que a disputa pelos rumos do transporte é política, e não técnica, aos advogados parecia que era necessário resguardar as fragilidades. Dessa maneira, propuseram uma solução que se mostrou simultaneamente simples e impactante: que o projeto de lei de iniciativa popular fosse uma proposta de alteração da própria Lei Orgânica do Município para a instituição da gratuidade no uso do transporte como um direito universal. Assim, o projeto de lei passava de 36 artigos para apenas 8, nos quais a gratuidade da tarifa se tornava um princípio norteador da própria oferta de transporte coletivo. O fundo municipal era proposto como um novo artigo da própria LOM e o Conselho de Mobilidade Urbana passava às disposições transitórias, a ser criado e regulamentado em no máximo 180 dias após a aprovação do PL. Apesar de se tratar de um cenário longínquo, isto é, após a coleta de 95 mil assinaturas – processo que era visto como a questão mobilizadora central do GT – a mudança no projeto de lei também estabelecia que este deveria ser aprovado na Câmara por dois terços dos 41 vereadores, e não mais pela maioria simples. Se desenhava assim uma difícil luta institucional uma vez que o projeto entrasse em pauta, mas, no calor da construção da campanha, esse aspecto sempre foi minoritário. O fundamental era o processo de convencimento da população. 3.4.2.2. – A campanha política-publicitária A campanha pela coleta de assinaturas para o projeto de lei de inciativa popular de Tarifa Zero, na esteira dos acontecimentos de junho de 2013, se apresentava como uma pauta de mobilização propositiva, justamente aquilo que a luta vitoriosa contra o aumento tarifário revelava. Como ressalta Ortellado: 198

[o Movimento Passe Livre] soube estabelecer de maneira tática uma meta objetiva exequível: a revogação do aumento. Essa meta “curta”, no entanto, estava diretamente ligada à meta mais ambiciosa de transformar um serviço mercantil em direito social universal. A revogação do aumento criou o precedente de reduzir o preço da passagem pela primeira vez – foi assim em Florianópolis em 2004 e em São Paulo em 2013. A redução redirecionou a lógica da tarifa, da ampliação para a redução crescente, até o limite lógico da tarifa zero. Ao conquistar a revogação do aumento, a tarifa zero foi imediatamente lançada no coração do debate político. A dupla vitória de reduzir o custo das passagens e trazer para a centralidade do debate político a tarifa zero por meio de uma ação autônoma com uma estratégica clara é o mais importante legado dos protestos de junho. (ORTELLADO, 2013, p. 237).

Potência política desvelada por um trabalho de anos feito pelos diversos Movimentos Passe Livre no país, a concretização da revogação do aumento em mais de 100 cidades alçou a pauta de Tarifa Zero ao debate no conjunto da sociedade brasileira e – como tal – também se desgarrou de uma concepção ou imagem específica, multiplicando-se em variadas formas de apropriação narrativa. Em outras palavras, a proposta de gratuidade nos transportes já não era exclusividade da concepção autonomista e de enfrentamento direto ao sistema instituído, cuja estética e conteúdo os MPLs reproduziam ao longo de mais de uma década. Se essa questão já se apontava com a campanha #Ônibus Sem Catraca e outras iniciativas anteriores a 2013, no momento pós-junho a multiplicidade de leituras era inescapável. A Tarifa Zero ganhava outros imaginários, de que necessitava, e é nesse ponto que a construção da campanha do GT de mobilidade urbana foi – de uma maneira ou de outra – apostar. A forma como a campanha pela tarifa zero construirá sua identidade visual e sua forma de disputar a sociedade é um dos elementos que irá diferenciá-la dos MPLs e, no longo prazo, determinar sua identidade política com as adesões e dissidências e outras consequências advindas de um processo dinâmico de criação de identidade. Antes, é necessário destacar a magnitude do trabalho que envolveu dezenas de apoiadores em poucas semanas. A produção de um site na internet, conteúdo midiático e, principalmente, o material gráfico (impresso e virtual) consumiu horas de esforço e debate. O núcleo central da campanha desenvolveu-se em torno de uma frase-chave e uma identidade visual, elaboradas pela comissão de campanha depois de algumas reuniões. Ainda que buscasse traçar algumas distinções, a proposta tinha claramente origem nos trabalhos da revista PISEAGRAMA realizados nos anos anteriores, em sua proposta estética e política. As cores e a forma como a mensagem se apresentava buscava construir outro debate com a sociedade. Nesse sentido, rompia com a estética 199

“anarcopunk”113 presente na identidade visual do MPL desde 2004. De fato, era objetivo claro na proposta ampliar o espectro social de diálogo e construir, de certa maneira, uma agenda “positiva”, propositiva, em torno do projeto de lei. A Tarifa Zero, enquanto título e futura alcunha do movimento, focava menos na desconstrução de um sistema opressor (o capitalismo e sua lógica reproduzida na mercantilização do transporte), e mais nas mudanças que a gratuidade do transporte geraria na cidade. Saía de cena o preto e branco do “Zé catraca” - a figura do símbolo do MPL que chuta e quebra a catraca - e entrava o amarelo e rosa, em uma composição que não era imediatamente associável a nenhuma estética da esquerda: nem o vermelho marxista, nem o alvi ou rubro-negro anarquista. Uma escolha política, com todas suas consequências positivas e negativas114. Assim, é em torno da seguinte frase que a própria história política do GT de Mobilidade Urbana irá se desenrolar:

Figura 5 - Logo da campanha do projeto de lei de inciativa popular por tarifa zero Fonte: Página Tarifa Zero BH - disponível em http://on.fb.me/1ImQ5qE “Tarifa Zero é Mais. >>”

Propositiva e sucinta, a frase se desdobra para múltiplas construções de sentido. Os argumentos da campanha se estruturarão a partir de eixos que completam e

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Esse termo foi usado em algumas ocasiões por pessoas envolvidas nos coletivos, com as quais conversei para debater as diferenças entre o MPL e o Tarifa Zero como Roberto Andrés e Wellington Cançado, e por Graziela Kunsch durante uma apresentação no Palácio das Artes. 114 Guardadas as devidas proporções, pode ser feito uma espécie de paralelo entre a “história publicitária” da campanha pelo projeto de lei Tarifa Zero e a campanha publicitária-eleitoral do plebiscito de Pinochet, no Chile, em 1988. A campanha contra sua permanência (o “Não”) se baseou em uma estética alegre e propositiva, a despeito das atrocidades cometidas pelo ditador contra esse grupo político. Essa história é narrada no filme “NO!”, do diretor Pablo Larrain, de 2012.

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especificam o significado amplo da frase, e se estabelecerão com base em perguntas e respostas curtas, mas deixam em aberto futuras elaborações: Quer ampliar seus direitos? Tarifa Zero é mais >> JUSTO.

Figura 6 - Cartaz "Tarifa Zero é mais justo" Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1NKGCk3 Não pagamos para entrar nas escolas públicas ou em postos de saúde. Com TARIFA ZERO no ônibus, o transporte se torna um direito social e passa a ser financiado por toda a sociedade. Assim, todos têm acesso aos lugares e serviços da cidade. Quer ficar menos doente? Tarifa Zero é mais >> SAUDÁVEL

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Figura 7 - Cartaz "Tarifa Zero é mais saudável" Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1WVT04B O trânsito causa acidentes, doenças e stress. A poluição gerada pelos carros mata mais do que o cigarro e a dengue. Com TARIFA ZERO, mais gente anda de ônibus, os acidentes diminuem, o ar fica mais limpo e a saúde de todos fica melhor. Quer poupar seu dinheiro? Tarifa Zero é mais >> ECONÔMICO

Figura 8 - Cartaz "Tarifa Zero é mais econômico" Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1Lzivm4 Um terço do orçamento das famílias mais pobres é gasto com ônibus. O sistema atual é bancado por quem passa na catraca, mas ele beneficia a todos.

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Com TARIFA ZERO, o dinheiro da passagem não sai do seu bolso. E os mais ricos também contribuem Quer chegar mais cedo em casa? Tarifa Zero é mais >> RÁPIDO

Figura 9 - Cartaz "Tarifa Zero é mais rápido" Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1MRTIex O ônibus demora porque é mais lucrativo circular sempre cheio. Com TARIFA ZERO, as empresas passam a receber por viagem, e não por passageiro. O sistema fica mais eficiente, as pessoas deixam o carro em casa e todos chegam antes. Quer circular sem medo? Tarifa Zero é mais >> SEGURO

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Figura 10 - Cartaz "Tarifa Zero é mais seguro" Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1MYDjGR Para ter segurança, é preciso ter mais gente nas ruas, porque a proteção solidária é mais eficaz que a polícia. Com TARIFA ZERO, a espera no ponto diminui e os ônibus deixam de carregar dinheiro. A segurança de todos aumenta. Quer fazer mais negócios? Tarifa Zero é mais >> RIQUEZA

Figura 11 - Cartaz "Tarifa Zero é mais riqueza" Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1WVToQw

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Se mais gente circula na cidade, comércio e serviços vendem mais. Com TARIFA ZERO no ônibus, o dinheiro da passagem pode ser gasto no supermercado, no cinema, nos bares, nas lojas. A cidade fica mais rica e todos saem ganhando. (TARIFA ZERO BH, 2013).

Estes eixos de argumentação foram definidos nas reuniões gerais do GT, a partir de debates sobre a percepção do transporte público e da proposta em si. Um exemplo disso é o eixo de segurança, frequentemente ausente em debates da esquerda, mas condição fundamental na motivação das pessoas em ter acesso à cidade. A proposta de tarifa zero geralmente é percebida, como se viu no capítulo anterior, como a desconstrução da lógica dignificante do trabalho no usufruto do transporte. Em outras palavras, sua gratuidade é vista como abertura do ônibus para o espaço degradado das ruas: mendigos, crianças de rua e ladrões passariam a usar os ônibus e a segurança e conforto diminuiriam. Sem entrar no mérito da igualdade de direitos, que é abordado no tema da “justiça”, o cartaz sobre segurança argumenta racionalmente sobre as mudanças concretas em um sistema de tarifa zero: ônibus com mais frequência, portanto causando menos espera nos pontos de ônibus, vistos como perigosos; e ausência do dinheiro das passagens em posse do trocador, diminuindo a atração para furtos de ocasião. Das seis frases, a mais polêmica dentre os movimentos que construíam a APH foi a que aborda a riqueza, explicando a capacidade indutora de novas relações comerciais que um sistema de transporte gratuito geraria, ao liberar parte da renda dos segmentos mais pobres da população. De fato, a frase não parte de uma premissa anticapitalista e não tem, a princípio, em seu conteúdo o objetivo de construir uma mobilização que subverta a ordem estabelecida e seus fatores motrizes, isto é, a dinâmica de reprodução do capital. É interessante pensar que essa construção de sentido nunca poderia ser feita na estética da comunicação dos MPLs. Entretanto, o cartaz se adequava aos propósitos táticos de ampliação de universo discursivo e de disputa do imaginário de cidade que a implantação da tarifa zero criaria, algo que o GT discutia a partir da proposta de comunicação. As críticas, que partiam de dentro do espectro da esquerda, tinham seu mérito ao chamar a atenção para as limitações de alcance de transformação social da campanha, mas com frequência se perdiam em um purismo discursivo que desconsiderava qualquer aspecto de construção mais ampla de debate na sociedade. No fim das contas, o caráter revolucionário da proposta de tarifa zero não está objetivamente na relação da sociedade com os meios de produção do transporte, mas sim com a capacidade de acesso ao espaço urbano e o fim da segregação espacial e a desmercantilização objetiva de um serviço. É esse o ponto que fez a proposta de Lúcio 205

Gregori gerar muito mais incômodo dentro do próprio Partido dos Trabalhadores do que a pauta de estatização, consolidada discursivamente porém pouco exequível, como a primeira secretaria de transportes de Erundina constatou, algo debatido no capítulo anterior. Após a elaboração do projeto de lei, criou-se no GT uma comissão de mobilização para as ações que iniciariam o processo de coleta de assinaturas. Assim, cerca de 800 cartazes com as frases elaboradas foram impressos, camisas com a logo da campanha foram feitas para serem vendidas115 e uma ocupação cultural – um dia inteiro de apresentações artísticas – foi planejada para o Dia Mundial Sem Carros, 22 de setembro, um domingo. Além disso, no dia anterior realizou-se um grande “aulão” sobre o projeto de lei, com as falas de Lúcio Gregori e de uma representante do Movimento Passe Livre de São Paulo. A ideia era que a divulgação do projeto de lei fosse, em si, uma mobilização interna dos integrantes do GT. Dessa forma, ações como a colagem de cartazes pela cidade, algumas delas performáticas116, eram realizadas de maneira autônoma pelo movimento. No dia do aulão, parte daqueles que compareceram realizaram um pulão em uma linha de ônibus para ir até a Câmara Municipal colar os cartazes da campanha. A ocupação cultural atraiu cerca de 5 mil pessoas durante todo o domingo, com mais de 20 bandas em três palcos simultâneos, manifestando a efervescência política da juventude da cidade e demonstrando a capacidade de realização autônoma dos novos movimentos sociais.

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Os recursos financeiros para essas ações foram coletados de integrantes do GT que, com a venda de camisas, foram devidamente reembolsados. 116 Em uma dessas colagens, dois ativistas, fantasiados de trabalhadores da prefeitura, abriam o suporte de publicidade dos pontos de ônibus da cidade e colavam o cartaz em seu interior.

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Figura 12 - Cartaz dentro da estrutura publicitária de um ponto de ônibus em Belo Horizonte. Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1hJ5kW0

Apesar do sucesso do lançamento, as 4 mil assinaturas obtidas no primeiro fim de semana representavam menos de 5% do total necessário para o encaminhamento do projeto de lei. As quatro semanas seguintes, com ações em escolas e nas ruas angariaram as mesmas 4 mil. De certa maneira, a falta de perspectiva de construção de longo prazo, aliada a uma ansiedade por resultados diante da efervescência que havia sido o mês de junho, faz com que o GT de Mobilidade Urbana comece a diversificar suas ações e perder o foco da coleta de assinaturas. Nesse processo, a identidade visual e a proposta programática já estavam em pleno andamento. A disparidade de movimentação política entre o GT e o próprio espaço da APH, que se esvaziava a olhos vistos e se perdia em longos debates sobre formas e metodologias, deixando de realizar ações concretas, fez com que, gradativamente, a identidade do movimento se descolasse da Assembleia. Assim, já no fim do ano de 2013, o GT de Mobilidade Urbana será conhecido e referido como Tarifa Zero BH (TZ-BH). A sequência de atividades e movimentações que contam a história do Tarifa Zero BH pode ser dividida em dois tipos. Por um lado, apesar da heterogeneidade de vivências e concepções políticas que compunham o movimento, havia certa homogeneidade de juventude universitária de classe média em seus membros – com 207

algumas exceções – que dava a diretriz de um debate mais acadêmico e a respeito das institucionalidades e burocracias a disputar, com todas as contradições que essa perspectiva pode acarretar. Sendo assim, um forte eixo de ações do movimento sempre foi a atuação junto a instituições do Estado e sociedade civil, a elaboração de documentos, estudos e análises sobre a questão da mobilidade urbana em Belo Horizonte e no Brasil. Por outro lado, há uma série de ações desenvolvidas pelo TZ-BH que podem ser enquadradas como “ações diretas”. Isto é, ações que buscavam incidir – no momento de sua realização – na mudança objetiva das condições políticas e econômicas que dizem respeito ao transporte. Além disso, essas ações visavam abolir a mediação institucional entre a população e seu cotidiano, buscando construir transformações em sua realização. De manifestações contra o aumento da passagem a intervenções de rua como a linha de ônibus gratuita, pulões117, catracaços118, panfletagens e colagens de cartazes, todas essas ações traziam em si a vontade de transformação que movia os integrantes do GT. Esses dois aspectos serão narrados e debatidos a seguir. Em comum a todas as ações, seu caráter contingente, realizado na pressão que os fatos demandavam e não a partir de um planejamento. 3.4.3. Ações institucionais As ações institucionais desenvolvidas pelo Movimento Tarifa Zero BH buscaram, desde o primeiro momento, a disputa pelos condicionamentos legais e objetivos de regulação do sistema de transporte por ônibus e o sistema de mobilidade urbana de uma maneira geral. Partia-se de um entendimento tácito de que todas as frentes de disputa eram válidas, e, no geral, a busca pelo questionamento desses parâmetros proporcionava ao movimento um acúmulo de conhecimento e um certo respaldo perante determinados setores da sociedade, o que lhe permitia avançar na pressão política. Entretanto, percebe-se ao longo do tempo que a esfera estatal consegue ser bastante hermética e resiliente, de maneira que o tempo lento da disputa institucional – embora revele para o Movimento e para aqueles que o acompanham todas as contradições e desonestidades existentes por parte dos diversos atores políticos – possui 117

“Pulão” consiste em passar por cima da catraca do ônibus e utilizar o transporte coletivo de maneira gratuita. 118 “Catracaço” é o termo para designar a intervenção de uma ou mais pessoas sobre o sistema de catracas de um ônibus ou estação, interrompendo seu funcionamento e permitindo aos usuários que utilizem o sistema gratuitamente.

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uma capacidade de pressão política relativamente baixa para a expectativa de mudanças que havia. A tabela a seguir apresenta um resumo das ações institucionais empreendidas pelo Tarifa Zero ao longo de dois anos. Enquanto o projeto de lei e a campanha de tarifa zero eram elaborados, o calendário institucional já se afirmava e era entendido como uma forma de disputa. Uma segunda ocupação da câmara, mais esvaziada e radicalizada, com cerca de 40 ocupantes ao todo, da qual o GT de Mobilidade não participou, conseguiu pressionar por uma audiência pública sobre transportes, na qual a cobertura da mídia foi forte e pressionouse por uma CPI dos transportes, que nunca viria a sair do papel. A inflexibilidade do governo – em suas esferas executiva e legislativa – já começava a se afirmar para o movimento.

