O Paradoxo da Autoridade: O Debate Raz-Wolff
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Alguns Comentários ao Paradoxo da Autoridade INTRODUÇÃO: PRELIMINARES A Teoria do Direito vivenciou mudanças substanciais em seu escopo de investigação com a obra do filósofo israelense Joseph Raz. Parece que, a partir dele, houve um shift nos hot topics das discussões. Falou-‐se muito da separação (ou da não separação) entre o direito e a moral. Falou-‐se muito sobre a natureza das regras jurídicas: será que as regras são comandos, ou são práticas, ou quem sabe razões, ou até mesmo planos? Não se está dizendo aqui, de maneira nenhuma, que esses assuntos tenham perdido a relevância ou a contemporaneidade, até porque teóricos contemporâneos continuam a escrever nessas áreas -‐ exemplo disso é a recente retomada e releitura do imperativismo austiano. O que se quer dizer é que se passou a dar especial atenção à questão da autoridade1. Isso se deu, em grande parte, porque se estava produzindo, em Raz, uma concepção de autoridade refinada e sofisticada, diferente das abordagens que a autoridade já tinha recebido. É interessante quando um autor consegue, dentro de uma área específica, o que Raz conseguiu na Teoria do Direito. Isso revela o quanto sua proposta é inovadora, fazendo uma ruptura com as abordagens da autoridade do Direito que vieram antes dele.
Ora, que abordagens são essas que antecederam a de Raz? Em filosofia a
resposta seria bastante ampla: desde os gregos até os modernos houve diversas abordagens da autoridade. Como o assunto de reflexão deste ensaio é a Teoria do Direito e não a filosofia em sentido amplo, limito as abordagens que antecederam Raz a duas: a de Austin e a de Kelsen. Ambas imperativistas, com algumas diferenças, é verdade, mas imperativistas. E ambas, de uma maneira ou de outra, deixam a desejar. Até o ponto de esse “deixar a desejar” chamar a atenção de H.L.A Hart e o levar a dedicar boa porção do seu O Conceito de Direito ao assunto. Jason Thomas Craig faz uma excelente colocação sobre o assunto ao afirmar “como Hart 1 Novamente não se quer dizer que o assunto da autoridade já não tinha relevância na filosofia, nem
na Teoria do Direito, nem que o assunto da autoridade nunca tenha sido antes abordado e recebido atenção. O que se quer dizer é que, a partir de Raz, passou-‐se a dar uma atenção especial à questão da autoridade.
observou, em O Conceito de Direito, é insuficiente, ou melhor, conceitualmente redutor, perceber a autoridade como meramente razões para ação mediante força coercitiva2”. Já foi dito aqui que a concepção de autoridade raziana é sofisticada e inovadora e, por agora, é só o que vai ser dito. Mais adiante vou dedicar um capítulo inteiro tentando reconstruir a concepção raziana da autoridade. Por agora, fico limitado a algumas outras preliminares.
A análise do tipo conceitual é um atributo essencial da filosofia analítica,
fonte de onde os autores da Teoria do Direito beberam e retiraram as suas ferramentas intelectivas para desenvolverem as suas teorias. Raz não é nenhuma exceção ao caso: a ideia de conceito e de conceituação está presente em toda a sua Teoria do Direito. Até o ponto de alguns de seus críticos o tacharem de conceitualista. Brian Bix, em seu artigo Filosofia e Direito3, aborda o problema que os funcionários do Direito têm com teóricos como Raz, argumentando que uma teoria do Direito seria, supostamente, irrelevante para a prática jurídica forense. Raz se defende da crítica de ser um conceitualista e de conceitos serem, supostamente, irrelevantes. Diz que “amplamente falando, a explicação de um conceito é a explicação daquilo de que se é conceito4”. Raz faz uma distinção, no entanto, entre uma explicação convencional de um conceito (como, por exemplo, quando se explica para uma criança o que é a neve, ou a chuva, ou algo assim) e uma explicação filosófica de um conceito, que é, a grosso modo, o interesse de Raz e o deste ensaio. Raz também chama a atenção para um outro ponto: não é porque se pode desenvolver uma explicação filosófica de um conceito que, necessariamente, se é um especialista naquilo do que se é um conceito. Ou, melhor dizendo, nas próprias palavras de Raz: “é possível ter o conceito sem ter conhecimento detalhado daquilo de que se é um conceito”. É possível desenvolver um conceito do Direito sem ser um jurista especializado em uma área específica da dogmática jurídica ou do direito procedimental, por exemplo. Enfim, o que Raz pretende dizer aqui é enfatizar que 2 Craig, Jason. “Raz e Seus Críticos: Uma Defesa da Autoridade Raziana.” Georgia State University. 3 Em inglês “Philosophy and Law”. 4 Em inglês “Broadly speaking, the explanation of a concept is the explanation of that which it is a
concept of”. Philosophy and Law. Brix, Brian.
