O Padre Gustavo de Almeida, apologista e informador de Salazar

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O PADRE GUSTAVO DE ALMEIDA, APOLOGISTA E INFORMADOR DE SALAZAR José Barreto Instituto de Ciências Socias ‒ Universidade de Lisboa, Março de 2015

Gustavo Adolfo Ribeiro de Almeida nasceu em 1903 na freguesia de Santa Maria Maior, no concelho da Covilhã, e morreu a 30 de Maio de 1965 em Lisboa. Tendo frequentado o Seminário Menor do Fundão e completado os seus estudos de Teologia no Seminário Maior da Diocese da Guarda, ordenou-se em 16 de Janeiro de 1926. Licenciou-se em Direito Canónico pela Universidade Católica de Paris, onde se doutorou em Ciências Políticas e Sociais.1 Foi professor de Português e de Literatura e Religião no Seminário Menor do Fundão, onde contou entre os seus alunos Vergílio Ferreira, que ali estudou dos 10 aos 16 anos de idade, de 1926 a 1932. No romance Manhã Submersa (publicado em 1954), em que o escritor evoca esse período da sua vida, refere-se ao Padre Gustavo sob o nome de "Padre Tomás", personagem presente ao longo do livro. Vergílio Ferreira descreve-o como uma “vasta sombra que se projecta em todo o seminário, irascível e temível”. Como outros professores "ferozes" do Seminário do Fundão, o "Padre Tomás" deixou tristes recordações nos seminaristas, nos quais "malhava" regularmente.2 O Padre Gustavo de Almeida foi director do Notícias da Covilhã (1931-1936) e director, editor e proprietário do efémero jornal paroquial Lux (1935), no Fundão. Dirigiu também o Boletim da Diocese da Guarda. Até ao ano lectivo de 1937-1938, o Padre Gustavo de Almeida leccionou no Liceu da Guarda, onde foi professor de Moral e Educação Cívica. Nesta qualidade produziu em 1938 um texto apologético sobre Salazar, que aqui se transcreve: Salazar é um Humanista Cristão, e em toda a sua obra ele tem sido Pensamento em acção, Filosofia viva, Teologia viva, pondo as forças da matéria ao serviço dos fins espirituais do mundo, como disse Charmot3 repetindo por outras palavras a frase de Croisset4. Salazar trabalha sempre para o Bem Comum, procurando a renovação moral, intelectual e política da Nação, por meio da aplicação da chamada Justiça Social. A economia materialista faliu por completo, por isso é que Salazar atrás das cifras dos seus orçamentos põe sempre a preocupação da espiritualidade e da dignidade humana. Faz 1

"Rev. Dr. Gustavo de Almeida", in "Necrologia", Diário de Lisboa, 30 de Maio de 1965, p. 18. Padre Júlio Pinheiro, “O real e a ficção na Manhã Submersa de Vergílio Ferreira”, in Síntese, n.º 189, Março-Abril de 2008. Acessível no portal do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, em: http://www.snpcultura.org/impressao_digital_manha_submersa.html 3 Refere-se ao pedagogo jesuíta francês François Charmot (1881-1965). 4 Refere-se ao jesuíta francês Jean Croiset ou Croisset (1656-1738), teólogo ascético considerado como um mestre da espiritualidade cristã. 2

nacionalismo, mas um nacionalismo humanista, como é próprio do carácter Português. Portugal teve sempre a vocação missionária, e ao descobrir novos mundos não o fez por egoísmo, mas para servir a humanidade, e dilatar a Fé de Cristo. Dr. Gustavo Ribeiro de Almeida, Professor de Moral e Educação Cívica, Liceu da Guarda, 27 de Abril de 1938.5

Em Julho-Agosto de 1938, o Padre Gustavo de Almeida fez parte, em representação do diário católico Novidades, da comitiva de jornalistas que acompanhou o presidente Carmona na sua viagem a S. Tomé e Príncipe e a Angola. Por volta de 1938, o Padre Gustavo de Almeida mudou-se para Lisboa, onde mais tarde viria a ser prior da freguesia de São Nicolau (1947-1965). Na capital começou por desempenhar diversas funções, como as de assistente eclesiástico nacional da Mocidade Portuguesa Feminina ‒ MPF (1938-1965), assistente das Juventudes da Acção Católica (até Outubro de 1944), professor do Liceu Camões, capelão do Instituto de Odivelas e assistente nacional das Noelistas. Como assistente da MPF, foi o responsável pelos serviços de “formação moral e nacionalista” (após 1945: “formação moral e social”) dessa organização de juventude do Estado Novo.6 Nessa qualidade trabalhou em estreita colaboração com Maria Guardiola (reitora do Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, deputada à Assembleia Nacional, vice-presidente da Obra das Mães pela Educação Nacional e, de 1937 a 1968, comissária nacional da MPF), de quem terá sido também director espiritual.7 Assinando com as iniciais G. A., Gustavo de Almeida foi desde o primeiro número (1939) editorialista do órgão da MPF, Mocidade Portuguesa Feminina, onde em Maio de 1945 anunciou a paz, associando o “milagre de Salazar”, que teria mantido Portugal fora da guerra, ao “milagre de Fátima”.8 Muito identificado com o regime de Salazar, a quem pessoalmente afirmava votar grande amizade, veneração e gratidão, o Padre Gustavo de Almeida escreveu regularmente sobre matérias políticas e sociais, tanto na imprensa diária da Igreja, o já citado Novidades, como na do regime, sobretudo o Diário da Manhã, órgão da União Nacional. A partir de 18 de Novembro de 1954, manteve no jornal Novidades, diário do episcopado português colocado sob a orientação do patriarcado de Lisboa, uma coluna regular assinada por “Parochus X”, intitulada “Pastoral e sociologia religiosa”.9 Nas Novidades assinava também artigos no suplemento Letras e Artes. Foi editorialista do 5

Arquivo Histórico do Ministério da Educação, Direcção-Geral do Ensino Liceal/Diversos-13/3204, citado por Pietro Tessadori, O Homem Novo do fascismo italiano e do Estado Novo português (tese de doutoramento), Lisboa: UL/ISCTE/UCP/UE, 2014, p. 253, nota 786). 6 Irene Flunser Pimentel, Mocidade Portuguesa Feminina, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2007, p. 18. 7 Amaro Carvalho da Silva, “Maria Guardiola e a educação moral e religiosa da mulher no Estado Novo”, in António Matos Ferreira e João Miguel Almeida, Religião e Cidadania: Protagonistas, Motivações e Dinâmicas Sociais no Contexto Ibérico, Lisboa: CEHR-UCP, 2011, pp. 283-315 8 G. A., “Bendigamos a Paz”, Mocidade Portuguesa Feminina, n.º 73, Maio de 1945, p. 1. 9 N. Estêvão Ferreira, A Sociologia em Portugal: da Igreja à Universidade, Lisboa: ICS, 2006, p. 22.

