O OUTRO E EU: O DUPLO COMO QUESTIONAMENTO DE MUNDO EM GUIMARÃES ROSA

July 3, 2017 | Autor: Joaquim Botelho | Categoria: Literary Criticism
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O OUTRO E EU: O DUPLO COMO QUESTIONAMENTO DE MUNDO


EM GUIMARÃES ROSA



Joaquim Maria Botelho*


RESUMO
Este trabalho investiga, dentro da arquitetura da prosa de Guimarães Rosa,
as indagações de fundo filosófico, próprias do autor ou colhidas da
tradição oral. O traço barroco da linguagem de Rosa nos leva ao estudo dos
contrastes, senão dos opostos, que permeiam o texto, a suportar
questionamentos. Cada axioma, real ou forjado, é um convite à reflexão
sobre o eu-real ou o eu do real-imaginado. Minha aldeia é o universo. Um
por todos, e todos por um. Outros mundos, outros tempos, outros escritores.
Mesmas aflições. Predestinação e livre arbítrio. Vida e morte. Clareza e
mistérios. Harmonia e conflitos. Cômico e trágico. Para o leitor, a
ferramenta é a apreensão do discurso, "de cada um conforme a sua
capacidade, a cada um conforme a sua necessidade", como diria Marx. Em
Grande Sertão: Veredas, um personagem, na sua conversa de vaqueiro, busca
explicar o intangível, o diferente, o inusitado. Pergunta para uns e
responde para outros. Propõe metáforas e desmetaforiza. Não apenas pela
metalinguagem, mas pela sintaxe renovada, decifra signos, enfim, pela via
de se fazer entender de outro jeito. Este trabalho é um exercício. Apenas
pretende abrir perspectivas, como uma sementeira de outros temas. A obra de
Guimarães Rosa parece inesgotável.
Palavras-chave: Humor, espelho, literatura, barroco.




ABSTRACT
This work has focused on philosophical enquiries present in the
architecture of Guimarães Rosa prose, either of his own creation or
collected from the oral tradition. The baroque trace of Rosa's parlance
leads us to study the contrasts, if not opposites, which permeate his text,
to bear questionings. Each axiom, real or forged, is an invitation to the
reflection on the real self or on the imagined-real. My village is the
universe. One for all, and all for one. Other worlds, other times, other
writers. Same afflictions. Predestination and free will. Life and death.
Clarity and mysteries. Harmony and conflicts. Comical and tragic. For the
reader, the tools is the discourse apprehension, "from each one in
accordance to his capacity, to each one in accordance to his needs", as
Marx says. In the book "Grande Sertão: Veredas", a character, in his cowboy
talk, tries to explain the intangible, the different, the unusual. He asks
some people, answers to some others. He proposes metaphors and twists
metaphors. Not only by the metalanguage, but by a renovated syntax, the
author decipher signs, seeking for making himself understood in another
way. This work happens to be just an exercise. Its only purpose is to open
perspectives, as a seeding of other themes. Guimarães Rosa works seems to
be inexhaustible.
Palavras-chave: Humor, mirror, literature, baroque.
1 INTRODUÇÃO


1.1 "O SERTÃO É O MUNDO"



Riobaldo, durante três dias[1], narra a um misterioso ouvinte, a quem
se refere sempre como alguém de mais estudo do que ele, as suas memórias
pontilhadas de inquietações. Possivelmente esse ouvinte seja o próprio
Guimarães Rosa, que como Alfred Hitchcock, inseria-se às vezes, por
diversão pura, nas histórias (como fez, por exemplo, em "Miguilim", de
Corpo de Baile). O relato de Grande Sertão: Veredas, aparentemente confuso,
é na realidade uma travessia pelo caráter ambíguo do homem, traço barroco
na literatura de Rosa.
Riobaldo – ele mesmo Guimarães Rosa, um pouco – transforma a sua
vivência individual na experiência humana universal ("o sertão é o
mundo")[2].
Mas, se o sertão é o mundo, e se o jagunço é o sertão, e se o sertão
está em todo lugar, como diz Riobaldo, portanto o jagunço não é somente o
homem de Minas, mas o homem do mundo. Em suma, o homem é o mundo.
Guimarães Rosa conseguiu conjugar os conflitos do ser humano,
projetando a busca do sertanejo para fazê-lo conquistar dimensão universal.
Em síntese, escancarando as dúvidas e certezas do habitante do sertão das
Gerais, o escritor acaba mostrando que o homem é o homem, mesmo igual,
assinzinho mesmo, no sertão de Minas ou em qualquer outro lugar do mundo.
E disto trata a primeira parte de Grande Sertão: Veredas. Uma robusta
sequência de questionamentos filosóficos, em que talvez o mais abrangente
de todos seja este: "Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E
estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a
matéria vertente."
Veremos que, na busca de decifrar essa matéria fundamental, Riobaldo
reflete sobre a vida, sobre a origem de todas as coisas, e sobre o bem e o
mal, esses vestidos figurativamente de Deus e de Diabo, e de novo os
contrastes de fundo barroco emergem.
Ao final da narrativa, vencidos os três dias, Guimarães Rosa, pela
boca de Riobaldo, encerra o romance com um corolário filosófico do livre
arbítrio:



"Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o
Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano,
circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o
que eu digo, se for... Existe é o homem humano.
Travessia."


Hermógenes é um personagem que representa uma catarse para Riobaldo.
Heloísa Vilhena de Araújo lembra que Hermógenes é pactário[3]. E que em
virtude de sua traição, perde sua alma – vende-a ao diabo, que passa a
governá-lo por dentro. É Riobaldo quem persegue Hermógenes ("genes" de
princípio, origem) e dialoga com Compadre meu Quelemém (que é "padre", de
pai), mas sabe que Deus é igual ao Diabo:


"É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E,
outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro -
dá gosto! a força dele, quando quer - moço! - me dá o medo
pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do
mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se
divertindo,se economiza".


Afonso Arinos dizia que Guimarães Rosa tinha um estilo quase gongórico
de escrever.
Pensemos um pouco sobre isto. O Barroco foi a primeira manifestação
romântica de quebra da ordem, da medida, da proporção, da contenção, enfim,
dos parâmetros da arte clássica na Renascença. Abandonava-se, então, a
busca neoplatônica do Belo ideal, da correção humana dos erros da tola mãe-
Natureza. No Barroco, pela primeira vez, a arte interage com o espectador,
como quer Umberto Ecco.
Ariano Suassuna, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo[4],
saiu em defesa de Afonso Arinos, comentando, como disse, "o estranho e
grande mundo que João Guimarães Rosa alicerçou e construiu":


"Góngora era dono de um Reino poético, cercado por grades
e muralhas de diamante; Reino cortado por bosques
umbrosos, pedras e regatos, formados por ardente sangue
espanhol, vivo e pulsante como se fosse o sangue do
próprio Reino. (...) Góngora foi injustiçado durante muito
tempo; assim como foi injustiçado o próprio Barroco,
gênero do qual ele foi um dos maiores representantes. É
por isso que, de minha parte, procuro sempre fazer uma
distinção entre o Rococó estilo mundano e de alcova, o
estilo arrebicado e empoado do século 18 e o Barroco
brasileiro, especialmente o nordestino, talvez o mais
sóbrio de todos, ainda que permanecendo com sua
característica dialética de universo de contrastes, de
fusão de elementos clássicos e românticos, por ser, o
Barroco, a primeira manifestação romântica de dissolução
do clássico. (...) Eu não hesitaria em aproximar João
Guimarães Rosa de Góngora, considerando-o um típico
escritor do Barroco brasileiro, pertencente à mesma
linhagem de Antônio Vieira, Mathias Ayres e Euclydes da
Cunha."
O Brasil nasceu quando séculos de cultura já estavam instalados na
Europa, em que o chamado Renascimento apresentava sintomas de crise, vindo
a desembocar no momento genericamente chamado de Barroco. A origem virá
cunhada por esta insígnia cultural, assinalada pela oscilação dicotômica
entre Deus e o Diabo (o sagrado e o profano, o sublime e o grotesco, a
resignação e a revolta, ou a aristocracia e a burguesia, o ideal e o
mercadológico), em busca de uma síntese em um homem que descobre, acima de
tudo, o jogo como forma de articular os polos antagônicos, pela linguagem,
pela argumentação, pelo raciocínio. Jogo de poder e de anulação da
diferença.
O barroco busca a síntese entre os opostos, mesmo sabendo ser ela
impossível, a não ser por uma solução na linguagem. Longe de escolher a via
do mito (lembremos que, para Lévy-Strauss, o mito é uma narrativa a juntar
polos antagônicos), que é um discurso do poder, na medida em que "acalma as
consciências", a solução barroca será sempre a construção via linguagem de
modo a mesclar as duas cenas, mantendo-se, no entanto, visível a tensão
entre elas. Assim, pela construção barroca passamos a conviver não
propriamente com uma síntese acabada de uma construção metafórica, mas com
metonímias. Deus e Diabo perdem sua definida identidade e assumem novos
traços. A partir daí temos a possibilidade de um "Deus diabólico" e um
"Diabo divino", convivendo, ambos, nesse meio-termo híbrido.



