O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

June 23, 2017 | Autor: C. Salgado Gontijo | Categoria: Contemporary French Philosophy, Vladimir Jankélévitch, Philosophy of Music
Share Embed


Descrição do Produto

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch 1 CLOVIS SALGADO GONTIJO OLIVEIRA

Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Email: [email protected]

“O je-ne-sais-quoi, o indizível... Deve ser isso o que chamam de Encanto (Charme).”

1) Introdução

B

(JANKÉLÉVITCH, 1974, p. 272)

aseando-se na metafísica da música schopenhaueriana, Richard Wagner (1813-1883), no ensaio comemorativo aos cem anos de nascimento de Beethoven (1770-1827), compreende a beleza como categoria estética particularmente aplicável ao âmbito das artes plásticas. Segundo o compositor de Bayreuth, na língua alemã, “o conceito de beleza [Schönheit] (...), segundo a raiz da palavra, relaciona-se claramente com a aparência (como objeto) [Schein] e com a contemplação (como sujeito) [Schauen]” (WAGNER, 2010, p. 22). Se nos recordamos que, de acordo com Schopenhauer, a música não se constrói dentro do reino das aparências, graças à sua constitutiva separação do mundo fenomênico, a “transposição” da categoria de beleza para todas as artes, incluindo a arte sonora, seria bastante imprecisa.

Esta dimensão antes plástica que musical da beleza, observada por Wagner, é desenvolvida por Friedrich Nietzsche (1844-1900) em O nascimento da tragédia (1872). Logo após afirmar a valorização schopenhaueriana da música como o “mais importante [reconhecimento] de toda a estética”, o jovem filólogo destaca a continuidade de Wagner às ideias apresentadas em O mundo como vontade e representação, 1

Comunicação apresentada no IV Encontro Nacional de Pesquisadores em Filosofia da Música: “Fronteiras da Música: Filosofia, Estética, História e Política”, UNESP, outubro de 2015.

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch quando no Beethoven estabelece que a música deve ser medida segundo princípios estéticos completamente diferentes dos das artes figurativas e, desde logo, não segundo a categoria da beleza: ainda que uma estética errônea, pela mão de uma arte extraviada e degenerada, tenha se habituado a exigir da música, a partir daquele conceito de beleza vigente no mundo figurativo, um efeito parecido ao das obras da arte figurativa, a saber, a excitação do agrado pelas belas formas (NIETZSCHE, 1992, p. 98).

O questionamento da aplicabilidade da categoria de beleza à música persiste no século XX, até mesmo em um autor que, apesar de também exaltar a experiência musical, se afasta consideravelmente da perspectiva metafísica de Schopenhauer e da grandiloquência exaltada pela poética wagneriana. Tratase do filósofo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985), que, nas suas reflexões sobre a música, chega a nomear e examinar a “categoria” que lhe parece mais consentânea à arte sonora. E qual seria ela? Responde o filósofo, em La musique et l’ineffable (1961), que o encanto (charme) é o poder específico da música. Se a Beleza consiste na plenitude intemporal, no cumprimento e no arredondamento da forma, na perfeição estática e na excelência morfológica, o encanto possui algo de nostálgico e precário, um não-sei-quê (je-ne-sais-quoi) de insuficiente e inalcançável que se exalta sob o efeito do tempo (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 121-122).

Como verificamos desde esta primeira citação, o charme, que aqui traduzimos por encanto, é intrinsicamente inapreensível, indefinível, impalpável, atributos partilhados, de acordo com Jankélévitch, pela manifestação artística com a qual mais se conecta. Contudo, isto não nos impede de reconhecer algumas particularidades do conceito em foco, capazes de garantir tal conexão. Para tanto, traçaremos, antes de nos dirigir à obra de Jankélévitch, uma pequena genealogia do encanto, que nos permitirá visitar alguns dos autores que influenciarão a concepção jankélévitchiana do charme.

1

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

2)

2

Uma genealogia do charme

Em Charis: essai sur Jankélévitch, Enrica LiscianiPetrini esclarece que o conceito jankélévitchiano de encanto carrega consigo dois termos de origens remotas e distintas (cf. LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 24). Por um lado, remete ao termo latino carmen, do qual, segundo a etimologia mais frequente, o charme francês descenderia. Carmen refere-se a “tudo que é escrito em verso, fórmula ritmada, fórmula mágica, fórmula solene (religiosa ou jurídica)”, assim como, de modo mais específico, a uma composição poética, “especialmente poesia lírica ou épica” (FARIA, 1956, p. 153). Por outro lado, ao longo da sua obra, Jankélévitch também associa o encanto a um conceito explorado pelo neoplatonismo, a graça (kháris) plotiniana. É a este segundo termo que dedicaremos a presente genealogia, reservando para a segunda parte deste trabalho uma breve menção à fórmula carmen, que, provavelmente devido ao seu teor de irracionalidade, tenha sido desconsiderada e, até mesmo, evitada pela tradição estética. Raymond Bayer, na sua História da Estética, detecta a presença da graça já na Grécia pré-clássica, especialmente nos poetas líricos eróticos que, quando entoam os seus encômios às figuras femininas, tendem a privilegiar mais a graça que a beleza. Segundo Bayer, “a graça, que implica o movimento e o sentimento interior, não está necessariamente ligada à beleza e sempre possui algum matiz espiritual. É, portanto, a primeira interiorização e espiritualização da beleza” (BAYER, 2012, p. 26).

