O Pensamento Afetivo na Mistura de Elementos Documentais dentro da ficção Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo.

July 1, 2017 | Autor: Marina Botelho | Categoria: Cinema, Realismo Cinematográfico, Pensamento Afetivo (Deleuze), Ficção e Documentário
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Pensamento Afetivo na Mistura de Elementos Documentais Dentro da Cinematográfica de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo

JUIZ DE FORA

Ficção

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OUTUBRO 2012 MARINA ALVARENGA BOTELO

Pensamento Afetivo na Mistura de Elementos Documentais Dentro da

Ficção

Cinematográfica de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção de grau de Bacharel em Comunicação Social na Faculdade de Comunicação Social da UFJF Orientador: Prof. Dr. Nilson Assunção Alvarenga

JUIZ DE FORA OUTUBRO 2012

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Marina Alvarenga Botelho

Pensamento Afetivo na Mistura de Elementos Documentais Dentro da

Ficção

Cinematográfica de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção de grau de bacharel em Comunicação Social na Faculdade de Comunicação Social da UFJF

Orientador: Prof. Dr. Nilson Assunção Alvarenga

Trabalho de Conclusão de Curso / Dissertação aprovado (a) em 26/10/2012 pela banca composta pelos seguintes membros:

___________________________________________________ Prof. Dr. Nilson Assunção Alvarenga (UFJF) - Orientador

___________________________________________________ Profª. Drª. Alessandra Souza Melett Brum (UFJF) - Convidada

___________________________________________________ Prof. Mr. Cristiano José Rodrigues (UFJF) – Convidado

Conceito obtido:______________________________________

Juiz de Fora Outubro 2012

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Agradeço aos meus pais, por me proporcionarem a oportunidade de estudar na UFJF. Agradeço a minha mãe, pela preocupação e pela força. À minha irmã, pelo carinho. À Vó Lila pelo constante apoio e à Vó Gê por me levar ao caminho das artes. Agradeço ao professor Nilson, pela orientação. Ao PET: por ter sido uma base de aprendizado, de amizades e momentos únicos, e por ter me dado espaço para realizar essa pesquisa. Agradeço aos amigos Rodrigo Souza e Janaína Morais, pela amizade e por terem me levado ao cinema para assistir Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo pela primeira vez. À Janaína, pelo incentivo; ao Rodrigo pela ajuda e pelas discussões teóricas acerca do trabalho. À amiga Marília Lima, pela disponibilidade e pelas dicas com a pesquisa. Agradeço ao João Maurício, pelo carinho e por acreditar em mim. Pela ajuda com as traduções e sugestões sobre o trabalho.

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RESUMO Pela própria forma como foi produzido, inserido no cenário do cinema brasileiro contemporâneo, são encontradas no filme Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo características peculiares. As imagens possuem, inicialmente, valor documental no tocante a serem asserções sobre o mundo histórico – essas imagens são chamadas de imagem-câmera; enquanto, o som, por outro lado, é o responsável por ditar o tom ficcional e, por vezes, deslocar a função inicial da imagem para que ela se torne uma imagem diegética. Parte-se de teorias do realismo cinematográfico e de estudos sobre o pensamento no cinema. A partir daí, pretende-se identificar os tipos de pensamentos gerados por essas situações, utilizando-se principalmente, do conceito de imagem-tempo, de Gilles Deleuze. Intenciona-se, portanto, entender como se dá a experiência fílmica do espectador. Posteriormente é feita análise fílmica de cenas pontuais. Palavras-chave: Cinema, Realismo, Pensamento Afetivo

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .........................................................................................................6

2 O REALISMO CINEMATOGRÁFICO CONTEMPORÂNEO..........................9 2.1 O Realismo em André Bazin.....................................................................................9 2.2 Deleuze e o Realismo...............................................................................................21 2.3 Imbricações do Real na Ficção e o Documentarismo Poético................................25

3 O PENSAMENTO AFETIVO NO CINEMA.......................................................37 3.1 O Pensamento Autônomo........................................................................................37 3.2 O Afeto e o Pensamento Afetivo............................................................................42

4 SOBRE O FILME....................................................................................................45 4.1 Do Cinema Brasileiro Contemporâneo....................................................................45 4.2 Da Realização: Imagens Documentais, Filme de Ficção.........................................48 5 ANÁLISE..................................................................................................................53 5.1 Análise Descritiva do Filme ....................................................................................53 5.1.1 A Metodologia de Análise...........................................................................53 5.1.2 Análise Descritiva dos Elementos Imagem, Voz e Som..............................53 5.2 Análise Conceitual...................................................................................................64 5.2.1 Metodologia de Análise Conceitual.............................................................64 5.2.2 A Análise,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,..........65

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................74

7 REFERÊNCIAS........................................................................................................76

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho é produto de uma pesquisa que teve início em 2009, sobre o filme Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz. Em um primeiro momento identificou-se no filme, dentre outras características, a mistura entre ficção e documentário. Pela própria forma como o filme foi produzido, as imagens têm caráter documental, de carregar informações e asserções sobre o mundo histórico, chamadas de imagens-câmera. Por sua vez, o som é o responsável por ditar o tom ficcional do filme. Notou-se um embate constante entre som e imagem, entre ficção e documentário no filme. Por vezes, o som colaborava para construir uma imagem-câmera em que o espectador aceitava a idéia de um documentário; outras vezes, o som era responsável por deslocar a imagem de sua função inicial e transformá-la em imagem diegética, dando ao filme um tom mais poético, dramático e ficcional. Com essas características e analisando-o à luz de conceitos contemporâneos, derivados da abordagem deleuzeana do cinema, é possível identificar no filme mecanismos que levam o espectador a ter pensamentos afetivos. Muitas perguntas surgem no caminho, como “o que é preponderante na experiência: imagem ou texto?”. “Como o espectador lida com a ausência de um personagem com quem se identificar?”. “Que tipo de pensamento é proposto ao espectador a partir dos embates existentes no filme?”. A partir daí, identificou-se certa tendência do filme a um cinema realista, na visão do teórico e crítico André Bazin. Portanto, o segundo capítulo deste trabalho discute a idéia de realismo para Bazin a fim de entender como alguns mecanismos do filme operam e quais formas de pensamento podem propor ao espectador. Viu-se necessário também fazer um