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Diário da Manhã, onde tinha uma coluna na primeira página intitulada "Nova et vetera". O seu estilo era combativo, colocado ao serviço das concepções integristas e nacionalistas que inspiravam a sua por vezes acerada crítica social. No verão de 1958, por aparentes atritos com a direcção do Diário da Manhã, o Padre Gustavo de Almeida chegou a anunciar “despedir-se” desse jornal. Num artigo ali publicado a 27 de Julho, antes da tomada de posse do presidente Américo Tomás (9 de Agosto) e da remodelação do governo (14 de Agosto), defendera uma “renovação” (aliás anunciada por Salazar num discurso proferido a 1 de Julho desse ano), avisando porém, que não bastava mudar pessoas: "Outras caras só para ver outros bigodes, não. Outros nomes, só para ver chegar outros que têm estado á espera... não. A questão é de homens. De homens novos. Novos de mentalidade".10 Esta irreverência, que foi assinalada pelo Diário de Lisboa e até pelos jornais espanhóis ABC e La Vanguardia, deve ter suscitado reparos. Na verdade, o Padre Gustavo de Almeida não chegou a abandonar o jornal, continuando a publicar a sua coluna nesse mês, bem como nos meses e anos seguintes.11 Ainda se mantinha como colaborador assíduo do Diário da Manhã em Janeiro de 1962, momento em que o patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira lhe pediu que deixasse de colaborar no jornal, dado que um padre se encontrava então preso por razões políticas.12 Como publicista e orador, o Padre Gustavo tinha “um estilo exaltado que suscitou conflitos”, embora fosse sempre “um apoiante decidido do Estado Novo”.13 Na sua morte, em 1965, o cardeal Cerejeira diria: “Não era do seu estilo a palavra meditada, serena, medida, nem o alinhamento silencioso e passivo, sem paixão. Pertencia à linhagem dos Léon Bloy, que gritam e rugem por amor contra toda a mesquinharia e fraqueza, e duplicidade e conformismo e traição”.14 Apesar de integrista e salazarista, o Padre Gustavo de Almeida, que viajava muito pela Europa, tinha uma certa aura não só de intelectual, como de pessoa com alguma abertura às correntes estéticas europeias contemporâneas. Isto parece até certo ponto comprovado pelo apoio que prestou ao Movimento de Renovação da Arte Religiosa – MRAR, fundado em 1953, em Lisboa, por um grupo de arquitectos de que faziam parte Nuno Teotónio Pereira, António Freitas Leal e João de Almeida, a que se juntaram pintores como Manuel Cargaleiro e José Escada ‒ vários deles, aliás, católicos críticos do regime de Salazar e signatários de protestos colectivos de católicos em 1958 e 1959. Um estudo recente refere que a Exposição de Arquitectura Religiosa Contemporânea (1953), promovida pelo grupo de arquitectos que pouco depois viria a fundar o MRAR, foi realizada na galeria lateral da igreja de São Nicolau, cedida pelo pároco Gustavo de 10

Gustavo de Almeida, "Nova et vetera. Renovar com quem?", Diário da Manhã, 27de Julho de 1958, pp. 1 e 4. O tema é retomado em “Nova et vetera. Prosseguir com quem?”, Diário da Manhã, 5 de Agosto de 1958, pp. 1 e 5. A pessoa de Salazar não estava, obviamente, em causa. 11 Ver, por exemplo, Gustavo de Almeida, “Nova et vetera. Sim ou não?”, Diário da Manhã, 13 de Outubro de 1958, e “Nova et vetera. Por onde começar a reforma?”, Diário da Manhã, 18 de Março de 1959. Neste segundo artigo, o Padre Gustavo reafirmava o seu “apoio ao Estado Novo e à necessidade das mudanças [...] no sentido da corporativização”. 12 Isabel Flunser Pimentel, Cardeal Cerejeira: O Príncipe da Igreja, Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010, p. 202. Tratava-se, provavelmente, do Padre Costa Pio, que em 1964 morreria na prisão. 13 Luís Filipe Salgado Matos, “A campanha de imprensa contra o bispo do Porto como instrumento político do governo português”, in Análise Social n.º 150, 1999, p. 42. 14 Isabel Flunser Pimentel, Cardeal Cerejeira, op. cit., p. 333, nota 44.

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Almeida. A paróquia "funcionava como um verdadeiro centro de cultura cristã, graças à dinâmica imposta pelo Padre Gustavo de Almeida, intelectual próximo do Cardeal Patriarca, com grande influência nas elites da capital".15 *** Da proximidade política do Padre Gustavo de Almeida a Salazar testemunham especialmente duas cartas suas ao ditador, datadas de Agosto de 1958, adiante transcritas em Apêndice (1 e 2). Essa correspondência provém do Arquivo Salazar (Torre do Tombo) e está arquivada juntamente com a documentação relativa ao caso do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes16. Cronologicamente, estas duas cartas situam-se no período que se seguiu às agitadas eleições presidenciais de Junho de 1958 e à crise interna do regime que o ditador resolveu com uma remodelação alargada do governo (14 de Agosto). A 13 de Julho, o bispo do Porto enviara a sua célebre carta a Salazar, cuja divulgação privada ocorreu nas semanas seguintes, dando origem a uma circulação clandestina que, até ao fim do ano, assumiria grandes proporções em todo o país.17 Deste assunto se ocupará largamente parte da correspondência de Gustavo de Almeida para Salazar aqui reproduzida. A primeira carta do Padre Gustavo de Almeida, datada de 15 de Agosto, é a resposta a uma carta de Salazar, em que o ditador aparentemente lamentava ou pedia que reconsiderasse a sua decisão de deixar de colaborar no Diário da Manhã. Na resposta, Gustavo de Almeida tranquiliza o chefe do governo, reiterando a sua determinação em posicionar-se na "frente de combate" pró-regime naquela hora "talvez a mais grave para a Situação”. Refere-se à divulgação de uma “Mensagem” em apoio de Salazar com 600 assinaturas, em cuja iniciativa ele afirma ter participado e cujo conteúdo já era do conhecimento de ditador. Em post scriptum a esta primeira carta, Gustavo de Almeida escreve: “V. Ex.ª já deve ter sabido que a carta do Bispo do Porto se tornou pública. Anda para aí. Não me conformo com esta deselegância. Não foi bonito, mesmo independentemente do teor da carta.” A segunda carta do Padre Gustavo de Almeida, não datada, mas que poucos dias devem ter separado da primeira, servia para remeter a Salazar duas cartas anexas, aqui também transcritas em Apêndice (2.1 e 2.2). Afirmando ter hesitado em enviá-las a Salazar, o Padre Gustavo de Almeida dava a ideia de se ter debatido com um conflito moral. A primeira dessas cartas é a cópia de uma missiva sua ao bispo do Porto, criticando-o por ter divulgado a carta a Salazar. A segunda é a cópia incompleta de uma carta dactilografada de um destacado militante da Acção Católica, endereçada a D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto. O Padre Gustavo de Almeida não explica como conseguiu obter uma cópia dessa carta particular, que descreve como “um triste documento assinado por um triste qualquer”. À cópia faltava a última página, que o 15