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Número Proposta

Tabela 4 - Sistematização de Ações Institucionais do Tarifa Zero BH Instância Institucional para Data a qual a ação foi Desdobramento direcionada

Denúncia de ilegalidades na Julho de 1 isenção de ISS às empresas de 2013 ônibus Denúncia de ilegalidades na licitação e na execução 2 contratual do sistema de transporte pro ônibus Projeto de Lei de Iniciativa Popular para a implantação da 3 tarifa zero no transporte por ônibus Emenda orçamentária para implantação de Tarifa Zero 4 em todos os domingos e feriados do ano

Ministério Público de Minas Agosto de Gerais - Promotoria de Arquivamento 2013 Justiça de Defesa do Patrimônio Público Setembro Câmara Municipal de Belo de 2013 Horizonte

Outubro de 2013

Elaboração de estudo, em parceria com a Auditoria Cidadã da Dívida, a respeito Março de 5 da verificação independente 2014 do equilíbrio econômicofinanceiro das empresas de ônibus Criação de Fundo municipal de melhoria da qualidade e 6 subsídio ao transporte coletivo

Ministério Público de Minas Motivou investigação e ação de Gerais - Promotoria de improbidade administrativa Justiça de Defesa do contra o prefeito Márcio Lacerda. Patrimônio Público

Julho de 2014

Rejeitada na comissão de orçamento e finanças da câmara, alegação de "inconsistências técnicas" Ensejou Ação Civil Pública (ACP) e liminar pedindo o cancelamento do aumento de Ministério Público de Minas tarifa de R$2,65 para R$2,85. Gerais - Promotoria de Aceita, a liminar vigorou por um Justiça de Defesa do mês, mas não teve sua Patrimônio Público continuidade concedida quando o MPMG entrou com a ação principal. Plano Plurianual de Ação Governamental - Câmara Municipal de Belo Horizonte

IV Conferência Municipal de Política Urbana de Belo Horizonte

1ª Revisão do Plano Emenda orçamentária - Tarifa Plurianual de Ação Novembro Governamental - Câmara 7 Zero aos últimos domingos de de 2014 cada mês Municipal de Belo Horizonte 1ª Revisão do Plano Emenda orçamentária - Tarifa Plurianual de Ação Novembro 8 Zero no Dia Mundial Sem Governamental - Câmara de 2014 Carros Municipal de Belo Horizonte Emenda orçamentária 1ª Revisão do Plano Publicação dos índices de Plurianual de Ação Novembro 9 desempenho e qualidade do Governamental - Câmara de 2014 transporte no interior dos Municipal de Belo ônibus Horizonte Elaboração de Ação Popular, em parceria com o Coletivo Dezembro 10 de advocacia popular de 2014 Margarida Alves, contra as irregularidades do reajuste tarifário de dezembro de 2014 Elaboração de Ação Civil Pública, em parceria com a Junho de 11 Defensoria Pública, contra o 2015 pedido de revisão tarifária feito pelo SETRA-BH

De 15 a 20 mil assinaturas coletadas de um total necessário de 95 mil.

Aprovada na plenária final e transformada em artigo do projeto de lei, aguarda tramitação na Câmara Municipal Rejeitada na comissão de orçamento e finanças da câmara, alegação de "inconsistências técnicas" Rejeitada na comissão de orçamento e finanças da câmara, alegação de "inconsistências técnicas" Rejeitada na comissão de orçamento e finanças da câmara, sem justificativas.

5ª Vara da Fazenda Municipal

Aceita em 1ª instância, o Município corrigiu o vício da portaria que a invalidava. Ainda aguarda julgamento em 1ª instância.

Defensoria Pública de Minas Gerais - Especializada em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais

Liminar aceita em 1ª instância, cassada em 2ª instância. Ação principal em tramitação na 1ª instância.

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a) Denúncias ao Ministério Público e o Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG) Ao mesmo tempo, buscava-se dar sequência à relação com o Ministério Público, iniciada ainda em julho. Nesse sentido, o movimento identifica e elabora um documento denunciando cerca de 15 irregularidades que cobriam desde a suspeita de fraude e cartel no processo de licitação do sistema; descumprimentos de exigências contratuais como os prazos de instalação de serviços e os parâmetros de qualidade; e pedido de transparência e participação popular no processo de verificação independente do contrato, realizado pela Ernst & Young, que estava ocorrendo desde abril daquele ano. Novamente, a cobertura midiática é ampla, principalmente em função da reverberação da pauta de junho de 2013. Na sequência das ações da campanha de coleta de assinaturas, houve uma audiência pública da Câmara Municipal para debater o Plano Plurianual de Ação Governamental, o orçamento de médio prazo do município. Em teoria, há uma abertura no calendário orçamentário para que a população proponha emendas e dispute a alocação de recursos na legislação orçamentária. Na prática, o que se verifica é o exercício da política de clientelismo e favorecimento da bancada de vereadores da vez. Mesmo assim, o GT de Mobilidade Urbana elaborou um projeto para que fosse implementada a gratuidade do transporte aos domingos e feriados na cidade – uma espécie de extensão permanente do “Passe Passeio” dos anos 1990. A proposta previa que a gratuidade iria gerar uma grande demanda por transporte e questionava justamente a lógica do transporte voltado para a produção e sua capacidade ociosa nos dias “nãoúteis”. Nesse sentido propunha que os ônibus aos domingos tivessem um quadro de horários equivalente ao de um dia útil. Os recursos previstos para o projeto (em torno de R$100 milhões) eram realocados de projetos como o Corta-Caminho, de perspectiva rodoviarista e alvo de fortes críticas do movimento. Apesar da mobilização para a Câmara e a pressão midiática, o projeto foi rejeitado por não atender a princípios técnicos orçamentários (tais como realocar recursos apenas de rubricas de fundos ordinários do tesouro, e não de investimentos) (BELO HORIZONTE, 2013e). Evidentemente, mais uma vez o aspecto técnico era utilizado por conveniência para diminuir o desgaste de favorecimentos políticos119.

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A íntegra do parecer negativo sobre a proposta, feita pelo vereador Pastor Henrique Braga (PSDB) pode ser acessada neste link: http://goo.gl/HcZIr8

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Isso ficou mais evidente no ano seguinte, quando, já ciente das complexas regras de alocação orçamentária, o Movimento Tarifa Zero propôs três emendas orçamentárias ao PPAG: a gratuidade do transporte nos últimos domingos do mês (com impacto anual de R$30 milhões), a gratuidade do transporte no Dia Mundial Sem Carros (com impacto anual de R$2 milhões), e a publicação dos dados de qualidade do transporte por ônibus no interior dos veículos, a exemplo do quadro de horários, a mais modesta e factível entre as três apresentadas, com impacto de 200 mil reais por ano. Na ocasião, alegando “problemas técnicos” não esclarecidos, a comissão de orçamento da câmara municipal rejeitou as duas primeiras propostas. A terceira foi simplesmente rejeitada, sem que sequer uma justificativa fosse apresentada. Era o isolamento e o oportunismo da esfera estatal falando mais alto. b) O Conselho Municipal de Mobilidade Urbana A “movimentação de placas tectônicas da sociedade brasileira” com os levantes de junho, para usar uma expressão utilizada pelo MPL-SP, fez com que as diversas esferas institucionais fossem obrigadas a sair de seu habitual marasmo. É o caso da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 90, de autoria da deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP), que propunha a inclusão do transporte como um direito social fundamental no artigo 6º da constituição. Compromissada com a pauta do transporte, Erundina conseguiu fazer com que a PEC fosse desengavetada em julho e uma comissão especial fosse formada para discuti-la. Composta pelos deputados Nilmário Miranda (PT-MG) e Marçal Filho (PMDB-MS), além da proponente, a discussão da PEC foi feita por meio de audiências públicas itinerantes. Na audiência realizada em Belo Horizonte, o GT de Mobilidade Urbana foi um dos debatedores da proposta, demonstrando o espaço de representatividade e interlocução que sua atividade havia alcançado. A pressão por espaço de debates e ampliação da participação popular sobre mobilidade urbana vinha também da mídia. Em Belo Horizonte, após a ocupação da Câmara, reportagens denunciavam a ausência de um conselho de mobilidade urbana (ou de transportes) que tornava a cidade a única capital brasileira sem esse tipo de instância de debate. Pressionado, o prefeito Márcio Lacerda publicou o decreto nº 15.318 no dia 2 de setembro de 2013, instituindo - sem nenhum debate público prévio - um conselho consultivo já pré-formatado (BELO HORIZONTE, 2013d). 212

Dentre as 47 vagas propostas para o conselho - entre prestadores de serviço, funcionários do poder público e representantes da sociedade civil - oito se destacavam de maneira peculiar: eram os “especialistas de notório saber”. Estes escolhidos supostamente possuiriam um conhecimento técnico na área que seria isento de contradições, neutro politicamente e direcionaria as discussões dos demais membros. Instigado com o caráter autoritário de tal medida, o GT de mobilidade urbana, aventou a possibilidade de disputa desse “notório saber”. Assim, debateu-se a realização de uma campanha para que as verdadeiras figuras de notório saber em transporte público, o “cidadão e cidadã comuns”, usuários cotidianos do transporte público, fossem escolhidos como representantes. Argumentava-se que - muito além de modelos, gestão, teorias e fórmulas, etc., - era a experiência cotidiana do ponto cheio no começo da manhã e do ônibus lotado todos os dias em uma cidade congestionada que se afirmava com um conhecimento concreto da realidade da mobilidade urbana. Assim, o que se buscava dizer era que o chão duro da realidade cotidiana podia falar bem mais alto que abstrações etéreas. Essa campanha, entretanto, não saiu do campo da discussão. Mesmo compreendendo que o Conselho de Mobilidade Urbana (COMURB) seria um espaço com esvaziada capacidade de atuação na realidade, principalmente por suas atribuições serem de caráter opinativo e consultivo, o GT avaliou que valia a pena disputar seu espaço – uma vez que teria acesso a informações e posicionamentos oficiais da prefeitura, bem como escutar e dialogar com mais atores do complexo cenário de mobilidade urbana da cidade. Para preencher as vagas de representação da sociedade civil, a prefeitura reativou as comissões regionais de transporte e trânsito (CRTTs). A eleição de representantes para as CRTTs se dava por território de gestão compartilhada de cada regional, com cada território podendo ter até seis representantes. Uma vez eleitos os representantes da CRTT, estes, entre si, escolhiam o representante e seu suplente para o COMURB. O Movimento Tarifa Zero consegue apresentar candidatos e eleger representantes em 4 das 9 CRTTs (Nordeste, Leste, Noroeste e Centro-Sul), mas percebe-se nessa dinâmica o estado de degradação das estruturas participativas surgidas na década de 1990 e o tamanho da tarefa de disputa política na sociedade. Na regional Nordeste, uma integrante do TZ é surpreendentemente eleita representante titular do COMURB após a divisão interna entre os candidatos alinhados à prefeitura e um processo de convencimento de seus pares, que não a viam como ligada às manifestações 213

de junho. Por sua vez, o processo de escolha na regional Centro-Sul, a mais populosa das nove, é emblemático: lideranças comunitárias ligadas à prefeitura fretam veículos para trazer sua base para eleição, algo já perceptível na entrada do edifício. Essa base recebe da prefeitura cartões de vale-transporte social, e aguarda para votar em sua liderança, eleita com ampla margem de votos. Entretanto, para a segunda etapa da votação, que elege o representante no COMURB, a base popular não tem voto, uma vez que a escolha é feita entre os pares da CRTT. Nesse processo, membros do Movimento Tarifa Zero ganham possibilidade concreta de eleição. Para garantir a escolha de um representante ligado aos interesses da prefeitura, foi preciso uma atuação truculenta por parte da gerência do orçamento participativo, que coordenava a eleição: cortou-se tempo de fala dos membros ligados ao Tarifa Zero e induziu-se outros representantes ao voto específico, além de terem entre os membros da CRTT funcionários da prefeitura, que votaram de acordo com a orientação oficial. Sendo assim, o movimento elege apenas o representante suplente para o conselho nessa regional. Vale ressaltar que em outras duas regionais – a Noroeste e a Leste – o Movimento elege representantes para a CRTT, mas não consegue disputar a representação no COMURB. Todo esse esforço, apesar de tudo, é, em grande medida, inócuo. Com um caráter absolutamente de fachada, o COMURB se reunirá apenas cinco vezes entre fevereiro de 2014 e junho de 2015, com pautas escolhidas pelo presidente do conselho (o Secretário Municipal de Serviços Urbanos) e completamente avesso a qualquer processo de debate. O exemplo mais cabal dessa manipulação é a recusa, em reunião no mês de junho de 2015, de se colocar em pauta a discussão sobre o pedido de revisão contratual, que ensejaria um aumento de tarifas, feito pelo Sindicato das Empresas à BHTRANS e alardeado na mídia ao longo de todo o mês. A disputa do COMURB foi uma escolha do Movimento Tarifa Zero, mas, felizmente, não foi tratada como uma prioridade e nem foi algo que demandou muita energia de seus participantes. O envolvimento no Conselho seguia a lógica de dar vazão ao acúmulo técnico construído dentro do movimento bem como a estratégia de se ocupar todos os espaços disponíveis para a disputa dos rumos da mobilidade urbana. Evidenciar a lógica corrompida da estrutura participativa do município, há muito cooptada por uma dinâmica clientelista, é também pedagógico para a discussão dos rumos do próprio movimento. Nesse sentido, essa movimentação abre a discussão sobre por qual formato de controle popular sobre transporte o movimento irá lutar. A 214

percepção de que, nos atuais espaços de participação, várias lideranças comunitárias de vilas e favelas reiteram as relações de poder e consumo hegemônicas no país – isto é, são simultaneamente rodoviaristas e clientelistas – deve gerar acúmulo para se refletir não só sobre as estratégias de trabalho de base como sobre a forma que a autogestão sobre o transporte público pode se dar. A concentração de poder em gabinetes e a utilização de estruturas participativas de fachada dá força para a constatação do MPLSP sobre o processo de junho: [É] na ação direta da população sobre a sua vida – e não a portas fechadas, nos conselhos municipais engenhosamente instituídos pelas prefeituras ou em qualquer uma das outras artimanhas institucionais -, que se dá a verdadeira gestão popular [dos transportes]. (MOVIMENTO PASSE LIVRE – SÃO PAULO, 2013, p. 16)

De fato, o atual Estado capitalista mostra continuamente interdições ao empoderamento popular nos transportes. Cabe aqui pensar quais outros poderes instituintes podem ser construídos a partir das revoltas populares. c) A IV Conferência Municipal de Política Urbana de Belo Horizonte Por seu caráter propositivo, cabem alguns comentários sobre a atuação do Movimento Tarifa Zero na IV Conferência Municipal de Política Urbana de Belo Horizonte (IV CMPU). Prevista em lei como instrumento de revisão do Plano Diretor da cidade, a IV CMPU passou por uma série de controvérsias e adiamentos até iniciar, em fevereiro de 2014, o processo de escolha de delegados dos três setores: popular, empresarial e técnico. Não houve uma decisão coletiva do movimento em participar da Conferência, mas, como um dos delegados do setor técnico era também integrante do TZ, pautas discutidas pelo movimento foram elaboradas em propostas e levadas à IV CMPU, dentro do eixo de mobilidade urbana da Conferência. A principal proposta apresentada pelo movimento na IV CMPU foi a criação de um fundo municipal de subsídio ao transporte coletivo. Nele, visa-se construir um instrumento orçamentário que permita o financiamento indireto do sistema de ônibus, rompendo com a lógica atual de financiamento 100% via tarifa. A medida, se aprovada, busca evitar aumentos tarifários anuais, e sua lógica avança, em teoria, para a tarifa zero, se o instrumento tiver aporte de recursos suficiente para subsidiar integralmente o sistema. A proposta foi aprovada no eixo de mobilidade urbana e no plenário geral dos delegados, mas o projeto de lei de reformulação, que compila todas as propostas aprovadas e reestrutura a legislação urbana da cidade, ainda não havia sido enviado à 215

Câmara Municipal, quando do momento de escrita dessa dissertação. Aventa-se que uma das razões seria um trancamento da pauta por parte da base de vereadores ligados aos interesses do setor imobiliário local, pois muitas das propostas aprovadas na IV CMPU criam sobretaxas e mecanismos de redistribuição da renda de localização dos terrenos.

Figura 13 - Publicação sobre a aprovação do fundo de financiamento da tarifa na IV CMPU Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1hjDm2g

d) A atuação no judiciário A disputa judiciária pelos rumos do transporte coletivo em Belo Horizonte também foi um horizonte de atuação do TZ-BH. Diante de um poder público absolutamente refratário a qualquer negociação e participação popular, e um sistema de transporte coletivo por ônibus com informações de difícil acesso e confiabilidade, a pressão por meio dos instrumentos do poder judiciário se mostrou como uma das poucas alternativas dentro do universo da institucionalidade. Como se discute na seção 1.5.4. deste trabalho, no contrato da atual forma de concessão do serviço em Belo Horizonte está prevista, além de reajustes tarifários anuais conforme a equação paramétrica dos índices de inflação dos principais insumos, uma revisão tarifária quadrienal para se verificar a “aderência” da fórmula de remuneração do serviço. Foi dessa maneira que a multinacional Ernst & Young foi contratada para realizar uma verificação independente do equilíbrio econômico e financeiro do sistema. Contratada em abril de 2013, o processo de estudos feito pela 216

empresa passou a ser questionado após a ocupação da CMBH. Em denúncias ao Ministério Público, o movimento pedia que o processo fosse participativo e que, ao mínimo, a sociedade civil pudesse fiscalizar os resultados parciais do estudo – já entregues à BHTRANS. Ademais, a prefeitura denominava o estudo como “auditoria”, quando, na verdade, os dados fiscais e contábeis das empresas não eram submetidos a um escrutínio, os dados fornecidos tanto pela BHTRANS como pelo SETRA-BH eram tomados como verdadeiros – sem a verificação de possíveis fraudes -, e a comparação dos preços de compra e venda dos insumos utilizados pelas empresas era feita com vendas em varejo. O estudo da Ernst & Young teve sua divulgação adiada em cinco meses pela prefeitura, que escolheu, convenientemente, a primeira reunião ordinária do COMURB para divulgar a primeira parcial de seus resultados, buscando, assim, utilizar o Conselho como espaço de legitimação de suas ações. O estudo recomendava uma revisão de 2,73% no preço da tarifa que, somados aos 5,6% do reajuste tarifário anual, elevariam o preço da passagem de R$2,65 para R$2,85. Diante de tantas evidências de que o estudo era insuficiente para balizar qualquer alteração contratual, o Movimento Tarifa Zero contatou e trabalhou em parceria com o movimento de Auditoria Cidadã da Dívida, para realizar um “contra-estudo” que balizasse uma intervenção judicial. Com o primeiro relatório em mãos (AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA, 2014a), o movimento se reuniu com a Promotoria de Defesa do Patrimônio Público do Ministério Público do Estado, que o utilizou como subsídio para entrar com uma ação cautelar com pedido de liminar contra o aumento, no começo de abril de 2014. O pedido de liminar foi acatado e o aumento suspenso por um mês. Sintomática, mas não surpreendentemente, o mês de abril de 2014 foi aquele em que os indicadores de desempenho operacional do sistema de ônibus da cidade atingiram seus piores níveis. Sem controle popular, as empresas realizaram uma espécie de “locaute branco”, retirando ônibus das ruas para manter suas margens de lucro (Cf. CÂMARA & MACIEL, 2014). Com um poder público conivente, a situação beirou o inaceitável. Entretanto, no começo de maio, a liminar deixa de ter validade e o pedido de suspensão não é confirmado pela ação principal. A nova tarifa reajustada começa, então, a vigorar. É o primeiro aumento tarifário desde as manifestações de junho de 2013, e sua realização vai gerar uma jornada de lutas de rua que não terá sucesso em derrubá-lo na ocasião.