há, sim, uma importância substancial na conceituação de algo e no estudo de um conceito. Quando um indivíduo se dedica ao estudo de um conceito, não está -‐ como dizem os funcionários do Direito que Brian Bix descreve -‐ perdendo tempo ou estudando algo inútil. A utilidade de um conceito é uma ideia-‐chave deste ensaio, visto que o problema, que mais a frente se apresentará, é um problema necessariamente conceitual, que exige necessariamente uma solução conceitual.
O conceito raziano de autoridade é tão inovador e sofisticado que já foi
elogiado até mesmo por um opositor de Raz como Kenneth Himma. Em um de seus artigos, Himma o elogia, dizendo que “Raz fez o tipo de marco que poucos filósofos esperaram fazer, e os seus melhores trabalhos serão, indubitavelmente, lidos centenas de anos de agora5”. Mas todo esse reconhecimento não veio de graça. Raz não ficou isento de críticas e de críticos. Seus críticos são muitos e, diga-‐se de passagem, têm argumentos bastante fortes contra o conceito raziano de autoridade. Um deles é o filósofo anarquista contemporâneo Robert Paul Wolff, que, em sua mais famosa obra, “Em Defesa do Anarquismo”, dedica todo o capítulo primeiro atacando o conceito de autoridade. É verdade que Wolff é um filósofo político e que seu livro é um livro de filosofia política e não de Teoria do Direito. Mas os conceitos que Wolff desenvolve têm, também, um endereçamento ao Direito e à autoridade do Direito. Mais a mais, o próprio Raz já fez algumas menções a Wolff, em alguns de seus artigos. E, apesar de não podermos falar de um debate Raz-‐Wolff propriamente dito, penso que temos a autorização para importarmos as críticas wolfianas à autoridade para a Teoria do Direito e que estamos, sim, “razianamente” autorizados a entrarmos no assunto.
Neste ensaio pretendo fazer uma defesa da autoridade do Direito ante às
críticas anarquistas e mostrar o quanto esse assunto tem relevância para a Teoria do Direito. Para isso, dedicarei um capítulo a expor os pontos principais das críticas de Wolff à autoridade do Direito. Dedicarei um capítulo tentando reconstruir os pontos principais do conceito raziano de autoridade do Direito. E dedicarei um último capítulo expondo a solução que proponho para esse problema. Por fim, faço 5 “Revisitando Raz: Positivismo Inclusivo e o Conceito de Autoridade”. Himma, Kenneth.
algumas últimas considerações. Esclareço que, apesar de Raz também ter uma proposta política e de ter desenvolvido um conceito de autoridade que também pode ser aplicado à política, a autoridade a qual me refiro neste ensaio é a autoridade do Direito e não a autoridade política. E apesar de Wolff ter uma abordagem excessivamente política e ter endereçado boa parte de sua crítica à autoridade política, ele não endereçou toda a sua crítica à política e reservou uma porção ao Direito. Portanto, do início ao fim, o conceito de autoridade em discussão neste ensaio é o do Direito e não o da política. O ATAQUE DE WOLFF À AUTORIDADE DO DIREITO
Dentre os teóricos anarquistas contemporâneos, o que certamente mais se
destaca é o filósofo americano Robert Paul Wolff, com sua obra “Em Defesa do Anarquismo”. O livro parte da premissa que autoridade e autonomia individual são conceitualmente incompatíveis. A autonomia individual e a racionabilidade são bens inalienáveis, submeter-‐se a uma autoridade é abrir mão de sua autonomia e de sua capacidade de deliberar em razão, logo a legitimidade moral da autoridade é impossível, trazendo colapso aos sistemas jurídico (nosso caso) e aos sistemas políticos (o Estado, segundo Wolff).
