O Património de Água Pública em Setúbal

September 12, 2017 | Autor: Manuela Tomé | Categoria: Cultural Heritage, Patrimonio Cultural, Abastecimento De água, Setúbal, Água Pública
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Ficha técnica Organização: Câmara Municipal de Évora, Departamento do Centro Histórico, Património e Cultura, Convento dos Remédios. Coordenação: Filomena Monteiro, Câmara Municipal Évora. Conceção gráfica: Maria João Raimundo, Câmara Municipal Évora. Revisão de textos: Teresa Molar, Câmara Municipal Évora. Edição: Câmara Municipal de Évora. Ano de edição: 2012 Título: Atas do Ciclo de Conferências sobre “Água e Património”, associado à Exposição “Aquedutos de Portugal” (Convento dos Remédios, Évora, Novembro 2011/ Março 2012). Autores: Vários. Suporte: DVD ISBN: 978-972-8509-43-9 Comissão Científica: José Manuel de Mascarenhas, Universidade de Évora; Maria Filomena Mourato Monteiro, Câmara Municipal de Évora; Virgolino Ferreira Jorge, Universidade de Évora. Júri do Concurso de fotografia (Ciclo de Conferências): Pedro Inácio, fotógrafo e presidente do júri; Carmem Almeida, Câmara Municipal de Évora; Manuela Cristóvão, Universidade de Évora. Júri do Concurso de fotografia (estudantes, Évora): Manuela Cristóvão, Universidade de Évora e presidente do júri; David Teixeira, Universidade de Évora; Rui Coelho, Universidade de Évora. Júri do Concurso de fotografia (estudantes, Salvador): Solange Araújo, Universidade Federal da Bahia e presidente do júri; Bethânia Boaventura, Universidade Federal da Bahia; Dilton Lopes de Almeida Júnior, Universidade Federal da Bahia. Júri do Concurso de fotografia (estudantes, Zagreb): Marília Peixoto, Universidade de Zagreb e presidente do júri; Marina Jurjevic, Universidade de Zagreb; Maja Antolovic, Universidade de Zagreb. O conteúdo dos artigos publicados é da inteira responsabilidade dos autores.

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Manuela Maria Justino Tomé Arq., Mestre em Recuperação do Património Arquitectónico e Paisagistico I. O Património de Água Pública em Setúbal

“(…) há fontes de águas vivas que falam ao coração e à alma. Fontes de lágrimas, de dôr, de sofrimento, de sacrifício, de heroísmo, de santidade e abnegação. Fontes que não secam, falam, perduram e vivem na memória dos homens e no culto das gerações (…)” Luiz Gonzaga do Nascimento, 1949.

INTRODUÇÃO O presente texto foi elaborado como documento de apoio, para uma melhor compreensão, do documento de apresentação em diapositivos da comunicação intitulada “O Património de Água Pública em Setúbal”, proferida no Convento dos Remédios, em Évora, no âmbito do Ciclo de Conferências “Água e Património”. Este documento escrito constitui a PARTE I e o documento em diapositivos constitui a PARTE II da referida comunicação. Pretende-se, a partir dum percurso físico referente ao sistema de abastecimento público da água, desde a captação, ou da nascente, até aos vários tipos de utilização e respectivos equipamentos, necessários ao funcionamento dum sistema de consumo, em correlação a um percurso temporal, cronológico e histórico, que influenciou a povoação de Setúbal, indicar os elementos mais relevantes deste património cultural, do qual apenas poderão existir as “memórias” cognitivas, ou as existências que ainda permanecem na cidade. Deste sistema resulta, ao longo dos séculos, a apropriação de várias tecnologias, o uso de engenhos e equipamentos, com estes consonantes, nomeadamente: nascentes; aquedutos; chafarizes; reservatórios ou outros equipamentos, necessários ao bom uso do sistema desde a captação até aos vários tipos de consumo.

1. Condições Ambientais e Património Setúbal teve a sua origem no núcleo urbano localizado junto à actual igreja de Santa Maria da Graça, localizado na bacia hidrográfica do Sado, num território marcado pela abundância de linhas de água, em interligação com o rio Sado, a Sul, e envolvido pela serra a Poente, a Norte e a Nascente. O espaço urbano foi crescendo condicionado por estas existências naturais, adaptando-se à natureza que o modelou e desenvolvendo-se acompanhando a linha de costa, com a ocupação do vale marcado pelas linhas de água, que confluem na Ribeira do Livramento, actualmente canalizada e integrada na rede viária, e desta ao Rio Sado. Trata-se dum território com recursos aquíferos, quer no subsolo, quer à superfície, de características diferentes consoante a sua proveniência, devido à tipologia dos solos existentes nas serras que o envolvem, Arrábida, Viso, S. Paulo e S. Sebastião, com margas e calcários margosos, brecha da Arrábida e arenitos, o que conduziu a diferentes propriedades e qualidades medicinais. “(…) hum deleytoso valle, povoado de muytas, & ricas quintas, grandes arvoredos, & amenas hortas com muyta abundancia de cristalinas aguas; & sobre a vila aprazivel daquelle fermoso paynel a faz muy agradavel a Villa, & porto de Setubal, & serra d’ Arrabida, (…)” (COSTA P. A., 1706-1712, p. 304), assim se descreve esta paisagem no séc. XVIII. Apesar dum ambiente de terrenos férteis, com muita vegetação e abundância de água no seu solo, a população sempre viveu e sofreu com problemas de falta de água, até ao século XX, pois da sua captação, adução, armazenagem e distribuição, até ao seu consumo pela população, nos mais variados e não menos importantes usos, aos equipamentos necessários e à deficiente e ineficaz gestão do sistema, também sofreram com perturbações de carácter social, económico-financeiro e de acidentes naturais.

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2. O Aqueduto de Setúbal O grande marco na história do abastecimento de água a Setúbal é assinalado pela decisão régia de construir um aqueduto para condução de água a partir de Alferrara.

O conhecimento sobre o abastecimento de água anterior a esta obra é exíguo, devido à escassez de referências e de fontes documentais a este respeito. Sabemos, no entanto, que, tal como era usual nas povoações medievais, a população era abastecida com a água de fontes e de poços.

Fig. 1. Aqueduto de Setúbal, na Rua dos Arcos. 1991.

