O PALÁCIO DA PENA E A COLECÇÃO DE VITRAIS DE D. FERNANDO II

September 11, 2017 | Autor: Nuno Gaspar | Categoria: Art History, Romanticism, Decorative Arts, Stained Glass, Iconography and Iconology
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O PALÁCIO DA PENA E A COLECÇÃO DE VITRAIS DE D. FERNANDO II

Nuno Miguel Gaspar
(Mestre em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Assistente ao Visitante, na Parque de Sintra – Monte da Lua S.A.)


Resumo
A vocação colecionista de D. Fernando estende-se a todo o tipo de artefactos e é um claro reflexo da mentalidade da sua época.
O presente estudo pretendeu trazer alguma luz sobre a coleção de vitrais de D. Fernando II, tendo sido dividido em quatro partes distintas.
Numa primeira parte a análise recai sobre a faceta de colecionador de D. Fernando II, na segunda tratamos resumidamente a questão dos vitrais antigos em Portugal, na terceira fazemos uma breve incursão no projecto de renovação e intervenção de D. Fernando na Pena e, na quarta, lançamos um olhar mais atentos sobre a sua colecção de vitrais.

Abstract
The collector's vocation of King Ferdinand extends to all kinds of artifacts and is a clear reflection of the dominant mentality of his time.
The present study aimed to shed some light on the stained glass collection of King Ferdinand II, and had been divided into four distinct parts.
In the first part the analysis lies on the collector inclination of King Ferdinand II, in the second we try to briefly approach the issue of antique stained glass windows in Portugal, the third part provides a brief foray into the renovation project and intervention of King Ferdinand in Pena and in fourth we launched a more careful look at its stained glass collection.



A vocação coleccionista de D. Fernando estende-se a todo o tipo de artefactos e é bem o reflexo da mentalidade da sua época. Ao longo de toda a sua vida, o monarca reuniu um imenso espólio de objectos artísticos verdadeiramente notável seguindo, aliás, uma tradição familiar que encontra paralelo com aqueles reunidos por seus primos Ernesto II (Duque-Reinante de Saxe-Coburgo-Gotha), Alberto (Príncipe-Consorte da Grã-Bretanha) e, também, por Alfredo (Duque de Edimburgo e Príncipe-Herdeiro de Saxe-Coburgo-Gotha), filho deste último.
O presente estudo incide, especificamente, sobre a coleção de vitrais de D. Fernando II e procura trazer ao conhecimento de todos a existência de um espólio que salvo espúrias excepções, ainda não merecera a atenção que lhe é devida tendo, por isso, caído no esquecimento, apesar da sua raridade e valor patrimonial. Pretende-se destacar, em primeira instância, a enorme importância que este acervo vitralístico constitui no âmbito do património artístico português mas, de igual modo, chamar a atenção para o valiosíssimo legado de D. Fernando II; não somente nas obras que promoveu na Serra de Sintra mas, também, através da sua vocação coleccionista – isto, para não mencionar a particular preocupação que dedicou à preservação de inúmeros monumentos nacionais, nem do mecenato que exerceu, aos mais diversos níveis. Para o efeito dividimos este texto em quatro partes, seguidas de uma breve conclusão. Na primeira estudamos a faceta de colecionador de D. Fernando II, na segunda abordamos sumariamente a questão dos vitrais antigos em Portugal, na terceira fazemos uma breve incursão no projecto de renovação e intervenção de D. Fernando na Pena e, na quarta, debruçamo-nos, então, sobre a sua colecção de vitrais. Pretende-se, assim, valorizar este património que durante décadas esteve, por motivos insondáveis, arredado do lugar que legitimamente lhe pertence, na corrente trans-memorial dos objectos artísticos e da História da Arte.

Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha, coleccionador
Não pretendemos alongar-nos, quanto às notas biográficas relativas a D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha (1816-1885) mas impõe-se uma brevíssima apresentação desta figura. Aos 19 anos de idade a sua família recebeu, da parte da corte portuguesa, uma proposta para o seu casamento com a rainha D. Maria II (1819-1853) que, havia pouco tempo, enviuvara, e a causa da sucessão impunha que se encontrasse rapidamente um segundo consorte. Segundo as palavras da Drª Marion Ehrhardt:

"Aconselhava-se, de novo a opção por um consorte estrangeiro, com uma certa independência de vista, uma vez que dentro de Portugal iria reactivar as velhas animosidades entre facções políticas e fazer do poder real o instrumento duma família ou de um partido. Além disso era desejável um príncipe que, pelas suas relações familiares com as grandes monarquias europeias pudesse garantir um contuticionalismo moderado em Portugal. D. Fernando correspondia perfeitamente a estas condições, visto que o seu tio era Leopoldo I, rei dos Belgas, e os seus primos direitos eram a rainha Vitória de Inglaterra e o seu futuro marido, o príncipe Alberto."

