O palácio do Fiúza: memória de uma residência nobre em Alcântara, no termo de Lisboa

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João Bernardo Galvão-Telles

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(...) Na tradição do aprofundamento monográ co sobre residências com marca arquitectónica signi cativa na cidade e com implantação urbana, enquanto referente geográ co, a bibliogra a temática passa a dispor de um contributo inestimável para a sua renovação metodológica e actualização historiográ ca, enquanto processo testemunhal e re exivo.” José de Monterroso Teixeira

memória de uma residência nobre em Alcântara, no termo de Lisboa

Na LMT Abreu Loureiro, Correia de Matos e Galvão Teles promovemos um espírito de parceria e desenvolvemos a nossa actividade com rigor, exibilidade, pro ssionalismo e con dencialidade. Apreciamos clientes exigentes, que valorizam a História, o Património, a Arte e a Cultura do nosso país; que se revêem, a nal, na nossa Identidade. Por isso, passamos horas em arquivos e bibliotecas, calcorreamos Portugal, fotografamos e registamos o que de mais bonito encontramos, perdemo-nos em alfarrabistas, antiquários e leiloeiras… Na verdade, gostamos muito daquilo que fazemos e queremos que os nossos clientes partilhem connosco este entusiasmo!

“O trabalho de pesquisa de João Bernardo Galvão-Telles é exemplar na óptica do aprofundamento do desempenho dos Senhores da Casa, ou das elites que, entretanto e sucessivamente, o habitaram, nos diferentes contextos epocais. Pela sua integração em redes familiares apresenta-se de modo assinalavelmente bem estruturado com o recurso a imprescindíveis fontes primárias. Os laços de parentesco surgem-nos num mapeamento genealógico exaustivo e rigoroso, que o seu domínio dos fundos documentais enriquece.

O palácio do Fiúza

A LMT Abreu Loureiro, Correia de Matos e Galvão Teles é uma consultora que actua no domínio da História e do Património. Prestamos um conjunto diversi cado de serviços de investigação e consultoria histórica e patrimonial (arte, biogra a, genealogia e história da família, heráldica, história de instituições, iconogra a, organização de espólios arquivísticos, património imobiliário, prospecção de objectos de arte, antiguidades, moedas e livros), com o objectivo de transformar uma ideia ou aspiração num projecto único e original, à medida de cada cliente.

João Bernardo Galvão-Telles

O palácio do Fiúza: memória de uma residência nobre em Alcântara, no termo de Lisboa

Lisboa, 2014

JOÃO BERNARDO GALVÃO-TELLES Licenciado em Direito e jurista, dedica-se também à investigação histórica e patrimonial. É académico correspondente da Academia Portuguesa da História e sócio efectivo do Instituto Português de Heráldica. Exerceu, entre 1998 e 2011, o cargo de subdirector do Centro Lusíada de Estudos Genealógicos e Heráldicos da Universidade Lusíada de Lisboa. É autor de diversas obras cientí cas, entre as quais se destacam os livros Geração Pombalina: descendência de Sebastião José de Carvalho e Melo (Livro Primeiro) (2007), Peregrinações Heráldicas Olisiponenses - A Freguesia de Santa Maria de Belém (2005) e Heráldica no Concelho de Fronteira (2002), os dois últimos em co-autoria com Miguel Metelo de Seixas. Tem participado com comunicações em congressos e seminários sobre História e Património.

João Bernardo Galvão-Telles

O palácio do Fiúza: memória de uma residência nobre em Alcântara, no termo de Lisboa

Lisboa, 2014

Sumário Prefácio ........................................................................................................................ 7 25 de Agosto de 1580 ..................................................................................................11 3 de Fevereiro de 1663 ................................................................................................17 9 de Dezembro de 1706 ............................................................................................. 35 8 de Janeiro de 1744 .................................................................................................. 57 1 de Julho de 1892 ..................................................................................................... 93 5 de Dezembro de 2014 ............................................................................................ 117 Quadro 1: Genealogia resumida da família Carvalho, com destaque das personagens e datas particularmente relacionadas com a quinta de Alcântara. .............................................. 121 Quadro 2: Genealogia resumida da família Fiúza, com destaque das personagens e datas particularmente relacionadas com a quinta de Alcântara. ................................................... 121 Quadro 3: Conjunto patrimonial situado em Alcântara que formava, em 1864, o antigo morgado instituído pelos Barrunchos na quinta e casas nobres do Fiúza. ..................................122 Quadro 4: Genealogia resumida da família Barruncho, com destaque das personagens e datas particularmente relacionadas com a quinta de Alcântara..........................................

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Quadro 5: Genealogia resumida da família de Jacinto Gonçalves, com destaque das personagens e datas particularmente relacionadas com a quinta de Alcântara. ............................... Quadro 6:

124 Cronologia da quinta e palácio do Fiúza, em Alcântara. ............................................125

Figura 1: A batalha de Alcântara, num desenho datável de 1580, intitulado Portraict du sitie et ordre de La bataille donnée entre le sr. don Antonio nommé roi de Portugal et Le duc dalba Lieutenant et capp.ne general du Roy cath. Dom Philippe 2 deuant Lisbonne par mer et par terre en un mêsme jour Le 25 daoust 1580 (Biblioteca Nacional de Portugal). ......................................................................................................

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Figura 2: Retrato do príncipe D. Teodósio de Bragança (1634-1653) (Arquivo Nacional da Torre do Tombo)..................................................................................................... 130 Figura 3: Retrato do rei D. João IV (1604-1656) (Arquivo Nacional da Torre do Tombo). .............. 131 Figura 4: O lugar de Alcântara, segundo um desenho pertencente ao olisipógrafo Vieira da Silva, sem título nem assinatura, datável dos primeiros anos do século XVII ou da transição deste século para o XVIII, publicado parcialmente em SILVA, A. Vieira da, A Ponte de Alcântara e suas circunvizinhanças. Notícia Histórica, Lisboa: s.n., 1942, separata de Olisipo, n.º 18; e em FREITAS, Jordão de, Paço Real de Alcântara. Sua localização – Elementos para a sua história desde o domínio ilipino (introdução e aditamento por A. Vieira da Silva), Lisboa: Amigos de Lisboa, 1946, separata de Olisipo, n.º 36..............132

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Figura 5: Retrato de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), 1.º conde de Oeiras e 1.º marquês de Pombal (colecção particular). .........................................................133 Figura 6: O lugar de Alcântara à roda de 1700, representado na grande vista de Lisboa, painel de azulejos proveniente do antigo palácio dos condes de Tentúgal, da autoria de Gabriel del Barco, actualmente conservado no Museu Nacional do Azulejo; na extremidade direita observa-se a quinta que foi de Paulo de Carvalho (Direcção-Geral do Património Cultural, Arquivo de Documentação Fotográica, fotograia de Carlos Monteiro). ..134 Figura 7: Retrato do rei D. Pedro II (1648-1706), datado do século XVII, da autoria de António de Sousa e pertencente à colecção do Palácio Nacional de Sintra (Direcção-Geral do Património Cultural, Arquivo de Documentação Fotográica, fotograia de Henrique Ruas). ...........................................................................................................135 Figura 8: Assento do óbito de José Fiúza Correia, ocorrido a 16 de Novembro de 1733 na sua quinta de Alcântara (Arquivo Nacional da Torre do Tombo). .....................................136 Figura 9: A ponte de Alcântara em meados do século XVIII, com a estátua de São João Nepomuceno, num desenho publicado no Archivo Pittoresco em 1862. ...................................136 Figura 10: Planta da freguesia de São Pedro, em Alcântara, da autoria de José Monteiro de Carvalho, datável de 1770 (Arquivo Nacional da Torre do Tombo). ..................................137 Figura 11: O lugar de Alcântara na Carta Topographica de Lisboa e seus suburbios, levantada sob direcção de Duarte José Fava em 1807 (Museu da Cidade – Câmara Municipal de Lisboa). ........................................................................................................ 138 Figura 12: O lugar de Alcântara na Planta do Almoxarifado do Paço, levantada por José António de Abreu em 1848 (Arquivo Nacional da Torre do Tombo). .......................................139 Figura 13: O lugar de Alcântara no levantamento de Lisboa feito sob direcção de Filipe Folque em 1856 (Gabinete de Estudos Olisiponenses – Câmara Municipal de Lisboa). .................. 140 Figura 14: Vista de Alcântara, em 1850, onde já são visíveis as marcas de industrialização do bairro, numa aguarela de François d’Orléans, príncipe de Joinville. ........................... 140 Figura 15: O lugar de Alcântara no levantamento topográico de Lisboa feito sob direcção de Silva Pinto entre 1904 e 1911, já depois das grandes alterações urbanísticas de inais da centúria anterior (Gabinete de Estudos Olisiponenses – Câmara Municipal de Lisboa). ... 141 Figura 16: Fotograia do palácio do Fiúza, tirada à roda de 1929, publicada em FREIRE (MÁRIO), João Paulo, Alcântara. Apontamentos para uma monograia, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929. ......................................................................................... 142 Figura 17: O lugar de Alcântara no levantamento topográico de Lisboa feito pelo Instituto Geográico e Cadastral em 1953, já com o bairro do Jacinto representado (Gabinete de Estudos Olisiponenses – Câmara Municipal de Lisboa). ...........................................143 Figura 18: Placa toponímica da travessa do Fiúza, ainda hoje existente em Lisboa (fotograia do autor). ...........................................................................................................143 Figura 19: Uma perspectiva do antigo palácio do Fiúza na actualidade (fotograia do autor). ..........

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Fontes manuscritas ..................................................................................................145 Bibliograia ...............................................................................................................147 Recursos em linha .................................................................................................... 151

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O rio, campos em volta, e uma ponte solitária. Depois, pouco a pouco, a paisagem anima‑se. É o Palácio Régio, as Flamengas, o Convento do Cal‑ vário. Findava o século XVI, principiava o século XVII. Junto à ponte um extenso areal onde se iam assentar as primeiras casas. Sôbre um cómoro alto o Palácio do Fiúza. Mais para poente a Quinta da Ninfa, a Tapada, a Fazenda dos Quartos de El‑Rei e a corcova semi‑escalvada da serra. João Paulo Freire (Mário), Alcântara. Apontamentos para uma monograia, 1929.

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Prefácio Começo por revelar, nestas palavras de apresentação, três ou quatro circunstâncias decorrentes da investigação histórica que levaram a deparar-me com a Quinta do Fiúza, ou, de modo mais preciso, com a encosta onde esta se encontra, ainda hoje, se bem que, lastimavelmente descaracterizada. Na altura em que desenvolvia a pesquisa que levaria à edição do livro sobre O Paço Ducal de Vila Viçosa (1983), a leitura do Livro das Mercês de D. Teodósio II, 7.º duque de ”ragança, pai do futuro rei D. João IV, conduziu-me à identiicação do arquitecto responsável pelo risco do edifício. Nicolau de Frias, mestre da Aula de Arquitectura Civil dos Paços da Ribeira, entre 1597 e 1610, e que havia acompanhado Filipe Terzi, na expedição do rei D. Sebastião a Alcácer Quibir, assumiu então a direcção da profunda reforma por aquele patrocinado, a qual lhe dá a coniguração actual, sobremaneira na sua fachada poente. Por consequência debrucei-me sobre o Real Paço de Alcântara, onde os arquitectos Frias trabalharam, sabendo-se que é a Teodósio de Frias (1555-1613), ilho de Nicolau, que se atribui a direcção das obras, e que se encontra sepultado na Igreja de Nossa Senhora da Quietação, do Convento das Flamengas. Esta igreja será levantada sob a responsabilidade do pai, mas, em 1625, vem a ser destruída, para receber um novo projecto do ilho, Teodósio. Trama familiar que aportou um conhecimento mais recortado da obra destes artistas e da importância do pólo de Alcântara no contexto da arquitectura do maneirismo ilipino. “ssim como na mancha territorial da Real Quinta de “lcântara ressaltava, com presença signiicativa, a referida proeminência orográica a nordeste do complexo palatino e da sua extensa Tapada. Na sede do ducado a focagem no primitivo Paço dos Braganças, fora da alcáçova, construído no sítio do Reguengo por iniciativa de D. Jaime, beneiciou sobremodo da observação da estampa da autoria de Pier Maria Baldi, o vedutista que acompanhou Cosme III de Médicis na sua visita a Portugal, em 1669, e que está incluída no Álbum que nos deixou. Pela primeira vez se isolou o designado Paço mudéjar do 4.º duque de Bragança, que ao tempo, naquele ano ainda estava de 7

pé. Utilizei também a estampa do mesmo repertório, relativa ao Real Paço de Alcântara, que o autor desta belíssima obra, igualmente registou. Dupla inscrição iconográica, a do Paço de Vila Viçosa, com a sua fachada de matriz italiana, de maneirismo austero e sóbrio, mas de eloquente monumentalidade, que convinha ao estatuto senhorial da principal casa do reino, e a do Real Paço de Alcântara que revela as mesmas opções de linguagem noutra pontuação programática, enquanto quinta de recreio, anunciando já o proto-barroco. Esta citação imagética reporta-se ao corpus arquitectónico que George Kübler compilou no seu livro seminal, Portuguese Plain Architecture. Between spices and diamonds, para fundamentar a sua leitura diacrónica ente 1521 e 1706, de modo a encontrar um denominador comum, em toda a produção arquitectónica dialectal neste período, a que convinha a designação de arquitectura chã. Produção que se deine na sua elementaridade compositiva, por volumes severos no pragmatismo circunstancial da prática arquitectónica de proissionais, muitas vezes sem formação sólida, idioma que é reforçado, nalguns casos, pela origem militar deste projectistas. Enquadramento que nos permite entender melhor a morfologia e o discurso construtivo da Quinta do Fiúza, que se entronca nesta tipologia avançada por Kübler, embora o edifício esteja signiicativamente descaracterizado. Deve ser datado da segunda metade do século XVII, tendo o alçado principal com piso térreo, sem vestígios de portal nobre, e mezzanino, marcado por cornija, que deine o arranque do segundo andar, com janelas de sacada molduradas, de ritmo sequencial e cunhais robustos de cantaria de liós. Solar dos arrabaldes da cidade representa numa escala inferior à que era ostentada pela residência dos condes da Ponte, construída a seguir ao Convento das Flamengas, em Alcântara, onde com volumetria regular, a fachada principal marca dois corpos, tendo o central no piso inferior um grande arco de volta abatida e varanda no andar nobre. Sabe-se que a Quinta do Fiúza integrava uma capela, e João Baptista de Castro no Mappa de Portugal Antigo e Moderno (1762), averbou que icou imune à acção do terramoto Nossa Senhora do Pópulo, na quinta “que foi do Dezembargador Joseph Fiúza Correia a Alcântara. Não teve ruina.” O trabalho de pesquisa de João Bernardo Galvão-Telles é exemplar na óptica do aprofundamento do desempenho dos Senhores da Casa, ou das elites que, en-

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tretanto e sucessivamente, o habitaram, nos diferentes contextos epocais. Pela sua integração em redes familiares apresenta-se de modo assinalavelmente bem estruturado com o recurso a imprescindíveis fontes primárias. Os laços de parentesco surgem-nos num mapeamento genealógico exaustivo e rigoroso, que o seu domínio dos fundos documentais enriquece. A aproximação ao núcleo matricial que, em 1663, os Carvalhos protagonizaram à época de Paulo de Carvalho, tio-bisavô do futuro 1.º marquês de Pombal, e logo, pouco depois, em 1698, à dos pais de Sebastião José de Carvalho e Mello que aí habitaram, equaciona bem a tessitura de vivência da quinta. Reforça-se a convicção face aos documentos que Galvão Telles carreia, e à sua interpretação, que aqui possa ter sido o presumível local de nascimento do 1.º ministro de D. José I. Parte substantiva do texto é dedicada à época em que os Barrunchos foram seus proprietários, pertencendo estes a uma pequena idalguia e de religiosos com conezias. Foi desta família a Quinta do Barruncho em Odivelas, que apresenta um frontão de inventivo rocaille com cartelas circundantes ao remate superior. E aqui, neste núcleo, a consulta da documentação da Torre do Tombo é sistemática, iluminando uma diacronia familiar em toda a profundidade e sustentando um encadeamento genealógico muito consistente. Na tradição do aprofundamento monográico sobre residências com marca arquitectónica signiicativa na cidade e com implantação urbana, enquanto referente geográico, a bibliograia temática passa a dispor de um contributo inestimável para a sua renovação metodológica e actualização historiográica, enquanto processo testemunhal e relexivo. José de Monterroso Teixeira

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25 de Agosto de 1580 Uma dupla linha de trincheiras fortiicava a velha ponte, que então fazia a ligação entre as duas margens da ribeira de Alcântara, nas imediações de Lisboa. Seis a sete mil homens, às ordens do prior do Crato, guarneciam a margem esquerda do pedregoso leito, desde a colina dos Prazeres até à praia, onde alguns moinhos serviam de reduto. Ao largo do Tejo, uma frota estacionada de trinta e seis naus e nove galeões daria o apoio de artilharia que faltava às forças terrestres de D. António, cujos melhores homens haviam sido concentrados na defesa da ponte. Já desde a véspera que as forças do duque de Alba, comandante do exército espanhol, se apresentavam diante da milícia portuguesa. Eram pelo menos dezasseis mil soldados de tropa veterana formados em três corpos de batalha, um à direita, próximo da praia, outro ao centro, defronte da ponte, e um terceiro à esquerda, diante do lanco direito do exército português, o seu ponto mais vulnerável e de fácil acesso. Era por aí que as divisões sob comando de Sancho de Ávila e D. Fernando de Toledo esperavam envolver as linhas portuguesas para lhes caírem sobre a rectaguarda. O ataque espanhol deu-se às sete da manhã, antes que o sol escaldante de Agosto tolhesse as forças em combate. Foi tão impetuosa a investida que os piqueiros italianos ao serviço de Filipe II tomaram de imediato a ponte. Ripostaram os arcabuzeiros portugueses, que se achavam entrincheirados numa casa vizinha, permitindo aos piqueiros seus compatriotas um contra-ataque que inligiu graves perdas nos italianos. Estes, porém, desistindo de conquistar a ponte, concentraram-se em tomar aquele reduto que a protegia, enquanto os terços alemães, dispostos do lado direito do exército comandado pelo duque de Alba, entretinham o combate junto à praia. No lado oposto, as divisões de Ávila e Toledo, conforme planeado, completavam em colunas cerradas a sua operação de envolvimento das tropas portuguesas pela ala direita destas, ao mesmo tempo que a artilharia espanhola, sem sofrer uma devida oposição da esquadra portuguesa, rompia num fogo intenso que mais pulverizava o exército de D. António. Este, num assomo de bravura, conseguira ainda arrancar a guarnição inimiga da ponte, fazendo passar sobre ela um corpo de cavalaria que chegou a produzir certo alarme na hoste espanhola. Mas a acção já tinha sido decidida pelo êxito

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dos terços daqueles comandantes. Espalhadas ao longo da ribeira, com as costas cortadas, as milícias portuguesas dispersaram em tumulto, abandonando armas e trincheiras. De forma impiedosa, o ataque continuado da artilharia do duque de Alba roubava a vida a muitos dos que ainda procuravam salvá-la. Uma hora durara o combate! No meio dessa multidão em fuga, D. António, o  prior do Crato, já ferido, conseguira regressar a Lisboa, de onde recolheu a Santo Antão do Tojal a curar-se. A resistência que depois procurou organizar no norte do país não foi suiciente para travar as pretensões de Filipe II de Espanha. Com a derrota na batalha da ponte de Alcântara consumara-se a conquista de Portugal e a capital fora logo ocupada, sem mais entrave, pelo duque de Alba 1. Dois anos volvidos sobre o desastre de Alcácer-Quibir, que mergulhara Portugal em profunda crise dinástica, o reino caía em mão estrangeira, de que só viria a libertar-se ao im de seis prolongadas décadas… O rio ou ribeira de Alcântara tem a sua origem na Falagueira e Porcalhota, percorrendo até ao Tejo, onde desagua, cerca de 10 quilómetros. Perto da sua antiga desembocadura, num trajecto norte-sul, separava os montes das Necessidades, dos Prazeres e de Campolide dos contrafortes orientais da serra de Monsanto. Tornou-se pois indispensável “construir uma ponte que ligasse uma à outra margem do esteiro ou ribeira, no sítio da sua foz, onde os montes fronteiros menos se distanciam, e onde os aterros numa e noutra margem se haviam já alastrado e aproximado, por assoriamentos naturais, ou por aterros feitos propositadamente”. Crê-se, por conseguinte, que desde tempos imemoriais ali tenha existido uma ponte, talvez até cedo construída em pedra, dada a existência de pedreiras calcárias nas suas imediações. É de presumir, aliás, que tal obra já ali estivesse ao tempo da ocupação muçulmana da península, pois a palavra “lcântara signiica, em árabe, a ponte, de onde o lugar derivou o seu nome. Para sul da mesma, tudo era mar, formando uma grande enseada. É dos ins do século XVI, com probabilidade, o mais antigo documento gráico em que esta construção igura: trata-se de um desenho que representa precisamente a batalha travada em 1580 nas suas vizinhanças, entre as tropas do pretendente D. António e as do duque de Alba. Intitulado Portraict du sitie et ordre de La bataille donnée entre le sr. don Antonio nommé roi de Portugal et Le duc dalba Lieutenant et capp. ne general du Roy cath. Dom Philippe 2 deuant Lisbonne par mer et par terre en

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SELVAGEM, Carlos, Portugal Militar: compêndio de História Militar e Naval de Portugal, 3.ª reimpressão, s.l.: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, [1999], pp. 345-347.

un mêsme jour Le 25 daoust 1580, encontra-se o mesmo à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal 2 [Figura 1]. Nesse desditoso ano de 1580, Alcântara era um arrabalde afastado de Lisboa, pois a cidade, no seu lado ocidental, terminava no Bairro Alto e na Boavista, já fora da cerca fernandina. Uma centúria antes, a fazer fé na descrição de Herculano, aquele sítio era formado por “montes e ladeiras, lugares selvosos e chãos calvos, barrocaes, silvados e olivêdos entremeados de vinha, que se penduravam pelas encostas até à margem do [ribeiro de] “lcântara , por cujo vale – ironizou o insigne historiador – “êle se vai deslizando preguiçoso e pobre, condições que, diga-se aqui de passagem, dão ao bom do rio um profundo carácter de nacionalidade”! 3 Já em meados de quinhentos, referindo-se ao trajecto que de Belém conduzia a Lisboa, Damião de Góis escrevera que desde o local onde se erguia o majestoso mosteiro de frades jerónimos (…) até à primeira ponta da Cidade vai uma distância de três mil passos e por todo este percurso é possível divisar inúmeros edifícios de casas suburbanas, de admirável elegância e aprazimento, e bem assim campos e pascigos que, além de grande quantidade de fruta de toda a espécie, apresentam extrema beleza e encanto a um simples relance de olhar” 4. No meio desse troço de paisagem, pontiicava a pequena ermida de Santo “maro, cuja primitiva construção se iniciara em 1532, dando cumprimento ao voto expresso pelos catorze freires da Ordem de Cristo que, regressados da romaria que os levara a São João de Latrão, em Roma, haviam aportado a 15 de Janeiro desse ano numa enseada ali próxima. Ampliada entre 1549 e 1551, a capela de Santo Amaro apresentava-se lá do alto como autêntica “sentinela dos mareantes”, à qual se acorria por uma imponente escadaria, mais tarde desaparecida 5. Não muito longe, cá em baixo, também a poente da ribeira de Alcântara mas ainda mais chegado a ela, possuía interessante palácio João Baptista Rovellasco, 2

SILVA, A. Vieira da, A Ponte de Alcântara e suas circunvizinhanças. Notícia histórica, Lisboa: s.n., 1942 (separata de Olisipo, n.º 18), pp. 5-8. Lisboa quinhentista. A imagem e a vida da cidade, [Lisboa]: Direcção dos Serviços Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, s.d. (catálogo da exposição temporária realizada no Museu da Cidade), p. 91.

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Citado por FREIRE (MÁRIO), João Paulo, Alcântara. Apontamentos para uma monograia, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929, pp. 17-18.

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GÓIS, Damião de, Elogio da cidade de Lisboa. Vrbis Olisiponis descriptio (versões latina e portuguesa; introdução de Ilídio do Amaral, apresentação, edição crítica, tradução e comentário de “ires “. Nascimento), Lisboa: Guimarães Editores, [2002], p. 139.

5

FREIRE (MÁRIO), op. cit., pp. 14 e 178. Monumentos e edifícios notáveis do distrito de Lisboa, s.l.: Assembleia Distrital de Lisboa, 1988, tomo 3, p. 111.

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rico contratador de escravos de origem espanhola ou italiana, no dizer de uns, negociante de pimenta da Mina e gentil-homem milanês, na opinião de outros 6. Consta que Filipe II de Espanha, por dívidas à fazenda real, o coniscou ao mercador e ampliou, transformando-o assim no real paço de Alcântara, que Martim Afonso de Miranda, já em 1621, enaltecia pela “sumptuosidade de seus edifícios, diferença de brincos, variedade de iguras; como também pela abundancia das aguas, multidão de arvores de espinho, amenidade e frescura de odoriferas e alegres boninas (…) 7. Fora em 1582 ou 1586 que ali mesmo contiguo se erguera o convento de Nossa Senhora da Quietação, ou das Flamengas, assim designado por ter sido doado por aquele mesmo monarca espanhol às freiras clarissas que haviam fugido de Antuérpia às perseguições calvinistas que então varriam o norte da Europa 8. E quase fronteiro a este cenóbio, levantara-se um outro à roda de 1600, por devoção de D. Violante de Noronha, mulher de Manuel Teles de Meneses, que o doou às franciscanas da Esperança, Alenquer e Trancoso. Expedida a bula da sua instituição pelo Papa Paulo V em 1617, assim nascia o convento do Calvário, cujo largo a oriente servia de pátio fronteiro ao régio palácio, para onde deitava elegante galeria envidraçada 9. Um escrito anónimo, cuja autoria pode ser atribuída a frei Nicolau de Oliveira, constituindo talvez um resumo do Livro das Grandezas de Lisboa, por aquele publicado em 1620, oferece-nos, sob a forma de versos encomiásticos, um pitoresco e abreviado retrato de Alcântara nas primeiras décadas de seiscentos 10: “Santo Amaro mais auante, em distancia que não chega, fazer quatrocentos passos, ou no mais quando esta seja. Està posto, & situado no cimo de hu˜ a ladeira, 6

Lisboa quinhentista…, p. 16. FREITAS, Jordão de, Paço Real de Alcântara. Sua localização – Ele‑ mentos para a sua história desde o domínio ilipino (introdução e aditamento por A. Vieira da Silva), Lisboa: “migos de Lisboa, 1946 (separata de Olisipo, n.º 36), p. 6.

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Apud FREIRE (MÁRIO), op. cit., pp. 124-125. Sobre o palácio real de Alcântara veja-se ainda o testemunho que icou da viagem de Cosme de Médicis a Portugal, entre Janeiro e Março de 1669, quer no relato dos cronistas Lorenzo Magalotti e Filippo Corsini, quer no desenho de Pier Maria Baldi. Cfr. “Viagem do Gran Duque da Toscana a Portugal”, in FARIA, Antonio de Portugal de, Portugal e Italia, Lisboa: Typographia de Raphael Giusti, 1901, p. 53. Viaje de Cosme de Médicis por España y Portugal (1668‑1669), Madrid: Sucesores de Rivadeneyra, [1933] (edicion y notas por “ngel Sánchez Rivero y “ngela Mariutti de Sánchez Rivero).

8

IDEM, Ibidem, pp. 14 e 172. Monumentos…, tomo 3, p. 107.

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FREIRE (MÁRIO), op. cit., pp. 14-15, 131-132 e 161-162. Monumentos…, tomo 3, pp. 106-107.

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Relaçam, em que se trata, e faz hua breve defcrição dos arredores mais chegados à Cidade de Lis‑ boa, & feus arrabaldes, das partes notaueis, Igrejas, Hermidas, & Conuentos que tem, começando logo da barra, vindo corredo por toda a praya atè Enxobregas, & dahi pella parte de cima até Saõ Bento o nouo, Lisboa: Publicações dos “nais das ”ibliotecas, “rquivo e Museus Municipais de Lisboa, 1970.

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que se sobe facilmente, por ser distancia pequena. He muy fermosa hermida, de grão concurso, & freque˜ cia todo anno, & no seu dia parece ser cousa immensa. Entrãdo tem logo hu˜ pateo, de muy bastante larguesa que paramentão de altares no dia de sua festa. Esta também por diante, de molheres estrangeiras, hum mosteiro muy devoto, que se chama das Framengas. Não longe defronte deste, a quem vem à mão direita outro ica do Caluario que juntame˜ te hé de freyras. “ quinta del Rey famosa logo aqui não nos esqueça, de inue˜ çoe˜ s dagua, & de lores & iguras tão diuersas. Seguese a ponte de “lcantra, sobre hu˜ a fresca Ribeira, cujas cristalinas aguas por entre montes, & serras. Vem correndo brandamente como escutando de veras as cantigas que ali cantaõ as rusticas lauadeiras”.

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3 de Fevereiro de 1663 Paulo de Carvalho teria talvez uns sessenta ou setenta anos de idade. Encontrava-se doente de cama na sua casa da rua Formosa – hoje dita de O Século –, em Lisboa, que seu pai ediicara e que ele beneiciara a ponto de nela ter gasto dezasseis mil cruzados! 11 Mas que importava isso no momento em que se aproximava do im a sua existência terrena? “inal, a nobre residência era cabeça do morgado que Sebastião de Carvalho, o progenitor, instituíra e que ele agora desejava ampliar, honrando destarte os seus antepassados e conferindo maior lustre à família vindoura 12. Fora, aliás, por esse mesmo motivo que contratara com o cabido da Sé de Lisboa erigir em paróquia a vizinha igreja das Mercês – cujo chão lhe pertencia por doação dos irmãos e que, estando arruinada, 11

(…) porque sendo as casas de meu Pai tão limitadas que nas partilhas se avaliaram em quatro ou cinco mil cruzados e gastei nelas mais de dezasseis, conforme a conta das férias que estão no livro . Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, livro 54, n.º 12, l. 20v.

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Sobre a instituição do vínculo da rua Formosa, cito esta passagem do contrato de casamento celebrado por Paulo de Carvalho em 1631, com a presença e intervenção do pai: (…) todos os bens do morgado e capela que ele Sebastião de Carvalho e D. Maria de Braga sua mulher instituíram de suas terças, em que nomearam por primeiro possuidor e administrador do dito morgado a ele dito Paulo de Carvalho, seu ilho, e bem assim os bens das legítimas de seus ilhos religiosos o padre frei Jorge, religioso da ordem de são bento, e de dona Mariana, sua ilha, religiosa no mosteiro de Santa “na desta cidade [de Lisboa], e as ditas suas terças têm ...(?) nestas casas em que ele Sebastião de Carvalho ao presente vive, que são grandes e nobres com todas suas benfeitorias e seus chãos e quintais e bem assim as mais moradas pequenas que estão defronte destas com seus fornos e atafonas, quintais e mais suas pertenças, o que tudo tem anexado ao dito morgado juntamente com outras casas grandes e seu quintal que parte do norte com casas(?) grandes em que ora mora o doutor Luís Serrão Lobo, e bem assim as casas que foram de Bento Henriques que estão junto a estas, e os bens das ditas legítimas dos ditos seus ilhos tem ...(?) também por lhe pertencerem pela patente e provisão que ele Sebastião de Carvalho tem em seu poder, de que adiante se fará menção, os quais bens todos icaram vinculados ao dito morgado com os encargos e obrigações declarados em sua instituição que izeram por seu testamento, solenemente aprovado por mim tabelião ao diante nomeado, em sete dias do mês de Fevereiro do ano de mil e seiscentos e vinte e nove, o qual testamento e aprovação dele eu Tabelião vi ao fazer desta escritura e está lançado em um livro ou tombo concertado autenticamente, o qual livro está numerado e assinado pelo dito doutor Sebastião de Carvalho e o seu encerramento feito de sua letra e sinal e tem duzentos e setenta e sete meias folhas, feito o dito encerramento em quinze dias de fevereiro do presente ano de seiscentos e trinta e um, a qual instituição, vínculo e anexação de bens disse ele dito Sebastião de Carvalho que aprova(?) e ratiica do dia de seu falecimento em diante para que se cumpra para sempre como nele se contém (…) . Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, 3.º Cartório, cx. 54, livro 191, ls. 54-58v.

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ele reconstruíra à sua custa –, alcançando para si e seus sucessores o direito de apresentar os respectivos cura, tesoureiro e coadjutor, e reservando, como padroeiro, a capela-mor do pequeno templo 13. Era nela que Paulo de Carvalho desejava sepultar o seu corpo, em túmulo feito com toda a decência e que seria assente sobre uns elefantes 14. Ditava o enfermo estas disposições a Manuel ”andeira Moniz, seu criado iel, pois o facto de estar sangrado no braço direito impedia-o de escrever o testamento pela sua própria mão. Mas – valia-lhe Deus por isso! – achava-se no seu perfeito juízo! Quisera o mesmo Deus não lhe dar ilhos do seu casamento com D. Maria Pereira de Sande, sua consorte há mais de trinta anos, com quem se desposara por procuração, na igreja do Espírito Santo de Montemor-o-Novo, no já longínquo dia 10 de Janeiro de 1632 (ainda se lembrava daquele vestido preto de invulgar qualidade que seu pai por essa altura dera à nora e que esta nesses primeiros tempos de matrimónio, quando já habitavam os aposentos que lhes haviam destinado na rua Formosa – ricamente adornados com as alcatifas que Sebastião de Carvalho igualmente lhes ofertara –, costumadamente trajava para ir à porta da igreja!) 15. Paulo de Carvalho não tinha, por conseguinte, herdeiros forçados. Se ao irmão Sebastião, homónimo do pai de ambos, caberia suceder no vínculo da família – que Paulo agora desejava aumentar sem prejuízo das 13

(…) e assim sou padroeiro in solidum da mesma Igreja [das Mercês], e meus sucessores, como se vê da Escritura que izemos, e me icou a Capela-mor que me obriguei a fazer como agora faço, e icará a dita Capela e casas de recolhimento em morgado junto ao que fez meu Pai, que Deus tem, com as mesmas cláusulas e condições dele e será primeiro sucessor e administrador dele meu Irmão Sebastião de Carvalho”. Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, livro 54, n.º 12, l. 19v.

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(…) mando que meu corpo seja sepultado na minha Capela-mor de nossa senhora das mercês, que se fará a obra na conformidade em que vai e um túmulo com toda a decência com uns elefantes na conformidade que parecer a meus testamenteiros, aonde desejo fazer um mosteiro de freiras recolectas da ordem de são Bento, ou de frades capuchos da piedade, espero dando-me a vida (?), e sendo ele servido se consiga este meu desejo, e falando aqui com uns capuchos me disseram que não tinham proibição e que se poria em Capítulo. Far-se-á Carneiro e em separação para que em uma parte ique meu Corpo, e o de D. Maria minha mulher e senhora, e nesta se porão os ossos de seu pai e mãe, e Tia, que estão depositados na Igreja de Nossa Senhora de Jesus no cruzeiro perto da grade. “ outra parte do Carneiro icará para meus herdeiros e sucessores e nele se porá também o caixão com os ossos da senhora D. Luísa, que está enterrada na mesma Igreja; e o[s] de meu Irmão Manuel de Carvalho, que estão depositados na sacristia velha de Nossa Senhora de Jesus (…) . Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, livro 54, n.º 12, l. 19.

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Arquivo Distrital de Évora, Registos Paroquiais, Montemor-o-Novo, Nossa Senhora do Bispo, casamentos, livro 3, l. 63v. Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, 3.º Cartório, cx. 54, livro 191, ls. 54-58v.

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demandas que tinham tido um contra o outro 16 – foi a mulher quem ele instituiu por universal herdeira dos bens livres e a quem impôs igualmente as obrigações de testamenteira 17. Paulo desejava também que ela, depois da sua morte, continuasse a habitar numa parte dessas moradas na rua Formosa, encargo que impôs ao irmão Sebastião sob pena de todas as benfeitorias e acrescentos deixarem de pertencer ao tal morgado em que este haveria de suceder 18. Determinava isto certamente para segurança e agrado da mulher, pois as propriedades que esta recebera em dote do pai – e que ele, Paulo, nunca vendera – situavam-se todas no Alentejo 19, onde não poderia viver com a mesma comodidade e acompanhamento; e aquela outra quinta que ambos possuíam nos limites de Lisboa… 16

Ficaram em usufruto para a mulher, mas vinculados ao morgado por morte desta, os bens livres situados na Beira, os que Paulo recebera pelas legítimas paterna e materna, os que haviam pertencido ao irmão Manuel de Carvalho, e os que a irmã D. Catarina de Carvalho nele renunciara depois de ter tido o respectivo usufruto. Paulo de Carvalho nomeou directamente no irmão Sebastião os prazos de Vilela e da capela de São João, a capela de São Pedro “que foi do sedenho(?) que o “bade “ntónio de Carvalho, nosso tio, nomeou em nosso pai há mais de quarenta anos e eu estou hoje de posse dela por denunciação que dei”, o prazo do Campo da Quitada(?), foreiro ao cabido de Viseu, em que Paulo era primeira vida, e o prazo do Campo de Valada, que lhe deixara Genebra de Mendonça. Deixou ao mesmo irmão a parte que lhe cabia nos serviços do pai e os dele próprio, com excepção da tença que por eles esperava receber para a sua mulher “e se costuma dar às dos ministros que ocupam semelhantes lugares e servem com satisfação com que eu sempre procurei servir a Sua Majestade”. O prazo da Guarda, já Paulo o tinha largado no mesmo irmão Sebastião, “que posto que tinha Embargos à sentença desisti deles por escusar demandar e conservar sua amizade e ele desistiu do direito que podia ter nos rendimentos depois da morte de meu pai”. Paulo de Carvalho deixou ainda “ao Morgado o assento das casas que foram de Genebra de Mendonça que estão na rua formosa, com todas as benfeitorias que nelas iz e (…) mais as benfeitorias que iz nas casas de meu pai e nas que estão na frente delas tudo anexo ao morgado”. Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, livro 54, n.º 12, l. 20v.

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Paulo de Carvalho nomeou ainda a mulher nos prazos de São Jorge e São Martinho, que formavam as suas casas junto à igreja de São Martinho, e no prazo da Sé, no beco das Merceeiras, imposto em casas que foram de D. Antónia Loba, deixando-lhe a parte das benfeitorias que nelas izera, porque a outra parte já era de D. Maria Pereira de Sande. Nomeou também nesta o prazo de Évora, foreiro à comenda de Montouto, na Ordem de Malta, que se situava na rua do Espírito Santo, pois apesar do mesmo ter pertencido a Manuel de Sande Pereira, seu sogro, o respectivo comendador renovara-o nele em primeira vida. Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, livro 54, n.º 12, l. 20.

18

(…) tem D. Maria sua parte e viverá nelas em sua vida, e lhe peço o haja assim por bem, e não querendo meu Irmão Sebastião de Carvalho que isto seja assim, pagará as benfeitorias não só da parte que toca à dita D. Maria minha mulher, mas também as que me cabem da minha parte, e não icarão anexas ao Morgado, antes será obrigado a pagá-las o dito meu Irmão, sucessor dele, como qualquer outro que se lhe seguir (…) . Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, livro 54, n.º 12, l. 20v.