A existência de quintas, hortas e conventos anteriores à grande obra do aqueduto, iniciada em 1487, leva-nos ao conhecimento de diversas fontes e poços, que, alguns mesmo sendo privados, os proprietários tinham a obrigação de dar água a quem precisasse. É de referir: a Fonte Sancta1 junto ao Mosteiro de Jesus, fundado em 1489; o chafariz abastecido a partir do poço da horta designada de Chupa-lhe-a-Pele, que ainda existia no início do séc. XVI junto ao Mosteiro de S. João; e, provavelmente, a Nascente de S. Braz (CARVALHO, 1840/1897), uma vez que o Convento de S. Francisco foi fundado em 1410, localizado a poente e exterior à muralha da, então, vila, e foi por esta abastecido. Há ainda conhecimento da existência muito antiga do Chafariz do Penedo, perto da saboaria, cuja demolição data de 1602. Relativamente aos poços, é de referir a provável existência da Fontinha, mais tarde intitulada de Poço Grande das Fontainhas, extra-muralha medieval, nas Fontaínhas, assim designada devido à abundância de água aí existente, e do Poço do Concelho intra-muralha medieval, junto à Entrada dos Apóstolos, com acesso para o, então, arrabalde de Palhais. A população setubalense também se abastecia na Fonte da Figueira, situada a uma distância aproximada de 2,500km ao norte de Setúbal, no sitio chamado da Rotura, no termo de Palmela, a caminho de Alferrara. O documento que limita o termo de Setúbal, em 1343, refere-se e esta fonte, cuja utilização ficou sendo livre a partir daí, quer para os habitantes de Setúbal quer para os de Palmela. Contudo, os moradores de Setúbal eram maltratados pela população e perseguidos pelas autoridades de Palmela, que lhes aplicavam coimas (CARVALHO, 1840/1897). Com D. Afonso IV, atendendo aos pedidos do povo de Setúbal, foi dado novo termo, tendo-se decidido que os habitantes de Palmela e de Setúbal usassem a água da Fonte da Figueira (CARVALHO, 1840/1897). Pensamos que a água originária desta zona já chegaria à vila, mas foi com D. João II que foi canalizada mediante a construção do aqueduto, desde Alferrara, a cerca de 3,000Km a noroeste de Setúbal, até à arca d’ água localizada na Rua do Buraco d’ Água, actual Rua Tenente Valadim, junto à cerca medieval, ainda existente, e desta até Largo do Sapal, para o que o monarca “(…) houvera por bem ordenar a demolição dos Estáos, ou sejam os paços reais, para (…) erigir um chafariz público, (…)” (NASCIMENTO, 1949, p. 4). Este largo, que já nesta altura era um espaço convergente de vivências urbanas, viria a tornar-se um espaço relevante a nível administrativo, religioso e cívico, transformando-se na actual Praça do Bocage.

No presente documento utilizamos a designação de fonte, não só com o significado de nascente, de lugar de onde brota água continuamente, de bica por onde corre água, mas também com a designação popular e que localmente foi atribuída a alguns equipamentos de água potável. 1

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Neste aqueduto, podemos encontrar várias metodologias estruturais, usadas para vencer os várias níveis de cotas topográficas do terreno, que atravessa até à sua chegada à cidade. No início do seu percurso, a caleira é coberta por uma galeria, seguindo depois em muro de altura variável com uma caleira coberta. Esta caleira está também, em algumas zonas do percurso, directamente assente sobre o solo, surgindo-nos uma estrutura mais complexa, resolvida em arcos de volta inteira, com duas fiadas sobrepostas, quando a altura da caleira relativamente à cota do solo atinge níveis superiores, como podemos observar junto da Rua dos Arcos. Nos troços mais altos, a estrutura foi reforçada com a aplicação de gigantes. A captação da água é feita a partir duma mina, em galeria que penetra no terreno e vai subindo gradualmente até chegar à nascente. Junto à mãe d’água, em Aferrara, ainda existem duas edificações com características arquitectónicas que remontam ao séc. XVIII. Estas constituem a entrada para a galeria do aqueduto e uma sala, que serve de respiradouro, ventilada e iluminada por vãos abertos nas paredes a cerca de 6,00 m de altura, com um tratamento interior de “sala de fresco” com bancos, cujo piso está a 1,50 m acima da caleira de água. A galeria foi escavada na rocha, e apresenta, após esta sala, uma altura interior que varia entre 1,04m e 2,80m (MASCARENHAS, JORGE, BENOIT, BERTHIER, e ROUILLARD, 2003, p. 215). Ao longo do percurso da estrutura de adução são visíveis as muitas obras de alteração e melhoramentos levados a efeito, quer no que se refere à altura do canal relativamente à cota do terreno, quer aos materiais de que este foi revestido, havendo referências documentais a caleiras em madeira, e vestígios locais de caleiras em material cerâmico e em pedra. As obras que conduziram a modificações devem-se a destruições sofridas por acidentes naturais, nomeadamente o terramoto de 1755, e também provocados pelo homem, nomeadamente pelos proprietários com prédios adjacentes e pelos habitantes de Palmela, à necessidade de fazer chegar a água a Setúbal, quando esta ía rareando ou também à degradação natural do aqueduto e ainda, mais recentemente, devido à necessidade de execução de infraestruturas urbanísticas. À entrada da mãe d’ água estão assinaladas, em “MEMÓRIA”, as obras realizadas em 1773, sob a direcção do Coronel Bruno de Cabedo. O Chafariz do Buraco d’Água, que recebia a água de Alferrara, na Praça do Sapal, na sua construção inicial teria uma volumetria e forma simples. Era constituído por uma pia para bebedouro de animais, para onde caía a água através de uma bica, em forma de telha mourisca (NASCIMENTO, 1949, p. 11). No ano de 1500 a Câmara foi autorizada a despender a soma de 850$00 réis dos sobejos das sisas e aplicá-los à obra da “Fonte” (PEREIRA, DUARTE, e CAMPOS, 1997), mas só no ano de 1679 foi construído o ainda existente Chafariz do Sapal, com a imagem actual, atribuída a Francisco da Silva Tinoco, no qual ainda se fazia serviço de aguadeiro, em 1914. A distribuição de água pela cidade era efectuada por aguadeiros galegos que, com recurso a barris, a vendiam em pucarinhos de barro ou ao domicílio. O excessivo zelo com que os aguadeiros actuavam impedia os populares de encher os seus cântaros de água, que era gratuita nas origens, o que constituiu motivo de muitas rixas e de aprovação de Posturas Municipais para controlo da situação. O chafariz foi transferido para a Praça Teófilo Braga em 1937, onde actualmente permanece, mas sem o bebedouro para animais e sem as suas funções originais de abastecimento de água à população. Na pedra de lioz branca e rosa de que é construído, está gravado que “REINANDO EL REI DOM PEDRO II”, “O Senado da Camara desta Notavel & sempre Leal Villa de Setubal Mandou Fazer Esta obra Na era de 1697”. Trata-se de uma obra, construída em pedra de lioz branco e rosa, onde a função, a estética, e o simbolismo estão conjugados, para dar lugar à monumentalidade da obra pública. Como coroamento deste simbolismo, está encimada pelo escudo e pela coroa real. A partir do aqueduto, D. Manuel I concedeu, às freiras capuchas da primeira regra de Santa Clara, um anel de água para o Mosteiro de Jesus, que seguia até à fonte localizada no claustro do mosteiro. No claustro podemos observar o primitivo lavabo, onde ainda é visível a base da fonte revestida a azulejos originários de Valência, de onde chegaram sete religiosas em 14952, inserido numa cobertura de abóbada nervurada, no canto nordeste deste, e a fonte construída no início do século XVII, no centro deste. A 3 de Maio de 1495, deram entrada solene neste Mosteiro de Jesus sete religiosas oriundas do Mosteiro de Santa Clara de Gandia (diocese de Valencia), trazidas pela fundadora Justa Rodriguez Pereyra. 2