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aprofundamento sobre o realismo no cinema e pensamento. Para tanto, estudou-se as idéias do filósofo francês Gilles Deleuze, ainda no primeiro capítulo, em que conceitos importantes para entender a dinâmica fílmica como imagem-tempo e pensamento afetivo são apresentados. Além disso, é explorado o terreno de discussões sobre documentário a partir da abordagem de Fernão Pessoa Ramos, bem como o documentário poético, por Bill Nichols. Ainda nesse capítulo, são vistas idéias de Denilson Lopes, sobre como o banal pode ser sublime e poético. No entanto, é importante pensar que os pensamentos de Bazin e Deleuze não dão conta, sozinhos, de entender o cinema contemporâneo realista, principalmente por serem estudos das décadas de 60, 70 e 80. Para isso, são apresentadas teorias contemporâneas. Lisa Akervall e Ils Huygens serão os autores apresentados no terceiro capítulo, que trata mais especificamente de pensamento e pensamento afetivo. Outro elemento importante de perceber é como o filme Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo se localiza no cinema brasileiro contemporâneo. O quarto capítulo é sobre o filme. Além de um breve panorama sobre as tendências no cinema brasileiro contemporâneo, é apresentada a forma de produção do filme, pelos próprios diretores. Imagens foram gravadas em 1999 pelos diretores ao fazerem uma viagem pelo sertão. A voz over e a ficção foram adicionadas somente no final da década de 2000, dando vida ao filme em questão. Saber sobre esse processo de realização é importante tanto para entender a constante fricção entre documentário e ficção como entre voz e imagem. Em uma última instância, portanto, são feitas análises descritivas e conceituais do filme, que não têm pretensões maiores que entender, a partir do que é dado pelo filme, as possibilidades de pensamento que podem emergir. A análise busca momentos, no filme,

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passíveis de pensar como são criadas situações óticas e sonoras que podem proporcionar o pensamento afetivo no espectador.

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2 O REALISMO CINEMATOGRÁFICO CONTEMPORÂNEO

2.1 O REALISMO EM ANDRÉ BAZIN

André Bazin é de grande importância para a história do cinema e do realismo. O crítico francês foi o criador de muitas das idéias responsáveis por incitar os cineastas da onda da Nouvelle Vague, principalmente no tocante a “como ver um filme”. Bazin rompeu com as formas teóricas tradicionais, ao analisar o filme a partir do espectador, e através de suas críticas e ensaios. Não é à toa que foi um dos principais fundadores da Cahiers du Cinema1 e ao lado de críticos e cineastas, difundiram idéias de cinema para toda França e para todo o mundo, tendo um papel inegável no movimento Nouvelle Vague e na “política dos autores”. Bazin presenciou uma época de mudanças no cinema, com o surgimento do cinema moderno e as modificações que vieram junto com ele, principalmente no tocante a inovações estéticas e de linguagem. Um dos elementos mais inovadores trazidos por André Bazin foi que a partir de um filme, de uma análise de um filme e suas peculiaridades que Bazin formulava “leis” ou identificava mecanismos novos. Ismail Xavier em seu livro, “O Discurso Cinematográfico – A Opacidade e a Transparência” (1977), faz grande menção ao “Modelo de Bazin” ao falar de realismo. Aqui, ele junta as idéias de Sigmund Krakauer às de Bazin para discutir as ideais do “realismo

1 Cahiers Du Cinema foi, provavelmente, a mais importante revista francesa de crítica de cinema, criada em 1951 por Bazin e outros grandes nomes do cinema francês. Pode ser acessada pelo site www.cahiersducinema.net

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revelatório e a crítica à montagem”. Nesse capítulo, Xavier ressalta idéias dos principais ensaios e textos de Bazin. Para Xavier, o que Bazin faz é deixar de lado a linha cronológica de uma possível “evolução” do cinema clássico, ressaltando o potencial realista do cinema. Bazin faz isso criticando a montagem clássica e russa, ao perceber que os neo-realistas e cineastas como Welles, Wyler e Renoir minimizavam o papel da montagem, dando prioridade a elementos como plano seqüência e profundidade de campo na imagem. Ele demonstra que recursos como esse são capazes de trazer o espectador para fazer sua própria decupagem da cena, bem como identifica que a passagem do tempo na tela se assemelharia à passagem do tempo na vida real. O real para Bazin é a realidade física, vivida, concreta, e não o tempo marcado no relógio. Portanto, o cinema realista e a realidade “física” poderiam ser considerados experiências perceptivas semelhantes, pela forma como o espaço e o tempo são trabalhados na imagem, e pela minimização da decupagem e da montagem. Bazin está aqui chamando a atenção para certa fidelidade que o espectador terá em relação à sua própria percepção natural da vida. E essa vocação do cinema, a vocação realista, é o que, para o Bazin, exigirá maior atividade mental do espectador, fazendo com que ele participe na construção de sentido do filme. Adiante serão discutidas outras principais idéias de Bazin em relação ao cinema, através de ensaios pontuais que mais contribuirão para ser entendido tanto o conceito de realismo cinematográfico, quanto porque é realista o filme Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo

Ontologia da Imagem Cinematográfica e o Mito do Cinema Total

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Com a invenção da fotografia, pela primeira vez, o homem passa a ter acesso a uma imagem indicial, objetiva, não subjetiva. É importante ressaltar aqui que para Bazin não importava a subjetividade trazida pelo olhar do fotógrafo ao escolher posicionamentos e detalhes técnicos de sua fotografia. O que está em jogo é que pela primeira vez, a parte da realidade visada pela câmera está impressa na película e, mesmo que levemos em conta os limites químicos de registro da película (ou de um sensor digital), esse registro é feito de forma direta, sem a mediação da mão humana. O tempo e o espaço representados ali são índices do objeto. Esse fator da, o aparato mecânico e não mais as mãos de um pintor retratando algo, é um dos principais fatores que dá vida à vocação realista do cinema. Nesse sentido, para Bazin, “o cinema vem a ser a consecução no tempo da objetividade fotográfica [...] Pela primeira vez a imagem das coisas é também a imagem da duração das coisas”. (Bazin, 1991, p.24) Com o surgimento de técnicas capazes de reproduzir a realidade com a maior indicialidade possível, a fotografia e o cinema, passam, muitas vezes a serem confundidos com o “espelho da realidade”. É importante ressaltar que, mesmo que o cinema realista carregue esse nome, a realidade nunca é alcançada como tal; tudo isso é parte do mito do cinema total. O mito do realismo integral, de uma recriação do mundo à sua imagem, uma imagem sobre a qual não pesaria a hipoteca da liberdade de interpretação do artista, nem a irreversibilidade do tempo. (Bazin, 1991, p.30)

É importante pensar, no entanto, que, sendo Bazin não só teórico, mas crítico de cinema, que o conceito de realismo não diz respeito somente à sua ontologia, mas, sobretudo, no sentido da sua linguagem cinematográfica: “Por outro lado, o cinema é uma linguagem” (Bazin, 1991, p. 25). Ou seja, é importante a reflexão sobre a ontologia, sobre a vocação

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realista do cinema como tal para o realismo; mas o cinema também é uma forma concreta de expressão, com o uso de certos recursos e artifícios.