Estas características essenciais da graça permanecem em Plotino, desenvolvendo-se em sintonia com a sua proposta ontológica. Contrariando tendência recorrente à estética clássica, de influência pitagórica, o filósofo neoplatônico observa que o seguimento de determinados cânones e proporções, assim como do ideal da taxis kai symmetria (“ordem e simetria”), nas obras artísticas e nas formas naturais, é insuficiente para nos atrair e cativar. Após observar que a justificativa da beleza pela simetria incorreria no absurdo de excluir o potencial estético das formas simples, das quais não

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

participa o ajuste harmônico entre partes 2, Plotino questiona: “E se é notório que quando um rosto, cujas proporções permanecem idênticas, mostra-se às vezes belo, às vezes feio, podemos ter alguma dúvida de que a beleza seja algo mais que a simetria dessas proporções, de que a causa da beleza do rosto bem proporcionado seja outra?” (PLOTINO, 2000, p. 20-21, Eneada I, 6, 1).

Cotejando esta a outras passagens das Eneadas, poderíamos afirmar que a beleza, para ser efetiva, precisa contar com a participação de outro componente estético. Caso contrário, como Jankélévitch tantas vezes recorda 3, tornar-seia uma “beleza preguiçosa”, argon kallos (cf. Eneada VI, 7, 22, 10-15). Este componente é justamente a graça, que, como nos indica a passagem supracitada, se distingue da beleza formal, por não residir em fatores fixos e assinaláveis, o que lhe concede certo ar de mistério.

Enquanto localizamos de modo preciso os critérios e as razões – tanto como números quanto como explicações – da beleza, a graça não se detecta, nem se concentra em algo determinado. Vai e volta, como o rosto, ora trivial, ora atraente ou, seguindo a sugestiva linguagem coloquial, ora sem graça, ora cheio de graça... Fugidia, a kháris também não é localizável por ser manifestação difusa. É como a luz, elemento em certa medida impalpável, que, além de nem sempre estar presente realçando as cores, descortinando as formas, permeia e recobre todo um objeto e toda uma atmosfera. Recorrendo às palavras do próprio Plotino, o encanto, que “se encontra mais na luz que brilha sobre a simetria que na simetria mesma” (PLOTINO, 1999, p. 145, Eneada VI 7, 22, 24-25), é “graça cintilante envolvendo a beleza” (idem, Eneada VI 7, 22, 23-24). A partir destas considerações, constatamos a inegável conotação espiritual da graça. Observa Jankélévitch que, pelo

É interessante observar, neste contexto de um encontro em Filosofia da Música, que um dos exemplos de belezas simples dado por Plotino é o som isolado, que, como hoje sabemos, se constitui de uma composição de harmônicos. 2

3

Como, por exemplo, em JANKÉLÉVITCH, 1980b, p. 113.

3

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

seu caráter não localizável, o encanto plotiniano se assemelha à “alma que exala, como um perfume, da presença carnal em geral e que, no entanto, se evade de toda a topografia” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 70). Nesta perspectiva, a graça se identifica ao sopro da vida, o que justifica a seguinte conclusão de Plotino: “o esplendor da beleza está sobre um rosto vivo que resplandece no mais alto grau, enquanto sobre um rosto morto não se vê mais que o vestígio, mesmo se esse rosto não está ainda destruído na sua carne e simetria” (PLOTINO, 1999, p. 145, Eneada VI 7, 22, 25-30).

4

A vitalidade exigida à graça conecta este imprescindível componente estético a um aspecto apontado por Bayer no início desta genealogia. Ausente do cadáver ou das formas simétricas de uma beleza estática, a graça costuma incluir a participação do movimento. Em Plotin et la simplicité du regard, Pierre Hadot, referindo-se ao mestre de Henri Bergson, Félix Ravaisson, declara :

A graça, segundo ele [F. Ravaisson], é “eurritmia”, isto é, “movimento que faz bem”. Nós a reconhecemos nos movimentos que exprimem o abandono, a condescendência, a descontração. Os pintores procuram apreendê-la nas inclinações da cabeça, no sorriso feminino. Mas também se pode pressenti-la nos movimentos fundamentais da natureza viva que são a pulsação e a ondulação: “Observe”, diz Leonardo da Vinci, “o serpenteio de todas as coisas”, isto quer dizer, observe em todas as coisas, se você quiser conhecê-las e representá-las de maneira adequada, a espécie de graça que lhe é própria (HADOT, 1963, p. 76-77).

Relacionada ao motor da vida, às disposições interiores, ao mistério que recobre e anima, mas não alcançamos tanger ou dissecar, a graça plotiniana também manifesta a sua dimensão espiritual no que concerne à sua origem. Explica Plotino que a beleza será inoperante se não receber a irradiação, o “calor” ou o “eflúvio” proveniente do Bem, fundamento da realidade. Ao contrário, quando recebe a sua luz, “retoma o seu vigor, desperta, torna-se

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

verdadeiramente alada” (PLOTINO, 1999, p. 144, Eneada VI 7, 22, 15-18), comovendo-nos de tal modo que nos sentimos impulsionados a percorrer um caminho ascendente rumo à fonte do ser.