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Ao longo da vida secular deste mosteiro muitas são as referências à falta de água e às respectivas reclamações e petições das religiosas. Após a construção do hornaveque para protecção do mosteiro, o canal de água passou a existir sobre esta muralha, onde constava uma lápide com a seguinte inscrição: “Marquez de Marialva, dos concelhos de Estado e guerra de S. A. Vedor de sua fazenda, capitão general do exercito e província do Alentejo, governador das armas da Extremadura, Cascaes e Setubal, mandou fazer esta obra corna para a defença, e arcos para correr agua, no anno de 1672” (PIMENTEL, 1877, p. 285). A partir do aqueduto, que vinha de Alferrara, foi também conduzido uma anel de água, em 1699, para a Fonte do Rocio do Bonfim. Esta fonte foi construída no reinado de D. Pedro, conforme constava numa inscrição que referia ”El Rey D. Pedro II A’no de 1700” (CARVALHO, 1840/1897), tendo sido denominada Fonte do Anjo da Guarda, a qual veio a ser destruída com o terramoto de 1755 e foi reconstruída no reinado de D. Maria I. Em 1878, esta fonte foi demolida. Foi construído um lago e um coreto, o qual foi, mais tarde, substituído por uma grande cascata de vários andares, construída em pedra rústica com formas irregulares, que também foi demolida em meados do séc. XX, para dar lugar às obras do Parque do Bonfim da autoria do Arq. Pais. António Viana Barreto. Existem referências que indicam, que, na construção das Grutas do palácio Botelho Moniz, inaugurado em 1909, foram utilizadas as pedras desta cascata, no entanto, podemos encontrar pedras semelhantes no actual Parque do Bonfim e no lago do Largo José Afonso. Da fonte do Bonfim seguia ainda um anel de água para abastecimento das freiras dominicanas do Mosteiro de S. João Baptista, de religiosas da Ordem Dominicana. Do aqueduto seguia também um anel de água, desde o Buraco d’ Água até à Praça de S. Bernardo, actual Praça do Quebedo, onde em 1755 já existiria um chafariz, segundo um documento em que a Câmara expõe ao Rei a falta de água nos chafarizes do Sapal, do Bonfim e de S. Bernardo (CARVALHO, 1840/1897), em consequência dos estragos provocados pelo terramoto, no aqueduto. Contudo, o chafariz que ainda pode ser visto nesta praça foi construído por uma ordem do Marquês de Pombal de 1772. É um chafariz de feição barroca, com pia semicircular e espaldar, com volutas, encimado pelo escudo e coroa reais. Duas expressivas carrancas servem de bicas. Deste chafariz seguia um anel de água para abastecimento às freiras cistercienses de S. Bernardo (PIMENTEL, 1877, p. 294), instaladas no Colégio dos Jesuítas após a extinção da Companhia de Jesus.

3. Outras Nascentes

Assumem especial relevância as nascentes de água relacionadas com a necessidade de abastecer os conventos de S. Francisco e de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes e a nascente proveniente do Outeiro da Saúde. No início do séc. XVIII António Carvalho da Costa, referindo-se a Setúbal, indica que “As fontes, que a fazem muito amena e vistosa, são a fonte Nova, que está na praça, a do Sapal, onde está o corpo Guarda, a de S. Caetano, que está dentro das muralhas novas, a de St.ª Isabel ao pé da Calçada de S. Francisco, e uma soberba fonte no rossio fora dos muros,(…)” (COSTA P. A., 1706-1712), estas, relacionadas respectivamente, com as seguintes nascentes que aqui mencionamos: Outeiro da Saúde; Alferrara; Outeiro da Saúde; Convento de São Francisco e Alferrara.

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3.1. Convento de S. Francisco O Convento de S. Francisco de Religiosos Observantes da Província dos Algarves, cuja fundação remonta ao ano de 1410, que foi erigido extra-muralha medieval e exterior ao já existente arrabalde do Troino, e veio a ficar, também, fora do perímetro da nova muralha seiscentista, era abastecido a partir de uma nascente localizada em S. Braz. Ainda existe um troço do aqueduto constituído por uma estrutura em arcos que suporta uma linha de colunas onde assentava o canal que, na cerca do convento, atravessava o vale para a condução de água à casa conventual. Neste percurso e já fora da cerca foi construída a Fonte de Santa Isabel, que mais tarde se veio a denominar Fonte S. Francisco. Não conhecemos a data da sua construção, mas em 1538 a Câmara deu aforamento para a rega de um pomar que ficava abaixo do convento (CARVALHO, 1840/1897), pelo que já existiria uma fonte neste local. Com o crescimento da vila para esta zona poente, havia necessidade de abastecimento de água para a população residente nesta área do Troino Poente, pelo que o rei determinou em 10 de Setembro de 1605, que do excedente das sisas pagas pelos moradores de Setúbal se dessem 200$000 réis aos religiosos de S. Francisco para fazerem fora dos muros da sua cerca uma fonte e a ela conduzirem água, para o povo. Após a construção da muralha seiscentista o convento e a sua cerca permaneceram extra-muros, mas foi assegurada a ligação com o Troino a partir do Buraco de S. Francisco. Esta fonte, cuja água tinha propriedades medicinais, era considerada um elixir para todas as doenças, que faziam dela uma fonte milagrosa, situava-se num local aprazível frequentado por poetas e trovadores, onde no século XIX se realizaram famosos outeiros3.