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Em dezembro de 2014, quando questionada publicamente, a prefeitura desconversava a respeito de um reajuste tarifário anual, previsto em contrato. Na sequência do mês, aditivos contratuais e o cálculo dos índices de reajuste eram feitos a portas fechadas, enquanto o Movimento Tarifa Zero se esforçava em pautar a mídia para conseguir uma posição da prefeitura. Sem nenhuma espécie de antecipação, a prefeitura divulgou as mudanças contratuais e o reajuste da tarifa de R$2,85 para R$3,10 no dia 27 de dezembro de 2014, um dia após a data prevista em contrato. Sem apoio do Ministério Público, cujo promotor havia cortado diálogo com o movimento após este o ter pressionado publicamente nas redes sociais120, o TZ elabora uma ação popular em parceria com o coletivo de advocacia popular Margarida Alves. A ação, alegando irregularidades no ato administrativo do aumento, atinge seu objetivo e a 2ª instância revoga o aumento – entretanto, a infeliz coincidência de existirem duas portarias que autorizavam o reajuste tarifário com o mesmo número, especificamente a portaria SMSU nº144/2014, para o sistema convencional de ônibus e a portaria BHTRANS DPR nº 144/2014 para o suplementar, faz com que o objeto da ação fosse o sistema de transporte suplementar, e não o convencional (ver BELO HORIZONTE, 2014b, 2014c). Objetivo certo, alvo errado, graças à absoluta falta de transparência e falta de abertura do poder público. O coletivo insiste na via judicial, corrigindo seu objeto em nova Ação Popular, mas, devido a empecilhos processuais e uma demora fora do comum do poder judiciário, até o momento da escrita do presente trabalho, o pedido liminar da ação ainda não tinha sido julgado pela 1ª instância. Por fim, em junho de 2015, em meio ao processo de elaboração deste trabalho, as empresas de ônibus requisitam à BHTRANS um reajuste tarifário extraordinário, alegando problemas na demanda e na adaptação ao sistema BRT. Em parceria com a Defensoria Pública de Minas Gerais, integrantes do Movimento Tarifa Zero elaboram uma Ação Cautelar preparatória para Ação Civil Pública enumerando uma série de irregularidades no pedido do SETRA-BH. Após ter ganho a liminar em 1ª instância e suspendido o aumento, o município recorre e ganha a revogação da liminar em 2ª

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Depois de reunião com a promotoria, em março de 2014, o Tarifa Zero BH revelou em primeira mão a intenção da prefeitura em reajustar a tarifa. Em sua campanha nas redes, o movimento convocou a população a pressionar o Ministério Público para que este entrasse com uma ação contra o reajuste tarifário. Para tanto, divulgou o e-mail profissional de cada um dos promotores de defesa do patrimônio público. Desde esse ocorrido, o promotor responsável pela maioria dos casos tem se negado a receber o movimento em seu gabinete em diversas ocasiões.

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instância. A disputa ainda está em aberto, com manifestações de ambas as partes, no momento de escrita deste capítulo. Esse breve sumário das disputas institucionais que o Movimento Tarifa Zero empreendeu em dois anos de história é material para que se debata a atual estrutura de poder do estado na sociedade contemporânea. Partindo-se do princípio de que não existe neutralidade em nenhum elemento técnico ou jurídico, nenhuma das vitórias ou derrotas do movimento nas esferas institucionais pode ser atribuída unicamente à perícia ou capacidade técnica. De fato, fica claro que a disputa pelos rumos do sistema de mobilidade urbana é política e se dá a partir do tensionamento das estruturas de poder. Desacompanhada de pressão política material, com movimentações de corpos nas ruas e de opiniões na cidade, a ação institucional não tem efetividade. Entretanto, nem sempre a pressão política das ruas é suficiente para se conquistar o objetivo da ação institucional. Tal fato, porém, não é razão para desqualificar esse tipo de tática. A atuação institucional serve como um elemento de acúmulo nesse processo, além de gerar respaldo perante outros atores da sociedade civil que não são facilmente mobilizáveis pelas e para as ações de rua. Além disso, o exercício da disputa institucional antecipa cenários propositivos e ajuda no debate sobre as transformações sociais concretas que se quer empreender. É só o somatório de ações e de disputas que pode desequilibrar o poder instituído e avançar em direção a uma sociedade mais justa. 3.4.4. “Ações diretas” Surgido das manifestações populares, era claro para o movimento, desde quando era GT de Mobilidade Urbana, que as ruas são o espaço real de disputa dos rumos da cidade. Entre essa constatação e sua efetivação, entretanto, há distâncias, disputas e contradições que estarão continuamente presentes na história do movimento e se configurarão como uma de suas maiores dificuldades. Aqui é preciso diferenciar as diversas ações empreendidas ao longo de dois anos. A maioria das pessoas que se dispôs a construir o movimento era uma juventude de classe média, que teve no movimento “Praia da Estação”121, iniciado em janeiro de 121

A Praia da estação surgiu como um protesto contra o decreto do prefeito Márcio Lacerda que proibia “eventos de qualquer natureza” na Praça da Estação, região central de Belo Horizonte. Em janeiro de 2010, um blog convocou a população a comparecer à praça, em um sábado pela manhã, trajada de vestes de praia. Sucesso imediato, a manifestação ganhou periodicidade e se tornou um espaço de encontro para certa juventude da cidade com propósitos os mais diversos (Cf. OLIVEIRA, 2012). Cercada de sucessos e contradições, a figura desse movimento sazonal que ainda persiste será utilizada como uma das perspectivas que se pode ter sobre o Movimento Tarifa Zero e seus desdobramentos.

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2010, uma grande referência no processo de mobilização política: propunha-se, por meio da criação cultural e festiva, ressignificar o espaço e as relações sociais. Entretanto, como debatido nesse capítulo, o próprio processo histórico de luta pelo transporte e a trajetória dos MPLs no Brasil dão pauta e caráter objetivos ao movimento que precisa, também, se valer das formas mais “tradicionais” de manifestação: fechamentos de rua e “passeatas”. As conciliações e contradições entre os diversos tipos de ação é que estabelecem o fio da narrativa aqui apresentada. 3.4.4.1.- Manifestações “clássicas”122

122

O número de participantes relatado em cada manifestação é estimado aqui a partir do que é relatado na imprensa e confrontado com a memória viva de alguns dos participantes dos atos. A estimativa da imprensa, assim como a da Polícia Militar, não é tomada como fonte precisa e sim como mais uma das vozes da disputa narrativa.

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Diante da onda nacional de avanços na pauta de transportes, o primeiro ato de caráter tradicional convocado e realizado pelo movimento não foi reativo a um aumento tarifário, e sim em virtude do dia nacional de luta pelo passe livre, no dia 25 de outubro de 2013. Chamado de “1º Ato pela tarifa zero e pelo fim dos abusos das empresas de ônibus”, a manifestação reuniu, em seu auge de comparecimento, cerca de 300 pessoas, e reivindicava: a) o fim da apropriação pelas empresas dos recursos de publicidade nos ônibus, b) o aumento da oferta de ônibus aos finais de semana e nos bairros mais distantes e c) a integração metropolitana das tarifas. Diante das circunstâncias, o ato buscava ser performático: caminhou da porta da prefeitura até a parte de cima do Viaduto Santa Tereza. No local, estendeu nos arcos do viaduto um bandeirão de 5 metros quadrados no qual se lia “Tarifa Zero!” e ateou fogo a uma catraca, obtida de um ferro-velho, como um ato simbólico. A manifestação, com acompanhamento de grande contingente da Polícia Militar, desviou de seu caminho anunciado e não passou em frente ao SETRA-BH, finalizando na Praça da Estação. Apesar do sucesso da empreitada, considerando as circunstâncias das propostas colocadas serem menos mobilizadoras do que a luta contra um aumento tarifário, ficava claro para o movimento que sua capacidade de mobilização da população não era alta e que a atração espontânea de multidões havia ficado em junho de 2013. No fim de novembro e começo de dezembro daquele ano, o aumento tarifário previsto em contrato se aproximava, e a prefeitura ainda não tinha um posicionamento oficial a respeito do reajuste. O movimento começa então uma campanha fotográfica contra um possível aumento, intitulada “Se a tarifa aumentar, a cidade vai parar”, para alertar e mobilizar a população. Alegando que iria aguardar o resultado da verificação independente da Ernst & Young sobre o sistema, a prefeitura anuncia a suspensão do aumento naquele ano. Sendo assim, não foi necessária uma maior mobilização no final do ano. Apesar de não ter sido imprescindível nos últimos meses de 2013, a mobilização de rua era uma espécie de espectro que pairava nos debates do movimento. Entretanto, não eram debatidas as estratégias concretas para a construção das mobilizações, que passavam também por um trabalho estratégico de longo prazo e a escolha de segmentos específicos da sociedade a mobilizar. Ainda que seja uma percepção mais subjetiva, tendo como base o acompanhamento do grupo de e-mails do movimento, a impressão que se tem é de uma fetichização do protesto de rua ou da assim chamada “tática da 222

revolta popular”, como se a luta por uma pauta justa e a convocação – por meio de panfletagens e por Facebook – fosse capaz, por si só, de gerar um processo de mobilização semelhante aos das lutas vitoriosas contra os aumentos tarifários no século XXI. Esse fetichismo era aguçado pela própria mídia e as expectativas da sociedade, para a qual as manifestações de junho romperam com o pacto tácito que havia entre as classes e cuja refutação popular à Copa do Mundo de Futebol que se avizinhava era um sintoma e uma ameaça. É nesse sentido geral que as mobilizações de 2014 serão construídas. Em janeiro daquele ano, a prefeitura publica um decreto cancelando a taxa de custo de gerenciamento operacional cobrada aos operadores de transporte público (BELO HORIZONTE, 2014a). Elemento de disputa durante a ocupação da Câmara, naquela ocasião a extinção da CGO tinha sido proposta pela prefeitura como uma das formas de redução tarifária do município. Mas, sete meses depois, a extinção da taxa não vinha acompanhada de uma redução da tarifa e, na prática, configurava um aumento de receita na ordem de R$22 milhões para o SETRA-BH. Nesse sentido, oito dias depois do decreto, o Tarifa Zero BH realiza o ato chamado “Lacerda, repasse os 22 milhões do busão para a população”, que reivindicava que o cancelamento da CGO fosse diretamente repassado para a tarifa. A manifestação ainda pedia a publicação dos dados contábeis das empresas de ônibus e dos resultados da verificação independente da Ernst & Young. Com cerca de 400 presentes123, a manifestação saiu da Praça Sete e percorreu as ruas do centro até a Praça da Estação, onde tentou realizar um catracaço na estação central de metrô, sendo reprimida com spray de pimenta pela Polícia Militar. Do enfrentamento com a PM, é digno de nota ter sido naquela ocasião a primeira vez a se entoar na cidade uma palavra de ordem que evidenciava as contradições da gratuidade segmentada dos militares: “olha que desgraça, no busão a PM anda de graça! Eu também quero!”. Apesar da grande cobertura midiática (mais de 10 veículos de imprensa), o ato só conseguiu tirar da prefeitura um posicionamento de que o cancelamento da CGO passaria a vigorar dentro de três meses (Cf. TRAJANO, 2014). De qualquer forma, a pauta pedia a construção de uma “jornada de lutas”: era necessário ver a dinâmica de uma sequência de manifestações como elemento capaz de pressionar objetivamente a prefeitura. Implicitamente, o acúmulo de experiências das 123

Apesar de ser um número modesto, a impressão geral discutida após o ato era de que foi o maior ato para o início do ano desde que as frentes contra o aumento de tarifa se formavam.

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lutas dos MPLs no Brasil guiava as decisões, embora isso fosse poucas vezes explicitado. O ato seguinte foi convocado para uma semana depois, no dia 6 de fevereiro, e o número de manifestantes foi menor do que no 1º ato. No momento da concentração, ainda na Praça Sete, a polícia prende dois moradores de rua por uso de drogas e, em meio à confusão, uma integrante do PCR é detida. Mesmo assim, o ato ocorre e percorre as avenidas Paraná e Santos Dumont, onde o BRT estava em fase final de obras, segue pela Rua Caetés em direção a Praça da Estação e, de lá, segue rumo à prefeitura. Com bandeirões de 5 metros quadrados (“CPI do Busão” e “Fora Clésio Andrade”) e faixas de 12 metros (“Tarifa Zero Já!” e “Abaixou o custo, abaixa a tarifa”), o ato consegue ter volume e parar o trânsito da cidade, entretanto, com o arrefecimento da tensão no decorrer da semana, a impressão era de que a prefeitura – que já havia se mostrado intransigente em diversas ocasiões – estava cada vez menos inclinada a ceder. A desorganização, um certo desânimo e o número de tarefas que o Movimento se arrogava, devido à falta de debate de tática e estratégia, fez com que a sequência de manifestações ficasse prejudicada. Contribuíam para isso as tarefas assumidas para o carnaval de rua daquele ano, que serão debatidas no tópico seguinte, e a falta de estrutura formalizada dentro do Movimento. Sem clareza de estratégia nas reuniões semanais, as decisões que precisavam de maior agilidade ficavam prejudicadas. Fato é que, nesse contexto, houve hesitação na convocação de um 3º Ato, que acabou ocorrendo no dia 20 de fevereiro, com a presença de apenas 50 pessoas, encerrando aquela jornada de lutas. A primeira vez que o movimento mostrou fragilidade externa em sua capacidade de mobilização política não foi debatida com a seriedade necessária. Fatores como linhas táticas de atuação, estratégia de longo prazo, organização de estruturas de atuação dentro do movimento, formas de manifestação e capacidade de mobilização, que envolvia também a perspectiva de trabalho de base, não foram debatidos com o tempo e a profundidade necessários. Isso também ocorria pela pauta de demandas às quais o coletivo se propunha responder: organização de um bloco de carnaval de rua, atraso nas obras do BRT124, atraso na verificação independente da Ernst & Young, posicionamento a respeito da greve dos rodoviários e a pressão para a revogação do cancelamento da CGO. Todas essas tarefas, em virtude da falta de estrutura interna no movimento, 124

Uma “inauguração festiva” das estações do BRT, que já estavam com a entrega atrasada, foi feita pelo Tarifa Zero BH durante uma Praia da Estação, obtendo grande repercussão midiática.

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ficavam à mercê dos indivíduos que se dispusessem a encaminhá-las, o que gerava desequilíbrio externo, além de desgaste e tensionamentos internos. a) 1ª Jornada de Lutas contra o aumento No fim de março de 2014, se avolumavam os indícios de que a tarifa seria reajustada. Após a publicação do primeiro relatório da Ernst & Young, o Movimento Tarifa Zero BH mobilizou uma resposta formal em parceria com a Auditoria Cidadã da Dívida, como se viu na seção anterior. Em uma das reuniões com o promotor do Ministério Público, foi passada a informação de que naquela manhã havia ocorrido uma reunião entre o MPMG, o prefeito, o presidente da BHTRANS e a procuradoria do município, na qual fora anunciado o reajuste tarifário para o início de abril. A informação, em primeira mão, foi tratada com a relevância necessária e devidamente publicizada, para que a população se mobilizasse contrária ao aumento. Era o primeiro aumento tarifário pós-junho de 2013 e a publicação na página atingiu um dos maiores alcances da comunicação do movimento: LACERDA PREPARA AUMENTO DE PASSAGEM PARA O DIA 1º DE ABRIL. Atenção população de Belo Horizonte! Hoje pela manhã ocorreu uma reunião entre a prefeitura de BH e o Ministério Público para tratar do contrato de empresas de ônibus da cidade e o reajuste tarifário. Estavam presentes o procurador-geral do município, o prefeito Márcio Lacerda, o presidente da BHTRANS, Ramon Victor César, o diretor de transporte público da BHTRANS, Daniel Marx Couto, e os promotores do Ministério Público, Leonardo Barbabela e Eduardo Nepomuceno. Na reunião foi apresentado um resumo do relatório AINDA NÃO DIVULGADO da Ernst & Young com recomendações para a alteração do contrato das empresas de ônibus e o reajuste da tarifa. É com base nele que foi informado que a passagem SERÁ AUMENTADA PARA R$2,85 na próxima terça-feira, dia 1º de Abril. [...] Todas essas informações foram repassadas ao movimento Tarifa Zero em reunião hoje à tarde com o promotor Eduardo Nepomuceno, no Ministério Público. O Tarifa Zero BH tem continuamente alertado que nenhum reajuste tarifário pode ser realizado com base nos relatórios da Ernst & Young. Esses relatórios NÃO SÃO auditorias e não se baseiam em dados reais. São apenas suposições feitas com base nas informações passadas pelas empresas. Além disso, qualquer aumento de tarifa é um ataque direto à população mais pobre da cidade, que fica cada vez mais segregada no espaço urbano e impedida de se locomover. UM AUMENTO DE PASSAGEM É UM CRIME CONTRA TODOS. Chamamos toda a população a se mobilizar contra esse ataque da prefeitura! É necessário que a informação desse aumento se espalhe o mais rápido e amplamente possível. O movimento Tarifa Zero irá se reunir na faculdade de

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direito às 19h desta terça (25/03), para debater sobre os próximos passos. [...]. 125 (TARIFA ZERO BH, 2014b)

A publicação da informação e a posterior divulgação do e-mail profissional dos promotores do Ministério Público custou ao movimento a indisposição da promotoria e o fim do diálogo. De qualquer forma, o movimento convoca o “1º ato: se a tarifa aumentar, a cidade vai parar!” para o dia 3 de abril, mesmo dia em que o reajuste é publicado no Diário Oficial do Município para vigorar a partir do dia 6 de abril. A manifestação reúne 400 pessoas, mantendo o número do 1º ato do ano, e seguiu pela Avenida Amazonas em direção a Av. Paraná, onde entrou em duas estações de BRT, finalizando o ato na própria Praça Sete. Era uma relativa demonstração de forças, uma vez que o novo valor tarifário ainda não tinha entrado em vigor. No dia seguinte, a justiça acata o pedido de liminar do Ministério Público e suspende o aumento tarifário. Mesmo assim, o movimento decide por manter o 2º ato, marcado para a segunda-feira dia 7 de abril. Os acontecimentos do fim-de-semana insuflariam os ânimos para a manifestação seguinte: mesmo com a decisão publicada e divulgada amplamente pela mídia, o SETRA-BH, com a conivência da BHTRANS, alega não ter sido notificado pela Justiça e cobra o valor de R$2,85 de maneira ilegal no domingo, dia 6 de abril. O movimento denuncia a cobrança ilegal, uma apropriação indevida de cerca de R$80 mil, e convoca a população a não pagar a nova tarifa. No dia seguinte, cerca de 700 manifestantes comparecem ao ato que vai até a prefeitura e, de lá, atravessa o viaduto Santa Tereza e vai, enfim, à porta do SETRA-BH. Buscando evidenciar a responsabilidade dos empresários no aumento tarifário e na qualidade do transporte, o ato faz um jogral126 no qual avisa que o aumento foi barrado na justiça e anuncia a palavra de ordem, título da manifestação “Se a tarifa aumentar, a cidade vai parar!”. Assim, antes que a jornada de lutas tivesse que ganhar corpo, o movimento conseguia uma vitória momentânea e tempo para planejar as ações. b) Disputa de direção Lições aprendidas e narradas pelos MPLs nacionais iriam se mostrar relevantes para o movimento. Em um cenário no qual vários grupos organizados de juventude viam na questão do aumento tarifário a maior possibilidade de tensionamento social e mobilização de base, manter o direcionamento dos atos, seus trajetos, objetivos e 125

A publicação completa está disponível em http://on.fb.me/1qkBpGe Metodologia de amplificação da voz de um participante a partir da repetição, pelo coletivo, das palavras por ele proferidas. 126

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palavras de ordem claros era um desafio à parte. Várias organizações de perspectiva marxista-leninista viam na disputa da direção um elemento estratégico de atuação. Assim, ao evidenciar discordâncias políticas publicamente, questionar a trajetória e a tática do ato durante a manifestação, entre outras ações, essas organizações buscam construir uma referência mais ampla sobre si e ganhar militantes para o partido. No limite, era a perspectiva de vanguarda política de Lênin sendo aplicada à “massa” do ato. Há anos o MPL identificava e denunciava esse tipo de prática: desde as revoltas da catraca em 2004 (VINICÍUS, 2004), nas quais se alertou para os chamados “parasitas”, até análises de 2011 do MPL-SP: A visibilidade da luta atraiu a atenção dos mais diversos grupos políticos, com as mais diversas intenções. O MPL-SP não tinha uma prática estabelecida para lidar com estes grupos, ainda não tinha refletido sobre as potencialidades e limites de se trabalhar junto com eles. Surgiram também inúmeros oportunistas que tentavam fazer da luta seu espaço de realização individual de confronto com a polícia (OLIVEIRA & TOLEDO, 2011).