Wolff parte de algumas conceituações. A primeira é a de poder, que, segundo
ele, é a abilidade de compelir os outros a fazer o que alguém quer. A segunda é a de autoridade, a saber, ter o direito de governar. Para Wolff, nem todo aquele que possui poder tem autoridade. O exemplo do pistoleiro6 é bastante esclarecedor. Um pistoleiro pode apontar uma arma à cabeça de uma pessoa e obrigá-‐la a fazer um saque de dinheiro de sua conta bancária. Conseguiu o que queria e compeliu o outro a fazer o que queria. Compeliu pelo uso da força da arma de fogo, mas não tem autoridade para governar o comportamento dessa pessoa através de uma obrigação moral de ter que se comportar de alguma maneira específica. Para Wolff, na autoridade há deliberação moral, no poder, não há. O problema que Wolff tem com o 6 Autority. Scott J. Shapiro.
Direito é na questão da autoridade. Incomoda Wolff que o Direito reivindique qualquer legitimidade moral para levar as pessoas a uma normatividade.
Wolff não tem interesse em autoridade de facto, o seu interesse está na
autoridade de jure. Por de facto, Wolff se refere a existência de algo. O anarquista não questiona a existência ou a não existência de uma autoridade7. Por de jure [do latim clássico (DE IVRE), literalmente do Direito], Wolff se refere à autoridade moralmente justificada (ou, a nosso ver, à autoridade do Direito). A autoridade de jure reivindica o direito de governar, e aquilo que reivindica o direito de governar também reivindica o direito de ser obedecido. Uma autoridade, para Wolff, é um comando. Quem emite um comando não tem nenhum interesse em convencer o sujeito se deve ou se não obedecer (já se pressupõe a legitimidade), apenas exige que seja obedecido.
Ao abordar a autonomia individual, Wolff parte da etimologia do vocábulo
autonomia [do grego clássico, auto (próprio, si mesmo) e nomos (regra, lei, norma, costume ou força que impele uma ação). Um indivíduo autônomo, para Wolff, é aquele que toma responsabilidade pelos os seus próprios atos. É alguém que não necessita de nenhuma força externa ditando-‐lhe o que fazer, porque ele já é o seu próprio legislador. O único direito a qual um indivíduo autônomo se submete é ao seu próprio. Um indivíduo autônomo, além de ser o seu próprio direito, é aquele que não se deixa ser normatizado por nenhum sistema externo além de si mesmo. Portanto, para Wolff, o conceito de autonomia está intrinsicamente ligado ao conceito de racionalidade e à necessidade de um indivíduo deliberar sobre os seus próprios atos através de sua razão.
Segue dessas duas concepções wolfianas (autoridade e autonomia) um
paradoxo. Se a autoridade é o direito de governar sobre o comportamento de alguém, e a autonomia é a capacidade de se governar a si mesmo e de não se deixar governar por nenhuma outra fonte externa além de si mesmo, logo é impossível que alguém se submeta a uma autoridade sem perder a autonomia. Dessa forma, há dois conceitos substancialmente incompatíveis entre si: a autoridade e a autonomia. O 7 O anarquismo filosófico não nega que autoridades, de fato, existam. Aliás, que existem é quase um truísmo. O ataque à autoridade está mais direcionada à autoridade moralmente justificada.
paradoxo é melhor explanado nas próprias palavras de Wolff ao dizer que “o marco definidor do Estado é a autoridade, o direito de governar. O marco definidor do homem é a autonomia, a recusa de ser governado8”. A consequência disso é o colapso do Direito. Se a autoridade é o fator que distingue o Direito dos demais âmbitos normativos, logo não se justifica que as pessoas criem âmbitos normativos jurídicos para guiar as suas condutas, visto que a autonomia já supre o que o Direito se propõe a fazer. Pessoas autônomas criam suas próprias normas e entendem que devem agir segundo elas, logo a necessidade da existência do Direito não se justifica em uma sociedade moderna que tem como marco principal a autonomia individual.