2 A DIALÉTICA ROSEANA – HUMOR E DOR


2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O RISÍVEL


A arma de que se valeram alguns autores da literatura do Barroco foi o
humor. Em Dom Quixote, por exemplo, o cômico predomina sobre o trágico. Na
poesia de Gregório de Mattos, a picardia, a lascívia e a maledicência
sobrepujam a melancólica simetria clássica. Essa própria contradição é por
si dialética e por si barroca.
Heloísa Vilhena de Araújo defende a aproximação da obra de Guimarães
Rosa à figura do deus Hermes[5], o pícaro, o ladino, deus dos ladrões e das
meias verdades, inventor da lira (que depois trocou com Apolo) e também
deus da diplomacia – em última análise, a arte de refrear a ira das pessoas
com os malfeitos pela doçura da palavra. Para dar um exemplo, a autora
reproduziu uma carta escrita por Guimarães Rosa, em Paris, a Jorge
Kirchhoffer Cabral, então servindo como cônsul brasileiro em Frankfurt, na
Alemanha.



"Cônsul Caro Colega Cabral,
Compareço, confirmando chegada cordial carta. Contestando,
concordo, contente, com cambiamento comunicações conjunto
colegas, conforme citada Consolidação Confraria
Camaradagem Consular. Conte comigo. Comprometo-me cumprir
cabalmente, cabralmente, condições compendiadas cláusulas,
contexto clássico código. (Contristado, cumpre-me cá
conjecturar – cochichando, como convém –: conseguirá
comezinha Consolidação coligar cordialmente conjunto
colegas?... Crês?... Crédulo!... Considera:... 'cobra come
cobra!' Coletividade de cônsules compatrícios contém,
corroendo carne, contubérnios cubiçosos, clãs, críticos,
camarilhas colitigantes... Contrastando, contam-se claro
corretos corretos contratipos, capazes, camaradas
completos.) Concluindo: contentemo-nos com correspondermo-
nos, caro Cabral, como coirmãos compreensivos, colaborando
com companheiros camaradas, combatendo corja contumaz!..."


Este é apenas um trecho de uma carta cheia de verve, que segue em mais
outras cinco páginas, com todas as palavras iniciando-se pela letra c.
Nas obras de Guimarães Rosa que analisamos para este trabalho, em
alguns momentos é pelo divertimento que o texto se constrói. Rir é quase
sempre uma atividade associada ao exercício da imaginação e da reflexão –
proporcionar o divertimento é quase como a busca da sanidade, coisa fácil
de ser perdida naqueles sertões, ambiente árido, cheio de disputa pelo
poder, de mortes, matanças, traições.


"Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que o outro
cozinhou quente demais."
"Couro ruim é que chama ferrão de ponta."
"Para as coisas que há de pior, a gente não alcança fechar
as portas."
"Cipó não trepa em pau morto."


Pois, dizíamos, o romance tem os seus lances de bom humor. Anotamos a
seguir algumas frases humorísticas que compilamos em Grande Sertão:
Veredas. Tencionamos, com isso, em primeiro lugar estabelecer os traços da
estética barroca presentes na obra, e em seguida evidenciar o processo de
quebra da pesada e atristonhada narrativa a que se dispôs o escritor
mineiro, com o uso de axiomas rearranjados, provérbios torcidos ou
revirados, e muita verve, como este: "Pão, pão, beijo, beijo."
As frases que selecionamos são, como diria Paulo Rónai, "milagres de
síntese em miniatura".
Note-se que os elementos envolvidos nesse pacto narrativo evidenciam-
se no jogo proposto pelos axiomas ou pelos ditados. A brincadeira com a
linguagem é a tônica e no qual se cria um clima de jogo e busca de sentido
de palavras, tenham elas ou não algum significado implícito.



"A farinha tem seu dia de feijão."
"Sua alma, sua calma."
"Pior cego é o que quer ver."
"Quem desconfia, fica sábio."
"Quem mói no asp'ro, não fantaseia."