João Pedro da Cunha, O MRAR e os Anos de Ouro da Arquitectura Religiosa em Portugal no Século XX, Lisboa: FAUL, 2014, 1.º vol., p. 161, nota 61. 16 TT/AOS/CO/PC-51-1 e 2. 17 Em meados de Agosto de 1958, a carta circulava já sob a forma de folheto impresso.

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Padre Gustavo de Almeida diz ter “desaparecido”, mas, segundo ele, “ainda bem”, porque assim Salazar escusava de saber quem era o remetente. Logo de seguida, porém, acrescenta: “embora talvez, por outros lados, não seja difícil encontrá-lo”. Pouco depois, a 21 de Agosto, Salazar transcreveu à mão (“por uma outra cópia que me chegou às mãos”, segundo anotou) a página em falta, na qual figuravam a data, o nome do remetente, José Vieira da Luz, e a respectiva morada. Sobre a pessoa do remetente da carta foi possível juntar alguns dados biográficos. O Dr. José Vieira da Luz, que assinava José Vieira da Luz Júnior, nasceu na Ponta do Sol (Madeira) em data que não conseguimos apurar e completou o curso dos liceus no Funchal, depois de ter frequentado o seminário diocesano. Foi instrutor do Corpo Nacional de Escutas da Madeira no final dos anos 20. Cursou Direito na Universidade de Lisboa e, a partir de 1937, figura como tesoureiro da Alfândega de Lisboa. Foi militante e dirigente da Acção Católica. No período da campanha eleitoral de Novembro de 1945, arriscando o seu emprego, deu uma entrevista ao Diário de Lisboa na qualidade de católico e democrata, manifestando o seu apoio à oposição, então organizada no Movimento de Unidade Democrática (MUD).18 Dele disse António Alçada Baptista que, em 1945, foi o único que, “tomou, como católico, uma posição pública contra o regime”.19 Vieira da Luz publicou em 1950 O Mistério da Encarnação em Face da História e da Razão. Em 1957 era director do Boletim Informativo e Cultural da Casa da Madeira. No momento em que José Vieira da Luz endereçou a carta aqui em causa ao bispo do Porto, datada de 27 de Julho de 1958, talvez já estivesse ao corrente do conteúdo da carta do bispo a Salazar, datada de 13 de Julho. Com efeito, o bispo distribuiu cópias dessa carta, numa primeira remessa, pelos seus colegas do episcopado e pelos 28 signatários de um protesto enviado ao jornal Novidades, a 19 de Maio de 1958, poucas semanas das eleições presidenciais, por responsáveis e militantes da Acção Católica indignados com o apoio flagrante do jornal da Igreja ao candidato do regime. É, assim, possível que José Vieira da Luz, que não conhecia pessoalmente D. António Ferreira Gomes, já tivesse tido acesso, através daqueles elementos da Acção Católica, ao texto da carta do bispo a Salazar. Embora não se lhe referisse na carta que enviou ao bispo, Vieira da Luz dizia julgar ir ao encontro do pensamento de D. António Ferreira Gomes no respeitante à necessidade de os católicos organizarem a sua representação política à luz da doutrina social católica, o que podia ser uma referência a um conhecido trecho da carta de D. António a Salazar. A carta de Vieira da Luz ao bispo do Porto começa por uma crítica frontal à governação de Salazar, que não considera norteada por princípios cristãos, e dá em seguida conta do seu projecto de encetar a preparação da representação política dos católicos, por meio da criação de um “centro católico de estudos”, embrião de um futuro partido e cujos estatutos propõe submeter à aprovação de D. António 18

“A democracia é o termo da evolução política de todos os povos civilizados – diz o Dr. José Vieira da Luz, católico praticante”, Diário de Lisboa, 12 de Novembro de 1945, p. 1 e central. 19 António Alçada Baptista, Pesca à Linha: Algumas Memórias, Lisboa: Presença, 1998. Na verdade, também o católico Francisco Veloso, ex-companheiro de Salazar e Cerejeira em Coimbra, bem como o Padre Joaquim Alves Correia, deram em 1945 o seu apoio ao MUD.

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Ferreira Gomes. Sugere ainda que as primeiras reuniões desse “centro católico de estudos” poderiam ser efectuadas em espaços cedidos pela Acção Católica, embora esta não devesse envolver-se formalmente no processo, segundo diz. Pode imaginar-se o alarme que a leitura da carta de José Vieira da Luz ao bispo do Porto terá causado a Salazar, que já nesse ano tinha sido informado de sugestões feitas separadamente pelo núncio apostólico Fernando Cento e por um auditor da nunciatura em Lisboa, Luigi Gentile, admitindo ambos a necessidade de criação de um partido democrata-cristão em Portugal, com vista à preparação dos católicos portugueses para o pós-salazarismo (Salazar ia completar 70 anos em Abril de 1959).20 No seu discurso de 31 de Maio de 1958, durante a campanha das eleições presidenciais, Salazar respondera enigmaticamente a essas sugestões (de que ele tivera conhecimento, mas que o público em geral desconhecia), manifestando firme oposição à formação de partidos políticos, incluindo o da democracia-cristã, embora houvesse, segundo o ditador, quem julgasse "que por esse caminho mais assegurada fica a defesa da Igreja”.21 Graças à denúncia de Gustavo de Almeida, quebra de lealdade de um padre para com um militante católico que conhecia bem, embora numa carta a Salazar lhe chamasse "um triste qualquer", o ditador pôde carrear novos argumentos contra o bispo do Porto e até para fazer chegar ao Vaticano uma ameaça à continuidade da Acção Católica Portuguesa em Portugal.22 Meses depois, em Fevereiro 1959, José Vieira da Luz subscreveria um importante documento colectivo de 43 católicos, intitulado “As relações entre a Igreja e o Estado e a liberdade dos católicos”. Esse documento reagia a um discurso de Salazar proferido a 6 de Dezembro de 1958, na posse da comissão executiva da União Nacional, em que o ditador apontava "desvios" em organismos da Igreja, discurso que fora julgado uma intromissão abusiva do poder em assuntos eclesiais. O documento sustentava também a legitimidade da carta do bispo do Porto ao chefe do governo, embora não apoiasse integralmente o seu conteúdo. Em 1 de Março de 1959, Vieira da Luz iria ainda assinar uma carta colectiva de 45 católicos, endereçada a Salazar, protestando contra os serviços de repressão do regime.23 Após estas duas intervenções públicas, perdemos o rasto de Vieira da Luz e não conseguimos sequer apurar a data da sua morte. Sobre a actividade de informador do Padre Gustavo de Almeida junto de Salazar existe um terceiro testemunho do final dos anos 50, arquivado no mesmo dossier relativo ao caso do bispo do Porto. Trata-se de um folheto anti-salazarista intitulado A 20