19

À data da celebração da escritura de dote, em 1631, as propriedades de Manuel Pereira de Sande eram as seguintes: uma quinta chamada dos Regos(?), no termo de Montemor-o-Novo, a herdade do Espinheiro, a herdade da Carense(?), a herdade do Freixo, uma propriedade de

19

É possível que Paulo de Carvalho tenha feito uma pausa e suspirado antes de continuar a ditar ao criado as suas últimas determinações testamentárias. “o recordar-se desse lugar onde passara tantos e aprazíveis momentos da sua vida, mas que igualmente lhe lembrava alguns infortúnios, um misto de sensações seguramente lhe alorou ao espírito. Com a voz presumivelmente mais embargada, airmou ao seu interlocutor 20: “Da minha quinta de Alcântara não tenho, depois que morreu o senhor Príncipe Dom Teodósio e sua Majestade, o gosto com que ia a ela, nem a saúde [que] então tinha, pelo que mando se venda, e do procedido dela se comprarão bens livres para se pagarem aos capelães e o que crescer se anexará ao Morgado, o que D. Maria haverá assim por bem porquanto é livre só paga de um quintal a Luís César novecentos réis, e cinco tostões de um quintalinho que depois comprei a um alfaiate que lhe pagava os cinco tostões, e a sua Majestade pagava quarto de uma terra que está junto à tapada, e eu lhe dei outra junto ao pombal que era muito grande e não quis nada por ela, e paguei a fulano gomes meu caseiro cinquenta e tantos mil réis por esta mesma terra por sua Majestade assim mo ordenar com que iquei livrando a quinta do quarto, e as casas são forras e isentas. “ quinta de “lcântara de cima nomeio em segunda vida em minha mulher D. Maria, porquanto na compra como nas benfeitorias tem a sua metade (…) .

Num insuspeito livro do distribuidor da cidade de Lisboa, mais precisamente naquele que respeita ao ano de 1640, lavrou esse oicial – cuja missão era distribuir pelos vários cartórios dos tabeliães da capital do reino as escrituras notariais a celebrar – um inusitado registo, certamente redigido ao correr dos acontecimentos que marcaram esse tempo: “o primeiro dia do mês de Dezembro de 1640 mataram os idalgos a Miguel de Vasconcelos e o deitaram meio vivo do aposento onde estava da janela abaixo e logo alevantaram o duque de ”ragança dom João por Rei de Portugal (…) . O incidente assim narrado evidenciava uma deinitiva viragem na História do país, há sessenta anos ansiada, e permitira ao mesmo oicial revelar a sua incontida alegria, em tom jocoso, nos terra e vinha(?) que se situava entre os outeiros(?) da dita vila, que então rendia um moio de trigo, mais um quarteiro(?) de trigo de foro cada ano que se pagava de uma horta situada por trás do mosteiro de São Domingos da mesma vila, mais na herdade de Nossa Senhora do Divor, termo da cidade de Évora, um moio de trigo em cada ano e umas casas na rua do Espírito Santo da mesma cidade, que são grandes e nobres , e duas casas que icavam também na praça de Évora, “debaixo das casas da câmara”, as quais todas rendiam 30 e tantos mil réis anuais, em que entravam 10 mil de foro; e ainda as casas em que Manuel Pereira de Sande e D. Isabel Pereira, sua mulher, viviam na referida vila de Montemor-o-Novo e outras moradas mais pequenas que tinham na mesma localidade e que rendiam 12 mil réis; por último, uma quinta pequena chamada do Lobosqueiro(?), que rendia 7 mil réis. Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, 3.º Cartório, cx. 54, livro 191, ls. 54-58v. 20

20

Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, livro 54, n.º 12, ls. 20v-21.

versos que fez anteceder àquele assento: Filipe ainda que queiras / Vingar-te do que Deus faz / Far-te-emos guerra com paz / Que inda cá temos forneiras . Em oito estrofes glosou o improvisado poeta este mote, assinalando que (…) se este brio denota / Valor português ou não / Castelhanos o dirão / Que da pá d’“ljubarrota / Por seu mal se lembrarão 21. Com a Restauração e o advento da dinastia de Bragança passara o paço de Alcântara – ou do Calvário, como por vezes o designavam –, a receber novas presenças régias. O recém-aclamado D. João IV dele fez uso regular não apenas para seu recreio, mas também em ocasiões mais solenes, como a recepção aos embaixadores de França e Inglaterra no delicado momento em que ainda era preciso airmar diplomaticamente a nova situação política do país, e ao padre António Vieira, quando este regressou a Portugal vindo de Haia, a 15 de Outubro de 1648 22. Quatro anos mais tarde, porém, o paço e o lugar de Alcântara icariam indissociavelmente ligados ao prematuro falecimento do príncipe herdeiro. Sigamos a este respeito o relato das historiadoras Leonor Freire Costa e Mafalda Soares da Cunha 23: D. Teodósio voltara do “lentejo nos inais de 1652, tencionando icar em Lisboa por breve tempo. A doença do foro pulmonar que se manifestou então reteve-o. Procurando os médicos remédio na mudança de ares, passou uma temporada numa quinta na Palhavã. As melhoras, porém, tardaram. Seguiu para Alcântara, e sem explicação nas crónicas coevas, alojou-se na quinta do conselheiro da Fazenda Paulo de Carvalho, vizinha do paço e da tapada real. Não resistiu, vindo a falecer com 19 anos. (…) .

Não é explícito se o óbito do príncipe terá ocorrido na quinta de Paulo de Carvalho, muito embora seja certa a sua presença nesta propriedade pelo menos nos derradeiros dias da sua vida. Lucas de Andrade publicou uma Breve Relaçam do Sumptuoso Enterro Que se Fes em 17 de Mayo de 1653, ao Serenissimo Principe o S. D. Theodosio desde os Paços de Alcântara ao Real Convento de Belém, mas do seu teor não se infere qual tenha sido o exacto local do falecimento 24. Paulo de Carvalho, muito provavelmente, terá acompanhado o funeral do seu régio hós21

Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, Cartório do Distribuidor, cx. 9, livro 39.

22

FREIRE (MÁRIO), op. cit., pp. 130 e 132-133. COSTA, Leonor Freire; CUNHA, Mafalda Soares da, D. João IV, s.l.: Círculo de Leitores, [2006], p. 219.

23

COSTA; CUNHA, op. cit., p. 254.

24

ANDRADE, Lucas de, Breve Relaçam do Sumptuoso Enterro Que se Fes em 17 de Mayo de 1653, ao Serenissimo Principe o S. D. Theodosio desde os Paços de Alcântara ao Real Convento de Belém…, Lisboa: “ntonio “lvarez, 1653.

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pede. Fechadas as janelas em sinal de luto, “o caixão «bem forrado de chumbo», coberto de rica tela de carmesim, esteve em câmara numa das casas do paço de Alcântara, a que davam acesso as escadas principais. No centro do aposento foi erguida uma essa com três degraus para receber o caixão ladeado por duas grandes tochas de prata. No topo da sala, foi montado um altar, sob docel [sic] armado com panos vindos de Vila Viçosa, identiicados como de Valhadolid 25. “ missa pontiical ocorreu no sábado de manhã e às nove da noite o corpo, depois do caixão aspergido por alguns dos mais destacados membros da nobreza do tempo, seguiu numa liteira para Belém, acompanhado pelo rei D. João IV, de semblante impenetrável e sem demonstrações de dor, como o exigia o cerimonial. Na memória do lugar, ixou-se depois o topónimo da rua do Príncipe, hoje desaparecida, pequena artéria que ligava precisamente a quinta de Paulo de Carvalho à calçada da Tapada e aos jardins do paço real 26. Não custa acreditar que por ela tivesse passado o jovem D. Teodósio [Figura 2], na agonia da sua doença para morrer na régia residência ou já cadáver, para aqui ser velado. Dom João IV [Figura 3], mesmo ferido no seu amor paterno, não deixou todavia de frequentar o paço de Alcântara, onde se habituara a reservar um dia na semana para ali estar, que apesar de não ser inteiramente livre servia para quebrar as rotinas do real serviço. “Aquela quarta-feira, 25 de Outubro de 1656, adivinhava-se igual a qualquer outra destinada a descanso, abalando cedo para Alcântara. Mas uma forte dor na ilharga forçou-o a voltar pelas 11 da manhã. Um sono de uma hora na falua deu-lhe uma enganosa sensação de alívio. “ rainha, em alvoroço, estranhou o regresso precipitado. O rei tranquilizou-a e fez questão de, nessa tarde, aparecer em público e dar audiência” 27. Seria a última vez que o fazia, vindo a falecer a 6 do mês seguinte. Pelas recordações que trazia das soberanas personagens, compreende-se a tristeza que Paulo de Carvalho mais tarde manifestou ao airmar que da minha quinta de Alcântara não tenho, depois que morreu o senhor Príncipe Dom Teodósio e sua Majestade, o gosto com que ia a ela”; tristeza tamanha a ponto de determinar a venda da propriedade!

25

COSTA; CUNHA, op. cit., p. 254.

26

FREIRE (MÁRIO), op. cit., p. 100.

27

COSTA; CUNHA, op. cit., p. 259.

22

Nascido no seio de uma família de importantes magistrados em clara ascensão social – já iam longe os tempos do avô ”elchior de Carvalho, ilho legitimado de outro Sebastião de Carvalho, que depois foi clérigo e beneiciado da igreja de Sernancelhe, e neto de um certo mestre Carvalho, porventura um físico morador naquela vila beirã 28 –, Paulo de Carvalho iniciara a sua carreira ainda sob o domínio ilipino, nela subindo rapidamente e alcançando, já no reinado de D. João IV, alguns dos mais destacados lugares do funcionalismo régio. Tendo sido colegial do Colégio de São Pedro da Universidade de Coimbra e por esta licenciado, o doutor Paulo de Carvalho – como tantas vezes surge referido – habilitara-se em 1630 para servir nos importantes lugares de letras 29. “ circunstância de ser ilho do desembargador Sebastião de Carvalho – então deputado da Mesa da Consciência e Ordens e cuja carreira haveria de culminar no Desembargo do Paço 30 – e a “boa informação que tenho das letras e mais partes do Licenciado Paulo de Carvalho (...) e que no de que o encarregar me servirá como cumpre a meu serviço e boa administração pública e ter lido na mesa do desembargo do paço e ser nela aprovado”, levaram a que, logo por carta de 4 de Junho daquele ano, fosse nomeado para o cargo de desembargador extravagante da Relação e Casa do Porto 31. E a 29 de Agosto de 1633, havendo Filipe III de Portugal “respeito aos serviços do Doutor Paulo Carvalho, do meu desembargo, desembargador da Relação e Casa do porto, que me tem feito no dito cargo, e mais causas de que foi encarregado em que serviu bem e pela coniança que tenho de suas letras e

28

AZEVEDO, Pedro de, “Os antepassados do Marquês de Pombal”, in Archivo Historico Portuguez, volume 3, pp. 321-353.

29

Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Leitura de Bacharéis, Paulo de Carvalho, maço 5, n.º 24.

30

Em 1607, Sebastião de Carvalho desempenhava o cargo de desembargador extravagante da Relação do Porto. Cerca de dez anos mais tarde, já o encontramos no lugar de desembargador da Casa da Suplicação com exercício de corregedor do Cível da Corte. Sendo depois deputado da Mesa da Consciência e Ordens, seria promovido a desembargador do Paço por carta de 14 de Outubro de 1634: (...) havendo Respeito à qualidade, letras e mais partes que concorrem na pessoa do Doutor Sebastião de Carvalho, deputado da mesa da consciência e ordens, e a inteireza e particular satisfação com que tem servido nos cargos e causas de que foi encarregado, e por folgar de lhe fazer mercê, tendo por certo dele que ma saberá sempre haver(?) e merecer procedendo em tudo o de que o mandar e encarregar com o bom modo com que até agora o fez (...)”; à data em que faleceu, sabe-se que era também deputado do Fisco. AZEVEDO, “op. cit.”, in loc. cit., volume 3, pp. 321-353. AMARAL, Luís, Livros das Portarias do Reino, s.l.: Guarda-Mor, 2010, livro 1, pp. 31-32. Torre do Tombo, Chancelaria Régia, D. Filipe III, livro 18, l. 78; livro 25, ls. 4v e 25; e livro 29, ls. 246v-247. Desembargo do Paço, Leitura de ”acharéis, Paulo de Carvalho, maço 5, n.º 24. Registos Notariais, 3.º Cartório, cx. 54, livro 191, ls. 54-58v. Registos Paroquiais, Lisboa, Mercês, óbitos, livro 1, l. ?.

31

Torre do Tombo, Chancelaria Régia, D. Filipe III, livro 25, l. 105.

23

Inteireza e que assim o fará daqui por diante e em tudo o mais de que o encarregar”, foi o magistrado promovido a desembargador da Casa da Suplicação 32. É interessante notar que, no quadro da sua relação com as instâncias judiciais da Coroa, a Casa de Bragança – para fazer valer os respectivos interesses e prerrogativas na gestão dos pleitos e demandas em que intervinha – não deixava de recorrer a uma comunicação directa com as principais iguras políticas da governação e do mundo judicial. Exemplo dessa intervenção e pressão pessoal por parte do duque D. João II, futuro rei D. João IV, ocorreu em 1634. Consta então que “uma carta ducal dirigida ao desembargador da Corte e Casa da Suplicação, Paulo de Carvalho, acentuava a importância de uma devassa já solicitada sobre dívidas relativas à cobrança das rendas dos reguengos de Sacavém. Este vultuoso direito de cobrança brigantino sofrera contestação, razão pela qual o duque pedia expressamente rigor na inquirição a im de dissuadir comportamentos semelhantes no futuro. O mesmo desembargador respondeu mais tarde dando notícia dos desenvolvimentos subsequentes ao pedido ducal dizendo «mais por obedecer a V. Exa. que pellas ordens que se me deram no desembarguo do Paço vim a este lugar de Sacavem aonde estou ha muitos dias para que neles se cobrem as dividas com mais quietação»” 33. Este bom relacionamento de Paulo de Carvalho com o duque de Bragança, ainda quando o país se encontrava sob o poder dos Filipes, terá permitido ao magistrado granjear a coniança do futuro monarca e por isso não se estranha que aquele, em data exacta que não foi possível apurar mas à roda de 1647, já com D. João IV no trono, tenha sido designado para o importante ofício de provedor da Alfândega de Lisboa, de que o mesmo soberano, a 21 de Maio de 1650, lhe faria mercê para o exercitar por mais três anos 34. E provavelmente terá sido ainda durante o reinado do Restaurador que Paulo de Carvalho logrou ser nomeado membro do Conselho de Sua Majestade e desembargador do Paço, cargos que exibia à data da sua morte 35. Também nos últimos tempos da sua existência, já

32

Torre do Tombo, Chancelaria Régia, D. Filipe III, livro 32, l. 103.

33

CUNHA, Mafalda Soares da, A Casa de Bragança 1560‑1640: práticas senhoriais e redes cliente‑ lares, [Lisboa]: Editorial Estampa, 2000, pp. 298-299.

34

Torre do Tombo, Chancelaria Régia, D. João IV, livro 15, l. 285.

35

Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, livro 54, n.º 12, ls. 19-22v.

24

em 1659, ocupara ainda um lugar de vereador da Câmara de Lisboa, registando-se uma curta passagem pela respectiva presidência no ano seguinte 36. Não se sabe ao certo como adquirira Paulo de Carvalho a sua quinta em Alcântara. Pelo excerto acima citado do seu testamento, ica a ideia de que a mesma tivera mais do que uma proveniência: havia um quintal que pagava foro a Luís César, cuja quinta e mais propriedades icavam nas imediações, um pouco adiante do mosteiro das Flamengas e abaixo de Santo Amaro (e nas quais haveriam de suceder os condes de Sabugosa, depois marqueses do mesmo título e condes de São Lourenço, descendentes daquele); outro quintalinho fora comprado a certo alfaiate; uma terra junto à tapada real pagava o quarto a Sua Majestade, a quem Paulo de Carvalho parece ter doado uma outra terra, de grandes dimensões, junto a um pombal; e nela existiam umas casas forras e isentas, cuja construção tanto pode ter sido feita de raiz a mando de Paulo de Carvalho como pode ter resultado do aproveitamento de algum edifício pré-existente. Luz Soriano chegou a airmar que o desembargador fez (…) quase todas as casas e quinta de Alcântara” 37. Esta compreendia ainda uma parte de cima, indubitavelmente adquirida pelo magistrado na vigência do seu matrimónio com D. Maria Pereira de Sande e que constituía um prazo por ele nomeado na consorte em segunda vida. Num conjunto de cadernetas contendo a descrição de “Maços Vários (vindos do Ministério do Reino para o Arquivo da Torre do Tombo em 20 de Maio de 1884 encontra-se, numa delas, a seguinte referência: “Alcântara (Quinta de). Títulos desta quinta que foi do Doutor Paulo de Carvalho. Foi nela que morreu o príncipe D. Teodósio. Século 17.º”. Teria esta documentação o maior interesse para se conhecer a origem da propriedade e eventualmente até para se conirmar a hipótese de nela ter falecido o primogénito de D. João IV. Infelizmente, porém, a mesma não consta do maço onde deveria estar arquivada e, apesar dos esforços efectuados com o apoio dos serviços da Torre do Tombo, não foi possível descobrir o seu paradeiro 38. 36

A evolução municipal de Lisboa: pelouros e vereações, [Lisboa]: Câmara Municipal de Lisboa, [1996], p. 78.

37

SORIANO, Simão José da Luz, Historia do reinado de El‑Rei D. José e da administração do Marquês de Pombal, Lisboa: Typographia Universal, 1867, volume 2, p. 205.

38

A cota indicada para esta documentação é o maço 643, n.º 4 do Ministério do Reino. Neste maço, contudo, apenas se encontram três macetes contendo documentos respeitantes à Casa de Aveiro (documentos vários), às Casas de Valença e Caparica (documentos sobre a sucessão na Casa de ”asto) e à Casa de Lafões (documentos sobre a sucessão da ilha da duquesa de Lafões), correspondendo estes, de acordo com as citadas cadernetas, ao dito maço 643, n.os 1, 2 e 3. Ou seja, existe uma correspondência entre estas cotas e os conteúdos daquele maço,

25

O olisipógrafo Vieira da Silva publicou um desenho que lhe pertencia, anónimo e não datado mas que ele considerou ser do princípio do século XVII, onde podemos observar como era o lugar de Alcântara nesta época 39. Atravessando a ponte para poente, desembocava a mesma junto a uma artéria depois apelidada de rua Direita, já então acompanhada no seu primeiro lanço de casario de um e outro lado; prosseguindo pela mesma via, chegava-se ao largo do convento do Calvário, a norte do qual se situava o palácio e quinta de el-rei, cujos jardins se prolongavam para montante, até à zona da tapada, servida por uma outra larga artéria que descia na diagonal até à referida rua Direita. Ora, precisamente a meio desta existia para cima uma travessa também ladeada de construções, formando à esquerda um pequeno quarteirão inteiramente perilado de edifícios e, à direita, um outro espaço maior só parcialmente ocupado por construções, rodeado a norte e nascente por aquilo que parece ser um muro. No topo do dito quarteirão e em direcção ao referido espaço semi-urbanizado, existia, na oblíqua, uma pequena travessa que poderá ser aquela que mais tarde se denominou de rua do Príncipe [Figura 4]. Parece tratar-se esta zona de conluência, com forte probabilidade, aquela onde Paulo de Carvalho possuiu a sua quinta. E não espantaria que possa ter sido desse mesmo local elevado e sobranceiro à ribeira e à ponte que, umas décadas antes, o duque de Alba comandou as suas tropas ou que daí partissem as tristemente vitoriosas divisões de Sancho de Ávila e D. Fernando de Toledo. com excepção do macete n.º 4, referente à quinta de Alcântara, que efectivamente está em falta. Note-se, todavia, que, no recente inventário da documentação do Ministério do Reino, o dito maço 643, juntamente com o 642, encontra-se descrito como “Documentos relativos a várias casas senhoriais”, datados do século XVIII, o que bate certo com aqueles três macetes mas não corresponde ao suposto conteúdo do macete n.º 4, pois a quinta de Alcântara não se inseria em qualquer casa senhorial e os respectivos documentos datam alegadamente do século XVII (e veriicado o maço 642, este contém efectivamente documentação do século XVIII respeitante a casas senhoriais, estando por isso em consonância com o inventário). Deste modo, parece-me que ou os ditos documentos da quinta de Alcântara já se encontravam em falta no maço 643 quando o inventário foi elaborado ou, pelo facto dos mesmos não se enquadrarem na restante documentação desse maço e do anterior – documentos do século XVIII respeitantes a casas senhoriais – podem ter sido transferidos para um outro maço, cuja cota é agora desconhecida. Nesta perspectiva, mas infelizmente sem sucesso, ainda consultei o maço 634, que se encontra inserido numa colecção de documentos vários (“Minutas, cópias de decretos, avisos e outros documentos”), cujo âmbito cronológico se estende entre os séculos XVI e XVIII. Cfr. TREMOCEIRO, Paulo; JORGE, Teresa Revés, Secretaria de Estado dos Negócios do Reino. Ministério do Reino. Inventário, Lisboa: Instituto dos “rquivos Nacionais / Torre do Tombo, 1999, pp. 66 e 92. “gradeço o apoio que me dispensaram neste assunto Odete Martins e Paulo Tremoceiro, técnicos superiores do arquivo nacional. 39

26

SILVA, A Ponte…. FREITAS, op. cit., publicou outra vista parcial deste mesmo desenho, mas datou-o de 1679-1727.

Desde quando Paulo de Carvalho teria a quinta de Alcântara não se sabe ao certo, embora seja lícito acreditar que a adquiriu e (re)construiu após 1640, dada a assinalada relação do novo monarca e sua família com o vizinho paço de “lcântara. “o certo, veriicamos que o magistrado não izera qualquer referência a essa propriedade no contrato de dote que a 23 de Outubro de 1631, nas notas do tabelião de Lisboa Mateus Ferreira da Costa, celebrara com Manuel de Sande Pereira, seu futuro sogro, na ocasião representado por um irmão, frei Jorge de Sande, religioso agostinho residente na capital, no cenóbio da respectiva Ordem. Mas se esta omissão indicia que Paulo de Carvalho não detinha aquela quinta em tal data, contudo não o permite airmar categoricamente 40. É conhecida, por outro lado, a mercê que a 10 de Maio de 1647 D. João IV fez ao desembargador, dando-lhe a administração dos bens de capela que trazia usurpados à Coroa o abade Jácome Ruão e que aquele tinha denunciado 41; se bem que os termos em que Paulo de Carvalho se referiu no seu testamento à quinta de Alcântara não apontem para qualquer relação com os bens da citada capela, somente o exacto conhecimento destes poderá afastar deinitivamente essa hipótese. O desembargador resistiu apenas quatro dias à feitura do seu citado testamento, pois faleceu a 7 de Fevereiro de 1663 42. A terem sido cumpridas as suas disposições, vestiram-lhe o hábito de São Francisco e por cima deste, o de Cristo (recebera a 31 de Julho de 1640 uma pensão de quarenta mil réis para professar na mesma Ordem 43). Levaria igualmente as “mais insígnias com que costumam enterrar-se” e o seu corpo terá sido conduzido na tumba da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, de que era irmão. A acompanhar o préstito que, pela rua Formosa abaixo, seguiu até à igreja das Mercês, onde se sepultou, terão estado as Ordens de São Francisco da Cidade, de Nossa Senhora de Jesus, do Carmo e da Trindade; um grupinho de meninos órfãos e doze clérigos para além dos da freguesia completavam o fúnebre cortejo, alumiado por treze pobres com suas 40

Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, 3.º Cartório, cx. 54, livro 191, ls. 54-58v. Para além das propriedades situadas na rua Formosa, foram mencionadas neste instrumento mais as seguintes, então pertencentes a Paulo de Carvalho: uma herdade no termo de Santarém, no campo de Valada, chamada de Santa “na(?), que rendia 9 moios, metade de trigo, metade de cevada, fora suas pitanças , foreira ao mosteiro de Chelas(?); mais três moradas de casas juntas e místicas em Lisboa, na rua das Moedas(?), junto do poço da esperança , forras e isentas; e um pomar na vila de Povos, foreiro ao mesmo mosteiro de Chelas(?).

41

Torre do Tombo, Corpo Cronológico, parte 2.ª, maço 373, n.º 188.

42

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, Mercês, óbitos, livro 1, l. 133v.

43

AMARAL, op. cit., livro 1, pp. 31-32.

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tochas. Enim, não seguia (…) mais pompa porque esta é a que basta por não ser mais da necessária nem menos da que se costuma”! Vinte e um anos sobreviveu D. Maria Pereira de Sande a seu marido! Todavia, quando a 30 de Novembro de 1684 o seu corpo foi a sepultar na mesma igreja das Mercês onde repousavam os restos mortais de Paulo de Carvalho, já o seu testamento há muito que fora lavrado! Redigira-o, com efeito, a 14 de Março de 1663, logo no mês seguinte à morte daquele 44. Talvez por esta razão não se referiu a testadora à quinta de “lcântara: a determinação do marido em proceder-se à sua venda diicilmente estaria cumprida em tão curto tempo, mas achava-se bem presente no espírito dos familiares mais chegados. O que acontecera então à propriedade depois da morte de Paulo de Carvalho? Ora, a verdade é que a vontade expressa por este não foi cumprida nas décadas seguintes, mantendo-se a quinta de Alcântara na sua família – presumivelmente na posse de Sebastião de Carvalho e Melo, sobrinho de Paulo, a quem a viúva deste instituíra como universal herdeiro. Ignoram-se os exactos motivos da não alienação, embora a circunstância da família real ter continuado a fazer um uso regular do vizinho paço de Alcântara possa ser uma explicação, pois a proximidade à corte constituía um meio natural e indispensável à manutenção do favor régio por parte dos familiares de Paulo de Carvalho. No palácio real de “lcântara se recolhera em 1666, por exemplo, a rainha D. Maria Francisca de Sabóia, acompanhada da sua camareira e demais senhoras, que ali cearam com assistência dos membros da respectiva casa privada depois da soberana, juntamente com o rei D. “fonso VI, ter recebido do bispo de Targa as bênçãos nupciais, em cerimónia realizada no quase contíguo convento das Flamengas. Dona Maria Francisca, aliás, habitou esse régio edifício, de onde saiu com o seu séquito, a 29 de Agosto daquele ano, para entrar solenemente na capital e no paço da Ribeira 45. São conhecidos os insólitos acontecimentos que se sucederam, desde a anulação deste matrimónio ao subsequente consórcio de D. Maria Francisca de Sabóia, a 28 de Março de 1668, com o cunhado, futuro rei D. Pedro II. Alcântara seria uma vez mais o palco das bênçãos conferidas ao novo casal, solenidade que decorreu de forma sóbria, apenas com a assistência dos gentis-homens da câmara do príncipe 46. Mas foi precisamente D. Pedro II 44

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, Mercês, óbitos, livro 1, l. 206v. Registo Geral de Testamentos, livro 44, n.º 63, ls. 80-83v.

45

LOURENÇO, Maria Paula Marçal, D. Pedro II, s.l.: Círculo de Leitores, [2007], pp. 89-91 e 140.

46

IDEM, Ibidem, p. 139.

28

quem fez do paço de Alcântara um lugar de particular afeição. Conta-nos a sua biógrafa que 47 (…) a grande paixão de D. Pedro era, de facto, o cavalgar e o tourear. Não se contentava com a lide a cavalo e, muitas vezes, pegava o touro a pé, tanto numa praça a este im vocacionada no palácio da Ribeira, como, em especial, no paço de Alcântara, palácio da sua predilecção, onde era protegido por uma «companhia» que ia em seu socorro, caso fosse necessário. (…) E quando a consorte régia se apercebia de que os exercícios de tauromaquia continuavam no Paço de Alcântara, não se inibia de percorrer as ruas de Lisboa de carroça até este palácio, «proibindo» o seu marido de continuar com tão perigosos divertimentos. Pelos relatos da época, D. Pedro respeitava a vontade da soberana, tanto mais que, chegando esta a Alcântara, de imediato as guerreadas e as touradas terminavam”.

Um memorialista coevo assinalou, de facto, o particular gosto que D. Pedro II tinha em tourear no paço de “lcântara, airmando que Il se plaît néanmoins plus à Alcantara, Maison de plaisance tant soit peu éloignée de la Ville. C’est-là qu’il se divertit souvent à son éxercice favori, qui est de courre à cheval avec la lance le taureau, faisant cela avec une adresse & une conduite merveilleuse. Il ne se contente point d’en user ainsi à cheval contre un animal si fougueux; il l’attaque solvente à pied (…) 48. Depois do segundo casamento do monarca com D. Maria Soia de Neuburgo, em 1687, o régio casal continuou a frequentar o nobre edifício, onde a 20 de Janeiro de 1693 se acolheu D. Catarina de Bragança, viúva de Carlos II de Inglaterra, que em cortejo para ele se dirigiu vinda do Lumiar, onde a fora esperar D. Pedro II, seu irmão 49. No ano imediatamente anterior a este acontecimento, a quinta de Alcântara surge mencionada no mais antigo rol de confessados da freguesia da Ajuda – datado precisamente de 1692 – com a denominação de quinta de Paulo de Carvalho. É curioso notar, aliás, que a referência ao antigo desembargador, falecido quase trinta anos antes, perdurava não apenas em relação à própria quinta, mas igualmente à travessa que a ela ligava, então indicada como travessa de Paulo de Carvalho 50. Por esta altura nela foram residindo algumas pessoas cuja identi47

IDEM, Ibidem, p. 126.

48

Relation de la Cour de Portugal Sous D. Pedre II a present regnant. Avec des Remarques sur les Intérêts de cette Couronne par rapport aux autres Souverains; & l’Histoire des plus considerables Traitez, qu’elle ait faits avec eux, traduite de l’“nglais, Tome Premier, “mesterdão: Thomas Lombrail Marchand Libraire, das les Beurs – Straat, 1702, tomo 1, pp. 9-10.

49

FREIRE (MÁRIO), op. cit., pp. 117-122, 128 e 134-135. MESQUITA, Alfredo, Lisboa, Lisboa: Emp. da História de Portugal, 1903, pp. 358-359.

50

”iblioteca da “juda, Róis de Confessados da Paróquia da “juda, 51-III-1, ls. 37-38v.

29

dade não permite estabelecer à partida qualquer ligação aos seus proprietários (sem prejuízo de estes provavelmente a ela se deslocarem ou de nela passarem temporadas) ou sequer perceber ao certo quem seriam; tratavam-se, porventura, de simples rendeiros ou caseiros que talvez se limitassem a ocupar algumas dependências. Já em 1696, sob a designação de casas e quinta de Sebastião de Carvalho, vemos que as mesmas serviam de residência à família do conde dos Arcos. Para além de D. Marcos de Noronha – o quarto na sucessão deste título – ali viviam D. Maria de Távora, sua mulher, e os ilhos D. Tomás, D. Luís, D. “fonso e D. José – aqueles que à época teriam mais de sete anos e que deviam por isso fazer a desobriga quaresmal. Várias criadas, ama, escudeiro, copeiro, cozinheiro, diversos outros serviçais e alguns escravos partilhavam a residência com os seus senhores, num agregado que icava completo com a presença do padre Tomás de Aragão, capelão da casa, o que sugere que na mesma já existiria capela ou oratório destinado à oração familiar 51. Não se sabe se D. Marcos de Noronha vivia na quinta de Alcântara a título de comodato ou de arrendamento, mas o certo é que aqui se manteve pelo menos até à quaresma de 1697, ocasião em que a propriedade chegou a ser mencionada como casa do conde dos Arcos 52. Sebastião de Carvalho, ou de Carvalho e Melo como habitualmente era designado, ostentaria já, nesse ano de 1697, o importante foro de idalgo cavaleiro da Casa Real, granjeando assim este distintivo patamar na trajectória de ascensão social que a sua família vinha trilhando há várias gerações 53. Mas ao contrário dos seus antecessores mais imediatos, o novo detentor da quinta de Alcântara não seguira qualquer carreira na magistratura, optando antes por servir no exército. Nascido à roda de 1618, Sebastião estudara como porcionista no Colégio das Ordens Militares, na Universidade de Coimbra, e fora depois capitão de infantaria e de cavalos das ordenanças dos familiares da cidade de Lisboa, posto este que alcançara por decreto de 5 de Maio de 1676 54. Entretanto, em 1669, Sebastião de Carvalho e Melo lograra obter carta de familiar do Santo Ofício 55 e, vinte anos mais tarde, em remuneração não apenas dos seus serviços militares, mas sobretudo dos prestados pelo seu avô paterno ao longo de trinta 51

Ibidem, 51-III-2, ls. 58v-59.

52

Ibidem, ls. 88v-89.

53

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, O Marquês de Pombal: o homem, o diplomata e o estadista, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1987, p. 14.

54

Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Decretos, maço 35, n.os 11 e 34; maço 37, n.º 10.

55

Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Habilitações, Sebastião de Carvalho e Melo, maço 3, n.º 71.

30

e cinco anos de percurso judicial, obteve de D. Pedro II um decreto que lhe concedeu uma pensão anual de 60 mil réis, dos quais 12$000 a título do hábito da Ordem de Cristo, em que professou depois de dispensado por ser então idalgo já velho e maior de cinquenta anos 56. No início de 1698, logo a 15 de Janeiro, assistiu Sebastião de Carvalho e Melo ao matrimónio do seu ilho mais velho e presuntivo sucessor. Na referida data, com efeito, Manuel de Carvalho e Ataíde consorciou-se com D. Teresa Luísa Rosa de Mendonça, em cerimónia realizada na paróquia dos Olivais, no termo de Lisboa, onde a família da noiva possuía importante morgado. É admissível que na escritura de dote que presumivelmente antecedeu o casamento Sebastião de Carvalho e Melo tenha dotado a quinta de “lcântara naquele ilho 57, pois sabe-se que Manuel de Carvalho e “taíde icou a residir nesta propriedade logo após o matrimónio. Quem o airmou foi seu irmão Paulo, alguns anos mais tarde, a respeito dos bens remanescentes que tinham icado dos pais de ambos: «Os Moveis da Caza se deraõ em gr.e p.e a meo Irmaõ quando cazou e se separou e foi viver a Alcantara na nossa quinta de q hoje está de posse Joseph Fiuza, e depois indo por Capitaõ de Cavallos p.ª Alemtejo se lhe deu quazi tudo q restava, e foi com toda a sua caza para Castello devide onde rezidia quando os Castelhanos tomaraõ esta praça e perdeo nella tudo o que tinha e ultimam.e querendo ir viver a Beira levou o q restava, e meos Paes vieraõ p.ª minha comp.ª, e lhe deraõ liberd.e p.ª levar o q havia em caza e só algu˜ as coizas q nas jornadas referidas naõ tiveraõ fácil conduçaõ icaraõ nella (…) 58.

Se bem que a presença de Manuel de Carvalho e “taíde e de D. Teresa Luísa de Mendonça na quinta de Alcântara já tivesse sido noticiada por João Paulo Freire e Norberto de Araújo 59, foi Francisco Santana quem, com arguta investigação, alvitrou a possibilidade de na referida residência ter nascido, a 13 de Maio de 1699, o primogénito daquele casal, Sebastião José de Carvalho e Melo, destacado estadista do reinado joseino que alcançaria os nobiliárquicos títulos de 56

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. Pedro II, livro 14, ls. 220-220v. Ordem de Cristo, Habilitações, Sebastião de Carvalho, maço 6, n.º 30.

57

Cfr. Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, Cartório do Distribuidor, cx. 17, livro 71, onde não se encontrou qualquer referência a tal escritura nesse mês de Janeiro de 1698. É possível que a mesma tenha sido celebrada ainda no ano anterior, para o qual, porém, não existe livro daquele Cartório.

58

“pud S“NT“N“, Francisco, Onde nasceu Sebastião José? , in Anais, Lisboa: “cademia Portuguesa da História, 1989, 2.ª série, volume 32, tomo 2, p. 14.

59

FREIRE (MÁRIO), op. cit., p. 99. ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, 2.ª edição, s.l.: Vega, 1993, livro 9, p. 28.

31

conde de Oeiras e marquês de Pombal 60 [Figura 5]. Recordando que o primeiro documento que a ele se refere é o registo do baptismo que lhe foi administrado a 6 de Junho seguinte na sede da paróquia das Mercês, Francisco Santana evidenciou que no mesmo não se indica o respectivo local de nascimento, não por qualquer excepcional omissão, mas por ser prática corrente nos demais assentos a ausência desse tipo de referência, sem prejuízo de se encontrar afastada a hipótese de Sebastião José ter vindo ao mundo fora de Lisboa, mormente em Soure, como chegou a ser aventado por alguns. Deste modo, a generalidade dos historiadores tem acolhido como facto assente que Pombal nasceu em Lisboa e que, com grande verosimilhança, isso ocorreu na paróquia do baptismo, no solar da rua Formosa onde a família residia. A questão que Francisco Santana colocou foi, por conseguinte, a de saber se os progenitores de Sebastião José aí viviam sempre ou até mesmo com grande regularidade 61. Para alcançar uma resposta, partiu aquele investigador do excerto acima transcrito, registando que a permanência dos pais do estadista na quinta em Alcântara terá sido curta: para ela foram quando casaram, ou seja, depois de 16 de Janeiro de 1698, data do consórcio, e nela já não se encontravam quando Manuel de Carvalho e Ataíde passou para Castelo de Vide – o que ocorreu em data indeterminada, sabendo-se no entanto que aquele varão já estava nesta praça quando a mesma foi tomada pelos espanhóis a 26 de Junho de 1704. Francisco Santana aventou, por isso, a hipótese de a ida para o Alentejo ter acontecido em Setembro de 1703, pois neste mês Manuel de Carvalho e Ataíde obteve licença para ir a Lisboa buscar a sua casa, o que aliás é totalmente conciliável com o facto de um outro ilho do casal ter sido baptizado naquela vila alentejana a 5 do referido mês de Junho de 1704, supondo-se que a mãe não faria tão longa, incómoda e perigosa viagem em estado de consciente e avançada gravidez 62. Prosseguindo a sua pesquisa, Francisco Santana assinalou a presença de Manuel de Carvalho e Ataíde ou de sua mulher em casamentos ou baptismos celebrados a 5 de Janeiro e 13 de Novembro de 1699 e a 31 de Janeiro de 1700 na paróquia da Ajuda – a cuja circunscrição então pertencia o sítio de Alcântara –, 60

S“NT“N“, Onde nasceu… , in loc. cit., pp. 9-17. Já antes, Francisco Santana, em artigo mais abrangente, se debruçara sobre esta questão. Cfr. SANTANA, Francisco, “A Lisboa de Pombal”, Lisboa. Revista Municipal, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 3.º trimestre de 1985, 2.ª série, n.º 13, pp. 3-20.

61

S“NT“N“, Onde nasceu… , in loc. cit., pp. 11-12.

62

IDEM, “Ibidem”, in loc. cit., p. 15. GALVAO-TELLES, João Bernardo, Geração Pombalina. Descendên‑ cia de Sebastião José de Carvalho e Melo (Livro Primeiro), Lisboa: Dislivro Histórica, 2007, p. 17.