Fomos buscar em Walter Benjamin uma frase que chama a atenção para o
papel do riso como ponto de partida para o pensamento, referindo-se ao
teatro épico de Brecht:


"Seu objetivo não é tanto alimentar o público com
sentimentos, ainda que sejam de revolta, quanto aliená-lo
sistematicamente, pelo pensamento, das situações em que
vive. Observe-se que não há melhor ponto de partida para o
pensamento que o riso". [6]


Entender que o riso proporciona uma possível base para a reflexão
significa valorizá-lo também como um fim em si mesmo, como pura diversão. O
cômico, segundo Henri Bergson, é inconsciente. Em seu livro sobre o
riso[7], considera que o cômico é um mecanismo utilizado pela sociedade
para corrigir os seus vícios e impedir que os indivíduos se deixem conduzir
pelo automatismo fácil dos hábitos adquiridos. Observa ainda que uma
personagem é cômica na exata medida em que se ignore como tal, isto é, o
cômico é inconsciente. Por meio do riso, ocorre uma tomada de consciência e
uma vez reconhecendo-se como ridículo, o indivíduo tende a modificar-se,
pelo menos exteriormente. Nesse sentido, o riso castiga os costumes
(ridendo castigat mores).[8]


"Pois não é ditado: 'menino – trem do diabo'?"
"A abelha é que é filha do mel."
"Perto de muita água, tudo é feliz."


É célebre a observação de Marx ao constatar que a história se repete,
sendo a primeira vez vivida como tragédia e a segunda, como farsa. O riso,
então, conduz a um afastamento quase alegre em relação ao passado (o
"morrer de rir"), que também é uma tomada de consciência do tempo histórico
presente, evitando melancólicas visões de mundo. "Sossego traz desejos."
"Toda saudade é uma espécie de velhice."
Em Grande Sertão: Veredas o herói é tristonho porque a sua história é
tristonha. Mas suas ações, situações e ideias, expostas ao grupo, à
plateia, que são os leitores, assumem em momentos o seu tanto de risível –
como pudemos ver nos exemplos de axiomas citados na página anterior, ou
como neste outro exemplo:"No sistema dos jagunços, amigo era o braço, e o
aço!" "Viver é um descuido prosseguido."
De todos os recursos do cômico – paródia, ironia, humor, grotesco –
vemos que Guimarães Rosa prefere a ironia, que é o humor disfarçado de
amargor, ou vice-versa, mas de qualquer forma a síntese dos opostos,
barroco outra vez. Não lhe dá, ao humor, em momento algum, o papel
principal, nem lhe celebra o poder. Mas pontilha o texto de Grande Sertão:
Veredas de exemplos de ironia matuta e sagaz. E com isto desmascara mitos e
ideologias, porque privilegia o brincante e o lúdico do espírito caboclo.
"Paciência de velho tem muito valor."
Eunice Piazza Gai, do Centro de Estudos de Culturas de Língua
Portuguesa da PUC/RS, no trabalho "A Estética Irônica de Eça de Queiroz",
faz as seguintes observações, que consideramos apropriadas para o
comentário deste presente trabalho:


Eça de Queirós, ao lado de outros ficcionistas da
tradição, como Swift, Sterne, Machado de Assis, recebe
frequentemente de seus leitores e estudiosos o epíteto de
moralista ou crítico da sociedade. (...) A ideia
subjacente ao julgamento de um escritor como moralista e
crítico da sociedade é sempre a de que, por trás da ironia
ou da sátira, está a intenção de corrigir os desvios
sociais. Em outras palavras, a crítica se dá a partir da
pressuposição de uma perfeição anterior, objeto da
aspiração do ironista. Trata-se de uma concepção que está
presente em muitos dos teóricos cujo objeto de estudo é a
obra de escritores pertencentes à casta dos humoristas. Lê-
se, por exemplo, em Alcides Maya (1912) que "o humor é
revolta, melancolia, piedade" e que "... ao fundo, bem ao
fundo das páginas affeleadas, lá está o ideal, fonte de
justiça, de amor, de simpatia" (p.12). É certo que Maya
reconhece mais adiante que Machado de Assis, tema do
estudo em questão, entre os humoristas, sobressai-se, é
mais expressivo porque mais pessimista, uma vez que não
crê na vantagem das reformas sociais, nem na eficácia do
esforço individualmente considerado. Entretanto, a ideia
de alguma positividade no âmago das investigações
humorísticas permanece e o crítico a persegue ainda em
Machado.