3.2. Convento de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes

O Convento de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes, de Missionários Franciscanos, foi fundado em 1682 pelo Padre Fr. António das Chagas, religioso da Província de Xabregas, para nele se formarem missionários (COSTA P. A., 1706-1712, p. 291). Ao longo do século XX este edifício foi quartel militar, tendo sido submetido a alterações de adaptação a estas funções. Numa das adaptações, foi soterrada sob o espaço da parada a cerca de 4,00m do nível desta, a Fonte de São João Baptista.

Fig. 2. Convento de Brancanes. Colecção Américo Ribeiro. C.M.S..

Esta fonte apresentava uma bacia trilobada, com um painel de azulejos setecentistas com moldura em azul e amarelo, e a representação do Baptismo de Cristo, em azul e branco, com as seguintes inscrições em cartelas superior e inferior respectivamente: “Afons Sapientiae Verbum Dei - Eccles 15” (A palavra de Deus é fonte de Sabedoria) e “Fons Ascedabat et Terruralgans suparciciem Taerrae Gen-26” (Nascia uma fonte que irrigava a superfície da Terra) (RODRIGUES, 1987, pp. 25-26).

3 Luís Gonzaga do Nascimento refere em Velharias de Setúbal, Fontes e Chafarizes, p. 22, que “Cardial Rocha, Alfredo Picão, Frederico Nascimento, José Luciano e Júlio Brandão, animaram grandemente a fonte, onde se juntavam as guapas moçoilas de Troino, cujos bailaricos e cantares ao desafio divertiam e endoidavam uma mocidade que depois havia de evidenciar-se nas artes e nas letras.”

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Numa área reentrante a meio da encosta, junto à capela de Nossa Senhora da Guia, existia a “Fonte do Lagarto” ou do “Peixe” enquadrada num muro que circundava um espaço semi-circular, envolvido com arvoredo, em ligação à igreja do convento (RODRIGUES, 1987, pp. 45-46). Dos chafarizes então existentes, resta-nos o exemplar situado junto da Estrada Nacional N.º 104, mas já sem o enquadramento que lhe esteve na origem. Trata-se de um espaço semi-circular, com o chafariz composto por um tanque rectangular, com as medidas (0,775m x 1,735 m), formado por três lajes de pedra calcária com 0.175m de espessura, ladeado por bancos em alvenaria de pedra com capeamento de pedra calcária com uma espessura de 0,075m, destinado ao descanso dos viajantes. Este chafariz, com uma localização estratégica à entrada, ou saída de Setúbal, para Azeitão, era um local privilegiado para descanso da viagem e abastecimento dos animais. Era também um local enquadrado nas quintas, que junto a esta estrada possuíam bancos a estes semelhantes, inseridos nos seus muros, transformando esta via num caminho romântico de passeios campestres, criando o ambiente lúdico e bucólico ao gosto do século XIX.

3.3. Nascente do Outeiro da Saúde Do Outeiro da Saúde, localizado a norte do Troino, na periferia desta zona urbana e no sitio da Boa Morte, saíam dois ramais de abastecimento de água, para a Fonte Nova, no Troino, no actual Largo Machado dos Santos e para o Chafariz de Santa Catharina, com esta designação em alusão ao Postigo de Santa Catharina, que lhe ficava próximo, e mais tarde denominado de S. Caetano. Não podemos indicar a data da origem da Fonte Nova nesta zona, no entanto a sua existência será muito antiga, pois no ano de 1571, D. Sebastião determinou que se lançasse uma finta ao povo de Setúbal, no valor de 300$000 réis, para se cobrar em dois anos e ser aplicado à mudança de assento da referida fonte (CARVALHO, 1840/1897), pelo que esta já existiria nesta data. Mais tarde, em 1598, a fonte foi novamente submetida a obras, e no ano de 1613 estaria degradada, pois “(…) em 2 de Março deste ano se requeria ao Procurador do Concelho que os cannos desta fonte fossem reparados (…)”(CARVALHO, 1840/1897). Esta fonte tinha especial importância para encher os barris de água dos embarcadiços e mareantes. A imagem da fonte que chegou aos nossos dias e persiste, embora sem a mesma utilidade nem a mesma envolvência e ambiente locais, é de uma construção em pedra de lioz, de base rectangular, com um espaldar plano de onde saem duas bicas, junto ao pavimento, ladeado por duas pilastras e encimado pelo escudo e pela coroa real, ladeados de volutas. Da água, que abastecia esta fonte, saía um ramal para o Recolhimento de Nossa Senhora da Soledade, mais tarde Orfanato Setubalense e actualmente Casa da Baía, e ía “(…) também por canalização subterrânea ao marco fontenário e chafariz que estão no passeio da praia do Troino” (PIMENTEL, 1877, p. 294)5. Os problemas com a falta de água continuavam, tendo-se intensificado nos finais do século XVII, o que levou à tomada de medidas para a resolução do problema. É neste sentido que “A Câmara em 10 de Junho de 1684 sentindo a falta de água potável, e o quanto a povoação por isso estava sofrendo, porquanto apenas tinha duas fontes a do Sapal, esta com o aqueduto arruinado, e a de S. Francisco.” (CARVALHO, 1840/1897) decidiu pela construção do chafariz de S. Caetano, a qual ficou concluída em 1692, conforme constava gravado na sua edificação: “O Senado da Camara desta muito notável villa de Setubal mandou fazer a obra desta fonte á custa dos bens do Concelho a qual se acabou no anno de 1692” (PIMENTEL, 1877, p. 294).