32

veriicando também que na quaresma deste último ano a família se encontrava precisamente na propriedade que aí possuía, então designada como quinta do capitão Manuel de Carvalho, que nela residia com D. Teresa Luísa de Mendonça, sua mulher, e vários serviçais 63. É provável que na segunda metade de 1700 ou inícios de 1701 a família tenha regressado à rua Formosa, onde efectivamente já se encontrava na desobriga quaresmal deste ano e nas subsequentes de 1702 e 1703, partindo depois para Castelo de Vide, como vimos. Poderá então concluir-se que entre Janeiro de 1698, após o casamento, e até à quaresma de 1700, Manuel de Carvalho e Ataíde e sua mulher viveram na referida propriedade situada nas proximidades de Lisboa. Tendo Sebastião José de Carvalho e Melo vindo ao mundo no decurso deste tempo, a 13 de Maio de 1699, é pois legítimo perguntar se “terá nascido na casa de Alcântara e, até porque primogénito, terá ido a baptizar na igreja cujo padroado pertencia à família? É muito provável. Se é ou não certo, esperemos que algum inesperado documento possa um dia vir a decidi-lo” 64! Em suma, como referiu Francisco Santana, o nascimento de Pombal na quinta da sua família em Alcântara não é “um facto indisputavelmente comprovado mas, simplesmente, uma hipótese, ainda que de muito apreciável probabilidade” 65. É deste período aquela que julgo ser a imagem mais antiga da propriedade. Trata-se da representação da quinta de Alcântara na grande vista de Lisboa, o ilustrativo painel de azulejos da autoria de Gabriel del ”arco, datável de 1700, proveniente do palácio dos condes de Tentúgal e hoje à guarda do Museu Nacional do Azulejo 66. Nele se observa, a nascente da tapada da Ajuda – que surge toda murada, a montante do paço real de Alcântara – e acima da enseada que se formava na foz da ribeira, o destacado edifício que então ainda pertencia aos Carvalhos. Assente num pequeno cômoro sobranceiro ao casario de que se compunha o lugar de Alcântara, a quinta apresenta um corpo distendido no sentido este-oeste, cuja fachada exibe uma fenestração ritmada ao nível do primeiro piso (possíveis janelas de sacada, ainda hoje existentes), vendo-se na extremidade direita o que parece ser a frente de uma capela (recorde-se o que 63

S“NT“N“, Onde nasceu… , in loc. cit., p. 16. Cfr. Biblioteca da Ajuda, Róis de Confessados da Paróquia da “juda, 51-III-3, l. 27v.

64

S“NT“N“, Onde nasceu… , in loc. cit., p. 17.

65

IDEM, “Ibidem”, in loc. cit., p. 11.

66

Lisbonne avant le Tremblement de terre. Le panneu (1700‑1725) du musée de l’Azulejo, s.l.: Chandeigne, [2004].

33

acima foi dito a respeito do conde dos Arcos ter ao seu serviço um capelão, uns anos antes quando aqui residia); do lado esquerdo da construção, um estreito torreão poderá constituir a empena do corpo lateral do edifício, disposto no sentido sul-norte e, portanto, transversal àquele outro [Figura 6].

34

9 de Dezembro de 1706 Terminou neste dia a existência terrena de D. Pedro II, “homem de magestoza personagem fermozo rosto ainda que a cor trig[u]eira cabellos da cabeça negros estirados a cara comprida mas cheya de carne os cabellos da barba tambem negros, os olhos pardos” 67 [Figura 7]. Revelou Maria Paula Marçal Lourenço que já durante a doença, no ano anterior, o monarca havia mudado a sua residência para “lcântara, a conselho dos médicos. Tendo melhorado, ainda que sem icar plenamente restabelecido, o rei voltara a praticar algumas das suas actividades preferidas, designadamente montar a cavalo e caçar. Mas a 4 de Dezembro de 1706, caíra de novo gravemente doente. Regressando à quinta de Alcântara, vindo da picaria onde estivera a caçar, sobreviera a D. Pedro II um achaque e os dias imediatos passaram-se em crescente agonia e preparação para a morte. Advinda esta, o corpo do soberano foi submetido a autópsia e embalsamento, como era costume fazer-se aos reis, celebrando-se de seguida os competentes rituais e demais ofícios litúrgicos. E na noite de 11 – ainda de acordo com a referida biógrafa –, depois do príncipe D. João e dos infantes seus irmãos terem, horas antes, aspergido água benta nos restos mortais do pai, o enterro de D. Pedro II seguiu do paço de Alcântara para a igreja do mosteiro de São Vicente 68. Maria ”eatriz Nizza da Silva, que escreveu sobre o monarca seguinte, airmou, por seu lado, que “no início de Dezembro de 1706, D. Pedro II encontrava-se na sua quinta de Alcântara, mas como se tinham arruinado umas paredes do palácio e era preciso proceder a alguns consertos naquela residência, o rei mudou-se para uma outra quinta na mesma localidade que pertencia a Paulo de Carvalho” 69 (ou melhor, que pertencera a Paulo de Carvalho já que este, como acima se disse, faleceu em 1663), não sendo nítido perceber se, em algum momento ulterior e até à sua morte no dia 9, o rei teria ou não regressado ao seu vizinho palácio. Já antes Júlio de Castilho, na sua Ribeira de Lisboa, apresen67

FARIA, António Machado de, “Memórias Históricas de Lisboa – 1680 a 1716”, in Lisboa e seu termo. Estudos e documentos, Lisboa: “ssociação dos “rqueólogos Portugueses, 1947-1948, volume 2, p. 60.

68

LOURENÇO, op. cit., pp. 285-291.

69

SILVA, Maria Beatriz Nizza da, D. João V, s.l.: Círculo de Leitores, [2006], p. 20.

35

tara uma versão aproximada dos acontecimentos, explicitando porém que o rei retornara entretanto ao seu paço 70: (…) e talvez também por causa de obras empreendidas no paço de “lcântara, vemos El-Rei D. Pedro sair daí e mudar-se, no outono de 1706, para o grande palácio muito próximo, que tinha pertencido a Sebastião de Carvalho, e era então do Desembargador José Fiuza Correia. (…) “inda em 5 de Dezembro de 1706 saiu El-Rei da quinta do Fiuza, e foi à de Alcântara assistir na tribuna aos Ofícios Divinos, e ouvir um sermão. Jantou aí, e aí caiu mortalmente ferido do seu último ataque de fígado, que, sobre outras enfermidades, o derrubou à 1 hora da tarde de 9 de Dezembro”.

João Paulo Freire seguiu a mesma ordem de ideias, airmando que D. Pedro havia ido dias antes [de morrer] para o Palácio do Fiúza, que lhe icava próximo, mudando-se logo para o Calvário, onde icou e que, depois da sua morte, se celebraram diversos ofícios fúnebres no paço real, de onde, quatro dias volvidos, partiu o corpo para ser sepultado em São Vicente de Fora 71. Pelo meio, outros autores airmaram peremptoriamente que o óbito do rei se dera no paço real de Alcântara, como Alfredo Mesquita, que recordou ter sido esta a casa de campo predilecta de D. Pedro II, onde o monarca residira por diversas vezes até que, indo convalescer de grave doença, nela faleceu em 1706 72. Ora, em face do exposto parece subsistir não só alguma discrepância quanto ao exacto local do falecimento daquele soberano, como também em relação ao proprietário da vizinha quinta onde D. Pedro II se recolheu durante a doença e eventualmente morreu: seria nessa ocasião ainda pertencente a Sebastião de Carvalho e Melo ou já teria sido adquirida por José Fiúza Correia? Uma antiga memória manuscrita, intitulada Ultima doença e morte de El Rey D. Pedro 2.º, actualmente depositada na Biblioteca Nacional de Portugal, revelou que “na quinta de Alcântara adonde El-Rei se achava se arruinaram umas paredes [e] para aqueles consertos e para algumas obras mais foi preciso mudar-se El-Rei para a quinta que ica no lugar de “lcântara, antigamente de Paulo de Carvalho, e hoje do Desembargador José Fiúza Correia”. Entretanto, agravando-se num domingo, 5 de Dezembro de 1706, os sintomas da doença que vitimiza70

CASTILHO, Júlio de, A Ribeira de Lisboa. Descrição histórica da margem do Tejo desde a Madre de Deus até Santos‑o‑Velho, 2.ª edição (revista e ampliada pelo autor e com anotações de Luiz Pastor de Macedo), Lisboa: Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, 1942, volume 3, pp. 94-95.

71

FREIRE (MÁRIO), op. cit., pp. 138-141.

72

MESQUITA, op. cit., pp. 351 e 358.

36

ria aquele monarca, pareceu aos médicos, pelo estado de quebranto em que se achava, que o enfermo deveria comungar por viático. Feita então esta sugestão pelo confessor, o padre Sebastião de Magalhães, acedeu o rei “com ânimo pio e constante” a receber o santíssimo sacramento. Dirigindo-se aviso ao arcebispo D. João de Sousa para que, na forma costumada, prestasse o seu consentimento, este “duvidou, dizendo que El-Rei não estava no seu Palácio, porém, sem embargo da dúvida, executou o Capelão-Mor aquela função. Perguntando o Pároco Régio(?) aonde estava a Cúria, respondeu que aonde estava o Papa. Claro é que aonde assistia El-Rei era Palácio” 73. António Machado de Faria, sob a designação de Memórias Históricas de Lisboa – 1680 a 1716, trouxe a lume um outro códice manuscrito, também existente na Biblioteca Nacional de Portugal, maioritariamente lavrado no século XVIII com o sugestivo título de Memória de algumas couzas que sucederaõ, começando no anno de 1680 por diante assim das calamidades dos tempos, como das couzas do estado do reino, de que farei breve rellaçaõ conformandome com o breve da minha infelliz memoria, e somente valendome de algu˜ s quartos de papel em que tinha guardadas algumas destas couzas desde que sucederaõ athe oje 4.ª feira 7 de Novembro de 696 em que principiei a lançar estas couzas neste livro. Organizado por anos, o memorial desenrola-se desde 1680 até 1716, inclusive, sendo da autoria de certo Manuel de Almeida que, a partir do referido dia 7 de Novembro de 1696 e depois de compilados os acontecimentos ocorridos até esta data, terá prosseguido a sua escrita à medida que os próprios factos narrados se iam sucedendo. Não sendo dotadas de particular elegância na escrita, estas memórias, na opinião de Machado de Faria, parecem de coniança porque alguns factos aí descritos não discordam do que deles se conhece por fontes diversas; e, igualmente, porque o autor mostra vontade de acertar no que refere (…) . Ora, precisamente sobre o ano de 1705, escreveu Manuel de Almeida que 74 “Neste somente se dá noticia de huma grande doença que Sua Magestade que Deos guarde teve no principio de Janeiro e tão grave que no dia do Santissimo Nome de Jezu a noite lhe levaraõ o Santissimo por Viatico, e começaraõ logo de todos os mosteiros as procicoes com as imagens milagrozas em que hiaõ muitos penitentes, e se fasião em todas as igrejas e conventos preces quotidianas e esteve muito propinquo a mor[te] ou o tiveraõ por tal, porem ouvio Deos algua alma devota, e escapou, mas andou todo o anno doente, esteve curandosse nas cazas 73

Ultima doença e morte de El Rey D. Pedro 2.º…, manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Portugal, Códice 749, ls. 321-321v.

74

FARIA, “op. cit.”, in loc. cit., p. 57.

37

do conde de Vimiozo, e não se achava melhor, e se foi para “[l]cantara adonde esteve todo este verão, e todo o inverno curandosse, e ainda hoje 5 de Janeiro de 706 em que escrevo esta lembrança lá está, mas com saude que Deos lhe de por muitos annos”.

Prosseguindo a narrativa, informou o seu autor que 75 (…) neste dito anno de 706 sendo já em quinta feira 9 de Dezembro pelo meyo dia pouco mais ou menos, morreo el rei D. Pedro nosso senhor o segundo deste nome estando em Alcantara et com circunstancia que não faleceo nas suas cazas que tem no dito lugar senão em huas de Sebastião de Carvalho no dito lugar e advirto que depois da grande doença que teve quando veyo da campanha no anno de 704 foi para Alcantara para se curar, como se curou e convalleceu, e sempre la esteve, e lhe repetio hum estupor do qual acabou no dito dia”.

São, pois, os dois relatos unânimes em relação à circunstância de D. Pedro II não ter falecido no seu paço de Alcântara, mas sim numa vizinha quinta “antigamente de Paulo de Carvalho, e hoje do Desembargador José Fiúza Correia”, no dizer do primeiro, ou “de Sebastião de Carvalho”, no do segundo. Atentemos então de novo nos róis de confessados da paróquia da Ajuda, na tentativa de descortinarmos em que momento se terá operado a transmissão da propriedade. Em 1705 e 1706, encontramos referência à quinta de Sebastião de Carvalho, com alguns agregados estranhos à família a residirem nela, incluindo, no segundo dos mencionados anos, um Francisco Carvalho identiicado como caseiro. Diga-se também que em 1706 ainda a respectiva travessa surgiu designada com o nome de Paulo de Carvalho, o que se manteve no ano seguinte. Mas neste de 1707, porém, já a quinta foi mencionada como sendo de José Fiúza, nela continuando a residir o mesmo caseiro Francisco Carvalho. A fazer fé nestes documentos, por conseguinte, a aquisição da propriedade pelo desembargador José Fiúza Correia a Sebastião de Carvalho e Melo terá acontecido entre as quaresmas de 1706 e 1707. Se aquela segunda memória estiver correcta na airmação de que a quinta pertencia a este último à data em que nela faleceu D. Pedro II, então a transmissão terá de situar-se entre Dezembro de 1706 (depois do dia 9) e a quaresma do ano seguinte 76. 75

IDEM, “Ibidem”, in loc. cit., p. 60.

76

”iblioteca da “juda, Róis de Confessados da Paróquia da “juda, 51-III-4, ls. 33, 72-73 e 116-117v. Feita a pesquisa nos livros dos diversos notários de Lisboa disponíveis para o período em apreço – com excepção do cartório do tabelião José Caetano do Vale, cujos livros por se encontrarem em mau estado não vieram à leitura –, não foi localizada qualquer escritura de venda da quinta a José Fiúza Correia. Deverá ter-se presente, no entanto, que muitos dos cartórios então existentes desapareceram com o grande terramoto de 1755.

38

José Fiúza Correia teria cerca de cinquenta e sete anos quando comprou a quinta de Alcântara, pois o seu nascimento ocorrera a 30 de Janeiro de 1650 77. Viera ao mundo na longínqua cidade de Bragança, por razões circunstanciais, já que Lisboa fora o local que vira nascer seus pais e avós, com excepção do avô paterno, Manuel Fiúza, que era natural de Vila Nova da Cerveira, na também distante província do Minho 78. É plausível que este seu antecessor tenha partido para a capital do reino ainda rapaz, onde certamente conheceu Catarina Correia, com quem haveria de casar, e onde desempenhou o importante cargo de comissário ou tesoureiro da mesa das Bulas da Santa Cruzada – instituição que fora erigida em tribunal a partir de 1591 e à qual competia a administração de relevantes fundos destinados à “conservação e defesa das praças de África, nas armadas de guarda-costas, na guerra com os iniéis da Índia e nas missões das conquistas (…) 79. Diga-se também que este avô de José Fiúza Correia tivera em Lisboa um irmão, chamado João Fiúza, médico no hospital real e familiar do Santo Ofício 80. De Manuel Fiúza guardavam-se na memória alguns episódios, como aquele em que, já de avançada idade, empreendera uma jornada à sua longínqua terra natal, icando instalado em casa do padre Francisco Fernandes Fiúza, também seu irmão. Dessa estadia, falaria vários anos mais tarde o padre Domingos de Araújo – na ocasião ainda garoto –, recordando ter ido Manuel Fiúza “um dia jantar a casa dos pais dele (…), e se lembra que lhe deram lampreia e era um homem velho já branco e depois se voltou para a cidade de Lisboa” 81. “ im de fazer a viagem de regresso, comprara o avô de José Fiúza Correia, ao padre Domingos Pinto de Moreira, uma faca, nome que então se dava a um cavalo pequeno, leve, delgado e magro, características naturalmente propícias a percorrer tão longo e penoso trajecto. De novo em Lisboa, Manuel Fiúza ainda mantivera correspondência com o irmão sacerdote, de quem chegara a receber uma carta em que este lhe dava conta dos achaques de que pouco tempo depois viria a falecer.

77

Arquivo Distrital de Bragança, Registos Paroquiais, Bragança, São João Baptista, mistos, livro 1, l. 143. O baptismo teve lugar a 13 de Fevereiro seguinte, sendo seus padrinhos o doutor André de Morais Sarmento e D. Mariana, mulher de Sebastião de Figueiredo. Agradeço a Élia Correia, directora do Arquivo Distrital de Bragança, a pesquisa e a disponibilização de cópia do assento de baptismo de José Fiúza Correia.

78

Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Leitura de Bacharéis, José Fiúza Correia, maço 6, n.º 36.

79

COSTA, Avelino de Jesus da, “Bula da Cruzada”, in SERRÃO, Joel (direcção), Dicionário de História de Portugal, [Lisboa]: Iniciativas Editoriais, [1963], volume 1, p. 756.

80

Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Leitura de Bacharéis, José Fiúza Correia, maço 6, n.º 36.

81

Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Habilitações, José Fiúza Correia, maço 7, n.º 144.

39

Manuel Fiúza e Catarina Correia haviam celebrado em 1643 o contrato de dote para casarem seu ilho Francisco Fiúza Correia com D. Francisca da Silva, ilha de José da Silva – rico lapidário de diamantes que chegara a ser avaliador de pedraria na Casa da Índia e também irmão da Misericórdia de Lisboa –, que vivia na Caldeiraria, à freguesia de São Nicolau, com sua mulher Isabel da Fonseca, de quem tivera pelo menos mais três ilhos, todos eles religiosos professos na Ordem de Santo Agostinho 82. Naquele mesmo ano, izera Francisco a sua habilitação aos lugares de letras, prosseguindo carreira na magistratura 83. Em 1645, a 20 de Maio, encontramo-lo a tomar posse do lugar de juiz de fora de Vila Viçosa 84 – no exercício do qual dirigiu a 6 de Julho deste ano uma carta a el-rei D. João IV dando-lhe notícia das contas que tomara da confraria do Nome de Jesus, sita na igreja de Nossa Senhora da Conceição, matriz daquela vila, desde 1635 85 – e em 1650 ocupava o lugar de ouvidor em Bragança, razão que determinou o nascimento do seu ilho José nesta cidade transmontana 86. Em 1654, a 8 de Outubro, recebeu carta de corregedor do crime da cidade de Lisboa, cabendo-lhe a repartição do bairro da rua Nova 87. O padre Manuel de Amorim da Cunha, que era conterrâneo do pai de Francisco Fiúza Correia, lembrava-se de ter ido certa vez a Lisboa e estando ele (…) em uma estalagem em um ”eco da mesma Rua [Nova], este corregedor em uma noite lhe levou um mulato ferido à porta, para o confessar”. Historietas à parte, a 12 de Setembro de 1661, o magistrado recebeu um lugar de desembargador extravagante da Relação do Porto 88 e ascendeu mais tarde a desembargador da Casa da Suplicação, cargo que ocupava com fama de bom procedimento quando faleceu, pelo ano de

82

Index das notas de vários tabeliães de Lisboa, Lisboa: ”iblioteca Nacional, 1937, tomo 2, p. 29. Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Habilitações, José Fiúza Correia, maço 7, n.º 144. Desembargo do Paço, Leitura de Bacharéis, Luís Fiúza Correia, maço 7, n.º 12.

83

MATOS, Lourenço Correia de; AMARAL, Luís, Leitura de Bacharéis – Índices de Processos, Lisboa: Guarda-Mor, [2006], p. 56.

84

ESPANCA, Padre Joaquim José da Rocha, Memórias de Vila Viçosa, ou Ensaio da História desta vila transtagana, corte da sereníssima Casa e Estado de Bragança, desde os tempos mais remotos até ao presente, segundo o que pode coligir seu autor (1862‑1886), Vila Viçosa: Câmara Municipal de Vila Viçosa, 1983, volume 8, p. 53.

85

”iblioteca da “juda, 51-IX-7, l. 67.

86

Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Leitura de ”acharéis, José Fiúza Correia, maço 6, n.º 36. As funções exercidas por Francisco Fiúza Correia em Vila Viçosa e Bragança evidenciam a importância da relação que mantinha com a casa ducal de Bragança.

87

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, Torre do Tombo, livro 21, ls. 153v-154.

88

Ibidem, D. “fonso VI, livro 3, l. 310.

40

1667 89. Dona Francisca da Silva, a viúva, moradora ao Marco Salgado, em Lisboa, procedeu à partilha dos bens do defunto marido, declarando terem-lhe icado dois ilhos, Luís e José Fiúza, respectivamente de 22 e 19 anos 90. Ainda em 1667 – não se sabe se antes ou depois da morte do pai –, por provisão de 9 de Fevereiro, puderam os dois irmãos fazer a sua habilitação de genere, a im de justiicarem ser cristãos-velhos e de limpo sangue 91. Mais do que lhes permitir tomar ordens menores e sacras – ignora-se se algum dos jovens sentia inclinação para a vida religiosa ou se esta seria desejo dos progenitores – a referida diligência abria-lhes sobretudo as portas numa sociedade que as mantinha fechadas a todos quantos tivessem fama de cristãos-novos, judeus, mouriscos, mulatos ou de qualquer outra infecta nação. Nascera José Fiúza Correia, por conseguinte, em berço suicientemente dourado para que o seu futuro pudesse ser promissor. Não optando por qualquer carreira eclesiástica, seguiu antes as pisadas do pai na magistratura, a exemplo também do próprio irmão. Habilitaram-se os dois, com efeito, aos lugares de letras: Luís Fiúza Correia em 1670, José Fiúza Correia em 1672, tendo então fama de ter sido bom estudante e de ser “muito recolhido, sisudo e de bom procedimento” 92. Desempenhou José Fiúza Correia, durante alguns anos e a partir de 13 de Dezembro de 1689, o cargo de corregedor do crime do bairro de Alfama, em Lisboa, que ainda ocupava em 1694, quando por carta de 17 de Janeiro foi feito familiar do Santo Ofício, distinção que também seu pai alcançara 93. Nesta ocasião, já José Fiúza Correia se encontrava viúvo de D. Juliana Rebelo Cota Falcão, de quem tivera dois ilhos que a divina providência igualmente lhe levara: “ntónio Rebelo Falcão morrera a 19 de Maio do referido ano de 1689 na calçada do Monte, freguesia dos Anjos, em Lisboa; e Estêvão Fiúza Rebelo Falcão falecera a 12 de Novembro de 1692 na freguesia de São Tomé, na mesma cidade. Um fora 89

Index…, tomo 2, p. 29. Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Leitura de Bacharéis, Luís Fiúza Correia, maço 7, n.º 12.

90

Index…, tomo 2, p. 29. Em 1671, procedeu D. Francisca da Silva à venda do seu casal da Barroca, no termo de Alenquer, a favor de Domingos de Araújo, cavaleiro da Ordem de Cristo e escrivão do consulado da Casa da Índia, morador na rua das Flores, em Lisboa. Recebera a referida senhora aquela propriedade em dote de seus pais, os quais por sua vez a haviam adquirido em 1630 ao licenciado Gonçalo Nunes de Ávila.

91

Torre do Tombo, Câmara Eclesiástica de Lisboa, Habilitações de genere, maço 357, processo 23.

92

MATOS; AMARAL, op. cit., pp. 93 e 108. Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Leitura de Bacharéis, Luís Fiúza Correia, maço 7, n.º 12.

93

Torre do Tombo, Chancelaria Régia, D. Pedro II, livro 48, l. 347v; e livro 58, ls. 336v-337. Tribunal do Santo Ofício, Habilitações, José Fiúza Correia, maço 7, n.º 144.

41

sepultado na igreja do convento de Nossa Senhora da Graça, o outro na igreja de Sacavém 94. Casara o magistrado com aquela senhora a 6 de Abril de 1677, na cidade de Lagos, de onde a família de D. Juliana era originária, apesar de ela ter sido baptizada a 11 de Maio de 1643 em Vila Nova de Portimão, em virtude de seu pai, Estêvão Rebelo Falcão, ocupar então os distintos postos de alcaide-mor e capitão-mor desta última povoação. José Fiúza Correia encontrava-se a exercer o cargo de juiz de fora de Lagos em 1678 e foi por isso nesta cidade algarvia que, a 19 de “bril deste ano, sua mulher deu à luz um primeiro ilho, chamado Francisco como o avô paterno, que presumivelmente terá falecido de tenra idade, pois seu pai a ele não se referiu na ocasião em que se habilitou ao Santo Ofício. Nos anos subsequentes, José Fiúza Correia e D. Juliana Rebelo Falcão estavam a residir em Faro – desempenharia ele algum cargo judicial nesta cidade algarvia? – e foi aqui que lhes nasceram os referidos ilhos Estêvão e António – respectivamente a 24 de Julho de 1679 e a 5 de Novembro de 1681. “o casamento do magistrado e baptismo dos seus ilhos assistiram, como testemunhas ou padrinhos, destacadas personalidades, como o bispo do Algarve, D. Francisco ”arreto, a condessa de Vilar Maior, o conde de Sarzedas, D. Luís da Silveira, governador e capitão-general do reino do “lgarve, e sua ilha D. Maria da Lencastre 95. Ainda que estes tenham sido habitualmente representados por procuradores, não deixa de ser relevante a esfera social em que José Fiúza Correia e sua mulher se movimentavam. Ignora-se o momento exacto em que o casal regressou a Lisboa – antes o magistrado ainda voltou a Lagos, cidade de que foi corregedor 96 –, sendo até admissível que D. Juliana Rebelo Falcão tenha falecido no Algarve. Ao certo, sabe-se que José Fiúza Correia já estaria na capital, viúvo, no ano de 1689, quando lhe faleceu o ilho “ntónio, como vimos. Depois de ter sido corregedor do crime do bairro de Alfama, ascendeu o magistrado, a 23 de Outubro de 1698, a um lugar de desembargador da Relação do Porto (que lhe estava prometido há mais de ano e meio, sem que houvesse vaga, tendo-lhe o rei autorizado desde logo o uso da respectiva beca) e viveu durante os tempos seguintes na cidade nortenha, regressando a Lisboa ao ser nomeado desembargador extravagante 94

Ibidem.

95

CÔRTE-REAL, Miguel Maria Telles Moniz, “À volta dos Mendonças Pessanhas do Algarve e de algumas das suas ascendências”, Tabardo, Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, n.º 4, pp. 114-115.

96

Torre do Tombo, Chancelaria Régia, D. Pedro II, livro 48, l. 347v.

42

da Casa da Suplicação, por carta de 13 de Novembro de 1700. Passou Fiúza Correia a desembargador dos agravos no mesmo tribunal, a 7 de Janeiro de 1706 97, acumulando estas funções com o cargo de juiz das Capelas da Coroa. No exercício deste, a sua competência era a de julgar os processos das capelas denunciadas como vagas – ou seja, cujo administrador era desconhecido –, fazendo-as reverter para a Coroa – o que incluía quer os encargos pios a que estavam sujeitas, quer os bens vinculados ao respectivo cumprimento – e passando de seguida carta de administração a favor do denunciante, por uma ou mais vidas 98. O magistrado já estava indigitado nesta ocupação a 5 de Novembro de 1706, ocasião em que D. Pedro II, a um escasso mês de morrer, coniando no zelo com que Fiúza Correia o servia, exarou em Alcântara a ordem que o incumbia não apenas de continuar o tombo das Capelas da Coroa (trabalho que Tomé Pinheiro da Veiga executara entre 1619 e 1659 sem todavia o concluir), mas também de descobrir as que andavam usurpadas, podendo para este efeito proceder às indispensáveis devassas. Era, pois, “serviço de tanta importância”, que o rei exigia ser informado de tudo o que magistrado obrasse no exercício do cargo para poder tomar a devida resolução, dispensando-o também, sempre que necessário, do exercício das funções de desembargador dos agravos 99. “tendendo ao notório zelo com que foi desempenhando esta função, beneiciou o próprio José Fiúza de uma capela vaga situada na vila de Estremoz, cujo alvará de administração lhe foi passado por D. João V a 20 de Agosto de 1707. Curiosamente, pouco tempo antes – precisamente a 9 de Dezembro de 1706, data do falecimento de D. Pedro II – dirigira o magistrado ao rei sucessor um requerimento para ser igualmente provido no lugar de deputado e conservador da Junta do Comércio, considerando concorrem nele os requisitos necessários para o poder executar. O cargo não era disputado apenas por Fiúza, pois a ele se haviam também habilitado Francisco Monteiro de Miranda, João Rodrigues Pereira e Manuel Vicente Rosa 100. Parece, todavia, que esta nomeação não ocorreu logo, pois mantendo-se entretanto José Fiúza Correia a exercitar as funções de juiz das Capelas da Coroa e de desembargador dos agravos da Casa da Su97

Ibidem, livro 44, ls. 24-24v; livro 46, ls. 292v-293; livro 53, ls. 52v-53; e livro 61, ls. 226-226v.

98

Guia Geral dos Fundos da Torre do Tombo. Primeira Parte. Instituições do Antigo Regime, Lisboa: Instituto dos “rquivos Nacionais / Torre do Tombo, 1998, volume 1 (“dministração Central 1), pp. 60-62.

99

FERRÃO, Francisco Antonio Fernandes da Silva, Repertorio commentado sobre foraes e doações regias, Lisboa: Na Imprensa Nacional, 1848, volume 1, pp. 87-89.

100

”iblioteca da “juda, 51-IX-31, ls. 468 e 470.

43

plicação, apenas por carta de 3 de Abril de 1710 seria efectivamente nomeado para um lugar de deputado da Junta do Comércio Geral, e de “juiz conservador privativo de todas as causas que a ela tocarem e de seus Ministros e Oiciais 101. “ coniança que foi granjeando na corte de D. João V permitiu-lhe ainda alcançar o signiicativo cargo de provedor da “lfândega de Lisboa, conferido por carta de 15 de Outubro de 1712, cujo desempenho terá mantido mesmo depois de ter sido nomeado conselheiro da Fazenda 102. Esta designação, com efeito, ocorrida a 13 de Agosto de 1715, fora efectuada sem o exercício efectivo do cargo, não obstante José Fiúza Correia poder desde logo vencer a antiguidade, ordenado e demais propinas que cabiam aos membros daquele Conselho. Em contrapartida, nesta ocasião vagaram os lugares de deputado da Junta do Comércio e de juiz das Capelas Coroa, que o desembargador mantivera até então 103. Neste meio tempo, adquirira José Fiúza Correia, como vimos, a quinta anteriormente pertencente aos Carvalhos, situada em Alcântara. Talvez a decisão de comprar a propriedade se tenha enquadrado no desejo de voltar a constituir família, pois não muito mais tarde, em Junho de 1708, celebrou o magistrado um contrato de dote para casar com D. “gostinha Josefa Mariana da Silveira 104. O matrimónio ter-se-á realizado pouco depois na freguesia dos Mártires, em Lisboa – naturalidade da noiva –, em data que não pode ser precisada em virtude dos registos daquela paróquia anteriores a 1755 terem desaparecido no terramoto que devastou Lisboa nesse ano. Filha de Manuel Jácome Bravo da Silveira e de D. Maria “ntónia da Câmara, D. “gostinha era já viúva de Francisco da Silveira Velês. Tanto o primeiro marido como o pai haviam detido o relevante 101

Torre do Tombo, Chancelaria Régia, D. João V, livro 33, l. 175v. “té 1720, existiu esta Junta do Comércio Geral, composta por cinco deputados de capa e espada e um de letras, desembargador, bem como um presidente. No início do reinado de D. João V, ocupava o cargo de presidente o marquês de Marialva, D. Pedro Luís de Meneses, e eram membros Luís Correia da Paz, Cosme da Guarda Fragoso, João de Lemos de Brito, André Hasse, António da Silva Azevedo, o desembargador José Fiúza Correia, servindo de secretário José Teles da Silva. SILVA, D. João V, p. 160.

102

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. João V, livro 1, l. 324v.

103

Torre do Tombo, Chancelaria Régia, D. João V, livro 46, ls. 27v-28v. Registo Geral de Mercês, D. João V, livro 1, ls. 324-324v. Vd. também S“R“IV“, José Mendes da Cunha, A Administração Superior da Fazenda e os seus Ministros, Lisboa: “rquivo Histórico do Ministério das Finanças, 1952, p. 37.

104

Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, Cartório do Distribuidor, caixa 19, livro 77, l.  111v. De acordo com esta fonte, a escritura terá sido celebrada nas notas do tabelião António Nogueira da Cruz, cartório do qual não se conhece o paradeiro, certamente por ter desaparecido no terramoto de 1755.

44

foro de idalgo da Casa Real, sendo o progenitor também cavaleiro da Ordem de Cristo e estribeiro-menor da rainha 105. Dona Agostinha da Silveira era frequentadora do paço e pelos serviços aqui prestados chegara a receber, entre outras mercês, a do hábito da Ordem de Cristo e 20 mil réis de pensão efectiva para o primeiro ilho que tivesse, conforme portaria exarada a 18 de Maio de 1697; esta graça, porém, não tivera efeito por falecer entretanto o referido Francisco da Silveira Velês sem chegar a haver descendência do casal. Entretanto, continuara aquela senhora a servir no paço, sendo açafata por espaço de 10 meses, “indo de sua casa todas as manhãs e recolher-se muito tarde, portando-se com todo o luzimento e muito desvelo na sua obrigação”. E assim, em remuneração de mais este préstimo e por conta daquela pensão com o hábito de Cristo, que não pudera veriicar-se, recebera D. “gostinha a mercê de uma capela da Coroa com rendimento de 40 a 50 mil réis, conforme alvará de lembrança que depois lhe foi passado a 6 de Novembro de 1708, a que se juntaria a concessão de uma outra capela que nela renunciara António Coelho de Sande, por alvará de 5 de Setembro do ano seguinte. Deste modo, encontrando-se já casada com José Fiúza Correia, recebeu D. “gostinha da Silveira, em veriicação daquelas duas mercês, a administração, em sua vida, da capela do hospital do Espírito Santo da Torre de Moncorvo, o que constou dos alvará e carta que lhe foram passados a 12 e 30 de Outubro de 1714, em que se determinava que “cumprirá inteiramente as obrigações e encargos que o instituidor da dita capela ordenou e trará os bens dela bem consertados e aproveitados, e logrará possuir os ditos bens, rendas e direitos em sua vida” 106. Mas o casamento de José Fiúza Correia com D. “gostinha da Silveira, para além deste aspecto de natureza patrimonial, trouxe-lhe ainda uma outra relevante distinção social. Entre as mercês já antes granjeadas pela segunda mulher do desembargador, contava-se a do foro de idalgo da Casa Real para o seu primeiro marido. Mas como Francisco da Silveira Velês já o tinha e estando entretanto D. “gostinha contratada para se consorciar com José Fiúza Correia “e nele concorrerem todas as partes e requisitos necessários para lograr a mercê do dito foro , foi o magistrado feito idalgo cavaleiro da Casa Real com 1$600 réis de moradia por mês e um alqueire de cevada por dia, do que recebeu carta a 16 de Julho de 1710. Com a sua nomeação para membro do Conselho da Fazenda, que vimos ter ocorrido dois anos depois, teve o magistrado aquele foro aumentado para 2$000 réis 107. 105

Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Habilitações, José Fiúza Correia, maço 7, n.º 144.

106

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. João V, livro 2, ls. 298-298v.

107

Ibidem.

45

José Fiúza Correia e D. “gostinha da Silveira não habitaram a quinta de “lcântara nos anos imediatos ao matrimónio, pelo menos de forma duradoura. É possível que o casal tenha icado a residir no centro de Lisboa, na freguesia dos Mártires, memória que ainda perdurava em 1758, quando o cura Manuel Rodrigues Leitão, enunciando os “Escritores, e pessoas condecoradas por suas letras, alem de outras já referidas, moradoras que foram nesta freguezia”, apontou o nome do “Dotor Jozé Fiúza, Provedor da Alfandega” 108. Terá sido aqui, por conseguinte, que ao magistrado e sua mulher nasceram, ao longo da segunda década de setecentos, alguns ilhos. Pela consulta de várias fontes, foi possível identiicar dois rapazes – Manuel José Jácome Fiúza e Francisco António Fiúza da Silveira, que a 16 de Julho de 1716 haveriam de receber alvará de idalgos cavaleiros da Casa Real com o foro de 20$000 réis por mês 109 – e uma rapariga – D. Brites Severina Fiúza da Silveira, de quem existe a notícia de ter recebido uns padrões de 80$000 réis de tenças efectivas 110. De Brites foi possível localizar o correspondente assento de baptismo, veriicando-se ter a cerimónia ocorrido a 27 de Novembro de 1711 na igreja da Encarnação, sendo a criança apadrinhada por Francisco Barreto e pela condessa de Valadares 111. É, pois, provável, que José Fiúza Correia e D. Agostinha da Silveira tenham igualmente residido nesta última freguesia, aliás coninante com a dos Mártires. Se de 1707 em diante os róis de confessados da paróquia da Ajuda referem habitualmente a quinta do desembargador Fiúza com alguns moradores estranhos – o supramencionado caseiro Francisco Carvalho em 1707 e 1708, o caseiro João Carvalho em 1708, certo Manuel Álvares e família em 1711 e 1713, o caseiro Manuel Rodrigues com a mulher e um ilho em 1715, um Gabriel e uma Isabel com apelidos ilegíveis e um pobre chamado Baltasar em 1716 112 –, já no ano de 1720 a propriedade era habitada por um agregado familiar cujo apelido 108

PORTUGAL, Fernando; MATOS, Alfredo de, Lisboa em 1758. Memórias Paroquiais de Lisboa, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1974, pp. 192-193.

109

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. João V, livro 8, l. 254v.

110

Ibidem, livro 11, ls. 10v-11. No mesmo l. 11 encontra-se também lavrada a mercê de uma tença a favor de certa D. Clara Susana, que no correspondente registo no sistema Digitarq surge identiicada como ilha de José Fiúza Correia. Da leitura do documento, porém, não se descobre tal iliação, cuja errada atribuição poderá ter resultado de confusão com o assento anterior, respeitante a D. ”rites Severina, esta expressamente mencionada como ilha daquele desembargador.

111

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, Encarnação, baptismos, livro 10, ls. 149-149v.

112

”iblioteca da “juda, Róis de Confessados da Paróquia da “juda, 51-III-4, ls. 116-117v, 150 e 202v; 51-III-5, ls. 74v e 172v; e 51-III-6, ls. 35v, 74v e 124.

