O patrimônio cultural e a tutela jurídica das identidades

August 2, 2017 | Autor: Wilson Rocha | Categoria: Direito Ambiental, Patrimonio Cultural, Identidades
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O PATRIMÔNIO CULTURAL E A TUTELA JURÍDICA DAS IDENTIDADES Wilson Rocha Assis

Talvez todos nós sejamos nos tempos modernos [...] o que o filósofo Heidegger chamou de unheimlicheit – literalmente, ‘não estamos em casa’. Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de nossos começos e ‘autenticidade’, pois há sempre algo no meio. Não podemos retornar a uma unidade passada, pois só podemos conhecer o passado, [...] quando este é trazido para dentro da linguagem e de lá embarcamos numa (interminável) viagem. Diante da ‘floresta de signos’, nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias [...]”. (HALL, 1997, p. 27-28)

1. INTRODUÇÃO:

O presente trabalho pretende analisar a tutela jurídica do patrimônio cultural como aspecto da tutela jurídica das identidades culturais. Objetiva-se, assim, com a ajuda de outros ramos do conhecimento humano – em especial a história, a sociologia e a antropologia – compreender melhor os aspectos teóricos que envolvem o embate jurídico em prol da promoção do patrimônio cultural, de forma a compreender a defesa dos bens culturais como tutela do ser humano digno, envolto em profundos dilemas identitários, em razão de sua inscrição nos limiares da pósmodernidade. A adequada promoção do patrimônio cultural reveste-se também de relevância coletiva, na medida em que contribui para a compreensão mais ampla e plural da comunidade nacional.

2. O DIREITO NA PÓS-MODERNIDADE:

O direito ocidental contemporâneo estruturou-se a partir da derrocada do mundo feudal europeu. Na metade do século XVIII, movimentos intelectuais lançaram os fundamentos filosóficos para o advento de uma nova ordem social. 1

Gradativamente, a ascendente classe burguesa firmou os postulados fundamentais que asseguraram o seu progresso político, econômico e cultural. Sob as ruínas do feudalismo europeu, sustentada pelos nascentes estados nacionais, desenvolveu-se a crença na capacidade transformadora da razão humana, afirmando-se a centralidade do homem no processo histórico e de produção do conhecimento. Já no século XIX, o mundo ocidental concebeu o poder transformador das ciências aplicadas, que permitiram a ampliação dos meios de produção de bens e energia, conduzindo a humanidade a um patamar até então desconhecido de domínio da natureza. As ciências humanas, em especial o direito, importaram não apenas o roteiro metodológico das ciências naturais, mas também a crença na universalidade e objetividade do conhecimento e na neutralidade do sujeito conhecedor em face do objeto de seu estudo. Os modelos de conhecimento desenvolvidos no ocidente ganharam o estatuto de universal e o sujeito masculino-cristão-ocidental assumiu a forma do “homem universal”, com direito a colonizar seres e culturas exportando paradigmas de racionalidade e anseios – antes inexistentes nos povos colonizados – de progresso técnico e desenvolvimento capitalista. No âmbito da ciência jurídica e a partir desse contexto específico, desenvolveu-se primeiramente o jusnaturalismo, no esteio das revoluções burguesas que sacudiram o mundo no século XVIII. Contra a ordem absolutista bradava-se a bandeira dos direitos naturais, limitadores do poder do príncipe e garante das liberdades individuais almejadas pela burguesia. A onda jusnaturalista alcançou seu apogeu com as codificações que se seguiram às Revoluções Burguesas que assinalaram o fim da Idade Moderna, a começar pelo Código Civil Napoleônico de 1804. A técnica da codificação permitiu a institucionalização dos chamados direitos naturais, que, nesse momento, desciam da esfera filosóficoaxiológica para ganhar, progressivamente, os trâmites concretos da normatividade jurídica. Os devaneios cientificistas do século XIX, por sua vez, conduziram ao nascimento do juspositivismo, quando o direito passou a ser concebido como um conjunto coerente e completo de leis positivadas, imunizado das ingerências de outros ramos do conhecimento. O direito ganhava o aspecto de ciência autônoma, 2

dotada de método e princípios próprios, conforme preconizado por Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito. Todavia, as insuficiências desses modelos logo se revelaram. A emergência do proletariado e novos aportes teóricos tiveram um efeito intrusivo sobre o modelo de homem e de conhecimento concebidos na modernidade. O juspositivismo conheceu sua derrocada com a queda dos regimes nazi-fascistas ao final da 2ª Guerra Mundial e o pós-positivismo desenvolve-se como concepção alternativa da ciência jurídica. O pós-positivismo emerge, contudo, em meio a um quadro teórico adverso para o conjunto das ciências. O advento da bomba atômica e a possibilidade concreta do holocausto nuclear destruíram as últimas pretensões de emancipação humana pela racionalidade cientificista. O dilema ético passa a assombrar as ciências da natureza e uma nova onda de rebeliões pelo mundo aponta para a falência da tradicional sociedade ocidental, em meados dos anos 1960. No correr da Guerra Fria, vozes dissonantes aparecem no cenário dos discursos epistemológicos, completando o quadro a que chamamos pósmodernidade ou modernidade tardia. A começar pelo marxismo, uma corrente de pensamento crítico passou a desafiar diversos postulados da ciência e do direito modernos. O materialismo histórico marxista iniciou um caminho irreversível ao afirmar a historicidade radical das sociedades humanas. Longe de determinar as amplas estruturas da sociedade, a consciência humana é produto da ordenação das estruturas produtivas. A estrutura de classes da sociedade passa a ser o ponto de partida para a crítica do conhecimento humano e grande parte da produção científica dos séculos anteriores ganha o rótulo negativo de ideologia: “formas de conhecimento ilusório que levam ao mascaramento dos conflitos sociais" (ARANHA, 2002, p. 61). A crítica marxista fez com que se desnaturassem, simultaneamente, dois dos atributos mais caros ao direito jusnaturalista e juspositivista: os mitos da universalidade e da neutralidade. Não bastasse, na virada do século XIX para o século XX os estudos da psicanálise, desenvolvida por Freud, levam à ruptura do próprio "eu", sujeito do conhecimento. O indivíduo perde sua unidade orgânica em face do descobrimento de um "inconsciente" inerente à subjetividade humana. "A teoria freudiana [...] do 3