Montagem Proibida

Em montagem proibida Bazin expõe a diferença básica entre um filme cuja montagem é necessária para criar o sentido desejado e um filme em que o sentido preexiste à montagem, e portanto, obedece mais à “realidade”, dando maior credibilidade ao espectador sobre o acontecimento. Para criar suas hipóteses e conclusões, ele parte da análise de três diferentes filmes: The Secret of the Magic Island (Jean Tourrane, 1957), O Balão Vermelho (1956) e Crin Blanc: Le Cheval Sauvage (1953), ambos de Albert Lamorisse. O primeiro filme é feito com animais verdadeiros e domesticados, com características e sentimentos humanos. Em outras palavras, é um filme antropomórfico, em que truques são necessários para fazerem os animais “atuarem”, mas que a ilusão da montagem é imprescindível para criar o efeito desejado pelo diretor. Para Bazin “O antropomorfismo [de Jean Tourane] é o mais baixo. A um só tempo o mais falso cientificamente [por serem os sentimentos e comportamentos dos animais sempre comparados aos dos homens, e nunca pensados como se fossem mesmo deles] e o menos transposto esteticamente [pela extrema dependência da montagem]”. (Bazin, 1991, p.56). Já no filme O Balão Vermelho acontece o zoomorfismo em relação a um balão. Embora também haja truques para que o balão “voe” por aí sozinho, tenha atitudes quase humanas, todas as vezes que isso acontece, acontece sem haver montagem. Ou seja, o balão

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“realiza realmente diante das câmeras os movimentos que o vemos realizar [...] e não resulta dos prolongamentos virtuais da montagem.” (Bazin, 1991, p.57). Nesse caso, o filme recorre à montagem acidentalmente, mas não depende dela. Uma das grandes diferenças entre esses dois filmes é que o primeiro tem cenas que são unicamente sugeridas pela montagem, enquanto o outro tem cenas sem truques. No filme Crin Blanc o uso da montagem é semelhante ao do Balão Vermelho. A história é sobre a relação de um menino e um cavalo selvagem e há cenas em que menino, cavalo e possíveis perigos estão em um mesmo quadro, em um mesmo espaço, sem recorrer à montagem invisível. Isso dá muito mais credibilidade à cena: É preciso que o imaginário tenha na tela a densidade espacial do real. A montagem só pode ser utilizada aí dentro de limites precisos. [...] não é permitido ao realizador escamotear, com o campo/contra-campo, a dificuldade de mostrar dois aspectos simultâneos de uma ação. (Bazin, 1991, p.60)

A partir da análise desses três filmes, Bazin formula que “Quando o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação, a montagem fica proibida”. (Bazin, 1991, p.62)

Evolução da Linguagem Cinematográfica

Diferentes conceitos existem para falar de cinema mudo, cinema falado, cinema sonoro (dentre similares), pois embora não houvesse diálogos e sons ambientes em filmes até o final da década de 30, havia em grande parte das sessões, bandas fazendo acompanhamentos sonoros, comprovando que o som tinha sim seu papel, seu encaminhamento para determinados sentimentos provocados no espectador.

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A partir de inovações tecnológicas público e crítica acostumados com a era do cinema “não-falado” se deparam com um maior papel que o som poderia exercer nos filmes. Muitos adotam a posição apocalíptica do final da sétima arte como entendida, muitos querem fazer musicais e Bazin acredita que o som contribuirá para aumentar o realismo no cinema. Para ele, não há necessariamente mudanças nas estruturas na passagem do filme mudo para o sonoro, em termos de narrativa e decupagem. Para ele, algumas falhas que podem ser apontadas no cinema dos anos 30: Certos valores do cinema mudo persistem no cinema falado, mas, principalmente, que ser trata menos de opor o ‘mudo’ ao ‘falado’ do que, em ambos, famílias de estilo, concepções, fundamentalmente diferentes da expressão cinematográfica. (Bazin, 1991, p.66)

Para identificar esse “nem-tão-novo-assim” cinema, Bazin divide as tendências em dois grupos: “os diretores que acreditam na imagem e os diretores que acreditam na realidade”. Em Bazin “imagem [é] tudo aquilo que a representação na tela pode acrescentar à coisa representada”. Em outras palavras, o autor se refere a elementos como a plástica da imagem, a montagem (não só em cada cena, mas em toda a construção do filme), e que ele identifica, principalmente nos filmes clássicos americanos de antes da Segunda Guerra Mundial, como montagem “invisível”. Os cortes dos planos não têm outro objetivo que o de analisar o acontecimento segundo a lógica matemática ou dramática da cena. [...] o espírito do espectador adota naturalmente os pontos de vista que o diretor lhe propõe. (Bazin, 1991, p.65 e 66)

Esse tipo de pensamento ou sentimento que é induzido pelo diretor, dentre outros recursos, pela montagem, vai ser importante para contrapor o tipo de pensamento/sentimento que é gerado pelos filmes realistas, e no caso, mais adiante, por Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo.

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Ainda sobre a montagem, que, como já dito, tem o seu âmbito tanto dentro de cada cena como em todo filme, Bazin identifica três principais tipos de montagem no cinema clássico hollywoodiano, no cinema francês e no cinema soviético: “montagem paralela” 2, “montagem acelerada”3 e “montagem de atrações”4. Embora cada tipo de montagem exerça funções diferentes em seus cinemas, Bazin aponta que os efeitos da montagem de atrações pode ser o melhor tipo de definição do que, no geral, é a montagem: “podemos reconhecer nelas o traço comum que é a própria definição de montagem: a criação de um sentido que as imagens não contêm objetivamente e que procede unicamente de suas relações.” (Bazin, 1991, p.68) Talvez o melhor dos exemplos seja o exemplo da clássica experiência do cineasta russo Lev Kulechov. Nessa experiência, o mesmo primeiro plano do rosto de um homem sorrindo é seguido por diferentes planos, como uma mesa servida de comida, uma criança, depois uma mulher e outros. Nos diferentes casos, o mesmo primeiro plano do rosto, a partir da montagem da imagem consecutiva, formava diferentes significados e sentimentos. Em outras palavras, esses tipos de montagem serão sempre alusões a algum significado, nunca carregarão o significado na própria imagem; elas dependem da montagem. “O sentido não está na imagem, ele é a sombra projetada pela montagem, no plano de consciência do espectador” (Bazin, 1991, p.68). Ainda em relação à evolução da linguagem cinematográfica, as inovações tecnológicas melhoraram não só a qualidade da imagem em relação às películas, mas foram essenciais para o advento do som no cinema. Assim, como a imagem já estava “completa”,