O jovem príncipe não havia recebido uma educação que o preparasse para as exigências da vida de um soberano, de homem de Estado ou de chefe militar mas, antes, "para uma vida particular especialmente dedicada às sua inclinações artísticas". Era um homem cultivado, versado em línguas e literatura. Com o tempo viria a revelar-se um excelente desenhador, foi exímio executante de gravura, modelou cerâmica, pintou aquarelas e porcelana. Foi, igualmente, "Protector" – título esse com consubstanciação oficial – da Academia das Belas-Artes de Lisboa (Academia Real a partir de 1862). Instituição que ocupou o espaço do Convento de S. Francisco e que, para além de ter acolhido o ensino das Belas-Artes, recebeu ainda os bens que o Estado incorporou por via da lei de extinção das ordens religiosas (1833), nomeadamente aqueles provenientes dos conventos da zona sul do país.
D. Fernando teve, também, um papel fulcral na protecção do património monumental português especialmente após a efectiva extinção das ordens religiosas e da dissolução dos mosteiros e conventos, em 1834. Dos diversos exemplos de recuperação de edifícios para os quais o rei contribuiu com os seus esforços poderíamos referir os casos da Torre de Belém, do mosteiro de Santa Maria de Belém (vulgarmente conhecido como Mosteiro dos Jerónimos) e do de São Vicente de Fora, em Lisboa. Neste último, decidiu o rei que se convertesse o refeitório no magnífico Panteão da Casa de Bragança. Com o encerramento dos conventos menores, estes dois mosteiros tornaram-se armazéns dos seus tesouros de prata, cuja propriedade foi transferida para o Estado Português. Sob os seus auspícios muitos destes tesouros foram adquiridos pela casa real e, alguns deles, para a sua colecção particular.
Além dos exemplos mencionados, também o mosteiro de Santa Maria da Vitória (ou, Mosteiro da Batalha) a Sé Velha de Coimbra, o Castelo de Guimarães, o Convento de Lorvão, o mosteiro do Paço de Sousa, ou o mosteiro de Santa Maria de Almacave, em Lamego e, seguramente, outros mais, beneficiaram da atenção de D. Fernando, em ordem à sua preservação.
Acresce a tudo isto o apoio mecenático que o rei dispensou a muitos jovens que despontavam para uma carreira artística e que, subsidiados por este, receberem formação no estrangeiro. Entre esses, contam-se os casos de Columbano Bordalo Pinheiro e do seu irmão Manuel, Francisco José Resende, Francisco Pinto da Costa, José de Brito, José Viana da Mota, e vários outros.
Para uma adequada percepção da extensão do acervo de objectos artísticos, recolhido pelo monarca ao longo da sua vida, torna-se necessária a consulta do inventário da colecção de Dom Fernando. Este regista, para além do mobiliário e das obras de pintura (de todas as épocas), inúmeros bronzes, porcelanas (orientais e europeias) e cerâmica, esmaltes de Limoges e raros vidros antigos, exibidos na "Sala dos Vidros", no Palácio das Necessidades. No seu estúdio (Gabinete do Trabalho do Rei), mantinha-se grande parte das pratas do séculos XV e XVI, na sua maioria de produção portuguesa.
O bem conhecido interesse do rei pela "Prata manuelina" terá sido, provavelmente, estimulada pelo acervo de prata real, recolhido pela Rainha Dona Maria II, aquando do seu regresso do Brasil; porquanto, agora, herdeira do trono de Portugal. Tal acervo, incluía salvas de prata dourada ricamente decoradas, em relevo tardo-gótico e Renascentista, taças e jarros. Desde os inícios do séc. XVIII, a prata tinha sido exibida, tradicionalmente, durante os baptismos reais, para ser admirada pelas multidões. Cria-se que tais exibições de prata não só aumentavam a aura da família real mas, igualmente, serviam à exaltação do país; sobretudo, na perspectiva de um crescente sentimento nacionalista, suportado, também, nas excelentes produções dos antigos ourives portugueses. Tudo isto concorrendo, de igual modo, para a legitimação da monarquia constitucional – que, à época, carecia de credibilidade e de apoio inequívoco, por parte de todos os estratos da sociedade e, mormente, de um povo tradicionalista; acostumado às tradições centenárias e adverso a modelos de Estado nos quais não se reconhecia.
Menos de um mês após a morte de D. Fernando II, a revista ilustrada O Occidente publica – pela prosa do seu principal financiador e mestre gravador, Caetano Alberto da Silva – um artigo resultante de uma visita efectuada à ala reservada ao rei, no Palácio das Necessidades. Nesse mesmo artigo é feita, de forma não exaustiva mas suficientemente pormenorizada, uma descrição dos régios aposentos e do seu conteúdo, cuja transcrição parcial aqui deixamos e que demonstra, inequivocamente, a extensão e a diversidade dos objectos artísticos recolhidos por D. Fernando nas suas colecções.