inconsciente, que funciona de acordo com uma ‘lógica’ bastante diferente daquela da razão, causou estragos ao conceito do sujeito conhecedor e racional, com uma identidade unificada e fixa – o sujeito do ‘penso, logo existo’ cartesiano" (HALL, 1997, p. 38). No correr dos anos 60, uma nova vaga revolucionária ganha o mundo, aprofundando a crítica da sociedade branca, masculina, cristã e ocidental. A emergência da política das minorias trouxe a fragmentação dos discursos e impôs o reconhecimento de múltiplos pontos de vista e múltiplos sistemas epistemológicos. O movimento feminista, as revoluções estudantis, a contracultura, a luta pelos direitos civis e os movimentos revolucionários no terceiro mundo apresentaram novos sujeitos sociais, que fizeram do estigma da exclusão o emblema para sua afirmação identitária1. O feminismo destacou-se como movimento social e como crítica teórica (HALL, 1997, p. 47), ao politizar temas até então confinados à esfera privada. As feministas apresentaram como slogan o lema "o pessoal é político" e desafiaram a noção de que "homens e mulheres eram parte da mesma identidade – Humanidade – substituindo-a pela questão da diferença sexual" (HALL, 1997, p. 50). O feminismo e a introdução das minorias como agentes políticos e construtores de uma epistemologia própria complexificaram o fluxo dos discursos e a multiplicidade de referenciais agravou o quadro de fragmentação definidor da pósmodernidade. Dessa forma, ao reconhecer valor e validade a discursos epistemológicos alternativos, o feminismo reforçou as teorias críticas do direito, que se referem ao direito como mera instância de poder, desqualificando a suposta validade universal e a abrangência de interesses contidos no pacto jurídico-social.

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Sobre o tema, profundamente instigante, BOURDIEU (2004, p. 125-127): “A revolução simbólica contra a dominação simbólica [...] tem em jogo não, como se diz, a conquista ou reconquista de uma identidade, mas a reapropriação coletiva desse poder sobre os princípios de construção e de avaliação da sua própria identidade de que o dominado abdica em proveito do dominante enquanto aceita ser negado ou negar-se [...] para se fazer reconhecer. [...] O estigma produz a revolta contra o estigma, que começa pela reivindicação pública do estigma, constituído assim em emblema – segundo o paradigma ‘black is beatiful’ – e que termina na institucionalização do grupo produzido (mais ou menos totalmente) pelos efeitos econômicos e sociais da estigmatização. [...] Abolir o estigma realmente [...] implicaria que se destruíssem os próprios fundamentos do jogo que, ao produzir o estigma, gera a procura de uma reabilitação baseada na auto-afirmação exclusiva que está na própria origem do estigma [...].”

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A pluralidade de vozes que emerge do contexto pós-moderno fez surgir uma nova corrente epistemológica, que desloca a análise dos fundamentos de validade de um enunciado para a análise da linguagem. Sujeito e objeto perdem momentaneamente as luzes do palco, que se concentram, agora, sobre a relação dialógica sobre a qual se processa a produção do saber. Desenvolve-se a linguística. A

normatização

da

vida

social

impõe-se

como

uma

tarefa

interssubjetiva de diálogo e construção comunicativa. A democracia nunca foi tão necessária à legitimição do direito, em razão da ausência de essências transcendentes capazes de legitimar o exercício do poder e da jurisdição. O diálogo se opera não apenas entre os presentes, entre os filhos da presente geração. Um diálogo fundamentado demanda sua contextualização na história, de modo a construir-se também como diálogo intertemporal, ou intergeracional, para uma linguagem mais adequada ao direito ambiental.

3. O DIREITO E O PATRIMÔNIO CULTURAL:

Todavia, o diálogo com o passado demanda a sua preservação qualificada, traduzida na compreensão da necessidade de manutenção de seus registros como atestado de nascimento do mundo presente, ganhando cada vez mais relevância as questões relativas à proteção e promoção do patrimônio cultural. Cuidou HABERMAS, entre outros teóricos, de introduzir o direito nessa nova fase das ciências humanas. Afirma ele em sua obra Direito e Democracia (1997) que "qualquer pretensão de verdade leva falantes e ouvintes a transcenderem os padrões provincianos de qualquer coletividade, de qualquer prática de entendimento localizada aqui e agora". No campo de estudos afeto ao patrimônio cultural interessa reconhecer a necessidade humana de estabelecer um perene diálogo com o passado, o que se pode chamar efetivamente de consciência histórica. Seguindo os ensinamentos de GADAMER, “entendemos por consciência histórica o privilégio do homem moderno 5

de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião”. Assim, nesse contexto a que se denomina pós-modernidade, o direito sofreu transformações profundas, sendo a primeira delas o reconhecimento, em certo grau, de sistemas diversos de moralidade e normatividade. Portanto, sem abrir mão de um sistema hegemônico de normas jurídicas positivadas, que tutela a ordem social tradicional, de caráter cristão, capitalista e fundada em estados nacionais, o direito

pós-moderno

considerados

tem

hegemônicos.