Nesse sentido, o movimento seguia os mesmos métodos utilizados pelo MPL a partir das lutas contra o aumento de 2013: faixa de frente com a palavra de ordem do ato, sem assinatura de nenhum coletivo; decisão do trajeto realizada por uma comissão de segurança anteriormente ao ato; e prerrogativa sobre os encaminhamentos táticos da jornada de lutas. Entretanto, a base de apoio difusa, majoritariamente relacionada à repercussão do movimento na internet e não necessariamente fruto de formações presenciais, fazia com que a condução dos atos fosse mais difícil. As expectativas de confronto eram agravadas pela proximidade da Copa do Mundo. Por diversas vezes, houve a necessidade de se disputar a voz com dois coletivos que portavam megafone em especial: a juventude da LER-QI (Liga Estratégica Revolucionária – Quarta Internacional), um partido de perspectiva trotskista; e o MEPR, de orientação maoista. Para tentar esclarecer a metodologia do ato e também garantir a segurança dos manifestantes, o Tarifa Zero BH postava o seguinte texto em suas convocações na internet: SOBRE SEGURANÇA, METODOLOGIA E CONSTRUÇÃO DO ATO Atenção para recomendações e esclarecimentos para o ato de hoje. Recebemos várias criticas e questionamentos sobre as concepções e a forma de conduzir os atos, por isso nos parece condizente com nossos princípios (principalmente o de transparência) tentar evidenciar essas questões. - O Ato vai acontecer, seja qual for o clima: sol, chuva ou temporal. - O trajeto do ato só será divulgado no momento em que começar, por questões de segurança. (veja o post sobre metodologia que publicamos)

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- A concentração está marcada para as 17h00. Isso significa que o ato vai começar por volta das 18h, 18h30. Não deixe de ir só porque você não pode chegar às 17h, 17h30 ou 18h. Chegue em qualquer horário que puder e cole com a gente, qualquer ajuda é sempre uma força a mais! - Por medidas de segurança, sugerimos que todos cheguem o mais cedo possível e permaneçam o mais juntos possível. - Caso seja abordado por um policial, filme. Você tem o direito de protestar e o direito de filmar a atividade da policia. Você tem o direito de filmar qualquer agente público no exercício de sua função pública. - Você não é obrigado a responder nenhuma pergunta sobre sua posição ideológica. Você não é obrigado a responder pergunta nenhuma. Não deixem que criminalizem o movimento. No mais, traga sua energia e disposição para transformar a cidade. TODOS ÀS RUAS AGORA, é hora de fazer política direta contra os desmandos dos empresários e da prefeitura. - O Tarifa Zero é um movimento aberto e horizontal. Todas e todos são mais que bem-vindxs para participar. - As reuniões do Tarifa Zero/ GT de Mobilidade Urbana são semanais, sempre às terças-feiras às 19h. Atualmente estão ocorrendo na faculdade de direito da UFMG. Reforçamos que as reuniões são abertas e horizontais. - É um movimento suprapartidário e suas reuniões juntam pessoas independentes, de partidos e ideologias diversas (frequentemente divergentes). - A proposta de manifestações é debatida nesse momento e em outros de comissões específicas. São discutidos principalmente horário e trajeto dos atos. - Por ter princípios abertos como a horizontalidade é necessário frisar que essas metodologias ainda estão em construção e constante mudança para tentar abarcar e problematizar o maior número de posições. Sabemos o quanto isso é difícil e incipiente porque geram mais questionamentos que respostas. - Dentre os consensos até o presente momento, há o repúdio ao uso de carro de som em manifestações (o exemplo disso foi nas jornadas de protestos do ano passado durante o último jogo na Copa das Confederações), assim como o [sic] uso de megafone. Acreditamos que a bateria acompanhando os atos, na qual qualquer um também pode participar, constitui-se como uma ação mais democrática, efetiva e divertida se opondo a verticalização e o monopólio da voz. - Não nos opomos a qualquer bandeira de partido, movimento e ideologia, tirando obviamente aquelas de tendências fascistas e discriminatórias, porém acreditamos que é importante a faixa abre-alas ser respeitada. - O Tarifa Zero nunca notifica o Estado ou qualquer polícia sobre suas atividades e atos, nem nunca requereu seu apoio ou acompanhamento. - Não criminalizamos nenhum tipo de ação direta. - Todas essas premissas anteriores se constituem como apontamentos e não 127 diretrizes. (TARIFA ZERO BH, 2014c)

Foi nesse contexto de disputa de direção, que as tarifas dos ônibus metropolitanos sofreram um reajuste de 6,57%. Era evidente para todos que a condição de mobilidade da região metropolitana era objetivamente pior do que em Belo 127

Postagem disponível em http://on.fb.me/1TUgB6W

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Horizonte. Entretanto, esse sistema transporta diariamente cerca de metade dos passageiros transportados pelos ônibus de BH, em uma área territorial várias vezes mais ampla que a do município. Em outras palavras, a capacidade de mobilização imediata da população atingida era menor, e, para ser efetiva, deveria seguir os mesmos princípios das lutas por transporte dos anos 1980, discutidas no capítulo 2. Mesmo assim, o Movimento continuava agindo sob a pressão dos acontecimentos e via nesse reajuste uma forma de pressão na própria suspensão do reajuste municipal. Assim, debateu-se de forma precária uma ação contra o aumento metropolitano, chamada no Facebook de “1º Protesto contra o aumento nos ônibus intermunicipais da RMBH”, convocada para o dia 28 de abril, uma segunda-feira, em frente ao DER. Havia uma disputa tácita sobre se aquele protesto seria um ato ou uma panfletagem, algo que não ficou definido até quando este ocorreu. Assim, sem organização, o ato foi um fiasco: menos de 50 pessoas, boa parte delas da LER-QI e do MEPR, forçaram o fechamento da Avenida dos Andradas, sob o olhar da Polícia Militar, que pressionava para a abertura da passagem. Enquanto isso, tensionados e sem direção, os integrantes do TZ-BH tentaram encerrar o ato já na Praça da Estação, atitude que não foi seguida por toda a manifestação. Cerca de dez a quinze pessoas racharam com o movimento e tentaram continuar o fechamento de rua. Houve discussão e tumulto. As organizações aproveitam para acusar publicamente o TZ-BH de “peleguismo” e de que este havia deliberadamente levado as organizações para uma espécie de armadilha. O “ato”, enfim, havia sido um fracasso. Sua vivência, ao menos, poderia dar alguma clareza sobre a identidade do Movimento Tarifa Zero e suas escolhas táticas. No dia 09 de maio, o judiciário emite nova decisão a respeito da suspensão do aumento das tarifas, revogando-a, de forma que a tarifa de R$2,85 passa a vigorar já no dia seguinte. O Movimento convoca um ato para a Av. Nossa Senhora do Carmo, principal via de acesso da região Centro-Sul da cidade, avaliando que era necessária uma mudança de estratégia e atividades que incomodassem mais diretamente as classes de mais alta renda da cidade, além de poderem travar o trânsito de maneira mais efetiva, uma vez que a engenharia de trânsito da BHTRANS conseguia minimizar os impactos de manifestações no centro da cidade. O 3º Ato contra o aumento da tarifa, chamado de “Se a tarifa não baixar, a elite vai pagar!”, reuniu 300 pessoas e fez o trajeto entre a

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Avenida Nossa Senhora do Carmo e a Praça da Liberdade, onde queimou uma catraca em frente ao relógio que fazia a contagem regressiva para a Copa do Mundo. A proximidade da Copa do Mundo, aliada às lembranças do ano anterior, fez com que vários segmentos sociais buscassem colocar nas ruas suas pautas. A difusão de pautas, ainda que pudesse agregar mais manifestantes, foi vista aqui como um dos elementos de dispersão da capacidade de conquistar resultados por parte dos movimentos. Nesse sentido, já em maio, atos nacionais eram chamados, mas recebiam a adesão apenas dos esperados mesmos grupos de esquerda. No dia 15 de maio, o movimento se soma ao “Ato Unificado – Direito à Cidade” convocando o “4º Ato: Se a tarifa não baixar, a cidade vai parar”. Apesar de o ato ter reunido cerca de 5 mil pessoas na Praça Raul Soares, a dispersão de pautas e a direção por parte de sindicatos fez com que a capacidade de pressão do movimento, naquela ocasião, fosse muito baixa. A estratégia de pressão na região Centro-Sul continuou a ser seguida, e o movimento tentou articular mais um ato. O quinto ato contra o aumento foi convocado para o dia 20 de maio, e sua concentração se deu no cruzamento das Avenidas do Contorno com Prudente de Morais, no bairro Lourdes. Pouco mais de 150 pessoas compareceram, mostrando novamente uma tendência de esvaziamento. O ato sobe a Av. do Contorno, vira na Av. Olegário Maciel e adentra as ruas do bairro Lourdes, encerrando-se em frente à residência do presidente da BHTRANS. O propósito era expor a responsabilidade do poder público na ação e pressionar os governantes individualmente para que mudassem sua postura. Uma vez que o prefeito de Belo Horizonte tem sua residência fora da cidade, restou ao movimento a pressão ao secretariado. Apesar da boa repercussão, com a proximidade da Copa do Mundo, o ato praticamente encerrou a 1ª Jornada de Lutas. Mais um ato, o sexto, seria marcado para dali a duas semanas, como uma manifestação cultural. Mas, como havia outro propósito performático, será tratado no próximo tópico.128

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Além destas, é importante mencionar a pedalada organizada pelo Tarifa Zero e a BH em Ciclo, a Associação dos Ciclistas Urbanos de Belo Horizonte em protesto à tragédia ocorrida naquele mês. Durante a fase final dos jogos da Copa do Mundo, no dia 3 de julho de 2014, o viaduto “Batalha dos Guararapes”, ainda em construção, desaba bruscamente na Avenida Pedro I. A queda atinge um carro e um micro-ônibus suplementar, deixando 2 mortos e 23 feridos. O ocorrido choca a população da cidade e do país e tem repercussão internacional. Na mesma noite, ao dar explicações no local, o prefeito Márcio Lacerda afirma que “acidentes acontecem”. É em resposta a esse afirmação, e buscando denunciar não só a corrupção que causou a queda do viaduto, mas a truculência cotidiana representada pela política rodoviarista de construção de estruturas, que a pedalada “Não foi um acidente” é organizada, mobilizando cerca de 50 ciclistas para percorrer o trajeto de 13 quilômetros entre a Praça da Estação e o local do acidente.

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c) A 2ª Jornada de Lutas contra o aumento No dia 27 de dezembro de 2014, a prefeitura reajustou a tarifa dos ônibus em 9%, passando a tarifa principal de R$2,85 para R$3,10. Atento sobre a questão contratual que poderia ensejar o aumento, o Tarifa Zero BH buscou convocar uma frente ampla para pensar ações que impedissem o reajuste. Assim, já no começo de dezembro, buscou fazer “Reuniões ampliadas contra o aumento” nas quais se definiu panfletagens e formas de comunicação. A tentativa de pressionar a imprensa para que ela buscasse algum posicionamento da prefeitura não foi efetiva, uma vez que a BHTRANS desconversava nas poucas reportagens que foram realizadas. Pensou-se também um ato anterior ao aumento, a exemplo do que havia ocorrido em abril, para informar a população e criar mobilização. Esse ato, com cerca de 80 pessoas, teve concentração na esquina das ruas Carijós e Curitiba, para aproveitar a movimentação comercial do natal. Realizando panfletagem, a manifestação seguiu pela Av. Paraná e subiu a Av. Afonso Pena, encerrando-se na praça sete. Um ato esvaziado, que não contribuiu de maneira eficaz para a mobilização da população, mas pelo menos deu a dimensão do tamanho da tarefa do movimento. Novamente, a falta de adesão de novos participantes e a baixa capilaridade apresentavam suas consequências, entretanto não se pode ignorar o contexto de desmobilização de fim de ano, anterior inclusive ao aumento. No dia 29 de dezembro, quando o aumento entra em vigor, o movimento convoca uma panfletagem e mobilização para a esquina da Rua Rio de Janeiro com a Av. Santos Dumont, em frente a uma das estações centrais do sistema de BRT. Aproveitando a situação, os cerca de 80 manifestantes realizam um catracaço em ambos sistemas: municipal e metropolitano. A entrada gratuita de usuários dura cerca de 40 minutos, o ato segue então em direção à Praça da Estação, onde se encerra com uma reunião ampliada para pensar novas ações. Assim, o primeiro grande ato contra o aumento é convocado para o dia 9 de janeiro de 2015. Com adesão de cerca de 800 manifestantes, é o maior ato contra a tarifa, desde 2013. Em alusão às jornadas de junho, o ato atravessa o complexo de viadutos da Lagoinha e fecha a Av. Antônio Carlos por 30 minutos. Apesar do sucesso, a prefeitura continuou com a postura que assumiu ao longo dos dois governos: evitar ao máximo qualquer tipo de declaração pública ou abertura para negociações. Uma novidade no contexto é a simultaneidade da luta contra o aumento no país. Em São 231

Paulo a tarifa havia sido reajustada para R$3,50 e no Rio de Janeiro para R$3,40. Nessas cidades, as manifestações haviam sido reprimidas pela Polícia Militar. A exemplo do que ocorrera antes e durante a Copa do Mundo, a jornada de lutas contra o aumento de 2015 perde força ao cair em um espaço de controle social, no qual não mais surpreendia. As forças que construíam o consenso hegemônico na sociedade têm uma vitória nesse sentido. Aliada a um direcionamento tático das forças policiais de repressão, pode-se dizer que os mecanismos de adaptação da máquina capitalista haviam chegado à lógica do protesto contra a tarifa. Uma vez perdido o elemento de espontaneidade capaz de surpreender as forças mantenedoras do status quo – como havia ocorrido em todas as grandes revoltas narradas nesta dissertação -, o enquadramento dos atos em um lugar discursivo, pela mídia, e um espaço de movimentação, pela polícia, mantinha a insatisfação sob um “controle seguro”. Os protestos, assim, já faziam parte do calendário de desgastes esperados e do próprio ato administrativo de reajuste tarifário. É o que indicam Martins e Cordeiro: Na luta de rua, já não parece possível driblar as forças repressivas com as mesmas manobras dos últimos anos. A insistência nelas desenha um cenário de gestão de motins, já espalhado pelo mundo: mesmo os mais violentos protestos, enquadrados na rotina e cirurgicamente contidos pela polícia, já não são tão capazes de abalar a ordem. Dos serviços de inteligência à justiça, a repressão estatal aprimora seu produto. Os protestos entram nos cálculos dos políticos, da imprensa e das seguradoras. A rua como fim em si mesma é um beco sem saída. Os enfrentamentos com a polícia, resumidos a um desgaste inócuo, se esvaziam tanto quanto o modelo dos “grandes atos” – organizados por articulações que não se cansam de buscar a bandeira sob a qual voltará a se forjar “a unidade da esquerda”. (MARTINS & CORDEIRO, 2014, grifos dos autores).