"O aspecto exterior do edifício, vulgar ainda que de uma architectura severa, mal deixa adivinhar as grandes preciosidades artísticas que encerra, sobre tudo na parte respeitante aos aposentos de el-rei D. Fernando, onde ele reuniu verdadeiros primores de arte, colhidos por todo o paiz e alguns adquiridos no extrangeiro.
Uma rápida visita ás salas é o bastante para exceder a nossa espectativa, e dizemos rápida porque demorada não se faria n'um dia e muito menos se descreveria no espaço de que nos é lícito dispor nas columnas do Occidente."

Ao passar pelos diversos espaços ocupados pelo monarca o articulista vai descrevendo o que vê:

"Nas paredes logo se veem quadros apreciáveis e nos ângulos potes da India, etc." [e continua, dizendo que na sala de armas se podem admirar] "a profusão de armas de todas as épocas e de todos os paizes, dispostas umas caprichosamente em elegantes cabides, outras em panóplias penduradas das paredes, juntando-se a isto armaduras completas envergadas em manequins e um cavalleiro da edade media revestido de armadura e montado n'um cavallo, obra em vulto perfeitamente executada e que está quasi a meio da sala em frente a uma janela. A armadura que reveste este cavaleiro foi oferecida a el-rei por Victor Manuel. Guarnecem as paredes d'esta sala alguns quadros notáveis, sendo um gothico de inestimável valor e outros de Tony de Bergue e de Holbein. Todos os mais objectos que ornam a sala incluindo bellas jarras da India, cofres marchetados, vasos cinzelados em metaes, estofos e móveis, completam harmonicamente o todo da sala que só por si é já um museu de alto apreço."

O périplo continua, assim como a elencagem dos objectos; contadores guarnecidos de tartaruga e marfim ("raros ou únicos no seu género"), jarras da Índia, de Sévres, do Japão, quadros de artistas portugueses como, por exemplo, Metrass, José Rodrigues, Lupi, Silva Porto mas, também, dos grandes mestres, como Rubens, esmaltes de Limoges, mobiliário antigo, uma sala inteira decorada com "loiça de Saxe", cristais, porcelanas, faianças, objectos de ouro, prata e outros metais artisticamente trabalhados:

"(…) pequenas esculturas em marfim, iluminuras em livros antigos, miniaturas, camafeus, um cem numero, emfim, de objectos que nos absorvem a atenção demandando de largas horas para serem detidamente avaliados."

A tudo isto acresce, também, as produções artísticas do próprio D. Fernando; álbuns de desenhos, cerâmicas pintadas e as gravuras, que constituíam, porventura, a maior das suas paixões. A certo passo, na descrição da sala de jantar diz o que segue:

"(…) deita três formosas janelas gothicas sobre o jardim. Os vidros d'estas são pintados com figuras, obras dos séculos XIV e XV."

Estes são os vitrais que constituem o conjunto, por nós designado por Núcleo das Reservas, e do qual falaremos mais adiante.
E, se assim era nas Necessidades, outro tanto acontecia na Pena… Em 1893 foi organizado um grande leilão com parte das suas colecções: o catálogo listava 478 lotes – alguns destes compostos por mais que um elemento, podendo chegar às dezenas, como são os casos dos álbuns com os seus próprios desenhos – cujo leilão teve início no dia 3 de Janeiro de 1893, e seguintes, até o fim de Fevereiro, durando, portanto, cerca de dois meses.