Guimarães Rosa não usa o tom do humor com o fundo moralizante dos
romances realistas, nem o riso desmascarador, repressivo e humilhante, como
concebe Bergson. Prefere o riso corretivo, como em Molière, Balzac e Eça. E
o faz, não pela figura do narrador, um senhor muito sério e muito culto,
mas pela boca do personagem Riobaldo, que muitas vezes ri de si mesmo, de
sua gente e de sua própria identidade. Sombra e persona.



2.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O VISÍVEL



Em O Espelho, Guimarães Rosa apresenta um narrador sem nome, mas com
identidade. É um novo modus narrandi utilizado pelo autor, segundo Paulo
Rónai, no prefácio do livro "Primeiras Estórias".
A colocação do conto no livro imita interessantemente um espelho
concreto. É o décimo primeiro conto de um conjunto de vinte e um: antes
dele estão dez contos, depois dele outros dez. O espelho é o espelho do
livro, refletindo, para frente e para trás, dez unidades narrativas.
Exemplos da presença do mito em "O espelho":


O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem
tenha ideia do que seja na verdade – um espelho? (página
61)
Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um
mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles.
Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não
estamos vendo. (página 61)
Como é que o senhor, e eu, os restantes próximos, somos,
no visível? (página 61)
Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo
incorrigível, distraídos das coisas mais importantes.
(página 61)
Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se
que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da
noite, estando-se sozinho. (página 63)
Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões
atávicas. (página 63)
Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o
invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era – o
transparente contemplador? (página 66)
E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência
central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado?
(página 67)
E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples
pergunta: - Você chegou a existir? (página 68)


Como os sertanejos, de primitiva e atávica pureza, heróis prediletos
de Guimarães Rosa, os índios não conheciam o espelho.
Em uma palestra realizada na Universidade Estácio de Sá, no Rio de
Janeiro, o professor Ivo Luchesi comentava que a imagem, para os índios,
era dada pelas águas mutantes dos rios, ou, principalmente, pelo corpo do
outro. O canibalismo, portanto, segundo ele, era de dupla ordem: devorar a
carne para incorporar a força e, ao mesmo tempo, afirmação de um poder e
destruição da diferença sobre o outro, na medida em que o outro é o eu. Não
haveria, como na nossa cultura, o canibalismo enquanto uma reação ao
sublime e à ancestralidade, mas nada impede que coloquemos no cerne da
questão essa visão, pela via da consciência arcaica (que não pode ser
confundida com o inconsciente coletivo, de Jung). Talvez por aí se explique
nosso imenso fascínio pela televisão, já que é espelho da diferença a ser
vencida.
Se vivemos essa mutilação trágica, a opção assumida é a da fantasia.
"Antropofagia!"[9], bradou Oswald de Andrade, único a tomar como modelo um
índio não tão bem comportado, diferente do que buscavam todos os românticos
e modernistas, a reproduzir o mito do bom selvagem – Peri, de José de
Alencar, por exemplo –, tirado dos manuais da exemplar educação de
Rousseau.
Em um trabalho sobre Grande Sertão: Veredas, Eduardo Coutinho[10] tem
uma abordagem algo especular sobre a figura de Riobaldo, e que podemos
aproveitar como elemento que une o romance ao conto O espelho. O estudioso
baiano tenta demonstrar que o mundo de Riobaldo divide-se entre duas
esferas: a ordem mítico-sacral (do sertanejo inculto) e a lógico-racional
(do homem urbano). A oposição entre mythos e logos serviria para demonstrar
o chamado realismo mágico do romance, isto é, a oscilação entre pares
opostos (enquanto o realismo atende à esfera do logos, o mágico estaria
caracterizado pelo mythos). Segundo Coutinho, na esfera do mythos apresenta-
se também uma oscilação barroca entre Deus e o Diabo, sem que isto se
resolva.
Não resistimos aqui a fazer a aproximação do conto O espelho com o
romance Grande Sertão: Veredas: porque nos parece que a "travessia" sobre o
abismo que nos separa da identidade é nossa única condição, isto é,
continuamos índios primitivos, como os aqui encontrados, sem espelhos e sem
conseguir ver: nonada.