A tematização de um encanto imensurável e indemarcável é retomada na Modernidade, especialmente na França dos séculos XVII e XVIII, onde se entrelaça com novos termos, dentre os quais se destacam o charme e o je-ne-saisquoi. De acordo com o jesuíta Dominique Bouhours (16281702), que dedica um dos capítulos de Les entretiens d’Ariste et d’Eugène ao je ne sçay quoy (1671), este conceito diz respeito a um atrativo (agrément) que anima a beleza e as outras perfeições naturais, que corrige a feiura e outros defeitos naturais: é um encanto (charme) e um ar (air) que se mistura a todas as ações e a todas as palavras; que penetra o caminhar, o riso, o tom de voz e até os menores gestos da pessoa que agrada (BOUHOURS, 1671, p. 261).

Como em Plotino, o atrativo reconhecível, mas de causas irreconhecíveis, responsável tanto pela comoção estética quanto pelas afinidades afetivas, aparece associado ao movimento, às inflexões do espírito e a uma presença que, como o ar, se revela simultaneamente totalizante e impalpável. Estes dois predicados favorecem a permanência da analogia plotiniana anteriormente citada, posto que o desconhecido encanto “assemelha-se à luz que embeleza toda a natureza e que se faz visível a todos, sem que saibamos o que seja” (ibidem, p. 262). Portanto, percebemos que, embora o religioso francês afirme não ser o je-ne-sais-quoi “propriamente nem a beleza, nem a bela fisionomia, nem a graça favorável (bonne grâce), nem a predisposição ao humor, nem o espírito brilhante” (ibidem, p. 260), nele estão contidas as ressonâncias da graça plotiniana, confirmando a absorção da kháris pela acepção moderna do charme.

Por fim, devemos destacar que, no texto de Bouhours, o componente estético indefinível adquire algumas características mantidas pelo inefável, pelo je-ne-sais-quoi e

5

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

6

pelo charme jankélévitchiano. Em contraste com outro conceito de natureza estética igualmente reelaborado nos séculos XVII e XVIII, a saber, o sublime, no qual também se encontra implícito o reconhecimento dos nossos limites verbais e cognitivos, o jene-sais-quoi não evoca o grandioso, o excesso de força ou de potência. Poderíamos dizer que, o charme e os seus correlatos, embora imensuráveis, não são incomensuráveis. Segundo Bouhours, o je-ne-sais-quoi é “algo tão delicado e imperceptível, que escapa à inteligência mais penetrante e sutil” (ibidem, p. 262). E, em outro momento, sugere explicitamente a maior adequação da categoria do encanto às obras que cultivam a discrição e o velamento, ao contrapor as “grandes belezas nos livros de Balzac” aos textos de Voiture, que “possuem encantos (charmes) secretos, estas graças finas e escondidas sobre as quais falamos e que agradam infinitamente mais” (ibidem, p. 273-274). O jesuíta parece antecipar, assim, outro conceito fundamental do pensamento jankélévitchiano: o presque-rien. E, no contexto dos Entretiens, o quase-nada se manifesta não só no porte delicado, mas também na brevidade temporal: “pois enfim, de todos os aspectos, aquele que vai mais depressa é o que fere o coração, e o mais curto de todos os momentos, se assim puder dizer, é aquele no qual o ‘não-sei-quê’ exerce o seu efeito” (idem, p. 264).

Quase um século após Bouhours, Montesquieu (16891755) também examina especificamente o je-ne-sais-quoi na sua última obra, o Ensaio sobre o gosto (1757). No início do texto, o autor enumera, dentre os diferentes “objetos do gosto”, “o belo, o bom, o agradável, o ingênuo (naïf), o terno, o gracioso, o je-ne-sais-quoi, o nobre, o grande, o sublime, o majestoso”. (MONTESQUIEU, 1964, p. 845). Embora separe, neste momento, o je-ne-sais-quoi do gracioso, percebemos que ambos se conectam na seção dirigida ao primeiro, compreendido não só como “uma graça natural que não se pode definir”, mas também como “um encanto (charme) invisível”. Em continuidade com aspectos verificados na kháris plotiniana e no je-ne-sais-quoi de Bouhours, em Montesquieu, “a graça encontra-se menos nos traços do rosto que nas maneiras”, liga-se ao movimento e à leveza, o que explica a sua

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

particular manifestação no domínio da dança. Como o seu antecessor francês, o filósofo iluminista também associa o encanto à simplicidade, ao estabelecer a seguinte contraposição: “Os grandes conjuntos de joias raramente possuem graça, enquanto, com frequência, o traje das pastoras é gracioso. Admiramos a magnificência dos bordados de Paul Veronèse, mas somos tocados pela simplicidade de Rafael e pela pureza de Correggio” (ibidem, p. 849). Assim, o je-ne-saisquoi vem acompanhado de uma qualidade própria, de certa ingenuidade que contrasta com a gravidade do majestoso. E o ingênuo inclui o espontâneo: os movimentos graciosos, que costumam trazer consigo algum grau de surpresa, não podem ser premeditados e calculados, nem tampouco frutos de um esforço. A partir deste ponto, identificamos especial afinidade entre Montesquieu e a reflexão estética e moral jankélévitchiana, na medida em que o valorizado je-ne-sais-quoi possui como pré-requisito uma qualidade impossível de se exercitar.