Para Wolff, essa incompatibilidade entre a autoridade e a autonomia não
necessariamente leva à desobediência civil. Se um indivíduo autônomo (legislador de seu próprio direito) julgar moralmente lícito obedecer a uma norma jurídica específica, poderá fazê-‐lo sem perder a autonomia, pois o fará não por submissão à autoridade, e sim por deliberação de sua própria razão sobre o que deve ou sobre o que não dever fazer. Nota-‐se que o anarquismo proposto por Wolff não é tão radical como, por exemplo, o proposto por Henry David Thoreau. Para Thoreau, o anarquismo e a desobediência civil estão conceitualmente ligados. No anarquismo de Wolff, isso não ocorre. É totalmente possível que um anarquista seja um fiel pagador de impostos (algo que Thoreau abominaria) ou alguém amplamente ativo em política partidária, porque o faz por sua própria deliberação pela razão. Caso o fizesse pela autoridade, não haveria racionalidade e se perderia a autonomia. A CONCEPÇÃO DE AUTORIDADE COMO SERVIÇO
É verdade que Raz é um pensador exigente. E tentar subir nos ombros de um
gigante da Teoria do Direito como nos dele é também algo exigente. Apesar de ser muito honesto com o uso da linguagem e de oferecer textos linguisticamente acessíveis ao leitor, Raz deixou uma quase que excessiva quantidade de dificuldade à matéria. É verdade também que, para começar a falar de Raz, é preciso tomar (i) o 8 Robert Paul Wolff, Em Defesa da Anarquia (1970).
ponto de vista interno do Direito como verdadeiro e (ii) tomar como verdadeiro que o Direito reivindica autoridade. Na investigação das razões que levam as pessoas a criarem âmbitos normativos jurídicos9 (e não apenas âmbitos normativos morais ou de qualquer outro tipo) para regular as condutas humanas, é do esse do Direito que ele, necessariamente, seja um reivindicador de autoridade. O fator distinguidor do Direito, que o diferencia de outros âmbitos normativos criados pelos homens, é a autoridade. Agora, seria a autoridade do Direito legítima? Teria o Direito legitimidade para reivindicar autoridade? Bem, essas perguntas já são uma outra história. Aliás, a obediência ao Direito nem faz parte (“oficialmente10”) do escopo de investigação da Teoria do Direito. Essas perguntas são, sim, importantes, mas não pretendem ser respondidas por Raz. Mas essa reivindicação, como diz S. J. Shapiro, “significa muito mais 11 ”. Raz faz a seguinte colocação a respeito do assunto: “Reivindicar autoridade é professar que o exercício do poder normativo é sempre direcionado na direção de servir o bem-‐estar daqueles que são obrigados a obedecer. Mesmo que os governantes ajam em seus interesses próprios, eles sempre reivindicam que o seu serviço é servir aos governados12”.