reconhecido Primeiro,

padrões

culturais

reconhecem-se

as

diferentes

destes

possibilidades

de

manifestação individual desses sistemas culturais e, em um segundo momento, passa-se a tolerar e, quiçá, estimular manifestações públicas de diferença e diversidade. As políticas públicas de cultura passam a contemplar uma diversidade de manifestações identitárias, criando-se mecanismos para proteção e promoção da diversidade cultural. Evidentemente, trata-se de um processo conflituoso, sujeito a avanços e retrocessos, mas que pode ser identificado de forma clara no desenvolvimento da legislação brasileira que tutela o patrimônio cultural. Os marcos fundamentais dessa tendência são a Constituição de 1988, com as importantes modificações trazidas pelas Emendas Constitucionais n. 42/2003 e 48/2005, que alteraram os artigos 215 e 216 do texto constitucional. As modificações introduzidas pela Carta Constitucional de 1988, que alterou substancialmente o conceito de patrimônio cultural são reflexo das transformações pelas quais vem passando o direito na pós-modernidade. A necessidade do diálogo como instrumento de legitimação da instância jurídica fez com que a ordem constitucional reconhecesse o caráter plural, multifário da sociedade humana. Pode-se concluir que um dos atributos mais destacados do direito pós-moderno é o reconhecimento e a proteção das identidades, o que é, em última instância, fruto do processo histórico de fragmentação dos discursos característico da pós-modernidade.

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4. O DIREITO E AS IDENTIDADES CULTURAIS:

As transformações sociais e filosóficas sucintamente narradas acima, que se traduziram também em embates jurídicos, permitem a construção da seguinte premissa: os direitos antes reivindicados sob a ótica da igualdade, hoje se expressam como afirmação da diferença e do direito de expressão cultural. Efetivamente, o que se designava no contexto da modernidade como direito à igualdade, expressa-se contemporaneamente como direito à diferença. A novidade trazida nesse contexto não é o advento de um pluralismo ontológico. Ora, a diversidade sempre existiu, o diferente situou-se, sempre, mais os menos no mesmo lugar da histórica e da sociedade brasileiras: nas fímbrias do sistema social. A novidade do direito pós-moderno é traduzir essa diversidade ontológica em um pluralismo discursivo, no qual os atores tradicionais de fala passam a reconhecer os discursos culturais diferentes, reconhecendo-lhes legitimidade e proteção jurídica. Teses como a de que a interpretação legítima do texto constitucional demanda a existência de uma sociedade aberta de intérpretes da constituição2, defendida por HABERLE, consolida o entendimento acima exposto, reconhecendose o diálogo dos diferentes como o único fundamento de legitimidade da democracia e da ordem constitucional. Cresce a importância de instrumentos como a perícia antropológica, sendo o Direito obrigado a reconhecer o discurso antropológico como meio de afirmação e reconhecimento jurídico de direitos socioculturais3. Vê-se, pois, que as afirmações identitárias – ou o reconhecimento das diferenças – passam a ser levadas aos Tribunais como fundamento para a reivindicação de direitos. 2

“A Constituição, segundo Haberle, não seria uma norma simples e acabada, mas sim, um processo público do qual devem participar todos aqueles que fazem a realidade na qual ela está imersa. Dessa forma, a ampliação do círculo de intérpretes consistiria em uma consequência da necessidade de integração da realidade no processo de interpretação. É uma teoria adequada à sociedade pluralista e aberta dos tempos modernos, a qual é formada por diversos grupos que possuem importância político-social, devendo, deste modo, todos participarem da construção do edifício constitucional.” (AMARAL, 2004, p.22). 3 Sobre o tema, Parecer Técnico n. 11/2010, de 25 de fevereiro de 2010, de autoria da Analista Pericial em Antropologia Elaine Amorim, da 6a. Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal.

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4.1. AS IDENTIDADES CULTURAIS NO CONTEXTO DAS CIÊNCIAS HUMANAS:

Ao profissional do direito passa a ser necessário compreender o fenômeno complexo das identidades, razão pela qual nos debruçamos rapidamente sobre o tema. Para BOURDIEU, é imprescindível submeter os instrumentos teóricos das ciências humanas a uma “crítica epistemológica alicerçada na história social de sua gênese e da sua utilização”. Isso implica “tomar para objeto os instrumentos de construção do objeto”, ou seja, estudar a realidade não como um fato dado, mas como um objeto construído no próprio processo de conhecimento. Tal procedimento é necessário na medida em que se reconhece que o objeto de estudos das ciências humanas é, na verdade, as representações que o homem constrói de si mesmo, de seus semelhantes/dessemelhantes e do mundo que o cerca. Tal método permite reinserir na história as próprias categorias mentais com as quais os homens/mulheres pensam o mundo. O pensamento passa a ser dotado de historicidade e suas manifestações só podem ser compreendidas na dinâmica própria da história, na correlação de forças entre os vários agentes sociais/ culturais. Nas ciências humanas, o estudo das identidades insere-se dentro desses paradigmas. Ao contrário das concepções tradicionais acerca do fenômeno das identidades – que concebe as identidades como dados definitivos, construtos acabados, imutáveis – considera-se hoje que elas não constituem essenciais imutáveis, ou um conjunto estável de características e valores que ordenam a vida em sociedade. Segundo GIORGIS, “la relación entre el hombre y su identidade depende, así, de um proceso dialéctico de construcción” (1993, p. 04). Ao falar em identidade, estamos nos referindo, em verdade, a complexos processos de identificação-diferenciação, que definem e redefinem os sujeitos históricos em face de suas práticas cotidianas, mas, também, em relação aos elementos estranhos à sua cultura (GIORGIS, 1993, p. 05).