A menção ao elemento de surpresa leva-nos a uma última consideração referente ao Ensaio sobre o gosto, fundamental para a sequência deste estudo. Aquilo que nos surpreende é, com frequência, o oculto que vem à tona ou uma novidade que se manifesta. É assim que “a graça se encontra, de costume, mais no espírito que no rosto: pois um belo rosto aparece de início e quase nada esconde; mas o espírito só se mostra pouco a pouco, quando quer e quanto quer” (idem). Montesquieu reforça, portanto, que o encanto não se aplica aos traços fixos, às formas congeladas. Esta categoria intangível, que, ademais, se identifica estreitamente ao gênero feminino, no qual se veem reforçados o mistério, a discrição e o pudor, só se efetiva sob a ação do tempo, que renova as “maneiras”.

3)

O charme musical em V. Jankélévitch

Examinemos agora de que modo esta genealogia repercute e se desenvolve na Filosofia da Música elaborada por Jankélévitch. Antes disso, faz-se necessário ressaltar que, na obra do filósofo francês contemporâneo, a referência ao encanto ultrapassa em muito o âmbito musical. “Marca de

7

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

fábrica” do pensamento jankélévitchiano (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 163), juntamente com o je-ne-sais-quoi e o presquerien, o charme possui conotação ontológica.

8

A ontologia proposta pelo filósofo põe em xeque uma concepção que se baseia num princípio previamente estabelecido, estável e imutável, independente da existência cotidiana e, por conseguinte, de igual modo independente da ação temporal. Segundo Jankélévitch, influenciado pelo mestre Henri Bergson, a duração, intrínseca à experiência humana, deveria estar contida no que se concebe como o elemento essencial da realidade. Assimilar ontologicamente o tempo, não mais compreendido dentro de uma “interpretação progressista-linear”, mas “como a eflorescência imprevisível de eventos não pré-determinados, ‘rapsódica’” (ibidem, p. 147), significa acolher o inapreensível, ter como horizonte um fundamento que sempre se desloca e nos escapa. Neste sentido, considerando as prerrogativas da ontologia platônica, o Ser jankélévitchiano é uma espécie de não-ser ou, a partir de uma apropriação da terminologia de Jacob Boehme, é fundamento sem fundo (Ungrund), insondável não só por não se fundar em nenhuma determinação fora dele (JANKÉLÉVITCH, 1986, p. 102), mas também por não se encontrar em repouso, por não subsistir e não possuir ponto fixo de localização.

No entanto, é importante observar que, nesta concepção, não repousa absolutamente uma perspectiva niilista. A ontologia do não-ser (meontologia) jankélévitchiana não conduz ao nada, mas sim a um quase-nada (presque-rien) ou, até mesmo, a um Sobrenada (Übernichts) 4, pois do fluxo impalpável do real, “movimento contínuo, produtor de ‘maneiras’ e de ‘modos’” (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 44), provém uma riqueza inesgotável, inefável e ainda cativante. O “Ser” jankélévitchiano assume, portanto, diversas características constitutivas ao encanto: não se encaixa em definições precisas nem se situa em coordenadas geográficas bem delimitadas, incorpora o tempo e o movimento (e, assim, é

Este termo, utilizado por Angelus Silesius em O peregrino querubínico (Cf. livro I, aforismo 111), é citado por Jankélévitch em La mort (1966, p. 61) e em Philosophie première (1986, p. 182).

4

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

menos um “Est” que um “il y a” 5), produz acontecimentos efetivos e eficazes (cf. JANKÉLÉVITCH, 1980b, p. 113), opera um encanto que, como a magia (carmen) destituída de substância, se forma, se transforma e nos transforma no próprio momento em que é exercido ou pronunciado. 6 No próprio momento, vale completar, em que é cantado ou tocado...

Isto porque, para o discípulo de Bergson, o encanto se expressa, sobretudo, musicalmente. E, assim, a arte sonora, do mesmo modo que a categoria analisada, revela-se como “lugar” privilegiado para uma reflexão que excede a esfera estética ou musicológica. Como sustenta a estudiosa italiana LiscianiPetrini, o filósofo identifica na música “todos os traços essenciais da sua meontologia” (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 142), dentre os quais se destaca o fundamento encantador (charmant) da realidade. Segundo a estudiosa italiana,

a música é o maior reflexo deste fluxo insubstancial que já é, desde sempre, o movimento vital do próprio real: pivô (...) do pensamento e do discurso de Jankélévitch. Neste sentido, ela não possui nenhuma Substância interna ou ‘profunda’ que deveria trazer à superfície e revelar. A música é exatamente como essa ‘efetividade’ epidérmica e superficial, que é a própria vida das coisas: nada além de movimento diferenciando em si por si. E como tal – como virtualidade insubstancial – é produtora de todas essas ‘formas’ (musicais) que, longe de ‘exprimirem’, portanto, uma Substância subjacente, são as suas ‘atualizações’ imprevisíveis e ‘gratuitas’. Eis porque a música, de acordo com Jankélévitch, é propriamente charme: ‘circulação de graça’ que encanta e opera a feitura dos cantos – mas que, justamente, não se pode nem situar nem apreender, como todo o verdadeiro encanto ou sortilégio. Numa palavra: ela Cf. JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 68. No capítulo de Fauré et l’inexprimable dedicado à presença do encanto na obra do compositor francês (“Du charme”), Jankélévitch sintetiza este modo particular pelo qual o encanto opera: “Carmen é essencialmente uma operação, como a factura dos mágicos: não é nada, mas faz” (JANKÉLÉVITCH, 1974, p. 347).