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Montagem que dá ilusão de simultaneidade de acontecimentos distantes no espaço, por vezes culminando com um clímax. Montagem que dá ilusão de movimento sem recorrer a imagens reais de velocidade; isso se dá pela multiplicação de planos cada vez mais curtos. 4 Montagem normalmente utilizada no cinema soviético por diretores como Eisenstein. Pode também ser chamada de montagem de choque, onde o sentido é criado através da utilização de planos consecutivos que não tem necessariamente relação entre si, e que vão gerar metáforas ou comparações, trabalhando no simbólico. 3

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capaz de ser trabalhada e vista nas mais diversas nuances, também por elementos completos de cenário, figurino e outros, o som no cinema clássico hollywoodiano “só poderia desempenhar, no máximo, um papel subordinado e complementar” (Bazin, 1991, p.69). Nesse sentido, ainda no cinema mudo é possível encontrar sementes que o aproximariam do realismo, já que, nele, “a imagem vale, a princípio, não pelo que acrescenta mas pelo que revela da realidade”. Portanto, tendo o realismo a imagem com uma função diferente do cinema clássico, nesse caso, o som seria muito bem vindo, para contribuir para trazer ao espectador mais elementos que o colocariam perto da percepção da realidade. Bom, se o cinema falado então, por si só, não trouxe nenhuma inovação na linguagem cinematográfica, Bazin procura outros caminhos para entender o princípio dessa evolução, e começa com o questionamento dos temas e dos estilos necessários à sua expressão. É aí que passando também pela plástica levada ao extremo pelo expressionismo alemão e já no cinema falado, Bazin chama a atenção para alguns principais diretores, dentre eles Orson Welles e William Wyler, que utilizavam de recursos caros ao cinema clássico, como a profundidade de campo, planos sequências que mais exigiam dos atores entrando e saindo em cena e do espectador para fazer seus próprios cortes. A profundidade de campo bem utilizada não é somente uma maneira a um só tempo mais econômica, mais simples e mais sutil de valorizar o acontecimento; ela afeta, com as estruturas da linguagem cinematográfica, as relações intelectuais do espectador com a imagem e, com isso, modifica o sentido do espetáculo. (Bazin, 1991, p.77)

Assim, a profundidade de campo possibilita a ambigüidade na estrutura da imagem e se assemelha, em muito com a ambigüidade da própria realidade. O espectador é convidado a todo momento a participar, a atuar. Filmes do neo-realismo, portanto, também possuem essa ambigüidade do real, pela montagem minimalista que se opõe a um tipo de

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cinema predominante até então. Assim, como elemento inédito, Bazin afirma a necessidade de atuação do espectador no filme. Sua participação intelectual é exigida a todo tempo. Em resumo é possível entender pelas palavras do próprio autor: No tempo do cinema mudo, a montagem evocava o que o realizador queria dizer; em 1938, a decupagem descrevia; hoje, enfim, podemos dizer que o diretor escreve diretamente em cinema. A imagem – sua estrutura plástica, sua organização no tempo -, apoiando-se num maior realismo, dispõe assim de muito mais meios para infletir, modificar de dentro a realidade. (Bazin, 1991, p.81)

O Realismo e a Escola Italiana da Liberação

No presente artigo Bazin defende que o neo-realismo não surgiu “do nada”. Mesmo que tenha sido pouco conhecido o cinema italiano antes da guerra, nele já existiam alguns traços predecessores do neo-realismo, mesmo embora “A tendência realista, o intimismo satírico e social, o verismo sensível e poético, não foram até o início da guerra senão qualidades menores” (Bazin, 1991, p.236) Além disso, defendia ainda o título de Escola Italiana da Liberação e a função primordial que a conjuntura histórica teve para o surgimento desse novo realismo: Vários dos elementos da jovem escola italiana preexistiram, portanto, à Liberação: homens, técnicas e tendências estéticas. Mas a conjuntura história, social e econômica precipitou repentinamente uma síntese na qual se introduziam, aliás, elementos originais. (Bazin, 1991, p.236)

Enquanto na França os filmes eram ligados à Resistência dos movimentos políticos, na Itália se ligavam à Liberação, embora não tenha significado uma liberação em relação a tempos passados, mas a uma revolução política, à ocupação de aliados e à desorganização econômica e social. Isso gerou conseqüências diretas na vida econômica e social da Itália.

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Esses elementos, como dito, vão refletir não só no tema dos filmes, mas no modo como são feitos. E como já dizia Bazin “Saber como o filme nos diz alguma coisa é mais uma maneira de compreender melhor o que ele quer nos dizer”. Posto isso, algumas das principais características que fizeram parte desse cinema foram a adesão à realidade, tratando de temas que estavam ali sendo vivenciados pela sociedade, e, assim, adquiriam mesmo um valor quase documental daquela época; o uso freqüente de atores não profissionais, que faziam o papel de si mesmos em situações corriqueiras, ou mesmo a escolha de figurantes que passavam pelo local de filmagem na hora; um certo grau de improvisação derivada de escolhas como a anterior, que se permitia sair fora do roteiro e acolher elementos “reais”; escolha pela profundidade de campo na fotografia; e a técnica do relato, esses dois últimos serão discutidos a seguir. Em relação ao uso de atores não profissionais, Bazin deixa claro que não era necessariamente um método novo e revolucionário e aprofunda sua explicação: Não é a ausência de atores profissionais que por caracterizar o realismo social no cinema, tampouco a escola italiana atual, mais precisamente, porém, a negação do princípio da vedete e a utilização indiferente de atores profissionais e atores ocasionais. O que importa é não colocar o profissional em seu lugar habitual: a relação que ele entretém com seu personagem não deve ser sobrecarregada para o público com nenhuma idéia a priori. (Bazin, 1991, p.240)

A partir daí Bazin escolhe chamar de realista “todo sistema de expressão, todo procedimento de relato propenso a fazer aparecer mais realidade na tela”. (Bazin, 1991, p.240) Em relação à profundidade de campo, Bazin faz o elogio a Orson Welles, por Cidadão Kane (1941). Ali, com a ausência de decupagem pelo uso da profundidade de campo e planos mais longos, “é a mente do espectador que se vê obrigada a discernir, no espaço [...] o espectro dramático da cena.” (Bazin, 1991, p.245). E é por isso, no seu ponto de vista, que Cidadão Kane pode ser considerado realista.