Os vitrais antigos em Portugal
A arte do vitral não teve em Portugal uma expressão muito significativa, como sublinharam Pedro Redol e Carlos Barros dois especialistas neste género artístico. Encarada como a expressão por excelência da arte gótica do norte da Europa, esta arte teve pouca relevância entre nós, pelo menos até aos finais do século XV. Talvez por isso, os vitrais do Palácio da Pena nunca receberam a atenção merecida, e ainda menos a coleção de vitrais que D. Fernando II recolheu neste e noutros palácios, praticamente conhecida apenas pelos conservadores desses monumentos. Neste cenário de penúria quanto a exemplares medievais e renascentistas, torna-se ainda mais significativa a colecção recolhida por D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha, sobretudo, se tivermos em conta a extensão cronológica da mesma que inclui exemplares de todas as centúrias, entre os séculos XIV e XIX. O facto de estes vitrais terem sido trazidos para Portugal, no decurso do século XIX, poderá muito bem ter sido a única razão pela qual se viram poupados à voragem destruidora da Segunda Guerra Mundial.
No que concerne às questões que se relacionam com a época e modo de aquisição dos vitrais há ainda muito trabalho de investigação por realizar. Sabe-se, todavia – mediante documento por nós consultado no arquivo da Casa de Bragança, em Vila Viçosa –, que no dia 30 de Junho de 1860, o almoxarife da Real Propriedade da Pena, acusa a recepção de "alguns fragmentos de vidros de cores". Entretanto, (segundo informações veiculadas pelo actual conservador do Palácio Nacional da Pena, Dr. Bruno Martinho) foram encontradas facturas que atestam o facto de, durante uma viagem realizada pela Europa, no ano de 1863, D. Fernando ter procedido à aquisição de vários artefactos artísticos e, entre eles, algumas peças de vidro e dois painéis de vitral, adquiridos em Dresden.

A renovação e intervenção na Pena
A Serra de Sintra teve um efeito encantatório sobre D. Fernando. Não só pela sua localização, pelas suas panorâmicas sublimes, pela sua qualidade cenográfica – tão ao gosto da época – e pelas suas peculiaridades climáticas, mas, igualmente, pelo ambiente misterioso e lendário que, desde tempos remotos, a individualizavam nas imediações de Lisboa. Os monumentos megalíticos, os topónimos bizarros, denunciavam a consagração desta zona a cultos celestes e terrenos. Com efeito, os geógrafos da antiguidade (designadamente, Plínio) tinham-na justamente considerado como Finisterra – a terra do fim, do mundo antigo – ou como Mons Sacer; o Monte Santo de Varrão e Columella ou, ainda, como o Mons da Lunae de Ptolomeu. Acresciam a toda a esta carga mítica as referências ao passado islâmico (com todo um exotismo orientalizante) que tanto atraía o rei-consorte, e um lendário passado medieval, marcado pelas histórias dos castelos de Colir e de Cintra, em tempos narrado por João de Barros.
Em 1838, D.Fernando de Saxe Coburgo-Gotha adquiriu, em hasta pública, o mosteiro quinhentista de Nossa Senhora da Penha (ou, da Pena), encarrapitado no cimo da serra de Sintra, numa posição verdadeiramente mística e emblemática, a funcionar como medianeiro entre o céu e a terra, entre Deus e os homens. O mosteiro fora erguido no local donde outrora, segundo a lenda, D. Manuel I avistara a nau de Nicolau Coelho – que trazia as boas novas acerca do sucesso da viagem do Gama à Índia –, durante uma jornada de caça.
As obras foram dirigidas pelo engenheiro Wilhelm Ludwig von Eschwege, que reunia as todas as qualificações necessárias à consumação do projecto régio. Naturalista, estudioso de mineralogia, geologia e botânica, engenheiro militar de profissão, ingressara no exército português, em 1807, com o posto de capitão de artilharia. Conhecedor dos hábitos portugueses, publicaria, em Hamburgo, em 1833, a obra: Portugal eis Stat-und Sittengemalde [trad. Portugal, Quadro estatístico - Moral Cenas e Bosquejos], que D. Fernando II certamente lera. A sua relação com o rei, presume-se ter sido de grande confiança, ao ponto de lhe ter concedido carta-branca para traçar as reformas da Pena e de o ter preferido a Possidónio da Silva, à época arquitecto da Casa Real, logo que, durante a execução do projecto, surgiram as primeiras desavenças entre ambos. D. Fernando certamente viu em Eschwege, para além de uma experiência vivida, uma proximidade linguística que muito ajudava a resolver os problemas do projecto.
Contudo, se é verdade que Eschewege foi o homem cujo traço deu o primeiro impulso à construção, bastará comparar os desenhos constantes do projecto inicial com a fisionomia que acabou por revestir o edifício para se perceber que tal projecto se alterou profundamente, ao longo do lento e prolongado processo construtivo. A razão para tal facto deve-se, na nossa opinião, à intervenção de D. Fernando, às suas opções estéticas e ao conteúdo simbólico com que desejou impregnar o lugar. Segundo o nosso entendimento a Pena não é uma mera moradia de veraneio, concebida para a vilegiatura da Família Real Portuguesa mas, antes, a expressão do imaginário e da mundividência do seu ideólogo; à medida que o tempo e as experiências vão transformando o ser, assim a sua obra vai reflectindo essa transformação.
Cremos não estar enganados, ao pensarmos que D. Fernando II terá entendido perfeitamente a história manifesta do povo português mas, também, as suas motivações ocultas, mormente naquilo que concerne à empresa dos descobrimentos, cujo momento chave encontra a sua personificação na figura de D. Manuel I; enquanto símbolo do seu apogeu e, simultaneamente, do inicio do seu declínio. Por convicção, olhamos para D. Fernando II como um homem que, sem nunca deixar de ser alemão, se tornou também português; identificando-se com tudo o que havia de mais genuíno nessa condição, inclusive com a saudade, e que é impulsionado por essa força activa, por essa obstinação que, reedificando o antigo templo hieronimita, cria um "livro de pedra", a um tempo manifesto e oculto, no qual escreveu a história desse povo que era agora o seu e do papel que lhe cumpria no destino universal.