3 PRESENÇA DO MITO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS



Alan Viggiano, em sua dissertação de mestrado pela Universidade de
Brasília ("Hermes versus Afrodite em Grande Sertão: Veredas") dá um exemplo
da presença do mito no romance de Guimarães Rosa:


"À primeira vista, o mito de Afrodite, a Vênus dos gregos,
parece distante de um envolvimento com as personagens de
Grande Sertão: Veredas. No entanto, este mito está
intimamente ligado à novela, de forma ideológica e através
do processo lúdico de palavras. Daremos um exemplo, a
título de ilustração: se tomarmos a palavra Afrodite e
antepormo-la à palavra Diadorim, veremos que sobrariam: do
lado de Afrodite, as letras FTE; do lado de Diadorim, DIM.
Tomemos a palavra Afrodite e anteponhamo-la à palavra
Riobaldo. Sobrarão, do lado de Afrodite, o mesmo grupo de
letras: FTE; do lado de Riobaldo, o grupo BLO. Tomemos a
palavra Diadorim e anteponhamo-la à palavra Riobaldo:
restarão do lado de Diadorim o grupo DIM, o mesmo que
sobrou em confrontação com Afrodite; do lado de Riobaldo:
BLO, o mesmo grupo que resultou da comparação com
Afrodite."


O escritor e professor Eduardo Portella, ex-ministro da Educação,
precocemente desaparecido em acidente de avião, costumava dizer que
Guimarães Rosa é o mais solitário dos nossos narradores. Coisa que Rosa
parece confirmar nessa passagem da página 233 de Grande Sertão: Veredas:


"... liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre
caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem
uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que
ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer."


(Assoma à lembrança a frase de Thomas Hobbes, em Leviatã: "E a vida do
homem, solitária, pobre, sórdida, brutal e curta".[11])
Dizia ainda Portella que Rosa era ele próprio o grande sertão[12],
atravessado por todas as veredas, o masculino/feminino, o herói menos a
façanha apenas individual e mais o impulso ético. E sentenciava:


"Deus e o diabo, porém o sol encoberto pelas diferenças –
pelas diferenças que foram crescendo no abismo sempre
maior. A hora e não a vez, o muro e não a liberdade; que
parecem afogadas nas águas repentinamente poluídas do
grande rio – do grande sertão? – nacional. Resta ainda a
"terceira margem". E ele soube antever, antes de qualquer
outro comandante. Os poetas, ninguém se engane, adivinham
– inventando o caminho, perpassando. Por isso pode falar,
falando-nos: 'Nonada. O diabo não há: É o que eu digo, se
for... Existe é homem humano. Travessia.'"


E o poeta adivinha mesmo. E avisa que tem esse poder, como aqui: "Eu
me lembro das coisas, antes delas acontecerem."[13] Ou como aqui: "... o
que mão a mão diz é o curto: às vezes pode ser o mais adivinhado e
conteúdo."[14]
Para Adonias Filho, acima de todas as contribuições técnicas e de
todos os elementos de renovação, que compõem o processo revolucionário, "o
grande e estranho poder de Guimarães Rosa reside na compreensão da criatura
no destino e na condição. É essa compreensão que responde por sua
participação na comunidade que une os verdadeiros artistas de um
tempo".[15]







CONCLUSÃO




DE QUEM ESTAMOS FALANDO?
De mim, do outro, ou do outro em mim?
A análise dos filosofemas em Grande Sertão: veredas, de Guimarães
Rosa, começa, necessariamente, pelo título.
DE QUEM ESTAMOS FALANDO?
Ao mesmo tempo em que fala do Grande Sertão e suas pequenas veredas,
estaria Guimarães Rosa falando do grande ser, o divino, o transcendente, o
maior de todos? ou então se referiria à potencialidade do homem, que é um
grande ser, em potência, e que o será efetivamente depois de vencidas as
veredas de sua existência?
Supondo-se que falasse de ambos, criador e criatura, falaria ele de
opostos ou estaria mais fazendo a síntese, desvelando o divino no humano
pelo papel catártico da dor e do amor?
Então, afinal, de quem está falando Guimarães Rosa? De Riobaldo,
sozinho, ou do Riobaldo coletivo? De mim mesmo, dele próprio, de você,
leitor deste trabalho, do outro que há em cada um? Ou de todos esses de uma
vez?
Vejamos o que está dito à página 92 de Grande Sertão: Veredas. "O
sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe contei –:
eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante
falta nome."