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pode indiciar alguma relação de parentesco com a mulher de Fiúza Correia. Aí vivia, com efeito, D. Maria Micaela da Silveira, acompanhada de Manuel da Silva Pinheiro e de certa D. Maria Teresa, além de uma Isabel Ferreira, das criadas Maria Teresa e Maria Caetana, da escrava Lucrécia, do escudeiro José Pereira, entre outros; e de novo aí se encontrava o caseiro Manuel Álvares 113. A concessão de uma tença de 50 mil réis, em 1712, a D. Maria Micaela da Silveira permitiu veriicar que esta senhora era ilha de D. Maria “ntónia da Câmara, a mãe de D. “gostinha da Silveira 114. José Fiúza Correia cedera a uma cunhada, por conseguinte, a sua quinta de Alcântara naquele ano de 1720. Na quaresma seguinte, a propriedade era de novo habitada somente pelo caseiro Manuel Álvares e sua família, veriicando-se que em 1722 este serviço passara a ser desempenhado por um Domingos Gonçalves, que ali haveria de manter-se no ano seguinte 115. Em 1723 começou uma viragem na história da quinta de “lcântara: na quaresma desse ano, a família de José Fiúza Correia achava-se, pela primeira vez desde que ele comprara a propriedade, aí instalada. Para além do desembargador – curiosamente designado com os apelidos em ordem inversa, como haveria de suceder em diversas outras ocasiões –, encontravam-se na quinta D. “gostinha Mariana da Silveira, sua mulher, e os ilhos Francisco “ntónio, D. ”rites Severina e Manuel José. Para além do núcleo familiar, a propriedade era também habitada por diversos dependentes ou serviçais: certa D. Joana ”aptista e um António de Almeida Monteiro, os moços Ana Maria e Francisco Gonçalves, a escrava Bernarda, o barbeiro António Gonçalves, o dito caseiro Domingos Gonçalves com sua mulher Isabel Dias, e depois Antónia Maria, Manuel Francisco, Francisco Neto, João Lopes, Domingos Francisco, Manuel Gomes, António Gomes, Lázaro Afonso, Manuel Rodrigues – dito trabalhador –, Manuel Macieira e António Francisco 116. Com a sua permanência em Alcântara ao longo dos anos seguintes, é possível que José Fiúza Correia tenha incrementado o amanho e a produção agrícola da quinta, pois continuou a ser signiicativa a quantidade de trabalhadores que nela residiam. É igualmente plausível que o desembargador tenha mandado ampliar o edifício de residência ou construir outras dependências, pois em 1725 a família vem mencionada “nas Casas novas à pedreira” e no ano seguinte distinguiu-se a “Casa do Provedor Fiúza” da “Quinta do Provedor 113

Ibidem, 51-III-7, ls. 35v-36.

114

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. João V, livro 5, l. 504.

115

”iblioteca da “juda, Róis de Confessados da Paróquia da “juda, 51-III-7, ls. 78v e 125.

116

Ibidem, l. 164v.

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da Alfândega”, vivendo na primeira alguns homens, possíveis trabalhadores, e habitando a segunda o próprio Fiúza Correia com a mulher, ilhos e serviçais. Em 1728, seriam uma vez mais mencionadas umas casas novas do desembargador”, onde residiam alguns agregados estranhos à sua família 117. Na toponímia do lugar, regista-se nesta época uma enorme variabilidade. “s artérias que da rua Direita de Alcântara levavam até à quinta tanto eram ditas como primeira e segunda travessa, como travessas do desembargador Fiúza. Em 1726, surge menção à travessa do Forno – talvez alusiva aos fornos de pão que se instalaram na zona – e que, juntamente com a referência às pedreiras e aos tanques – estes possivelmente já utilizados para lavagem dos curtumes –, indiciavam uma Alcântara pré-industrial em formação 118. No ano seguinte, entre a quinta do Desembargador e a travessa do Provedor – registe-se a graça do uso simultâneo dos dois títulos –, identiicou-se um beco, talvez aquele estreito rasgão na malha urbana junto ao edifício principal da propriedade que, com o nome actual de escadinhas do Quebra-Costas, permitiu assegurar a ligação à estrada do Alvito. Em 1728, como uma reminiscência antiga, ainda se mencionou a travessa de Paulo de Carvalho e a partir de 1730, ano em que uma das travessas foi designada como sendo do Príncipe, a outra, dita dos Fornos – agora no plural –, parece ter encontrado nesta nomenclatura certa estabilidade. No início do reinado de D. João V, o lugar de Alcântara continuara dominado pelos seus conventos femininos, os mosteiros das Flamengas e do Calvário – cenóbio este que em 1721 contaria com a presença de 128 freiras, oito educandas, sete recolhidas e 28 serventes –, e pelo paço real. É verdade que este edifício entrara em certo declínio após a morte de D. Pedro II, o último rei a passar largas temporadas nele. Mas apesar de não existir notícia da estada do seu sucessor em Alcântara, não deixou o régio palácio de ser pontualmente utilizado pela família real nas suas diversões campestres. A 25 de Maio de 1708, por exemplo, no dia do aniversário do infante D. Francisco, realizaram-se várias festas e correram-se touros em Alcântara, na presença do rei D. João V; e em Novembro de 1729, a rainha D. Maria Ana e o príncipe D. José foram a uma caçada aos coelhos “«nas vinhas junto a Alcântara»”. Sabe-se também que D. António, um dos rebentos ilegítimos de D. João V, seria publicamente criado na quinta de 117

Ibidem, 51-III-8, ls. 42v, 97v, 150v e 202.

118

JANEIRA, Ana Luísa; ANTUNES, Conceição Lobo (Orientadoras), Marcas de indústria no ambiente de Alcântara, s.l.: s.n., [1983], p. 19.

48

“lcântara como ilho do rei e deveu-se a este monarca a construção, do outro lado do largo fronteiro ao paço, junto ao mosteiro do Calvário, do amplo edifício destinado a albergar os coches da Casa Real. E se nas traseiras desta construção, na direcção do rio, ainda se estendia em 1724 um enorme sapal onde mais tarde Jácome Ratton estabeleceu uma fábrica de louça, para norte, já perto da quinta do Fiúza, as pedreiras de Alcântara forneciam muita da pedra utilizada na construção da nova patriarcal e ali próximo, num terreno pertencente à quinta do Cabrinha, surgia em 1725 a real fábrica da pólvora 119. Foi esta a Alcântara em que o desembargador José Fiúza Correia viveu os derradeiros dez anos da sua existência, até que o padre Luís Álvares do Souto, pároco da igreja de Nossa Senhora da Ajuda, abriu o livro onde costumava assentar os defuntos [Figura 8], pegou na pena e começou a escrever 120: “Aos dezasseis dias do mês de Novembro de mil setecentos e trinta e três, faleceu o Desembargador José Correia Fiúza [sic], Provedor que serve na “lfândega de Lisboa, casado com D. Agostinha Mariana da Silveira e moradores nas suas casas e quinta de “lcântara, dizem não izera testamento, recebeu todos os sacramentos, foi acompanhado pela Irmandade das almas desta freguesia, a que se deu dez mil réis, e a 12 pobres que acompanharam 240”.

Com a morte do marido e progenitor, D. “gostinha da Silveira e os ilhos ter-se-ão ausentado de Alcântara, encontrando-se a quinta desabitada na quaresma de 1734. Mas um ano depois a nobre residência voltaria a ser vivida pela viúva, que aí se achava acompanhada do ilho Manuel e de alguns criados, situação que se manteria até 1737 121. Na quaresma seguinte, aquela senhora estava na quinta sem qualquer dos seus ilhos, apenas assistida pelos criados João Lopes, Maria Caetana e Brites Leonor, entre alguns outros dependentes. Mas em 1739, a viúva do desembargador Fiúza Correia teve a alegria de acolher em Alcântara a ilha ”rites Severina e o respectivo marido, José Pais de Vasconcelos, que aí presenciaram, a 18 de Setembro, o feliz nascimento da sua ilha Inácia. “ 7 de Outubro, abriram-se as portas da ermida de Nossa Senhora do Pópulo, sita na própria quinta, para que a recém-nascida recebesse o baptismo, alcançada que fora a licença do senhor cardeal-patriarca para o efeito. Foi a pequena Inácia entregue aos cuidados da referida Senhora do Pópulo, a quem tomou por ma119

SILVA, D. João V, pp. 34, 49, 56, 75, 93-94, e 194. FREIRE (MÁRIO), op. cit., pp. 6-7, 123, 143 e 164.

120

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “juda, óbitos, livro 4, l. 33v.

121

”iblioteca da “juda, Róis de Confessados da Paróquia da “juda, 51-III-10, ls. 103v-104, 159v-160 e 223.

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drinha, tocando com a prenda o padre-mestre doutor Álvaro de São Bernardo, da congregação de São Evangelista. Manuel José Tomé da Serra, primo direito materno da mãe da criança, idalgo da Casa Real e escrivão do Tesouro, foi o padrinho 122. Neste dia festivo, D. “gostinha da Silveira talvez se tenha recordado de outros momentos passados pela ilha ”rites na quinta de “lcântara, ainda em vida do pai. Já haviam passado dez anos desde que este decidira conferir estado à rapariga, porventura preocupado com o facto de ter então atingido a barreira dos oitenta anos. José Fiúza Correia fora, de facto, um pai tardio dos ilhos do seu segundo casamento. Por isso, pouco antes de aquela ilha completar as dezoito primaveras, ajustara o seu casamento com Francisco de Miranda Soares, homem maduro, duas vezes viúvo – a primeira de D. Mariana de Aguilar de Miranda, a segunda de D. Catarina Maria Josefa –, cavaleiro na Ordem de Cristo e que então residia na sua quinta de Ninha-a-Velha (designação dada à actual povoação de Linda-a-Velha), propriedade hoje conhecida como palácio dos Arciprestes 123. Realizara-se o matrimónio a 26 de Fevereiro de 1729 na mencionada ermida de Nossa Senhora do Pópulo, na quinta dos pais da noiva, em Alcântara – e que fora de Paulo de Carvalho, como ainda se explicitou no respectivo assento –, sendo celebrante o prior da Ventosa, o padre António Bravo da Silveira, que era idalgo capelão por alvará de 28 de Janeiro de 1704 e irmão de D. “gostinha 124. Dona Brites Severina e o marido tinham ido viver para a freguesia da Pena, em Lisboa, na rua Direita de Santana, mas o consórcio pouco duraria já que Francisco de Miranda Soares haveria de falecer uns escassos nove meses depois, a 27 de Novembro daquele mesmo ano de 1729, deixando o sogro Fiúza Correia como um dos seus testamenteiros 125. Tão precocemente viúva, D. ”rites Severina da Silveira ainda dera ao pai a alegria de a ver novamente casar. E assim a quinta de Alcântara fora outra vez palco de alegria, assistindo-se a 2 de Maio de 1733, na mesma ermida de Nossa Senhora do Pópulo, ao casamento daquela 122

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “juda, baptismos, livro 6, l. 22. Registo Geral de Mercês, D. João V, livro 25, l. 325v. “rquivo Histórico-Ultramarino, “CL-CU-005, cx. 103, n.º 8103.

123

BORREGO, Nuno Gonçalo Pereira, Habilitações nas Ordens Militares. Século XVII a XIX. Ordem de Cristo, [Lisboa]: Guarda-Mor, [2008], tomo 1, p. 530. Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. Pedro II, livro 15, l. 388v.

124

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “juda, casamentos, livro 4, l. ?. Diccionario Aristo‑ cratico contendo os alvarás dos foros de idalgos da Casa Real…, Lisboa: Na Imprensa Nacional, 1840, tomo 1, p. 83.

125

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, Pena, óbitos, livro 5, l. 59.

50

ilha do desembargador com José Pais de Vasconcelos Dantas, cujos progenitores, Francisco Pais de Vasconcelos e D. Joana Inês Teresa Dantas, o haviam tido na freguesia da Encarnação, onde ainda morava 126. José Fiúza Correia, como vimos, sobreviveu a este matrimónio da ilha durante um curto meio ano. Na quaresma de 1740, D. Agostinha da Silveira ainda gozava a companhia da ilha e do genro em “lcântara, revelando o respectivo rol de confessados que uma nova servidora habitava com a família: tratava-se da ama Mariana Rodrigues, certamente contratada para cuidar da pequenina Inácia 127. Mas a 28 de Agosto desse ano chegou a vez da viúva do desembargador Fiúza entregar a alma ao criador. Munida de todos os sacramentos da Santa Igreja, com testamento lavrado, D. “gostinha faleceu nas suas casas e quinta de “lcântara, de onde o seu corpo seguiu para ser enterrado na igreja do convento de São Pedro, também dito de Alcântara, dos padres arrábidos, sito ao Bairro Alto de Lisboa 128. A partir desta ocasião, e pelos anos seguintes, a velha quinta do desembargador Fiúza mergulhou em profundo silêncio… Domingos Simões Barruncho encontrava-se instalado na quinta de Manuel de Oliveira, sita no lugar de São João dos Bem-Casados. Era o dia 29 de Agosto de 1714. Achava-se “sentado em uma cadeira em todo o seu perfeito juízo e entendimento”, mas o estado avançado da doença que o afectava impossibilitava-o de escrever pela própria mão o seu testamento. Por isso, foi a manda redigida a seu rogo pelo tabelião Tomé Ferreira de Araújo, na presença de Salvador Gonçalves, criado do testador, que na ocasião serviu de testemunha 129. Também pela mesma razão, decidira Domingos, uns meses antes, delegar no ilho Filipe Simões Barruncho o cargo de escrivão da mesa grande da Alfândega de Lisboa, que lhe pertencia, tendo o rei D. João V assinado o respectivo alvará para este o exercer enquanto durassem os impedimentos do progenitor 130. Na tentativa de encontrar remédio para os males de que padecia, decidiu o doente, passado algum tempo, mudar-se para as Caldas da Rainha, onde os ares e sobretudo as águas medicinais poderiam constituir lenitivo. A deslocação, porém, não surtiu o desejado efeito. A 3 de Outubro desse ano, sentindo-se muito enfermo e adi126

Ibidem, “juda, casamentos, livro 5, ls. 31-31v.

127

”iblioteca da “juda, Róis de Confessados da Paróquia da “juda, 51-III-11, l. 194.

128

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “juda, óbitos, livro 4, l. 103.

129

Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, livro 139, n.º 39, ls. 97v-101v.

130

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. João V, livro 6, l. 196.

51

vinhando que faleceria naquela vila, Domingos Simões Barruncho ainda pediu ao padre frei José de São Caetano, religioso agostinho descalço morador no convento de Nossa Senhora da Boa-Hora da cidade de Lisboa mas então assistente nas Caldas, que lhe redigisse um codicilo, pois uma vez mais o estado de fraqueza em que se encontrava não lhe permitia escrever. Foi de novo o criado Salvador Gonçalves quem lhe serviu de testemunha, permanecendo iel ao lado do seu amo, que agora “estava deitado em uma cama doente de doença que Deus Nosso Senhor foi servido dar-lhe”. Escassas horas terá Domingos durado com vida, pois no dia seguinte já o padre Luís Correia da Silva, coadjutor da igreja de Nossa Senhora do Pópulo das Caldas da Rainha, lavrava o auto de abertura do testamento e codicilo do defunto 131. Fora em Loures que Domingos Simões Barruncho viera ao mundo, tendo recebido o baptismo na igreja de Santa Maria a 22 de Novembro de 1654 132. Desconhece-se a origem do inusitado apelido, que a sua geração parece ter sido a primeira a usar e que o dicionário revela signiicar um alguidar de barro. Tratar-se-ia de uma alcunha? Domingos Simões e “na Francisca, os pais, então moradores na quinta do Mato, de pequeno o mandaram para Lisboa, onde casara uma primeira vez com Teresa de Jesus, falecida na paróquia de São Julião, e depois, a 9 de Novembro de 1689, com Maria do Espírito Santo, ainda sua parente, de quem fora dispensado do terceiro grau de consanguinidade. Residindo bem no coração da capital, em São Pedro de Alfama, aqui nascera a Domingos Simões ”arruncho, da segunda mulher, o ilho Filipe, baptizado a 10 de Maio de 1692 133. Já o rapaz estava crescido quando o pai, por carta de 13 de Dezembro de 1710, recebera de D. João V o referido cargo de escrivão da mesa grande da Alfândega de Lisboa, renunciado por Manuel Veloso Ferreira e que então tinha o não desprezível ordenado de 40 mil réis anuais 134. Não haviam passado dois anos desde que Domingos começara a exercer aquelas funções quando, para provedor da instituição, fora nomeado o desembargador José Fiúza, reputado magistrado que pouco mais velho era do que ele. A doença e morte do escrivão não permitiram, porém, que fosse muito o tempo de convivência entre os dois, 131

Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, livro 139, n.º 39, ls. 97v-101v.

132

Sobre a genealogia da família ”arruncho, vd. VID“L, Frederico Gavazzo Perry, O beato João de Brito, Lisboa: “gência Geral das Colónias, 1940, volume 3, pp. 140 e seguintes; PON“, Diogo de Paiva e, Barrunchos da Quinta do Barruncho, em Odivelas, disponível em http://genealogias. info/.

133

Torre do Tombo, Câmara Eclesiástica de Lisboa, Habilitações de genere, maço 309, processo 12.

134

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. João V, livro 4, l. 513.

52

mas Filipe Simões Barruncho, provisoriamente durante a moléstia do pai e em deinitivo depois do óbito deste – o rei magnânimo passou-lhe carta do ofício a 29 de Novembro de 1714 135 –, certamente privou de perto, pelos anos fora, com José Fiúza Correia. E no âmbito desse relacionamento não custa aceitar que o jovem escrivão tenha ocasionalmente visitado o velho provedor da Alfândega na sua quinta de “lcântara, especialmente depois de este aqui ixar residência a partir de 1723, como vimos. Depois da morte do pai, Filipe Simões Barruncho – seu testamenteiro e herdeiro universal – icou a viver na propriedade que aquele lhe deixara, umas Casas novas defronte da Igreja de São João da Praça, da Porta Travessa dela, as quais partem com Casas e passadiço da Tribuna do Conde Coculim e [de] Maria Nunes e são foreiras à mesa Paroquial da dita Igreja de São João da Praça em quinhentos e cinquenta réis” 136. E apesar de no dia 16 de Setembro de 1715 ter ido casar com Catarina da Encarnação à freguesia do Socorro, onde a noiva fora baptizada a 24 de Novembro de 1694, Filipe Simões Barruncho voltou com a mulher para São João da Praça e aqui lhes foi nascendo, nos anos imediatos, profusa geração: José, baptizado a 3 de Junho de 1719; Manuel, a 11 de Janeiro de 1721; Francisco Xavier, a 12 de Dezembro de 1722; e, talvez primogénito, Joaquim Xavier, baptizado em data ignorada 137. Por volta de 1726, a família mudou-se para a mencionada freguesia do Socorro, icando a residir na calçada do Colégio, onde a prole continuou a aumentar: Vicente Ferreira (assim mesmo foi referido no baptismo e em várias outras ocasiões, certamente por troca com Ferrer), nascido a 17 de Julho daquele ano; Maria, nascida a 2 do mesmo mês de 1728; Teresa de Jesus, nascida a 23 de Março de 1730; Catarina, nascida no dia de natal do ano seguinte; Isabel, nascida em perigo de vida a 4 de Julho de 1733, razão porque foi logo baptizada em casa; Antónia, nascida a 8 de Junho de 1735; e Ana, cujo nascimento e baptismo se desconhece 138. Neste meio tempo, alcançara Filipe Simões Barruncho, a 20 de Setembro de 1717, carta de familiar do Santo Ofício e em 1739 ainda ele e a sua família se mantinham na freguesia do Socorro, na ocasião em que quatro dos ilhos 135

Ibidem, livro 6, l. 454.

136

Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, livro 139, n.º 39, ls. 97v-101v.

137

Torre do Tombo, Câmara Eclesiástica de Lisboa, Habilitações de genere, maço 309, processo 12.

138

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, Socorro, baptismos, livro 8, ls. 129-130 e 191v; e livro 9, ls. 48v, 100, 143v e 192.

53

varões – José Simões Barruncho, Manuel Simões Barruncho, Francisco Xavier Barruncho e Vicente Ferreira Barruncho – procederam à respectiva habilitação de genere. Invocavam todos, naturalmente, terem “grande devoção de servir a Deus no estado clerical”, ainda que depois fosse apenas Manuel a seguir a carreira eclesiástica. Mais importante nestes processos, como já acima se disse, era conseguir justiicar serem tidos, havidos, nomeados e conhecidos de todos por legítimos e inteiros cristãos-velhos, limpos e de limpo sangue e geração, sem raça alguma de judeu, cristão-novo, mouro, mulato, mourisco, nem de outra alguma infecta nação das reprovadas em direito contra nossa Santa Fé Católica, nem de pessoas a ela novamente convertidas”, o que no caso concreto foi peremptoriamente asseverado pelo prior de São João da Praça, entre outras idedignas testemunhas 139. É possível que Filipe Simões Barruncho tivesse sofrido de alguma moléstia no ano anterior, pois a 24 de Setembro recebera o seu ilho José um alvará para, no impedimento do pai, servir o ofício de escrivão da mesa grande da Alfândega de Lisboa 140. Crê-se, todavia, que foi circunstância passageira tendo Filipe regressado ao cargo, pois a 7 de Maio de 1748 proferiu-se contra ele uma sentença que o condenou a três anos de suspensão daquelas funções e ao pagamento de 100 mil réis de custas, em resultado de um erro ocorrido no respectivo exercício, relacionado com a não arrecadação de direitos que pertenciam à fazenda real na descarga da nau Maria Afortunada, de Estêvão Martins de Torres e seu ilho 141. Perry Vidal, sem especiicar quem, airmou que um membro da família ”arruncho procedeu à arrematação da antiga quinta do desembargador Fiúza, em Alcântara, a 1 de Dezembro de 1741 142. Não foi possível documentar este facto, ainda que a respectiva cronologia seja compatível com a circunstância da viúva daquele magistrado ter falecido em Agosto do ano anterior, como vimos. Que mais tarde Filipe Simões Barruncho foi detentor da referida quinta, não subsiste qualquer dúvida, sendo porém certo que pelo menos até ao terramoto de 1755 o escrivão para ela não se mudou 143. De qualquer modo, talvez porque aquela ou outra maleita aconselhassem melhores ares ou porventura porque a acomodação de uma tão numerosa família exigisse mais espaço, terá Filipe Simões 139

Torre do Tombo, Câmara Eclesiástica de Lisboa, Habilitações de genere, maço 309, processo 12.

140

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. João V, livro 6, l. 454.

141

Torre do Tombo, Feitos Findos, Diversos, maço 11, n.º 56.

142

VIDAL, op. cit., volume 3, p. 140.

143

Biblioteca da Ajuda, Róis de Confessados da Paróquia da Ajuda, 51-III-11 a 51-III-17.

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Barruncho resolvido adquirir uma propriedade de campo nas imediações de Lisboa, não se estranhando que a escolha tenha recaído na amena e formosa quinta outrora pertencente ao provedor Fiúza, que aquele, com probabilidade, por vezes ali visitara.

55

8 de Janeiro de 1744 Calhou este dia numa quarta-feira. Relata-nos a Gazeta de Lisboa da semana seguinte que naquela data 144 (…) foi a Rainha nossa Senhora de tarde com os Serenissimos Principes nossos Senhores, a Senhora Princeza da Beira, a Senhora Infanta D. Maria Anna, e o Senhor Infante D. Pedro á ponte de Alcantara, para assistirem a solemne funçam de benzer a Estátua de marmore do glorioso Martyr S. Joam Nepomuceno, advogado da Fama, e Protector dos navegantes, que a mesma Senhora mandou erigir na dita ponte, para assim afervorar mais a devoçam dos ieis a hum Santo tam prodigioso. Fez esta funçam o Excelentissimo, e Reverendissimo Senhor Principal Almeida, assistindo Sua Mag.e e Suas Altezas (em huma Tribuna, que para o mesmo efeito se armou na ponte) á Ladainha de Nossa Senhora, que alli cantou a musica da Santa Basilica Patriarcal, com a Antifona, e Oraçam do mesmo Santo; a que assistio tambem a Communidade dos Religiosos Trinitarios do Convento de N. Senhora do Livramento com o seu Ministro o Padre Mestre Fr. Jozé de Gouvea. E acabada esta funçam, fez a sua descarga o Regimento de Cavallaria da ponta de Alcantara, que assistio formado, em quanto durou este acto, á qual correspondêram com sua artelharia o Fórte do Sacramento, e os outros visinhos daquelle sitio; e como tambem a Casa da Fábrica da polvora, e os repiques dos sinos dos Religiosos Trinitarios, e Religiosas Dominicanas do Sacramento : e Sua Magestade com Suas Altezas continuaram a sua viagem para Belem a ver a representaçam do Presépio, que todos os annos se faz naquelle Real Mosteiro”.

Da autoria do escultor italiano João António de Pádua, a estátua de São João Nepomuceno fora colocada do lado norte da ponte, sensivelmente a meio, num refúgio semi-circular que existia nas respectivas guardas, distantes uma da outra cerca de cinco a seis metros e cujo comprimento andaria nos noventa 145 [Figura 9]. “ ponte sobre a ribeira de “lcântara era então local de passagem obrigatório naquela que constituía uma das mais importantes estradas que faziam a ligação entre o interior da cidade de Lisboa e as suas cercanias, situando-se sensivelmente a meio do percurso que, partindo da Patriarcal, passava pelos

144

Gazeta de Lisboa, 14 de Janeiro de 1744.

145

SILVA, A Ponte…, pp. 10-11.

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Remolares, São Paulo e Esperança, para de Alcântara continuar pelo Calvário, Junqueira e Belém, até chegar a São José de Ribamar 146. Entretanto, um bom pedaço a norte, sobre o curso de água, já os imponentes arcos do aqueduto que D. João V mandara ediicar para garantir o abastecimento de água à capital se perilavam majestosos. Uma memória datada de Julho de 1740 revelava que “«as obras do aqueduto das Águas Livres continuam com grande calor, trabalhando nelas mais de 500 oiciais nos arcos da ribeira de Alcântara, onde estão casas formadas de madeira em que assistem os mestres, e uma capela, em que há todos os dias missa por um capelão, a quem se paga do monte maior. Já corre água no alto da parte de além, a qual é muito saborosa»” 147. De então para cá, o monumento marcaria deinitivamente o lugar. Mas a Alcântara desse tempo ainda era a Alcântara do paço real que, apesar de menos usado, continuava a causar admiração a quem o visitava. Escrevera Colmenar, em 1741, que “Alcantara est un petit Bourg, à un quart de lieue de Lisbonne, où il y a un Palais Royal, assez magniique, & fort agréable, par sa situation au bord du Tage. Il eft accompagné de beaux & de délicieux jardins, où l’on voit une ininité de belles leures & d’excellens fruits, de cascades, des grottes, & des fontaines artiicielles 148. Alcântara crescia paulatinamente, mas foi sobretudo a partir do terramoto de 1755 que o lugar conheceu mais signiicativo aumento. Com o cataclismo, as pessoas fugiram das áreas mais afectadas e, como não foi possível reconstruir qualquer prédio nas zonas delimitadas para reconstrução planeada enquanto se procedia aos estudos, o crescimento populacional dos primeiros anos concentrou-se nas margens do centro, principalmente nos territórios vazios para norte e oeste” 149. A freguesia da Ajuda, em cuja jurisdição se inscrevia o 146

CASTELO-BRANCO, Fernando, “Saídas de Lisboa no século XVIII”, Revista Municipal: publicação cultural da Câmara Municipal de Lisboa, n.os 126/127, 3.º e 4.º trimestres de 1970, pp. 16-17, citando um manuscrito anónimo, datável de 1716-1750, depositado na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.

147

SILVA, D. João V, p. 187, citando o Ano Noticioso e Histórico, folheto de Lisboa, de 30 de Julho de 1740, tomo 2, p. 28.

148

COLMEN“R, Don Juan “lvarez de [trad. Pierre Massuet], Annales d’Espagne et de Portugal, Con‑ tenant tout ce qui s’est passé de plus important dans ces deux Royaumes & dans les autres Parties de l’Europe, de même que dans les Indes Orientales & Occidentales, depuis l’établissement de ces deux Monarchies jusqu’à présent..., “ “msterdam : chez François l’Honoré et Fils, 1741, volume 6, p. 257.

149

S“LGUEIRO, Teresa ”arata, Rupturas e continuidades: a cidade herdada , in ”UESCU, Helena Carvalhão; CORDEIRO, Gonçalo (Coordenação), O Grande Terramoto de Lisboa. Ficar diferente, s.l.: Gradiva, 2005, p. 95.

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sítio de Alcântara, foi um desses destinos privilegiados. Como romanticamente escreveu João Paulo Freire, “o burgo arrabaldino de Alcântara pode dizer-se que é ilho primogénito do terramoto de 1755. “ população citadina, alarmada e espavorida, para aqui fugiu e aqui foi construindo novas casas. Ares puros, saudáveis, horizontes largos, junto aos Palácios e aos Conventos foram surgindo pequenas ediicações, e “lcântara fez-se . “irmou o mesmo autor, noutra passagem, que “Alcântara, até então, quintas e palácios, nasceu dêste apavorado momento de angústias . O lugar, porém, não icara imune ao sismo. O paço real, onde então vivia o infante D. “ntónio, quarto ilho de D. Pedro II e de D. Maria Soia, terá icado quase totalmente arruinado e a igreja do convento do Calvário ruiu, falecendo 22 freiras que se haviam acolhido no coro, que na ocasião abateu. Quinze dias após a catástrofe, Alcântara viu sair da pequena ermida de São Joaquim e Sant’Ana uma procissão de acção de graças por o terramoto não ter arrasado por completo a cidade, com destino à igreja de Nossa Senhora das Necessidades e na presença de toda a família real, corte, senado da Câmara, colégio patriarcal, etc. 150. Se a quinta de Alcântara, agora da família Barruncho, sofreu ou não com o terramoto de 1755 é algo que se ignora, embora se possa presumir que os estragos, a terem existido, não foram de monta, pois menos de um ano após a tragédia já a propriedade se engalanava para acolher uma feliz celebração. Na tarde de 3 de Outubro de 1756, com efeito, as portas da ermida de Nossa Senhora do Pópulo abriram-se para que, sob licença do cardeal-patriarca, Vicente Ferrer Barruncho pudesse receber por mulher a D. Maria Leonor Antónia da Nazaré Teixeira, em cerimónia de que foram testemunhas Filipe Simões Barruncho e Manuel Teixeira da Costa, pais dos noivos, espelhando bem o gosto que as duas famílias tinham nesta união 151. Talvez tenha sido a vivência comum em Alcântara a aproximá-las, já que D. Maria Leonor aqui nascera a 7 de Maio de 1731, tendo recebido o baptismo a 23 das mãos do beneiciado “ntónio da Silva Ferreira, capelão do infante D. “ntónio, que serviu de padrinho da criança por procuração passada a Aires de Saldanha e Albuquerque, seu camarista 152. Diga-se, aliás, que o pai da noiva foi guarda-mor da Relação e criado particular de Sua Majestade, não sendo impossível que estivesse igualmente ao serviço daquele infante – que vimos ter residido em Alcântara, lugar onde Manuel Teixeira da Costa e a 150

FREIRE (MÁRIO), op. cit., pp. 19, 147, 149, 164-165 e 174.

151

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “juda, casamentos, livro 5, ls. 375v-376.

152

Ibidem, baptismos, livro 5, l. 46v.

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ilha também habitavam (a mãe, Paula Maurícia Leonor, já tinha falecido à data do consórcio) –, o que explicaria o relacionamento existente 153. Uma nota ainda para referir que D. Maria Leonor era sobrinha do sargento-mor Pedro Teixeira, poderoso valido do rei D. José e que com o monarca seguia na noite do célebre atentado, tendo herdado daquele tio considerável fortuna 154. Os recém-casados icaram a viver na quinta de “lcântara, em dependências separadas das dos pais de Vicente, ainda que contíguas. E pelos anos fora, entre 1757 e 1772, aí lhes nasceram mais de uma dezena de ilhos, a maior parte deles baptizados na mesma ermida da Senhora do Pópulo, como veremos. A 16 de Junho de 1760 foi grande o alvoroço na quinta de Alcântara, onde Filipe Simões Barruncho se encontrava enfermo de cama. Para o seu débil estado certamente contribuíra a prematura morte da ilha Teresa de Jesus, que Deus chamara a si a 27 de Março antecedente. Naquela data, tinha decidido convocar José da Trindade para lhe lavrar o testamento, pois sentia que podia estar perto o im da sua existência. Para que dúvidas não existissem, começou por ditar ao interlocutor a sua proissão de fé, expressando que se em algum tempo por ilusão do Demónio, ou pela veemência da enfermidade, disser ou mostrar o contrário, o declarou por não dito, porque o contrário é o que sigo e seguirei até à última respiração da vida”. Encomendada a alma, Filipe rogou a intercessão dos santos e em particular do seráico São Francisco, de quem declarou ser indigno ilho Terceiro . E airmando estar casado com D. Catarina da Encarnação, reconheceu tê-la sempre amado “como devia, e o mereciam as suas prendas e virtudes”. Possivelmente em ritmo pausado, continuou o doente a determinar as suas últimas disposições, tentando acautelar todos os pormenores, pois certamente não queria que surgissem quaisquer quezílias ou demandas depois de deixar este mundo. “os ilhos, recomendou o Santo temor de Deus e que perseverem em boa união e com aquele procedimento que eu sempre observei, e estimem e obedeçam a sua Mãe com aquela submissão que Deus manda”. Foram oito laudas e meia de papel, pacientemente redigidas. Terminada a lavra, José da Trindade entregou o documento ao testador, que por sua própria mão o assinou e devolveu, para que aquele lhe colocasse os seis pingos de lacre que garantiriam que icaria cerrado até que Deus fosse servido chamar Filipe à sua presença. Com a solenidade que as parcas forças ainda permitiram, o enfermo pegou de novo no maço agora fechado e pousou-o nas mãos do tabelião Bar153

BORREGO, Habilitações…, tomo 2, pp. 200-201.

154

PONA, op. cit., p. 5, disponível em http://genealogias.info/.

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tolomeu Ângelo Escopery, que igualmente se achava presente. O quarto onde a cena se desenrolava talvez parecesse pequeno para acomodar tanta gente: a testemunhar o acto, também ali se encontravam Luís “lves, oicial de algibebe, Pedro Machado, oicial de sapateiro, “ntónio José Rodrigues, criado de um ilho do testador, Feliciano de Matos, soldado de cavalo do regimento de Alcântara, Sebastião Simões dos Santos, trabalhador, e António José Fernandes, o caseiro da quinta. Filipe Simões Barruncho pediu então ao referido notário que lhe aprovasse a manda, respondendo às questões que este, na forma da lei, lhe fazia: que era seu e que a seu rogo lho havia escrito José da Trindade, e lho lera todo e ele testador o achara muito à sua vontade na forma que o havia ditado e com ele o assinara de sua própria mão, e que assim o aprovava e ratiicava por seu bom e verdadeiro testamento 155. Filipe Simões Barruncho faleceu na quinta de Alcântara, que tanto prezara e onde vivera tão bons momentos, no dia 28 desse mês de Junho de 1760. Amortalharam-lhe o corpo no hábito do seu venerável padre São Francisco, conforme rogara no testamento, e porque igualmente pedira para se evitarem as pompas – “que a vanglória do mundo tem introduzido para as funestas funções”, lastimara-se ele, acrescentando reconhecer a sua humildade e a frágil matéria de que era formado e considerar todas as mais pompas vaidosas “nesta miserável vida” – limitaram-se a transportá-lo, noite caída, numa alcatifa levada por seis pobres, acompanhado pelo reverendo pároco da freguesia, pelos demais padres do costume e por mais trinta pobres que envergavam uma vela de quarta cada um. Não foi longo o trajecto do fúnebre cortejo, que apenas desceu do andar nobre à capela da Senhora do Pópulo, onde Filipe quisera ser sepultado e onde já se encontravam os restos mortais da ilha Teresa de Jesus 156. Os ilhos vivos à época foram os seus herdeiros, com excepção de Joaquim Xavier Barruncho, padre da Companhia de Jesus e por isso “inábil de herdar pela sua proissão religiosa , e de madre soror Catarina Maria do Nascimento do Menino Jesus, religiosa professa no convento de Santa Apolónia, em virtude do contrato de renúncia de legítimas que o pai celebrara com este cenóbio. Filipe Simões Barruncho vivera abastadamente e conseguira, por isso, dar bom destino à prole. Para além daqueles dois ilhos, haviam igualmente seguido a vida 155

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “juda, óbitos, livro 5, l. 41v. Feitos Findos, Inventários (autos de conta de testamento), Filipe Simões Barruncho, maço 139, n.º 9.

156

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “juda, óbitos, livro 5, l. 46v. Feitos Findos, Inventários (autos de conta de testamento), Filipe Simões Barruncho, maço 139, n.º 9.

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religiosa D. Antónia Joaquina, recolhida no mesmo convento de Santa Apolónia, soror Ana de Jesus Maria José, professa no convento dos Cardais, e o padre Manuel Simões Barruncho, presbítero do hábito de São Pedro, que tendo alcançado uma licenciatura em cânones pela Universidade de Coimbra foi chantre e tesoureiro na Real Colegiada de Ourém, sendo da sua autoria o livro Centúria Metrica de Sonetos Moraes, publicada em 1765 e de que há outra edição com o título de Paixão Moralisada em Sonetos Moraes e Anagogicos, Segundo a Narração dos Quatro Evangelistas, datada de 1783 – sobre a qual Inocêncio escreveu que “posto que não attinja os vôos da elevada poesia, contém esta obra mui judiciosas moralidades, e parece-me ser escripta em estylo corrente e desempecado ; deveu-se ainda à autoria de Manuel Simões Barruncho um breve opúsculo chamado Oração congratulatória a El‑rei Nosso Senhor pelo felecissimo nascimento do Principe da Beira, seu neto, cujo local e ano de edição se desconhecem 157. Dos ilhos de Filipe Simões Barruncho que haviam permanecido no estado secular, coubera a José suceder ao pai no importante cargo que este desempenhara na Alfândega de Lisboa. No seu citado testamento, o progenitor chegara a declarar “que entre os bens que possuo é a propriedade do Ofício de Escrivão da Mesa grande da “lfândega desta Cidade, que actualmente está servindo meu ilho José Simões Barruncho, e a este como mais velho, pertence a propriedade do dito ofício, pelo direito consuetudinário, o que Sua Majestade, pela sua Real grandeza, não costuma faltar, e espero que o mesmo Senhor lhe faça dele mercê, e lhe remunere como for servido os serviços que lhe tenho feito, os quais também deixo ao dito meu ilho José Simões ”arruncho . Para além daquele cargo de escrivão, que efectivamente o rei D. José lhe concedeu por carta de 11 de Julho de 1763, era este ilho de Filipe Simões ”arruncho familiar do Santo Ofício desde 7 de Abril de 1744, mantendo-se solteiro à data em que o pai faleceu 158. Igualmente celibatário, Francisco Xavier Barruncho chegara a receber ordens menores, sendo provável que depois tenha passado pela universidade, pois surge frequentemente designado como doutor, sem que no entanto se lhe conheça o exercício de algum cargo ou função. Vicente Ferrer Barruncho, o último dos varões, foi o único a casar e fê-lo até em vida do pai, como vimos. Cavaleiro professo na Ordem de Cristo por carta de 21 de Setembro de 1751 e moço da câmara de Sua Majestade a 5 de Agosto de 1756, Vicente Ferrer Barruncho 157

VIDAL, op. cit., volume 3, p. 141. SILVA, Innocencio Francisco da, Diccionario Bibliographico Por‑ tuguez, Lisboa: Na Imprensa Nacional, 1862, tomo 6, p. 112.

158

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. José I, livro 17, l. 473. Tribunal do Santo Ofício, Habilitações, José Simões Barruncho, maço 50, n.º 804.