Antiga “Estrada de Lisboa”, actualmente com a denominação de “Estrada de S. Luís da Serra”, neste local. Sobre este passeio público Alberto Pimentel refere que “O formoso passeio da Praia de Troino foi mandado fazer em 1870 pela camara presidida pelo dr. António Rodrigues Manito. É uma deliciosa estancia, cheia de bom gosto e de suavidade, com um vasto lago ao meio, do qual irradiam seis longas ruas ladeadas por altas paredes de verdura. Faz cerco ao lago um agradável arvoredo, na maior parte constituido por eucaliptos.”(PIMENTEL, 1877, p. 280). 4

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Este chafariz localizava-se dentro da nova cintura de muralhas, na Rua de S. Caetano, actual Avenida dos Combatentes da Grande Guerra. Era uma robusta construção em pedra, com três bicas por onde corria a água para uma bacia. A parte superior estava ladeada de duas pilastras e a zona central era subdividida em almofadas nas quais estavam inscritos elementos simbólicos identificativos das armas de Setúbal e da Ordem de Sant’Iago, e era encimado pelas armas e coroa reais. Em 1714, a Câmara decidiu sobre a cedência dum anel de água aos frades do Convento de Nossa Senhora do Monte do Carmo, de Carmelitas Calçados, que saía na fonte do claustro. Mais tarde, nos finais do séc. XIX, esta fonte foi transferida para o Passeio do Lago, actual Largo José Afonso, onde ainda hoje pode ser admirada, no centro dum lago. Foi construída em pedra, de volumetria muito elegante, possui uma bacia oitavada, com inscrições à volta e oito carrancas por onde sai a água, e está decorada com elementos fitomórficos de grande subtileza de traço. Com o desenvolvimento urbano e a introdução de novos modelos urbanísticos no séc. XX, e a respectiva criação de novas avenidas, foi sentida a necessidade de remodelação da Avenida dos Combatentes da Grande Guerra, criando um separador central com arborização, que actualmente também já não existe. Havendo outras alternativas para o abastecimento de água à população, o chafariz de S. Caetano não resistiu aos tempos de mudança, e em 1917 foi demolido (NASCIMENTO, 1949, p. 15).

4. Poços Vários poços existiam no povoado, públicos e privados, estes, na generalidade, com a obrigação de fornecimento de água. Alguns destes poços já desapareceram, outros ainda existem, mas sem as suas funções iniciais. São peças da memória, de valores culturais, do povo setubalense, e é de referir ainda a referência existencialmente produzida relativa ao Poço do Concelho, através da construção de uma “réplica” invocativa deste. Dos poços já desaparecidos, indicamos aqui: na zona do Troino, o Poço de S. Francisco, o Poço da Anunciada e o Pocinho de S. Caetano; na zona nascente do núcleo medieval, o Poço do Concelho; e a norte, dois poços no Bonfim e o Poço de S. João. No inicio do séc. XVIII António Carvalho da Costa refere-se à existência de “(…) dois poços públicos, e grandes, que são o do Concelho, e o das Fontainhas.” (COSTA P. A., 1706-1712). Nas Fontaínhas ainda permanecem testemunhos físicos do Poço das Fontaínhas e também do Poço Novo das Fontainhas. Um dos mais antigos poços de Setúbal era o Poço do Concelho, que se localizava no Largo do Concelho, com ligação a Palhais e a S. João, através da Entrada dos Apóstolos, na continuação da rua estruturante da malha urbana que ligava esta à Porta Nova, através da Rua Direita, actual Rua Fran Pacheco. Este poço, já substituído nas suas funções, foi demolido no século XX. Continuando a ser uma referência na identidade local, em 2005, foi reproduzido à semelhança da imagem captada pelo fotógrafo Américo Ribeiro, em 1939. A área a nascente do núcleo central da cidade, a zona das Fontaínhas, como o próprio nome indica, era abundante em água, sendo disso ainda testemunho o Poço das Fontaínhas. O aspecto actual deste poço deve-se à reconstrução de 1840. Está inserido num espaço coberto com abóbada de arco perfeito, com acesso por arco encimado por frontão com o escudo e coroa reais em azulejos policromados, e abaixo desta a inscrição em pedra “REEDIFICADO / PELA CÂMARA / MUNICIPAL / DE 1840”. Na arca, em pedra, com quatro torneiras, consta a inscrição “1867”. Junto à Ladeira das Fontainhas existiu o Poço Novo das Fontaínhas, construído com o fim de fornecer água às embarcações estrangeiras, que viessem ao porto de Setúbal (CARVALHO, 1840/1897). Actualmente este poço, já destituído da sua função, apresenta uma imagem de “marco fontanário” em pedra, generalizada na época de que faz parte, e constante na inscrição “CMS 1911”. É um elemento isolado, centralizado relativamente ao espaço urbano em que se inseria, circundado por um muro semi-circular.

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Apesar de já desaparecido, merece aqui especial relevância o poço aberto no extremo noroeste do Campo do Bonfim, em 1894, pelo papel que desempenhou no abastecimento de água à população, para suprir a falta de água que vinha de Alferrara, através do aqueduto, e que rareava nos chafarizes da Praça do Sapal e do Quebedo. Era um poço artesiano com 9,50m de altura e 5,00m de diâmetro, que mantiha um manancial de água que permitiu a distribuição pelos referidos chafarizes e pelos vários marcos fontanários, vindo ainda potenciar a utilização em bocas de incêndio, de rega e a construção de um lavadouro público. Com este poço inicia-se, em Setúbal, uma nova era tecnológica e social, na medida em que marca o início de um percurso tecnológico que veio finalmente eliminar o sofrimento da população, causado pela necessidade deste bem vital, que é a água.