A colecção de vitrais
A colecção de vitrais de D. Fernando II é composta por três realidades distintas, em que duas delas partilham características similares, ao nível de uma determinada lógica expositiva; condicionada, evidentemente, pelos espaços em que os vitrais foram integrados, pela circunstância de terem de ser adaptados a novas caixilharias e, como não poderia deixar de ser, pelo arbítrio estético – e, eventualmente, programático – do coleccionador. Dadas as suas localizações actuais decidiu-se designar as diferentes componentes da colecção da seguinte forma:
Núcleo da Capela
Núcleo do Salão Nobre
Núcleo das Reservas
Desses, como já foi dito, só os vitrais do Núcleo da Capela e do Núcleo do Salão Nobre se encontram, actualmente, aplicados em janelas do Palácio Nacional da Pena.
Quanto aos painéis que constituem o designado Núcleo das Reservas, após terem sido alvo de uma profunda intervenção, ao nível do restauro, encontram-se actualmente em exibição permanente na chamada Sala dos Veados.
O Núcleo da Capela é constituído por dois conjuntos; os da Janela do Coro e os da Janela da Nave. Estes últimos estão assinados e datados e, por tal facto, sabemos que foram feitos na oficina Kellner, em Nuremberga, no ano de 1840. Existem alguns autores que atribuem a autoria dos cartões que lhes serviram de modelo ao Visconde de Meneses, ou ao próprio D. Fernando. A este respeito, aquilo que se pode dizer, com absoluta segurança, é o que está escrito no Catálogo dos Quadros Existentes no Palácio das Necessidades Pertencentes à Herança de Sua Magestade El-Rei o Sr. D. Fernando e que hão-de ser vendidos em leilão, que atribui a estes cartões uma autoria desconhecida; pelo que se deve deduzir a falta de uma assinatura, ou de qualquer outra marca autoral.
Uma vez que, após a sua venda, os referidos cartões foram sonegados ao olhar público e, que saibamos, não existem quaisquer reproduções iconográficas dos mesmos que permitam, sequer, a avaliação das suas características técnicas, artísticas, ou estilísticas. Este conjunto de vitrais exibe, no entanto, um trabalho de pintura de notabilíssima qualidade plástica e – a corresponder, de facto, ao que se poderia encontrar nos modelos desenhados – reflecte, por um lado, o virtuosismo posto na execução dos cartões e, por outro, a elevada mestria do vitralista.
Ao nível dos temas representados poder-se-á dizer que este núcleo pretende ser uma síntese referencial das origens do mosteiro e, até certo ponto, formar um quadro alegórico representativo de valores essenciais da história portuguesa. Neles figuram personagens de fácil identificação: a Virgem (mais especificamente, a Senhora da Conceição ou Senhora do Apocalipse), São Jorge, D. Manuel I e Vasco da Gama; estes últimos, assinalados com os seus brasões. Na bandeira da janela foram postos mais alguns elementos heráldicos, designadamente: as armas reais de D. Maria II, o brasão dos Duques da Saxónia (Herdado da dinastia Wettin e adoptado por D. Fernando II), a esfera armilar e a cruz da Ordem de Cristo.