5 6

9

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

não possui fundamento – é totalmente gratuita. (LISCIANIPETRINI, 2013, 149)

10

Esta passagem fornece alguns dos principais pontos que justificam o elo entre a música e o encanto. Em primeiro lugar, segundo Jankélévitch, a arte sonora é “virtualidade insubstancial”. Como o “fundamento sem fundo”, uma composição musical não se apoia em algo externo, ou seja, não traduz um sentido preexistente, não reproduz um modelo suprassensível (cf. JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 37). Uma obra se forma no próprio fazer do compositor (cf. IDEM, p. 38-41) e se realiza no próprio fazer do intérprete. Assim, à semelhança da graça, não se localiza, na sua totalidade, nem na mente criadora, nem na “mão que toca um violão”, nem em qualquer fonte sonora (cf. ibidem, p. 115). É, como carmen, “fazer sem ser” (JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 43). Cabe aqui frisar que tal insubstancialidade e independência do charme diferem da graça plotiniana. Apesar de também “circular” pelo objeto e, assim, possuir um caráter “epidérmico”, esta última, como vimos, é “o ‘eflúvio’ que vem do Bem” (PLOTINO, 1999, p. 144, Eneada VI 7, 22, 8), ou seja, possui procedência transcendente.

Em segundo lugar, como expõe Lisciani-Petrini, o caráter insubstancial da música, que o entrelaça ao encanto, vincula-se, em Jankélévitch, à sua relação com o fluxo da temporalidade. Retomando a primeira citação do filósofo francês apresentada na introdução deste trabalho, a música depende intrinsecamente do tempo, que, à semelhança do que ocorre num “tema com variações”, modifica sem cessar a matéria sonora, impedindo que ela se “modele” num “objeto plástico” arredondado e estático (cf. JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 118-119; 1980a, p. 30), perceptível numa única “tomada” e, assim, apreciado na sua simetria. Inscrito no “fluxo insubstancial”, o encanto do melos se afasta da categoria da beleza e se aproxima da graça, cintilação nem sempre presente (Plotino), atrativo que ora se esconde, ora se revela (Montesquieu). Poderíamos completar que não é apenas devido à sua radical inscrição no tempo, fator de intensificação do seu

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

caráter insubstancial, que a música nos oferece algo distinto de uma “beleza de exposição” (JANKÉLÉVITCH, 1986, p. 172). Como explica o próprio filósofo, contrapondo a apreciação musical a uma percepção “sinóptica” (cf. JANKÉLÉVITCH, 1978, p. 201; 1988, p. 242), “o universo musical não é algo que se exponha diante do espírito ou se proponha ao espírito: a música, por mais objetiva que pretenda ser, habita a nossa intimidade. Vivemos a música como vivemos o tempo, numa experiência fruitiva e numa participação ôntica de todo o nosso ser” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 120). Talvez pela própria dinâmica da percepção auditiva e pela natureza algo imaterial da “matéria” sonora que, permeável, nos invade, a relação distanciada entre sujeito e objeto, implícita no conceito de exposição, deixe de ser aplicável à música. E esta “invasão”, esta “inundação”, que se dirige “não à parte lógica e reta do espírito, mas à existência psicossomática como um todo” (ibidem, p. 8), reforça a proximidade entre a música e o encanto. Este, aparentado com a magia, não nos convence, mas nos persuade, “nos invade atraindo-nos a si, encantando-nos” (LISCIANIPETRINI, 1985, p. XLIII), cativando-nos, em certa medida, como Carmen, pássaro livre que aprisiona Don José por meio da sua seguidilha sedutora.

A menção à consagrada personagem de Bizet permitenos registrar duas características fundamentais da Filosofia da Música jankélévitchiana. Em primeiro lugar, ao contrário do que ocorre na ópera em questão, o charme não poderia se personificar na obra do filósofo francês, para quem esse componente mais que estético é “como o sorriso ou o encanto, cosa mentale: não sabemos em que se sustenta, nem em que consiste, nem mesmo se consiste em algo, nem onde o situar. Não está nem no sujeito, nem no objeto, mas, como um influxo, passa de um ao outro” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 131). Deste modo, retomando aqui a dicotomia sujeito-objeto, o charme se oferece como via para se superar tanto uma estética subjetiva quanto outra objetiva, posições tradicionalmente excludentes nas reflexões ocidentais sobre a arte e o belo em sentido amplo.

Em segundo lugar, é importante ressaltar que, embora resguarde algo da magia, não só na sua origem etimológica, mas no seu modo de operação e nos seus efeitos sem causas

11

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

12

substanciais, o charme, quando aplicado à música, afasta-se do regime da irracionalidade “que subjuga, desestabiliza e chega a inquietar a razão” (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 163). De acordo com a concepção do filósofo, em continuidade com Henri Bremond (1865-1933), “o Encanto (Charme) é magia no sentido figurado, operação mística e não mágica” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 155). Tal distinção não se justifica somente pelo fato de a música e também a poesia não propiciarem uma transformação palpável e duradoura, constituindo-se, assim, como “uma ação inalcançada” (ibidem, p. 156). A própria “tonalidade” inefável que recobre a música no corpus jankélévitchiano a extrai da irracionalidade do sortilégio e até mesmo do dionisíaco, conduzindo-a a um campo “suprarracional” 7, igualmente habitado pelo silêncio plotiniano que caracteriza a contemplação de um fundamento que em muito excede o logos (cf. ibidem, p. 181). Especifica Jankélévitch que o encanto musical não é, como tantas vezes apregoou e temeu a metafísica ocidental, procedimento hipnótico, “operação indevida, trapaça pérfida e embriaguez cega”, uma vez que “opera na lucidez dos sentidos e da razão” (JANKÉLÉVITCH, 1974, p. 355). E este cativar que não equivale a uma “captação fraudulenta” (ibidem, p. 356) favorece não mais a inquietação, a euforia ou a anestesia, mas sim a pacificação, a consolação e a reconciliação do espírito. Sob este prisma, o charme musical jankélévitchiano, mais propriamente encantamento (enchantement) que feitiço ou encantação (envoûtement, incantation) estaria em maior sintonia com kháris que com carmen...