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Deve-se, portanto, afastar qualquer pretensão auto-referencial, abstrata ou essencialista ao trabalhar o fenômeno das identidades. A identidade só pode ser definida social e historicamente, na relação com o outro, seja ele um estranho ou um igual. O desejo de pertencimento, as necessidades políticas e culturais de delimitação e diferenciação fazem com que os sujeitos históricos, individual ou coletivamente, assumam projetos identitários diversos, que camuflam trocas materiais e simbólicas desiguais, capazes de definir papéis e lugares sociais. Segundo WOODWARD, “os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar” (2000, p. 17). Os sistemas de representações, portanto, produzem identidades, que representam, em última instância, respostas possíveis ao dilema existencial que permeia a vida humana. Segundo a mesma autora, “os sistemas simbólicos fornecem novas formas de se dar sentido à experiência das divisões e desigualdades sociais e aos meios pelos quais alguns grupos são excluídos e estigmatizados” (2000, p. 19). As relações de poder permeiam, portanto, a gênese e a transformação perene das identidades. Se os lugares sociais não são estáveis e se as relações de poder não são estáticas, as identidades também não podem sê-lo. A concepção mais adequada de identidade social é aquela “que a vê como uma questão tanto de ‘tornar-se’ quanto de ‘ser’. Isso não significa negar que a identidade tenha um passado, mas reconhecer que, ao reivindicá-la, nós a reconstruímos e que, além disso, o passado sofre uma constante transformação” (WOODWARD, 2000, p. 28). Em outras palavras, ao ver a identidade como uma questão de tornar-se, percebemos que aqueles que a reivindicam “não se limitariam a ser posicionados pela identidade: eles seriam capazes de posicionar-se a si próprios e de reconstruir e transformar as identidades históricas, herdadas de um suposto passado comum” (idem, p. 28). As exclusões sociais operam tanto no nível material quanto no nível simbólico. Os sistemas de produção produzem e reproduzem mecanismos de inclusão e exclusão, partilhando distintamente os bens, distribuindo desigualmente as riquezas socialmente produzidas. Da mesma forma, essas distinções/diferenças são assimiladas e reproduzidas pelos sistemas simbólicos de representação 9

O plano mais imediato em que podemos perceber a relação recíproca entre a produção de símbolos e a produção de riquezas materiais é a esfera política. Na política, as diferenças devem ser, ao mesmo tempo, reconhecidas e negociadas, no momento em que se busca a legitimação mínima das instituições. A cultura e a política tornam-se o campo possível do diálogo, por constituir-se na forma de um sistema partilhado de significação (WOODWARD, 2000, p. 41), capaz de ordenar o mundo sensível e as relações sociais. A identidade, em suas várias formas (de gênero, étnica, nacional, regional), surge no momento em que se negociam os lugares de fala, em um contexto anterior ao embate propriamente político-partidário. A identidade emerge no instante em que os agentes sociais estão se definindo, assumindo projetos de inclusão/exclusão, explicitando seus lugares na história, construindo entre os iguais uma visão homogênea do passado e do futuro. Segundo BOUDIEU (2004, p. 112), “as propriedades (objectivamente) simbólicas, mesmo as mais negativas, podem ser utilizadas estrategicamente em função dos interesses materiais e também simbólicos do seu portador”. O autor fala em uma “luta de representações”, ou em “lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social” (2004, p. 113). As identidades não são essenciais imutáveis, na medida em que registram um “estado da luta das classificações”. Nessa medida, as identidades sofrem transformações no tempo, na medida em que se modificam as relações de poder e avançam as estruturas produtivas. A delimitação das fronteiras simbólicas é resultado das lutas concretas dos grupos sociais. Os atores históricos que assumem um discurso identitário, ou seja, um discurso de identificação, caracterização, definição, exclusão e inclusão de indivíduos ou grupos sociais, realiza um ato performativo, pelo qual pretende tornar real aquilo que é enunciado. A eficácia do discurso performativo, entendida como a capacidade de tornar real o que se enuncia, é proporcional à autoridade do sujeito que enuncia. Essa autoridade deve ser capaz de impor ao grupo não somente a percepção de

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sua unidade, de sua identidade interna e de sua diferenciação ao que lhe é externo, mas também as categorias de percepção do mundo, capazes de homogeneizar o discurso, delimitando seus horizontes, suas possibilidades, suas limitações. Essa percepção idêntica do mundo, pensado a partir das mesmas categorias, é que fundamenta, em um nível mais interno, a própria identidade do grupo. Os sujeitos investem em posições de identidade como resultado da necessidade de assumir lugares de fala. WOODWARD, sustenta que “os sujeitos são assim sujeitados ao discurso e devem, eles próprios, assumi-los como indivíduos que, dessa forma, se posicionam a si próprios. As posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades” (2000, p. 55). Do ponto de vista subjetivo a questão é bastante relevante, umas vez que “é o valor da pessoa enquanto reduzida socialmente à sua identidade social que está em jogo”. (BOURDIEU, 2004, p. 124) HALL sustenta que “as identidades são construídas no interior das relações de poder. Toda identidade é fundada sobre uma exclusão e, nesse sentido, é um efeito do poder” (2003, p. 85). A afirmação de HALL reivindica a mesma concepção de identidade sustentada acima, entendida como um vir-a-ser, um esforço de mobilização e embate político-histórico, que afasta qualquer concepção essencialista ou ontológica do fenômeno identitário. A própria cultura, da qual a identidade é um aspecto, tem suas concepções tradicionais superadas, para expressar uma realidade entendida como constante transformação, mudança, dinamicidade, flexibilidade.