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recebera, a 18 de Maio de 1759, alvará do ofício de mercador do sal da cidade de Lisboa; mais tarde, em virtude da renúncia do irmão José, Vicente seria empossado como escrivão da mesa grande da Alfândega de Lisboa, o tradicional cargo da família, e teve também o ofício de escrivão dos contos da provedoria de Coimbra; uma carta de D. Maria I datada de 3 de Julho de 1793 conferiu-lhe o cargo palatino de servidor da toalha 159. Dona Maria Isabel da Visitação, por im, a única das raparigas que não seguira a vida religiosa, mantinha-se solteira à data em que o pai morreu, deixando-lhe este o remanescente e dois legados caducados da herança de João Soares Franco, tio da mulher, “para que lhe possa servir de ajuda de dote ou de alimentos” 160. Filipe Simões Barruncho lograra ainda obter para os ilhos José, Manuel, Francisco Xavier e Vicente Ferrer, a 10 de Outubro de 1749, o foro de cavaleiro-idalgo da Casa Real, tendo Manuel alcançado vinte anos mais tarde, a 7 de Julho de 1769, o foro de capelão-idalgo, com 450 réis de moradia por mês, além dos 750 réis que recebia de cavaleiro-idalgo, e três-quartos de cevada por dia 161. Do remanescente da terça, cumpridas as obrigações de missas e satisfeitos os legados, dispusera Filipe Simões Barruncho a favor da viúva, para esta gozar em vida, podendo por sua morte testar livremente a favor dos ilhos que entendesse. Lamentara Filipe não “ter muito mais que lhe poder deixar pelo muito afecto com que sempre a amei e em atenção ao igual amor com que a dita minha mulher sempre me correspondeu”, salvaguardando todavia que nesse remanescente de terça, ainda que sem serem abrangidos por aquela cláusula ideicomissária, caberiam os três escravos que possuíra – um mulato chamado Manuel Preto, criado em casa, uma preta chamada Ana, mãe daquele e ambos comprados juntamente, e outra preta chamada Maria, oriunda da Costa da Mina –, pois não seria justo que por algum acontecimento D. Catarina icasse privada do gosto de se servir com escravos cujo génio não conhecesse. À mulher deixara ainda Filipe o prazo composto por aquelas moradas de casas sitas à porta travessa da igreja de São João da Praça, onde o casal residira nos primeiros tempos 159

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. José I, livro 3, l. 130; livro 10, l. 486; e livro 17, l. 473. Ibidem, D. Maria I, livro 22, l. 214v; livro 28, l. 366v; e livro 29, l. 274. ”ORREGO, Ha‑ bilitações…, tomo 2, p. 200. BORREGO, Nuno Gonçalo Pereira, Mordomia‑Mor da Casa Real. Foros e Ofícios. 1755‑1910, Lisboa: Tribuna da História, 2007, tomo 1, p. 107. VID“L, op. cit., volume 3, pp. 142-143.

160

Torre do Tombo, Feitos Findos, Inventários (autos de conta de testamento), Filipe Simões Barruncho, maço 139, n.º 9.

161

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. João V, livro 40, ls. 359v-360. Ibidem, D. José, livro 24, l. 249.

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de matrimónio e de que infelizmente só restavam chão e ruínas, pois o edifício ardera no incêndio que se seguira ao terramoto de 1755 162. Viúva, D. Catarina da Encarnação permaneceu na quinta de Alcântara na companhia de vários ilhos, passando ainda pelo revés de ver falecer-lhe o mais velho que com ela habitava. A 25 de Novembro de 1764, com efeito, no estado de solteiro, sem ter feito testamento e munido de todos os sacramentos, partiu José Simões Barruncho, sendo o seu corpo sepultado na ermida da Senhora do Pópulo, na própria quinta 163. Nesta época, o conjunto ediicado da propriedade era signiicativo, não sendo de excluir a hipótese de Filipe Simões ”arruncho o ter ampliado depois da aquisição a José Fiúza Correia, a exemplo do que izera o próprio desembargador. Assim, para além de “uma morada de casas nobres do padre Manuel Simões Barruncho e de seu Irmão Francisco Xavier Barruncho”, situadas na então designada rua do Forno, e da “Quinta que serve de Horta, parreiras, e azeites, que os mesmos senhorios trazem por sua conta”, existiam em 1762-1763, pertencentes aos mesmos dois irmãos: do lado esquerdo da rua do Alvito, uma morada de casas com quinze lojas e catorze andares, do lado direito da referida rua do Forno, certamente já perto da esquina com a travessa do Quebra-Costas, outro edifício com três lojas e três andares, na rua direita da Tapada, do lado direito, uma loja e um andar e, depois de três prédios pertença de outrem, mais uma morada de casas com altos e baixos e outra com três lojas e dois andares; a Vicente Ferrer Barruncho pertencia na rua do Príncipe, do lado direito e ao princípio, uma morada de casas que constava de três lojas 164. Até 1766, parece ter-se operado novo aumento da área construída, pois na rua do Príncipe, do lado esquerdo, aqueles dois irmãos detinham agora um edifício com dezasseis lojas e andares, possivelmente contiguo à esquina mais a poente das casas nobres, e outro com duas lojas e um andar, talvez do lado oposto; no beco do Quebra-Costas possuíam os mesmos Francisco Xavier e o padre Manuel duas lojas e um andar de cada lado; e as casas de Vicente Ferrer Barruncho na esquina da rua do Príncipe tinham agora mais uma loja e um andar, sendo possível que mais tarde ainda fossem outra vez aumentadas para o proprietário nelas instalar a sua família 165. Grande parte de todo este ediicado encontrou162

Torre do Tombo, Feitos Findos, Inventários (autos de conta de testamento), Filipe Simões Barruncho, maço 139, n.º 9.

163

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “juda, óbitos, livro 5, l. 151v.

164

Arquivo Histórico do Tribunal de Contas, Décima da Cidade, Livro dos Prédios Rústicos e Urbanos da freguesia de Nossa Senhora da “juda, 1762-1763, ls. 15, 34, 37 e 38.

165

Ibidem, Livro de “rruamentos da freguesia de Nossa Senhora da “juda, 1766, ls. 22v-23v e 31-32.

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-se arrendado ao longo desses anos. Pode imaginar-se a vida e o bulício desse pedaço de cidade, formado por estreitas ruelas para onde deitavam inúmeras lojas, ocupadas pelos mais diferentes mestres e oiciais, sobre as quais, em pequenos quartos, residiam outras tantas e diversas personagens. Se percorrêssemos a rua do Príncipe naquele ano de 1766, antes de chegarmos às casas nobres situadas no seu topo encontraríamos João Baptista, criado do Marchante, Manuel da Costa, oicial de serrador, certa Isabel Teresa que a par de Simão Carreiro e Manuel José Martins tinham ocupação ignorada, Maurício Dinis, apenas um homem velho, Manuel Teixeira, criado d’el-Rei, Alexandre Rodrigues, trabalhador, Pedro Machado, oicial de sapateiro, Dionísio Gonçalves, criado do ”arruncho, Isabel dos Santos, Maria Francisca e Angélica, as três senhoras viúvas, José “ntónio, oicial de pedreiro, “gostinho de ”rito, oicial de canteiro, Joaquim José, calafate, e Rodrigo Pereira, um marinheiro porventura guardião de temerárias e rocambolescas aventuras. Nas casas que deitavam para a rua da Tapada viviam, entre outros, Francisco da Laje, oicial de uma das Secretarias de Estado, e Manuel Ferreira da Costa, porteiro da cana, revelando a proximidade do lugar com a real barraca da Ajuda 166. O início do verão de 1767, na quinta de “lcântara, icou marcado pela morte de D. Catarina da Encarnação, que entregou a alma ao criador a 29 de Junho, dia de São Pedro, certamente prenúncio de que as portas do céu se abririam à sua chegada. O seu corpo foi sepultado junto ao do marido e dos ilhos José e Teresa de Jesus, na sua devotada ermida de Nossa Senhora do Pópulo, e nesse mesmo dia, pela sua alma, celebraram-se ofícios nos conventos de Nossa Senhora dos Cardais, de Santa “polónia, do Santo Cruciixo e das Religiosas Flamengas de “lcântara. Coube ao ilho Francisco Xavier ”arruncho, nomeado testamenteiro da mãe, abrir o respectivo instrumento de última vontade, que ela ditara a 15 de Outubro de 1764 a Manuel António Pereira. Ao ler certa passagem do documento, em que a mãe declarava ter vivido com o pai até ao seu falecimento “correspondendo-lhe ao muito amor que sempre lhe devi”, talvez Francisco tenha experimentado alguma comoção. E pôde depois veriicar o quão organizada fora a progenitora, que ali confessava ter dado pronto cumprimento a todas as disposições do marido, conforme constava de uma sentença de quitação passada no escritório de que era proprietário João Soares de Aguiar, tendo aliás dado partilhas amigáveis aos ilhos, sentenciadas no juízo dos órfãos, sendo escrivão 166

Arquivo Histórico do Tribunal de Contas, Décima da Cidade, Livro de Arruamentos da freguesia de Nossa Senhora da “juda, 1766, ls. 22v-23v, 33v e 35.

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Joaquim José de Melo Pimentel, separando-se então as legítimas daqueles da sua própria meação. “gora, no seu testamento, foi também aos ilhos que a progenitora instituiu como herdeiros, não só com igual excepção do padre jesuíta Joaquim Xavier ”arruncho mas também de todas as ilhas religiosas – a madre Ana de Jesus Maria José, professa no convento de Nossa Senhora dos Cardais, e a madre soror Catarina Maria do Nascimento e a madre Antónia Joaquina dos Prazeres, ambas recolhidas no convento de Santa Apolónia – “pelos contratos de Renúncia de Legítima que com licença de Seus Prelados maiores celebrei com seus conventos . À ilha Maria Isabel da Visitação, que subsistia no estado de solteira, deixou D. Catarina umas moradas de casas que tinha na rua direita da Mouraria, foreiras em vidas à casa de Cascais, prazo que lhe havia sido nomeado pela respectiva mãe, e também as já mencionadas casas nobres incendiadas e arruinadas, sitas defronte da porta travessa de São João da Praça, que eram prazo em vidas foreiro à mesa paroquial da mesma igreja e que lhe havia sido nomeado pelo marido. E quanto às casas e quinta de “lcântara? Para se conhecer o destino que estas vieram a ter, continuemos a acompanhar Francisco Xavier na leitura do testamento da progenitora: “Meu marido, que Deus tem, o Senhor Filipe Simões Barruncho, me deixou em seu Testamento a sua terça em ideicomisso, com a faculdade de poder dispor dela por minha morte a favor de um ou mais ilhos ou ilhas e com os encargos que eu quiser; e usando da dita faculdade mando que meu Testamenteiro faça Vincular tanto a terça do dito meu marido, como também a minha para que ambas iquem para sempre com a natureza de Vínculo e Morgado, e ele dito meu Testamenteiro e seu Irmão Manuel Simões Barruncho, em suas vidas, se utilizarão em partes iguais dos rendimentos da terça do dito meu marido, para o que os hei por chamados, a cada um em metade do rendimento da dita terça; e por morte de um deles icará o mesmo rendimento pertencendo por inteiro ao que sobreviver, e por falecimento de ambos pertencerá a minha ilha Dona Maria Isabel da Visitação, e por morte desta chamada passará a meu ilho José Simões Barruncho, que também chamam, digo, que também chamo”.

Em relação à sua própria terça e ao mais de que pudesse dispor sem prejuízo das legítimas dos ilhos, estipulou D. Catarina: (…) quero e é minha vontade que meu Testamenteiro faça Vínculo como já disse, e em primeiro lugar chamo para suceder, e se utilizar dos rendimentos da dita minha terça a minha ilha Dona Maria Isabel da Visitação, e por sua morte aos ditos meus ilhos Manuel Simões ”arruncho e Francisco Xavier ”arruncho, na mesma sorte que já os tenho chamado para sucederem na terça do dito meu marido, e por morte destes chamo a meu ilho José Simões ”arruncho, e por morte dele e dos mais até aqui chamados icarão ambas as terças e o mais que

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me possa pertencer tudo unido com a natureza de vínculo e morgado que com efeito instituo (…), e chamo então para “dministrador deste Morgado a meu ilho Vicente Ferrer Barruncho, sendo vivo, e toda a sua legítima descendência”.

Deiniu a testadora um conjunto de regras de sucessão no vínculo, admitindo sempre, em qualquer grau, o direito de representação, “para por virtude dela entrar aquela pessoa que estiver em melhor linha a respeito da última pessoa que tiver administrado este Morgado” 167. E prosseguiu: “Na minha terça que já acima tenho tomado para o dito Morgado quero e é minha vontade e mando que entrem as tornas a que no Inventário e partilhas amigavelmente feitas pelo falecimento do dito meu [Marido] me icaram obrigados meus ilhos Manuel Simões ”arruncho e Francisco Xavier ”arruncho pelo maior valor desta Quinta de Alcântara com todas as suas pertenças, aonde sou moradora, a qual lhes icou pertencendo como adjudicada nas ditas Partilhas em pagamento de suas Legítimas Paternas (…), de tal sorte que todo o líquido da referida minha terça será satisfeito por tanta parte das (…) sobreditas tornas quanta baste para completar o mesmo líquido (…) .

E certamente em honra e memória do marido determinou: “Mando que todos os Administradores deste Morgado se apelidem com o nome de Barruncho, assinando-se com ele em todos os papéis, assim públicos, como particulares, com pena de perderem a Administração a favor do imediato sucessor, e para que se conheçam melhor os meus descendentes e a quem pertence a Administração deste Morgado no caso de quebrar a linha, é justo que todos os ilhos dos que forem “dministradores se apelidem e assinem do mesmo modo .

O espírito metódico de D. Catarina da Encarnação uma vez mais se manifestava, ao estabelecer que o seu testamento deveria ser passado a dois livros, assim como os dos mais que se izessem pelo tempo fora a favor do morgado, (…) e vão descrevendo todos os bens de que ele se compuser e os que a ele pelo tempo em diante se houverem de ajuntar por qualquer título que seja, e também o dia do falecimento de todos os Administradores, e os nomes e estados de todos os ilhos e ilhas e mais descendentes que lhes icaram e o dito meu Testamenteiro declarará o lugar e pessoas que devem ter os ditos livros”.

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O ilho mais velho preferirá sempre ao mais moço e este à ilha mais velha de qualquer dos “dministradores, e o Neto, e na falta de varão, a Neta ilhos do ilho mais Velho que faleceu em vida do último “dministrador preferirão aos Tios e Tias ilhos segundos do tal “dministrador”. Estabeleceu D. Catarina, também, algumas cláusulas de exclusão da administração de clérigos, frades e freiras, dementes ou “pessoa que tenha raça de Judeu, Mouro, Mulato ou outra alguma infecta nação”, bem como de quem praticasse qualquer crime de lesa-majestade.

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Reira-se ainda que todos os administradores icavam obrigados a vincular a terça parte dos bens de que pudessem testar e dispor, com excepção daqueles que não tivessem descendência, pois estes deveriam vincular a terça parte de todos os seus bens. E continuando a deinir os termos da instituição, airmou D. Catarina: Se meus ilhos ajuntarem a este Morgado esta Quinta de “lcântara em que sou moradora e suas pertenças, ou por outro qualquer modo se vier em tempo algum a incorporar neste Morgado, mando que nela e suas pertenças se constitua e seja a primeira pedra do Morgado, e neste caso declaro que nesta Ermida de Nossa Senhora do Pópulo é que devem dizer as Missas os Capelães que não forem ilhos legítimos do “dministrador, e serão estes obrigados a rezar um responso sobre a minha sepultura e do dito meu marido e de meus ilhos que na dita Ermida estiverem sepultados a cada um no dia de seu falecimento e os Administradores serão obrigados a fazer toda a despesa que for precisa para conservação e aumento da Ermida e ainda a da Reediicação no caso de ruína total e a ter nela pronto o guisamento de todas as cores, que sempre deve ser de seda, e com todo o asseio e riqueza possível para que qualquer sacerdote que nela quiser celebrar Missa o possa fazer sem impedimento algum. (…) E que não obstante a proibição de se não poder empregar dinheiro algum em moradas de casas, mando que se faça toda a diligência para que se comprem e unam a este Morgado todas as moradas de casas e mais casta de fazendas que de algum modo coninarem com esta dita Quinta, ou com cousa que pertença a este Morgado”.

No indesejado e improvável caso de vir a faltar toda a descendência para suceder no morgado, pretendia D. Catarina que os respectivos bens fossem administrados pelo reverendo padre da real casa de Nossa Senhora das Necessidades e os seus rendimentos afectos a um recolhimento de mulheres viúvas, sem ilhos, preferindo-se a entrada a cegas, a fundar na quinta de Alcântara no caso de esta ser vinculada, instituição para a qual a testadora estipulou um conjunto complexo de regras de funcionamento e de obrigações a cumprir pelas recolhidas 168. Esta última hipótese prevista por D. Catarina da Encarnação nunca se veriicou, tendo a quinta de Alcântara continuado na posse de Francisco Xavier Barruncho e de seu irmão o padre Manuel Simões Barruncho, agora obrigados a instituir à data das suas mortes o morgado estipulado pela falecida mãe. Entretanto, com a ruina provocada pelo terramoto de 1755 e a confusão gerada quer em torno dos limites das circunscrições paroquiais da cidade, quer da subsequente 168

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Todas as citações do testamento constam de um traslado existente em Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Corte, maço 1447, n.º 4.

reediicação de acordo com um plano regular e estendido aos campos circundantes, tornara-se necessário proceder a uma nova delimitação das freguesias de Lisboa. A 19 de Agosto de 1756, um breve do Papa Benedito XIV, expedido a instâncias de D. José, autorizara as paróquias, colegiadas e outras igrejas seculares que se achassem arruinadas ou situadas em lugares prejudiciais aos seus paroquianos a transferirem-se para outros locais mais cómodos e decentes; e determinara várias providências para a reconstrução e ornato das igrejas. A divisão paroquial que resultou daquela prerrogativa foi feita a 8 de Abril de 1770, na sequência da carta régia de 18 de Dezembro do ano anterior. No âmbito deste plano, cinco freguesias foram trasladadas para locais afastados dos primitivos, fortemente devastados pelo terramoto, instalando-se todas elas provisoriamente em igrejas ou ermidas emprestadas. Deste modo, a freguesia de São Pedro, antes de “lfama, foi transferida para “lcântara, icando instalada na ermida da Caridade, entretanto ediicada junto ao mosteiro do Calvário, abandonada que estava a ideia inicial de colocar a sua sede na capela de Santo Amaro 169. O território da nova paróquia icava todo a poente da ribeira de “lcântara, tendo sido destacado da freguesia da Ajuda, podendo observar-se na planta então elaborada a área de implantação da quinta que agora pertencia aos Barrunchos, cujos edifícios se estendiam desde o início da rua da Tapada até à do “lvito, como acima se disse [Figura 10]. “ freguesia recém-criada compreendia assim a seguinte circunscrição 170: “Esta Parrochia será denovo staballecida na Ermida da Caridade, q esta junto a o Conv.º do Calvario. Começarà o seu destricto na Igr.ª de S. Amaro, de donde sobindo p.ª cima athè a entrada da traveça q sahe na Junqr.ª junto às Cazas dos Condes da Ribeira, lhe pertencera o lado Oriental della, e discorrendo por toda a rua de S. Amaro, de huã, e outra p.ª athé a Ponte de Alcantara, sobirà pela margem Occidental do rio athé a Quinta do Conde de Oeyras inclusivé, e daqui em direitura ao Muro da Tapada de S. Mag.e de donde vindo procurar as Pedreiras, e Fornos da Cal de Guilherme Stephens, lhe pertenceraõ tambem as seg.es ruas; rua da Tapada athe o arco, traveça do Fiuza, rua do Princepe, rua da Fabrica da Polvora, rua das Pedreiras, rua dos Tanques, e Praya do Calvario .

Dez anos mais tarde, porém, por proposta do cardeal-patriarca D. Fernando de Sousa e Silva, promulgada por alvará régio de 19 de Abril de 1780, foi aprovada uma nova reorganização paroquial que deixou as sedes das freguesias nos 169

SILVA, Augusto Vieira da, As freguesias de Lisboa (estudo histórico), Lisboa: Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, 1943, p. 19.

170

Lisboa na 2.ª metade do séc. XVIII (plantas e descrições das suas freguesias) (recolha e índices por Francisco Santana), s.l.: [Câmara Municipal de Lisboa], s.d., p. 36.

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mesmos locais assinalados em 1770, mas que alterou os respectivos territórios. De entre as mudanças mais profundas, a área da paróquia de Alcântara foi ampliada para o lado oriental da ribeira, à custa de uma parte da freguesia do Senhor Jesus da Boa Morte, que se extinguiu e que anteriormente havia pertencido a Santos. Pouco antes, por decreto de D. Maria I de 9 de Março do referido ano de 1780, em terrenos que pertenciam à Casa Real situados num dos topos da quinta contígua ao paço de Alcântara e aproveitando-se pedras e cantarias das partes arruinadas do mosteiro do Calvário, iniciara-se a construção de uma nova igreja, dedicada a São Pedro, que, a partir de 1786, viria a constituir-se em matriz da recente paróquia 171. Ainda antes do arranque desta obra, a 2 de Setembro de 1778, Francisco Xavier Barruncho e o padre Manuel Simões Barruncho haviam-se encontrado na rua direita do Arsenal da Marinha, no escritório do já citado tabelião Bartolomeu Ângelo Escopery, para aí outorgarem importante escritura. Disseram então os dois irmãos que sua mãe, no testamento com que falecera, instituíra um vínculo e morgado tanto da sua terça, como da de seu defunto marido, a efectivar depois de terminados os ideicomissos impostos pelos dois progenitores. Estavam essas duas terças estabelecidas nas tornas a que ambos os contraentes se encontravam obrigados, em resultado do valor superior da quinta de Alcântara e suas pertenças, que lhes coubera nas partilhas, propriedade que, no caso de eles a desejarem juntar ao referido morgado, deveria ser a sua primeira pedra. Deste modo 172, (…) querendo eles ditos Reverendo Manuel Simões ”arruncho e Francisco Xavier Barruncho nomear bens superabundantemente equivalentes que preencham e satisfaçam o líquido valor das ditas duas terças para nele icar constituído e subsistindo o dito Vínculo e Morgado, disseram que nomeavam a sobredita Quinta de Alcântara com todas as suas pertenças e anexas, para que tudo daqui em diante ique pertencendo ao dito Vínculo, com declaração de que enquanto se não acabarem as vocações, tanto dos ideicomissos feitos pela dita Instituidora sua Mãe, como a que agora fazem do excesso do valor das ditas duas terças, pelo maior que tem a mesma Quinta, se dividirá seu rendimento na forma expressa nas mesmas vocações, para que quando chegar a entrar na pessoa de Vicente Ferrer Barruncho, Irmão deles outorgantes, e na falta dele na sua legítima descendência, seja já com a natureza de Vínculo e Morgado e assim continuar nele na forma da dita Instituição, só com a declaração de que sendo a esse tempo ainda vivo o dito Reverendo Joaquim Xavier Barruncho, será o dito seu Irmão 171

SILVA, As freguesias…, pp. 20 e 37.

172

Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Corte, maço 1447, n.º 4.

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Vicente Ferrer Barruncho e na sua falta o sucessor que for, obrigado a dar ao dito Reverendo Joaquim Xavier Barruncho todo o rendimento de todas as Legítimas que eles outorgantes têm no valor da dita Quinta”.

Por esta via, condescendendo com a vontade da mãe, ambos os contraentes procuravam antecipar diversos objectivos: garantir desde logo a subsistência deles próprios e dos irmãos que se encontravam numa situação mais precária – Joaquim Xavier Barruncho e D. Maria Isabel da Visitação –, enquanto fossem vivos; e assegurar depois a transmissão completa desse importante núcleo patrimonial erigido em torno da quinta de Alcântara para o irmão Vicente Ferrer Barruncho, aquele que, por via do casamento e da geração já concebida, representava a continuidade e a memória da família, precisando todavia daquele mesmo conjunto de bens imóveis para acautelar o respectivo sustento. Os efeitos desta escritura, porém, icaram algo controvertidos, por dúvidas relacionadas com a aplicabilidade das leis pombalinas que, em 1769 e 1770, se haviam publicado em matéria de vínculos e morgados. No fundo, como mais tarde Francisco Xavier Barruncho resumiu, apesar da instituição do morgado ser anterior à lei de 9 de Setembro de 1769 – pois resultara do testamento da mãe, lavrado em 1764 e aberto em 1767 –, hesitava-se sobre a sua validade por ser o seu estabelecimento posterior à mesma lei –este ocorrera com a citada escritura celebrada pelos dois irmãos em 1778. Não tendo conseguido alcançar, na justiça secular, sentença que ratiicasse tal estabelecimento, decidiu Francisco Xavier Barruncho levar o assunto ao Desembargo do Paço onde, depois da anuência do provedor dos Resíduos e do procurador da Coroa, acabou por merecer um despacho de conformidade do príncipe regente D.  João, a 20 de Outubro de 1803. E inalmente, a 26 de Junho do ano seguinte, foi lavrado um aviso que determinava que 173 “Ao Doutor Francisco Xavier Barruncho se há-de passar Provisão em que se Declare válido o estabelecimento de um Morgado que sua Mãe D. Catarina da Encarnação, em seu solene testamento aberto aos 29 de Junho de 1767, mandou instituir da sua terça e da de seu Marido Filipe Simões Barruncho, que importam em 7.786$048 réis, sendo o dito estabelecimento feito na Quinta de Alcântara, que tem o valor de 14.800$000 réis, cujo excesso inclui as Legítimas do Suplicante Testamenteiro e de seu Irmão o Tesoureiro-Mor da Colegiada de Ourém, Manuel Simões Barruncho, que estes anexam ao dito Morgado”.

173

Ibidem, maço 1447, n.º 4; e maço 2129, n.º 32.

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Por esta altura, concretamente entre 1801 e 1803, a parte rústica da quinta de Alcântara – também a designavam de quinta denominada do Barruncho além do Rio de Alcântara – estivera arrendada ao sargento-mor António José da Costa, parente da mulher de Vicente Ferrer Barruncho, constando então que nela se “produz muitas hortaliças e muitos Verdes, algum Azeite e frutas”, ainda que fosse propriedade “muito custosa de tirar a água dos Poços”. Os respectivos dízimos eram então pagos à basílica de Santa Maria Maior e às colegiadas de São Bartolomeu e de São João da Praça, de Lisboa, que à roda de 1811 vieram reclamar a falta de pagamento por parte daquele rendeiro 174. As coisas no que respeita à formalização da instituição do morgado encontravam-se no ponto acima mencionado quando Vicente Ferrer ”arruncho, o ilho que D.  Catarina da Encarnação chamara para primeiro administrador, faleceu. Estávamos no dia 20 de Abril de 1805, quase cinquenta anos depois de ele e D. Maria Leonor Teixeira terem casado na ermida de Nossa Senhora do Pópulo, o mesmo lugar onde o seu corpo foi a enterrar no dia seguinte a ter morrido 175. Durante esse largo tempo, Vicente e a mulher haviam icado a residir, como já se disse, em casa separada da dos progenitores e irmãos dele, na então designada travessa dos Fornos, ainda que integrada ou pelo menos contígua ao núcleo principal da quinta de Alcântara, pois nos róis de confessados respectivos os dois agregados foram habitualmente referidos em conjunto ou um logo a seguir ao outro 176. Foi aí que lhes nasceram diversos ilhos, o mais velho dos quais, João Pedro Barruncho, a 3 de Setembro de 1757, baptizado na paroquial da Ajuda a 11 do mesmo mês pelo padre Manuel Simões Barruncho. Seguiram-se Mariana Rita Barruncho, nascida a 12 de Fevereiro e baptizada a 10 de Março de 1759, Francisco de Sales ”arruncho, nascido a 21 de Janeiro e baptizado a 7 de Fevereiro de 1761, Gertrudes, nascida a 1 e baptizada a 19 de Abril de 1762, António, baptizado a 29 de Março de 1763, Teresa Genoveva de Jesus Barruncho, nascida a 18 e baptizada a 31 de Maio de 1764, Bernardino de Sena Barruncho, nascido a 20 de Maio e baptizado a 8 de Junho de 1766, Catarina Antónia Maria das Mercês Barruncho, nascida a 8 e baptizada a 18 de Junho de 1767, todos estes em cerimónias realizadas na ermida da Senhora do Pópulo sob a 174

Torre do Tombo, Feitos Findos, Juízo dos Feitos da Coroa, maço 22, n.º 7.

175

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “lcântara, óbitos, livro 3, l. 166.

176

”iblioteca da “juda, Róis de Confessados da Paróquia da “juda, 51-III-18, ls. 97-97v; 51-III-19, ls. 148v-149; 51-III-20, l. 165v; 51-III-21, ls. 164v-165; 51-III-22, l. 160; 51-III-23, ls. 169-169v; e 51-III-24, l. 176.

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presidência daquele mesmo tio. Genoveva, nascida a 14 de Outubro de 1768, foi baptizada a 6 de Novembro na mesma ermida mas pelo pároco da Ajuda. E já depois da criação da nova paróquia de “lcântara vieram ao mundo Manuel Joaquim Barruncho, baptizado pelo respectivo prior a 9 de Junho de 1771 sem se especiicar o lugar (teria sido na ermida da Caridade, onde a paróquia icara provisoriamente instalada?) e “na Isabel ”arruncho, baptizada a 17 de Julho de 1772 novamente na ermida de Nossa Senhora do Pópulo pelo mesmo prior de Alcântara 177. Apesar de neste meio tempo terem morrido Filipe Simões Barruncho e D. Catarina da Encarnação, os patriarcas da família, foram certamente alegres e buliçosos estes tempos de tanta pequerralha a correr pela quinta de Alcântara. É possível que Vicente Ferrer Barruncho e a mulher tenham tido, ainda assim, o desgosto de ver falecer três dos seus rebentos em tenra idade, pois de Gertrudes, de António e de Genoveva não parece haver notícia subsequente. Mas os demais cresceram e seguiram as suas vidas. Francisco de Sales Barruncho e ”ernardino de Sena ”arruncho haviam tomado ordens sacerdotais: o primeiro, depois de ter frequentado a partir de 24 de Outubro de 1772 o Real Colégio de Mafra, era em 1787 cónego da basílica de Santa Maria da cidade de Lisboa; o segundo, tendo alcançado a sua habilitação de genere neste mesmo ano, entrara depois na congregação de Nossa Senhora da Assunção, vulgarmente dita do Oratório, para o que seus pais lhe haviam feito a competente escritura de património, oferecendo-lhe igualmente alguma mobília que ele na ocasião levara. Três das raparigas – D. Mariana Rita, D. Teresa Genoveva e D. Ana Isabel – mantiveram-se pelos anos fora no estado de solteiras, recebendo aliás de seus pais o remanescente das respectivas terças, “não só em reconhecimento da obediência que sempre nos têm guardado, mas também para melhor poderem passar com recolhimento, educação e tratamento com que nós Testadores as temos sempre tratado, visto que pela imbecilidade e delicadeza do seu sexo não podem como os outros ilhos buscar o seu estabelecimento . Já João Pedro, D. Catarina Antónia e Manuel Joaquim haviam – no dizer dos progenitores – “casado muito à nossa vontade” 178. 177

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “juda, baptismos, livro 8, ls. 105-105v e 235v-236; livro 9, ls. 106 e 212v-213; livro 10, ls. 24-24v e 110v; e livro 11, ls. 1v-2, 76 e 140v. Ibidem, “lcântara, baptismos, livro 4, ls. 53v e 72. Vd. também PON“, op. cit., disponível em http://genealogias.info/.

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Torre do Tombo, Câmara Eclesiástica de Lisboa, Habilitações de genere, maço 105, processo 24. Feitos Findos, Inventários, Vicente Ferrer Barruncho, maço 15, n.º 12. Vd. também o blog

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O último ilho de Vicente Ferrer ”arruncho a matrimoniar-se fora Manuel Joaquim, em cerimónia realizada a 31 de Março de 1793 na capela de Nossa Senhora dos Prazeres (onde viria a surgir o cemitério ocidental de Lisboa). A noiva, D. Maria do Carmo Rebelo de Vasconcelos – senhora que mais tarde adoptou os apelidos Brito Mendonça Vidal –, baptizada na freguesia de Santos-o-Velho, era ilha de José “ntónio Rebelo de Vasconcelos e de D. Catarina Ricarda de Melo e Valadares 179. O casal icara a residir nas referidas casas dos pais do noivo, próximas à quinta de Alcântara, onde nos anos seguintes lhes nasceram diversos ilhos, precocemente órfãos, pois Manuel Joaquim ”arruncho – que era moço de Câmara do príncipe D. João, a exemplo de seu pai – falecera ainda em vida deste, no dia 21 de Setembro de 1804, sendo sepultado na ermida de Nossa Senhora do Pópulo 180. “ 3 de Outubro de 1790, fora D.  Catarina “ntónia ”arruncho quem contraíra matrimónio. O noivo, Matias “ntónio de Sousa Lobato, ilho de Luís “ntónio de Araújo e de D. Maria Luísa Antónia Raimunda, baptizara-se na freguesia da Pena, em Lisboa, sendo já viúvo de D. Maria Joana da Silva, que falecera em Santos-o-Velho, onde ele se mantinha a residir quando casou segunda vez. O conhecimento entre as duas famílias poderá ter ocorrido na corte, já que o pai do noivo fora guarda-roupa de Sua Majestade, sendo presumível que nessa ocupação tenha privado com Vicente Ferrer Barruncho, moço de câmara do monarca, como vimos. Ao contrário do casamento do primogénito, como veremos, este enlace decorrera em ambiente mais reservado, no oratório das casas do pai da noiva, na rua Direita de Alcântara 181. Signiica isto que, sensivelmente entre 1770 e 1790, Vicente e a família terão mudado a sua residência, deixando as depenintitulado Monumento de Mafra Virtual, disponível em http://www.cesdies.net/monumento-de-mafra-virtual/julio-ivo-o-real-colegio-de-mafra. Cfr. ainda STOOP, Anne de, Quintas e Pa‑ lácios nos arredores de Lisboa, s.l.: Livraria Civilização, [1999], pp. 53-56. 179

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “lcântara, casamentos, livro 6, l. 13.

180

Ibidem, óbitos, livro 3, l. 161v. No ano a seguir à morte de Manuel Joaquim ”arruncho, quando também faleceu o avô Vicente Ferrer ”arruncho, existiam os seguintes ilhos daquele: D. Maria Catarina Barruncho Rebelo Vasconcelos e Brito, de 12 anos; dois gémeos chamados José António Barruncho Rebelo Vasconcelos e Brito e Vicente Ferrer Barruncho Rebelo Vasconcelos e Brito, de 10 para 11; Catarina Gertrudes das Mercês Barruncho Rebelo Vasconcelos e Brito, de 7; Gertrudes do Livramento Barruncho Rebelo Vasconcelos e Brito, de 5; e Isabel Luísa Barruncho Rebelo Vasconcelos e Brito, de 1 ano. Dona Maria do Carmo, a viúva e mãe, viria a falecer no número 29 da rua do Sacramento a Alcântara, a 2 de Fevereiro de 1842, deixando testamento. Torre do Tombo, Feitos Findos, Inventários, Vicente Ferrer Barruncho, maço 15, n.º 12. VID“L, op. cit., volume 3, pp. 29-30.

181

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “lcântara, casamentos, livro 5, l. 128v.

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dências situadas na casa principal da quinta ou a ela contíguas e transferindo-se para um outro edifício, integrado no mesmo núcleo mas situado um pouco mais abaixo, aparentemente na esquina da rua do príncipe com aquela artéria. Quinze anos mais tarde, à data da morte de Vicente Ferrer, este imóvel seria descrito como 182 “Uma propriedade de casas à frente da rua direita de Alcântara ao lado do poente, que consta no plano baixo de uma loja, que serve de cocheira, e mística a ela uma loja de entrada, dentro na qual está um corredor, e neste duas casas para acomodação de criados, e também dá serventia a uma casa que serve de cozinha com seu pequeno forno de fazer assados, sua pia de pedra, que recebe água por aquedutos que vêm do poço que se acha no im do dito corredor; e no im deste há uma casa que serve de cavalariça com seu palheiro por cima; e na dita loja da entrada há uma escada de pedra de um só lanço que dá serventia a um pavimento de sobrados, que é dividido em oito casas, em que entra uma casa no tabuleiro da escada para cómodo do criado grave; e no im do dito pavimento há um quintal ajardinado, e na sua entrada é formado de arcada, que recebe uma varanda por cima; e o referido quintal é guarnecido de murtas, e no fundo dele tem seu poço de água de beber por uso de balde, com sua embocadura de pedra e seus varões de ferro onde trabalha o balde; e bem assim uma escada de pedra que dá serventia à sobredita varanda, a qual também dá serventia a duas casas, e por cima destas com frente para a rua do Príncipe, e também um corredor que dá serventia à dita rua; e por cima do sobredito primeiro pavimento nobre há um segundo pavimento de sobrados, que é dividido em oito casas em que entra a casa do oratório de dizer missa e suas acomodações, com serventia para o primeiro pavimento, tendo também serventia para a sobredita varanda, que é guarnecida de alegretes e assentos de pedra; e por cima do dito pavimento há outro com quatro casas, e uma destas há serventia para um mirante, guarnecido de vidraças, tendo o mesmo pavimento serventia por uma escada de madeira de dois lanços.

Da mesma ocasião data uma descrição do referido oratório onde decorrera o casamento de Catarina, que então não seria muito diferente. Uma imagem de Cristo, de palmo e meio, de madeira, em cima de uma cruz de pau-santo, tudo assente numa peanha do mesmo – peça muito antiga – dominava o altar, onde igualmente se achava uma imagem do Senhor preso com dois fariseus, tudo de pedra jaspe. Em volta, as iguras de São João, de Santo “ntónio, de São Vicente Ferrer, de São Francisco e de São Domingos revelavam as particulares devoções da família. Quatro painéis dos Evangelistas pintados em cobre completavam a decoração do conjunto. Talvez em posição lateral, uma cómoda com três gavetas (mas que ingia oito) servia de credência, tendo duas jarras da China 182

Torre do Tombo, Feitos Findos, Inventários, Vicente Ferrer Barruncho, maço 15, n.º 12.