Esta segunda consideração leva-nos ao tema do inefável, cuja íntima conexão com a música também concorre

Neste estatuto “suprarracional“ da música que cremos implícito na estética do inefável jankélévitchiana também poderiam ecoar, sob nova roupagem, algumas ideias de Henri Bremond, para quem “o conhecimento particular que estudamos no poeta ou no místico não é infra, mas suprarracional; razão superior, mais razoável que a outra (...), na medida em que a sua experiência propriamente poética lhe permite ultrapassar a ordem abstrata das noções e raciocínios e alcançar o concreto, o próprio real até onde possa ser alcançado aqui em baixo” (BREMOND, 1947, p. 80). 7

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

para que esta arte seja mais bem avaliada por meio da categoria estética do encanto que da beleza. Como observamos desde Plotino, para o receptor, o esplendor da graça, apesar de experimentável, é intangível, indecifrável e indemarcável. E, segundo Bouhours, o je-ne-sais-quoi, cujos efeitos sentimos vivamente, possui uma natureza “incompreensível e inexplicável” (BOUHOURS, 1671, p. 259). Na perspectiva jankélévitchiana, como o charme, “je-ne-sais-quoi ativado” (JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 89), a música reveste-se de especial mistério. Este, por um lado, verifica-se no próprio modo pelo qual a música se expressa. Ao contrário de um texto verbal de caráter demonstrativo, uma composição musical não se constrói a partir de referências precisas a um território de significações existente fora dela. A expressão musical é, de acordo com Jankélévitch, uma expressão em certo ângulo inexpressiva, uma vez que não transmite conteúdos unívocos, ou uma expressão grosso modo, cujo teor vago e até mesmo ambíguo propicia fecunda plurivocidade, nomeada pelo filósofo como “expressividade ao infinito” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 93). Assim, a música nos comove intensamente sem que possamos delimitar e decodificar os seus conteúdos expressivos.

Por outro lado, focalizando mais a estrutura da obra que a sua possível “mensagem”, poderíamos dizer que o mistério musical também se justifica pela dificuldade em decifrarmos as razões do seu encanto. Como a rosa no célebre aforismo de Angelus Silesius 8, tantas vezes citado ao longo do corpus jankélévitchiano, a música nos toca “sem porquê”. Enquanto as razões de uma beleza formal são identificáveis pelo seguimento de cânones pré-estabelecidos, de justas proporções ou da seção áurea, critérios que também poderiam ser absorvidos por uma concepção espacializada da música (cf. ibidem, p. 114-118), as razões do encanto de uma composição específica não são demarcáveis para a estética jankélévitchiana. É o que nos mostra Lisciani-Petrini, ao apresentar este aspecto “Die Rose ist ohne warum, sie blüht weil sie blüht.” (“A rosa é sem porquê, floresce porque floresce.”) O peregrino querubínico, I, 289 (SILESIUS, 2005, 95).

8

13

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

como um dos motivos determinantes para a afinidade entre a arte sonora e a categoria estudada: A música é, portanto, um ‘encontro com o charme’, pois é um evento ‘não localizável’. Isto significa que não o podemos explicar como um produto técnico-racional, localizando a sua significação numa estrutura melódica particular, num timbre específico, numa altura determinada dos sons ou em certa tipologia sintática – reduzindo-o a tudo isso ou, ao menos, somente a isso. (...) Certamente, isso não significa que estes aspectos não sejam essenciais – simplesmente, não esgotam a sua razão de ser. E é por isso que a música leva ao fracasso cada uma das nossas tentativas de a apreendermos ou a apropriarmos para nós (LISCIANI-PETRINI, 2013, p. 164).

14

Inapreensível e não localizável é o encanto, especialmente, o encanto musical. Vale acrescentar que, assim como a inexpressividade possui uma compensação, também o fato de o encanto não residir num ponto composicional específico favorece a presença totalizante, “profusa e difusa” (JANKÉLÉVITCH, 1980a, p. 93), que o caracteriza. Constatamos, na nossa breve genealogia, que a graça e o je-nesais-quoi são como uma “aura mágica” (JANKÉLÉVITCH, 1974, p. 345) ou uma irradiação que envolve e permeia todo um objeto. E a música, talvez mais que as demais artes, destaca-se como criadora de climas e atmosferas, termos que remetem, até mesmo na linguagem cotidiana, a uma conjuntura identificável, mas impalpável e evanescente. Segundo Jankélévitch, esta dimensão totalizante e “indivisível” (idem) do encanto musical evidencia-se quando contrapomos a música a outros modos de expressão, frequentemente descritos pelo senso comum como formas de “linguagem”. Enquanto o sentido de um discurso em prosa se constrói paulatinamente, uma peça musical, como uma canção de Gabriel Fauré, frequentemente dotada de homogeneidade em termos expressivos, “exala”, desde o primeiro compasso, o seu sentido atmosférico, que permeará toda a obra e “climatizará” o poema (cf. JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 71). Este, ao