OS CONTRASTES


Um segundo ponto a ser discutido é que a narrativa tristonha, e até
dramática, de Grande Sertão: Veredas tem laivos do humor pedagógico do
capiau mineiro, que ensina pela graça e pela ironia. A própria oposição do
drama e do cômico é traço barroco na escritura de Guimarães Rosa.
E esse aspecto barroco da obra é algo que tomamos como conclusão. A
obra reflete contrastes – e o verbo não foi escolhido à toa, porque a
verdade que se esconde atrás das aparências, na travessia de Riobaldo,
guiado pela graça de Deus, Diadorim, pelo Grande Sertão: Veredas, é a mesma
verdade que se esconde atrás da superfície em que o autor se vê ou se
procura ver em O espelho. Contrastes, no fundo, contrastes, no raso.
Aparências e verdades, livre arbítrio e predestinação, bem e mal, certo e
errado.
E, de novo, não resistimos aqui a fazer a aproximação do conto O
espelho com o romance Grande Sertão: Veredas: porque nos parece que a
"travessia" sobre o abismo que nos separa da identidade é nossa única
condição, isto é, continuamos índios primitivos, como os aqui encontrados,
sem espelhos e sem conseguir ver: nonada.


MUNDO MUNDO, VASTO MUNDO


Ainda que para Guimarães Rosa a preocupação com a palavra tenha sido
meticulosa e permanente, e não ocasional, é certamente exagero ver na obra
roseana uma aplicação do platonismo.
Reinventando a linguagem para reforçar o autêntico falar regional,
João Guimarães Rosa logra registrar a poética do falar sertanejo. E desfila
pérolas da oralidade não apenas para exibir a espontaneidade dos diálogos,
mas para evidenciar como era difícil para Riobaldo organizar as ideias para
narrar suas vivências.


"Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já
passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas
– de fazer balance, de se remexerem dos lugares."


A própria noção de completude da narrativa, por força da intensidade
de sentimentos que revela, fica algo confusa na mente de Riobaldo e
portanto nas frases que pronuncia. À página 530 pede desculpas ao
interlocutor de não conseguir pôr fim ao seu contar: "O senhor não repare.
Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real." Mas à página
seguinte anuncia: "O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o
senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi. Aqui a
estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui, a estória acaba."
A sequência de tempos verbais conta da revolução interior do sertanejo
narrador. Para mostrar um fim que foi (um tempo passado relativo ao tempo
da narrativa), usa o pretérito perfeito. Logo em seguida, usa o imperfeito
para indicar que a narrativa estava posta dentro de um passado, e note-se
que a palavra acabada assume notação de particípio e, portanto, de
adjetivo. E, afinal, até porque vai prosseguir a narrativa a partir da
morte de Diadorim, encerra o pensamento com o presente do indicativo,
indicando a pendência de desfecho.
Como se dissesse: aquele foi o fim que foi, mas qual será o fim que
será?
Não podemos deixar de mencionar o que bem lembrou Heloísa Vilhena de
Araújo na obra citada (página 33), de que o nome Diadorim significa "dom de
Deus" (dia é o nome grego para Zeus, e doros significa presente, dom).
Portanto, é a graça de Deus que acompanha Riobaldo em sua viagem pelo
sertão.
E, igualmente, pela escansão do título do livro (Grande ser/tão),
estaria Guimarães Rosa falando do Grande Ser, de Deus? Ou seria do homem,
este grande ser em pecado, que seria purificado?
Novamente, está posto um questionamento filosófico do homem diante do
seu papel no mundo, no tempo, na vida, no universo e no sertão, e da
finitude e da permanência de tudo.
E, enquanto Riobaldo/Rosa se questiona, aproprio-me de um fecho feliz
do meu amigo Paulo Bicarato (num texto escrito em 2003): os óculos de
Miguilim embaçaram-se; a capela de Manuelzão ganhou seu santo definitivo,
tresaventuras...



REFERÊNCIAS


ARAÚJO, Heloísa Vilhena de. O Roteiro de Deus. Editora Mandarim, São Paulo,
1996.

________________________. Guimarães Rosa, Diplomata. Edição
Itamaraty/Funag, RJ, 1987.

ARISTÓTELES, Ética Nicomáquea. Editorial Gredos, Madrid, 1995. 3a ed.

ARON, Raymond. Mitos e Homens. Editora Fundo de Cultura, Rio de Janeiro,
1959.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1986.

BERGSON, Henri. O riso – ensaio sobre a significação do cômico. RJ: Zahar
Editores, 1983.

COUTINHO, Eduardo. Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande
sertão: veredas. Salvador, Casa de Jorge Amado, 1993.

DROZ, Geneviève. Os Mitos Platônicos. Editora UnB, Brasília, 1997.

JOLIVET, Regis. Curso de Filosofia. Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro,
1957, 3a ed.

MARX, Karl. Uma Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel
(1844). Consultado na Internet.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Editora Martin Claret, São
Paulo, 2001.