Nesse sentido, pensar uma maneira de inovar, abalar de fato a ordem e pressionar os poderosos era – e ainda é – um imperativo para os atos de rua. A questão, mais ampla, é a de até que ponto a variação da forma na rua é suficiente. A “urgência das ruas”, como afirmavam os autonomistas no fim da década de 1990 ainda existe, mas não pode se encerrar em si mesma. Torna-se necessário encontrar outras formas concretas de provocar fissuras na ordem. Nesse sentido, ainda que de maneira não explicitada, a estratégia “sob demanda” do Movimento Tarifa Zero BH tem pelo menos um aspecto positivo: faz sua luta de maneira ampla, buscando ocupar todas as frentes de disputa – da burocrática à discursiva, das ruas à festa. É tentando inovar que o 2º ato contra o aumento da tarifa, convocado para o dia 16 de junho, leva cerca de 500 manifestantes novamente à porta do SETRA-BH. Dessa vez, entretanto, busca explicitar de maneira mais clara a responsabilidade dos 232

empresários: pneus são queimados na porta do sindicato, enquanto outros militantes pregam cartazes com os nomes de todos os responsáveis legais das empresas, que haviam assinado o contrato de concessão de transporte em 2008. Uma publicação no Facebook também chamava atenção para a responsabilidade do setor: RESPONSABILIZAR OS TRANSPORTE PÚBLICO

EMPRESÁRIOS

E

RETOMAR

O

Paschoalin, Gomes Pereira, Fontes Azevedo, Furletti. Para a maioria das pessoas, esses sobrenomes não querem dizer nada, se confundem entre a familiaridade ou o exotismo da maioria dos sobrenomes brasileiros. Pois estes são os sobrenomes de alguns dos donos de empresa de ônibus de Belo Horizonte. Os Gomes Pereira possuem 3 empresas, em 3 consórcios diferentes; Fontes Azevedo e Furletti, bem como os Paschoalin, duas, além destes últimos exercerem a presidência do sindicato das empresas de transporte rodoviário de BH – SETRA-BH. Tudo isso sem contar as empresas de ônibus na Região Metropolitana, representantes laranjas e empresas em outras tantas cidades do Brasil. A luta contra a tarifa e por um transporte verdadeiramente público, justo e gratuito já vem de longa data. A cidade sempre se mobilizou contra os abusos que acontecem nos ônibus, sempre gerou uma resistência cotidiana, em pulões e catracaços, no apoio as manifestações. Mas é preciso dar um passo além. É preciso tirar os empresários da invisibilidade cômoda em que estes se escondem, sempre colocando a BHTRANS, a prefeitura e a Câmara de Vereadores como seus agentes, como se toda a responsabilidade da situação fosse deles. É necessário lembrar das manipulações que as empresas sempre fazem na imprensa, inventando vandalismos e pressionando sempre por maiores reajustes. É preciso denunciar as más condições de trabalho dos rodoviários, as jornadas não-pagas, a dupla função do motorista. Lembrar que são eles que não divulgam seus gastos, que manipulam informações, que se apressaram em cobrar isenções de impostos e não as repassam para a tarifa, que superfaturam investimentos, forjam oligopólios e criam cartéis. Lembrar das chantagens, da greve patronal velada que foi feita em Abril de 2014, quando o aumento foi revogado na justiça e os empresários retiraram ônibus das ruas, burlaram quadro de horários, e ainda ameaçaram fazer mais. Os empresários não podem continuar invisíveis. Eles têm nome e rosto como os governantes. E estes têm que estar na roda tanto quanto o do prefeito Márcio Lacerda e do Presidente da BHTRANS, Ramon Victor César. É por isso que nossa manifestação foi hoje até a sede do sindicato das empresas de ônibus. É por isso que colamos em seus vidros os nomes de todos 57 representantes legais de todas as 40 empresas de ônibus de BH. Toda a cidade precisa saber quem eles são. [...] CHEGA DE INVISIBILIDADE DOS EMPRESÁRIOS! POR UM CONTROLE POPULAR DO TRANSPORTE PÚBLICO! (TARIFA ZERO BH, 2015).

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Apesar da pressão por meio da mudança de tática, o movimento não conseguiu ampliar a mobilização necessária para prosseguir esse enfretamento contra o setor privado, mais complexo que o enfretamento contra o poder público. A dispersão de pautas e atividades, trazidas pela proximidade do carnaval, pelo mês rarefeito de janeiro, e pela relação fugidia das pessoas com o próprio TZ-BH – a falta de estrutura determinada sobrecarregava algumas pessoas, e todas encaminhavam as tarefas que consideravam individualmente mais relevantes -, fez com que houvesse novamente uma crise sobre a continuidade dos atos, sua forma, local e capacidade de mobilização. A difusa e volátil base de apoio do movimento e a tentativa de apoiar os pequenos, mas combativos, atos que ocorriam na região metropolitana foram outros fatores de dispersão. Assim, o 3º ato contra o aumento é marcado para o dia 26 de janeiro, 10 dias após o segundo. Em um dia em que todas as circunstâncias foram desfavoráveis – dificuldade de divulgação, chuva, desorganização na distribuição de tarefas – um ato com pouco mais de 80 pessoas vai até a estação de BRT da Av. Paraná e é crescentemente cercado e hostilizado pela polícia. Na dispersão, com 50 manifestantes, um integrante é detido pela PM. Ao tentar liberá-lo, mais três são presos. Os quatro membros passam então a madrugada na cela de detenção provisória da 2ª Central de Flagrantes da cidade, e são liberados na manhã seguinte. O movimento recebe manifestações de apoio e de repúdio à repressão da PM, mas avalia que não há mais conjuntura para prosseguir o enfrentamento nas ruas naquele momento. Era o melancólico fim de mais uma jornada de lutas. 3.4.4.2. – Cultura, Carnaval e comunicação Antes de prosseguir com a narrativa das diversas formas de atuação do Movimento Tarifa Zero BH, é oportuno apresentar a classificação de “tipos categoriais” que frequentavam o evento da Praia da Estação, feita por Igor Oliveira em sua dissertação de mestrado, para se ter alguma aproximação dos diversos sujeitos que compuseram a essência, a trajetória e as contradições do TZ-BH. Algumas dessas categorias podem ser percebidas nas manifestações clássicas e nas institucionais, mas é a partir da inserção do elemento cultural e de novas perspectivas de atuação que a dinâmica do movimento se complexifica, gerando avanços e contradições. Oliveira apresenta dessa maneira sua abordagem sobre a Praia da Estação: 234

Procuramos destacar os grupos, coletivos, iniciativas e sujeitos que tiveram protagonismo direto ao longo da história da Praia da Estação a partir da visibilidade que tiveram na proposição e realização de ações, bem como no desencadeamento de tensões, debates e disputas internas. Os “tipos categoriais” que utilizamos para apresentar os sujeitos da Praia da Estação serviram para nós como feixes de agrupamentos que subsidiaram nossas análises. [...] referimo-nos a esses tipos categoriais com os objetivos de nos aproximar das dinâmicas internas da Praia da Estação, de localizar as fontes de origem das disputas pelos sentidos e formas de ser da movimentação e de analisar os rumos e escolhas tomadas. Além de oferecer a nós mesmos e ao leitor uma localização aproximada dos sujeitos — a partir do “lugar de fala”. Os tipos categoriais são os seguintes: 1- Campo libertário: Jovens ativistas participantes de coletivos, iniciativas e movimentações que produziam ações coletivas contestadoras sobre a problemática da cidade. [...] a gênese da Praia da Estação tem a ver com a ação e influência desses jovens ativistas. Os jovens pertencentes a essa categoria representaram um setor minoritário na composição da Praia da Estação, a despeito da intensidade e visibilidade de seus posicionamentos no interior da movimentação. 2- Campo Cultural: Jovens atores e atrizes, participantes de grupos culturais — bandas e grupos vários, produtores e gestores culturais etc. 3 - Cidadãos engajados: Jovens e indivíduos que não se encaixam nas categorias anteriores e que vislumbraram na experiência da Praia da Estação uma oportunidade de participação em uma movimentação social. Agrupamos nessa categoria tanto indivíduos com experiência prévia de movimentação, quanto indivíduos que se identificaram com a movimentação praieira e se tornaram ativistas a partir dela. 4 - Banhistas: Agrupamos nessa categoria jovens e indivíduos que participaram da Praia da Estação motivados fundamentalmente pelas possibilidades criadas de encontro, festa, lazer etc. Eram os freqüentadores eventuais ou não da movimentação e que não possuíam o ativismo e a contestação social como motivações de primeira ordem para participarem. (OLIVEIRA, 2012, p. 152-3)

A esses quatro tipos, dada a variedade de atividades do Movimento, será acrescentada uma quinta categoria, já debatida anteriormente: a da juventude de organizações com concepções leninistas de atuação, como o MEPR, LER-QI PCR, PSTU, entre outros, que – se não possuíam uma identificação com o movimento, viamse na necessidade de compor também seus atos e ações de enfretamento mais clássicas. Aqui será chamada de 5 – “esquerda clássica”. Assim, o que diferencia o Movimento Tarifa Zero BH de seus antecedentes e correlatos é a opção por outra estética e forma de comunicação para debater a mobilidade urbana e a gratuidade nos transportes como pauta principal. Dessa maneira, conseguiu dar forma propositiva a pautas centrais de junho de 2013 e transformá-las em um forte potencial discursivo, que disputa o imaginário da cidade. Assim, de maneira direta e indireta, acabou dialogando com a produção cultural e artística de vários grupos e da juventude na cidade, mobilizando com certo alcance o chamado “Campo cultural”. Essa atração, entretanto, não vem sem contradições: desde a adesão apenas pela 235

identidade ou pela diferenciação que o grupo pode gerar, sem um debate mais profundo sobre o processo de luta necessário para a transformação social, até a geração de um estereótipo ou estigma externo que, ainda que irreal para aqueles que compõem o movimento, faz com que outras organizações se utilizem dele para deslegitimar a organização como um todo. Trata-se aqui da leitura de que o Movimento Tarifa Zero é composto por e feito para a juventude universitária, progressista, de classe média da zona sul da cidade129. Em outras palavras, a permeabilidade discursiva do TZ faz com que, além de “cidadãos engajados”, muitos “banhistas” acabem se aproximando das ações do movimento, o que é visto com desconfiança e, muitas vezes, claro repúdio, tanto pelo “campo libertário” como pela “esquerda clássica”. A ocupação cultural de 22 de setembro de 2013, como evento de lançamento público da campanha Tarifa Zero, dá bem a medida do que se queria produzir na cidade. Um indicador interessante da fermentação cultural que a proposta gerou é a produção de canções sobre a campanha pelo campo cultural, que consegue expressar de maneira ampla o caráter de transformação radical da proposta de tarifa zero. A banda TiãoDuá, composta pelos músicos Gustavito Amaral, Luiz Gabriel Lopes e Juninho Ibituruna, fez duas canções, às quais chamou de jingles: TARIFA ZERO #1130 ôôô tira essa catraca daí ôôôôôôô libera a catraca pra condução não engolir todo o salário pro professor ter dinheiro pro cinema pra Carolina chegar cedo no trabalho de manhã pra gasolina poluir um pouco menos pressa avenida respirar um pouco mais pro Benedito não se atrasar pra escola de manhã Tarifa zero, iniciativa popular pra sair pela cidade sem ter hora de voltar Tarifa zero, iniciativa popular pro dinheiro da passagem nunca mais aprisionar (TIÃODUÁ, 2013b).

A segunda composição, menos conhecida, segue na mesma linha discursiva: TARIFA ZERO #2131

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Essa caracterização das críticas é feita a partir do acúmulo das reuniões do Tarifa Zero e da leitura de comentários nos eventos e publicações da página da internet. 130 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=fPtW0jT420U 131 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=s5BdRi6FF6k

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tarifa zero, iniciativa popular porque o pobre não vai mais ter que pagar pra trabalhar e nem pra procurar emprego ele vai ter que gastar da zona norte até o centro livremente circular porque se o cidadão geral usar o transporte comum é mais saúde convivência rapidez eficiência pra viver nessa cidade sem chorar e nem praquele compromisso ele vai mais se atrasar e olha aí até o trânsito assim vai melhorar porque se o cidadão geral usar o transporte comum é mais emprego confiança dignidade segurança pra viver nessa cidade sem chorar (TIÃODUÁ, 2013b).

As composições conseguiam de maneira simples e eficaz resumir os argumentos que a campanha Tarifa Zero buscou apresentar em seus cartazes. Outra composição, da banda Djalma não entende de política, buscava trazer a cidade de Belo Horizonte para o imaginário da proposta: Bônus antitarifário132 Quer andar por aí? Passear de busão? Pela cidade, com gratuidade, não tem erro não! Tarifa Zero, Dodô! Tarifa Zero, Dadá! Só falta você, vem assinar! Foi pro ponto esperar? Lotação não passou? Quer qualidade? Quer mobilidade? Quero sim senhor! Tarifa Zero, Dodô! Tarifa Zero, Dadá! Só falta você, vem assinar! Passear no Pilar? Visitar o Tupi? Santa Tereza, Barreiro, Betânia, Belém, Guarani?133 Tarifa Zero, Dodô! Tarifa Zero, Dadá! Só falta você, vem assinar! (DJALMA..., 2013).

Outros exemplos de produção cultural poderiam ser citados, como o cordel Tarifa Zero134, composto pelo mobilizador social Rodolfo Cascão, o Duelo de MCs 132

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=kqFN0N7GwWY Guardadas as devidas proporções, a enumeração de bairros e regiões de BH feita pela banda lembra aquela feita pelo cantor Otto, para a cidade de Recife, no contexto do manguebeat na década de 1990 (É Macaxeira, Imbiribeira, É Bom Pastor..).. 133

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temático sobre tarifa zero, entre outros. O que é importante reter dessa produção é que, ainda que em grande parte provenha de um segmento social relativamente restrito na cidade, o potencial comunicativo e mobilizador do campo cultural é amplo e perene. Assim, são obras que permanecerão ao longo do tempo e podem ser revisitadas a qualquer momento. Nesse contexto, ainda no fim de 2013, surgiu a proposta dentro do TZ-BH de se fazer um bloco de carnaval com o tema “tarifa zero”, no contexto do carnaval de rua belo-horizontino, que crescia a olhos vistos todos os anos e ainda mantinha uma proposta política de enfrentamento e ressignificação do espaço público. A proposta gerou a “Associação Carnavalesca Antitarifária Pula Catraca!” ou simplesmente bloco “Pula Catraca!” que buscou, não sem certa dificuldade, formar uma bateria e desfilar em algum dia do carnaval da cidade. Alguns indivíduos foram centrais para esse processo, mas cita-se aqui o músico Eduardo Macedo, também integrante do movimento. Macedo compôs, no começo de 2014, uma marchinha de carnaval que viria a ser a principal música do bloco, seu hino, de certa maneira. Além disso, inscrita no Concurso anual de marchinha Mestre Jonas, iria ganhar o segundo lugar no certame, perdendo apenas para a hors concours “Marcha do Pó Royal”. A letra novamente debate a precariedade do atual sistema e as possibilidades de transformação do projeto tarifa zero: 135

MARCHINHA PULA CATRACA! Se você pensa que eu pago a tarifa Tarifa eu não pago não Transporte tem que ser de qualidade E atender a população Não tolero a danada da catraca Eu vou dar pulão! Pois a mobilidade é o direito à cidade Para o bem do cidadão

Pra ir ao posto de saúde, à escola e ao trabalho Mais lazer fim de semana pra a estudante e o operário Menos carros de passeio, a madame no busão O doutor no coletivo é menos poluição E o balaio cada dia mais precário Garante o lucro só no bolso do empresário Tarifa zero valoriza seu salário Por tudo isso somos Anti-tarifários! Se você paga, não deveria, Pois o transporte não é mercadoria. (MACEDO, 2014).

O bloco de carnaval, entretanto, vai suscitar tensões dentro do grupo. Surgido em meio à primeira jornada de manifestações promovidas pelo Tarifa Zero, aquelas pelo 134 135

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=kMaSMO4DjdI Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=AsSPuN5KdZQ

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repasse do cancelamento da CGO para a tarifa, ele apresentará uma simultaneidade de atividades que irá dividir forças e disposições. Em um Movimento que se pretendia horizontal e que não possuía, a priori, nenhuma estrutura interna de divisão de tarefas e responsabilidades, isso significava na prática que as duas atividades – carnaval e manifestação – iriam se construir conforme a adesão espontânea dos integrantes do grupo. Pode-se imaginar que a preparação para o carnaval fosse naturalmente mais atrativa, uma vez que se trata de um evento festivo e de interação social da juventude, sem o compromisso duro da construção de enfretamento e pressão nos poderes estabelecidos para atingir um objetivo concreto. Na dinâmica fluida de adesão e pertencimento ao movimento que o caracteriza até hoje, o espaço da festa politicamente engajada é mais atrativo do que as clássicas manifestações de rua e enfrentamentos que resultam em jornadas muitas vezes desgastantes, sem que atinjam o seu objetivo. Para usar os tipos categoriais aqui mencionados, enquanto as manifestações de rua atraíam a “esquerda clássica”, o “campo libertário” e parte de “cidadãos engajados”, as manifestações culturais atraíam principalmente os “banhistas”, mais dispersos, porém mais numerosos. A contradição, entretanto, atingiria seu auge em janeiro de 2015, quando os ensaios abertos para o bloco Pula Catraca passaram a concentrar mais pessoas que a própria jornada de atos contra o aumento. O Movimento até tentou conciliar as duas agendas e aproveitar a adesão aos ensaios para fortalecer a luta contra o reajuste, convocando um “EnsaiATO: Bloco Pula Catraca contra o aumento!”136 para o dia 28 de janeiro, dois dias após o 3º ato contra o aumento, em que quatro manifestantes foram presos. Entretanto, constatou-se ser impossível mudar a predisposição do público “banhista” que comparecia aos ensaios e levá-los a fechar a rua, carregar faixas e bandeiras. A festa tinha uma dinâmica própria e isso deveria ser reconhecido. Havia potencial político nesse tipo de encontro; era aparentemente inegável. Mas, havendo, como este poderia ser desenvolvido para conquistar mudanças políticas concretas? Se naquela ocasião essa indagação crescia para vários integrantes do movimento, nem sempre e, nem para todos, esse debate tinha sido explícito. A trajetória de atuação do Movimento Tarifa Zero é marcada pela busca de conciliação, mais ou menos consciente, entre as diversas formas que a contestação social da juventude que o compunha podia assumir. Pode-se afirmar que o próprio 136

Evento disponível em: https://www.facebook.com/events/755078077917398/

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evento inaugural do movimento, a ocupação cultural de lançamento do projeto de lei, foi uma tentativa de trabalhar com a potência de encontro desses diversos tipos categoriais apresentados, confluência que se manifestava como principal força mobilizadora da juventude da cidade desde, pelo menos, 2010. O próprio carnaval de rua de Belo Horizonte – recuperado de um marasmo a partir de 2009 graças à aposta de ressignificação do espaço e à retomada de uma tradição festiva de vários ativistasfoliões da cidade - se apresentava como uma convergência à qual o movimento não podia e nem queria escapar. O bloco Pula Catraca! era, apesar das dificuldades de concretização, uma atividade para a qual a dinâmica do TZ pendia naturalmente. A data do “desfile” foi marcada para o domingo anterior ao carnaval, em conjunto ao Blocomum do Espaço Comum Luiz Estrela, com a concentração em frente ao casarão ocupado na Rua Manaus. O propósito era que o bloco concretizasse, na prática, o que estava em seu nome. Assim, a ideia era realizar um catracaço como apoteose de seu trajeto. No ano de 2014, o “pulão” ocorreu em ônibus da linha circular 01, na Avenida Francisco Sales, e foi preciso negociar uma saída com a Polícia Militar para que o veículo pudesse seguir viagem. No ano seguinte, a concentração do bloco se deu em frente à Câmara Municipal e o trajeto incluiu um catracaço na estação de metrô de Santa Tereza, com descida no metrô de Santa Efigênia. Se os dois trajetos foram curtos e o pulão simbólico, as ações não deixaram de contribuir para o clima de desobediência civil trazido pelo carnaval, com vários pulões e catracaços, como se verá na próxima seção. Dentre as ações-diretas festivas, cabe também menção a uma ocorrida em junho de 2014. Depois do 5º Ato contra o aumento, no qual o comparecimento foi baixo, e ainda em um contexto incerto de mobilização para protestos de ruas em virtude da proximidade da Copa do Mundo, o TZ-BH busca rever sua estratégia de atuação para pressionar pela queda da tarifa. Entendendo que a festa atraía mais gente, e tendo discutido sobre exemplos de festas em outros contextos ativistas no mundo, inspiradas ainda na perspectiva autonomista, o Movimento decide uma ação para juntar a estratégia de parar o trânsito da cidade com o apelo cultural de suas atividades. Decide assim por uma “Manifesta Junina”, uma festa junina a ser realizada na Avenida Nossa Senhora do Carmo, com o propósito de paralisar o principal acesso da zona sul. A chamada do ato aproveitou a temática para colocar outros assuntos em pauta:

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Figura 14 - Chamada na internet para a MANIFESTA Junina Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1hJ5tJc Todo mundo tava esperando! Junho é mês de... MANIFESTA JUNINA!!! O arraiá Tarifa Zero chama todas as cumadis e cumpadis para decorar as ruas, festejar e lutar por um transporte de qualidade, em mais um ato contra os aumentos das passagens municipais e intermunicipais! É tempo de incendiar catracas, pular fogueiras e levantar os ânimos pra esse mês que tem tudo pra ser quente nas ruas! Vai ter comes, bebes, música e, como não poderia faltar, quadrilha: ◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥ - Olha o metrô no barreiro! ◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥ - É mentira! ◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥ - Olha o MOVE agilizando a volta pra casa! ◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥ - É mentira ◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥ - Olha a auditoria das empresas de ônibus! ◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥‾◤◥ - É mentira!