5. Reservatórios Com o século XX, consolida-se o abastecimento domiciliário de água à população, e para garantir um melhor abastecimento surgem novos equipamentos, novos depósitos, as estações elevatórias e os edifícios para as respectivas instalações de apoio. As Mães d’Água são substituídas por novos modelos formais de reservatórios. “Apesar de, em 5 de Outubro de 1892, ter sido finalmente aprovado um contrato de abastecimento de águas que proporcionou as obras de canalização e exploração, (…) só em 1900 surge a Companhia das Águas como abastecedora de água a Setúbal” (PEREIRA, DUARTE, e CAMPOS, 1997, p. 13), mas em 1921 a Câmara Municipal assumiu a responsabilidade da prestação deste serviço à população. Só em 1900 se iniciou o a distribuição domiciliária através da canalização da água. Nesta época surgem os fontanários formados por uma coluna, em ferro fundido, como elementos isolados e complementares da distribuição de água domiciliária, ainda deficiente. Um novo modelo de reservatórios surge, à superfície, enterrados ou elevados, conseguindo-se, em alguns casos, belos exemplares da conjugação da ciência, da técnica, da função e da estética, de que é exemplo o reservatório elevado da Bela Vista que, sobranceiro a toda a cidade, assinala a sua presença, numa cor azul, em comunhão com o céu, no horizonte que toma como seu.

6. Água Medicinal São muitas as referências às qualidades terapêuticas atribuídas às águas de Setúbal, como é o exemplo da Fonte Nova, da Fonte de Santa Isabel e do poço aberto no Campo do Bonfim em 1839, ao qual foram atribuídas propriedades muito eficazes (PIMENTEL, 1877, p. 294). No entanto, é de salientar as propriedades terapêuticas reconhecidas à água da Quinta da Bela Vista, muito embora se trate de uma exploração de água privada, mas que trouxe benefícios públicos evidentes. O poço desta quinta, localizada no extremo nascente da cidade, terá sido aberto em 1920, com um furo artesiano de 10,00m, cuja água foi comercializada no país, em garrafões e em garrafas, com alvará de exploração de 1944. Esta comercialização terá terminado na década de 70 do mesmo século. Há referências que nos dão a conhecer que esta água era benéfica para a saúde humana, especialmente quando após a ingestão continuada ou após um período de convalescência passado na quinta. As indicações são de: aparelho digestivo; rins; doenças de nutrição e debilidade orgânica (BASTOS, QUINTELA, e MATOS, 2002). Este espaço foi ocupado por um estabelecimento comercial, e em sua memória ficou o poço equipado com um moínho de vento, e o mirante, que deu a imagem aos rótulos de comercialização e se tornou o simbolo da “Água da Bela Vista”. 38

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7. Bebedouros

A cidade antiga, abastecida com recurso a chafarizes, previa também, através destes, a existência de tanques com o fim de dar de beber aos animais que aqui eram usados como meio de transporte. Como exemplos de maior relevância indicamos: o chafariz do Buraco d’Água; o Chafariz do Sapal, que para além da bacia que recebia a água das bicas, dispunha de tanque até à transferência para o local onde hoje se encontra; o Chafariz de S. Caetano que na descrição de Almeida Carvalho é referido que da “(…) bacia passa a agua a um pequeno tanque destinado ao gado, (…)” (CARVALHO, 1840/1897) e o Chafariz ainda existente em Brancanes, junto à Estrada Nacional N.º 10. Com um outro objectivo no desempenho deste uso, indicamos o tanque construído junto ao poço do Campo do Bonfim para uso dos animais nos dias de mercado de gado que ali se realizava no primeiro Domingo de cada mês6 (CARVALHO, 1840/1897). Mais recentemente, com a reformulação da Praça do Bocage levada a efeito em 1988, foi construído um outro bebedouro para aves, da autoria do Arq. Sérgio Dias, dando resposta às novas intenções de criação de vivências ambientais na cidade. Numa peça escultórica bem concebida, de uma coluna de seçcão quadrada sai a água, num pequeno cachorro, para dois pequenos lagos quadrangulares, de dois níveis e de duas alturas diferentes, onde as aves podem beber, chapinhar e permanecer. A cidade do século XX, com os novos desafios de higiene urbana, com a rede de canalização de abastecimento domiciliário, veio permitir a inclusão de bebedouros no seu mobiliário urbano, os quais existem em vários materiais, como é o caso do bebedouro existente no Jardim do Bonfim, construído, em pedra mármore, para o local, e os restantes, com vários modelos disponíveis no mercado, em materiais metálicos, em cuja criação não é tida em conta a inserção no ambiente onde estão implantados.

8. Higiene e Salubridade Do património herdado de épocas passadas relativamente aos equipamentos de higiene e salubridade, resta-nos apenas o edifício do Balneário Dr. Paula Borba. As necessidades actuais da população citadina restringem-se apenas à utilização pública de instalações sanitárias, as quais se encontram implantadas em diversos pontos da cidade segundo os vários modelos-tipo produzidos em fábrica e disponíveis para comercialização. Para a lavagem de roupa eram utilizados os cursos de água, nomeadamente a Ribeira do Livramento, bem junto ao centro da cidade, e também os tanques de rega das quintas até à construção dos tanques públicos, como é o caso do tanque construído no Bonfim após a abertura do poço em 1894. Por vezes eram também utilizados os tanques e bacias dos chafarizes, o que obrigava à imposição da proibição através de regulamentos, quando o chafariz não possuía tanque apropriado a esta função, a fim de se melhorarem as condições de higiene. O Chafariz de S. Caetano teria um tanque próprio para esta utilização, porquanto Almeida Carvalho refere que da “(…) bacia passa a agua a um pequeno tanque destinado ao gado, e deste reservatório, corre ainda a agua por um cano a outro muito maior e quasi ao nível do solo, que serve para lavagem.” (CARVALHO, 1840/1897). O lavadouro público, de utilização gratuita, construído no Campo do Bonfim, era constituído por dois tanques com as medidas totais de 30,00m de comprimento e 3,60m de largura, tendo cada um a capacidade para 26.000 l de água, que era renovada diariamente, com descarga para a Ribeira do Livramento. A importância e benefícios sociais tiveram uma tal relevância que à data é referido que “(…) finalmente o tanque ou lavadouro publico, aonde podem beneficiar as suas roupas cerca de oitenta mulheres, que antes deste tão útil melhoramento forçadas a recorrerem-se aos acanhados tanques das fazendas, satisfazendo aos donos ou rendeiros uma quota, segundo a quantidade de roupa que pretendiam lavar, o que era excessivamente penoso por serem geralmente pobrissimas. 6 No artigo de Marcelino A. M. C. e Faria, “Memoria descriptiva do poço do Bomfim” publicado em “O Elmano”, n.º 75, Setúbal, 16 de Agosto de 1894, constante no fundo de Almeida Carvalho.