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

se afastar de um sentido referencial preciso, é compreendido como o “sentido do sentido, que é charme” (ibidem, p. 70), enquanto a música, de expressão ainda mais totalizante, é descrita como o “charme du charme” (idem, p. 71). Tais locuções, mais que um jogo poético de palavras, podem refletir algo da perspectiva ontológica do filósofo. Assim defende Lisciani-Petrini, que, na introdução à sua tradução de La musique et l’ineffable, relaciona a identidade entre o “sentido do sentido” e o charme ao fato de, em outros momentos da obra jankélévitchiana, o nosso objeto de estudo, especialmente quando se manifesta na sua quintessência musical, ser apresentado como capaz de revelar “o sentido mais íntimo do inefável sentido do real” (LISCIANI-PETRINI, 1985, p. XLIV).

É importante ressaltar que o sentido totalizante e cativante verificado na música, embora não resida nos procedimentos específicos adotados numa composição, precisa de cada um deles para garantir a sua efetividade. Aplicando à música as considerações de Henri Bergson e Henri Bremond sobre a poesia, Jankélévitch destaca que a mera elevação do sétimo grau numa peça de Fauré, como Le plus doux chemin, seria suficiente para dissipar o seu “divinum nescioquid” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 135). “O sabor indefinível e irredutível” (idem, p. 134) é uma resultante de fatores insubstituíveis e irremovíveis, como a opção pela modalidade (idem), conjugados dentro de um fazer único e autêntico. Caso se situasse nas escalas de tons inteiros ou nas sétimas paralelas que, no contexto de uma obra de Debussy, tanto nos embevessem, o encanto seria facilmente reproduzível. No entanto, não é isso o que ocorre: quando utilizada de modo premeditado e não integrado a uma poética, determinada técnica composicional se converte em “um clichê para os imitadores ou um procedimento mecânico para os industriais da fabricação em série” (ibidem, 132). Menos que dos aspectos técnicos tomados isoladamente, o encanto depende, portanto, das maneiras, “do momento, do contexto, da ocasião e de mil condições que podem fazer de uma novidade uma engenhosidade afetada ou pedante e de um acorde banal um achado genial” (ibidem, p. 131-132). Reencontramos aqui a ideia, já presente em Montesquieu, de que o je-ne-sais-quoi só

15

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

se realiza quando aliado à espontaneidade. Segundo Jankélévitch, “não há receitas para encantar (charmer), mas há receitas para ser um encantador (charmeur), isto é, um histrião” (ibidem, p. 112). E, no que se refere especificamente à música, este pré-requisito do encanto não se restringe ao compositor, mas também se aplica ao ouvinte de uma obra musical, posto que uma apreciação estritamente norteada por critérios técnicos “é um meio de se recusar este abandono espontâneo à graça que o encanto (charme) nos exige” (ibidem, p. 128-129).

16

O tema da espontaneidade permite-nos recordar outra qualidade diretamente associada ao encanto e ao je-ne-saisquoi não só no ensaio de Montesquieu, como também no diálogo de Bouhours: a simplicidade. Estaria ela também contida no charme jankélévitchiano? A resposta parece-nos positiva, se observarmos a significativa coincidência de este termo ter sido recuperado e destacado justamente por um autor – e pianista – que privilegia momentos musicais, “cenas” impressionistas e canções, enquanto praticamente desconsidera, como já anunciamos na introdução, as grandes formas cultivadas pela música germânica. Valoriza o encanto aquele que se sensibiliza pela poética miniaturista de Federico Mompou, compositor catalão que, sugestivamente, criou uma série de seis pequenas “encantações” musicais, batizadas de Charmes (cf. ibidem, p. 158-159).

Assim, como último ponto a ser abordado nesta seção, cabe observar que a presença de uma preferência poética, patente ao longo da estética-musical jankélévitchiana, parece contribuir para a ênfase por ela concedida ao charme. E isto não só pelo fato de o filósofo do presque-rien admirar o fragmento musical e, com ele, obras que, como o improviso e a rapsódia, potencializam o encanto ao evitar previsíveis formas estabelecidas a priori. No livro-entrevista Quelque part dans l’inachevé, Jankélévitch admite ser tocado de maneira especial por uma música de ricordanza (cf. JANKÉLÉVITCH, 1978, p. 215-216), que, curiosamente, poderíamos exemplificar pelo quinto Charme de Mompou, em cujo subtítulo se lê: “para evocar a imagem do passado”... E, para além desta “encantação” específica, um pathos evocativo e melancólico se desprende da

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

própria concepção jankélévitchiana do charme musical. Este é fruto de uma “temporalidade encantada” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 122) que, embora possibilite a retomada de temas e seções, ainda lida com a dinâmica da sucessão: o acesso ao evento sonoro presente implica a inexorável perda ou metamorfose de um evento anterior (cf. idem).