O hibridismo cultural das sociedades da modernidade tardia – decorrente da afirmação da legitimidade das diferenças culturais – torna a compreensão do multiculturalismo como uma categoria central do discurso jurídicopolítico. As identidades são construtos inacabados, cambiantes, em transformação perene e incessante, produto de um discurso definidor de fronteiras de inclusão/exclusão social. A esfera política – dentro da qual situamos o Direito – torna-se relevante, por ser um locus privilegiado de negociação e reconhecimento das

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diferenças e legitimação das instituições sociais. Ao pressupor lugares de fala e um universo comum de símbolos e significações, o espaço político-jurídico constitui campo privilegiado de manifestação dos enunciados de identificação/diferenciação que conformam dinamicamente as identidades culturais. Reiteradamente, no contexto histórico a que denominamos pósmodernidade, as reivindicações identitárias servem à afirmação e promoção de direitos sociais, acrescendo relevância jurídica e sociológica às questões afetas ao patrimônio cultural.

4.2. AS IDENTIDADES NO DIREITO:

Segundo OLIVEIRA4, “a identidade cultural é um sistema de representação

das

relações

entre

indivíduos

e

grupos,

que

envolve

o

compartilhamento de patrimônios comuns como a língua, a religião, as artes, o trabalho, os esportes, as festas, entre outros. É um processo dinâmico, de construção continuada, que se alimenta de várias fontes no tempo e no espaço”. Segundo a mesma autora, a identidade apresenta-se, no contexto da globalização, como uma realidade fluida, de caráter relacional, marcada pela impermanência, mutabilidade e mobilidade perenes. A concepção de identidade trazida por todos os autores já citados guarda conformidade com a noção de pós-modernidade rapidamente desenvolvida no segundo tópico deste trabalho. Trata-se, pois, de conceitos que guardam estreita relação, uma vez que o advento da pós-modernidade, ou a aceitação epistemológica da nova compreensão das ciências trazida pelas revoluções da segunda metade do século XX, conduz a uma compreensão específica da questão identitária. As identidades antes definidas e construídas no seio dos estados nacionais modernos abrem-se numa miríade de postulações, apresentando-se como identidades de gênero, etnia, juventude, região. OLIVEIRA menciona no mesmo artigo que passou-

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Dicionário de Direitos Humanos. Escola Superior do Ministério Público da União. Disponível em http://esmpu.gov.br/dicionario/tiki-print.php?page=identidade%20cultural. Acesso em 09 de março de 2010.

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se “da estabilidade e segurança garantidas pelas identidades rígidas, à impermanência, mutabilidade e fluidez da identificação”. O desafio deste ponto é compreender como a ordem constitucional brasileira aborda esse tema crucial da pós-modernidade. Há, no ordenamento jurídico, instrumentos para a compreensão deste novo paradigma identitário? A ordem constitucional vigente alberga as identidades como bens jurídicos, reconhecendo-as como valores edificadores da pessoa humana digna? É possível falar-se em uma tutela de natureza jurídica das identidades culturais? De que forma as concepções acerca da questão identitária interferem na tutela do patrimônio cultural? É assente que a análise do ordenamento júridico deve principiar, necessariamente, pelo texto constitucional, em face de sua fundamentalidade, bem como pela natureza normativa dos princípios nele insculpidos. A análise detida do texto constitucional permite-nos afirmar que a Constituição da República de 1988 intenta promover a manutenção das diferenças culturais, em sua acepção mais positiva, ou seja, valorando positivamente todas as formas de diversidade presentes na sociedade brasileira. É certo que o preceito fundamental que sustenta a tutela jurídica das identidades é aquele presente no artigo 1o, inciso III, da Constituição da República. Ao eleger como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, o texto constitucional institui o direito de cada indivíduo “ser como é”. A livre expressão da subjetividade é essencial à felicidade humana e à edificação de uma ordem social justa. Sob um ponto de vista histórico, o reconhecimento da individualidade, da pessoalidade de cada ser humano, é elemento de emancipação humana, iniciando-se com a filosofia grega, ao revelar à inteligência a subjetividade humana e a noção de indivíduo como elementos distintos das divindades miraculosas; avança pelo edifício jurídico romano para novamente exsurgir das ruínas do mundo feudal, quando a burguesia, em seu processo histórico de afirmação, sustenta a supremacia do indivíduo sobre os estamentos e, em seguida, sobre as ruínas do estado absolutista moderno.