José Barreto, Religião e sociedade: Dois ensaios, Lisboa: ICS, 2003, pp. 165-167. A Obra do Regime na Campanha Eleitoral (discurso proferido por Salazar em 31 de Maio de 1958 no Palácio de S. Bento), Lisboa: SNI, 1958, p. 12. 22 Carta de Salazar, na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros interino, ao núncio apostólico Fernando Cento (que se encontrava em Roma), datada de 18 de Setembro de 1958 (Arquivo Histórico do Ministério do Negócios Estrangeiros, PEA/CONF/Maço 14). Ver a este propósito José Barreto, “O Caso do Bispo do Porto em Arquivos do Estado”, in VVAA, Profecia e Liberdade em D. António Ferreira Gomes ‒ Actas do Simpósio, s.l.: Ajuda à Igreja que Sofre, 1999, pp. 119-145. 23 Ambos os documentos seriam 10 anos depois publicados em Padre José da Felicidade Alves (ed.), Católicos e Política: De Humberto Delgado a Marcelo Caetano, Lisboa: ed. do autor, 1969, pp. 65-113. 21

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Voz do Cativo, assinado por João Baptista Essénio (um pseudónimo), sem data nem local de impressão, que o Padre Gustavo de Almeida remeteu a Salazar acompanhado de uma carta em que dizia: “Senhor Presidente do Conselho: junto envio mais um pasquim. Verá V. Ex.ª como está diabolicamente bem feito. À parte uma ou outra coisa para despistar, parece estilo e ciência de... padre.”24 Esta carta do Padre Gustavo de Almeida, que contém várias denúncias e alude também ao caso do bispo do Porto, foi escrita por volta de Abril de 1959 e transcreve-se aqui em Apêndice (3). Um dado curioso revelado por esta carta é que o Padre Gustavo de Almeida submeteu a Salazar um escrito seu antes de o publicar, embora não saibamos se tal ocorreu mais vezes. Diga-se, enfim, que o Padre Gustavo de Almeida não era o único membro do clero a fazer denúncias e a fornecer informações confidenciais sobre padres ou militantes católicos directamente ao ditador. Veja-se o caso de Monsenhor Moreira das Neves, que é citado nesta última carta do Padre Gustavo de Almeida, como tendo facultado a Salazar um documento subscrito por católicos críticos do regime. No mesmo dossier sobre o caso do bispo do Porto aparece, também, correspondência de D. Rafael da Assunção, bispo de Limira25, contendo informações sobre elementos do clero e conselhos ao ditador. Aparecem, igualmente, nesse dossier cópias de cartas de vários bispos a D. António Ferreira Gomes, geralmente discordando da sua atitude, excepto nos casos do bispo de Aveiro, D. Domingos da Apresentação Fernandes, e do bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende, que lhe manifestaram concordância com o teor da carta a Salazar. No caso da correspondência entre bispos trata-se, aparentemente, de correio interceptado pela polícia política, que depois o fazia chegar a Salazar.

APÊNDICE Cartas do Padre Gustavo de Almeida a Salazar sobre o caso do bispo do Porto e temas políticos afins (1958-1959)

1. TT, AOS/CO/PC-51-1, fls. 220-223. Carta manuscrita de 15 de Agosto de 1958, com anotação “Respondi” de Salazar em 20 de Agosto. O suporte são 4 cartões timbrados em nome de Padre Gustavo Adolfo Ribeiro de Almeida ǀ Igreja Paroquial de São Nicolau ǀ Lisboa. A ortografia foi actualizada. Os sublinhados a lápis de Salazar vão assinalados em itálico. Senhor Presidente do Conselho:

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TT/AOS/CO/PC-51-2, fl. 284 recto. O franciscano Frei Rafael da Assunção, nome completo: Joaquim Rafael Maria da Assunção Pitinho (1874-1959), fora bispo de Augusta e prelado de Moçambique (1920-1935). O seu afastamento pela Santa Sé ter-se-á devido a conflitos com os missionários italianos da congregação da Consolata que no final dos anos 20 se tinham instalado no Niassa (L. F. Salgado Matos, "Os bispos portugueses: da Concordata ao 25 de Abril – alguns aspectos", Análise Social, n.º 125-126, 1994, pp. 360-361). Em 1935 D. Rafael da Assunção foi nomeado bispo de Cabo Verde. Resignou em 1940 por "falta de saúde", sendo na mesma data nomeado bispo titular de Limira. 25