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em feitio de peixe. E por im, um dossel de damasco de seda carmesim e uma sanefa guarnecida com franja conferiam ao espaço um ambiente grave mas simultaneamente acolhedor. Para a celebração dos divinos ofícios, ali existia um missal em meio uso, uma cruz de madeira de ébano com peanha torneada, uma garrafa de vidro branco para água benta, outra de quartilho para vinho, duas galhetas de vidro com o seu pratinho (este tinha uma mancha), uma campainha redonda com seu defeito, uma pia de latão para água benta, um lavatório de loiça da Fábrica do Rato com a sua bacia. A completar as alfaias, guardadas porventura na referida cómoda, encontravam-se duas vestimentas (uma rosa, outra encarnada), dois frontais irmãos destas, uma almofada, duas alvas, três toalhas, dois amitos, cinco corporais, seis sanguinhos, três palas e outras duas de cobrir galhetas, um cordão, dois panos de limpar os dedos, dois panos de cobrir o altar e uma toalha que servia para o lavatório feita de cambraia com renda ina, estando umas peças em meio uso, outras já mais desgastadas 183. Não fora duradouro o consórcio entre D. Catarina Antónia Barruncho e Matias António de Sousa Lobato já que este falecera cerca de três anos após casar, sendo póstumo o ilho que lhes nascera a 31 de Outubro de 1793, baptizado a 10 do mês seguinte pelo cónego Francisco de Sales Barruncho, com o nome de João, em homenagem ao padrinho, o príncipe D. João (futuro D. João VI), então já casado com a princesa D. Carlota, madrinha da criança, representados na cerimónia pelo conde de Aveiras e por D. Caetano de Noronha 184. João Pedro Barruncho casara escassos meses antes da irmã Catarina, a 6 de Junho de 1790. Talvez por ser o primogénito e presumível sucessor do morgado da família instituído na quinta de Alcântara, a cerimónia celebrara-se na sua ermida de Nossa Senhora do Pópulo e fora presidida pelo referido cónego irmão do noivo. Dona Eigénia Rosa Salgado van Praet, a consorte, não esteve presente, fazendo-se representar por Francisco Xavier Barruncho, tio de João Pedro. Natural da freguesia da Pena e então moradora na da Conceição, a noiva era ilha de “ntónio Manuel Salgado van Praet e de D. Mariana Tomásia Felizarda da Fonseca Mata, já defuntos à data do matrimónio. Foi por intermédio deste casamento que João Pedro Barruncho se tornou senhor da importante quinta da Granja da Paradela, próximo de Odivelas, foreira à comenda de São Brás

183

Ibidem.

184

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “lcântara, baptismos, livro 6, l. 110.

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da Ordem de Malta, depois também conhecida como quinta do Barruncho 185. Seguindo as pisadas do pai – e tal como o irmão Manuel Joaquim, como se disse – João Pedro recebera a 16 de Junho de 1771 alvará de moço da Câmara de Sua Majestade e, a exemplo do que sucedera em gerações anteriores, fora transitoriamente nomeado no ofício de escrivão da mesa grande da Alfândega de Lisboa, a 15 de Julho de 1773, durante um impedimento do pai. A 29 de Outubro de 1779, foi-lhe concedido o hábito da Ordem de Cristo e, juntamente com os irmãos Bernardino, Francisco e Manuel Joaquim, recebeu a 15 de Novembro de 1785 o alvará de cavaleiro-idalgo da Casa Real, que a todos pertencia em sucessão ao progenitor 186. Quando faleceu em 1805, Vicente Ferrer Barruncho detinha diversas propriedades nas imediações da quinta de Alcântara, recebidas nas partilhas paternas. Assim, para além das ditas casas nobres em que ultimamente habitara na rua Direita de Alcântara, junto à esquina com a rua do Príncipe – a que por vezes ainda se chamava rua do Fiúza – e que couberam em herança à ilha D. Mariana Rita 187, pertenciam-lhe também, tanto do lado poente desta artéria, como na agora denominada travessa do Fiúza – outrora dita dos Fornos –, como ainda na referida rua Direita de Alcântara, várias construções com lojas e sobrados, aforadas a diversas pessoas. No testamento de mão comum que haviam lavrado a 12 de Março de 1799, Vicente Ferrer Barruncho e D. Maria Leonor, desejando assegurar o consenso entre os ilhos e preocupados com as mencionadas três raparigas que haviam permanecido solteiras, tinham precisamente recomendado (…) a todos os nossos ilhos as nossas ilhas donzelas para que sempre as amparem, respeitem, estimem, socorrendo-as em todas as suas precisões, como nós Testadores temos feito a todos eles, e que todos recomendamos, visto serem de maior idade, que façam as suas Partilhas amigáveis, como lhe[s] é lícito e será louvável, sem contendas Judiciais, de que nascem grandes despesas e podem originarem-se inimizades e escândalo sempre receáveis, principalmente entre Irmãos que devem amar-se uns aos outros com estremecimento e caridade”.

João Pedro Barruncho e os irmãos terão seguido os conselhos paternos. E na ocasião em que procederam à partilha dos bens do pai, os ilhos de Vicente 185

Ibidem, casamentos, livro 5, l. 122.

186

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. José I, livro 10, l. 486; e livro 24, l. 150. Ibidem, D. Maria I, livro 7, l. 340; e livro 19, l. 285.

187

As casas nobres da rua Direita de Alcântara foram avaliadas em 4.500$000 réis e por excederem muito o valor de cada legítima obrigou-se D. Mariana Rita Barruncho a dar avultadas tornas à mãe e aos irmãos, a cujo cumprimento hipotecou a própria propriedade.

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Ferrer Barruncho experimentaram possivelmente aquele misto de saudades e nostalgia que os objectos dos entes queridos que já partiram sempre provocam. Talvez se lembrassem do aprumo com que o progenitor costumava ostentar as suas insígnias de cavaleiro da Ordem de Cristo, umas vezes envergando aquele hábito (…) grande de lançar ao peito, moldurado em roda, guarnecido com trinta e duas granadas e a cruz do centro guar[necida] com trinta e três brilhantes cravados em prata” (que pesava ao todo duas onças, meia oitava e vinte e um grãos), outras, aquele igualmente grande [e] de lançar ao peito, e de oiro, esmaltado de ambas as frentes, com sua argola em cima e muito usado” (este pesava uma onça, sete oitavas e vinte e oito grãos); e, outras vezes ainda, um dos dois hábitos (…) de casaca, ambos de oiro esmaltados, um deles alguma coisa grande e moldurado em roda, com sua argola em cima, e o outro (…) pequenino em forma de medalha com sua argola, e muito usados” (estes pesavam sete oitavas e vinte e nove grãos). Ao depararem com os dois elegantes relógios de Vicente Ferrer – um de ouro com a sua cadeia de pedras falsas, da autoria do mestre francês Charles Le Roy, outro de duas caixas de prata com a marca de W. Harvard, de Londres – recordaram-se os ilhos, porventura, da estima que o pai tinha por essas autênticas obras de arte da mecânica. Já o quadro com a representação da estátua equestre do rei D. José ter-lhes-á avivado o relato que aquele lhes fazia, volta e meia, do festivo dia da inauguração do monumento, cerimónia em que pontiicara o grande marquês, cujos pais se dizia tinham vivido ali mesmo na quinta de Alcântara, que agora pertencia à sua família. O retrato de D. João IV, por im, lembrou-lhes possivelmente a história – que o pai ouvira contar ao pai dele e por aí fora – daquele triste dia em que aquele monarca ali estivera na quinta, vendo o príncipe seu ilho prematuramente morto. Quantas memórias não se terão ressuscitado no espírito dos ilhos de Vicente Ferrer Barruncho ao olharem os “tamboretes de madeira de nogueira, [de] feitio à Francesa, com seus ornatos de talha, com assentos de chita pintada em dados , estes já muito daniicados, ou de outros de feitio à Grega mas de madeiras ordinárias e pintadas de branco e outras cores? Ou ainda ao verem o toucador de madeira do Brasil ou aquela outra cómoda pequena de pau-santo, que era torta nas ilhargas e com pedra em cima, ou a papeleira “folheada de pau-santo e de outras cores (…) com seu corpo de oratório em cima e vidros sobre aço nas portas ? Que terríveis pelejas – terão eles pensado – guardariam uma espingarda e uma espada com seu punho de ieira de prata , talvez ixadas numa parede? Quantas vezes, em pequenos, se teriam pendurado no reposteiro de pano verde, de porta de sala, com seu varão de ferro e remates de chumbo ?

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Do mesmo modo, também já não sabiam contar quantas tentativas tinham feito para adivinhar que paisagens representariam os “cinco panos pintados de vários arvoredos que guarneciam as paredes da sala de visitas… “s raparigas terão prestado particular atenção ao guarda-fato, provavelmente icando cada uma com o que já lhe pertencia; eram inúmeros vestidos – um “de seda de furta-cores”, outro “de tafetá preto com seu capuz e renda”, outro ainda com uma “casaquinha de pardilho cor de Azeitona d’Elvas” –, saias e roupões – aquele “de seda verde com risquinhas, com peles de arminho”, o outro “de chita Inglesa, chão carmesim em xadrez com raminhos amarelos” –, era o “capote com mangas, escuro, lavrado de xadrez”, o “mandrião pequeno de festão branco”, os “leques diferentes nos feitios … “o entrarem na livraria, talvez ainda imaginassem o pai sentado, desfolhando algum dos livrinhos de novenas ou de orações, ou consultando um dos sessenta e dois volumes de elogios com capas de papel, ou ainda um dos seis tomos de selectas latinas; por vezes, o progenitor lia uma das obras de Virgílio ou as prosas e versos de D. José de Vasconcelos; outras, até chamava algum dos ilhos para lhe mostrar a Ortographia Latina, de Luís “ntónio Verney, ou aquele volume sobre o Cerco de Diu; lembrar-se-iam decerto do pai a falar da importância das Providencias Reais sobre o terramoto, segurando na mão o respectivo livro, ou a recomendar-lhes que lessem a Vida de Cristo e a Vida de São Vicente Ferrer, o santo seu patrono, ou ainda a barafustar por já não haver senão um tomo do Diccionario Francez! Que destino poderiam dar aos carros do progenitor – uma traquitana de cortinas com seus arreios, uma carruagem alta de portas e uma carroça com o seu silhão – e à parelha de machos castanhos-escuros e cerrados que os puxava? Só a 18 de Janeiro de 1810 se produziu a sentença que julgou a partilha dos bens de Vicente Ferrer Barruncho e, depois desta, ainda a sua viúva sobreviveu mais de uma década, falecendo com todos os sacramentos a 25 de Novembro de 1821; no dia seguinte, uma vez mais a família se reuniu na ermida de Nossa Senhora do Pópulo – sita na então designada travessa do Fiúza – onde D. Maria Leonor Antónia da Nazaré Teixeira foi a sepultar, naquele lugar que já servia de panteão a seu marido, a seus sogros, a diversos cunhados e até a alguns dos seus ilhos 188.

188

Torre do Tombo, Feitos Findos, Inventários, Vicente Ferrer Barruncho, maço 15, n.º 12. Registos Paroquiais, Lisboa, “lcântara, óbitos, livro 4, l. 102v.

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Entretanto, na transição do século XVIII para o seguinte, Alcântara continuara a transformar-se. A principal mudança dera-se no paço real. Mesmo tendo sido reerguido dez anos após o terramoto de 1755, o edifício já não recuperara a sua antiga grandeza e depois de nele terem vivido D. Luís da Cunha Manuel e outros servidores da Coroa – então já a família real mal o frequentaria –, chegou a ser cedido a certo Francisco José Dias para nele instalar uma fábrica de chitas. Voltando em 1808 à posse da Coroa, o velho palácio passou a ser cedido para habitação de viúvas e criadas velhas da Casa Real, instalando-se também nalgumas das suas dependências outras pequenas indústrias. Nesse meio tempo, Lisboa chegara a estar sob ocupação francesa, às ordens de Junot, e quando a guerra peninsular atingiu inalmente o seu im, em 1815, do topo da quinta de Alcântara já se podia observar a elegante torre acabada de construir na vizinha igreja de São Pedro 189. Francisco Xavier Barruncho, porém, não lograra ver essa obra terminada, pois falecera a 25 de Fevereiro de 1807 “nas casas de sua residência na quinta do Fiúza”, tendo sido sepultado no dia seguinte na sua ermida de Nossa Senhora do Pópulo 190. No testamento lavrado a 14 de Novembro anterior tinha o defunto determinado – caso não o tivesse concluído em vida – que se vendessem pelo melhor preço as suas casas nobres situadas na calçada do Colégio, defronte da igreja do Socorro. Era esta, como nos recordamos, aquela propriedade em que seus pais haviam residido com os ilhos (os mais novos até tinham aí nascido) depois de saírem de São João da Praça e antes de se mudarem para Alcântara. Como não a podia anexar ao morgado instituído pela progenitora, em virtude de ser foreira à Universidade de Coimbra, desejava Francisco Xavier, com o produto da respectiva alienação, não só pagar as suas dívidas, como converter o remanescente em bens livres que pudessem ser vinculados à quinta de Alcântara. Ainda de acordo com a sua vontade, oito propriedades rústicas que possuía em Bucelas deveriam ser igualmente anexadas a este morgado. Já a respeito das obrigações pias subjacentes ao vínculo, estipulara o testador uma pragmática disposição 191: “Minha Mãe e Senhora ordenou no seu Testamento que taxasse eu a esmola que se houvesse de dar aos Capelães que dissessem a quotidiana Missa nesta Capela de Nossa Senhora do Pópulo, em que está sepultada, pela sua alma e de 189

FREIRE (MÁRIO), op. cit., pp. 101-103, 125-126 e 151-153.

190

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “lcântara, óbitos, livro 3, l. 178.

191

Torre do Tombo, Feitos Fintos, Inventários (autos de conta de testamento), Francisco Xavier Barruncho, maço 154, n.º 16.

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seu Marido e todos os seus Descendentes, e como os preços de tudo depois do seu falecimento têm crescido tão exorbitantemente em tão pouco tempo, me não animo a declarar preço certo da esmola, pelo que daqui a quarenta ou cinquenta anos não haverá Sacerdote que haja de dizer a Missa pela esmola que aqui lhe for taxada, declaro e mando que daqui em diante a esmola que se houver de dar seja da quantia que o Administrador e Administradores ajustarem com o Capelão”.

João Pedro Barruncho, o primogénito do falecido Vicente Ferrer Barruncho, era então o administrador do morgado e foi ele quem, a 8 de Janeiro de 1816, recebeu inalmente a provisão do ainda príncipe D. João em que este veio (…) declarar válido o estabelecimento do Vínculo de que se trata, dispensando qualquer Lei que a ele se oponha e que no Juízo competente se julgue vinculada a sobredita Quinta [de “lcântara] com os encargos e vocações impostas pela Instituidora e que esta permitiu ao Suplicante [Francisco Xavier ”arruncho] impor-lhe. E porque achando-se a mesma Quinta estimada em catorze contos e oitocentos mil réis, devendo consistir o vínculo em sete contos setecentos e oitenta e seis mil e quarenta e oito réis, importância das Terças da Instituidora e de seu Marido, o excesso inclui a legítima do Suplicante e de seu falecido Irmão Manuel Simões ”arruncho e envolve uma anexação: Sou outrossim servido aprová-la para que na forma dita ique vinculado todo o valor da Quinta. E esta Provisão se cumprirá como nela se contém (…) 192.

Nesse ano de 1816, todavia, ainda as disposições do testamento de Francisco Xavier Barruncho não se encontravam plenamente cumpridas, o que levou o provedor dos Resíduos e Cativos a intentar contra João Pedro Barruncho, na qualidade de testamenteiro do tio, uma acção cível “de exibição do próprio e original testamento com que faleceu o doutor Francisco Xavier Barruncho”, a im de serem prestadas as competentes contas. Foi já no decurso destes autos que João Pedro promoveu a venda das mencionadas casas situadas junto à igreja do Socorro, então avaliadas em cinco contos de réis. Colocadas em hasta pública – e depois de uma falhada tentativa de compra por parte do próprio testamenteiro, que por elas dera 10.510$000, por falta do pagamento atempado da sisa –, foram as mesmas vendidas a outrem por um preço ligeiramente superior àquele. Com o seu produto, liquidaram-se inalmente as dívidas de Francisco Xavier e o dinheiro remanescente – 3.862$277 réis – foi levantado do depósito público por João Pedro Barruncho, sob hipoteca da quinta da Granja da Paradela, e empregado “no chão vinculado da Quinta de Alcântara em umas 192

Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Corte, maço 1553, n.º 7.

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casas defronte da Igreja de São Pedro que fazem frente para a Rua da Tapada, e mais cinco à entrada da dita Quinta”. A primeira dessas novas propriedades em ediicação compunha-se de dois “rmazéns em plano baixo e primeiro “ndar com sete Casas, e por cima uma Água furtada com três Casas de pé direito e quatro troncais”, ao passo que a segunda era “com um só pavimento dividido em cinco casas, sendo duas lajeadas, tendo uma com Forno de Cozer Pão, havendo também junto uma Casa de Cocheira com seu Telheiro” e “uma pequena Cavalariça, Casa de Malta e uma Corte para Porcos, e uma Coelheira também pequena”. Para além destas construções, aplicara-se ainda parte daquela verba na mesma quinta de “lcântara a forrar [com] esteira a Sala grande da Casa Nobre dela e em forrar vários Quartos” 193. Sendo então designado como estribeiro-menor da rainha, requerera João Pedro ”arruncho a conirmação régia da anexação ao morgado da quinta de “lcântara não só destas benfeitorias, avaliadas em 3.900$000 réis, mas também das mencionadas propriedades rústicas que o tio Francisco Xavier deixara em Bucelas, cujo valor estava ixado em 1.564$000 réis 194. O palatino servidor não chegou, todavia, nem a receber resposta a esta pretensão, nem a ver concluídas aquelas obras de construção, pois faleceu a 8 de Janeiro de 1818 na indicada freguesia do Socorro, onde residia. O seu corpo foi a sepultar no dia seguinte à pequena ermida de Nossa Senhora do Pópulo, “capela do Morgado dos Barrunchos sita nesta freguesia de São Pedro em Alcântara, em a Travessa do Fiúza, número vinte um”, como bem assinalou o prior que lavrou o correspondente assento de óbito 195. Coube assim ao ilho e sucessor do falecido, de nome João Vicente ”arruncho, reiterar o pedido que o progenitor izera, obtendo a 17 de Novembro de 1825 um parecer do provedor dos Órfãos e Capelas que reconhecia que o aumento do morgado com os referidos bens produzia uma “maior representação e decência dos Administradores, e atendendo a que a maior parte dele é constituído no chão do vínculo originário (…), está o Suplicante nos termos de merecer a Graça que suplica”. Um mês depois, a mesa do Desembargo do Paço conformou-se com esta opinião e por im, a 4 de “bril de 1826, foi expedida a carta régia que conirmou a pretendida anexação, no valor global de 5.464$000

193

Torre do Tombo, Feitos Fintos, Inventários (autos de conta de testamento), Francisco Xavier Barruncho, maço 154, n.º 16.

194

Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Corte, maço 1553, n.º 7.

195

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “lcântara, óbitos, livro 4, l. 29.

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réis, ao vínculo da quinta de Alcântara 196. Diga-se ainda que o testamento de Francisco Xavier Barruncho só foi julgado cumprido a 11 de Agosto de 1832, quando o mesmo João Vicente Barruncho já se achava indigitado testamenteiro dativo do falecido tio-avô, em virtude de terem entretanto morrido os dois testamenteiros nomeados por aquele: primeiro o mencionado João Pedro ”arruncho, como vimos, e depois seu irmão, o cónego Francisco de Sales Barruncho, que falecera em data anterior a Julho de 1831 197. Quando em 1834 os oiciais da fazenda izeram o levantamento da décima da cidade já a antiga travessa dos Fornos se convertera em deinitivo na travessa do Fiúza. E ao depararem, no topo desta artéria, com a propriedade pertencente a João Vicente Barruncho registaram que as casas nobres se encontravam devolutas; a quinta que lhes icava a montante, porém, com entrada pela calçada da Tapada e que então constava de pomar, horta e parreiras, estava arrendada a João dos Santos por 120$000 réis, mas este caseiro deve ter largado o contrato a meio do ano, pois para o segundo semestre indicou-se que fora dada a certo Caetano pelo preço de 60$000 198. A 23 de Junho, com efeito, João Vicente Barruncho celebrara com Caetano Maria, negociante de nação francesa, o arrendamento de “uma Quinta sita na Ribeira de Alcântara, denominada a Fiúza, que se compõe de prédios rústicos e urbanos, casas nobres, dita para caseiro, a casa grande com todos os seus pertences, incluso as acomodações para gados, e inalmente todas as serventias e logradouros à mesma pertencentes . Estipulando um prazo de nove anos, prorrogáveis por mais quatro, e uma renda anual de 360 mil réis – 120 pelas casas, 240 pela quinta – determinava este contrato que, “pelo que respeita às casas nobres, quando ele Inquilino queira abrir alguma porta ou janela, ou fechar alguma, alterando assim a coniguração da casa, quando houver de sair deixará tudo da maneira e conforme tiver recebido, salvo se ele senhorio convier em que ique na forma que ele Rendeiro e Inquilino tiver mandado fazer, sem contudo ele Senhorio lhe abonar quantia alguma a tal respeito” 199. 196

Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Corte, maço 1553, n.º 7; maço 2147, n.º 75. Registo Geral de Mercês, D. João VI, livro 22, l. 32.

197

Torre do Tombo, Feitos Fintos, Inventários (autos de conta de testamento), Francisco Xavier Barruncho, maço 154, n.º 16.

198

Tribunal de Contas, Décima da Cidade, Livro de Arruamentos das freguesias de Nossa Senhora da “juda, Santa Maria de ”elém e São Pedro em “lcântara, 1834, l. 21.

199

Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 187155, Nproc 0, 1.ª vara, 1.ª secção, maço 276, cx. 149, inventário obrigatório por morte de João Vicente Barruncho, 1858.

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Na envolvente, o núcleo patrimonial possuído por aquele administrador do morgado incluía um edifício na rua do Príncipe, com duas lojas e andares esquerdo e direito, outros na rua ou travessa do Quebra-Costas – duas lojas e um andar, uma loja, quatro lojas e um andar –, uma extensa propriedade urbana na rua do “lvito com trinta fracções em várias lojas e andares e que indava com uma porta entaipada e um cerrado, e na calçada da Tapada, para além da referida entrada para a quinta, quatro edifícios também com lojas e andares, constituindo dois deles prazos perpétuos foreiros à casa dos marqueses de Sabugosa – ambos compostos de loja e primeiro andar, o primeiro com quatro divisões, o segundo com três e um pátio que dava serventia a um poço – e outro um prazo em vidas de que eram senhorios directos os mesmos titulares; viviam instalados nesta iada de prédios a viúva do sapateiro Sabino “ntónio, o carpinteiro de carros Manuel Dias e o almocreve Cipriano, que ali tinha três bestas de carga. Ainda na aludida travessa do Fiúza, algumas casas eram foreiras ao Barruncho, possivelmente o mesmo João Vicente ou algum seu parente, revelando antigos chãos pertencentes à família e entretanto dados de aforamento para que os próprios eniteutas neles levantassem as suas casas de morada. Evidenciando também antigas partilhas, o padre Bernardino de Sena Barruncho, nesse ano de 1834, era ainda dono de umas casas na travessa do Fiúza e de outras na rua do Príncipe 200. João Vicente Barruncho nascera em Lisboa, na freguesia de Santos-o-Velho, algures no princípio da década de noventa do século XVIII. Entre os irmãos que teve, a maior parte baptizados na paróquia de São Nicolau, contaram-se Francisco de Sales Barruncho (como o tio paterno), que além de ter sido guarda-roupa da Real Câmara, foi comendador da Ordem de Cristo e cavaleiro da de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa; António Manuel Barruncho, que seguiu a carreira militar; Vicente Ferrer Barruncho (como o avô), também guarda-roupa por renúncia do irmão Francisco, comendador da Ordem de Cristo e cavaleiro das de Nossa Senhora da Conceição e de Avis, governador de Benguela, entre vários outros 201. Esta foi uma geração que, na sua maioria, esteve afastada de Alcântara, casando e tendo descendência noutras paragens. Na antiga quinta dos Barrunchos haviam permanecido algumas tias solteiras e já velhas, que aos 200

Tribunal de Contas, Décima da Cidade, Livro de Arruamentos das freguesias de Nossa Senhora da “juda, Santa Maria de ”elém e São Pedro em “lcântara, 1834, ls. 21-22v-23, 24, 25, 26-27 e 80-81v. Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 187155, Nproc 0, 1.ª vara, 1.ª secção, maço 276, cx. 149, inventário obrigatório por morte de João Vicente Barruncho, 1858.

201

PONA, op. cit., disponível em http://genealogias.info/.

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poucos foram deixando as suas casas nobres mais vazias e silenciosas: D. Maria Isabel da Visitação, ainda da geração do avô de João Vicente, falecera a 26 de Março de 1812 na então designada “Quinta do Pátio do Fiúza”, indo a sepultar na tarde do dia seguinte à igreja do convento dos Cardais, onde talvez ainda vivesse recolhida a irmã madre Ana de Jesus Maria José; depois, a 3 de Janeiro de 1814, morreu D. Mariana Rita Barruncho, tia direita de João Vicente, nas casas situadas um pouco mais abaixo, que haviam sido de seu pai, sendo sepultada no mesmo dia na ermida da Senhora do Pópulo, no pátio do Fiúza 202. A 4 de Junho deste ano, porém, ainda foi festivo o dia que se viveu naquele pequeno templo, pois D. Catarina Gertrudes de Brito Mendonça Vidal Barruncho, prima de João Vicente (era ilha do falecido Manuel Joaquim ”arruncho), residindo no referido pátio do Fiúza, aqui casou com o cadete do regimento de cavalaria n.º 6, José Joaquim da Silva e Vasconcelos, que havia sido baptizado em Moura, ilho de Joaquim da Silva e Vasconcelos e de D. “na Gertrudes Rosa 203. Os recém-casados continuaram a viver na velha quinta e de novo nas suas paredes terão ecoado choros e risadas de crianças, já que nela foram nascendo sucessivos ilhos: José Maria em 1817, Maria no ano seguinte, “ntónio Maria em 1822, João em 1825, Maria das Dores em 1828, Maria do Carmo em 1831 204. Entretanto, no derradeiro dia do dito ano de 1828, a ermida de Nossa Senhora do Pópulo ainda recebeu os ossos de D. Teresa Genoveva Barruncho, tia de João Vicente e de D. Catarina, que então residia em Alcântara, embora na rua do Livramento; e a 10 de Julho de 1830, o casamento de D. Isabel Emília de Brito Mendonça Vidal Barruncho, irmã daquela, com o doutor Vicente António de Azevedo, físico-mor da Armada e médico da Câmara Real, homem já viúvo, parece ter sido o derradeiro enlace celebrado pela família na ermida das suas casas nobres da quinta de Alcântara 205. Com efeito, a 11 de Junho de 1842, D. Maria do Carmo ”arruncho da Silva e Vasconcelos – uma das ilhas de D. Catarina Gertrudes – que ainda havia nascido naquela propriedade, casou com Filipe Teodoro Pinto Furtado, mas a cerimónia celebrou-se na igreja paroquial de Alcântara, referindo-se que os noivos residiam nesta freguesia sem contudo 202

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “lcântara, óbitos, livro 3, ls. 230 e 252v.

203

Ibidem, casamentos, livro 8, l. 9.

204

Ibidem, baptismos, livro 10, l. 127v; e livro 11, ls. 78 e 187v. PON“, op. cit., disponível em http://genealogias.info/.

205

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, “lcântara, óbitos, livro 5, l. 74; casamentos, livro 9, l. 17.

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se especiicar o exacto local. Mas quando a 11 de Setembro de 1845 o mesmo casal baptizou a ilha Maria, não só a celebração decorreu uma vez mais naquela igreja, como se declarou que os progenitores da criança residiam na rua do Assento 206. Os tempos vividos e as festividades realizadas na velha quinta do Fiúza ou dos ”arrunchos iam icando deinitivamente para trás… O próprio João Vicente Barruncho, não obstante a sua qualidade de administrador do morgado instituído nesta propriedade, habitou sempre noutras paragens. Em 1819, residia no largo de São Tomé na companhia de D. Eigénia Rosa Salgado van Praet, sua mãe, e foi a 25 de Maio do referido ano que ambos se deslocaram ao largo do Caldas para, em casa de D. Francisca Rosa Baptista Benedita Borges, celebrarem o contrato de casamento de D. Lina Rosa Ferreira, ilha da anitriã, com João Vicente, dotando-se a noiva com a não despicienda quantia de 24 contos de réis 207. O enlace, presidido pelo reverendo Francisco de Sales Barruncho, tio do noivo, realizou-se a 7 de Junho na ermida de Santo António, na freguesia dos Santos Reis, recebendo a noiva de presente “uma Medalha com o retrato de seu marido, guarnecida de brilhantes”. Ficaram os recém-casados a viver na rua da Madalena, em residência alugada a Joaquim Pedro Ferreira, irmão de D. Lina Rosa 208, e foi nesta freguesia situada no coração de Lisboa que lhes vieram ao mundo diversos ilhos: D. Maria do Sacramento, nascida a 24 de Março e baptizada sub conditione a 2 de Abril de 1825; D. Maria da Conceição, nascida a 7 e baptizada a 17 de Março de 1826; D. Maria do Carmo, nascida a 4 e baptizada a 11 de Março de 1828; João Pedro, nascido a 17 e baptizado a 24 de Abril de 1829; e D. Maria das Dores, nascida a 9 e baptizada a 16 de Abril de 1831 209. Seguindo a tradição familiar, João Vicente Barruncho serviu no paço, ocupando um lugar de moço da Real Câmara, e desempenhou o cargo de escrivão da mesa grande da Alfândega de Lisboa. Imaginamo-lo, por isso, umas vezes, a envergar a sua farda escarlate bordada de ouro, a véstia de pano azul lavrada de prata 206

Ibidem, casamentos, livro 9, l. 170; baptismos, livro 13, ls. 189v-190.

207

Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 187155, Nproc 0, 1.ª vara, 1.ª secção, maço 276, cx. 149, inventário obrigatório por morte de João Vicente Barruncho, 1858.

208

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, Madalena, casamentos, livro 3, l. 3v. Tribunal da Boa-Hora, ProcID 187155, Nproc 0, 1.ª vara, 1.ª secção, maço 276, cx. 149, inventário obrigatório por morte de João Vicente Barruncho, 1858.

209

Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças, Processos de contribuição de registo por título gratuito, D. Maria do Carmo Ferreira ”arruncho, 1873, Processo n.º 584. Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, Madalena, baptismos, livro 4, ls. 219 e 258v-259.

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e o calção igualmente escarlate com ligas e casas também de ouro (a que um chapéu com galão de prata e a pluma em roda dava um deinitivo toque de distinção), que aos detentores daquela palatina função pertencia ter. E outra vezes, quando se achava ao serviço da Alfândega, vestindo a farda azul bordada a ouro nos canhões e gola. Porque João Vicente possuía também uma outra indumentária azul, comprida, com peitilho branco, calças alvadias, barretina com um penacho azul e as chapas competentes, um correame branco e um par de dragonas com franjas azuis de lã e palmatória da mesma cor com meias-luas douradas, icamos a saber que integrou, nalgum momento da sua vida – antes ou depois do reinado miguelista –, a guarda nacional, percebendo-se assim a sua idelidade ao regime constitucional 210. Reira-se, aliás, que logo após o estabelecimento deinitivo da monarquia liberal, por carta de 18 de Junho de 1834, passada pelo duque de Bragança D. Pedro em nome da rainha D. Maria II sua ilha, foi reiterada a João Vicente ”arruncho a mercê do mencionado cargo de escrivão da mesa grande da Alfândega de Lisboa, que há várias gerações pertencia à sua família 211. Apesar de precocemente falecido, João Vicente Barruncho teve oportunidade de realizar diversas benfeitorias na quinta do Fiúza, avaliadas em 1.300$000 réis e pagas com dinheiro do casal, destacando-se 212: “No Pavimento baixo, três Armazéns que se achavam em terra e muito entulhados e replanados, lajeados e paredes rebocadas e um Tecto de Abóbada também rebocado e guarnecido, e cinco portas feitas de novo assim como uma grande Cancela no portão da entrada, a Casa da Cozinha arranjada, a Chaminé e algumas paredes por se achar há anos muito daniicada, um pequeno quarto lajeado. No andar nobre tem três Salas das principais, foram assoalhadas e outras feitas, assim como uma despensa arranjada com seu tapume; no pátio uma Casa para criação(?), “ Casa junto à varanda foi vigada e assoalhada aproveitando-se muitas madeiras velhas e outras novas; na Varanda, o lado que estava destruído foi arranjado, os muros junto à horta foram em parte reformados e muitos foram levados a maior altura, assim como muitos encanamentos de Água do poço para o Jardim e para vários sítios da Casa, assim como para o tanque da horta (…); na quinta há muitas Árvores de diferentes qualidades novas, na maior parte vindas de fora do Reino”. 210

Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 187155, Nproc 0, 1.ª vara, 1.ª secção, maço 276, cx. 149, inventário obrigatório por morte de João Vicente Barruncho, 1858.

211

Torre do Tombo, Registo Geral de Mercês, D. Maria II, livro 1, ls. 68v-69.

212

Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 187155, Nproc 0, 1.ª vara, 1.ª secção, maço 276, cx. 149, inventário obrigatório por morte de João Vicente Barruncho, 1858.

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Para além destas obras de valorização, outras de simples conservação foram feitas na propriedade – arranjos de telhados, portas, janelas e caixilhos de vidraças, consertos de paredes, colocação de madeiras nas parreiras, etc. Mas a verdade é que quando João Vicente Barruncho faleceu, de forma repentina, a 11 de Maio de 1836, os diversos edifícios que compunham o morgado de Alcântara encontravam-se bastante deteriorados, referindo-se como uma das causas o facto de terem sido realizadas algumas demolições quando se formaram as linhas de defesa da cidade, presumivelmente antes de Agosto de 1833, na ocasião em que as forças miguelistas se concentraram à volta de Lisboa, desencadeando no mês seguinte alguns infrutíferos ataques à capital. A própria ermida de Nossa Senhora do Pópulo já não apresentaria o esplendor de outros tempos, evidenciando-se na descrição efectuada nesta altura o desgaste de que alguns dos seus ornamentos já padeciam. Assim, muito embora a imagem de Cristo de marim, de mais de um palmo e assente numa cruz e calvário de madeira de ébano com um resplendor e título de latão dourado, e o painel de Nossa Senhora do Pópulo, com moldura entalhada e dourada de quatro palmos e picos, pintado em pano, ainda se encontrassem em aparente bom estado de conservação, já a imagem de Nossa Senhora, feita de madeira e com coroa de prata, bem como as de São José, de São Vicente Ferrer e de outros dois santos não identiicados, se mostravam muito daniicadas. E a par de um frontal, de uma pedra d’ara, de três sacras com molduras douradas e vidros, de dois castiçais pequenos de estanho, de uma estante de pau – que se preservariam sem assinalável desgaste –, seis castiçais de chumbo de palmo e meio de altura apresentavam-se de cor denegrida, um missal e uma pequena lâmpada de latão revelavam bastante uso, um lavatório com a sua bacia tinha defeito e a caixa de charão para as hóstias estava quebrada 213. Não terão sido fáceis os tempos subsequentes para D. Lina Rosa Ferreira. Viúva, com cinco crianças a seu cargo, delas icou tutora, administrando os bens do morgado da quinta de Alcântara, que pertencia a João Pedro Ferreira Barruncho, então de sete anos, na qualidade de único ilho varão do falecido progenitor. Em reunião do conselho de família realizada a 2 de Dezembro de 1841, a mãe do 213

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“ capela da Senhora do Pópulo possuía ainda os seguintes paramentos e objectos litúrgicos: duas casulas (uma branca e escarlate, outra roxa e verde), duas bolsas de corporais, dois corporais com suas palas, quatro véus de cálice, duas estolas, dois manípulos, duas patenas e três palas pequenas, duas alvas, duas folhas de altar, quatro toalhas de lavatório, seis amitos e dez sanguíneos. Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 187155, Nproc 0, 1.ª vara, 1.ª  secção, maço 276, cx. 149, inventário obrigatório por morte de João Vicente ”arruncho, 1858. Registos Paroquiais, Lisboa, Madalena, óbitos, livro 2, l. 293.

jovem detentor do vínculo pediu e obteve autorização para promover o arrendamento da quinta do Fiúza e suas pertenças, o que faz supor que o acima mencionado contrato celebrado em vida do marido com Caetano Maria teria cessado por algum motivo, chegando no ano seguinte a colocar-se alguns “Anúncios na gazeta para arrendamento do Palácio”, publicidade pela qual se pagaram 700 réis. É possível que nenhum interessado tenha aparecido, já que em 1843 pretendeu a mesma senhora fazer obras que permitissem à referida casa principal icar habitável. “valiou-se então que, para este efeito, era necessário colocar dezoito vãos de caixilhos de sacada e janelas nas três frentes da casa; pôr dois vãos de caixilho de peito no primeiro andar da fachada de trás, consertando-se janelas e vidros; fazer uma porta para um pátio na parte de trás com ferragem nova; colocar seis vãos de caixilhos de peito nas águas furtadas; assoalhar seis divisões, uma no primeiro andar e cinco nas águas furtadas, as quais levariam trinta dúzias de solho; assoalhar duas divisões com madeira delgada por cima do mesmo solho no primeiro andar e colocar os respectivos rodapés; guarnecer sete portais, pôr duas portas novas e consertar outras duas no primeiro andar; colocar barrotes e forrar uma sala com setenta palmos de comprido por vinte cinco de largo; consertar o forro da sala de entrada; forrar de novo duas casas interiores, sendo uma de jantar; forrar a escada de novo e consertar o forro da loja de entrada; reparar três escadas, duas interiores e uma que dava serventia ao jardim; fazer consertos diversos na ermida, forrar de novo a sacristia e colocar a porta que separava os dois espaços litúrgicos; montar três vãos de caixilho com vidros e reparar uma grade de ferro também na ermida; colocar duas janelas novas na cocheira e na cavalariça; reparar duas grades de ferro de sacada no primeiro andar, consertar a cancela do pátio da entrada; pintar a óleo todas as madeiras interiores e exteriores; fazer alguns arranjos no muro da quinta para segurança da terra do lado do nascente e construir vinte braças de muro novo. O custo total estimado para esta intervenção foi de 1.831$900 réis, parecendo que a ideia de D. Lina Rosa Ferreira era que os trabalhos se izessem progressivamente. Diga-se, a este respeito, que entre Janeiro do referido ano de 1843 e Dezembro de 1846 se despenderam em obras nas casas nobres da quinta do Fiúza 713$960 réis, tendo o morgado rendido nesse período a quantia de 2.228$830. Também por esta altura, no edifício da rua do Alvito pertencente ao vínculo, foi necessário “mandar segurar Portas e Janelas das Casas Arruinadas para evitar o roubo de madeira e Telha”. Em 1847, registou-se a presença de D. Lina Rosa Ferreira nas referidas casas nobres da travessa do Fiúza, mas terá sido uma estada transitória, já que em 1852 a encontramos a viver na travessa

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e freguesia do Sacramento, onde faleceu a 26 de Fevereiro desse ano 214. Pouco antes de morrer, chegara a viúva de João Vicente Barruncho a emancipar os quatro ilhos vivos à época (a mais velha, D. Maria do Sacramento Ferreira ”arruncho, falecera em vida da mãe algures antes de Outubro de 1849). João Pedro Ferreira Barruncho, por conseguinte, começou a administrar os bens que lhe pertenciam, designadamente os que formavam o morgado instituído na velha quinta do Fiúza, em Alcântara, quando contava pouco mais de vinte anos de idade. Note-se, porém, que a legislação produzida no regime liberal há muito que vinha restringindo o âmbito do morgadio e o decreto de 30 de Julho de 1860 veio determinar que apenas poderiam subsistir os morgados mais importantes, cujo rendimento anual líquido excedesse os 400 mil réis. A permanência de tais vínculos, de acordo com o mesmo diploma, dependia no entanto do respectivo registo junto dos competentes Governos Civis num prazo de dois anos 215. Por deliberada opção ou simples omissão, a verdade é que João Pedro Ferreira Barruncho não cumpriu esta exigência e foi com base na falta deste procedimento que ele próprio, em meados de 1864, propôs no tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, uma acção cível de justiicação pela qual pretendia demonstrar que era administrador do vínculo instituído por D. Catarina da Encarnação, sendo imediata sucessora sua irmã mais velha D. Maria da Conceição Ferreira ”arruncho em razão de não ter o justiicante descendência, nem irmão vivo ou ilho de irmão falecido; desejava igualmente mostrar que o referido vínculo não fora registado e que por isso possuía como livre de vinculação o respectivo património, anteriormente detido na qualidade de administrador do morgado. Feita a competente prova testemunhal e documental, declarado por D. Maria da Conceição que em nada se opunha à justiicação do irmão, a sentença produzida a 24 de Julho desse ano, reconhecendo a abolição do morgado de Alcântara por falta do respectivo registo, veio decretar que os bens de que o mesmo se compunha eram agora alodiais e livres de quaisquer encargos pios. Revela-nos, pois, este processo a relação exacta do acervo imobiliário de que se compunha o morgado de Alcântara no derradeiro momento da sua existência jurídica. Tendo como cabeça a quinta e casas nobres do Fiúza, o vínculo compunha-se de vários outros edifícios nas imediações, aos quais já acima 214

Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 187155, Nproc 0, 1.ª vara, 1.ª secção, maço 276, cx. 149, inventário obrigatório por morte de João Vicente Barruncho, 1858.