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Todavia, nestes momentos primevos, sustentava-se a emancipação do indivíduo concebido sob um formato específico, definido como masculino, europeu e cristão. As ciências e o direito, como as demais instituições sociais, postulavam um modelo de sociedade e indivíduo que excluía de plena dignidade mulheres, negros, crianças, minorias religiosas, deficientes e outros. Parece-nos que essa vaga emancipacionista que permeia toda a história da humanidade – sujeita a avanços e retrocessos recorrentes – alcança seu ápice na década de 1960, quando um número cada vez maior de agrupamentos sociais, em sua infinidade de identificações e diferenças, passa a sustentar sua dignidade humana plena, reafirmando e construindo, na luta pela igualdade, a afirmação de todas as diferenças. As mulheres politizam as relações pessoais, os negros afirmam a beleza étnica, grupos armados do terceiro mundo iniciam a ruptura dos grilhões imperialistas. Com um inesperado respaldo das ciências exatas, passase a sustentar a relatividade de todos os conceitos e referenciais. Os jovens desprezam solene e organizadamente o “mundo adulto” em rebeliões estudantis pelo mundo. A psicanálise expõe as fendas profundas do eu humano, derrubando a noção coesa de sujeito conhecedor. Fruto do labor intelectual de séculos, a sociologia e a antropologia nacionais passaram a sustentar que a variedade de tipos humanos é um valor característico da sociedade brasileira, decorrente de um processo histórico complexo que viabilizou a manutenção, ainda que precária, de múltiplos tipos culturais. Esse dado foi acolhido pela norma jurídica constitucional de 1988. A muito custo, a sociedade brasileira e contemporânea, ao menos sob um aspecto epistemológico ou conceitual, passou a compreender a cultura como diálogo e respeito com/pelo diverso, assumindo-se, como premissa, a legitimidade de todos os atores de fala. Mulheres, negros, deficientes, jovens, minorias étnicas e religiosas – identidades historicamente subordinadas ao império cristão-masculino-adultoocidental – são compreendidas a partir de suas peculiaridades, admitindo-se como válidos e legítimos as concepções de mundo, pontos de vista e valores que emanam ou decorrem de seu lugar histórico e social. Assim, ao pretender a manutenção da diferença, a conservação dos sinais diacríticos que definem a variedade de tipos humanos formadores da 14

sociedade brasileira, pode-se dizer que a Carta Fundamental de 1988 elegeu as identidades como bens jurídicos dignos da tutela estatal. Em diversos dispositivos constitucionais manifesta-se a preocupação do legislador constituinte com a promoção da diversidade cultural. A começar pelo artigo 216, a Constituição republicana de 1988, ao definir os bens que compõem o patrimônio cultural brasileiro, faz referência expressa aos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Ressalta destacar a manifesta preocupação com a promoção dos bens culturais relacionados à identidade, ação e memória dos grupos historicamente excluídos dos processos estatais de construção social. O exemplo mais eloquente dessa preocupação com a promoção do patrimônio cultural referente aos grupos sociais excluídos foi o tombamento constitucional de todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, feito pelo parágrafo 5o do artigo 216 da Constituição. Igualmente, o parágrafo 1º do artigo 215 do texto fundamental dispõe que o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, acrescentando, em seguida, a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. O inciso V do parágrafo 3o do mesmo artigo 215, ao dispor sobre o Plano Nacional de Cultura, estabelece o desenvolvimento cultural do país através da integração das ações do poder público que visem à valorização da diversidade étnica e regional (inciso incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005). Já o artigo 3o do texto constitucional, que estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dispõe o dever de o Estado brasileiro promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Observe-se,

pois,

que

a

promoção

da

diversidade

implica

primeiramente no afastamento de todas as formas de preconceito, avançando, em seguida, para a adoção de políticas públicas de promoção social através da afirmação das diferenças.

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Os artigos 231 e 232, ainda da Constituição Federal, estabelecem os preceitos fundamentais de proteção das minorias étnicas nacionais, sempre de modo a viabilizar a promoção da diversidade e o diálogo construtivo em torno das identidades que constroem o Brasil. De há muito, o estado constitucional brasileiro abandonou as teses assimilacionistas, para compreender a chamada questão indígena como uma questão de diálogo e respeito pelos povos que não se integraram ao pacto social surgido nos primórdios do colonialismo português5. Os modos de vida, produção e reprodução, as percepções de mundo, os saberes tradicionais de todos e de cada um dos grupos formadores da sociedade brasileira – elementos definidores de suas identidades culturais – é que compõem o patrimônio cultural nacional. Por certo, é este o viés para a adequada compreensão do patrimônio cultural. Como dito, ao expor os bens que compõem o patrimônio cultural, a Constituição faz expressa referência à questão das identidades, ao tratar dos “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Assim, reitere-se, afastou-se a perspectiva assimilacionista presente por muitos anos na sociologia, antropologia e direito brasileiros, exemplificada pela conceituação de patrimônio cultural presente no Decreto-lei n. 25/37, que será debatida a seguir. Naquele contexto, mencionavam-se apenas bens móveis e imóveis relacionados a “fatos memoráveis da história do Brasil”, o que impunha o ocultamento e a invisibilidade dos grupos diferentes daqueles setores sociais hegemônicos, herdeiros do passado colonial português.

5. O PATRIMÔNIO CULTURAL:

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Evidentemente, está-se a debater aqui os marcos constitucionais da matéria, não se olvidando as práticas reiteradas de preconceito, violência e discriminação ainda presentes na conflituosa relação de diversos setores sociais e governamentais com as comunidades indígenas, tal como acontece no estado de Mato Grosso do Sul, estado que concentra atualmente o maior número de litígios envolvendo a afirmação dos direitos sociais e territoriais indígenas.