Janela da Nave da Capela do Palácio Nacional da Pena

A intervenção de conservação de que foi alvo este conjunto de vitrais, executada entre Fevereiro e Abril de 2009, criou a necessidade de apeamento dos painéis; permitindo-nos uma franca proximidade com os artefactos e a descoberta de várias marcas oficinais e autorais, as quais, embora despiciendas no âmbito laboratorial da referida intervenção, se revestem da maior importância ao nível historiográfico. Pudemos, assim, ficar a saber que este conjunto de painéis fora executado por um mestre vidreiro, de seu nome Johann Adam, que terá trabalhado para a oficina Kellner, em Nuremberga, pelo menos, para a concretização desta encomenda do rei-consorte de Portugal, nos anos 40 e 41 de mil e oitocentos. Entretanto, graças à generosidade e solicitude da Dra. Marta de Oliveira Sonius ficámos a saber que Johann Adam executou, como mestre vidreiro, vários trabalhos de restauro na Igreja de São Lourenço (St. Lorenzkirche), em Nuremberga (na substituição dos vidros da rosácea, por exemplo), durante o ano de 1831.
Como já ficou dito anteriormente, existe um outro conjunto ou, melhor dizendo, outro painel de vitral na capela do Palácio, na designada Janela do Coro, cujo tema se desenvolve em torno de uma refeição partilhada por Cristo e dois santos que, comummente, tem sido interpretado, em termos iconográficos, como a Ceia de Emaús mas que representa Cristo procedendo à fracção do pão, sentado a uma mesa, e tendo por companheiros São Pedro e São João. A estarmos correctos, não pode a referida representação ter, por tanto, tal interpretação iconográfica.


Janela do Coro

Até à presente data não nos foi dado identificar qualquer assinatura neste painel mas, pelo estado de conservação e pelo requinte da pintura, poder-se-á deduzir que haja sido feito no século XIX, quiçá, também na Alemanha. Não obstante, o estilo da pintura e o tratamento das figuras parecem apontar para autoria diferente daqueles que se vêm no janelão da Nave.
O Núcleo do Salão Nobre é composto por três conjuntos, correspondentes a outras tantas janelas, abertas na fachada noroeste do corpo central do edifício. Estes conjuntos são constituídos por verdadeiras "mantas de retalhos"; com vitrais que – mediante a observação das inscrições, dos estilos e das diferentes técnicas utilizadas na sua feitura – podemos assegurar pertencerem a várias épocas sendo, na maioria dos casos, oriundos da Alemanha existindo no entanto entre esses, outros, que, pelas suas características particulares, deverão ser provenientes da Suíça e dos Países Baixos. Neles se representam temas muito diversos: heráldica (em todas as janelas, e, em alguns casos, também nas bandeiras que as sobrepujam); cenas da vida de Cristo (natividade, baptismo de Cristo e ressurreição); cenas do quotidiano do século XVIII; vitrais com representações de aves e flores; cenas de episódios históricos.
Apesar da evidente diversidade do acervo vitralístico recolhido por D. Fernando II e da notória liberalidade compositiva com que quis organizar as diferentes componentes da sua colecção, este núcleo constitui, por ventura, o exemplo mais sui generis e, diríamos, mais enigmático; sobretudo, quando observado na sua vertente expositiva. Se é verdade que, na janela que designaremos como Janela 1, os temas representados nos diferentes painéis são perfeitamente inteligíveis e integráveis em contextos históricos suficientemente concretos, o mesmo não se poderá dizer das janelas 2 e 3. Nestas, os vidros encontram-se dispostos de forma (aparentemente) caótica, para provocar – propositadamente, ou não – um certo desnorte, um fastio, ao olhar do observador que, por essa via, é conduzido ao desânimo, ao desinteresse de um olhar mais aturado e, por fim, à capitulação incondicional da visão. Talvez aí resida a razão pela qual, durante tantos e tantos anos, o verbo escrito se absteve de considerações e, diante de um espectáculo tão profundamente desconcertante (ou, desconcentrante), sentindo-se impotente para discorrer sobre ele, se haja remetido ao silêncio.
Quanto ao Núcleo das reservas deveremos dizer que é aquele que contém uma maior quantidade de vitrais medievos e, à imagem do que ficou dito sobre o Núcleo do Salão Nobre, a maioria dos elementos deverá ser proveniente da Alemanha, mas outros da Suíça e dos Países Baixos. E, novamente à imagem do que ficou dito sobre o Salão Nobre, nada sabemos da sua chegada ao Paço das Necessidades.
Esses vitrais constavam da decoração da Sala de Jantar do Paço das Necessidades, situada na ala ocupada por D. Fernando II – instalada nos espaços do antigo convento oratoriano –, de onde deverão ter saído, em 1947/ 1948, para o Palácio Nacional da Ajuda, durante as obras de adaptação do edifício à instalação do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Esse é o conjunto que se convencionou designar por "Núcleo das Reservas".
Foi, pois, na sequência deste processo de transferências que os vitrais saídos das Necessidades terão encetado um novo caminho, tendo acabado por ser depositados nas reservas do Palácio Nacional da Pena. Os vitrais saídos da Sala de Jantar de D. Fernando, no Paço das Necessidades, foram levados num primeiro momento para o Palácio da Ajuda – onde terão permanecido, na melhor das hipóteses, cerca de um ano – tendo, posteriormente, sido transferidos para o Palácio Nacional da Pena, a pedido do então Conservador, o Dr. Joaquim do Couto Tavares, com o intuito de serem aplicados em diferentes espaços desse mesmo palácio.
Por análise comparativa de fotos existentes, da referida sala de jantar, não subsiste qualquer sombra de dúvida de que se trata do mesmo conjunto de artefactos.
Desse núcleo faz parte aquele que é, seguramente, o mais antigo elemento de toda a colecção e, igualmente, o mais antigo artefacto da arte do vitral conhecido em Portugal. Segundo a opinião do Dr. Daniel Hess – conceituadíssimo historiador de arte e especialista em vitral do Germanisches Nationalmuseum de Nuremberga – que observou este vitral em Abril de 1995, no Encontro Internacional, decorrido no Mosteiro da Batalha, ele datará do início do século XIV. Com efeito, existe nas colecções do Victoria & Albert Museum, um outro painel de vitral cujas características não permitem dúvidas, quanto ao parentesco de ambos os artefactos e, consequentemente, acerca da proveniência e datação. Ora, na ficha deste vitral, disponibilizada online por aquela instituição museológica pode ler-se o seguinte:
This panel is one of a group that originally formed part of a large window in the chapel of St Afra in the convent of Seligenthal, near Landshut (north of Munich) in Germany. Ten of these panels are now in the Bayerisches Nationalmuseum in Munich."