215

CASTRO, Armando de, “Morgado”, in SERRÃO, Joel, Dicionário de História de Portugal, [Lisboa]: Iniciativas Editoriais, [1968], volume 3, p. 112.

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se foi fazendo referência, distribuídos pela calçada da Tapada, rua do Príncipe, travessa do Quebra-Costas e rua do Alvito, evidenciando-se a importância do arrendamento urbano como fonte primordial de rendimento. Nesta ocasião, subsistiam ainda as oito propriedades rústicas situadas no lugar do Freixial, em Bucelas, que haviam sido anexadas por Francisco Xavier Barruncho, como vimos 216. Recorde-se, também, que do conjunto patrimonial em Alcântara, embora não integrados no morgado, faziam parte aqueles outros edifícios foreiros à casa dos marqueses de Sabugosa. Por morte de João Vicente Barruncho, um desses prazos, em vidas, passara ao ilho João Pedro; os restantes dois, de natureza perpétua, haviam primeiro recaído em sua viúva, enquanto credora do marido, mas após o falecimento de D. Lina Rosa Ferreira couberam ao mesmo João Pedro Ferreira Barruncho, que de todos eles lavrara as competentes escrituras de reconhecimento, no cartório do tabelião João Baptista Scola, a 18 de Abril de 1859. Igualmente compostos por prédios de renda, situavam-se esses prazos na referida calçada da Tapada: os números 18-19 e 33-34 eram os dois aforamentos perpétuos, que tinham respectivamente o foro anual de 700 e 650 réis; e os números 20-21 formavam o prazo em vidas, pagando 800 réis de foro 217. Observando a envolvente da quinta do Fiúza nas plantas levantadas por Duarte José Fava em 1807, por José António de Abreu em 1848 (esta com a particularidade de referir o topónimo da propriedade) e por Filipe Folque em 1856 [Figuras 11, 12 e 13], veriicamos o progressivo aumento da área construída, traduzida no aparecimento de novos edifícios erguidos em terrenos do vínculo e dos mencionados prazos, primeiro defronte da igreja de São Pedro e depois estendendo-se para cima, ao longo do lado direito da calçada da Tapada.

216

Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 367625, Nproc 2438, 4.ª vara, 3.ª secção, maço 26J, cx. 45, autos cíveis de justiicação em que é justiicante João Pedro Ferreira ”arruncho, 1864.

217

Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, 3.º Cartório, cx. 212, livro 1009, ls. 31-33. O prédio da calçada da Tapada, 18-19 coninava do norte com a quinta de João Pedro Ferreira ”arruncho, do sul com a referida calçada, do nascente e poente com prédios também pertencentes àquele. O da calçada da Tapada, 33-34 coninava do norte com casas do mencionado João Pedro Ferreira Barruncho, do sul com a mesma calçada, do nascente com a rua do Príncipe e do poente com casas de D. Ludgera da Conceição Pinheiro. O da calçada da Tapada, 20-21, por im, coninava do norte com a referida quinta, do sul com a calçada da Tapada, do nascente e poente com prédios também pertencentes a João Pedro.

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1 de Julho de 1892 Terá sido neste dia que Jacinto Gonçalves se mudou para a calçada da Tapada. Umas escassas semanas antes, a 29 de Maio, o conhecido empresário de transportes ajustara com Scipion Bourreth, um engenheiro viúvo residente na quinta da Torre do Fato, nas imediações de Carnide, tomar-lhe de subarrendamento uma parte de terreno no primeiro talhão contíguo à entrada da quinta do Fiúza, até aos limoeiros que ali existiam, bem como um prédio situado na referida calçada, composto de loja, andar e sótão 218. As duas propriedades pertenciam a João Pedro Ferreira Barruncho, mas ao passo que o edifício fora por este directamente arrendado ao referido Bourreth, já o pedaço de terra, juntamente com toda a mencionada quinta do Fiúza, se achava locado a certo Bento Garcia que, com autorização do Barruncho, o dera de subarrendamento ao mesmo Bourreth. Em ambos os casos, por escrituras celebradas a 29 de Novembro de 1888 219. Naquele ano de 1892, em Lisboa, a guerra entre as empresas de transportes encontrava-se ao rubro! Na verdade, “qualquer pessoa podia comprar um carro puxado por duas ou três muares e, pedida a respectiva autorização à Câmara, podia transportar nele passageiros. Eram portanto muitos os concessionários de carreiras urbanas e suburbanas, e os seus nomes ligaram-se ao transporte que punham à disposição do lisboeta” 220. A par da Companhia de Carruagens Lisbonenses, que iniciara a sua actividade em 1852, outras empresas foram surgindo na capital e “ao longo dos anos nasciam, tinham seus dias de apogeu e acabavam esquecidas, dando lugar a outras, que mercê da cotação e simpatia junto do público subiam para primeiro plano”. Assim aconteceu com os carros do Jacintho, que à entrada do último quartel do século “levavam os passageiros, a preços módicos, até fora da cidade, fazendo tempos formidáveis para a época, devido a possuírem bons cocheiros e animais cuidados”. Um novo transporte, porém, aumentara a concorrência: tratava-se do americano, que tinha a particu218

Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, 13.º Cartório, livro 66, ls 21v-22v. O dito pedaço de terreno media, pelo norte, 35 metros, 44 pelo sul, 22 pelo nascente e 18,5 pelo poente.

219

Lavradas a ls. 63 e 65 do livro 479 do tabelião Francisco Vieira da Silva ”arradas, livro que não foi possível consultar na Torre do Tombo devido ao seu mau estado de conservação.

220

CAPITÃO, Maria Amélia da Motta, Subsídios para a História dos Transportes Terrestres em Lisboa no Século XIX, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1974, p. 23.

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laridade de se deslocar sobre carris de ferro colocados no solo, estruturas aliás que causavam o maior transtorno às carruagens tradicionais, frequentemente acidentadas quando encalhavam nos metálicos trilhos. As velhas companhias, como a do Jacinto, destituídas do seu lugar cimeiro por serem tecnicamente inferiores, ainda procuraram resistir, anunciando sucessivas reduções de preço e multiplicando as suas carreiras. Mas os americanos, detidos pela Companhia dos Carris de Ferro, pareciam gozar de uma posição protegida junto da Câmara Municipal, que não se alterou apesar das reclamações apresentadas pelos demais concorrentes, como foi o caso de Jacinto Gonçalves que, precisamente em 1892, se queixou da enorme taxa anual de 500$00 réis imposta pela autarquia, em postura de 27 de Junho, “sobre cada carro que explorar a indústria de viação de transportes em comum com a faculdade de parar na via pública para receber ou deixar passageiros”. Era este, com efeito, um encargo que tornava praticamente impossível o exercício desta ocupação 221. Consta, justamente, que o privilégio dado naquele ano à Carris foi de tal ordem que doze das quinze companhias de carruagens então existentes foram eliminadas, subsistindo apenas as que pertenciam a Jacinto Gonçalves, a Antoine Ripert e a Eduardo Jorge, este vulgarmente conhecido como o Chora 222. Jacinto Gonçalves residia já em Alcântara, no número cinco da travessa da Furna, mas a mudança em meados de 1892 para a calçada da Tapada parece ter-se enquadrado no objectivo de alargar a sua actividade, estratégia que seguiu para tentar resistir à pressão da concorrência. No referido talhão de terreno que o empresário tomara de subarrendamento existia, na verdade, “um barracão de madeira coberto de folha zincada servindo de cocheira com algumas manjedouras, situado na entrada da Quinta denominada do Fiúza” e construído a mando do mencionado Scipion Bourreth, que o vendeu a Jacinto pelo preço de 300 mil réis por escritura celebrada a 11 de Junho 223. As novas instalações serviram-lhe certamente para acomodar o aumento da frota, então composta de 25 carros, primeiro com a compra de mais cinco em inais do mesmo ano e depois de 221

IDEM, Ibidem, pp. 27-32, 34-35, 47 e 67. Esta autora referiu 1864 como o ano em que Jacinto Gonçalves iniciou a sua actividade de transportes, o que me parece inverosímil pelo facto de este, naquele ano, contar apenas 11 anos de idade. A citação a respeito da postura municipal foi extraída de Arquivo Municipal de Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, Administração-Geral, Notariado, livro 26, ls. 13-14v.

222

VIEIRA, António Lopes, Os transportes públicos de Lisboa entre 1830 e 1910, s.l.: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, [1982], pp. 89-90.

223

Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, 13.º Cartório, livro 66, ls 25v-26v.

94

outros 25 em Outubro de 1893 224. Diga-se, aliás, que o tenaz empresário viria a adquirir mais algumas barracas e prédios nas imediações: por escrituras de 25 de Agosto de 1892, 12 de Novembro de 1894 e 9 de Setembro de 1895, Jacinto Gonçalves tornou-se respectivamente proprietário dos edifícios situados nos números 123-127, 121-122 e 120 da rua da Cruz a Alcântara, os dois últimos foreiros ao marquês de Sabugosa 225. A localização nesta zona da cidade permitia-lhe, assim, dispor de várias carreiras de ida e volta, quer destinadas ao Areeiro e Intendente, com partida do largo do Calvário, quer ao Rossio, com início na estação da Ajuda 226. A verdade, porém, é que, apesar dos esforços, Jacinto Gonçalves acabou por não conseguir resistir pois “«sabidas as relações que havia entre o sr. Gonçalves e o sr. Conde de ”urnay, e tendo este titular assumido a direcção dos negócios da Companhia Carris, certamente que, em vez de alimentar o mais enérgico concorrente desta companhia, passaria a absorve-lo». Na realidade, nos princípios de 1896, Jacintho Gonçalves, «dono da empresa de carros que fazem carreira em Lisboa, ligou-se à Carris, vendendo-lhe os seus veículos e gado, tomando-lhe esta o pessoal, e passando ele próprio a ser seu empregado»” 227. Muitos anos mais tarde, relatava um ilho do Chora que “até mesmo o Jacinto que connosco reagiu a esta coacção e que durante algum tempo continuou rodando nas ruas da capital os seus carros amarelos de faixa vermelha, acabou por desistir. E se ele tinha bons carros, cavalos e cocheiros! Era cá uma lindeza! Mas não aguentou a concorrência da Carris que era realmente terrível” 228.

224

VIEIRA, op. cit., p. 135. A Câmara Municipal de Lisboa deliberara a 7 de Julho de 1892 autorizar o pagamento em prestações mensais da taxa anual de 500$000 réis por cada carro, desde que o devedor apresentasse iador. Deste modo, Jacinto Gonçalves celebrou, a 26 de Julho, uma escritura de obrigação e iança respeitante à taxa sobre os 25 carros que compunham a sua frota; a 15 de Novembro, outorgou nova escritura para mais cinco carros; e, tendo a autarquia deliberado, a 24 de Agosto de 1893, que a taxa continuasse a poder ser paga mensalmente, Jacinto Gonçalves, a 17 de Outubro seguinte, fez nova escritura para mais 25 carros. Arquivo Municipal de Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, Administração-Geral, Notariado, livro 24, ls. 42-44 e 96v-98; e livro 26, ls. 13-14v.

225

Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, 13.º Cartório, livro 66, ls 35v-37; livro 71, ls. 32v-34v; e livro 72, ls. 34v-36v.

226

CAPITÃO, op. cit., p. 68.

227

VIEIRA, op. cit., p. 135, citando a Gazeta dos Caminhos de Ferro de 1 de Março de 1896, a p. 69. CALLIXTO, Vasco, As rodas da capital. História dos meios de transporte da cidade de Lisboa, Lisboa: Junta Distrital de Lisboa, 1967, pp. 65-66, associou o im da actividade de transporte de passageiros de Jacinto Gonçalves à introdução dos carros eléctricos em 1901.

228

Apud CAPITÃO, op. cit., pp. 114-115.

95

Fora no dia 10 de Abril de 1853 que, na pequena e antiga igreja de São Miguel do Milharado, em plena região saloia, Jacinto Pereira levara à pia baptismal o sobrinho nascido a 30 do mês antecedente, dando-lhe o mesmo nome próprio, certamente por deferência da irmã e do cunhado, Justina Maria e José Gonçalves, pais da criança 229. Vindo ainda rapazola da sua natal Póvoa da Galega para Lisboa, quando à uma da tarde do dia 10 de Julho de 1879, na paroquial de Santa Isabel, Jacinto Gonçalves se matrimoniou com Emília Adelaide da Conceição, já o respectivo celebrante lhe atribuiu a ocupação de carroceiro, que então exercia na rua do Arco do Carvalhão, onde vivia. A noiva, de vinte anos, era natural daquela mesma freguesia lisboeta, sendo ilha de José “ntónio Ferreira e de Antónia Maria, mas prenunciando talvez a ligação que o casal viria a ter a Alcântara, o consórcio foi testemunhado por Vicente Jerónimo e José Maria Urceira, ambos casados, aquele cortador e morador na rua de Alcântara, este trabalhador com residência na travessa do Fiúza! 230 “lcântara, nesta época, fervilhava de mudança! O lugar cedera deinitivamente à sua vocação industrial, como já o atesta a bonita aguarela que François d’Orléans, príncipe de Joinville, nos legou em 1850, por ocasião da sua passagem por Portugal [Figura 14]. Tinturaria, estamparia, iação e metalomecânica eram algumas das novas actividades ixadas. Paralelamente, servindo de domicílio às famílias daqueles que prestavam a sua mão-de-obra nas instalações fabris, despontaram os pátios operários: o do Vapor, o 28, o do Cabrinha… E a par desta alteração urbana e económica, Alcântara também mudou do ponto de vista social: fundaram-se colectividades, pólos de encontro e convívio popular, como a Sociedade Filarmónica Alunos Esperança, em 1850, a Sociedade Promotora de Instrução Popular, surgida em 1903, ou o Grémio Escolar Republicano de Alcântara. No entretanto, por iniciativa da rainha D. Maria Pia, o antigo paço real fora cedido para sede da Escola Asilo – Vilhena Barbosa, no Arquivo Pitoresco, em 1863, referiu-se ao palácio de Alcântara como “um edifício de tão modesta apparencia, que um estrangeiro que por ahi passe, não presume estar vendo um palácio, e menos ainda uma antiga habitação real” – e em 1877 tudo o que dele restava demoliu-se, para dar lugar à construção das ruas e casas que haviam de formar todo um noivo bairro aí nascido, entre o largo do Calvário e a 229

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Mafra, Milharado, baptismos, cx. 3, livro 7, l. 53v. Jacinto Gonçalves era neto paterno de José Gonçalves e Maria do Rosário e materno de João Pereira e Maria Joana.

230

Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, Santa Isabel, casamentos, livro 19, l. 159v.

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calçada da Tapada. Em consequência destas modiicações, a ribeira de “lcântara transformara-se num (…) foco de emanações pútridas de miasmas fétidos, de perigosa vizinhança. O carreiro de Alcântara foi afamado como umas das coisas mais dignas de lástima, e mais repugnantes da capital”, no dizer de Angelina Vidal em Lisboa Antiga e Moderna, tendo as fábricas de curtumes e a indústria de tinturaria como principais fontes de poluição. Inevitavelmente, as doenças e um maior índice de pobreza chegaram a “lcântara, lagelos a que a rainha D. “mélia tentaria pôr cobro com a fundação, neste lugar, do primeiro dispensário do país, destinado a dar assistência a crianças pobres e onde se iniciou a luta contra a tuberculose. Em todo este processo de industrialização e crescimento de Alcântara assumiram particular importância as intervenções ribeirinhas, desde o início da construção do aterro até à conclusão das obras do porto de Lisboa, entre as décadas de 60 e de 90 do século XIX. Como evidenciou Vieira da Silva, (…) os terrenos conquistados ao Tejo medem neste sítio uma área mais considerável do que qualquer outro ponto do Porto de Lisboa, e a linha marginal, que no século XVI não passava para além da ponte de Alcântara, avançou em direcção ao Tejo uma extensão de cerca de 900m. A conquista destes terrenos altamente valiosos foi uma necessidade que o incremento do comércio e da indústria e da circulação citadina tornam imprescindível, e que ainda mais veio valorizar o populoso e fabril bairro de Alcântara”. Em simultâneo, a antiga ponte sobre a ribeira desaparecia. Primeiro, com a abertura da estrada da circunvalação a partir de 1852 a nascente do curso de água, parte da guarda norte da ponte foi demolida, sendo a restante removida à roda de 1886-1887 para construção da estação, na linha férrea que seguia de Lisboa para Sintra. Apeou-se então a velha estátua de São João Nepomuceno, que se depositou no museu arqueológico do Carmo, e no ano seguinte foi a vez de desaparecer a guarda sul, quando se cobriu o caneiro para o assentamento da via-férrea que veio ligar a linha de Alcântara-terra a Campolide com a de Alcântara-mar a Cascais. Mas voltemos a Jacinto Gonçalves. Vasco Callixto traçou-lhe o peril – ilho de gente humilde mas trabalhadora” –, e assinalou-lhe o carácter empreendedor, honrado, amigo do seu amigo, incapaz de tolerar injustiças, “estimado pelo lisboeta e popular em todas as camadas sociais” 231. O temperamento enérgico de que era feito não permitiu que Jacinto baixasse por completo os braços quando 231

CALLIXTO, op. cit., pp. 63-67.

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as suas carreiras de passageiros foram absorvidas pela Carris. Parece, com efeito, que o empresário continuou com os transportes de carga, ao mesmo tempo que aplicava o capital amealhado em investimentos imobiliários, muitos dos quais precisamente em Alcântara 232. No ano de 1900, por escritura lavrada a 16 de Março, Jacinto Gonçalves efectuou um dos mais importante negócios naquela zona da cidade, ao comprar a João Pedro Ferreira Barruncho, por nove contos de réis, a quinta do Fiúza, que então se compunha “de terras de horta, parreiras, árvores de fruto, olival, dois poços de água, uma casa alta que serviu de pombal, arribana de vacas, palheiro, uma casa com frente para a calçada da Tapada números cento noventa e seis e cento noventa e sete, compondo-se de lojas, primeiro andar e água furtada, e um portão com o número cento noventa e oito”. A aquisição incluía, por conseguinte, o próprio prédio onde Jacinto Gonçalves já residia de arrendamento há vários anos, o qual, juntamente com a quinta propriamente dita formava uma área que confrontava a norte com o casal do Alvito, a sul com a calçada da Tapada, a nascente com propriedades pertencentes ao mencionado João Pedro Ferreira Barruncho e a poente com a real tapada da Ajuda 233. Já a 30 de Abril do ano seguinte, os mesmos outorgantes ajustaram entre si uma troca: João Pedro cedeu a Jacinto Gonçalves os seus prédios sitos na calçada da Tapada, 199, 200-201 e 202-203, avaliados em 1.706$000 réis; e este último transferiu para aquele o prédio situado nos números 211-212 da mesma artéria, pelo preço de 1.306$000 réis, valor a que acresceu o pagamento em dinheiro dos 400 mil réis de diferença. Note-se que este edifício fora arrematado pouco antes por Jacinto Gonçalves, em hasta pública realizada a 5 de Março do mesmo ano de 1901 no inventário entre maiores que correu na 5.ª vara do tribunal da Boa-Hora por morte de Francisco Caldas e D. Maria da Conceição Caldas, sua mulher 234. “ 13 de Maio, por im, João Pedro Ferreira Barruncho e Jacinto Gonçalves voltaram a encontrar-se perante o notário, desta feita para o segundo comprar ao primeiro, por três contos de réis, os dois prédios localizados na mesma calçada da Tapada, nos números 204-205 e 206-208, ambos compostos de lojas, dois andares e águas-furtadas 235. 232

Em 1904, consta que Jacinto Gonçalves também terá submetido um projecto para a construção de 18 barracas no bairro das Cruzes, próximo da Amadora, depois aumentado com mais 30 barracas a ediicar em terrenos adquiridos a Vicente Joaquim Esteves, e refere-se que junto à Venda Nova terá construído um pátio, depois conhecido como pátio do Jacinto.

233

Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, 13.º Cartório, livro 83, ls. 8v-11.

234

Ibidem, livro 85, ls. 80v-83v.

235

Ibidem, livro 86, ls. 7v-9v.

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“través destas operações, Jacinto Gonçalves não só conseguiu reunir uma iada de prédios contíguos, perilados entre a quinta que também adquirira e a própria calçada da Tapada, como ganhou terreno que lhe permitiu erguer novos edifícios no mesmo eniamento, em direcção a poente. “ 18 de Junho de 1901, com efeito, celebrou aquele empresário o contrato que ajustara com a comissão de administração da escola-asilo de São Pedro, na pessoa do seu presidente, o conselheiro Martinho Augusto da Cruz Tenreiro, pelo qual este concedeu “licença ao segundo outorgante Jacinto Gonçalves para levantar a empena do prédio que vai construir junto ao edifício da mesma Escola-Asilo, com a condição de ceder a esta um saguão de metro e meio de largura por todo o comprimento do fundo dela, saguão que se obrigará a mandar fazer a expensas suas”. Pretendia-se desta forma “compensar a inutilização das frestas da empena que actualmente fornecem luz e ar” às instalações daquele estabelecimento de ensino 236. Para além das propriedades que já possuía na rua da Cruz, a que atrás iz menção, Jacinto Gonçalves era ainda detentor de um conjunto de edifícios situados entre a rua de Alcântara e a rua das Fontainhas, pelo que todo este património fazia dele um dos principais proprietários desta zona da cidade. João Pedro Ferreira Barruncho, por seu lado, procurou reunir algum acervo na parte mais a nascente da calçada da Tapada na medida em que o acima mencionado prédio adquirido por troca com Jacinto Gonçalves, nos números 211-212, se juntou a um outro que, situado nos números 209-210, aquele comprara um ano antes, a 12 de Abril de 1900, por 900 mil réis, a D. Júlia de Jesus Mariz Fernandes e seu marido José Fernandes, constituindo também este um prazo foreiro ao mesmo D. Jorge José de Melo 237. Note-se que estes edifícios eram aqueles que, pertencendo a terceiros, se achavam desde tempos remotos en‑ cravados no património dos ”arrunchos, coninando para leste com os edifícios que estes possuíam já na esquina com a rua do Príncipe. Esta estratégia de concentração parece ter sido, porém, demasiado circunstancial, não se mostrando assaz consistente para contrariar a ideia de que João Pedro Ferreira Barruncho se encontrava, na verdade, a alienar uma signiicativa parte dos seus bens imóveis. Para além dos que acima foram mencionados, o antigo administrador do extinto morgado instituído na quinta e palácio do Fiúza vendeu vários outros prédios que haviam pertencido a este vínculo. Assim, ao serralheiro José Manuel Teixeira coube comprar, por escritura celebrada a 13 de Abril de 1901, o edifício 236

Ibidem, ls. 26-27v. Ibidem, documentos anexos às escrituras, maço 8, 1894-1905.

237

Ibidem, livro 83, ls. 38v-41.

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situado na rua do Alvito, 6-14, composto de lojas, primeiro andar e saguões, com frente para a referida rua e traseiras para o pátio do palácio e para outros edifícios pertencentes a João Pedro com serventia pela travessa do Quebra-Costas (o mesmo comprador adquirira antes o prédio imediatamente a seguir, com os números 15-17, por escritura que não localizei) 238. A 22 do mesmo mês de Abril, foi a vez do comerciante Agostinho Ferreira comprar os dois edifícios que se seguiam na referida rua do Alvito, aos quais estavam atribuídos os números 18-22 e 23-25, situados um pouco mais a norte e tendo nas traseiras um pequeno quintal pertencente ao palácio do Fiúza e a antiga quinta, agora nas mãos de Jacinto Gonçalves. Diga-se que o cerrado localizado a montante na rua do Alvito pertencia nesta ocasião aos herdeiros de Joaquim Pedro Paulino, sendo possível que nele se erguessem já as construções evidenciadas na planta de Lisboa que Silva Pinto levantou pouco tempos depois, entre 1904 e 1911 [Figura 15] 239. João Pedro Ferreira Barruncho teve ainda oportunidade, a 15 de Maio do referido ano de 1901, de vender a certo Manuel José, homem trabalhador que habitava em dependências do próprio palácio do Fiúza, o pequeno prédio que lhe icava adossado à entrada do pátio, nos números 3-4 das escadinhas ou travessa do Quebra-Costas 240. O velho proprietário ultrapassara entretanto a barreira dos setenta anos. Residindo ao longo da vida, como já acontecera com seu pai, noutros pontos da cidade de Lisboa, com passagens, por exemplo, pela rua da Emenda (1859) e pela avenida da Liberdade (1893-1900), João Pedro Ferreira Barruncho, nos derradeiros tempos da sua existência, estabeleceu-se no vetusto palácio do Fiúza, que rapidamente se tornaria, como vimos, num dos poucos imóveis que lhe restavam em Alcântara. Foi, pois, do nobre edifício que ele saiu no dia 9 de Setembro de 1901 para se dirigir ao cartório do notário Carlos Augusto Scola, situado na mesma rua da Madalena que o vira nascer no já longínquo ano de 1829. Deslocava-se ali com um importante propósito: o de lavrar o seu testamento. Tendo permanecido solteiro e sem descendência, as irmãs já falecidas no mesmo estado 241, não lhe restavam do lado Barruncho quaisquer familiares 238

Ibidem, livro 85, ls. 60v-62.

239

Ibidem, ls. 75-77v.

240

Ibidem, livro 86, ls. 12-14.

241

Na década de setenta do século XIX, perdera João Pedro Ferreira Barruncho duas das suas três irmãs então existentes: a 31 de “gosto de 1873, faleceu D. Maria do Carmo; a 26 de Janeiro de 1875, foi a vez de D. Maria da Conceição Ferreira Barruncho entregar a alma ao criador. Haviam ambas permanecido solteiras, assim como D. Maria das Dores, a derradeira sobrevivente,

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mais directos, mas tão-somente diversos primos com os quais se ignora o grau de relacionamento que manteria. Afectivamente mais chegada, talvez fosse apenas D. Soledade de Azevedo Barruncho, a única prima contemplada com um legado. De resto, João Pedro aproveitou a feitura daquele documento para agradecer às criadas Maria Rosa Nunes Freire e Ana Cândida Bastos, a quem deixou respectivamente o usufruto vitalício e a propriedade do prédio da calçada da Tapada, 211-212, e a diversos outros serviçais ou simples vizinhos, agraciados com pequenas quantias em dinheiro ou algumas peças de prata: os irmãos Justino e Manuel Duarte, moradores na quinta do van Praet (ou do Barruncho ou da Granja da Paradela, a que já se fez referência); Felicidade, “actual esfregadeira de sua casa”; Camilo Carlos Júlio de Almeida, “seu mestre-de-obras”; Maria da Conceição Mendes, Francisca dos Santos Moreira e seu marido Joaquim Moreira da Costa, moradores na travessa do Fiúza, quiçá no próprio palácio. Por último, além de um legado pio de 30 mil réis para ser distribuído pelos pobres da freguesia onde falecesse, emergem do testamento de João Pedro Ferreira Barruncho mais alguns nomes para os quais o seu autor não revelou a razão do benefício que lhes deixava: “dolfo e Heliodoro Centeno, que receberiam 500 mil réis cada; e António Valentim de Figueiredo Cabral de Quadros e o visconde do Rio Sado, investidos não apenas num prédio situado na antiga rua Bela da Rainha, hoje dita da Prata (o primeiro como usufrutuário, o segundo como proprietário), mas também, em partes iguais, no remanescente de toda a herança. Prenúncio de uma morte iminente, não passaram sobre a redacção do testamento mais do que quatro escassos dias: pelas onze e meia da noite de 13 de Setembro de 1901, o último dos Barrunchos, sem ter recebido qualquer sacramento, fechou deinitivamente os olhos. No palácio que, durante século e meio, fora tantas vezes berço e túmulo da sua gente 242.

que com aquelas residira – no número trinta do largo do Pelourinho, freguesia de São Julião, ao tempo do falecimento da primeira; e no número cinco da travessa da Parreirinha, freguesia dos Mártires, quando morreu a segunda. Aquela última irmã de João Pedro faleceu a 24 de Março de 1893, época em que residia com ele no segundo andar do número 39 da avenida da Liberdade. Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças, Processos de contribuição de registo por título gratuito, D. Maria do Carmo Ferreira ”arruncho, 1873, Processo n.º 584; D. Maria da Conceição Ferreira ”arruncho, 1875, Processo n.º 736-C. O óbito de D. Maria do Carmo dera-se ocasionalmente na casa da rua do Arco do Cego, 22, na freguesia de São Jorge de Arroios, “para onde tinha ido tomar ares”. Cfr. também Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 83767, Nproc 4497, 5.ª vara, 2.ª secção, maço 12A, cx. 519, autos cíveis de justiicação para habilitação por morte de João Pedro Ferreira ”arruncho, 1902. 242

Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, 4.º ”airro de Lisboa, XV-I-8, livro 109, ls. 19-25.

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António José de Figueiredo e Mariana Vitória Cabral de Quadros haviam contraído matrimónio a 10 de Março de 1827 na paróquia dos Mártires, em Lisboa 243. Quatro anos depois, porém, o casal encontrava-se a residir na rua do Passadiço, na freguesia do Coração de Jesus, e foi aqui que, a 14 de Fevereiro, em perigo de vida, lhes nasceu o ilho “ntónio Valentim. Sobreviveu o rapaz às fragilidades desse tempo inicial da existência e no primeiro dia de Maio lá o levaram à pia baptismal, onde foi apadrinhado por Francisco Nicolau Castelo Branco Cabral de Quadros e D. Maria Sebastiana Cabral de Quadros, seus tios maternos 244. Sobre as demais circunstâncias da vida de António Valentim de Figueiredo Cabral de Quadros, não foi muito o que se conseguiu apurar 245. Sabe-se que teve duas irmãs, D. Maria Hermenegilda e D. Maria Sebastiana, a primeira falecida antes dele, presumivelmente solteira, e a segunda natural da Pena e casada na freguesia da Madalena, a 31 de Março de 1855, com o andaluz Domingos Rodrigues Centeno, de quem teve diversos ilhos, alguns dos quais colaboradores com o tio nas Companhias Reunidas de Gás e Electricidade 246. A primeira notícia localizada a respeito da ligação de António Valentim a este sector de actividade data de 24 de Julho de 1891, ocasião em que, representando as comissões delegadas da Companhia Lisbonense d’Iluminação a Gás e da Companhia Gás de Lisboa, foi um dos dois subscritores da convocatória para a assembleia-geral que iria deliberar sobre a fusão daquelas empresas. O Almanach Palhares para 1904 indicou António Valentim de Figueiredo Cabral de Quadros como vice-presidente das mencionadas Companhias Reunidas de Gás e Electricidade, apontando ainda os nomes de António e Fernando Centeno, respectivamente titulares dos cargos de administrador-delegado e de membro do conselho iscal. O primeiro relatório do conselho de administração publicado após a morte do gestor haveria de lembrar que este “sempre prestou á nossa 243

António José de Figueiredo era natural do lugar de Nabainhos, no concelho de Gouveia, residindo ao tempo do casamento na freguesia de Santos, em Lisboa. Mariana Vitória Cabral de Quadros vivia na paróquia do Santíssimo Sacramento e era ilha de José Nicolau Castelo Branco Cabral de Quadros e de Mariana Nolasca Cabral de Quadros. Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, Mártires, casamentos, livro 3, l. 130v.

244

Ibidem, Coração de Jesus, baptismos, livro 4, l. 55v.

245

Agradeço a Lourenço Correia de Matos várias das informações aqui coligidas a respeito de António Valentim de Figueiredo Cabral de Quadros e sua família.

246

Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças, Processos de contribuição de registo por título gratuito, António Valentim de Figueiredo Cabral de Quadros, 1904, Processo n.º 2914-A. Torre do Tombo, Registos Paroquiais, Lisboa, Madalena, casamentos, livro 3, ls. 179v-180. Domingos Rodrigues Centeno era natural de São Matias de Vila Nova dos Castelejos, próximo de Huelva, no arcebispado de Sevilha.

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sociedade os mais relevantes serviços, tendo occupado desde o principio da companhia diversos cargos nos corpos gerentes”, entre os quais também o de presidente do referido conselho iscal 247. De onde vinha ao certo a relação entre António Valentim de Figueiredo Cabral de Quadros e João Pedro Ferreira Barruncho é algo que não consegui descortinar. Em 1864, quando este último propôs a acima mencionada acção de justiicação que levaria à extinção do morgado da quinta de “lcântara, indicou o primeiro como uma das três testemunhas do processo, evidenciando-se assim o grau de coniança que então já teria de existir entre os dois. Nessa época, António Valentim residia na rua da Madalena, exercendo a ocupação de caixeiro, o que signiica que também poderia haver alguma ligação decorrente da comum vizinhança 248. Pouco antes de morrer, este beneiciário de parte da herança de João Pedro Ferreira Barruncho haveria de se referir ao visconde do Rio Sado – o outro grande contemplado – como seu “antigo amigo”, pelo que a mera (mas certamente profunda) amizade seria porventura o único vínculo que também o ligaria àquele seu falecido benfeitor. Diferente, porém, era o caso do mencionado titular… “ugusto Correia Godinho Ferreira da Costa nascera a 1 de “gosto de 1840, ilho de José Correia Godinho da Costa e de D. Mariana Firmina Ferreira, primeiros viscondes de Correia Godinho. Formado bacharel em direito pela Universidade de Coimbra no ano de 1859, fora o jovem, logo no ano seguinte, nomeado governador civil de Faro, cargo que ao longo da vida também exerceria nos distritos de Aveiro, Bragança e Santarém. Em Lisboa, chegara a ser vice-presidente da respectiva Câmara Municipal e, a partir de 1879, fora deputado às Cortes em diversas legislaturas. Tudo isto a par de uma carreira na magistratura, cuja progressão se vira sempre prejudicada pelas longas suspensões que o desem247

Vd. o anúncio publicado no n.º 132 do jornal A Vanguarda, de 13 de “gosto de 1891. Cfr. também o Almanach Palhares para 1904 – Burocratico, Commercial e Industrial do Continen‑ te, Ilhas e Ultramar, Lisboa: Empreza Editora do “lmanach Palhares, 6.º “no, 1903, p. 1217. Companhias Reunidas Gaz e Electricidade, Sociedade Anonyma de Responsabilidade Limitada, Capital: Rs.  5.580.000$000, Assembleia Geral de 6 de Outubro de 1904, Relatorio do Conselho d’Administração e Parecer do Conselho Fiscal sobre o exercício de 1903‑1904, Lisboa: Typographia de «A Editora», 1904, pp. 4 e 14.

248

Esta mesma proissão fora atribuída em 1827 ao mencionado Francisco Nicolau Castelo ”ranco Cabral de Quadros, tio de António Valentim. Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 367625, Nproc 2438, 4.ª vara, 3.ª secção, maço 26J, cx. 45, autos cíveis de justiicação em que é justiicante João Pedro Ferreira ”arruncho, 1864. Registos Paroquiais, Lisboa, Mártires, casamentos, livro 3, l. 130v.

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penho daqueles outros cargos exigiam. Na sua biograia, icaram assinaladas algumas curiosas circunstâncias: foi um dos principais apoiantes de Rosa “raújo a favor da abertura da avenida da Liberdade, em Lisboa; diz-se ter sido o primeiro a apresentar no parlamento uma proposta para se estabelecer legalmente o domingo como dia de descanso semanal; no tribunal, eram famosos os seus ditos de espírito, que tantas vezes provocavam certa hilaridade; consta ter sido pioneiro em Portugal na aplicação do regime de pena suspensa. Grande coleccionador de antiguidades, com um famoso acervo de relógios, Augusto Correia Godinho Ferreira da Costa era idalgo cavaleiro da Casa Real, comendador da Ordem de Cristo e agraciado com diversas outras ordens honoríicas estrangeiras. “ 9 de Maio de 1878, o rei D. Luís izera dele o primeiro (e único) visconde do Rio Sado 249. Era este titular, por via materna, primo direito de João Pedro Ferreira Barruncho, pois as mães de ambos – D. Mariana Firmina Ferreira e D. Lina Rosa Ferreira, respectivamente – eram irmãs. Terá sido este parentesco, por conseguinte, uma das justiicações para o facto do visconde do Rio Sado ter recebido metade da herança daquele primo, a par com o mencionado António Valentim de Figueiredo Cabral de Quadros. Habilitados então como herdeiros testamentários dos bens remanescentes de João Pedro Ferreira Barruncho, conforme sentença decretada a 12 de Dezembro de 1901, os dois amigos trataram de promover, logo a 1 de Maio seguinte, a inscrição a seu favor de um dos principais imóveis que aquela herança lhes trouxera: o vetusto palácio do Fiúza. “ntónio Valentim de Figueiredo Cabral de Quadros e o visconde do Rio Sado talvez tivessem alguns negócios em comum, pois escassos dias mais tarde o amplo edifício seria dado como garantia de um empréstimo de conta-corrente que ambos pretendiam contrair junto da Companhia Geral do Crédito Predial Português, inicialmente ajustado para um montante de 7 contos mas depois apenas efectivado em 5, com um prazo de cinco anos e um juro de 5% 250. António Valentim já não era novo e a morte surpreendeu-o ao início da noite de 20 de Fevereiro de 1904 na casa onde residia, sita à rua do Ferragial de Baixo. No testamento cerrado que lavrara a 10 249

ZUQUETE, Afonso Eduardo Martins (Direcção), Nobreza de Portugal, Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1961, volume 3, p. 233. Vd. também, recentemente publicado, CALDEIRA, José, Famílias de Arganil. Subsídios genealógicos, s.l.: Edição do “utor, 2014, volume 1, pp. 322-323.

250

Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 83767, Nproc 4497, 5.ª vara, 2.ª secção, maço 12“, cx. 519, autos cíveis de justiicação para habilitação por morte de João Pedro Ferreira Barruncho, 1902. Conservatória do Registo Predial de Lisboa, inscrições n.os  11335 e 6710, lavradas respectivamente a ls. 155v do livro G-19 e 75v do livro C-19, respeitantes ao prédio descrito sob o n.º 11280, a ls. 187 do livro ”-41 da antiga 3.ª Conservatória.