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O conceito de patrimônio cultural ditado pela doutrina corresponde, em regra, ao texto do artigo 216 da Constituição da República. Dispõe o artigo 216, da carta constitucional:

Artigo 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Sob uma perspectiva temporal, comparando o dispositivo do artigo 216, com o regramento jurídico anterior, dado pelo Decreto-lei n. 25/37, é digno de elogio os avanços do constituinte de 1988, que inovou em boa técnica e avançada compreensão dos fenômenos culturais. De fato, a Constituição de 1988 alterou significativamente o tratamento da matéria, ao afastar termos e concepções de caráter elitista, excludente, oficialesco até então comuns no trato dos fenômenos culturais. Pela Constituição Republicana de 1988, o ordenamento jurídico brasileiro avançou de forma significativa na compreensão da complexidade da história e dos fenômenos culturais. Até o advento da Constituição de 1988, a concepção de patrimônio cultural contemplava apenas os aspectos monumentais, excepcionais e grandiosos da cultura brasileira. Sempre sob uma perspectiva elitista, buscava-se a preservação de registros memoráveis da história do Brasil, inscrevendo nos museus e livros a memória de grupos cultural, econômica e politicamente dominantes. Classes subordinadas do sistema social, inscritas nas margens da história do Brasil, permaneciam privadas da tutela jurídica de suas produções culturais.

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MILARÉ (2007, p. 252), destaca que “a tutela jurídica do patrimônio cultural, iniciada com a Carta de 1934 e aprimorada nas que lhe seguiram, recebeu tratamento acabado e inovador na Constituição de 1988”. Em trecho de excepcional valor, o autor esclarece que a Constituição de 1988 traz a “consagração, diante do direito positivo, do pluralismo cultural, isto é, o reconhecimento de que a cultura brasileira não é única, não se resume ao eixo Rio-São Paulo nem ao Barroco mineiro e nordestino, mas é aquela que resulta na atuação e interação dinâmica de todos os grupos e classes sociais de todas as regiões. [...] Desaparece, enfim, o antigo conceito de que os valores culturais a serem preservados eram apenas aqueles das elites sociais, necessariamente consagrados pelo ato de tombamento, como ocorria no Direito anterior”. Por fim, MILARÉ acrescenta “não se discute mais se o patrimônio cultural constitui-se apenas dos bens de valor excepcional ou também daqueles de valor documental cotidiano; [...] se dele faz parte tão só a arte erudita ou de igual modo a popular; se contém apenas bens produzidos pela mão do homem ou mesmo os naturais; se esses bens naturais envolvem somente aqueles de excepcional valor paisagístico ou, inclusive, ecossistemas; se abrange bens tangíveis ou intangíveis. Todos esses bens estão incluídos no patrimônio cultural brasileiro, desde que portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da nacionalidade ou sociedade brasileiras, nos exatos termos constitucionais”. MIRANDA (2006, p. 51), no mesmo sentido, sustenta que “outro grande avanço que se verifica é o abandono dos conceitos de ‘excepicionalidade’e ‘monumentalidade’ como pressupostos para o reconhecimento de determinado bem como sendo integrante do patrimônio cultural nacional. [...] Busca-se a proteção da diversidade cultural brasileira em todos os seus mais variados aspectos, inclusive dos valores populares, indígenas e afro-brasileiros.”

Avançando na discussão do conceito de patrimônio cultural, vale destacar um equívoco recorrente na abordagem do tema, o qual decorre da atribuição de uma concepção civilista, privatista à palavra patrimônio. De fato, a palavra possui suas origens no direito civil, para o qual patrimônio é o “complexo das 18

relações jurídicas de uma pessoa, apreciáveis economicamente” ou, ainda, “a projeção econômica da personalidade civil” (PEREIRA, 1998, p. 245-247). Por certo, tal acepção não é adequada ao tratamento do Patrimônio Cultural. Entendido como bem ambiental, inscreve-se como bem de natureza difusa, definido constitucionalmente como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, na forma do artigo 225, da Carta Maior. Assim, apesar de comumente representarem expressão econômica de seu titular direto, o seu significado ultrapassa, em muito, sua expressão econômica. Inclusive, é possível vislumbrar situação em que o reconhecimento formal do valor cultural de um bem implique sua depreciação econômica, em razão dos ônus que o imóvel passa a suportar, como na hipótese do tombamento. Assim, torna-se relevante destacar o caráter verdadeiramente imaterial do patrimônio cultural. Embora possua um substrato físico no qual se materializa, o valor do bem cultural excede o seu suporte físico, uma vez que deve ser compreendido como expressão criativa do espírito humano. MIRANDA (2006, p. 57) esclarece que

“nesse ponto torna-se fundamental chamar a atenção para uma

questão de suma importância: o patrimônio cultural, enquanto bem jurídico, não se confunde com o objeto físico que o ostenta. Com efeito, os direitos são sempre bens incorpóreos e a divisão classificatória de bens em materiais e imateriais refere-se aos objetos de tais direitos”. Portanto, fica claro que “o bem jurídico, objeto da proteção, está materializado na coisa, mas não é a coisa em si: é o seu significado simbólico, traduzido pelo valor cultural que ele representa. [...] Importa acentuar que o valor cultural de uma coisa é um bem imaterial – o cultural é uma entidade imaterial, que é inerente a uma ou várias entidades materiais, mas juridicamente distinta destas, no sentido de que elas são o suporte físico, mas não o bem jurídico” (MIRANDA, 2006, p. 58). Sendo bens cujo valor cultural possui titularidade indefinida, difusa, os instrumentos de sua tutela e promoção são aqueles trazidos pelo moderno processo coletivo, em especial a Lei n. 7.347/85, que expressamente menciona os bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico como objeto de sua incidência tutelar. 19