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Já sobre o filme Paisà (1946), de um dos principais diretores do neo-realismo, Roberto Rossellini, André Bazin ressalta uma das características principais que irão compor o rol de elementos que podemos utilizar para identificar um filme realista, que nesse caso é a técnica do relato. O filme se passa durante os momentos da Liberação e da Resistência e é contado por cinco histórias que se interligam somente pelo pano de fundo que é o tema. Hoje é comum vermos filmes montados dessa forma, mas como afirma Bazin, até aquele momento “só conhecíamos o filme de sketches, gênero...” (Bazin, 1991, p.250) Assim, Paisá deu conta de fazer um filme coerente e com uma unidade identificável, através de cinco diferentes grandes blocos narrativos. A unidade do relato cinematográfico em Paisà não é o “plano”, ponto de vista abstrato sobre a realidade que se analisa, mas o “fato”. Fragmento de realidade bruta, por si só múltiplo e equívoco, cujo “sentido” se sobressai a posteriori, graças a outros “fatos” entre os quais a mente estabelece relações. (Bazin, 1991, p.253)

Dito isso, é necessário dar mais um passo adiante, para que seja pontuado o significado do cinema realista para Bazin, que é o artigo sobre o filme Ladrões de Bicicleta, (Vittorio De Sicca, 1948), que é capaz de reunir a maior parte dos elementos ressaltados por Bazin como as principais características do neo-realismo.

Ladrões de Bicicleta

Como todo movimento estético, o neo-realismo atingia, por volta de 1948, seu esgotamento e superprodução. Não obstante, surge, nesse mesmo momento um filme que ao mesmo tempo é pertencente ao neo-realismo, se destaca sobre os demais, conseguindo construir para si mesmo uma quase independente “aura”.

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Bazin aponta, nesse artigo, como De Sica utilizou esses recursos: o tema social e atual, embora sem tocar no assunto guerra; a situação totalmente corriqueira e banal, sem nenhum apelo de fait divers; o uso de atores não profissionais; a filmagem totalmente feita nas ruas; o espaço para improvisações apesar de um roteiro bem formulado; a montagem enfatizando os “fatos”. Ele acredita ainda que o filme é um dos primeiros, se não o primeiro, que consegue transpor todo esse pano de fundo social/psicológico/pessoal a um tema universal e objetivo. Para Bazin, De Sica “evita trapacear com a realidade, não apenas dispondo na sucessão dos fatos uma cronologia acidental e como que anedótica, mas tratando cada um deles em sua integridade fenomenal”. (Bazin, 1991, p.268) E ainda, Os acontecimentos não são essencialmente signos de alguma coisa, de uma verdade de que seria preciso nos convencer, eles conservam todo seu peso, toda sua singularidade, toda sua ambigüidade de fato. (Bazin, 1991, p.268)

Através da explicitação da forma como foi feito o filme, Bazin explora o universo criado por ele, pela sua extrema naturalidade e ele afirma ainda, por ser cinema “puro”. “Desaparecimento do ator, desaparecimento da mise-en-scène? Sem dúvida, mas porque no princípio de Ladrões de Bicicleta há, antes de tudo, o desaparecimento da história.” Isso acontece no sentido que, é claro que se passa uma história, mas essa história é um relato, não acontece realmente nada se comparado à narrativa clássica. O que se passa aqui é o acompanhamento de uma situação extremamente banal. Junto com outros filmes, o filme de De Sica faz parte de “filmes sem ‘ação’, cujo desenrolar não concede nada à tensão dramática. Os acontecimentos surgem ali na sua hora, uns após os outros, mas cada um deles tem o mesmo peso.” (Bazin, 1991, p.277) E também “a ação não preexiste a ele como uma essência, ela decorre da existência preliminar do relato, ela é a “integral” da realidade.” (Bazin, 1991, p.277)

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Esse filme se apresenta como um marco justamente pela sua capacidade independente de ser não só parte do neo-realismo, mas se apresentar individualmente como um filme realista, que dá conta de principais características derivadas da estética italiana em questão, e que será importante para consolidar esse tipo de cinema. As pontuações de André Bazin são de extrema importância para se entender o que é hoje chamado de realismo contemporâneo no cinema. Para tanto, será trazido também à discussão o autor Gilles Deleuze, que retoma os pensamentos de André Bazin e atualiza-os, apresentando novos conceitos acerca desse cinema.

2.2 DELEUZE E O REALISMO

Para iniciar a conversa sobre Deleuze, é necessário, antes, rever o significado dos principais conceitos utilizados para expor suas idéias. Roberto Machado faz um resumo conciso em “Deleuze e a Crise do Cinema Clássico” e é de grande contribuição para introduzir esses conceitos. Levando-se em conta o cinema como uma forma de pensamento, Deleuze divide o cinema em dois, de acordo com os tipos de imagens geradas pelo período histórico: o cinema clássico e cinema moderno. Mas também divide o cinema em dois, de acordo com o tipo de imagem gerada e a representação do tempo nelas: o cinema das imagens-movimento e o das imagens-tempo. No entanto, o cinema clássico não deixa de existir depois do moderno, pois há filmes modernos em que há “momentos clássicos” (imagem-movimento), como também há filmes clássicos com “momentos modernos” (imagens-tempo).

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Com isso ele quer dizer que o cinema clássico, em suma, o cinema hollywoodiano, é um cinema de ação. Isso porque cada imagem gera uma ação, que vai gerar outra ação e que sucessivamente, vão construir uma unidade lógica no filme, através do encadeamento dos planos. Deleuze chama isso de encadeamento sensório-motor. Normalmente o encadeamento de ações deve-se à presença de um personagem principal, que age e reage sobre o meio, que a cada ação, gera uma nova ação, uma situação modificada. Dentro das imagens-movimento, há três tipos de imagens. “Assim, a imagemmovimento do cinema clássico apresenta uma imagem indireta do tempo a partir da composição, da conexão, do agenciamento de imagens-percepção, imagens-ação e imagensafecção”. (MACHADO, 2009, p. 202) O primeiro tipo diz respeito ao plano geral. A imagem-afecção corresponde ao close e ao primeiro plano e pode ser reflexiva, ao gerar pensamento, ou intensiva, ao gerar sentimento. E já a imagem-ação corresponde ao plano médio. Pensa-se o modo como o vínculo sensório-motor se estabelece na percepção do espectador justamente por causa do encadeamento constante de plano-geral, plano-médio, primeiro plano. Já na imagem-tempo, a cena se prolonga no tempo e isso muda a natureza da percepção. Esse cinema clássico, de ação, entra em crise após a Segunda Guerra. É com o neo-realismo italiano que há o surgimento de um outro tipo de imagem, diferente do cinema de imagem-movimento. Para Deleuze, o cinema italiano cria a imagem-tempo, e isso pode ser identificado por elementos/característica dos filmes neo-realistas.