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Quando estava já para sair para fora do País, chegou-me a carta de V. Ex.ª. Deveria ter logo respondido. Eu sei. Mas não quis, depois, ir complicar a vida de V. Ex.ª, já tão assoberbada de preocupações, nestes últimos dias. Guardei, por isso, a minha resposta para hoje, acabado de chegar. Não merecia que V. Ex.ª se tivesse ocupado de mim, como se ocupou, escrevendo-me por motivo da minha despedida do Diário da Manhã. Eu sei que nem tudo o que mando para aquele jornal terá, ou merecerá, total aprovação, dados os limites políticos do jornal. Mas nem sempre me travo no meu temperamento, sobretudo, como agora, quando as traições e as críticas e os desmandos são tão graves. E quem anda cá por fora vê mais e percebe melhor o que se passa aí no tablado da vida de cada dia. E quando se é beirão… E quando se dedicou a V. Ex.ª uma amizade (deixe-me dizer: amizade, Senhor Presidente) e uma veneração e gratidão tão grandes, não se pode ficar de fora desta luta. Faço-o à minha maneira… mas que tudo me seja tomado à conta daqueles sentimentos. Não, Senhor Presidente, não me retirarei da frente de combate. Retirar-me neste momento seria ainda mais feio. V. Ex.ª encontrou o meu nome entre as quase 600 assinaturas de uma Mensagem − em cuja iniciativa entrei. Eu e os outros queríamos apenas que V. Ex.ª soubesse que não estava sozinho, que esperamos sempre, e que quando mesmo discordamos de V. Ex.ª, não o fazemos de qualquer forma. Não nos supomos nem os melhores nem os mais necessários. Mas entendemos que devíamos dar esta contribuição numa hora que muitos supõem derradeira. É por esta razão que eu, padre, me obriguei a intervir − sem nunca esquecer a minha missão principal. Quando a gente da Igreja abandonou ou se desinteressou, é necessário (penso eu, Senhor Presidente) que alguns, mesmo sob pena de pisarem o risco, se aventurem, e indiquem, na encruzilhada, algum caminho − ou até um caminho. Apesar de tudo, Senhor Presidente, apesar de tudo o que V. Ex.ª tem feito, qual é o caminho? V. Ex.ª viu-o bem nestes últimos tempos, como é tremendamente grave ver claro. Hoje ainda está V. Ex.ª… Amanhã? V. Ex.ª já nos deve compreender na angústia que se nos aperta cá dentro. Oxalá que estes tempos que aí vêm, com V. Ex.ª outra vez ao leme, sejam tempos novos. Será possível?... Isto peço a Deus e nisto quereria, ou quero, ajudar a V. Ex.ª, como sei e posso. Que Deus inspire V. Ex.ª, Senhor Presidente, nesta hora talvez a mais grave para a Situação. V. Ex.ª bem nos pode acompanhar nesta preocupação. Acompanhe, Senhor Presidente. E obrigue-nos a confiar, apesar de tudo, de todos − e contra tudo e todos. Perdoe, Senhor Doutor Salazar, este deixar o coração ir por aqui fora. E foi só dizer um tudo nada do que enche o espírito e o coração do mais leal e mais dedicado servidor P.e Gustavo d’Almeida 15/VIII/58 P.S. − V. Ex.ª já deve ter sabido que a carta do Bispo do Porto se tornou pública. Anda para aí. Não me conformo com esta deselegância. Não foi bonito, mesmo independentemente do teor da carta.

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2. TT/AOS/CO/PC-51-1, fl. 224. Carta manuscrita sem data, com anotação “Respondi” do punho de Salazar em 20 de Agosto de 1958. É plausivelmente um pouco posterior à anterior carta, datada de 15 de Agosto de 1958, também respondida por Salazar a 20 de Agosto. O suporte é idêntico ao da carta anterior. A missiva remete juntamente cópias de duas cartas, adiante transcritas em 2.1. e 2.2. Ortografia actualizada. Senhor Presidente do Conselho: Duvidei durante dois ou três dias sobre se deveria entregar às mãos de V. Ex.ª as cópias que aqui junto. Acabo de me resolver pela afirmativa  porque assim  pareceume ver claro  V. Ex.ª terá mais elementos à mão. Evidentemente que a cópia da minha carta é para V. Ex.ª  só para V. Ex.ª; a outra, é cópia também de um triste documento assinado por um triste qualquer. A página que falta, desapareceu. Ainda bem pois assim V. Ex.ª escusa de saber de quem se trata  embora talvez, por outros lados, não seja difícil encontrá-lo. No entanto, gostaria que ficasse entre mim e V. Ex.ª. Com os meus mais sinceros respeitosos [sic], cumprimenta V. Ex.ª o v.r at.º e ob.º P. Gustavo d’Almeida

2.1. TT/AOS/CO/PC-51-1, fls. 227-228. Cópia de uma carta dactilografada do Padre Gustavo de Almeida ao bispo do Porto, de 13 de Agosto de 1958, remetida a Salazar pelo autor. No topo da carta, Salazar escreveu: Secreto. Um sublinhado a lápis de Salazar vai aqui assinalado em itálico. Ortografia actualizada. Cópia Exmo. e Revmo. Senhor D. Antonio, do meu maior respeito. Perdoará V. Excia. Revm.ª esta carta, e que me atreva a tratar o assunto que ela traz. Mas eu ficaria em falta perante V. Excia. Revm.ª e perante muita mais gente e perante mim próprio, se a não escrevesse. Nem precisarei de acrescentar que o faço em respeitosa admiração por V. Excia. Revm.ª e pronto a aceitar que me engano no seu juízo, embora sincero. Estou-me referindo à carta que V. Excia. Revm.ª endereçou ao Senhor Presidente do Conselho ‒ e da qual correm por Lisboa – e naturalmente por outros lados – várias cópias, umas enviadas directamente por V. Excia. Revm.ª outras copiadas delas.26 Senhor D. Antonio: eu penso que essa carta tinha direito a não ser divulgada – e muito menos posta ao alcance de mãos menos sensatas e até suspeitas. Ontem havia o propósito de se convocar uma reunião da extrema-esquerda, para a ler e... comentar!

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Esta frase destacada à margem por Salazar com um traço vertical.

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Neste momento, a carta de V. Excia. Revm.ª é uma bandeira que se está a erguer mas não para a paz.27 Não está a aproveitar à Santa Igreja. Antes pelo contrário, infelizmente, porque, inclusivamente, já é aproveitado para contrapor bispos contra bispos. Presta-se, Senhor D. Antonio, ela presta-se para este infortunado jogo a favor apenas da desordem dos espíritos e dos corações já tão atordoados por outros motivos. E já há partidos à volta da carta. Uns dizem – e parecem-me os mais justos – que a carta transcende os limites da acção pastoral, por se meter pelos sectores da ciência e das soluções temporais que não são do domínio directo da Hierarquia. Isso será trabalho dos leigos. A mim parece-me que estes têm razão. Outros aproveitam-se para vingarem seus partidarismos oposicionistas. V. Excia. Revm.ª seria neste caso (e desde há muito é conhecida já esta posição...) um homem deles.28 Mas não o dizem por amor da Igreja ou para amanhã A servirem melhor. É mais uma pedra para atirarem... Outros ainda, entre os mais novos, desorientam-se. Quereriam, sim, ver os católicos mais activos e menos sujeita a Igreja à Situação29 – mas não compreendem que também dentro da Igreja – a começar pelos seus bispos – haja estas divisões, porque, no fundo, eles entendem que V. Excia. Revm.ª está, dentro da Igreja, em oposição... Em suma, e por tudo quanto ontem e hoje pude recolher em diversos sectores, a carta de V. Excia. Revm.ª é neste momento, (em que seria necessário uma certa calma em vista de dias melhores), uma acha atirada para a fogueira das paixões. E todos (excepto os esturrados), não perdoam que ela tivesse sido assim divulgada. Como poderá V. Excia. Revm.ª vir à fala com o Senhor Presidente do Conselho, como parece deduzir-se logo das primeiras linhas, se é já do domínio público o assunto?30 Só Deus sabe as repercussões que este documento irá ter na vida da Igreja em Portugal. Penso eu que, à parte certas intromissões em questões que tiraram à carta de V. Excia. Revm.ª o tom alto de um documento totalmente pastoral – penso eu que poderia ter certa utilidade junto de Salazar, se ela ficara particular. Assim... Assim V. Excia. Revm.ª arrisca-se a ser discutido não como Pastor mas como alguém que se meteu em domínios em que os outros podem ser mais competentes. Não se diz já que a carta teve ao menos estes resultados: fazer ficar no Governo o Ministro das Corporações 31 e impedir a entrada do Dr. Guilherme Mello e Castro32 ‒ pessoas visadas