4)

Conclusão

Coincidentemente, encerramos tanto o nosso percurso pelo charme musical jankélévitchiano quanto a genealogia do conceito em questão abordando um mesmo ponto, a partir do qual teceremos esta conclusão. Como indica Montesquieu, à diferença da beleza estática, a graça se efetiva pela surpresa, por um processo de velamento e desvelamento, que pressupõe a participação do tempo e, até mesmo, recordando o diálogo de Bouhours, do “mais curto de todos os momentos”. Por conseguinte, constatamos, já no Iluminismo, indícios de uma revalorização positiva da temporalidade, que passa a ser associada a um je-ne-sais-quoi de conotação “espiritual”.

No discípulo de Bergson tal revalorização em muito se aprofunda, como se observa pela aplicação de um conceito, diretamente vinculado à temporalidade, tanto à (me)ontologia quanto à estética do autor, cuja protagonista é uma arte constitutivamente temporal. Constatamos que, no seu pensamento, estas duas áreas se interceptam: uma categoria proveniente da estética, no sentido baumgartiano, como disciplina que abrange não só o “conhecimento” do belo, mas intuições e inclinações, torna-se uma espécie de fundamento (me)ontológico. Fundamento que, como “encanto inefável”, a música nos permite, de certo modo, entrever.

Apesar da precariedade da sucessão temporal, a música nos encanta. Mais correto seria dizer que apesar e em razão de tal precariedade há encanto. Caso este se perpetuasse, não mais seria “experiência insubstituível de uma coisa incomparável” (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 105): graças à sua “caducidade”, o encanto não apenas suscita “uma poética melancolia” (ibidem, p. 149), mas se destaca e se potencializa

17

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch

como “acontecimento relâmpago” (ibidem, p. 152), fruto de uma confluência irrepetível de eventos (occasion, kairós). Portanto, há encanto, quando o objeto, o sujeito, o espaço e o tempo são “coloridos” por uma luz (cf. Plotino VI, 7, 22, 34) que nem sempre está presente, fazendo daquele momento “simples furo”, evasão fugidia (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 157). Sob este aspecto, o encanto musical identifica-se com a experiência mística, de cujo léxico a graça – assim como a centelha (das Fünkchen)! – também participa.

18

Por conseguinte, nem todo tempo é encantado, mas a possibilidade de encantá-lo, ainda que por breve lapso de tempo, mostra que o conceito de charme, especialmente na abordagem jankélévitchiana, é capaz de elevar, de modo significativo, o estatuto da temporalidade. E, com este, o próprio estatuto da música, arte que, além de se oferecer como especial imagem e via de acesso para o fluxo constitutivo da realidade, é interpretada não mais como encantação irracional, mas como encantamento eminentemente inefável.

Referencias bibliográficas BAYER, Raymond. Historia de la estética. Traducción: Jas Reuter. 13ª reimpresión. México: FCE, 2012. (Filosofía)

BOUHOURS, Dominique. Les entretiens d’Ariste et d’Eugène. Dernière édition. Amsterdam: Jaques le Jeune, 1671.

BREMOND, Henri. La poesía pura. Con un debate sobre la poesía por Robert de Souza. Traducido por Julio Cortázar. Buenos Aires: Argos, 1947.

FARIA, Ernesto (Org.). Dicionário escolar latino-português. 2. ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Departamento Nacional de Educação, Campanha nacional de material de ensino, 1956. HADOT, Pierre. Plotin et la simplicité du regard. Paris: Plon, 1963. (La Recherche de l’Absolu, 10) JANKÉLÉVITCH, Vladimir. De la musique au silence: Fauré et l’inexprimable. Paris: Plon, 1974. ____. La mort. Paris: Flammarion, 1966.

____. La musique et les heures. Paris: Seuil, 1988.

O papel do charme na estética musical de Vladimir Jankélévitch ____. La musique et l’ineffable. Paris: Seuil, 1983.

____. Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien: la manière et l’occasion. Paris: Seuil, 1980a. v.1. ____. Le je-ne-sais-quoi et le presque-rien: la méconnaissance, le malentendu. Paris: Seuil, 1980b. v. 2.

____. Philosophie première: introduction à une philosophie du ‘presque’. Paris: Quadrige/PUF, 1986. ____; BERLOWITZ, Beatrice. Quelque part dans l’inachevé. Paris: Gallimard, 1978. 265p.

JAY, Martin. Downcast eyes: the denigration of vision in twentiethcentury French thought. Berkeley: University of California, 1994.

LISCIANI-PETRINI, Enrica. Charis: essai sur Jankélévitch. Traduction: Antoine Bocquet. Milão: Mimesis, 2013.

____. “Lo ‘charme’ della musica” In: La musica e l’ineffabile. Traduzione e introduzione di Enrica Lisciani-Petrini. Nápoles: Tempi Moderni, 1985.

MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Œuvres complètes. Préface de Georges Vedel. Présentation et notes de Daniel Oster. Paris: Seuil, 1964. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PLOTINO. Traité 38 (VI, 7). Introduction, traduction, commentaire et notes: Pierre Hadot. Paris: Cerf, 1999. (Les écrits de Plotin) ____. Tratado das Eneadas: texto integral de 12 tratados. Tradução, apresentação, notas e ensaio final: Américo Sommerman. São Paulo: Polar, 2012. SILESIUS, Angelus. El peregrino querúbico. Edición y traducción de Lluís Duch Álvarez. Madri: Siruela, 2005. WAGNER, Richard. Beethoven. Tradução do alemão e notas: Anna Hartmann Cavalcanti. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

19

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.