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A agua dos referidos tanques de que essa pobre gente se servia por absoluta necessidade raríssimas vezes é renovada, (…) dando o resultado das roupas não serem lavadas, porem sim immersas em uma água lodosa, putrefacta e carregada de toda a sorte de impurezas, o que indubitavelmente constituía um facto de lesa hygiene. Ao contrário do que sucedia, não só a agua do lavadouro é renovada diariamente, sendo os tanques despejados e limpos, senão a Exm. ma Camara a cede gratuitamente à classe pobre, que é em grandes numero em esta cidade( …). 7” (CARVALHO, 1840/1897). Das instalações sanitárias actualmente existentes, não restam testemunhos edificados do passado, embora a sua existência não seja muito remota, pois a instalação deste equipamento nos espaços urbanos de Setúbal é tão recente quanto recente é a distribuição canalizada de água ao domicilio. Existe conhecimento da existência destas instalações em construção de alvenaria, de pedra ou de tijolo cerâmico, e metálicas, no caso dos curiosos urinóis públicos em forma circular, proporcionada e elegante, de utilização prática e estética simples, mas que também eles, deixaram de corresponder às novas exigências de higiene e salubridade da sociedade. Existem referências que nos dão conhecimento da preocupação da necessidade e existência de banhos públicos em Setúbal, na época medieval, no entanto é em 1919 que se dá o início da construção do Balneário Dr. Paula Borba8, o qual veio trazer novos hábitos, ou uma maior facilidade de higiene na sociedade Setubalense. O edifício foi inaugurado a 30 de Maio de 1926. Serviu as pessoas mais humildes, mas também foi frequentado pela classe média, estando aberto todos os dias da semana para usufruto da população, que recebia toalhas e sabonetes. Foi considerado por Manuel Gamito9 uma conquista social. Era uma necessidade que era preciso assegurar, incentivando o seu funcionamento levando Setúbal a lavar-se (LOPES, 1999, p. 123). Este edifício, que actualmente alberga as instalações administrativas e técnicas do Museu de Setúbal, ainda conserva as características exteriores da sua arquitectura. Setúbal, como estância balnear teve também os seus estabelecimento de banhos, sendo de salientar o edifício criado pelo arquitecto Ventura Terra, e inaugurado em 1903. Localizava-se na Praia do Seixal, em frente ao bairro do Troino e assegurava o serviço de vestiário, duche e “Buffete” aos banhistas. Era um edifício singular, com uma arquitectura ecléctica simetricamente proporcionada, que tirou partido das recentes tecnologias do uso do ferro, conjugadas com a alvenaria de tijolo no exterior e tabique no interior. Este estabelecimento, propriedade de uma empresa privada, teve uma duração muito curta, pois uma outra ocupação urbanística mais rentável para o local determinou a sua demolição.

9. Segurança A utilização da água como medida de segurança no combate a incêndios está intrínseca à própria natureza da água e ao tipo de incêndio. A história deste tipo de utilização remonta, provavelmente, à história da existência do fogo, porém os meios e métodos para a utilização deste recurso foram evoluindo até aos sofisticados equipamentos que hoje estão à disposição dos corpos de bombeiros. Foi a partir do Séc. XVIII que começou a surgir, nos meio de decisão, uma maior preocupação com a existência de equipamentos e de recursos que, numa organização que se queria eficiente, melhor respondesse a uma necessidade, cada vez mais sentida no meio

7 Extraído do artigo de Marcelino A. M. C. e Faria, “Memoria descriptiva do poço do Bomfim” publicado em “O Elmano”, n.º 75, Setúbal, 16 de Agosto de 1894, constante no fundo de Almeida Carvalho. 8 O processo de construção deste balneário teve início em 1917 por iniciativa do Dr. Francisco de Paula Borba, Director-Presidente da Associação de Beneficência da Misericórdia de Setúbal. 9 António Manuel Gamito foi professor e Reitor do Liceu de Setúbal e Governador Civil do Distrito de Setúbal, no período de 3 de Agosto de 1934 a 15 de Março de 1935.

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urbano. Assim, em 1786 o Município adquiriu as primeiras bombas de água braçais, de combate a incêndio, com funcionamento tipo picota, de aspiração e compressão10, concedendo, a 21 de Fevereiro deste ano, a duas companhias de aguadeiros galegos, a distribuição de água pelas casas da vila, impondo-lhes a obrigação de estarem permanentemente preparados para acudirem aos incêndios onde as bombas trabalhassem. Estas companhias funcionavam com pipas amarelas e azuis, que as distinguiam. Em 1801 é criado o “Regulamento dos Aguadeiros de Setúbal”, que incluía a obrigação da rega e da permanência na instalação de um único barril, o qual teria que estar permanentemente cheio. Após o grave incêndio ocorrido em 1868, na Fortaleza de S. Filipe, num ano de seca em que a cisterna estava vazia, foi sentida a necessidade de criar melhores condições, quer na aquisição de equipamentos, quer na organização que se imprimia à utilização desses equipamentos. A 11 de Dezembro de 1869 a Câmara criou o “Regulamento para o Serviço de Acudir aos Incêndios”, com a distribuição de tarefas e condições de funcionamento, pelo pessoal que lhe estava adstrito, e a distribuição do equipamento entretanto adquirido. A criação da “Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Setúbal”, em 1883, veio permitir recursos acrescidos na organização dos serviços de emergência, então implementada, e uma melhor possibilidade de distribuição dos equipamentos na cidade. O serviço, então organizado, dispunha de quatro bombas que davam cobertura ao Bairro de São Domingos, ao núcleo central da cidade, com duas bombas, e ao Bairro do Troino. As bombas, tidas em bom estrado de conservação e respectivos utensílios estavam convenientemente e criteriosamente distribuídos pela zona urbana, tendo em atenção uma divisão de espaços, sem distribuição nem reflexos na actuação, uma vez que o incêndio começava a ser extinto por quem chegasse primeiro ao local da ocorrência. Ao local do incêndio, acorria-se ao toque dos sinos das igrejas, que eram respectivamente de 10, 15, 20 e 25 para S. Sebastião, St.ª Maria, S. Julião e S. Sebastião. Na sessão camarária de 21 de Fevereiro de 1907 foi proposta a criação do “Corpo de Salvação Pública”. Por esta data os serviços podiam dispor de meios de intervenção, em situações de emergência mais evoluídos. O combate a incêndios já dispunha de um extintor Mephisto, rebocável por tracção mecânica. A distribuição de água canalizada veio permitir a utilização de bocas-de-incêndio, as quais vão sendo substituídas por marcos de incêndio, onde as condições físicas do espaço o permitem, cujas imagens nós encontramos na cidade actual. As primitivas bombas braçais, puxadas pela força humana ou por animais, e o equipamento que lhes sucedeu, foram substituídos. Actualmente, podemos contar com viaturas devidamente equipadas e com características específicas para este efeito, como é o exemplo do veículo ligeiro de combate a incêndios, com características especiais para actuar no centro histórico de Setúbal, caracterizado por uma malha urbana antiga, com arruamentos estreitos e sinuosos, onde a dificuldade de intervenção está maximizada.