Na concepção raziana da autoridade, a raison d’être de uma autoridade, ou
seja, o fator essencial que determina a existência de uma autoridade é o fato que ela precisa, obrigatoriamente, ser um mediador entre as pessoas e as razões a elas aplicadas. Daí a importância do conceito de serviço. As autoridades prestam um serviço para as pessoas, levando em conta as razões já aplicadas e construindo-‐lhes diretivos que as auxiliem a conformar (no sentido de tomar forma mesmo) a algo que Raz chama de balanceamento de razões. Nota-‐se que não se trata apenas de um comando mediante a ameaça de uma sanção. Aliás, o poder de sancionar não tem tanta relevância na Concepção de Autoridade Como Serviço. Raz definitivamente faz uma ruptura com o imperativismo. Mas alguém poderia perguntar: “E por acaso comandos também não são razões”? A resposta seria, ao meu ver, positiva. Quem 9 Em inglês, normative domain. 10 A partir de Raz passou-‐se a aceitar a obediência ao Direito como objeto de investigação da Teoria do Direito. Mas, de fato, trata-‐se de uma teoria do Direito, e não de uma teoria da obediência. 11 Autority. Cardozo Law School. 2000. 12 Raz, Joseph. “The Morality of Freedom,” 56 (1986).
reclama esse argumento recebe a minha confirmação. Mas a essência do imperativismo não está nas razões do comando, e sim na ameaça da sanção. O medo da sanção não prepondera na autoridade raziana. Por isso é muito mais sofisticada.
Esse é o primeiro grande argumento do conceito de autoridade em Raz, a
saber, que ela é um serviço em favor dos que se submetem a ela. E, sem esse argumento, não é possível seguir em frente no pensamento raziano. Raz foi generoso com os seus leitores, dividindo a Concepção de Autoridade Como Serviço em teses. Mas antes de entrar nas proposições específicas dessas teses e para entender as razões por trás do fato de Raz ter desenvolvido um conceito de autoridade da maneira que fez, é preciso voltar ao sistema de razões práticas que ele desenvolve na obra Razão Prática e Normas. Trata-‐se de um projeto audacioso que pretende mostrar que o conceito de razões está diretamente ligado ao conceito de normas. Para Raz, razões precisam ser entendidas como fatos e assim (e tão-‐ somente assim) razões terão normatividade. Ou nas palavras de Raz: “Para decidir o que devemos fazer, precisamos descobrir como o mundo é, e não como os nossos pensamentos são. A relação essencial de significância normativa encontra-‐se entre fatos e pessoas. Temos uma razão para agir quando há um certo fato de um assunto que diz respeito a nós13”. Chamo isso de a tautologia raziana: razões são fatos porque são práticas e são práticas porque são fatos. Quando ele convida os seus leitores a fazerem o experimento mental do balanceamento de razões, ele está convidando para a deliberação entre (i) as razões (fatos) que se aplicam diretamente às pessoas e que as levam a um comportamento e (ii) às razões (fatos) que exercem uma supremacia de importância sobre às primeiras razões, fazendo o indivíduo preferir agir de uma maneira determinada ao invés de outra. Ao cenário apresentado em (i) Raz dá o nome de razões de primeira ordem. Ao cenário apresentado em (ii) Raz chama de razões de segunda ordem. E à consequência da deliberação das razões de segunda ordem sobre às razões de primeira ordem (fazendo as pessoas preferirem uma ao invés da outra) Raz dá o nome de preempção. É como se sua teoria do Direito fosse o trajeto entre o fato e a 13 Raz, Joseph (1999). Practical Reason and Norms. Oxford University Press, NY. 18.
juridicidade, que só se torna possível por intermédio do serviço que a autoridade exerce sobre as pessoas que decidem criar âmbitos normativos jurídicos e não apenas não-‐jurídicos para regularem a sua conduta.
Temos até agora duas definições bastante importantes. Razões de primeira
ordem são razões para ação. Já as razões de segunda ordem não são apenas razões para ação, mas razões para agir sobre razões. Nas razões de primeira ordem há ênfase na razão para tomar uma ação. Nas razões de segunda ordem, a ênfase não está na ação, mas na deliberação pela razão para agir não pelo mero fato de agir, mas agir pelo resultado da deliberação das razões. As razões de segunda ordem exercem um poder preemptivo de fazer o indivíduo escolher agir de uma determinada maneira diferente da maneira que pretendia agir. Mas isso não ocorre por imposição. O indivíduo exclui a razão para ação (a de primeira ordem) devido a uma deliberação de sua razão como um indivíduo autônomo. Não o faz com medo de um castigo ou de uma reprovabilidade social. Para Raz, esse é o caráter da autoridade: nesse processo deliberativo de razões do indivíduo autônomo, a autoridade entra no jogo de razões oferecendo um serviço, levando em consideração os dois lados de razões que já se aplicam ao indivíduo, e criando-‐lhe diretivos que o auxiliem a conformar com a autoridade.
