O papel do médico na comunidade

October 17, 2017 | Autor: Lívia Paula Calado | Categoria: Social Psychology, Medicine, Atenção Primária a Saúde, Saúde Mental e atenção básica
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O papel do médico na comunidade

O médico sem um acúmulo sobre a forma como a sociedade se organiza e sobre como cada ator social é absorvido dentro das várias formas de opressão funciona como um instrumento opressor, que patologiza todas as manifestações pessoais as quais vão de encontro a todas as diretrizes impostas pelo método científico biologicista aprendido nos livros didáticos tradicionais e reforçado na clínica vivenciada no contexto hospitalocêntrico. Nesse contexto, o ponto de partida para toda a estruturação de um currículo médico consistiu no tratamento de manifestações patológicas agudas de indivíduos adoecidos ou em processo de adoecimento, que foram diagnosticadas e "curadas" dentro de um ambiente inóspito e impessoal, o hospital, onde não há tempo para se descobrir a "raiz" do problema do paciente. Este modelo de Saúde centrado na descoberta da doença, ou seja, com vistas somente à união de sinais e sintomas que resultarão em um diagnóstico, ainda é reflexo da influência flexneriana na implantação dos cursos de Medicina, cuja base utilizada fora o modelo de pesquisa médica alemã: centrada no laboratório, na hierarquia, na especialização e nas pesquisas experimentais. A partir do conhecimento adquirido com a Metodologia Científica, pode-se compreender que uma formação baseada no laboratório e nas pesquisas experimentais resulta na criação de um perfil profissional sem a visão do paciente como ser holístico, cuja forma de adoecimento possui particularidades e singularidades diferentes das demais pessoas presentes nas estatísticas científicas. Dessa forma, subtende-se que todo o esforço de se construir um modelo de pesquisa o qual abarcasse toda uma população atingida ou propensa a sofrer tal fenômeno estudado (por exemplo: doença coronariana), de forma a integrar uma variedade de pessoas, e que isso conseguisse demonstrar, no resultado final da pesquisa, a representatividade total de um povo, resultou na anulação da manifestação da empatia imparcial na maioria dos profissionais de saúde, assim como, no estímulo a se pensar nas doenças sob a forma de diretrizes e estatísticas internacionalizadas. Ou seja, forma-se um profissional não apto à investigação da real necessidade do seu paciente, pois esse foi "podado" de desenvolver sua percepção individual. Essa foi a influência trazida pelos ensaios clínicos randomizados duplo-cego, e, em menor escala, pelos demais métodos científicos. Para piorar a situação, toda a Clínica Médica aprendida nos ambulatórios e no ambiente hospitalar tem como fundamentação teórica livros de Medicina Interna, apostilas de cursos preparatórios para a residência médica ou manuais de diagnósticos e prescrições para consultas rápidas. Assim, o acadêmico se vê forçado (tendo em conta o tempo do estágio e a cobrança das provas) a ter um modo de aprendizagem baseado numa anamnese e exame físico que vise a investigar nos pacientes sinais e sintomas descritos nas fontes bibliográficas de forma a sedimentar seu conhecimento, e, aquele paciente que não se encaixar dentro da referência bibliográfica, é tido como objeto de estudo mais aprofundado e como possuidor de uma doença não conhecida até então.