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Assim, através dessas características, há o surgimento de situações óticas e sonoras puras. “E com isso, Deleuze quer dizer que é pela criação de situações óticas e sonoras puras que o cinema impede a percepção de se prolongar em ação para relacioná-la diretamente com o pensamento e com o tempo.” (MACHADO, 2009, p. 205-206). Em conclusão, ocorre a passagem de um cinema sensório-motor, de ação, em que tudo já é encadeado e dado pronto para o espectador através, principalmente de clichês, em que tudo é montado pelo artifício da montagem, a um cinema revelatório, ou como diz Machado, “um cinema em que a percepção assume uma função de vidência” (MACHADO, 2009, p. 208). É possível retomar aqui o pensamento de Bazin, que já via no neo-realismo essa função de cinema revelatório, em que a realidade é colocada ali e o espectador deve olhá-la e, a partir desse exercício, serão gerados pensamentos ou afecções.

Da Realidade ao Pensamento

Gilles Deleuze em “A Imagem-Tempo” inicia seus pensamentos fazendo uma retomada ao neo-realismo e a André Bazin. Ele reafirma a importância do cinema italiano para o rompimento com o antigo realismo5 e a criação de novos tipos de imagem e signos. Bazin chamava esse tipo de imagem de imagem-fato, mas Deleuze se pergunta se ao invés de um novo tipo de real, não seria essa imagem ligada a um novo tipo de pensamento.

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O “neo”realismo é “neo” em relação ao cinema clássico, que supostamente buscava o realismo através da verossimilhança que poderia ser alcançada através da montagem invisível, da decupagem etc. Esse neo-realismo busca, por outro lado, uma nova abordagem da realidade, através de recursos estéticos e de linguagem.

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Através de seus argumentos é possível identificar que a resposta é sim, o neorealismo cria um novo tipo de pensamento, e isso será aprofundado no segundo capítulo desse trabalho, ao falar de “pensamento afetivo”. Por ora será feita uma compilação dos conceitos e idéias de Deleuze sobre o neo-realismo. Para ele, a mudança da imagem-movimento para a imagem-tempo do neorealismo tem a ver com a ascensão de situações puramente óticas e sonoras, que se diferem das imagens sensório-motoras do antigo realismo. E ainda O que o espectador percebia era, pois, uma imagem sensório-motora da qual participava mais ou menos, por identificação com as personagens. Hitchcock inaugurou a reversão deste ponto de vista, incluindo o espectador no filme. Mas é só agora que a identificação se reverte efetivamente: a personagem tornou-se uma espécie de espectador. (DELEUZE, 2007, p.11)

Esse pensamento é importante para entendermos a dinâmica fílmica do “Viajo Porque Preciso...”, já que na ausência de um corpo como personagem surgem questões como “quem é o personagem e quem é o espectador”? Será que eles não se confundem e se fundem como uma só pessoa experimentando o filme? Pontos que serão discutidos mais adiante.

O importante é sempre que a personagem ou o espectador, e os dois juntos, se tornem visionários. A situação puramente ótica e sonora desperta uma função de vidência, a um só tempo fantasma e constatação, crítica e compaixão, enquanto as situações sensório-motoras, por violentas que sejam, remetem a uma função visual pragmática que ‘tolera’ ou ‘suporta’ praticamente qualquer coisa, a partir do momento em que é tomada num sistema de ações e reações. (DELEUZE, 2007, p. 30)

Ainda tratando os pensamentos de Deleuze, outro ponto abordado por ele é a banalidade das situações do neo-realismo, em paralelo à banalidade das situações do cotidiano do ser humano. Na banalidade cotidiana, a imagem-ação e mesmo a imagem-movimento tendem a desaparecer em favor de situações óticas puras, mas estas descobrem ligações com um novo tipo, que não são mais sensório-motoras, e põem os sentidos liberados em relação direta com o tempo, com o pensamento. (DELEUZE, 2007, p. 28)

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Posto isso, é dado um passo em direção a outros questionamentos tão caros ao realismo.

2.3 IMBRICAÇÕES DO REAL NA FICÇÃO E O DOCUMENTARISMO POÉTICO

A partir da delimitação dos conceitos de realismo para Bazin e para Deleuze e os sinais que vêm aparecendo aos poucos sobre a banalidade cotidiana como um dos pontos chaves do realismo, a parte final desse primeiro capítulo tem como objetivo aprofundar algumas características estéticas freqüentemente presentes no realismo contemporâneo. Tom diarista, evocativo às lembranças, documental e poético podem ser encontrados em filmes chamados parte do realismo contemporâneo como Neste Mundo (Michael Winterbottom, 2002), Arca Russa (Aleksandr Sokurov, 2002) e em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo.

Para começar a tratar desses assuntos será feito breve resumo dos pensamentos de Fernão Pessoa Ramos, um dos principais autores sobre documentário no Brasil. Ramos discute, tentando delimitar conceitos, o que é documentário, em seu livro “Afinal, o que é mesmo Documentário?” (RAMOS, 2008). Antes de tudo, é importante ressaltar as palavras do autor: “definir documentário, na realidade, faz parte de uma estratégia provocativa, de conquistar espaço mexendo os cotovelos” (RAMOS, 2008, p. 5). Isso porque esse é realmente um terreno delicado e as formas de enxergá-lo são várias.

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Dentro de diversos conceitos e pré-conceitos sobre o que é documentário, Ramos afirma “podemos afirmar que o documentário é uma narrativa basicamente composta por imagens-câmera [...] que estabelece asserções sobre o mundo, na medida em que haja um espectador que receba essa narrativa como asserção sobre o mundo.” (RAMOS, 2008, p. 22) As imagens câmeras e a dimensão das tomadas são fatores que diferenciam o documentário de outras formas assertivas. E fazer asserções sobre o mundo histórico é ainda um dos fatores que tornam claras as diferenças entre documentário e ficção. Embora seja difícil dar nome às coisas, isolá-las em termos não-fluidos, é possível pensar em um determinado conjunto de filmes que possuem características semelhantes, singulares e estáveis, que podem ser chamados de documentários, em contraponto à ficção. Essas características ligam-se principalmente às formas e estilos de asserções sobre o mundo, que foram mudando historicamente. No documentário clássico, até o final dos anos 1950, predomina a locução fora-decampo (a voz over ou a voz de Deus). É uma voz que possui saber sobre o mundo. [...] A partir dos anos 1960, com o aparecimento da estilística do cinema direto/verdade, o documentário mais autoral passa a enunciar por asserções dialógicas. (RAMOS, 2008, p. 23)