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Este parágrafo destacado à margem por Salazar com um traço vertical. Este período destacado à margem por Salazar com um traço vertical. 29 O trecho sublinhado por Salazar tem à margem um ponto de interrogação da mão do mesmo. 30 Este parágrafo destacado à margem por Salazar com um traço vertical. 31 Henrique Veiga de Macedo, ministro das Corporações entre 1955 e 1961. 32 José Guilherme Rato de Mello e Castro (1914-1972), subsecretário de Estado da Assistência Social (1954-1957). Advogado e militante católico, foi também governador civil de Setúbal (1944-1947), deputado à Assembleia Nacional (1949-1953 e 1958-1972), provedor da Misericórdia de Lisboa (19571963) e, a partir de 1965, juiz do Tribunal de Contas. Sob o marcelismo, foi presidente da comissão 28

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diferentemente, nas cartas33 de V. Excia. Revm.ª? Sobretudo, mormente pelo momento em que é divulgada, tornou-se um elemento de confusão. E a Igreja não pode, não deve confundir os espíritos. Senhor D. Antonio – estarei acaso a ser menos respeitoso? Não me parece que sim – e mais que ninguém, V. Excia. Revm.ª me aceitará esta lealdade, V. Excia. Revm.ª que usa dela assim desta forma, e se põe à nossa mão no campo dos factos para a discussão. E a tentação maior que me assalta é precisamente esta: discutir já tanta matéria da carta em que às vezes a expressão das ideias agrava a sua compreensão – e até, me parece, se contradiz mais do que uma vez. E, para ser eu ‒ eu que tenho em público tomado as atitudes mais abertamente discordantes, sempre que for caso de discordar (e V. Excia. Revm.ª não ignorará o efeito de alguns dos meus artigos no Diário da Manhã por exemplo), eu para ser leal devia já discordar também em público, de V. Excia. Revm.ª. É que a carta é pública ou ao menos muito notória. Perdoe mais uma vez V. Excia. Revm.ª esta maneira franca, beiroa, de pensar alto. Tenho vivido, talvez mais do que V. Excia. Revm.ª, os últimos acontecimentos. Vivi-os na carne e na alma. Sei como, por exemplo, os tem acompanhado e vivido Sua Eminência (contra quem esta gente desorientada, e agora mais entusiasmada pela carta de V. Excia. Revm.ª, supõe estar V. Excia. Revm.ª ...). Mas, Senhor D. António, como são bem diferentes os acontecimentos vistos de dentro para fora ou de fora para dentro!... Se V. Excia. Revm.ª estivesse em Lisboa e acompanhasse os homens e os acontecimentos talvez a não tivesse escrito; ‒ com certeza que a teria redigido de outra forma e nunca a teria divulgado pela maneira que a entregou a uma sorte que não era a que merecia a dignidade de um diálogo com o Senhor Presidente do Conselho.34 Não quero dilatar mais estas considerações por ventura inoportunas. Espero da parte de V. Excia. Revm.ª toda a compreensão para a abertura de alma com que a escrevi e para a lealdade com que me permito endereçá-la a V. Excia. Revm.ª Com toda a veneração beijo o sagrado anel com os mais respeitosos cumprimentos, o Pe. Gustavo de Almeida Lisboa, 13 de Agosto 1958 executiva da União Nacional, convidando para deputados os futuros componentes da “ala liberal” e promovendo a transformação do partido único em Acção Nacional Popular (1970). 33 Estava inicialmente “na carta”, tendo os plurais sido acrescentados á mão pelo padre Gustavo de Almeida. Trata-se de uma referência a uma segunda carta, do bispo para o governador civil do Porto, datada de 6 de Julho de 1958, de que D. António Ferreira Gomes tinha enviado cópia, juntamente com a da sua carta a Salazar, aos bispos e aos membros da Acção Católica a quem fez a primeira distribuição. Como se depreende, o padre Gustavo de Almeida também teve acesso a uma cópia dessa carta ao governador civil do Porto, em que o bispo protestava contra uma limitação que o Estado pretendia impor ao direito da diocese de promover livremente obras de assistência e formação social, direito esse que havia sido anteriormente reconhecido pelo subsecretário de Estado José Guilherme de Mello e Castro. 34 Este período destacado á margem por Salazar com um traço vertical.