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de Outubro antecedente – mas aprovado pelo tabelião apenas três dias antes de morrer – manifestara sobretudo a preocupação de amparar Maria Eufémia Soeiro e Maria da Piedade de Oliveira, que com ele viviam e a quem deixou vários legados, salvaguardando igualmente que diversos objectos e utensílios que existiam na sua residência pertenciam às referidas senhoras. Solteiro e sem ilhos, o velho amigo de João Pedro Ferreira Barruncho nada dispôs a respeito do grosso da sua herança, rogando apenas ao visconde do Rio Sado que fosse seu testamenteiro – pedia-lhe o “especial favor de prestar mais este serviço além dos muitos que, em vida, do mesmo Excelentíssimo Visconde recebi” –, pois não encontrara pessoa mais competente para auxiliar aquelas duas contempladas. Foi, pois, nestas circunstâncias que metade do palácio do Fiúza icou pertencendo à acima mencionada D. Maria Sebastiana de Figueiredo Cabral de Quadros, a única irmã viva de António Valentim, então já viúva e que, por sentença datada de 3 de Fevereiro de 1905, fora julgada como única e universal herdeira do falecido irmão 251. O histórico edifício, no entanto, pouco tempo esteve nas mãos daquela senhora. Fazendo-se representar pelo ilho “lberto Centeno, D. Maria Sebastiana tratou de vender, por 4 contos de réis, a sua metade no palácio do Fiúza ao visconde do Rio Sado, que assumiu igualmente a obrigação do pagamento integral do empréstimo contraído junto da Companhia Geral do Crédito Predial Português, já atrás referido. A escritura foi celebrada no cartório do notário Emídio José da Silva, em Lisboa, no dia 11 de Maio do referido ano de 1905 e por este instrumento operou-se também a transmissão de metade da já referenciada quinta do Barruncho, ou de van Praet, nas imediações de Loures, a favor do mesmo visconde, que assim icou na plena propriedade destes importantes imóveis outrora pertencentes à família do seu defunto e saudoso primo João Pedro Ferreira Barruncho 252. Não obstante residir habitualmente em Lisboa, foi no chalet Pavilhão, no Monte Estoril, que Augusto Correia Godinho Ferreira da Costa faleceu. Deu-se o óbito à uma e meia da madrugada de 7 de Junho de 1909. Ao mesmo tempo que evi251

Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, 2.º Bairro de Lisboa, XV-T-181, livro 173, ls. 12v-18v. “rquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças, Processos de contribuição de registo por título gratuito, António Valentim de Figueiredo Cabral de Quadros, 1904, Processo n.º 2914-A.

252

Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, 7.º Cartório, ofício “, cx. 19, livro 937, ls. 2-5. O valor de venda da metade da quinta do Barruncho, ou do van Praet, e terras anexas foi de 800$000 réis.

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denciava as qualidades do “illustre extincto” – “Apesar da sua avançada edade, manteve sempre as predilecções do seu tempo de rapaz, conservando inalteravel a viveza do seu culto espirito e a irmeza do seu trato, que o tornavam atrahente, pois que entremeava com estes dotes uma graça juvenil, que deliciava os amigos e as pessoas do seu convivio” –, o Diario Illustrado do dia seguinte anunciava que o visconde do Rio Sado deixara “uma fortuna que se julga ser superior a duzentos contos de réis”, dos quais sessenta seriam para distribuir em legados instituídos a favor de mais de seis dezenas de contemplados, entre criados, amigos, ailhados e instituições sociais 253. Não tendo descendência de sua falecida mulher – D. Maria da Encarnação Orta, ilha dos viscondes de Orta, com quem casara a 14 de Janeiro de 1863 e de quem enviuvara a 10 de Dezembro de 1903 –, o visconde do Rio Sado determinara, no testamento redigido a 19 de Janeiro de 1905, que “todos os bens que constituem a minha herança sejam vendidos em hasta pública”, com exclusão do já mencionado prédio situado na calçada da Tapada, 209-210, em Lisboa, legado ao sobrinho António da Costa Godinho do “maral, então solteiro e segundo oicial da Direcção-Geral dos Negócios Eclesiásticos. Destino diferente teve, por conseguinte, o vizinho palácio do Fiúza, nesta ocasião avaliado em 8.500$000 – valor que já considerava um abatimento de 1.778$000 réis para obras de que o edifício necessitava – e incluído no edital para arrematação pública datado de 26 de Junho, aixado no próprio palácio e à entrada do tribunal da Boa-Hora, e também publicado no Diario do Governo dos dias 1 e 3 do mês seguinte. Foi então no seguimento destas diligências que, a 18 de Julho de 1911, pelo meio-dia, no antigo convento há várias décadas transformado em domus iustitiae, as vetustas casas nobres a Alcântara, que haviam sido dos Carvalhos, dos Fiúzas, dos Barrunchos e ultimamente do visconde do Rio Sado, passaram para as mãos de Jacinto Gonçalves, que por elas deu 500 réis acima do preço base ixado. O experiente empresário de transportes, e também investidor imobiliário, conseguia assim reunir o palácio à antiga quinta que lhe icava adjacente e a vários dos prédios que se perilavam pela calçada da Tapada acima, onde ele próprio continuava a resi253

Agradeço a Lourenço Correia de Matos a pesquisa e disponibilização das notícias respeitantes à morte do visconde do Rio Sado. O mesmo Diario Illustrado noticiou que à soldagem do caixão assistiram o cunhado Júlio Guerra e sobrinhos do defunto, bem como Domingos de Sousa, Carlos Vasques, José Francisco de Sousa, dr. Tavares Festas, Raul Carlos Rozendo e Francisco José da Silva Machado, seus amigos. O corpo seguiu de comboio para Lisboa, no dia 9 – acompanhado por Pedro Barruncho, Júlio e Manuel Guerra, dr. Godinho do Amaral, tenente-coronel Perestrelo e prior de Cascais –, realizando-se o funeral do Cais de Sodré para o cemitério dos Prazeres, na companhia de diversas personalidades, onde foi sepultado no jazigo do visconde de Orta, seu cunhado. Diario Illustrado, 8, 9 e 10 de Junho de 1909.

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dir. Deste modo, os vários imóveis adquiridos por Jacinto ao longo de mais de dez anos aproximavam-se, no seu todo, do conjunto que remotamente formara o acervo patrimonial centrado em torno do nobre edifício. Este, porém, com um uso adaptado às circunstâncias que o tempo impunha, constituía sobretudo uma fonte adicional de rendimento urbano, tendo Jacinto Gonçalves recebido as rendas que o cabeça-de-casal da herança do visconde do Rio Sado já cobrara aos diversos inquilinos, relativas aos meses de Julho e Agosto desse ano de 1911 254. Escreveu “ugusto d’Esaguy que “lcântara, por esta época, era deinitivamente “um bairro de trabalho”, marcado pelo “apito do vapor” e pelas “mulheres que descarregam carvão e têm as mãos enluvadas de negro”. Não se estranha, por isso, que o movimento republicano, na transição do século XIX para o XX, tenha encontrado nesta zona de Lisboa fértil terreno para se implantar. Falando dos precursores do Partido Republicano Português, relatou Magalhães Lima que Houve em Lisboa três fócos de irradiação republicana: o palacio do Fiuza, em Alcantara; o Pateo do Salema, onde teve a sua sede o «Centro Fraternidade Republicana»; e a «Livraria Internacional», de Carrilho Videira. O palacio do Fiuza era frequentado por republicanos e socialistas, que, naquela época, caminhavam a par. Ali conheci o honrado Sousa Brandão, fundador da cooperativa Industria Social, que, como atrás me referi, existe ainda; Conceição Fernandes, e ali conheci também João Bonança. Foi do palácio do Fiuza que saiu o Trabalho, em que colaborei com Silva Pinto e Eduardo Maia. (…) O Trabalho tinha uma feição republicana e socialista; João Bonança lembrava um pouco os republicanos de 48. Nesse tempo defendiam-se ideas, ao contrario do que sucede hoje, em que se defendem interesses. (…) Estou a Vê-lo ainda sentado á mesa da redacção do Tra‑ balho, de longa cabeleira e barba crescida, onde aparecia, de quando em quando, Gomes Leal, e principalmente os socialistas mais reputados daquele período”.

E citando o romance Amanhã, de “bel ”otelho, icamos a saber que “O velho palacio, patio e quinta do Fiúza já não apresentava, ao tempo, mais que uns ténues vestígios da feição e tráça primitiva. Ninguem agora, ao divisar, passada a rua do Livramento, á direita, aquele prédio banal e formidavel, com o uniforme tom granada da sua frente monotonamente regrado, em cinco iadas, por comedidos rectangulos de cantaria lavrada, ninguem seria capaz de suspeitar quanto fôra singularmente expressiva e diversa a sua isionomia anteriôr; ninguem imaginaria que intensas crises de luta, que agitados periodos de revolucionario alento aquele discreto e inexpressivo rebôco mascarava. Apenas 254

Torre do Tombo, Tribunal da Boa-Hora, ProcID 89772, Nproc 0, 5.ª vara, 3.ª secção, maço 1V, cxs. 85-86, inventário facultativo por morte do visconde do Rio Sado, 1910.

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no extrêmo da extensa fachada lateral pelo lado norte, e prolongando-lhe posteriormente a base, cambava para o exterior um escasso trêcho, desaprumado e bolorento, de velha muralha entaliscada em alvenarias recentes, com a sua remota origem pitorêscamente atestada na uniforme côr de sépia, no terreno aglomerado de concreções que eram como que a patina do abandono, os herpes da ruina. E continuando-a ainda no mesmo sentido, seguia um grande espaço rectangular, vasio de construções, cingido, como um cemiterio, em muros brancos, o qual participava de um caracter hibrido, simultaneamente horta e vergel, parte alqueivado e regado com esmero, parte guardando o seu talhe hieratico de jardim, moldado em grossos paredões de buxo, maciçamente esquadrados segundo o classicismo frio e simétrico da arte do primeiro Imperio, circunscrevendo cascatas, fontes sem agua, e náiades sem cabeça. E esta sua gélida imobilidade intimidava, entanguia os espiritos, derramando de roda desse funebre perímetro o retraimento e a solidão. Uma aura misteriosa de desconiança e terrôr envolvia aquela abominada estancia. Instintivamente a multidão evitava o lugubre recinto, a que andavam ligadas funestas e azarentas tradições. Certo é que o palácio do Fiúza tinha sobejos fóros para arrogar-se a gloria de haver sido por excelencia o solar do moderno movimento revolucionario em Portugal. Ali se fundara e instalara e ali funcionou, desde 1858, durante muitos anos de seguida, a Associação Fraternal dos Fabricantes de Tecidos e Artes Correlativas, uma das primeiras cooperativas nacionais, ao depois convertida num centro de agitação dos mais ousados e mais fecundos: “li celebravam as suas clandestinas sessões várias lojas maçónicas. Ali passaram de preferencia a reunir, a contar de 1875, todos os conciliabulos de conspiradores, todas as fenianas ligas de resistencia contra os podêres constituidos, presididas e insuladas as mais delas por Carrilho Videira. E de bem sérios e rijos conlitos rezava a lenda, valentemente batidos na sigilosa impunidade daquelas parêdes misteriosas. Corria até que não se haviam reduzido a méras controversias verbais, mais ou menos violentas mas no fundo inofensivas, esses surdos e rigidos combates. Pelo contrario, o travamento homérico das opiniões algumas vêzes ali tivera por epilogo o beijo tragico da morte»”.

Na verdade, “foi a população de Alcantara das que deu maior contingente de revoltosos. Os trabalhos de organisação revolucionaria n’esta freguezia datam de 1907, e tão bem conduzidos elles foram, tão solida e perfeita a sua organisação, que nunca nem no periodo mais agudo da perseguição ás associações secretas, foi dado ao juiz de instrucção criminal descobrir o io da conspiração . Na noite de 3 de Outubro de 1910, reuniram-se os rebelados de Alcântara na tipograia da rua do Livramento, quartel-general naquele bairro. Também nos centros republicanos se aglomerava o povo, que disputava entre si as poucas armas disponíveis. Depois, “aberta a porta do quartel dos marinheiros com o auxílio de alguns populares, a Alcântara revolucionária preparou-se para a lucta, ao lado

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dos marinheiros, que os armaram e municiaram rapidamente”. E no dia 4, “logo que a manhã rompeu, de todos os pontos do bairro surgiram como por encanto legiões de ousados combatentes, espalhando-se pelas ruas da cidade (…) . Durante a primeira república, manteve esta zona de Lisboa o seu peril insurrecto e agitado. Por decreto de 24 de Agosto de 1912, a freguesia civil de São Pedro em Alcântara tomou apenas este último nome, perdendo aquela referência religiosa. Em Julho de 1914, saiu a lume o jornal Alcântara Livre, propriedade do Grupo de Propaganda “nti-Clerical “lcântara-Livre, cujo im era opôr á propaganda jesuitica e clerical que se está fazendo nesta paróquia, uma propaganda anti-clerical, livre pensadora e republicana”. E entre 1915 e 1918, a igreja paroquial de São Pedro chegou mesmo a ser encerrada ao culto 255. Foi este o ambiente em que Jacinto Gonçalves viveu os últimos tempos da sua vida. Aos 67 anos, pelas seis da tarde do dia 8 de Março de 1920, o enérgico industrial sucumbia a uma miocardite, no prédio da calçada da Tapada de onde, ao longo das últimas três décadas, dirigira os seus importantes negócios. Numa derradeira manifestação da forma intensa como exercia a sua actividade, estipulara no testamento cerrado redigido no já distante ano de 1911 que se desse “a cada inquilino que à hora do meu falecimento habite nos meus prédios o correspondente a um mês de renda que tenha a pagar”; e “a cada um carroceiro, moços e mais operários que estiverem há mais de cinco anos ao meu serviço, o equivalente a uma semana de jorna, e àqueles que tiverem menos de cinco anos o equivalente a dois dias; e aos que seu ordenado for mensal, o equivalente a um mês quando estejam ao serviço da casa há mais de cinco anos e quinze dias quando estejam há menos tempo”. Revelava-se, uma vez mais, o empresário 255

FREIRE (MÁRIO), op. cit., p. 153. FANÇONY, Ana; FEIJÓ, José A. B. de Magalhães; PINTO, Raquel Passos, “Um passeio pela história de Alcântara”, in JANEIRA, Ana Luísa; ANTUNES, Conceição Lobo (Orientadoras), Marcas de indústria no ambiente de Alcântara, s.l.: s.n., [1983], pp. 13-25. FORTE, Ana Luísa Figueiredo; NÉO, Maria de Fátima de Almeida; CATARINO, Maria Justina Simões, “Pátios operários”, in JANEIRA, Ana Luísa; ANTUNES, Conceição Lobo (Orientadoras), Marcas de indústria no ambiente de Alcântara, s.l.: s.n., [1983], pp. 109-121. NEVES, Catarina; MARTINS, Ivone, “Estudo de colectividades de cultura e recreio”, in JANEIRA, Ana Luísa; ANTUNES, Conceição Lobo (Orientadoras), Marcas de indústria no ambiente de Alcântara, s.l.: s.n., [1983], pp. 139-157. PISTOL“, Renato José ”ogalho Jorge da Silva, Alcântara, a evolução industrial de Meados do Século XIX ao inal da 1.ª República, s.l.: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2009 (texto policopiado, dissertação de mestrado em História), pp. 22, 28-30 e 137. FREITAS, op. cit., p. 6. SILVA, A Ponte…, pp. 6 e 14. MESQUITA, op. cit., pp. 95-96 e 103. LIMA, Magalhães, Episodios da minha vida, Lisboa: Livraria Universal de Armando J. Tavares, s.d., pp. 48-51. Da Monarchia á Republica: história da implantação da Republica em Portugal, [Lisboa]: Empreza de Publicações Populares, s.d., p. 86.

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de transportes e o proprietário urbano! Do remanescente da sua fortuna – assim mesmo se referiu o testador aos bens que deixava – foi herdeira a viúva, D. Emília “delaide da Conceição Ferreira, de cujo matrimónio Jacinto Gonçalves não houvera ilhos 256. É algo rocambolesca a história do segundo casamento de D. Emília Adelaide. Manuel de Matos era um jovem sargento oriundo de Tomar que enviuvara de sua primeira mulher, D. Luísa da Conceição Lourinho, falecida quando o único ilho do casal, chamado Manuel como o pai, tinha apenas três anos 257. Ansiava este, por conseguinte, encontrar nova companheira que pudesse dispensar à criança o carinho maternal que lhe faltava. Descoberta a possível noiva, tratara Manuel de Matos de redigir uma eloquente carta expressando os seus sentimentos e intenções. Antes, porém, que o envelope com o nome da destinatária se cerrasse, certa perspicaz conselheira sugerira ao pretendente que, ao invés de se dirigir à sobrinha, se declarasse antes à tia, que era rica e viúva. Acedendo então à oportuna inspiração, Manuel de Matos manteve a carta e mudou o sobrescrito. Ora, seguramente para seu espanto, D. Emília Adelaide respondeu que sim, que casava. A cerimónia, ao que parece, celebrou-se no ano de 1923 na freguesia da Amadora, então pertencente ao concelho de Oeiras, contando a noiva 64 primaveras. E foi na Venda Nova que o novo casal se instalou, no número 14 da rua Elias Garcia, formando nas imediações a Vila Emília Adelaide, um bairro de casas para arrendamento, construído ao jeito da tradição imobiliária do falecido Jacinto Gonçalves. Manuel de Matos tratou, pois, de gerir e organizar o vasto património da mulher, a favor de quem inscreveu, no dia 12 de Fevereiro de 1924, na então 3.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, a maior parte das propriedades que ela 256

Torre do Tombo, Registo Geral de Testamentos, 4.º ”airro de Lisboa, XV-I-190, livro 291, ls. 15-22v. Para se conhecer o acervo patrimonial detido por Jacinto Gonçalves à data da sua morte, designadamente os imóveis que detinha em Alcântara, teria sido interessante consultar o processo de liquidação do respectivo imposto sucessório, existente à guarda do Serviço de Finanças de Lisboa 7. A invocação de um absurdo sigilo iscal, sustentado no dever de conidencialidade estipulado pelo artigo 64.º da Lei Geral Tributária – “os dirigentes, funcionários e agentes da autoridade tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento” –, impediu-me, todavia, de aceder a esse documento, respeitante a um homem que viveu entre 1853 e 1920 e que, inclusive, não teve descendência.

257

Manuel de Matos era natural da freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Tomar, ilho de Faustino de Matos. Cfr. “rquivo Municipal de Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, “dministração-Geral, Notariado, livro 210-“, ls. 70-73.

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herdara do primeiro marido em Alcântara. Nessa data, o velho palácio do Fiúza, situado na travessa do mesmo nome com os números 21 e 22, passou a exibir os números de polícia 37 e 39, e nele se andavam a fazer pequenas obras que deram origem a curioso caso, relatado por João Paulo Freire no Diário de Notí‑ cias de dia 8 dos referidos mês e ano: “Dois operários duma casa funerária da rua de Alcântara, que andavam ontem abrindo um cano na capéla do antigo palácio do Fiúza, em Alcântara, encontraram num carneiro cimentado e abobadado cinco esquelêtos, sobrepóstos, sendo quatro de adultos e um de criança. Comparecendo o sub-delegado de saúde, êste mandou que continuassem as escavações, parecendo que ainda ali existem mais pessôas enterradas. Alguém alvitrou imediatamente que os esquelêtos encontrados deviam pertencer a criaturas que ali tinham sido enterradas por ocasião da febre amarela. Esta versão deve ser fantasiosa, porquanto a capéla era privativa do palácio e não consta que ali se izessem enterramentos por essa época, visto que, então, êles se faziam no pequeno cemitério anexo à igreja da freguesia. Pela maneira como os esquelêtos foram encontrados e atendendo ao facto de as grossas argolas de ferro dos caixões se encontrarem completamente pulverizadas, é de crer que êsses enterramentos sejam de dáta muito mais antiga e se possam até ixar coévos da péste grande que assolou Lisbôa e fêz grande mortandade nas imediações do antigo rio de Alcântara após o desastre de Alcácer-Kivir e nos primeiros mêses do reinado do Cardial D. Henrique. Seja como fôr, as escavações continuam hoje e só depois disso as ossadas serão transportadas, segundo nos consta, para o cemitério da Ajuda”.

Não precisava o jornalista e autor da monograia de Alcântara de ter recuado tanto para tentar justiicar a presença daqueles restos de ossadas na antiga capela de Nossa Senhora do Pópulo. Seriam eles, com maior probabilidade, os vestígios dos ”arrunchos que, sensivelmente entre 1760 e 1830, ali se izeram sepultar. A 16 de Julho de 1931, D. Emília Adelaide Ferreira Gonçalves de Matos – assim mesmo se designou, embora reconhecendo que também usava Emília Adelaide Ferreira Gonçalves ou simplesmente Emília Adelaide Gonçalves – dirigiu-se ao cartório do notário António Joaquim Dórdio Féria Teotónio, em Lisboa, para redigir o seu testamento. Sem quaisquer rodeios ou tergiversações, limitou-se a declarar 258: “Que é casada com Manuel de Matos, não tem qualquer descendência nem ascendentes vivos; e podendo livremente dispor de todos os seus bens faz o seu 258

Torre do Tombo, Registos Notariais de Lisboa, 7.º Cartório, ofício A, cx. 283, livro 7 de testamentos, ls. 64v-65.

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testamento e disposição de última vontade pela maneira seguinte: Institui herdeiro universal de todos os seus bens, direitos e acções, seu referido marido Manuel de Matos, a quem nomeia seu testamenteiro”.

Deste modo, tendo a testadora falecido na Venda Nova a 17 de Novembro de 1933 no estado de casada, sob o regime de comunhão geral de bens, com Manuel de Matos, coube a este promover a competente declaração de sucessão na herança da falecida mulher, o que fez por escritura lavrada a 20 de Junho do ano seguinte no mesmo cartório do notário Féria Teotónio 259. Viúvo, Manuel de Matos continuou a residir no número 14 da rua Elias Garcia, no mencionado lugar, e foi apenas em 1940, a 28 de Maio, que tratou de proceder à inscrição no seu nome de vários dos imóveis que herdara em Alcântara. Nesta época, a velha quinta do Fiúza, agora dita do Jacinto, perdera já alguma da sua feição rural e aos prédios que Jacinto Gonçalves ediicara no limite poente, ao longo da calçada da Tapada, juntavam-se no interior da parte rústica mais cinco barracas e barracões, identiicados pelas letras particulares de “ a E , com entrada pelo mesmo antigo portão que então ostentava o número 58 da referida calçada. Nesse meio tempo, à roda de 1938, pretendera a Câmara Municipal de Lisboa apropriar-se da quinta para nela ediicar o bairro de casas económicas de “lcântara, ao abrigo do decreto-lei n.º 23052, de 23 de Setembro de 1933. Realizou-se a 3 de Junho do referido ano de 1938 o auto de avaliação da propriedade, que então tinha uma área superior a 20 mil metros quadrados, na presença de três peritos respectivamente indicados pelo 7.º Bairro Fiscal de Lisboa, pela autarquia e por Manuel de Matos 260. “ opinião, claro, foi divergente: o primeiro estimou um valor de 401.076$00; o segundo, de 259.945$00; e o terceiro apontou um total de 644.000$00, correspondendo 76.000$00 ao prédio sito na calçada da Tapada, 54-56 (o único dos edifícios desta artéria que se incluía na mesma descrição predial), 18.000$00 a um barracão no interior que servia de oicina de fundição e os 550 contos remanescentes à quinta propriamente dita, que era totalmente murada e na qual se compreendia um outro barracão destinado à recolha de viaturas e um telheiro para abrigo de diverso material; uma parte da propriedade, a nascente, coninava directamente com a rua do Príncipe (nesta época designada de 5 de Abril 261), para onde tinha uma frente com cerca 259

Ibidem, cx. 143, livro 70-C, ls. 28-30.

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Álvaro Boto Machado, João Paulo Nazareth de Oliveira e Raul Barbosa Ferreira Vidigal.

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Nome que recordava “apenas uma data aborrecida e triste, zaragateira e ensanguentada – as eleições que se izeram no reinado de D. Manuel, sendo Presidente do Ministério o sr. Ferreira

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de 12 metros. À falta de consenso dos avaliadores, o montante atribuído foi, nos termos legais, o da média entre os dois valores mais próximos, ou seja, o do Bairro Fiscal e o da Câmara Municipal, o que resultou em 330.510$50, verba que a autarquia tratou logo de depositar por conta da intentada expropriação. Manuel de Matos não se conformou com o preço, recorrendo da decisão que ixara aquela indemnização com fundamento no facto do primeiro perito se ter baseado apenas na lei iscal para atribuir o valor ao imóvel – para tanto não seria preciso arbitramento. Bastaria uma certidão da Repartição respectiva”, ironizou o seu advogado – e do segundo se ter limitado a deitar o olho ao terreno, avaliando-o por metro quadrado, “fazendo uma simples multiplicação, condimentada com duas breves apreciações que ninguém entende”! Invocou, pois, aquele proprietário o conceito de justa indemnização, segundo o qual se devia atender ao valor real e corrente do terreno a expropriar. Este – lembrou o advogado de Manuel de Matos – situava-se “a uma escassa centena de metros do electrico que conduz aos extremos ocidentais da cidade e do seu centro, muito perto das estações de Alcantara Terra e Mar, de duas escolas industriais, de escolas primária e municipal, situado no maior centro industrial de Lisbôa, possuindo agua canalisada e electricidade, e até nos seus altos se desfruta linda vista panoramica do Tejo e da Outra Banda. Nele se encontram grandes telheiros e barracões. E na sua frente para a Calçada da Tapada existe um predio, expropriado também, de valia superior a 75 contos, não só pelo seu valôr em si, como pela sua excelente localização. Tão grande e belo e bem situado é esse terreno que o seu proprietário pensava em fazer dele um parque igual aos melhores do estrangeiro”.

E sem que a Câmara tomasse posse da quinta enquanto o processo decorria, chegaram inalmente as partes a um entendimento, alcançado em audiência conciliatória realizada a 10 de Julho de 1943 no tribunal judicial da 1.ª vara da comarca de Lisboa. Fixou-se então o valor da indemnização a atribuir a Manuel de Matos pela expropriação da quinta do Jacinto em 644 mil escudos, procedendo a Câmara Municipal de Lisboa ao depósito do restante para completar o novo valor ixado, equivalente aliás ao que o perito indicado por aquele proprietário estabelecera cinco anos antes 262. Nos tempos subsequentes, a autarquia do Amaral, e que ali, na embocadura daquela rua, deram morte a dois homens, um no recanto dum prédio que entestava com o muro da igreja, e que foi demolido de Junho a Agôsto de 1910, e o outro junto ao prédio da esquina”. FREIRE (MÁRIO), op. cit., pp. 99-100. 262

Agradeço a Ana Luísa Seabra Gomes Domingos, chefe da Divisão de Cadastro Municipal da Câmara Municipal de Lisboa, a consulta que me facultou do processo do tombo n.º 962, respeitante à expropriação da quinta do Jacinto. Cfr. também a certidão da Secretaria-Geral dos Tribunais Judiciais de Lisboa, datada de 25 de Julho de 1990, referente aos autos de petição

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elaborou os projectos 263, a obra fez-se e no levantamento topográico de Lisboa realizado pelo Instituto Geográico e Cadastral em 1953, já o então recente bairro do Jacinto se encontra representado [Figura 17]. Nova e deinitivamente despojado da quinta que outrora lhe servira de amplo e prazenteiro logradouro, o velho palácio do Fiúza permaneceu nas mãos de Manuel de Matos. Mas nestes meados do século XX, a zona viveu ainda outras signiicativas mutações. A respeito dos melhoramentos a introduzir na cidade, há muito que se referia, sobre o vale de Alcântara, que “pela sua proximidade de Lisboa, sua extensão e suave inclinação é chamado a desempenhar um papel da mais alta importancia no movimento ordinario e accelerado, da capital com todo o paiz, logo que aquelles a quem incumbe a rigorosa obrigação de attender ao estado actual das cousas, se resolvam a olhar para elle com a devida attenção” 264. E assim foi que, para além do atravessamento da linha de ferro e com a completa cobertura do caneiro e ribeira de Alcântara, o vale se transformou num eixo viário de primordial importância, formado pela avenida de Ceuta. Finalmente, já na década de sessenta, com a construção dos acessos à ponte sobre o Tejo, sacriicaram-se aquelas ruelas íngremes e sinuosas periladas de velho casario – a travessa do Fiúza, a rua do Príncipe, parte da calçada da Tapada – que viram ser demolidos vários dos seus edifícios, sobre os quais, sobranceiro e imponente, até então espreitava o majestoso casarão. Quinta do doutor Paulo de Carvalho, do desembargador Fiúza, dos Barrunchos, do Jacinto, hoje ali está o que dela subsiste 265: (…) um ainda robusto edifício de dois corpos unidos em ângulo e um pátio entre os braços do ângulo (…). O que ainda acusa o seu carácter seiscentista são os fortes cunhais de cantaria que lhe guarnecem os cantos; e o andar nobre, o qual conserva pelo exterior a sua fenestração regularmente distribuída, constituída por janelas de sacada iguais – excepto a que corresponde à entrada principal, cuja varanda apresenta maior largura – e defendidas por gradeamentos de varões de ferro com anéis salientes a meio”. de recurso entre Manuel de Matos e a Câmara Municipal de Lisboa, que correram termos pela 4.ª secção da extinta 1.ª vara judicial da comarca de Lisboa, documento que se encontra arquivado em anexo à descrição do prédio n.º 285 da freguesia de Alcântara, da antiga 6.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa. 263

Veja-se, no sítio do Arquivo Municipal de Lisboa, os documentos com os códigos de referência PT/“MLS”/CMLS”/URO”-PU/10/101, 11/040 e 11/140.

264

PAIS, Miguel Carlos Correia, Valle de Alcantara: sua importancia no movimento ordinario e acce‑ lerado de Lisboa, Lisboa: Typographia Universal, 1881, p. 3.

265

Monumentos…, tomo 3, p. 92.

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E à sua volta, na expressão de Norberto de Araújo, os restos de uma Alcântara bairrista… 266 “Dizer Alcântara na toponímia lisboeta é, só por si, compor um quadro de movimento e de febril agitação bairrista. Alcântara foi um lugar, um sítio, é um bairro, uma zona com individualidade e consciência. Tudo gira em “lcântara: fábricas, oicinas, linhas, ruas – vidas. O que em “lfama é estático é, em “lcântara – dinâmico. Êste bairro tem azougue. O seu pitoresco é de cosmograma. Não existe neste rincão da Cidade nada de contemplativo. Apenas nas Necessidades, com seu jardim, com seu obelisco, com o seu palácio e a sua tapada – mora o repouso. Persiste ali um pedaço de beleza e gracilidade de miradouro. É a mancha aristocrática e requintada do bairro. “lcântara urbanizada não leva duzentos anos: de arrabalde fez-se cidade em ins de setecentos. Mas é lisboeta de casco e sumo. Já lá não está a ponte de Alcântara com S. João Nepomuceno. Mas o Prior do Crato resiste no letreiro da artéria principal do bairro. Do tempo velho icaram e falam deliciosas legendas: ”aluarte, Trabuqueta, o “rco, as Fontainhas, a Triste-Feia; a Horta Navia – saudade de Alcântara quinhentista, o Fiúza – reminiscência de Alcântara palaciana, o Sacramento – evocação de Alcântara conventual. Foram-se os marinheiros – rude golpe no coração do bairro! –; icou a Praça da “rmada com seu Neptuno de tridente no Chafariz. O risonho vale de Alcântara vai-se sumindo, mas nas lombas do Alvito e da Cruz das Oliveiras demora-se a expressão popular campesina que icou do rústico antigo. (…) Pequeno mundo alfacinha, vizinho do Calvário, da Pampulha, da “venida da Índia – desentranha-se em vida. É o pregão cantante do trabalho. Contido entre a Serra e Tejo, possui a índole atávica de um poeta, a alma rude, nostálgica de um mareante”.

266

ARAÚJO, Norberto de, Legendas de Lisboa, s.l.: Edição do Secretariado da Propaganda Nacional, 1943, pp. 142-143.

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5 de Dezembro de 2014 Guardou Lisboa a travessa do Fiúza, na sua toponímia, em duas singelas placas que diicilmente se poderá acreditar que dão nome à mesma artéria. Uma em baixo, à entrada da rua de “lcântara, identiica uma curta iada de antigos prédios, desamparados e já sem renque que leve a algum lado [Figura 18]. “ outra, lá em cima, espreita um cochicho de rua em cujo topo demora o imponente edifício. Tão perto e ao mesmo tempo tão afastadas uma da outra! Pelo meio, roubaram-lhe a tortuosa ladeira acompanhada de descompassado casario que fazia daquele pedaço de cidade uma genuína Lisboa. Mas em contrapartida ganhou espaço e vista o antigo casão, fazendo talvez lembrar os seus tempos primitivos em que a colina fronteira seria parca em construções. Chamaram-lhe inicialmente quinta, por vezes casas nobres. Depois palácio. Talvez esta designação até esteja mais em consonância com o facto de nele terem permanecido – e quiçá morrido! – o príncipe D. Teodósio e o rei D. Pedro II. E de quinta, como vimos, já nada resta. É hoje urbano o palácio do Fiúza [Figura 19]. Que insondáveis mistérios justiicam que seja esta a sua designação? Mais de sessenta anos esteve nas mãos dos Carvalhos e talvez até nele tenha nascido o incontornável Sebastião José de Carvalho e Melo. Mas foi realmente há muito tempo. Então e os Barrunchos, que nele permaneceram cerca de século e meio, até mil novecentos e pouco, dele fazendo morgado, baptizando-se, casando-se e sepultando-se na sua ermida da Senhora do Pópulo? Que incompreensíveis razões terão levado ao esquecimento desse inusitado sobrenome? Porque subsistiu antes o do desembargador José Fiúza Correia, que pelo meio apenas teve o edifício durante umas escassas três décadas? É por vezes assim, sem respostas, a história das cidades. O certo é que, das poucas vezes que sobre ele se escreveu, quase sempre foi palácio do Fiúza a expressão invocada. Certamente porque Fiúza eram (e continuam a ser) o pátio e a travessa que lhe dão serventia. Castilho assinalou-lhe pouco mais do que o acolhimento dado a D. Pedro II, mas em 1929, João Paulo Freire, o autor de Alcântara. Apontamentos para uma monograia, dedicou-lhe um capítulo a que expressivamente deu o título De habitação de Reis a «ninho» de 117

conspiradores, sintetizando as heterogéneas vivências de que o edifício fora palco 267. Mas fez o jornalista e historiador, logo à cabeça, uma declaração de princípios: Se as minhas horas de ócio me déssem pâno para mangas, ou o tempo me dispensasse ensanchas com que eu alargasse suicientemente as indispensáveis escoldrinhações com que vou alinhavando estas crónicas, quere-me parecer que êste velho Palácio do Fiúza me forneceria, êle só, matéria interessante para um grôsso volume. Infelizmente não posso ir além das escassas linhas com que, arrumando ligeiros apontamentos, me limitarei tão sòmente a registar-lhe a existência, até que outros lhe façam a história”. E, com efeito, João Paulo Freire recordou o que sobre o palácio dissera Castilho, reproduziu o que Abel Botelho escrevera no seu romance, recuperou as memórias de Magalhães Lima a respeito do edifício e narrou o episódio da descoberta das ossadas na sua antiga capela em 1924, trazendo igualmente à luz do dia a sua antiga invocação. E à laia de conclusão, em largas passadas, fez ainda uma correcta súmula dos proprietários que o velho palácio tivera, assinalando a presença nele, em Janeiro de 1698, dos pais do futuro marquês de Pombal. Confessou, pois, este autor não saber mais nada, reconhecendo que “isso mesmo que aí ica é, como vêem, forrageado em seára alheia e estimulando a que outros se abalancem a pôr de pé a história romântica, pitorêsca e revolucionária do velho Palácio do Pombal e do Fiúza”. Para lá de algumas outras curtas e dispersas referências feitas entretanto, o palácio do Fiúza foi objecto da atenção de Francisco Santana precisamente a pretexto do nascimento de Sebastião José de Carvalho e Melo poder nele ter ocorrido 268. E sobre a imponente construção publicou-se também uma resumida nota no inventário intitulado Monumentos e edifícios notáveis do distrito de Lisboa 269. Por im, no indispensável Dicionário da História de Lisboa, fez o referido Francisco Santana uma bem estruturada súmula do que antes se publicara a respeito do palácio, recuperando ainda aquela memória setecentista de Manuel de Almeida que alvitrou ter sido dentro das suas paredes que morreu o rei D. Pedro II.

267

CASTILHO, op. cit., volume 3, pp. 94-95. FREIRE (MÁRIO), op. cit., pp. 94-100.

268

S“NT“N“, “ Lisboa… , loc. cit., pp. 3-20. IDEM, Onde nasceu… , in loc. cit., pp. 9-17.

269

Monumentos…, tomo 3, p. 92.

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Destas salpicadas pinceladas procurou agora fazer-se a tela, por justa e feliz iniciativa do actual proprietário, Luís Aguiar de Matos, neto de Manuel de Matos. “inda assim, é trabalho imperfeito porque aspectos houve que icaram por aprofundar, livros por ler, fontes por consultar, arquivos por visitar… Mas em história é sempre assim, nada está acabado e há sempre lugar a mais um retoque que nos ajude a ver, com acrescentada nitidez, o objecto retratado. Termino com um palavra de agradecimento a José de Monterroso Teixeira, não só pela honra que me concedeu ao aceitar escrever o prefácio deste trabalho, mas também porque o fez num voluntarioso esforço apertado por intensas obrigações proissionais e académicas.

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Sebastião de Carvalho = D. Maria de Braga Deputado da Mesa da Consciência, desembargador do Paço

1632

Sebastião de Carvalho

D. Maria Pereira de Sande = Paulo de Carvalho ?-1684

c. 1600-1663 Provedor da Alfândega de Lisboa, desembargador do Paço, do Conselho de Sua Majestade

Sebastião de Carvalho e Melo c. 1618-1719 Fidalgo cavaleiro da Casa Real, cav. da Ordem de Cristo, capitão de infantaria e de cavalos 1698

Manuel de Carvalho e Ataíde = D. Teresa Luísa de Mendonça

Sebastião José de Carvalho e Melo 1699-1782 1.º conde de Oeiras, 1.º marquês de Pombal, secretário de Estado, etc.

Quadro 1: Genealogia resumida da família Carvalho, com destaque das personagens e datas particularmente relacionadas com a quinta de Alcântara.

Francisco Fernandes Fiúza Sacerdote

João Fiúza

Manuel Fiúza = Catarina Correia

Médico, Comissário ou familiar do Santo Ofício tesoureiro das Bulas da Santa Cruzada

José da Silva = Isabel da Fonseca

Lapidário de diamantes, avaliador na Casa da Índia

c. 1643

Francisco Fiúza Correia = D. Francisca da Silva ?-c. 1667 Desembargador da Casa da Suplicação

1677

Luís Fiúza Correia c. 1647-?

1643-
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