Os enunciados dialógicos eram dados principalmente através de entrevistas e depoimentos. Já se passava assim a dar voz às pessoas, ao mundo, e à sua percepção em relação a esse mundo. Essa abordagem mais participativa do documentário se deve à atuação do cineasta, para provocar a existência dos enunciados. “É geralmente o ‘eu’ que fala, estabelecendo asserções sobre sua própria vida. [...] O documentário, portanto, se caracteriza como narrativa que possui vozes diversas que falam do mundo, ou de si”. (RAMOS, 2008, p. 23-24) Posto isso, Ramos parte para responder a pergunta “Mas... estabelece igualmente asserções sobre o mundo?”. É importante levar em conta que o espectador ao se propor a

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assistir um filme de ficção, ele igualmente se propõe a entrar e a aceitar um universo ficcional, seus personagens, seus cenários e suas tramas. Ele procura ali se entreter com esse universo de ficção. Ou seja, “o espectador sabe de antemão estar vendo uma ficção ou um documentário e estabelece sua relação com a narrativa em função desse saber”. (RAMOS, 2008, p. 24) Um exemplo seriam os “mockumentaries”, que são ficções em formatos de documentários, utilizando elementos de asserção, como entrevistas, voz over, ou quaisquer outras, que procuram “enganar” o espectador. Filmes como “The Rutles”, do grupo inglês Monty Phyton faz uma grande sátira ao grupo musical inglês The Beatles, fingindo ser um documentário sobre o grupo hipotético The Rutles. Fica clara a ficção nesse tipo de filme, mesmo utilizando-se de formatos documentais. Assim, pode-se afirmar que O documentário, antes de tudo, é definido pela intenção de seu autor de fazer um documentário (intenção social, manifestada na indexação da obra, conforme percebida pelo espectador). Podemos, igualmente, destacar como próprios à narrativa documentária: presença de locução (voz over), presença de entrevistas ou depoimentos, utilização de imagens de arquivo, rara utilização de atores profissionais (não existe um star system estruturando o campo documentário), intensidade particular da dimensão da tomada. Procedimentos como câmera na mão, imagem tremida, improvisação, utilização de roteiros abertos, ênfase na indeterminação da tomada pertencem ao campo estilístico documentário, embora não exclusivamente. (RAMOS, 2008, p. 25, grifos do autor)

A partir daí é possível pensar diversas questões como a velha questão da objetividade e da realidade. A partir do momento que, em um documentário, em uma asserção sobre o mundo como ele é, o diretor, o entrevistado, o cinegrafista, o editor e outras pessoas que participam na realização de um documentário, já colocam ali seus pontos de vista sobre o mundo, suas percepções, não seria um documentário cuja realidade está manipulada? E mais, e se fossem feitos documentários sobre coisas que não existem, como o exemplo dado no livro, mula-sem-cabeça? “O fato de asserções documentárias sobre o mundo serem falaciosas,

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ou simplesmente tendenciosas (dependendo do ponto de vista de quem as analisa) também costuma provocar debates acalorados sobre os limites do campo documentário.” (RAMOS, 2008, p. 29). Deve-se pensar, portanto, em primeiro lugar, no quão frágeis e subjetivos podem ser os conceitos verdade, realidade e objetividade. Podem e variam de pessoa para pessoa e, portanto, “um documentário pode ser objetivo ou pouco claro, e continuar a ser documentário. [...] Pode certamente mostrar algo que não é real e continuar a ser documentário (RAMOS, 2008, p. 30). Não sendo necessário negar o documentário por não dar conta da realidade, da verdade e da objetividade de cada um e do mundo, é intrínseca então a questão da ética. “Chamamos de ética um conjunto de valores, coerentes entre si, que fornece a visão de mundo que sustenta a valoração da intervenção do sujeito nesse mundo.” (RAMOS, 2008, p. 33). E ainda “A definição do campo documentário deve extrapolar o horizonte do eticamente correto, aprofundando e valorando sua dimensão histórica. Ao distanciarmos a definição de documentário do campo monolítico da verdade, criamos um espaço onde podemos discutir a distância de nossa crença em relação à voz que enuncia as asserções sobre o mundo, sem que tenhamos necessariamente de questionar o estatuto documentário do discurso narrativo" Concluindo-se, portanto, que “o fato de as fronteiras do documentário ser flexíveis não implica sua inexistência” (RAMOS, 2008, p. 49) é importante ressaltar o papel do sujeito da câmera na circunstância da tomada. Isso porque, Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo se coloca ora como um documentário “científico”, ora como um

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documentário em primeira pessoa, como um diário-documentário e ser, indexicalmente, um filme de ficção.

Segundo Fernão,

Narrativas em primeira pessoa possuem uma presença forte no cinema documentário contemporâneo na diversidade de seu público, mas também existem na particularidade de mim na imagem. Ou existem na particularidade outrem familiar: aquele de quem tive a experiência como outrem em minha vida cotidiana (em seu ser para si – outrem -, através de mim), em uma situação de mundo distinta da circunstância da tomada. (RAMOS, 2008, p. 81)

O momento da circunstância da tomada carrega para o filme alto fator de indexicalidade. A relação do espectador com esse momento é o que o carrega para dentro do filme. É intrínseca a relação do sujeito-da-câmera com o espectador. Como em um exemplo construído por Fernão sobre a tomada “Ao verem imagens-câmera, fotográficas, das férias de Joana, suas amigas transforma Joana em sujeito-da-câmera, que se oferece e se concretiza no olhar espectatorial. Lançam-se para a presença na circunstância da tomada”. (RAMOS, 2008, p. 80). E ainda:

O espectador que diz “vivi a tomada”, ou “vivi ele, que esteve ali na tomada, como outrem”, experimenta a tomada (abrindo-se para si pelo sujeito-da-câmera) com um afeto, uma estranheza (a estranheza de se reconhecer a si enquanto outro) que lhe é própria, [...](RAMOS, 2008, p.80)

Um dos recursos empregados no filme (Viajo...) é esse fator de, através de imagens de cotidianos, pelos formatos de suas imagens câmera, fazer o espectador ter essa identificação tanto com o sujeito-da-câmera, quanto com a circunstância da tomada. Fernão Ramos define alguns conceitos-chave para o trabalho: 1) A tomada

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A tomada da imagem documentária define-se pela presença de um sujeito sustentando uma câmera/gravador na circunstância de mundo, em que formas e volumes deixam seu traço em um suporte que “corre” (trans-corre) na câmera/gravador, seja esse suporte digital, videográfico ou película. [...] Essa tomada tem de existir para o espectador e pelo espectador. (RAMOS, 2008, p.82)