O resultado desse processo de razões são os diretivos que servem aos
indivíduos. É aqui que entra o Direito: é da função do Direito que ele seja quem ofereça esses diretivos aos jurisdicionados, servindo e auxiliando-‐os. Trata-‐se do desenvolvimento de um âmbito normativo embasado na razão. Os diretivos jurídicos são de segunda ordem: eles preponderam sobre as razões (de primeira ordem) que inicialmente se aplicavam aos jurisdicionados, fazendo-‐os preferir as de segunda ordem, ao invés das de primeira, em um processo de preempção. Normas portanto são razões para ações e para agir em razões. Podem vir como normas de razões de primeira ordem (chamarei de normas de primeira ordem) e como normas de razões para deliberar em razão agindo em razões (chamarei de normas de segunda ordem).
A Concepção de Autoridade Como Serviço se constitui de três teses:
I.
A Tese da Dependência: “todo diretivo autoritativo deve ser baseado em razões que já se aplicam independentemente aos sujeitos dos diretivos e são relevantes para a sua ação na circunstância acobertada pelo diretivo14”.
II.
A Tese da Preempção: “o fato de uma autoridade requerer uma ação é uma razão para agir, que não deve ser adicionada às outras razões relevantes na deliberação pelo o que fazer, mas as deve excluir e tomar o lugar delas”. 15
III.
A Tese da Justificação Normal: “o caminho normal para dizer que uma pessoa tem autoridade sobre outra envolve mostrar que o referido sujeito está em melhor situação caso se conforme com as razões que se lhe aplicam (além das do referido diretivo autoritativo) se a pessoa aceitar o diretivo autoritativo como autoritativamente vinculativo e tentar segui-‐lo, ao invés de tentar seguir as razões de primeira ordem que já se lhe aplicavam16”.
Raz acredita que esse conceito resolve grandes problemas jurídicos, em
especial: a) a descrição da natureza do Direito; b) a separação entre o Direito e outros âmbitos normativos; c) a explicação das normas jurídicas; d) a necessidade de um método valorativamente neutro quanto ao critério de validação da juridicidade do Direito; e) a possibilidade de uma relação entre autoridade, racionabilidade e autonomia. A natureza do Direito está no fato que, diferentemente de outros âmbitos normativos, o Direito tem como característica essencial a autoridade. Quando em conflito de razões de primeira ordem, o Direito serve aos jurisdicionados, servindo-‐lhes com diretivos que os auxiliem a resolver o balanceamento de razões e a agirem de determinada maneira (normatividade). 14 A Autoridade do Direito. Raz, Joseph. 15 A Autoridade do Direito. Raz, Joseph. 16 A Autoridade do Direito. Raz, Joseph.
O CONFLITO CONCEITUAL
De fato há um problema. E esse problema é o tal paradoxo da autoridade.
Começa-‐se com a incompatibilidade conceitual entre autoridade e autonomia. Por autoridade entende-‐se o direito de governar sobre alguém. Por autonomia entende-‐ se o dever de não ser governado por ninguém. Esse paradoxo desdobra-‐se em mais um problema: a questão da racionalidade. Quem se submete a uma autoridade, além de perder a sua autonomia, perde também a sua faculdade de racionalidade como deliberação em razão sobre seu próprio comportamento. A existência desse problema, no entanto, só se sustenta se tomarmos as definições de autoridade e de autonomia expostas por Wolff como verdadeiras. No momento em que mexemos nas definições que Wolff fornece, o tal paradoxo de autoridade desaparece. No entanto, não é possível substituir os conceitos wolfianos de autoridade e de autonomia sem antes dizer o que há de errado com eles. Para nós, há três grandes problemas com a concepção de Wolff: (i) é uma descrição etimológica, logo redutora; (ii) é uma descrição contraditória; (iii) é uma descrição cética e pessimista.