6. A DEFESA DO PATRIMÔNIO CULTURAL COMO TUTELA JURÍDICA DAS IDENTIDADES:

Acerta a doutrina ao fazer a constatação dos avanços assinalados pela Constituição de 1988. Todavia, vale ressaltar que o artigo 216 do texto constitucional não traz um conceito de patrimônio cultural, eis que principia afirmando que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens que delimita e exemplifica. Portanto, o artigo 216 é decorrência de um conceito anterior de patrimônio cultural, mas não é, em si, conceito legal do instituto que se pretende discutir. Entendemos que patrimônio cultural é a cultura em seu estado ativo, criativo, construtor de identidades e significado. É, pois, o aspecto mais substancial do complexo de atividades humanas que conforma a cultura geral, entendida esta como todas as manifestações do espírito humano que alcançam uma expressão coletiva. Decorrente desse conceito é a compreensão de que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. MACHADO (2007, p. 918) ensina que o “patrimônio cultural representa o trabalho, a criatividade, a espiritualidade e as crenças, o cotidiano e o extraordinário de gerações anteriores, diante do qual a geração presente terá que emitir um juízo de valor, dizendo o que quererá conservar, modificar ou até demolir. Esse patrimônio é recebido sem mérito da geração que o recebe, mas não continuará a existir sem seu apoio”. Esse caráter transcendente do patrimônio cultural é um dado relevante. Por isso se disse que o patrimônio cultural é o aspecto mais substancial e significativo da cultura geral, uma vez que só ingressam nessa categoria as manifestações humanas cuja expressão sejam capazes de construir um significado que transcende o tempo e o espaço nos quais se dá a sua enunciação. Trata-se,

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pois, de manifestações culturais que constroem um caminho coletivo de identificação e diálogo, tornando-se significativas para a sociedade na qual ela surge. MIRANDA (2006, p. 59) sustenta a mesma tese, ao expor que “o que caracteriza o bem imaterial é a relevância que possui a manifestação do espírito humano em relação ao suporte físico que lhe dê consistência”. Outro aspecto digno de nota é o caráter fluido, dinâmico que possui o patrimônio cultural, na linha do que se sustentou em relação aos fenômenos identitários. Compreendendo o patrimônio cultural como a cultura em seu estado ativo, a palavra preservação, comumente associada ao patrimônio cultural, merece uma acepção específica. Longe de querer expressar o congelamento de um certo passado histórico, ou a imutabilidade de uma certa paisagem, preservar significa, aqui, projetar um dado do passado rumo ao futuro, estabelecendo um liame, um continuum, um diálogo de temporalidades ou gerações. Imobilizar um dado da cultura é, em verdade, inutilizá-lo, apagá-lo como um elemento cultural. Os bens culturais, pelo significado que portam, são vocacionados ao diálogo, possuem verdadeira capacidade de expressão, de ambientação humana, de tradução da história, razão pela qual a um imóvel antigo, deve-se dar um uso moderno, de modo a viabilizar o diálogo que se pretende com a sua conservação. Assim, fala-se em verdadeira promoção do bem histórico e não em sua museificação ou congelamento estético. Aliás, a Constituição da República, na Seção II (Da cultura), do Capítulo III (Da educação, da cultura e do desporto), do Titulo VIII (Da ordem social), emprega por duas vezes as palavras promoção ao referir-se ao patrimônio cultural. A expressão preservação é empregada uma única vez. De fato, ao tratar do patrimônio cultural reputo que as expressões promover/promoção traduzem conceitualmente melhor o aspecto dinâmico da matéria, que as palavras preservar/preservação. Mais do que estéril polêmica terminológica, considero que o verbete promoção represente melhor a natureza das medidas de defesa do patrimônio cultural. Abandonar o paradigma da preservação para avançar para o conceito de promoção, em consonância com o texto constitucional, representa a assunção,

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pela ciência jurídica, do caráter fluido e instável do fenômeno cultural. Se a expressão preservação traz em sua acepção gramatical a ideia de “garantir a integridade e a perenidade de algo, como, p. ex., um bem cultural” (Dicionário Aurélio), a Constituição sugere a promoção do patrimônio cultural como meio de fomento do diálogo cultural. É pois uma preservação qualificada, que propõe a reconstrução do bem cultural, resgatando e atualizando seus significados, garantindo às futuras gerações que se reapropriem do bem cultural revalorando-o perenemente em face das transformações da cultura e da história. Promover e preservar devem significar, pois, que o patrimônio cultural não pertence ao passado, mas, efetivamente, ao futuro. Essa é a mais significativa contribuição que o direito ambiental presta ao direito do patrimônio cultural, impondo a compreensão de que ao Poder Público e à comunidade incumbem o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações, a teor do expresso no artigo 225, da Constituição da República. A promoção do patrimônio cultural constitui, em verdade, um direito amplo à informação histórica, à gênese dos significados, à compreensão profunda do homem e de seu lugar na história.

7. CONCLUSÃO

Na linha de tudo o que foi exposto, o que se conclui da presente exposição é a compreensão de que a tutela do patrimônio cultural não é apenas a tutela de bens materiais dotados de relevância cultural, mas sim, e em última instância, a tutela de pessoas e grupos humanos, cada um deles dotado de uma feição específica, portadores de um identidade cultural que conforma e integra o seu estatuto constitucional de pessoa humana digna. Portanto, a promoção do patrimônio cultural é, em verdade, a tutela da livre expressão coletiva dos povos, a defesa e a viabilização do diálogo intergeracional, capazes de atribuir sentido à vida daqueles para os quais, sem a compreensão histórica, o fluxo do tempo tornar-se-ia um amontoado sem sentido de fatos e acontecimentos. 22

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