Em outras palavras, todo o saber médico está sendo adquirido de uma maneira a qual não seja considerado a existência de uma pessoa singular por detrás de toda a sintomatologia dita e traduzida para termos médicos. Assim, as manifestações pessoais de sentimentos, as emoções, as percepções, os problemas pessoais ou as sensações da realidade presenciada por cada indivíduo (realidade esta que é sempre sentida e vivida diferentemente por cada um), podem estar causando adoecimento, e, como a atenção básica no Brasil ainda é falha, essa pessoa entra em processo de agudização até conseguir auxílio em um hospital. Dentro da perspectiva hospitalocêntrica de tratamento, a qual cada vez mais se é exigido um maior aporte de tecnologia e uma maior quantidade de aparelhos eletrônicos, e onde não se busca o cuidado integral da pessoa que está internada, mas sim, a remediação a todo o custo de um adoecimento que impossibilitou um trabalhador, ou um futuro trabalhador (crianças e adolescentes)de permanecer no trabalho ou na escola, pode-se perceber o quanto o currículo médico tem promovido as grandes fábricas de equipamentos, e também, como ele tem sido usado para a manutenção do modelo econômico vigente. Ou seja, usa-se todos os recursos adquiridos pela sociedade, seja na forma de impostos ou no pagamento direto, para manter o jovem e o adulto sempre ativo no processo produtivo e gerador de mais recursos para o Estado. Outro coadjuvante para a manutenção da ordem vigente e para assegurar que todos os indivíduos aptos para o trabalho estejam em perfeito funcionamento físico e biológico é a industria farmacêutica, a qual tem assediado de todas as formas o acadêmico de Medicina e o médico, através de stands que dão brindes em congressos, e, através de patrocínios como viagens e medicamentos gratuitos. Usando dessa tática de convencimento, como também, utilizando-se de espaços estratégicos em congressos médicos, a industria farmacêutica vem ganhando espaço dentro do currículo médico, e, tem trazido consigo toda a influência da concorrência e da competitividade entre laboratórios para dentro dos estágios curriculares. Em alguns casos, esses estágios ou o incentivo da Universidade/Faculdade à realização de pesquisas científicas tem sido utilizados como palco para testar a eficácia de medicamentos entre si, ou para avaliação de possíveis efeitos colaterais. Inseridos nesse modelo engessado de currículo, e, sendo pressionado pelo ambiente competitivo da Instituição de Ensino Superior (IES), o acadêmico de Medicina é forçado a usar de todos os meios possíveis para se formar como um profissional de excelência. Então, sem perceber, suas ações nos estágios hospitalares tem os seguintes reflexos: o uso desmedido dos recursos do Sistema Único de Saúde (SUS); a invasão da intimidade do paciente através de anamneses feitas sem a preocupação de dar respostas plausíveis aos questionamentos dos pacientes, causando, muitas vezes, estresse e traumas ao mesmo; etc. Assim, cria-se todo um ambiente iatrogênico para se conseguir que o estudante desenvolva seu raciocínio clínico sob a forma de protocolos fixos, os quais levam sempre a mesma hipótese diagnóstica que, para ser cientificamente comprovada e tratada, precisa de determinados exames de imagens e/ou laboratoriais. Se, ao menos, o sistema de referência e contra-referência do SUS fosse utilizado na prática do cuidado ao paciente, a história clínica e familiar da pessoa que chega ao

hospital seria analisada, e, após o tratamento da agudização, esta seria contrareferenciada para a continuidade do cuidado na Unidade Básica de Saúde, onde, através da estratégia de Saúde da Família, seria descoberto o "gatilho" real desencadeador da desestabilização e do adoecimento. Com o objetivo de preparar o futuro profissional médico para atuar de forma direta ou indireta na atenção básica, foram criadas as Novas Diretrizes Curriculares do curso de Medicina. Estas determinam que toda a grade curricular seja montada de maneira a promover que o acadêmico tenha visão crítica, humanista, reflexiva e ética, com capacidade para atuar nos diferentes níveis de atenção do processo saúde-doença, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, nos âmbitos individual e coletivo, com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania e da dignidade humana, objetivando-se como promotor da saúde integral do ser humano. Essas medidas buscam reverter todo o processo iniciado com a implantação do modelo flexneriano de ensino, como também, visam o fortalecimento do SUS. Retomando o que foi dito no início do texto, sobre o conhecimento a respeito de opressões, e, a necessidade de se conhecer a pessoa que está adoecida, surgiu a necessidade de se mudar a abordagem da anamnese clínica, sendo iniciado o uso do método baseado na Medicina Centrada na Pessoa para se alcançar esse objetivo. Essa proposta de atendimento pressupõe várias mudanças na mentalidade do médico. Primeiramente, a noção hierárquica de que o profissional está no comando e de que a pessoa é passiva não se sustenta nessa abordagem. Para ser centrado na pessoa, o médico precisa ser capaz de dar o poder a ela, compartilhar o poder no relacionamento, e isso significa renunciar ao controle que tradicionalmente fica nas mãos do profissional. Esse é o imperativo moral da prática centrada na pessoa. Ao concretizar essa mudança de valores, o médico experimentará os novos direcionamentos que o relacionamento pode assumir quando o poder é compartilhado. Em segundo lugar, manter uma posição sempre objetiva em relação às pessoas produz uma insensibilidade ao sofrimento humano que é inaceitável. Ser centrado na pessoa requer o equilíbrio entre o subjetivo e o objetivo, em um encontro de mente e corpo. As opressões (cor, gênero, ciclos sociais) são percebidas no campo das emoções individuais, e, se estas não forem denunciadas e retratadas, poderão ser manifestadas sob a forma de ansiedade, tristeza, insegurança, etc. Assim, dependendo do andamento da conversa inicial entre médico-paciente, das palavras utilizadas por esse profissional e da conduta adotada pelo mesmo, essas emoções poderão ser diagnosticadas como doenças (depressão, histeria, hipomania, mania, etc.), fazendo com que os pacientes sejam taxados, rotulados e, de certa forma, até perseguidos, quando abandonam o determinado tratamento imposto pelo médico. Para conseguir um entendimento e empatia é necessário prestar atenção às emoções da pessoa. Isso é algo que o método clínico moderno não faz de nenhuma forma sistemática. Fiel à suposta separação entre mente e corpo pensada por Descartes, o método da maioria das disciplinas clínicas não inclui a atenção às emoções. Já em 1926, Crookshank, ao escrever sobre a teoria do diagnóstico, observou que os livros sobre diagnóstico clínico que apareceram no início do século XX " forneciam