O problema com os conceitos de Wolff é que eles não são muito diferentes do
problema redutor do conceito de autoridade no imperativismo. Todo o problema por trás do conflito entre a autoridade e a autonomia está no fato que os conceitos de Wolff são essencialmente equivocados. O primeiro erro com a concepção de autonomia em Wolff é o fato de ele utilizar uma conceituação etimológica para autonomia. Mas daí alguém diria: “mas esse é o significado original da palavra, ou seja, auto é a palavra grega para próprio e nomos é a palavra grega para lei. Logo, ser autônomo é autorregular-‐se”. Sim, essa é a origem etimológica de autonomia, mas não é o conceito filosófico de autonomia. Um argumento filosófico plausível que pretende servir a uma sociedade plural e moderna, especialmente quanto ao Direito, instituto de grande impacto diário na vida das pessoas, não pode se fundamentar em uma mera ida à etimologia da palavra. O mesmo problema ocorre, por exemplo, com o vocábulo política. Para os gregos política deriva-‐se da palavra para cidade (polis), opondo-‐se ao conceito de idiotia. Não que não seja um conceito válido, o problema é
que se trata de um conceito simplista e redutor. Dizer nas sociedades complexas do século XXI que “política é importar-‐se pelos muitos” não significa muito coisa. Da mesma forma, dizer que autonomia é autorregular-‐se e que ninguém que se submeta à autoridade de uma norma pode ser autônomo não quer dizer muito coisa.
Um outro problema com Wolff é que ele tem uma perspectiva cética e
pessimista com respeito a autoridade. Por o livro ter uma perspectiva anarquista, há uma suspeita no ar com relação a autoridade e com o fato de um indivíduo se submeter a uma delas. Afinal, qual é o problema com uma autoridade? Na concepção de Raz essa suspeita não existe. Parte-‐se de um pressuposto bom: uma autoridade existe para servir os jurisdicionados. Mais que isso: Raz acredita que o indivíduo estará em melhor posição e terá melhor resultados caso submeta a sua razão de primeira ordem à preempção e à preponderância das razões de segunda ordem que o Direito tem a lhe oferecer. A perspectiva anarquista não é plausível para uma sociedade moderna porque, nela, os homens produzem bens imateriais como o Estado e o Direito. Desenvolver uma teoria desclassificando duas invenções importantes da mente humana (o Estado e o Direito) a partir de significados etimológicos, julgando que os indivíduos perdem a sua autonomia, não soa racional. O problema da falta de racionalidade está na perspectiva redutora que o anarquismo propõe a respeito da autoridade. É preciso partir de uma perspectiva deontológica: o Direito existe; ele está presente na sociedade; ele foi criado pelos homens; é uma característica essencial de sua existência que ele reivindique autoridade.
Outro problema que solta a nossos olhos ao ler Wolff é o fato de ele dizer que
é possível que um indivíduo obedeça as leis sem se submeter a sua autoridade. Para ele, desde que o indivíduo aja a partir de sua racionalidade e não por submissão à legitimidade moral da autoridade, é absolutamente tranquilo para o anarquismo que ele seja obediente ao Direito. Ora, como fica toda a ênfase etimológica de autonomia? Toda a concepção wolfiana de autonomia só se sustenta debaixo do pressuposto que autoridade é o direito de governar e que autonomia é a recusa de ser governado. O argumento que, caso aja por sua própria deliberação, poderia obedecer ao Direito, não procede porque nesse processo de racionalidade o serviço
prestado pela autoridade do Direito está presente. Logo, é claro que se trata de um defeito sério do ataque de Wolff à autoridade, e sua concepção deve ser rejeitada.