PLATÃO, Apologia de Sócrates, Banquete. Platão. São Paulo: Editora Martin
Claret, 2001.

_______________. República, Livro 7. Editora Martin Claret, São Paulo,
2001.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Editora Nova Fronteira, R.
Janeiro, 1986.

_______________. "Primeiras estórias". Livraria José Olympio Editora,
R.Janeiro, 1977.

TERRA, Roberto – org. Duas Introduções à Crítica do Juízo. Editora
Iluminuras, SP, 1995.

SUASSUNA, Ariano. Guimarães Rosa: um clássico. Caderno Folha Ilustrada, 18
de dezembro de 2000.

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[1] "Eh, que se vai? Jàjá? É que não. Hoje, não. Amanhã, não. Não consinto.
O senhor me desculpe, mas em empenho de minha amizade aceite: o senhor
fica. Depois, quinta de-manhã-cedo, o senhor querendo ir, então vai, mesmo
me deixa sentindo sua falta. Mas, hoje ou amanhã, não. Visita, aqui em
casa, comigo, é por três dias!" (Página 17)
[2] A assertiva de universalização do sertão aparece em vários outros
momentos do livro. Por exemplo: "O sertão é do tamanho do mundo", "sertão é
o sozinho", "sertão: é dentro da gente", "sertão é sem lugar", "sertão é
onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar",
"Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias",
"o sertão está em toda parte".
[3] In "O Roteiro de Deus", página 27. "O Hermógenes tem pauta... Ele quis
com o Capiroto..."
[4] "Guimarães Rosa: um clássico", Ariano Suassuna. Caderno Folha
Ilustrada, 18 de dezembro de 2000.
[5] "Guimarães Rosa, Diplomata." Heloísa Vilhena de Araújo. Edição
Itamaraty/Funag, Rio de Janeiro, 1987. 164 páginas.
[6] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas,
vol. I, São Paulo: Brasiliense, 1986.
[7] BERGSON, Henri. O riso – ensaio sobre a significação do cômico. Rio de
Janeiro: Zahar, 1983.
[8] À página 18 da obra citada, Bergson diz o seguinte: "... o riso obriga
os indivíduos a parecer o que deveriam ser o que, possivelmente, acabarão
por ser de fato".
[9] 5 Trata-se do "Manifesto Antropófago", de Oswald, lançado em 1928 e
motivado pelo quadro "Abaporu", de Tarsila do Amaral, no qual são
formuladas as bases de uma política cultural, sustentada pelo canibalismo
dos índios, historicamente representado pelo devorar canibal de Frei
Sardinha. Em sua lúcida visão sobre o processo constitutivo de nossa
cultura, Oswald percebe que só a antropofagia (o "devorar" elementos da
cultura estrangeira e misturá-los na ruminação violenta, transformando em
dejeto para ser devolvido) será capaz de estabelecer um ponto de união
entre os vários "brasis" aqui existentes, sem que nenhum deva ser tomado
como única identidade possível.
[10] COUTINHO, Eduardo. Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande
sertão: veredas. Salvador, Casa de Jorge Amado, 1993.
[11] Leviatã (1651), Parte I, capítulo 13. "Tudo, portanto, que advém de um
tempo de Guerra, onde cada homem é Inimigo de outro homem, igualmente advém
do tempo em que os homens vivem sem outra segurança além do que sua própria
força e sua própria astúcia conseguem provê-los. Em tal condição, não há
lugar para a Indústria; porque seu fruto é incerto; e, consequentemente,
nenhuma Cultura da Terra; nenhuma Navegação, nem uso algum das mercadorias
que podem ser importadas através do Mar; nenhuma Construção confortável;
nada de Instrumentos para mover e remover coisas que requerem muita força;
nenhum Conhecimento da face da Terra; nenhuma estimativa de Tempo; nada de
Artes; nada de Letras; nenhuma Sociedade; e o que é o pior de tudo, medo
contínuo e perigo de morte violenta; e a vida do homem, solitária, pobre,
sórdida, brutal e curta."
[12] "O sertão: é dentro da gente."
[13] Grande Sertão: Veredas. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986,
38a. impressão. Página 22
[14] Ibidem, página 108.
[15] In "Rosiana, uma coletânea de conceitos, máximas e brocardos de João
Guimarães Rosa" edição comemorativa dos 75 anos do autor, Editora
Salamandra, Rio de Janeiro, 1983. Página 86. (Edição especial e fora do
comércio para MPM Propaganda, numerada de 0001 a 11.000)
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