excelentes esquemas para o exame físico da pessoa, mas estranhamente ignoravam quase que completamente o psíquico". O preço que pagamos para ter os benefícios da abstração é o distanciamento entre o médico e a pessoa que busca atendimento. Justificamos tal distanciamento para nós mesmos como sendo objetividade, mas aqueles de quem cuidamos frequentemente o entendem como indiferença ao seu sofrimento. O ensinamento sobre o relacionamento entre médico e pessoa costumava ser "não se envolva". De certa forma, o medo das emoções não era infundado. Envolver-se ao nível de emoções não examinadas é potencialmente prejudicial. Entretanto, o que o ensinamento não dizia era que o envolvimento é necessário se quisermos curar, além de sermos técnicos competentes. Há formas certas e erradas de se envolver, e os ensinamentos não ofereciam diretrizes para encontrar a forma correta. Eles eram profundamente equivocados ao sugerir que não se pode encontrar o sofrimento e ao mesmo tempo não ser, de algum modo, afetado por ele. Nossa resposta emocional pode ser reprimida, mas isso tem um preço muito alto, pois a emoção contida toma formas capazes de destruir relacionamentos. O não envolvimento não existe, e apenas o autoconhecimento consegue nos proteger dos perigos do envolvimento em nível de nossas emoções egocêntricas. Sem autoconhecimento, o crescimento moral acaba podendo ter raízes superficiais. Essa é a razão por que o método clínico centrado na pessoa inclui a atenção ao relacionamento entre a pessoa atendida e o médico e, por implicação, à autoconsciência do médico. Os encontros diários com o sofrimento evocam emoções fortes: o desamparo frente à doença incurável, o medo de discutir questões que nos assustam, a culpa por nossos fracassos, a raiva das demandas das pessoas que atendemos e a tristeza pelo sofrimento de alguém que se tornou um "amigo" (na relação de empatia entre médico e paciente, a palavra amigo é conceituada como a pessoa a quem se está ligado por uma afeição recíproca). Se não reconhecermos e lidarmos com nossas emoções perturbadoras, elas poderão externalizar-se no evitar a pessoa, no distanciamento emocional, na concentração exclusiva nos aspectos técnicos do tratamento, e até mesmo em crueldade. A falta de conhecimento emocional pode perturbar ou destruir o relacionamento entre pessoa e médico, somando-se ao sofrimento do doente e frequentemente deixando o profissional com a sensação de fracasso. Não é fácil ficar cara a cara com o sofrimento sem se retrair. Portanto, depreende-se de todo o exposto acima a urgente necessidade de haver mudanças estruturais em todo o processo de graduação médica, sendo de extrema importância que esta se volte para a resolução dos problemas reais que afligem a população brasileira, ou seja, problemas que são o reflexo de toda a construção histórica mundial e do aculturamento forçado iniciado desde o processo de colonização (por exemplo, o racismo, a exploração do trabalhador, a opressão de gênero, a xenofobia, etc). Assim, apenas chegando à raiz do problema, o cuidado integral e o tratamento efetivo da pessoa adoecida poderá ser feito eficazmente.

Lívia Paula Calado Coordenação de Extensão Universitária- DENEM

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