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2.2. TT/AOS/CO/PC-51-1, fls. 229-230. Cópia de uma carta dactilografada de José Vieira da Luz ao bispo do Porto, datada de 27 de Julho de 1958, a que falta a última página. Remetido nesse estado ao ditador pelo Padre Gustavo de Almeida, o texto da carta é completado por um manuscrito de Salazar (fls. 225-226), transcrevendo de fonte desconhecida a parte em falta, que continha o nome do signatário, o seu endereço e a data. Ortografia actualizada. Os sublinhados por Salazar vão assinalados em itálico. Exmo. e Revmo. Senhor Bispo do Porto Não tenho a honra de pessoalmente conhecer V. Excia. Revma., sou, porém, membro da mesma conferência vicentina a que pertence o nosso comum amigo, Dr. Manuel Duque Vieira.35 Temos falado de V. Excia. Revma., cujos discursos sobre os candentes problemas sociais especialmente admiro e louvo, pela forma elevada e proficiente como os trata V. Excia. Eis porque com o maior aprazimento tomo a liberdade de enviar a V. Excia. Revma. a cópia de uma carta e sua apostila, por mim endereçadas a S. Excia. Revma o Snr. D. José da Costa Nunes 36, autor das “Cartas de Roma” publicadas em Novidades.37 Numa delas o Snr. D. José positivamente revestia o Snr. Dr. Salazar de atributos divinos. Dizia: “Governa-nos Alguém que ... não oprime nem esmaga, não comete arbitrariedades nem injustiças”. Isto só Deus, suponho eu. E mais adiante: “Todos lhe obedecem voluntariamente...” Isto nem em relação a Deus. Há aqui uma certa idolatria, pecado contra o primeiro mandamento da Lei de Deus. Grande infelicidade a nossa, que se tenha, em boa hora e em circunstâncias excepcionalíssimas, apoderado do governo do nosso país um católico e que contra a espectativa, persistentemente em trinta anos oriente o seu governo, em certos aspectos, num sentido tão anticristão, que é revoltante, inacreditável. Essa absurda política, no económico, pode resumir-se: tirar aos pobres para dar aos riquíssimos. Os factos comprovativos são tantos... E é um governante, bem conhecido como católico, que impõe dogmaticamente esta política como cristã e a melhor, em trinta anos de governação absoluta, forçando ao silêncio as vozes discordantes e esmagando as justas reclamações das vítimas quer com a prisão e os argumentos de uma polícia política terrorista, os das espingardas e metralhadoras contra o povo inerme e pacífico, quer recorrendo 35

Manuel Duque Vieira (1903-1972), professor de filosofia no Liceu de Castelo Branco. Nesta cidade colaborou no semanário católico Reconquista, de que foi co-fundador em 1945. A partir de 1955 leccionou no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa. Colaborou em diversas publicações católicas, como o jornal Novidades (Lisboa), a revista do CADC Estudos (Coimbra) e o semanário Flama (Lisboa). Foi membro da Junta Nacional de Educação e pertenceu, em 1947, à comissão de reforma do ensino secundário. Nos anos 50 e 60 o seu pensamento evoluiu numa linha de catolicismo social identificada com o Concílio do Vaticano II, por alguns tida como “progressista”. 36 D. José da Costa Nunes (1880-1976) foi nomeado bispo de Macau (1920) e arcebispo de Goa e Damão e patriarca das Índias (1940). Resignou da arquidiocese de Goa e Damão em 1953, sendo pouco depois nomeado vice-camarlengo da Cúria Romana. Feito cardeal por João XXIII em Março de 1962. 37 Reunidas em José da Costa Nunes, Cartas de Roma, Macau: Fundação Macau, 1999.

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diariamente à mentira, à falsidade e à hipocrisia, enfim à intimidação por todos os meios. Ainda no seu último discurso o Snr. Dr. Salazar ousou afirmar que não foi a oposição que foi roubada nas eleições, mas sim o governo é que “grandemente foi vítima por muita parte” de “baixas manigâncias”, por parte da oposição (discurso de 30/6/195838). Não é necessário descrever o que o governo ou os seus apaniguados fizeram nessas eleições e como elas foram preparadas, para se apreciar da falta de escrúpulos de quem faz tais afirmações e muitas outras. Ainda afirma, por exemplo, que “ninguém pode dizer com verdade” que foram escassas as liberdades concedidas na última campanha”. Todo o País sabe como foram tratados o General Humberto Delgado e os seus mais directos colaboradores, alguns dos quais ainda estão presos. Envio junto cópia de uma simples entrevista minha que não foi publicada por me informarem que só o seria com alguns cortes e que mesmo assim eu sofreria as consequências, com as quais só poderia arrostar se possuísse uns milhares de contos. Entendi pela ameaça que seria preso ou pelo menos perderia o meu lugar, e como não disponho de um escudo de reserva, desisti de publicá-la, não sem o meu veemente protesto.39 Indo ao encontro do pensamento de V. Excia. Revma., desejamos preparar o ambiente para a oportuna organização de um partido que se esforçasse por realizar política e socialmente a doutrina social cristã, mas a autêntica e não uma lamentável caricatura altamente comprometedora para a Igreja e a fé de muitos. Reputo esta iniciativa da máxima importância para o futuro da Nação. O nosso ditador, porém, não está disposto a consentir em tal. Constou-me recentemente que o Snr. Núncio Apostólico deixou de ser para ele persona grata justamente porque se referiu num discurso de carácter particular à conveniência de um tal partido. Não seria indicado, porém, organizar desde já um centro católico de estudos da doutrina social da Igreja e suas aplicações? Seria uma instituição independente da Acção Católica, é claro, mas de princípio as suas sessões poderiam ter lugar numa sala cedida pela Acção Católica, à falta de outra.40 Dos seus filiados deveriam fazer parte também sacerdotes que interviriam nos estudos. Seria cobrada uma pequena cota e deveria publicar um boletim com a súmula das teses versadas e sua conclusões.. Os assuntos seriam previamente indicados e deles se encarregaria um relator, havendo livre controvérsia. Em todas as povoações se poderiam constituir, nos termos dos estatutos, centros delegados do centro católico de estudos. Todas as teses estudadas no centro católico ou em qualquer das suas delegações seriam submetidas à aprovação de uma comissão nacional, após esta aprovação seriam publicadas no boletim, para conhecimento de todos.

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Discurso de Salazar perante as comissões distritais da União Nacional, em 30 de Junho de 1958. Este parágrafo foi destacado na margem por Salazar com um traço e um ponto de interrogação. Este parágrafo foi destacado na margem por Salazar, até aqui, com um traço.

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Deveria desde já ser constituída uma comissão para elaborar os estatutos respectivos, que seriam submetidos à aprovação de V. Excia. Revma.41 Tentar-se-ia dar existência legal a esta organização, solicitando do governo a aprovação dos seus estatutos. A sua recusa não era motivo42 para desistirmos, visto que a Acção Católica também não tem existência legal, bem como o Centro Nacional de Cultura e outras instituições que, no entanto, exercem a sua actividade. Apenas sugiro algumas ideias que hão-de ser explanadas e discutidas pela comissão organizadora, como é evidente. O nosso objectivo único é que os católicos saiam de uma inacção imprópria das suas graves responsabilidades sociais, neste momento crucial para o nosso futuro. Trinta anos de uma caricatura de cristianismo social têm deformado tanto a mentalidade católica! Aguardando a honra da resposta de V. Exa. Revma., sou, com a mais distinta consideração e estima, cor unam et anima una Lisboa, 27 de Julho de 1958 José Vieira da Luz Av. João Crisóstomo, 30-3.º D.