Painel do Núcleo das Reservas do Palácio Nacional da Pena. A imagem aqui apresentada é aquela que captámos quando o painel se apresentava ainda muito sujo e degradado, antes da intervenção de restauro integral da colecção.


Painel pertencente às colecções, do Victoria & Albert Museum, Baviera, Alemanha, ca. 1309-1314, fabricante desconhecido (museum no: C.83-1919)

No que se refere às fontes iconográficas que serviram de base à produção dos vitrais pretendemos destacar dois casos. Um deles, é um painel que representa a fuga da Sagrada Família para o Egipto. A fonte que o inspirou foi uma gravura aberta por Jean Baptiste Barbé, cerca de 1600, pelo que o painel deverá ter sido realizado no século XVII.

Painel de vitral do Núcleo das Reservas, representando a Fuga para o Egipto, proveniência e fabricante desconhecido, s.d. [A imagem aqui apresentada foi, também ela, captada antes da intervenção de restauro integral da colecção]


A mesma Fuga para o Egipto, segundo a gravura de Jean Baptiste Barbé (1578-1649)

O outro artefacto que gostaríamos de aqui referir é um vidro redondo, representando o Baptismo de Cristo, por São João, no rio Jordão e foi inspirado por uma gravura, da autoria de Martin Schongauer, na segunda metade do século XV, durante a qual o artista viveu. O próprio vidro, pela técnica de pintura que apresenta – amarelo de prata e grisalha – poderá ser datado desse mesmo século mas, com maior probabilidade, do subsequente. Curioso será notar que, inspirado no mesmo modelo, existe também no Victoria & Albert Museum um painel, muito mais elaborado e colorido, datado de 1520-21, produzido na Alemanha (Baixo-Reno) e proveniente, segundo as informações disponibilizadas, da Abadia Cisterciense de Mariawald.

Vidro redondo, constante de uma das janelas do Núcleo do Salão Nobre, do Palácio Nacional da Pena, proveniência e fabricante desconhecido, s.d.


O Baptismo de Cristo no Jordão, gravura, Martin Schongauer (1450-1491), Alemanha, s. d.


O Baptismo de Cristo, Mestre de São Severino (possível fabricante), cerca 1520-1521, Alemanha, Victoria & Albert Museum (museum no: C.311-1928)


Conclusão
Por tudo o que ficou dito, consideramos que a colecção de vitrais reunida por D. Fernando II se reveste de uma enorme importância patrimonial; não só no contexto português – em que, inequivocamente, cosntitui um exemplo sem paralelo – mas, também, numa perspectiva global. Além disto, apraz-nos muito constatar o facto de, hoje em dia – divergentemente daquilo que acontecia, ao tempo em que tomámos conhecimento de toda esta riqueza –, o espólio vitralístico, recolhido no Palácio Nacional da Pena, ter sido alvo de uma intervenção de restauro integral; passível de o perpetuar por várias gerações e, desse modo, habilitá-lo para memória futura. Algo que não é de somenos importância, sobretudo nos tempos em que vivemos.
Outra das evidências que ficam para a posteridade é a de que D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha, à imagem dos seus congéneres, jogou a sua influência político-familiar, também, e sobretudo, no domínio das artes, equiparando-se, em tudo, aos mais ilustres connaisseurs d'art do seu tempo. Cumpre, agora tributar-lhe a devida homenagem; ao homem e à obra. O que tem vindo a ser feito, é importante… pelo menos, no que concerne à vertente material da coisa…
Não obstante, no que toca aos aspectos imateriais, filantrópicos e humanistas que, desde sempre, nortearam as orientações deste nosso monarca germano-luso, naquilo que intuímos serem as suas mais profundas intenções pessoais… há, ainda, todo um caminho a percorrer… Gostaríamos de terminar este nosso artigo com uma frase que se atribui ao monarca:

"É indispensável, para o justo equilíbrio de uma natureza, que, por alguns momentos, em cada dia, a gente se refugie das realidades da vida em uma qualquer forma de arte. As pessoas refractárias a este sentimento materializam, inteiramente, o destino e esterilizam em si quanto há de mais desinteressado e de mais nobre na efusão humana."




EHRHARDT, Marion, D. Fernando II – Um Mecenas Alemâo Regente de Portugal, Livraria Estante Editora, Aveiro, 1987.
Ibidem.
Inventário Orfanológico de D. Fernando II (Tribunal da Boa Hora – Processo de Inventário de D. Fernando II – 6ª vara, 4ª secção, processo n.º 815/169 – 10 caixas).
O Occidente, Nº 254, 11 de Janeiro de 1886.
Ibidem.
Ibidem.
Catalogo dos Quadros Existentes no Real Palacio das Necessidades Pertencentes à Herança de Sua Magestade El-Rei o Sr. D. Fernando e que hão-de ser vendidos em leilão, Lisboa, 1892.
REDOL, Pedro, Os Vitrais dos séculos XV e XVI do Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Estudo sobre o seu significado cultural e artístico, e sobre a sua conservação, Dissertação de Mestrado, Mestrado em Arte, Património e Restauro, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1999.
BARROS, Carlos Vitorino da Silva, O Vitral em Portugal, Séculos XV-XVI, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983.
Naturalis Historia.
De Re Rustica.
Acerca do nome de Sintra e da serra que lhe está sobranceira, os primeiros testemunhos escritos são romanos. Ptolomeu (século II D.C.) atribuiu-lhe o nome de Mons Lunae. Suntria, a forma medieval mais antiga, provém de um radical indo-europeu, "Sun", que pode significar tanto sol como lua. Todavia, duas versões diferentes optam por este último astro. A primeira faz derivar Sintra de Cynthia, símbolo da lua na mitologia celta. E a Serra é o promontório onde eram praticados os velhos cultos deste povo. A segunda sustenta que Cynthia vem do grego, Kinthya (Artemísia - Diana, para os Romanos), a deusa da lua. Daí, a denominação de Monte da Lua. E, também, o nome de Sintra.
Chronica de Emperador Clarimundo, donde os Reys de Portugal descendem / tirada de linguagem ungara por João de Barros ; e agora novamente accrescentada com a vida deste Escritor por [Manuel Sverim de Faria]. - 4ª imp. - Lisboa : Na Officina de Francisco da Sylva, 1742. http://purl.pt/6277; acedido em 23/11/2013.
Nota do redactor.
Catalogo dos Quadros Existentes no Real Palacio das Necessidades Pertencentes à Herança de Sua Magestade El-Rei o Sr. D. Fernando e que hão-de ser vendidos em leilão, Lisboa, 1892.
FRENZEL, G., Historischer Abriß der Glasgemälderestaurierung in Nürnberg bis 1900 , in Arbeitshefte
des Bayrischen Landesamtes für Denkmalpflege, 1985.
Acerca desta e de outras questões iconográficas que no âmbito do presente artigo não encontram cabimento, remetemos o amável leitor, assim querendo, para a consulta da nossa dissertação de mestrado, livremente acessível no Repositório da Universidade de Lisboa em: http://repositorio.ul.pt/handle/10451/4099. Nuno Gaspar, Os vitrais do Palácio da Pena e a colecção de D. Fernando II: contributo para o seu estudo, tese de mestrado em Arte, Património e Teoria do Restauro, FLUL, 2011.
Fonte: http://collections.vam.ac.uk/item/O85639/agnes-duchess-of-lower-bavaria-panel-unknown/; acedida: 23/11/2013.
Fonte: http://collections.vam.ac.uk/item/O64906/baptism-of-christ-the-panel-master-of-st/; acedida: 25/11/2013.
Por vontade expressa do autor, o presente artigo não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.

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