Como você sabe, a tarifa dos ônibus metropolitanos disparou e a justiça liberou temporariamente também a farra com os ônibus municipais.

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Mas a história está apenas começando. O juiz Renato Luis Dresch ainda julga a ação principal movida pelo MP denunciando a falsa auditoria da Ernst Young. Vamos mostrar para as autoridades que os recorrentes aumentos e a falta de transparência não são mais tolerados pela cidade. É nesta sexta-feira, 6 de junho, às 17:00, na av. Nossa Senhora do Carmo, em frente ao Chevrolet Hall! (TARIFA ZERO BH, 2014d)

Assim, bandas foram contatadas e o fornecimento de comida ficou a cargo da Associação dos Barraqueiros do Entorno do Mineirão (ABAEM), uma categoria de trabalhadores atingidos pela Copa do Mundo e que esteve presente em todas as mobilizações, desde 2013. Aproveitando o tema, a Manifesta Junina parodiou o tradicional casamento caipira. Assim, os noivos passaram a ser Ramon Victor César, presidente da BHTRANS, e Joel Jorge Paschoalin, presidente do SETRA-BH. O pai do noivo era caracterizado pelo senador, à época, Clésio Andrade, empresário de ônibus com origem em Belo Horizonte e então presidente da CNT. O padre que celebrava a missa foi caracterizado pelo prefeito Márcio Lacerda. Com comparecimento de 300 pessoas, a Manifesta Junina foi um sucesso para o que se propunha – conseguiu fechar a Av. Nossa Senhora do Carmo por 8 horas e repercutir na mídia a luta contra o aumento. Além disso, foi mais uma demonstração da capacidade de organização e realização do movimento. Entretanto, não obteve nenhum avanço mais significativo na luta contra o reajuste tarifário, que já estava completando um mês. A seis dias da abertura da Copa do Mundo, essa foi a última manifestação a não ter sido fortemente cerceada pela Polícia Militar. Durante os dias do evento esportivo, os movimentos organizados foram às ruas buscando repetir o ano anterior – mas a baixa adesão e os cordões humanos de cercamento da PM impediram qualquer avanço das lutas. Durante a Copa, a pauta, ampla como as organizações que a compunham, passou a ser única: o direito à manifestação. 3.4.4.3.- A Busona Sem Catracas Desde antes da existência do GT de Mobilidade Urbana, em debates sobre a proposta de Tarifa Zero, discutia-se sobre a possibilidade de se realizar uma intervenção direta, com uma linha de ônibus gratuita rodando a cidade. Na disciplina de Arquitetura da Mobilidade, ofertada no 2º semestre de 2012 na Escola de Arquitetura da UFMG, essa foi uma das ações sugeridas para conscientizar as pessoas sobre a dinâmica cruel do sistema de ônibus. Entretanto, devido à dimensão de recursos e à organização necessária, a ideia foi logo descartada como “megalomaníaca”. O principal empecilho 242

era o veículo em si – não se possuía uma frota de vans à disposição, com seus respectivos motoristas, como foi o caso do Festival de Inverno de Diamantina daquele ano. Em janeiro de 2014, um conjunto de ativistas a frente de vários blocos de carnaval de rua de Belo Horizonte, organizados pela página de Facebook “Carnaval de Rua BH”, divulgam uma carta aberta à BHTRANS, solicitando que ações sobre mobilidade urbana fossem realizadas durante os dias de folia: CARNAVAL E MOBILIDADE Reivindicações dos blocos de rua à BHTRANS para o carnaval de 2014 O Carnaval de Belo Horizonte vem crescendo a passos largos nos últimos 5 anos, graças ao empenho espontâneo de diversos grupos. A proliferação dos blocos de rua só vem evidenciar o desejo da população de estar nas ruas e de retomá-las [...] Se, no início, a retomada da cidade pela via da festa optou por ignorar o poder público (quando este não veio atrapalhar), com o crescimento vertiginoso do carnaval a participação da Prefeitura como provedora da infraestrutura comum é imperativa. [...] A cidade é outra durante o carnaval. Centenas de blocos vão ocupar as ruas, nos mais diversos bairros. Aquilo que durante o ano é palco de engarrafamentos colossais, fonte de poluição do ar e sonora, se torna por alguns dias palco de musicistas, foliões e carnavalescos de toda ordem. Mas, para que isso aconteça com a segurança necessária, é preciso que a atuação da BHTRANS vá muito além do fechamento de algumas ruas durante os blocos. Os blocos que assinam esta carta reivindicam da BHTRANS e da PBH os seguintes pontos: • Restrição da entrada de carros no bairro de Santa Tereza, limitada a moradores e comerciantes locais, conforme foi solicitado em documento entregue à Belotur. • Planejamento conjunto com os blocos para aumento da oferta dos ônibus durante todo o carnaval, especialmente das linhas ligadas aos itinerários dos blocos. • GRATUITADE UNIVERSAL do transporte coletivo durante o carnaval, oferecendo à população uma alternativa de deslocamento real, e desinibindo a perigosa associação de álcool e direção durante o evento. As reivindicações acima vêm no sentido de fortalecer a festa, tornar possível para qualquer cidadão se deslocar adequadamente para desfrutar o carnaval em suas diversas manifestações espalhadas pela cidade, reduzir os acidentes 137 de trânsito e os riscos aos foliões. [...] (CARNAVAL DE RUA BH, 2014)

A carta, assinada por 43 blocos de rua ao final, seguia justificando a gratuidade no transporte nos mesmos termos utilizados pela proposta feita pelo TZ-BH ao PPAG do ano anterior. Apesar de protocolada tanto na Prefeitura como na BHTRANS, não

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A íntegra do documento pode ser acessada em: http://on.fb.me/1h2fLTw

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houve resposta oficial. Sabia-se, desde o início, que qualquer medida progressista de intervenção na cidade deveria ser tomada pelos próprios movimentos organizados. É nesse sentido que, em fevereiro, propõe-se ao Movimento Tarifa Zero BH que este forneça uma linha de ônibus gratuita na cidade. Um dos foliões-ativistas da cidade estava disposto a conseguir emprestado, de um parente, o ônibus que este usava para as excursões de seu time de futebol, em uma cidade da RMBH. Mesmo reticente com o tamanho da tarefa, o Movimento decide realizá-la. Abria-se caminho para um grande processo de mobilização interna. Os recursos para o financiamento proviriam do próprio caixa do movimento, adquirido, principalmente, com a venda de camisas. A publicação de que o TZ iria fazer uma intervenção de linha gratuita na cidade causou grande repercussão. O post, na página de Facebook, foi durante muito tempo o mais visualizado da história do movimento:

Figura 15 – Anúncio de tarifa zero no carnaval Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1U9D8MX Salve foliões dessa Bellot! Se você achava que iria ficar refém da inoperância da BHTRANS e da PBH, e teria que batalhar pesado para ter um carnaval sem carro, seus problemas acabaram! Se eles não fazem, fazemos nós! BH vai ter um ônibus circulando durante o carnaval, sem catracas e cheio de amor. Trabalhamos muito para viabilizar isso e estamos a mil com todos os preparativos que a operação demanda e merece. Porque afinal, não basta ter um ônibus circulando de graça, é preciso que ele tenha uma fantasia também graciosa Até o final da semana, divulgaremos aqui no Tarifa Zero BH os itinerários e os preparativos para esse grande bloco antitarifário sobre pneus, livre das

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amarras municipais e que será um piloto de um sistema de transporte verdadeiramente democrático, festivo e plural. E viva o carnaval sem catracas!138 (TARIFA ZERO BH, 2014a).

Quase um blefe, pois não se sabia se o ônibus teria condições de rodar, a publicação gerou atenção imediata da mídia e aumentou a responsabilidade do Movimento com a execução da proposta. O ônibus, trazido para Belo Horizonte apenas na quinta-feira, antevéspera da estreia, necessitava não só de uma grande limpeza como de manutenção. Depois de uma tarde na oficina e um dia inteiro de decoração, na noite da véspera o ônibus sai para testar o itinerário e rompe a tubulação do sistema de freios. No dia seguinte, sábado de carnaval, o Movimento contrata um ônibus fretado de emergência, mas também consegue consertar a tempo o ônibus emprestado. Assim, na estreia de sua maior intervenção performática na cidade, o Tarifa Zero consegue colocar dois ônibus gratuitos para circular. Em meio aos preparativos e à energia gasta com a empreitada, decidiu-se tratar o veículo pelo gênero feminino: estava assim lançada a “Busona sem catracas”. Os itinerários, debatidos na semana anterior, haviam sido divulgado na manhã do sábado:

Figura 16 - Mapa com os itinerários da Busona Sem Catracas no carnaval 2014 Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1NKIdGs 138

Publicação original disponível em http://on.fb.me/1sxVKaX

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A proposta era que se alternasse um trajeto “semi-circular” - no sábado, domingo à tarde e terça-feira - reproduzindo parte do trajeto da linha SC01, com trajetos específicos, que ligam blocos de carnaval distantes. Assim, no domingo pela manhã propunha-se um trajeto de ligação entre o bloco “Pena de Pavão de Krishna”, que desfilaria no bairro Salgado Filho e na Vila Ventosa, com o bloco “Tico Tico Serra Copo”, que percorria as ruas, vielas e becos do Aglomerado da Serra. Na segunda-feira, a Busona acabou realizando duas viagens “fretadas” para a ocupação urbana Rosa Leão, na fronteira com Santa Luzia. Experiência extremamente rica de intervenção na cidade, a Busona Sem Catracas demanda, de fato, uma pesquisa própria e detalhada a respeito da nova relação que cria entre a população e o espaço urbano. Cabe aqui, para além da menção da intervenção urbana, aludir ao improviso na operação, o erro como abertura para o novo, e a diversidade de relações estabelecidas: desde foliões que viam a intervenção como um serviço prestado - e assim estabeleciam uma postura de exigência “comercial” sobre o Movimento - até aqueles que, desconfiados, não subiam no ônibus quando este parava aleatoriamente em algum ponto da cidade. Havia aqueles também que permaneciam voluntariamente no veículo, os que ajudavam os integrantes do Tarifa Zero com tarefas específicas, ou os que ofereciam ajuda, bebida, alimentos. A diversidade que caracteriza o espaço urbano no carnaval e sua potência latente de transformação passaram pela Busona. Algumas semanas depois, uma análise da experiência seria publicada em um jornal, e vale aqui a longa citação: [...] Se os governantes no Brasil parecem desconectados das políticas urbanas contemporâneas, talvez o carnaval pudesse ser um momento de oferecer-lhes uma chacoalhada. E os blocos de carnaval, que em Belo Horizonte estão anos-luz à frente do poder público, perceberam isso. A festa momesca, que aqui cresceu pelo empenho da população, pode ser um experimento-piloto de outros modos de estar na cidade, em que a liberdade dos corpos ganha as ruas. Os mecanismos das nossas cidades funcionam em torno do trabalho e da produção. É como se a vida se resumisse a isso. Mas, quando estes mesmos mecanismos se voltam para o tempo livre, o lazer ou o simples prazer de estar no mundo, a “demanda” se mostra enorme. Foi o que ocorreu com os experimentos do ônibus gratuito em feriados. E é o que tem demonstrado o crescimento do carnaval de rua em BH. Por que não, então, adequar os mecanismos da cidade, como o sistema de transporte, para o carnaval? Por que não ajustar linhas, em itinerários e horários, para atender os foliões/cidadãos, para conectar os blocos, os shows, os parques, as praças? [...] Nos últimos cinco anos, diversos blocos construíram, com bravo empenho e sem nenhum interesse financeiro, o carnaval de BH. Não foi pedida nenhuma ajuda ao poder público. Os blocos e seus foliões simplesmente saíram às ruas. Agora, o gesto se repete. Como a BHTrans tomou um mês para emitir uma

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resposta evasiva e melancólica à solicitação dos blocos, o Movimento Tarifa Zero BH decidiu colocar um ônibus nas ruas, sem catracas e cheio de amor, para transportar os foliões gratuitamente. Foi uma proposta de intervenção na cidade, de diálogo com toda a população. Enquanto o poder público diminuía a frota e deixava de atender as periferias no carnaval, nossa busona sem catraca rodou toda a cidade: passamos pelos bairros Salgado Filho, Nova Suíça, Gutierrez, Aglomerado da Serra, Zilah Spósito, ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, além do trajeto circular pelo Centro da cidade. De foliões a transeuntes desavisados, de senhoras idosas a crianças de colo, um sem-número de pessoas e personagens passaram pelo coletivo com os mais diversos propósitos, mostrando a infinidade de encontros que essa outra lógica de transporte pode oferecer. Ah, o que seria dos foliões que foram domingo de manhã ao Pena de Pavão de Krishna, no Salgado Filho, e depois se deslocaram para o Tico Tico Serra Copo, no Aglomerado da Serra, se dependessem da eficiência da BHTrans! A empresa que gere o trânsito na cidade nem sequer se dignou a receber os foliões, quanto mais a tentar entender a dinâmica do carnaval de rua e ajustar trajetos e horários. E, como num bom carnaval, a espontaneidade da subversão se espalhou. Com a existência concreta de um ônibus sem catraca na cidade, não foi pequeno o número de pessoas que praticou seu protesto individual e entrou nos ônibus da BHTrans sem pagar. Aliás, o “pulão” sempre existiu e continuará existindo. Enquanto o transporte se colocar como uma mercadoria, quem puder irá exigir o seu direito na prática. Como os blocos de carnaval, que em 2009 eram três e hoje são cerca de 200, que a iniciativa do ônibus Tarifa Zero se multiplique em um conjunto de ações dedicadas à livre fruição dos espaços da cidade, num convite ao deslocamento descompromissado, à liberdade de ir e vir, a uma urbanidade mais afetiva. Atrás da busona sem catracas só não vai quem já morreu. (VELOSO, REGALDO, ANDRÉS; 2014)

O sucesso da experiência fez com que o movimento buscasse repeti-la mais vezes, em contextos distintos da festa de Carnaval. Entretanto, para esses momentos, ela não poderia contar com o veículo emprestado, tendo que se valer do arranjo com empresas de ônibus fretados. A primeira vez que uma Busona sem Catracas voltou a circular foi no “Circuito das Ocupações”, disponibilizando um ônibus que levaria militantes de diversas ocupações urbanas de Belo Horizonte para se conhecerem. A atividade aconteceu no dia 18 de maio de 2014 e foi financiada com dinheiro de rifas e doações. Na semana seguinte, nova Busona foi organizada, dessa vez ligando a Marcha das Vadias139, em seu ponto de dispersão na Praça da Liberdade, à festa junina da ocupação urbana Guarani Kaiowá. Sem muita divulgação, o ônibus funciona na prática como um fretado, ainda que tenha parado em alguns pontos no caminho. 139

A Marcha das Vadias é um movimento surgido em 2011, no Canadá, que busca o empoderamento da mulher e a desconstrução do machismo naturalizado em atitudes de opressão cotidiana, como em relação à maneira das mulheres se vestirem.

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Naquela altura, não se sabe exatamente por que motivo – se por dificuldade de consolidar uma identidade, se por falta de esclarecimento junto a todos que a Busona atingiu –, em diversas vezes o Movimento Tarifa Zero passou a ser confundido por uma espécie de “cooperativa de frete” para movimentos populares. Em outras palavras, foram inúmeras as ligações telefônicas de uma grande variedade de militantes que perguntavam ao TZ-BH se era possível disponibilizar um ônibus para levar um grupo de pessoas de um lugar a outro140. Ainda que, de fato, a experiência das Busonas tenha dado um conhecimento de contatos e formas de se organizar um ônibus fretado, a confusão que ocorria era, no mínimo, sintomática. Apesar disso, o TZ de fato – até o momento de escrita dessa dissertação – nunca produziu um material que explicasse como organizar sua própria Busona Sem Catracas, embora em muitas reuniões esse desejo fosse reiteradamente afirmado. A intervenção da Busona Sem Catracas é percebida aqui como uma das mais potentes do movimento, e a que mais se aproxima de conciliar as diversas facetas apresentadas nessa narrativa: a festiva, a combativa, a propositiva e o trabalho de base e de formação. É nesse sentido que mais duas Busonas serão organizadas no ano de 2014. Para o Dia Mundial Sem Carros de 2014, o Movimento organizou mais uma Busona, trabalhada e pensada para dialogar com as regiões mais distantes da cidade. Foi assim que se propôs a Busona para a região do Barreiro.

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É importante afirmar, porém, que durante a grave ameaça de despejo que pairou sobre as ocupações urbanas da região da Izidora em agosto de 2014, o Movimento Tarifa Zero buscou prestar o máximo de solidariedade possível, ajudando a fretar ônibus e divulgando as viagens. Esse episódio certamente contribuiu para o imaginário de capacidade de frete maior que o movimento de fato tinha.

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Figura 77 - Anúncio da Busona Sem Catracas para o Barreiro Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1Ugptyr

Sem aviso prévio, trabalho de base ou divulgação na mídia, a circulação da Busona foi – para todos os efeitos – uma intervenção surpresa na cidade. Assim, ao passar por diversos pontos de ônibus e descer panfletando para avisar que estava passando ali um ônibus gratuito com direção a estação BHBUS do Barreiro, muitas pessoas hesitaram em tomar a condução, mesmo que estivessem indo para a mesma região. Mesmo assim, foi possível lotar o ônibus com passageiros sentados e realizar, ao longo de um trajeto que se dava de forma mais lenta pelas contínuas paradas para panfletagem, um debate com os cidadãos e cidadãs que tiveram a curiosidade de subir a bordo. Se para aqueles que pegaram o ônibus a experiência pode ter sido uma provocação para se pensar a cidade de outra maneira, é importante reter que, para os próprios integrantes do Movimento Tarifa Zero BH, aquela era experiência militante bastante valiosa. No mês de novembro, nova Busona Sem Catraca foi organizada. Dessa vez com consulta pela internet, em que usuários do Facebook sugeriam locais para o percurso da Busona, o Movimento decidiu de maneira colaborativa o trajeto para Contagem, na primeira experiência de Busona metropolitana. A partir do debate pela página, decidiuse por um trajeto de ida e volta: saída do centro de Belo Horizonte até o centro de Contagem, com retorno à Savassi.