Raz não deixou o conflito conceitual entre a autoridade e a autonomia fora de
sua abordagem. Em sua obra da década de 1980, A Moralidade da Liberdade, que, apesar de ser uma obra de teoria política, tem uma ênfase forte no Direito, Raz dedica todo o capítulo 14 e 15 ao assunto da autonomia. Nessa obra, Raz traz uma concepção de autonomia substancialmente mais plausível a nos servir do que a de Wolff. Raz parte da ideia de autocriação e não de autogoverno. Ou nas palavras do próprio Raz: “Autonomia é um ideal de autocriação ou de autoria própria; consiste no sucesso da busca, de bom grado, de engajadas e valorosas opções, onde as atividades do agente não estão dominadas por preocupações de mera sobrevivência. Autonomia, em seu sentido primário, é para ser entendida como o próprio viver de uma vida autônoma; a autonomia, em seu sentido secundário, é para ser entendida como a capacidade de viver autonomamente. Para ser autônomos, os indivíduos devem atingir três condições: eles devem possuir uma certa capacidade mental; eles devem ter uma série de opções valorativas; e eles precisam gozar da independência da coerção e da manipulação17”.
Na concepção raziana de autonomia, a subordinação a uma norma não é o
fator essencial. A autonomia tem um conteúdo muito mais moral que político ou jurídico. A autonomia é um ato de autocriação. É o indivíduo, deliberando em racionalidade, construindo a si mesmo. Penso que essa concepção é, como ocorre com a concepção raziana de autoridade, muito mais sofisticada que a concepção etimológica e redutora de Wolff. Penso, também, que, portanto, há um casamento perfeito entre a sofisticação do conceito raziano de autonomia com o conceito raziano de autoridade, desprezando totalmente as concepções wolfianas. O epicentro do encontro dos dois conceitos é a racionalidade. Na autoridade o indivíduo delibera em suas razões de primeira ordem diante das razões de segunda ordem que o Direito oferece. Reconhece que a autoridade lhe está prestando um serviço, auxiliando-‐o em sua normatividade, e que terá melhores resultados e que 17 A Moralidade da Liberdade. Raz, Joseph.
ficará em melhor situação caso se submeta. Entra, então, o desejo do indivíduo de ser autônomo, leia-‐se, autoconstruir-‐se. Logo, percebe o indivíduo que, nesse processo deliberativo e racional, a autoridade lhe é muito útil na sua busca por autonomia.
Creio que, ao dizer o que há de errado com as concepções de Wolff, e
substitui-‐las pelas as de Raz, consegue-‐se resolver (i) o problema da autonomia perante a autoridade, vendo-‐se que se submeter a uma autoridade não pressupõe a perda da autonomia, haja visto que autonomia não é a recusa nenhuma de ser governado; (ii) o problema da racionalidade e da autoridade, haja visto que, em Raz, todo o conceito de autoridade está diretamente ligado à racionalidade, e não a uma ligação necessária entre quem governa e quem é governado. E mais: é inconcebível, em Raz, qualquer concepção de autoridade que não envolva a ideia de razões. A ideia de razões, por sua vez, está diretamente ligada à ideia de racionalidade, e, chegando-‐se à racionalidade, prova-‐se que o suposto problema entre a racionalidade e autoridade é apenas um conflito conceitual.
Volta-‐se, nesse momento, à prioridade que Raz dá a um conceito. Viu-‐se,
neste ensaio, o quanto um conceito (ou um conceito equivocado) pode dá ensejo para a desclassificação de todo um instituo social como o Direito. No entanto, a partir de uma perspectiva deontológica, partindo-‐se de uma premissa que o Direito é importante e essencial para a organização de uma sociedade plural e complexa, lançando mão de conceitos sofisticados o suficiente para atender as necessidades de uma sociedade complexa, chega-‐se a um ponto em que é possível preservar o Direito a partir da autoridade, sem causar nenhum dano a uma característica essencial do indivíduo moderno, a saber, a autonomia. Afasta-‐se, assim, qualquer perspectiva cética e pessimista quanto ao Direito. O ceticismo e o pessimismo, por sua vez, não podem ser sustentados diante de um Direito moderno, essencialmente autoritativo, que serve aos seus jurisdicionados e à sua sociedade jurisdicionada.
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