10. Elementos Ornamentais Referimo-nos aqui aos elementos cujos objectivos são apenas ornamentaias, pese embora haja equipamentos que foram criados com outra finalidade e já tiveram, ou têm, outra utilidade e que pelas suas características também são ornamentais, ou passaram a ser apenas ornamentais, tendo perdido o seu caracter utilitário. Os chafarizes passaram de equipamento público, que fazia parte das infraestruturas do aglomerado populacional, a peças ornamentais, de que são belos exemplares artísticos, representativos das respectivas épocas de construção, e testemunhos de técnica e da estética subjacentes à sua criação, e importantes elementos de referência na imagem da cidade. Estes perderam importância no abastecimento de água, mas a água continuará a ter um papel relevante nos pontos de referência do espaço público urbano, continuado no século XX, com as fontes ornamentais.

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Estes equipamentos podem ser observados no Museu existente no Quartel dos Bombeiros Sapadores de Setúbal.

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Em Setúbal, a primeira manifestação de identidade e monumentalidade através da água, numa evidente conjugação e desenvolvimento de tecnologia, arte e simbologia, surge com a construção da Fonte Luminosa, inaugurada em 24 de Julho de 1960, para comemoração do centésimo aniversário da elevação de Setúbal a cidade. A fonte tinha inicialmente, apenas a base com os dois lagos concêntricos, com os treze brasões alusivos aos Concelhos do Distrito de Setúbal, com incidência de focos luminosos de várias cores e com repuxos de água. Mais tarde, em 1971, foram colocadas as três estátuas de figuras femininas representando o Mar, a Terra e a Poesia, da autoria de Arlindo Rocha e trabalho de cantaria de Fernando Esteves. As fontes, onde a estética conjuga jogos de água às variantes de cores na iluminação, têm vindo a assumir uma cada vez maior presença. A Rotunda dos Golfinhos já desaparecida, marcava a ligação e acentuava o enfiamento da Rua José Pereira Martins, com a Avenida Luisa Todi, num enquadramento simbiótico com a estrutura de espectáculos do Largo José Afonso, que emoldura os edifícios singulares deste espaço. A opção pela prioridade dada ao percurso pedonal, na avenida sobrepôs-se à existência do lago. Os golfinhos foram reaproveitados, com o reordenamento do espaço, passando para a zona mais a poente da avenida. Com a reformulação da Praça do Bocage levada a efeito em 1988, da autoria do Arq. Sérgio Dias, foi criado o espaço para a musa inspiradora do poeta que simbolicamente a este se dirige através do percurso de água. Em 1993 é construída a Fonte da Praça da Independência, anunciando Setúbal a quem chega do sul do país pela Estrada Nacional N.º 10. Com a realização das obras do Programa POLIS na Av. Luisa Todi é construído o monumento em evocação a Sebastião da Gama. Um cubo de pedra cálcária, que numa inspiração bucólica deixa cair a água que desce até à fonte dos golfinhos simbólicamente, também, representando o Rio Sado. A última das referência à água em espaço urbano em Setúbal é na rotunda construída no cruzamento da Avenida Manuel Maria Portela com a Rua António José Baptista, evocando os comboios de Portugal (CP), com inspiração nas vias férreas atravessando vales e montes.

CONCLUSÃO A cidade é criada pelo homem, para o homem, para uma melhor qualidade de vida nas mais variáveis das necessidades humanas, nomeadamente serviços, equipamentos, infraestruturas e ligações sociais. Com uma vida milenar, a cidade vai sofrendo mutações, no espaço e no tempo, criando novos lugares apropriados e readaptados à vida humana, nos vários momentos que vai atravessando na sua evolução técnico-científica, socio-económica e histórico-cultural. Muitos são os vestígios deixados pela apropriação do espaço, tornado público, pelos habitantes e memórias das vivências passadas. Temos assim, à nossa guarda, um património tangível, testemunho de valores intangíveis, que encerra os nossos valores culturais e faz parte da nossa identidade. Neste património deixado pelos artefactos, engenhos e equipamentos de água pública são bem visíveis estes valores. Alguns, com mais visibilidade emblemática, aliavam a função à técnica e à sua presença, que se queria relevante de monumentalidade e de estética, outros com menos visibilidade, ou mesmo já desaparecidos, mas todos eles contendo valores intangíveis que fazem parte da história, da memória do povo, que deve ser preservada, e permanecem no culto das gerações. Com a evolução na captação, na adução e na distribuição de água, a maioria destes equipamentos deixaram de ter a sua função, mas apesar disso será necessário que não seja criado um vazio no espaço agora “devoluto”, que irá sendo abusivamente transformado pela ocupação sem critérios. Nesta mutação, que se vai produzindo na cidade por todos nós, e para todos nós, é também necessário que os actuais equipamentos, que pela sociedade actual vão sendo produzidos ou construídos, constituam futuramente, também eles, marcos dos valores culturais das nossas vivências, que possam ser deixados à sociedade futura, com prestígio, elevação técnica, cientifica e estética, que identifiquem, dignifiquem e valorizem a cidade do passado, da actualidade e do futuro.

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Concurso de Fotografia | Ciclo de Conferências Manuela Maria Justino Tomé

Concurso de Fotografia Ciclo de Conferências | Évora Menção honrosa | Manuela Maria Justino Tomé

Aqueduto de Setúbal.

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Câmara Municipal de Évora – Convento dos Remédios, Av. de S. Sebastião, Évora, Portugal Tel. 00351 + 266 777 000 | Coordenadas JPS: UTM, M0594608, P4269808

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