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Figura 18 - Cartaz Busona sem Catraca para Contagem Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1F1dZbd

Novamente, foi possível ter contato com diversos tipos de usuários que subiram ao ônibus pelos mais diferentes motivos. Muitos aproveitavam a carona até um ponto de ônibus em que poderiam pegar um coletivo direto para a casa, muitos subiram por curiosidade e outros tantos novamente não embarcaram por receio. A exemplo da Busona do Barreiro, a expectativa de trajeto anunciada não pôde ser cumprida em função de fatores não previstos. Na volta para Belo Horizonte, não se encontrou a demanda que se esperava e o ônibus, passando por pontos vazios, foi direto para o centro da cidade. Por fim, há que se mencionar que a Busona Sem Catracas foi reeditada no carnaval de 2015. Dessa vez, sem campanha prévia e sem o fator-surpresa do ano anterior, o impacto midiático foi menor. De qualquer forma, a experiência acumulada reduziu o esforço necessário para se colocar a Busona em circulação.

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Figura 19 - Preparativos da Busona Sem Catraca para o Carnaval 2015 Fonte: Página Tarifa Zero BH, disponível em http://on.fb.me/1i64UZA

Essa experiência fez, também, com que o Movimento decidisse por oferecer o transporte só até a segunda-feira de carnaval. Apenas o sábado de carnaval repetiria a experiência da linha “semi-circular”. O domingo e a segunda-feira se tornariam dias em que o transporte funcionaria novamente como um “fretado” – para o bloco Tico Tico Serra Copo no bairro São Geraldo, zona leste da cidade, e para a ocupação urbana Esperança, na região da Izidora. Mesmo assim, a avaliação é que o transporte foi imprescindível para a viabilização desses blocos de carnaval, que persistem em uma lógica de ressignificação do espaço e das relações sociais em meio ao já percebido processo de “mercantilização” do fenômeno em Belo Horizonte. Cabe ressaltar que os recursos para o financiamento dessa Busona foram obtidos com doações e vendas de camisas feitas durante os ensaios abertos. 3.4.4.4 - Outras iniciativas Como se vê, o rol de intervenções e atividades que o Movimento Tarifa Zero realizou ao longo de dois anos de existência é extenso e variado. Essa própria característica pode explicar, em parte, um processo de dispersão contraditório: por um lado, a variedade de ações executadas sem uma visão tática ou estratégica - a maioria sob a demanda inescapável dos acontecimentos – fez com que o movimento perdesse a capacidade de ser contundente ou de acumular experiência. Por outro lado, essa miscelânea de ações deu grande diversidade na atração e rotatividade de integrantes do 251

movimento e principalmente do público com quem este dialogava. De uma forma ou de outra, em um espaço curto de tempo, o Tarifa Zero BH conseguiu construir um imaginário de sua atuação na cidade. Não se pode finalizar essa apresentação sem mencionar ainda três iniciativas que não se enquadram plenamente na tipologia anteriormente descrita. a) Feministas do Tarifa Zero141 O coletivo de mulheres do Tarifa Zero passou a se organizar em março de 2014 em resposta a um ambiente de organização interna considerado predominantemente machista no Movimento. Longe de ser um espaço estanque, apartado da sociedade, era evidente que o Tarifa Zero BH também reproduzia o machismo em sua organização interna pela própria dinâmica das relações de poder da sociedade como um todo, na qual o espaço público de fala e atuação é facilitado para a figura do homem e dificultado para a figura da mulher. Nesse sentido, como uma apresentação do coletivo iria mostrar, a partir de um levantamento feito em reuniões e na página do Movimento que, apesar de haver paridade de gênero no interesse pelo tema da mobilidade urbana (o número de curtidas na página Tarifa Zero BH era dividido em 52% de mulheres e 48% de homens), a proporção de homens na reunião em relação ao total passava de 60% e as falas, durante a reunião, eram feitas por homens em 75% das vezes. Além disso, uma demanda externa veio acelerar o debate e a organização autônoma das mulheres. Em março de 2014, o vereador Léo Burguês colocava em pauta o projeto de lei de nº 893/13 (BELO HORIZONTE, 2013f) que propunha a criação de vagões exclusivos para mulheres no metrô de Belo Horizonte, chamado de “vagão rosa”, com o intuito de diminuir o assédio sexual frequente no transporte coletivo. A proposta causou polêmica e incitou a necessidade de um posicionamento do coletivo. Assim, uma demanda externa e outra interna impeliram à formação de uma frente exclusiva de mulheres dentro do Movimento Tarifa Zero BH. Em relação às medidas internas, as Feministas do Tarifa Zero (FTZ) propuseram a prioridade de fala e inscrição para as mulheres nas reuniões do movimento. As mulheres também seriam escolhidas prioritariamente para representar o TZ-BH na imprensa e em eventos nos quais este fosse convidado a participar. As medidas, com

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O nome do coletivo auto-organizado de mulheres passou, ao longo do tempo, de “Frente Feminista Anti-tarifária” para “Frente feminista do Tarifa Zero” e, finalmente, para “Feministas do Tarifa Zero”.

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maior ou menor eficácia em seu cumprimento, vigoram até hoje. Já em relação ao vagão rosa, a FTZ publicou uma nota de posicionamento, na qual afirma: As pautas abordadas pelo coletivo Tarifa Zero BH vão muito além da supressão da cobrança da tarifa nos ônibus: buscamos um transporte inclusivo e não segregador, defendemos a livre circulação de mulheres e homens na cidade, de modo que todas e todos possam ter acesso à cultura, ao trabalho, ao lazer e a direitos sociais básicos como educação e saúde, sem impedimentos e limitações. [...] Na sociedade patriarcal em que vivemos, nós, mulheres, não temos o mesmo direito à cidade que é dado aos homens. Somos ensinadas a evitar certas ruas, horários e roupas e convivemos com o medo diante das “cantadas” que nos lembram frequentemente o não pertencimento ao espaço urbano. O assédio e a insegurança que vivemos nas ruas e nos transportes coletivos são mais um cerceamento aos nossos direitos e à nossa liberdade de ir e vir, assim como a imposição do pagamento diário de tarifas caras e injustas. [...]Propor a segregação como política pública é perpetuar uma sociedade machista que concede privilégios aos homens, objetifica e apaga as mulheres, negando sua liberdade e sua autonomia sobre o próprio corpo e a própria vida. Representamos 65% do total de usuários do metrô; confinar mais da metade desse público em um único vagão é uma medida que reafirma a responsabilidade da vítima sobre a agressão sofrida, no lugar de responsabilizar e punir os seus agressores. Dados recentes do IPEA apontam que 65% dos brasileiros pensam que esse tipo de violência poderia ser evitada se as mulheres “se comportassem melhor”. Não seria o vagão exclusivo mais uma maneira de pautar e ditar o nosso comportamento? Como seriam tratadas as que optassem por utilizar o vagão misto? Em nenhuma hipótese podemos admitir que nos culpabilizem por sermos violentadas, seja pela roupa que vestimos, pela nossa liberdade sexual ou pelo espaço que decidimos ocupar. (TARIFA ZERO BH, 2014c)142

Além disso, o Movimento convocou, em conjunto com outros coletivos feministas da cidade, uma ação na estação central de metrô. Panfletos com o posicionamento do coletivo foram distribuídos, bem como apitos como uma forma de ação direta: denunciar e constranger as tentativas de assédio sexual que ocorressem dentro do trem. Uma proposta de empoderamento, ao invés de cerceamento. O projeto de lei saiu da pauta da imprensa, mas não foi completamente derrotado. Aprovado pela comissão de transportes da CMBH no final de maio de 2014, até o momento de escrita dessa dissertação poderia ser colocado em pauta de votação no plenário da Câmara. b) O Plano Nacional de Mobilidade Urbana Ao longo das atividades realizadas pelo Movimento Tarifa Zero, percebeu-se a clara insuficiência do âmbito municipal para resolução das questões de mobilidade urbana vividas no cotidiano. Questões como a divisão tributária entre as entidades 142

A nota completa está disponível em: http://tarifazerobh.org/wordpress/vagao-segregado/

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federativas brasileiras, a estrutura industrial de produção de transporte público e a regulamentação nacional e estadual não só dos parâmetros de qualidade do transporte, como também de sua maneira de concessão, financiamento e gestão tornavam evidentes que a luta em Belo Horizonte não seria efetiva sem uma pressão para mudança em âmbito nacional. Assim, aproveitando-se da ocasião da presença de Lúcio Gregori na cidade, em junho de 2014 o movimento organizou uma conversa entre o proponente da tarifa zero e João Luiz da Silva Dias, economista e ex-presidente da Metrobel, já mencionado em outras ocasiões neste trabalho143. Da conversa surgiu a ideia de se lançar uma plataforma nacional para debate da mobilidade urbana, buscando a visibilidade que a disputa eleitoral estava tendo no país. Propunha-se uma campanha de comunicação e um espaço virtual que fosse capaz de angariar adesões à plataforma, por meio de assinaturas. A proposta estruturava-se então em cinco eixos. O primeiro é a aprovação imediata da PEC 74 no Senado (antiga PEC 90 na Câmara), que institui o transporte como um direito social reconhecido constitucionalmente144. O segundo eixo é a criação de uma estrutura de fundos municipais, estadual e federal de mobilidade urbana para o financiamento do transporte e a construção de uma infra-estrutura voltada para o transporte público e o não-motorizado. Como recursos para esse fundo, algumas propostas são apresentadas: Unificação e redistribuição dos impostos sobre combustíveis, com divisão adequada dos recursos entre Município (60%), Estado (30%) e União (10%), conforme estudo da Fundação João Pinheiro. Alteração da lei do Vale-Transporte, destinando os recursos dos empregadores para o fundo e garantido aos empregados acesso aos sistemas de transporte mediante cartão eletrônico. Regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, previsto na constituição de 1988. Já existe um projeto em tramitação no Senado e sua aprovação permitiria uma maior justiça social através do comprometimento direto da parcela mais rica da sociedade na melhoria das cidades para todos. Aplicação do IPVA [...], cuja cobrança hoje é restrita aos automóveis, veículos de carga e transporte e motos, para itens de luxo, como helicópteros, aviões particulares e iates, que hoje têm isenção de impostos e poderiam gerar mais de R$ 8 bilhões/ano em tributos. (MOBILIDADE BRASIL, 2014)145

143

A conversa pode ser conferida no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=ejRRH0O8ggg A PEC 74 foi aprovada no dia 09 de setembro de 2015, e promulgada no dia 15 de setembro de 2015 como Emenda Constitucional nº 90, coincidentemente, na mesma data em que esta dissertação de mestrado foi defendida (nota inserida no texto durante a revisão final). 145 A proposta completa pode ser vista em: http://mobilidadebrasil.org/ 144

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O terceiro eixo da proposta é a criação de uma gestão verdadeiramente pública e participativa do sistema de transportes no país, com conselhos de transporte deliberativos e com composição majoritária da sociedade civil previstos por lei. O quarto eixo é a implantação de um código de desempenho do transporte coletivo urbano, que estabeleça padrões claros e autoaplicáveis de desempenho no sistema: faixas exclusivas para ônibus, sinalização, número máximo de passageiros por metro quadrado, tempo máximo de espera nos pontos de ônibus, níveis de ruído, entre outros. Por fim, o quinto eixo propõe uma política industrial e ambiental voltada para a pesquisa e o desenvolvimento de um transporte público de baixo impacto ambiental e melhoria na qualidade e tecnologia de outros modos de transporte não-motorizados. Ainda que a proposta seja inovadora por realizar uma abordagem sistêmica da questão da mobilidade urbana, a mobilização pela sua divulgação ficou muito aquém do desejado. Nesse sentido, não se pode evitar a lembrança de propostas que se perdem em meio ao labirinto institucional brasileiro, ou mesmo de leis e estatutos, aprovados em profusão no Brasil, que não encontram mecanismos de incidência concreta na realidade. Como aponta Ermínia Maricato (2000) para a questão do planejamento urbano, o Brasil não precisa de mais leis, precisa começar cumprindo as que já existem. Assim, a plataforma possui a vantagem de servir como um ponto de referência para futuros debates e desenvolvimento da luta. Mas, sua relativa inocuidade é também um lembrete para que movimentações e táticas mais efetivas sejam sempre debatidas no âmbito dos movimentos que lutam por outras formas de viver na cidade. c) A Frente Metropolitana pelo Transporte Em janeiro de 2015, durante a jornada de luta contra o aumento municipal, o reajuste da tarifa dos ônibus metropolitanos reacendeu a tentativa de unificação das lutas, em que pesem as diferentes instâncias a que estas estão submetidas. Nas manifestações e atividades daquele mês, muitas pessoas de outros municípios da RMBH entraram em contato com o movimento, que, a partir daí, buscou articular uma frente de luta. Mais do que a questão tarifária, o debate que se deu nos encontros direcionou-se para a qualidade do sistema de transporte. Diante da implantação de um sistema de estações de transferência claramente mal-dimensionado, que tinha agravado as condições do já precário transporte metropolitano, o debate girava em torno da melhor forma de pressionar o novo governo estadual a resolver questões imediatas. As pessoas 255

que afluíram à organização eram, em sua maioria, indivíduos integrantes de outras organizações políticas em seus municípios que buscavam, por meio da troca de experiência, a melhor forma de incidir no governo. Houve cerca de cinco reuniões gerais da frente ampliada pelo transporte metropolitano. Em determinada altura, a Frente pela Cidadania Metropolitana (FCM), organização da sociedade civil surgida no contexto da elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da RMBH (PDDI) e majoritariamente ligada ao PT, buscou também avançar as questões no debate metropolitano. A frente ampliada decidiu, por ora, se juntar à FCM e realizar um seminário metropolitano sobre mobilidade urbana, que ocorreu em junho de 2015, com a presença de Lúcio Gregori, Nazareno Affonso e João Luiz da Silva Dias. A carta de propostas tirada do seminário apresenta intenções de curto, médio e longo prazo – dois, quatro e dez anos respectivamente. O documento coloca questões como a auditoria das empresas metropolitanas e a criação de uma estrutura de conselho de gestão municipais e metropolitano. Apesar disso, pela própria composição do seminário e pela natureza dispersa da RMBH, a impressão que se tem é que a carta – assim como o plano nacional de mobilidade urbana – não terá repercussão concreta nas estruturas institucionais, servindo antes como um balizador de intenções de movimentos pontuais e de algumas mandatos parlamentares de vereadores da RMBH e deputados estaduais vinculados ao PT. 3.4.5 Debates, refluxos, contradições e perspectivas. “Não me iludo, tudo permanecerá do jeito que tem sido: transcorrendo, transformando.” Gilberto Gil em Tempo Rei (1984).

Ampla e diversa, como a própria narrativa mostrou, a trajetória do Tarifa Zero BH não se deu isenta de profundas contradições e tensões entre seus integrantes. De fato, para uma avaliação dos desafios e impasses que se apresentam hoje para o movimento, um dos primeiros aspectos a ser levado em consideração é o próprio volume de tarefas realizadas e a forma como elas se deram. Ao se propor essencialmente aberto e horizontal, o TZ-BH se abriu para a adesão de qualquer pessoa que se dispusesse a ir a uma de suas reuniões. Essa heterogeneidade sempre se mostrou como uma de suas principais características e de suas forças.

Entretanto, a falta de clareza sobre a divisão de tarefas que seriam

escolhidas e encaminhadas, a ausência de uma estrutura interna do movimento que fosse 256

clara e formalizada, e o auto-comprometimento bastante variável dos integrantes fazia com que o desgaste e a rotatividade de seus membros fossem grandes. Para se compreender melhor essa questão, faz-se necessário observar o próprio processo de gênese do Movimento. Surgido como decorrência direta das mobilizações de junho de 2013, o coletivo se arrogou a responsabilidade de dar consequência à principal questão que originou essas movimentações e que estava em intenso debate a nível nacional: a mobilidade urbana e o financiamento do sistema de ônibus. Além desse fator, como já se disse, as manifestações de junho tiveram um impacto muito mais amplo na sociedade do que a discussão de uma pauta pontual. As semanas nas quais centenas de milhares de brasileiros foram às ruas desmancharam consensos e certezas, explicitaram a falência de processos de conciliação de classes sociais e, no limite, questionaram os próprios rumos do projeto neodesenvolvimentista assumido há mais de uma década pelo país, chegando a ameaçar o funcionamento normal do sistema social. A expressão “Não Vai Ter Copa!” entoada na Avenida Antônio Carlos no dia 26 de junho de 2013, momento de maior instabilidade das manifestações em Belo Horizonte, é um resumo sintético da grande movimentação de estruturas subjetivas e objetivas que estava apenas começando naquele momento. Ainda que não tenha buscado objetivamente assumir esse papel em nenhuma ocasião, o Tarifa Zero BH surgia como um dos portadores da continuidade das mobilizações e, principalmente, como um “receptáculo” das grandes expectativas sociais geradas por junho de 2013. Nesse sentido, o TZ surge com uma reverberação política e social muito mais ampla que sua capacidade de mobilização de base. A prova disso é a grande cobertura midiática que o movimento recebe entre agosto de 2013 e maio de 2014. De protocolos de denúncias ao Ministério Público a manifestações com 300 e 400 participantes, os minutos ocupados nos noticiários locais e o espaço nos jornais impressos eram relativamente desproporcionais ao conteúdo concreto dessas realizações, ainda mais se comparados à cobertura que normalmente era dada a outras movimentações do gênero. É importante ressaltar, porém, que com a exceção de três ou quatro veículos de mídia mais autônomos, a ênfase midiática se dava, em geral, ressaltando os perigos do cenário de instabilidade social que podia persistir. Apesar de ter se utilizado dessa ampla visibilidade para acirrar suas disputas políticas, o Tarifa Zero BH falhou em debater estrategicamente as consequências que essa visibilidade tinha para a origem do movimento e o futuro de suas ações. Colocado 257

de outra forma, ter surgido com a visibilidade que poucos movimentos sociais obtiveram no Brasil nas últimas décadas, fez com que o Movimento não encarasse com seriedade a necessidade de se construir uma sólida base social de apoio e o encaminhamento estratégico de longo prazo de suas ações. O assim chamado “trabalho de base”, ou a promoção de debate e formação com os segmentos sociais que o movimento julga relevantes para efetivar suas pautas políticas, ainda que discursivamente reconhecido em diversos momentos, não teve desdobramentos concretos para se realizar146. Como se viu, a expectativa social gerava uma série quase ininterrupta de demandas ao Movimento, que se sentia impelido a respondê-las todas, muitas vezes desconsiderando os desgastes que acarretariam. A essa movimentação sob demanda, somava-se a dificuldade de estruturação interna. Ainda que em diversas ocasiões tenha se tentado criar frentes de trabalho, na prática, o movimento contava com o engajamento voluntário dos integrantes mais interessados e com mais tempo livre para poder realizar suas tarefas. O reverso da moeda do acúmulo de tarefas em poucas pessoas era o desencorajamento e a inibição de novatos e outros integrantes, que não se sentiam aptos ou à vontade para realizar tarefas, e assim não se empoderavam. Em outras palavras, a ausência de estrutura formalizada e de responsabilidades gerava uma “tirania das organizações sem estruturas” por parte dos que estavam mais engajados, fenômeno que a feminista Jo Freeman já havia identificado 40 anos antes: Ao contrário do que gostaríamos de acreditar, não existe algo como um grupo "sem estrutura". Qualquer grupo de pessoas de qualquer natureza, reunindose por qualquer período de tempo, para qualquer propósito, inevitavelmente estruturar-se-á de algum modo. [...] Isso significa que lutar por um grupo "sem estrutura" é tão útil e tão ilusório quanto almejar uma reportagem "objetiva", uma ciência social "desprovida de valores" ou uma economia "livre". Um grupo de "laissez-faire" é quase tão realista quanto uma sociedade de "laissez-faire"; a idéia se torna uma dissimulação para que o forte ou o afortunado estabeleça uma hegemonia inquestionada sobre os outros. Essa hegemonia pode facilmente ser estabelecida porque a idéia da "ausência de estrutura" não impede a formação de estruturas informais, apenas de formais. [...] As regras sobre como as decisões são tomadas são conhecidas apenas por poucos e na medida em que a estrutura do grupo permanece informal, a consciência do poder é impedida por aqueles que conhecem as regras. [...] Para que todas as pessoas tenham a oportunidade de se envolver num dado grupo e participar de suas atividades, é preciso que a estrutura seja explícita e não implícita. As regras de deliberação devem ser abertas e disponíveis a todos e isso só pode acontecer se elas forem formalizadas (FREEMAN, 1970). 146

Em novembro de 2013, dois integrantes do Movimento tentaram iniciar um trabalho em uma escola pública de periferia, no bairro Capitão Eduardo. Mas o fim das aulas e a falta de engajamento dificultaram a continuidade do projeto.