(Fiz a cópia do resto da carta por uma outra cópia que me chegou às mãos em 21 de Agosto).43

3. TT/AOS/CO/PC/51-2, fls. 284-292. Carta manuscrita, sem data, em três cartões timbrados do Padre Gustavo de Almeida. Datável condicionalmente de Abril de 1959, dadas a referência que faz à Semana da Acção Católica, realizada em Fátima. A carta acompanha o envio de um folheto impresso, intitulado A Voz do Cativo, com autoria de João Baptista Essénio (um pseudónimo). O texto do folheto enviado conjuntamente tem numerosos sublinhados a lápis de Salazar. Ortografia actualizada. [Lisboa, Abril de 1959?] Senhor Presidente do Conselho: Junto envio mais um pasquim. Verá V. Ex.ª como está diabolicamente bem feito. À parte uma ou outra coisa para despistar, parece estilo e ciência de... padre. A assinatura é significativa. Refere-se aos manuscritos do Mar Morto, em que alguns

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Na margem, à altura deste parágrafo, Salazar colocou a lápis um ponto de interrogação. Termina aqui a segunda página da carta dactilografada, a que falta a terceira e última, que Salazar transcreveu à mão (fls. 225-226) de outra cópia que obteve da mesma carta. 43 Anotação de Salazar após a transcrição da parte final da carta. 42

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pretendem ver, na seita dos essénios, a mesma doutrina de João Baptista (João Baptista Essénio)... Junto o original do cartão de S. Eminência44 para V. Ex.ª ver como ele sofre e a alusão é manifesta naquela frase e reticência (os que andam para aí a assinar papéis45) – como aquele que V. Ex.ª recebeu da parte de Mons. Moreira das Neves46 – que é também visado no tal artigo que eu entreguei à deliberação de V. Ex.ª, quanto à sua publicação.47 Não cabe num cartão dizer como é profunda, embora não tão larga como parece, a desorientação nesse campo. A propósito: V. Ex.ª deve ter lido um célebre artigo de Témoignage Chrétien48 de há pouco tempo – e viu também num dos últimos números da Documentation, digo, das Informations Catholiques Internationales49, as referências ao que sem passado em Portugal – à miserável deformação que os factos aí recebem. Pois, Sr. Presidente, o informador é, infelizmente, padre desta cidade. E daí eu não compreender como foi bem recebida no Ministério do Ultramar qualquer ideia de vinda de uns tais senhores (quem?) que se propõem trabalhar, não sei bem em que, mas no Sul de Angola, se não erro, ideia apresentada pelo senhor Dubois Dumée50, chefe de redacção das I.C.I. como já o foi do Témoignage Chrétien. Conheço-o muito bem – e embora seja um dos mais calmos progressistas franceses, vai concordando com tudo o que a revista dele, as tais I.C.I, vão dizendo periodicamente contra a Situação e a pessoa de V. Ex.ª, como ainda recentemente, com o que foi informando a respeito da carta do Bispo do Porto. Que intenção haverá da parte destes senhores? Não me atrevi a falar no caso ao meu particular amigo Carlos Abecassis51, mas é ele, ou com ele, que a coisa se passa. Não haverá aqui uma certa ingenuidade?...

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O cardeal patriarca D. Manuel Gonçalves Cerejeira. Plausível alusão a dois documentos colectivos de católicos, datados de Fevereiro e 1 de Março de 1959, intitulado o primeiro “As relações entra a Igreja e o Estado e a liberdade dos católicos” (com 43 assinaturas) e, o segundo, “Carta a Salazar sobre os serviços de repressão do regime” (45 assinaturas), que teriam, pois, feito “sofrer” o cardeal patriarca Cerejeira. Ambos os documentos foram publicados pelo Padre José da Felicidade Alves na colectânea Católicos e Política: De Humberto Delgado a Marcello Caetano, Lisboa: 1969. 46 Francisco Moreira das Neves (1906-1992), padre, jornalista e escritor, foi durante mais de 30 anos chefe de redacção do diário católico Novidades. Foi um próximo colaborador do cardeal Cerejeira, sobre quem escreveu uma biografia. Em 1954, Pio XII nomeou-o seu prelado doméstico com o título de Monsenhor. 47 Não conseguimos apurar de que artigo de Gustavo de Almeida se tratava, a que jornal se destinava e se foi ou não publicado. 48 Témoignage chrétien é um semanário cristão francês cuja fundação remonta a 1941, durante a ocupação alemã, sob a forma de cadernos clandestinos do movimento da resistência (Cahiers du témoignage chrétien). Depois da guerra, o semanário Témoignage chrétien, conotado à esquerda, tomou partido pela descolonização no mundo e denunciou a tortura praticada pelo exército francês na Argélia. Dadas as suas posições críticas sobre o regime de Salazar, a venda e a circulação por assinatura do semanário em Portugal foram frequentemente proibidas. 49 Informations catholiques internationales (1955-1983), conhecida pela sigla ICI, foi uma revista católica francesa mensal de actualidades religiosas do mundo cristão, dirigida pelo cristão-democrata Georges Hourdin. A revista era crítica do regime de Salazar e, em especial, da sua actuação nas colónias. La Documentation catholique é uma revista católica francesa bimensal que se publica desde 1919, dedicada à divulgação dos textos da Igreja relativos à França e ao mundo católico. 50 Jean-Pierre Dubois-Dumée (1918-2001), jornalista e escritor católico francês. 51 Carlos Krus Abecassis (1918-2012), engenheiro, foi subsecretário de Estado do Ultramar (19551958), subsecretário de Estado do Fomento Ultramarino (1958-1960) e procurador à Câmara Corporativa (1961-1974). Era o irmão mais velho do Eng.º Nuno Krus Abecassis. 45

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‒ Esse papel recebido de Mons. M[oreira das] N[eves] foi redigido em Fátima, durante a Semana da Acção Católica52 – por um padre de Lisboa, qua a não assina!!!...53 Perdoe, Sr. Presidente, ao v.r at.º e ob.º Padre Gustavo de Almeida

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A Semana Nacional de Estudos da Acção Católica Portuguesa, realizada em Fátima de 31 de Março a 5 de Abril de 1959, reuniu pela primeira vez dirigentes de todas as organizações e sectores da ACP, integrando-se nas comemorações dos 25 anos (“bodas de prata”) da organização. 53 Entre os signatários dos “papéis” de Fevereiro e 1 de Março de 1959, figuram seis padres: Abel Varzim, Adriano da Silva Pereira Botelho, António Jorge Martins, César Teixeira da Fonte, João Perestrelo de Vasconcelos e José da Costa Pio. A indicação fornecida a Salazar de que o redactor do texto foi um padre que participou na Semana da Acção Católica, mas que não assinou o documento, pode ter contribuído para o identificar.

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