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Essa forma de funcionamento interno gerou certo desgaste, que foi sendo percebido pelos integrantes com o passar do tempo. Muitas vezes, esse desgaste era suficiente para que o participante deixasse de comparecer às reuniões e construir o movimento. Ao mesmo tempo, as atividades continuavam atraindo novas pessoas e um processo inconsciente de renovação ocorria, o que ajudava a obscurecer o problema de organização interna. A falta de deliberação estratégica das ações do Tarifa Zero BH e de sua forma de atuação gerou ao menos uma ruptura relevante. A partir do segundo semestre de 2014, os integrantes de orientação anarquista e autonomista foram, aos poucos, deixando de participar do Movimento e buscaram construir uma organização que se adequasse mais aos seus princípios e possuísse uma orientação estratégica mais alinhada com a perspectiva do Movimento Passe Livre. Chamada de “Bloco de Lutas pelo Transporte”, em janeiro, a organização enviou pedido para integrar a federação nacional dos MPLs, sendo aceita em junho e, portanto, mudando seu nome para “Movimento Passe Livre – Belo Horizonte”. Ao mesmo tempo, o Tarifa Zero BH buscava se reformular. As conquistas e limites em sua breve, porém densa, história de dois anos fomentavam o debate e o aprendizado para a continuidade do processo de luta. As dificuldades de organização ensejaram a realização de um seminário interno, que durou dois dias, no qual várias questões foram debatidas. Eixos prioritários de atuação foram definidos147 e uma perspectiva de atuação nacional foi encaminhada a partir do pedido de federação ao MPL nacional.148 Ainda que nem tudo o que foi decidido no seminário de organização interna tenha encontrado desdobramento, o debate e a movimentação fizeram bem ao Tarifa Zero BH. Aos poucos, novos integrantes assumem velhas e novas responsabilidades. O acúmulo técnico, comunicativo e teórico que tem se mostrado a grande força do

147

Tais como “Trabalho de base (ou formação externa)”, “Formação interna” e “Articulação metropolitana”. 148 Foi apenas nesse momento, em março de 2015, que o TZ-BH, como um todo, tomou conhecimento da existência do “Bloco de Lutas pelo transporte” e de seu pedido de federação. Mesmo assim, decidiu por manter o pedido, entendendo que era possível haver dois coletivos federados na mesma cidade e que havia vantagens no processo de articulação nacional. Entretanto, o pedido foi negado em junho de maneira lacônica e evasiva pela federação do MPL nacional. O MPL, enquanto movimento nacional, passa por uma crise organizativa que tem sido debatida de maneira intensa na internet, nos últimos meses. Por ser muito recente e complexa, essa crise não foi objeto de análise deste capítulo. Entretanto, fica aqui indicado o futuro completamente em aberto dessa organização a nível nacional.

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movimento em sua trajetória, tem sido debatido e compartilhado em reuniões externas e aulões sobre o sistema de ônibus de Belo Horizonte. Em sua movimentação, o Tarifa Zero BH passa por um processo de criação de sua própria identidade enquanto coletivo na cidade. À medida que setores da sociedade se movimentam e apresentam demandas, o coletivo é instado a se posicionar e atuar em cima de circunstâncias concretas, escolhendo também seus caminhos. O acúmulo de sua trajetória, ainda que precariamente sistematizado, dá a medida daquilo que deu certo e do que deu errado. Sem a urgência característica de seus primeiros meses de existência, as escolhas de atuação em cada momento vão, de uma forma lenta e implícita, definindo a identidade do movimento, estabelecendo o que ele é e o que pode ser na cidade. Essa dinâmica ajuda a explicar tanto os processos de ruptura, quanto os de permanência e as novas adesões. Todos esses processos são feitos a partir de uma identidade que vai se definindo. Seu princípio de organização aberta, considerado característica fundamental, continua sendo a expressão da vontade de transformação social que constitui o Tarifa Zero BH. Enquanto seu próprio movimentar vai definindo a identidade do coletivo, a pauta externa da construção de uma mobilidade urbana radicalmente diferente se afirma com mais urgência do que nunca. À medida que o poder instituído aumenta sua intransigência e persiste em uma política de mobilidade urbana de espoliação e autoritarismo, resistir e recriar continuamente novas formas de atuação torna-se um imperativo inescapável. Essa transformação contínua delineia o novo com que se sonha. É como uma contribuição para a memória viva desse debate na cidade e uma sincera homenagem a todas e todos que constroem essa luta, que essa história – e esta dissertação – foi escrita.

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4. À GUISA DE CONCLUSÃO: TRAÇADOS DE AGENDAS DE LUTA E DE PESQUISA 261

4.1. Das trajetórias e acúmulos, uma proposta: o controle popular do transporte para a retomada da cidade As profundas transformações sociais e urbanas das últimas duas décadas configuram grandes desafios para os movimentos sociais que se dispõem a construir uma nova forma de viver a cidade. Desenvolver uma nova relação com os fluxos que configuram o espaço, criando autonomia sobre o próprio tempo-espaço da vida cotidiana, é tarefa tão urgente quanto desafiadora para a sociedade contemporânea. No que tange a questão da mobilidade urbana e da produção do espaço no Brasil, o incentivo dado à esfera privada do mercado como instância mediadora das relações de fluxo urbano se mostrou algo absolutamente predatório do espaço e das relações sociais. Ao vertiginoso aumento da taxa de motorização nas metrópoles brasileiras que esta prática acarretou, se acrescenta a perda de controle público sobre a forma de oferta e remuneração do transporte coletivo. O espaço urbano comum, de convívio compartilhado, foi colocado dessa maneira cada vez mais à mercê de apropriações privadas, tornando as relações vividas fora do espaço privado cada vez mais violentas e alienantes. Dessa forma, a construção de um controle popular sobre a mobilidade urbana se apresenta como tarefa fundamental e inescapável dos movimentos sociais por transporte. É necessário, nesse sentido, reconhecer as trajetórias de luta que se fizeram ao longo da história urbana brasileira e perceber o acúmulo de experiências, com seus êxitos e fracassos, para a partir disso se propor o novo. A trajetória dos Movimentos Reivindicativos por Transporte Coletivo da década de 1980 apresentam lições que não podem ser ignoradas pelos movimentos contemporâneos. A forma como foram capazes de efetivar demandas locais e articular uma base popular para um processo de luta consequente é experiência necessária para os movimentos atuais, que inescapavelmente precisam construir um processo de enfrentamento de base a partir dos espaços não-centrais das metrópoles e daqueles que têm seus direitos mais espoliados. Além disso, é necessário aprofundar o conhecimento e o debate a respeito das experiências de fiscalização popular do transporte coletivo realizadas na década de 1980. Cada vez mais é necessário estabelecer referências e pontos de partida para o desenvolvimento de estruturas de controle popular do transporte, na metrópole contemporânea, minimizando os desvios e manipulações dos operadores – públicos e privados – do transporte. 262

Como foi afirmado nesta dissertação, a característica ubíqua e perene do transporte na metrópole apresenta aos movimentos sociais desafios distintos daqueles dos movimentos sociais urbanos por moradia, por exemplo, pois se trata de garantir a reprodução contínua de um serviço. Assim, as experiências da década de 1980 podem contribuir para a reflexão sobre como efetivar um poder autônomo, que prescinda e se esquive tanto do imperativo de acumulação capitalista da esfera privada, quanto do poder discricionário e enrijecido da esfera estatal. A lógica do comum, como uma forma de se ir e vir e estar na cidade, afirma-se na brecha das relações hegemônicas de poder. Ao partir daquilo que é difuso e comum no deslocamento na cidade – horários, itinerários, vontade de se estar na cidade, etc. – pode-se construir perspectivas de pertencimento e responsabilidade compartilhadas entre trabalhadores e usuários do transporte coletivo. Por outro lado, cabe aos movimentos contemporâneos compreender melhor o processo de diluição dos MRTC na estrutura estatal e sua gradual passagem, dentro do projeto democrático-popular, de elementos estratégicos e transformadores a elementos conservadores da estrutura de poder estabelecido. Essa dupla perspectiva dos MRTC – de potencial transformação ou conservadorismo – precisa ser resgatada como referência no debate contemporâneo, inclusive em função da amplitude da questão urbana que os atuais movimentos se propõem a transformar149. A articulação a nível nacional dos interesses não só do setor do capital do transporte coletivo, mas também da indústria automobilística, mais antiga e muitas vezes mais poderosa, mostra a dimensão do desafio de transformação que está colocado. A própria trajetória do Movimento Passe Livre foi bastante efetiva em demonstrar a extensão e o caráter sistêmico da estrutura de poder com a qual a mudança se confronta continuamente. A princípio, a pauta específica da gratuidade para o setor estudantil revelou, em sua movimentação, como o financiamento do sistema atua de forma coordenada com sua própria oferta e como gratuidades segmentadas não quebram essa lógica e podem até torná-la mais perversa, se não implantadas com controle popular. A transição para a pauta da gratuidade universal e os embates contra os aumentos de tarifa deixou claramente demonstrado a perspectiva comum de interesses entre o poder local e 149

É revelador da trajetória e composição social dos novos movimentos que a experiência dos MRTC não se coloque como referência central e tenha, em grande medida, passado ao largo dos debates sobre os rumos do movimento. Tanto em textos posteriores às manifestações de 2013 (POMAR, 2013), como nos anteriores (ORTELLADO, 2004), a referência para o debate é a trajetória do movimento estudantil brasileiro.

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esse setor do capital urbano. Como se viu, a história das lutas é cheia de exemplos de associação entre prefeitos, vereadores e empresários, de interferências do poder judiciário e utilização de mecanismos de cooptação e favorecimento para a desmobilização social. Por fim, as lutas desenvolvidas na última década, cujo ponto de maior dimensão foram as manifestações de junho de 2013, deram a dimensão da articulação nacional dos interesses dos setores do capital. A impassividade com a qual as estruturas de poder permanecem executando as obras rodoviaristas e a falta de movimentação efetiva em uma política nacional de mobilidade urbana, com coordenação entre os entes federados, demonstram a força desses interesses. No mesmo sentido, o aparato repressivo e institucional já identificou as formas de atuação dos movimentos e as colocaram na ordem do dia para seu controle. Mecanismos de disputa da subjetividade coletiva e de repressão objetiva às atividades dos movimentos são colocados em prática, dentro de um modelo de gestão da insatisfação popular. Nesse sentido, é oportuna a observação de Léo Vinícius: O impacto nacional da onda de manifestações iniciadas em junho de 2013 pela atividade política do MPL trouxe novos desafios organizativos não só para essa juventude, mas para todos aqueles que se encontram no campo político anticapitalista e autonomista. Desafio de criar formas de coordenação e comunicação capazes de dar respostas articuladas, nacionais, uma vez que os interesses que se contrapõem a seus propósitos não são mais apenas locais. Desafio de expandir ou generalizar as lutas autônomas a outros segmentos e talvez principalmente aos locais de trabalho. Certamente a resposta a esses desafios práticos não serão encontradas em nenhuma ortodoxia ou purismo. (VINÍCIUS, p. 16)

Certamente, é necessário inovar continuamente na forma de disputar uma nova mobilidade e sociedade. Buscar empoderar novos sujeitos sociais e romper barreiras discursivas e geográficas. Além de sistematizar o acúmulo de experiências transformadoras da ordem empreendidas pelos movimentos. As ações diretas, o trabalho de base, a formação interna e as breves experiências de autogestão expressas na viabilização de linhas gratuitas devem ser desenvolvidas como elementos perenes, que se autossustentem e, no limite, se expandam de maneira difusa e autônoma, a partir do exemplo. A tarefa, novamente, exige uma paciência característica de pessoas mais velhas, com o tempo lento da mudança geracional e das estruturas subjetivas, como também a perseverança e o ímpeto da juventude, na busca por grandes e violentas movimentações que rompam estruturas e construam o novo. Só essa dupla perspectiva será capaz de dar 264

consequências às movimentações por um outro poder instituinte. Só assim para se construir um mundo novo. 4.2 – Apontamentos para uma agenda perene de pesquisa. O trabalho que aqui se apresentou é, ele próprio, a expressão de um processo de pesquisa em aberto. Ao longo de sua elaboração, o desenvolvimento dos estudos revelou também a amplitude e complexidade dos aspectos que permeiam a relação entre a produção do espaço urbano, a conformação de um sistema de transporte coletivo na cidade e o desenvolvimento da luta política que disputa seus rumos. Por um lado, é evidente que toda a área de pesquisa acadêmica abordada aqui pode ter sua complexidade e correlações desenvolvidas com o processo de pesquisa. Entretanto, pareceu claro também que há uma carência de estudos que derrubem as barreiras das “disciplinas acadêmicas” para a questão do transporte público e o abordem como uma questão social que urge, Em que pese a inédita movimentação política na questão dos transportes, com a consolidação de movimentos sociais autônomos e capazes de colocar na agenda política nacional a questão dos transportes, o debate acadêmico pareceu não caminhar com a mesma velocidade. Esta dissertação buscou demonstrar que existe uma relação causal direta entre o desenvolvimento do capital no setor de transportes, o processo de formação das cidades brasileiras e a disputa política pela terra urbana, em seus valores de uso e troca. Assim, por um lado há evidentes determinações entre a forma urbana das cidades – os graus de densidade e de espraiamento do tecido urbano – e a estrutura econômica e tecnológica do modo de transporte – grau de inversão de recursos, estrutura monopolista, oligopolista ou mais permeável à entrada. Por outro, o levantamento da trajetória de formação do transporte demonstra que essa relação só se efetivará por meio de uma complexa rede de interesses e disputa política na qual o Estado, por um lado, e as mobilizações populares, por outro, têm papel único e fundamental. Além disso, por meio da narrativa de diversos momentos dos processos de mobilização popular, esta pesquisa buscou demonstrar também que os movimentos sociais por transporte na história urbana brasileira têm especificidades próprias e, assim, precisam de uma abordagem distinta daquela feita a respeito dos movimentos urbanos tradicionais. É necessário compreender a natureza do direito social que os movimentos por transporte reivindicam e analisá-los à luz dos interesses econômicos que pautam o desenvolvimento capitalista das atuais cidades brasileiras, para só assim poder 265

contribuir na construção de mudanças que efetivem esse direito e transformem o espaço urbano. Ao fim e ao cabo, esta dissertação se configurou como uma ampla agenda de pesquisa. Ao sistematizar eventos e fazer o diálogo entre abordagens distintas sobre o mesmo fenômeno, a pesquisa traça possibilidades de desenvolvimento que muitas vezes estão apenas delineadas no texto. No limite, cada uma das 59 seções e subseções aqui apresentadas (tomando-se a trajetória apresentada do Tarifa Zero BH como uma única seção e base de dados) apresenta a perspectiva de desenvolvimento futuro: de aprofundamento no levantamento histórico, de demonstração de relações causais gerais a partir de um estudo de caso, de desenvolvimento de políticas públicas, de demonstração das redes de interesse do capital e do Estado, entre outras. A abertura de novas possibilidades de pesquisa é assim a principal contribuição que esta dissertação busca realizar. Apresenta-se aqui alguns eixos, apenas a título de exemplo, sem a pretensão de esgotamento da matéria: - Aprofundamento do estudo sobre a atual estrutura do empresariado do setor de transporte coletivo por ônibus, a nível nacional. - Identificação e sistematização das relações econômicas e políticas entre o setor da operação de transporte por ônibus e demais setores do capital, em especial a indústria automobilística. - Estudo sobre a relação entre a esfera estatal e o setor privado na determinação das características do transporte público. Isto é, estudo sobre a efetividade política das estruturas de controle frente à dinâmica do capital. - Estudos de caso sobre a dinâmica de desenvolvimento do transporte em regiões periféricas das metrópoles brasileiras. - Mapeamento e sistematização das experiências de controle popular da oferta de transporte público nos municípios do país. - Mapeamento e sistematização das mobilizações populares por transporte nos municípios brasileiros. - Mapeamento e sistematização das experiências de gratuidade universal do transporte, no mundo e principalmente no Brasil. Espera-se, assim, que a trajetória dos ônibus e seus diversos atores aqui esboçada possa de fato contribuir para que novos caminhos sejam abertos, e novas possibilidades, criadas. Que o transporte deixe de ser um elemento invisível da 266

dinâmica de acumulação capitalista e possa, também ele, ser um objeto de disputa e recriação. Para que a singela potência de luta que rompeu o asfalto, cantada por Drummond, possa se afirmar plena em nossas gerações.

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