2) O sujeito-da-câmera O sujeito da câmera sustenta a câmera na tomada, e sua constituição deve ser pensada de modo amplo. Não designamos pelo termo somente o corpo físico que segura a câmera, mas a subjetividade que é fundada pelo espectador na tomada, subjetividade ela mesma definida ao abrir-se como âncora, ainda na tomada, pela fruição espectatorial. [...] E o sujeito-da-câmera não existe em si; ele existe por seu olhar e audição. O sujeito-da-câmera não existe em si, mas somente quando é aberto (encorpado) pelo lançamento do olhar e da audição do espectador para o endereço da tomada. (RAMOS, 2008, p.83-84)

3) A fôrma-câmera A forma da imagem-câmera é basicamente uma fôrma. Uma fôrma, pois tudo o que atravessa suas lentes e deixa o traço de sua presença no suporte é conformado maquinicamente pela fôrma. [...] A particularidade da imagem-câmera, para o espectador, está em sua capacidade de lançá-lo à circunstância da tomada. [...] A imagem-câmera é feita pela e para a tomada, e é a positividade desse percurso que deve espantar e absorver a reflexão crítica. (RAMOS, 2008, p.85-86)

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O espectador A comutação entre espectador e sujeito-da-câmera constitui o âmago da fruição documentária e fundamenta, através da forma imagem-câmera, a narrativa assertiva. Na imagem-câmera, e nela só, o espectador atravessa a figura imagem e atinge a circunstância da tomada. É nesse movimento que a narrativa documentária dá gravidade a suas asserções. A imagem-câmera tem duas faces ligadas umbilicalmente: tomada e figura. A tomada existe através de uma subjetividade em presença que estamos chamando sujeito-da-câmera. O espectador lança-se pela figura para a presença do sujeito-da-câmera. O sujeito-da-câmera vive para a câmera e pelo espectador. (RAMOS, 2008, p.89)

Aqui, é importante pensar na distinção entre o espectador de ficção e o espectador de documentário. O espectador de documentário já sabe previamente se tratar de um documentário ou uma ficção, principalmente por sua indexação e mecanismos sociais. Assim, ao assistir ficção, o espectador entra no mundo de “faz de conta”, enquanto que ao assistir documentário, se liga aos enunciados como asserções do mundo.

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Deve-se pensar na mistura da ficção e do documentário. Um bom exemplo em que um filme de ficção possui imagens-câmera, ou seja, imagens com asserção sobre o mundo histórico é o filme Neste Mundo. Há uma cena em vemos a morte de um boi (por pessoas que irão comer sua carne) em tempo real. Essa imagem parece abrir uma espécie de parêntesis dramático no filme, interrompendo o fluxo da narrativa. Trata-se aqui de uma asserção sobre o “mundo histórico” e que é feita com uma imagem-câmera. O filme como um todo não é feito com imagens-câmera apenas; mas ela aparece como uma espécie de “comentário” documental dentro da ficção. Dessa forma, o filme “Viajo Porque Preciso...” é peculiar: ele é indexado como ficção, talvez dos gêneros drama/road movie. Por outro lado, como será apresentado no próximo capítulo, suas imagens são completamente documentais, e o que dá o tom ficcional ao filme é o áudio/narrativa. Mas somente um espectador mais interessado em buscar informações sobre o filme terá essa informação. Não obstante, como fica a fruição do espectador? O espectador que sabe de antemão se tratar de imagens documentais percebe o filme de maneira diferente do espectador comum? Questões pertinentes essas, que serão respondidas no decorrer do trabalho.

O Documentário Poético

Bill Nichols propõe uma divisão das diferentes formas documentais em seis subgêneros. De forma mais ou menos histórica, de acordo com o surgimento de cada um desses subgêneros, Nichols divide-os em expositivo, participativo, observativo, performático, reflexivo e poético.

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É importante ressaltar que nenhum desses tipos é superior ao outro, nem mais “evoluído”. Segundo Nichols Esses seis modos determinam uma estrutura de afiliação frouxa, na qual os indivíduos trabalham; estabelecem as convenções que um determinado filme pode adotar e propiciam expectativas específicas que os espectadores esperam ver satisfeitas. (NICHOLS, 2005, pg. 135)

O subgênero que será apresentado no presente trabalho é o do documentário poético. Isso porque, como veremos no decorrer do texto, o filme “Viajo” carrega muitas de suas características. O documentário poético Compartilha um terreno comum com a vanguarda modernista. O modo poético sacrifica as convenções da montagem em continuidade, e a idéia de localização muito específica no tempo e no espaço derivada dela, para explorar associações e padrões que envolvem ritmos temporais e justaposições espaciais. Os atores sociais raramente assumem a forma vigorosa dos personagens com complexidade psicológica e uma visão definida do mundo. (NICHOLS, 2005, p. 138)

Além dessa importante semelhança com as vanguardas modernistas e ao tipo de pensamento gerado por filmes que fazem parte desses movimentos, (como será visto no final do segundo capítulo com o pensamento de Deleuze), outro elemento encontrado em comum com os documentários poéticos e “Viajo...” é o papel do som e da música. Em filmes como Chuva e Pacific 231, a montagem não segue objetivos sólidos, bem como a música dita grande parte do tom poético designado a eles. Esses documentários estão mais interessados em gerar no espectador “livres” associações de pensamentos, do que uma idéia fixa, pronta. Para isso, abusam do uso de formas, texturas, ritmos e montagem diferenciada. Diferente de outros tipos documentais que estão interessados em fazer inserções do mundo histórico, o documentário poético retira o material, a matéria-prima do mundo histórico e faz um tratamento para transformar em outros tipos de imagem. “O modo poético começou alinhado com o modernismo, como uma forma de representar a realidade em uma

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série de fragmentos, impressões subjetivas, atos incoerentes e associações vagas.” (NICHOLS, 2005, p. 140). E ainda, de acordo com Nichols, o modo poético é uma mistura de imagens documentais e experimentais. “O modo poético tem muitas facetas, e todas enfatizam as maneiras pelas quais a voz do cineasta dá a fragmentos do mundo histórico uma integridade formal e estética peculiar ao filme” (NICHOLS, 2005, p. 141). Concluindo, portanto, a preocupação do documentário poético é mais em relação a qualidades poéticas e associativas do que informações sobre o mundo histórico. A partir da delimitação de um conceito sobre o que é documentário e uma breve apresentação sobre documentários poéticos, é necessário falar, pois, sobre o banal, retratado tanto por filmes de ficção quanto por filmes documentários. Em seu livro A Delicadeza: Estética, Experiência e Paisagens, o autor Denilson Lopes ressalta a forma como o banal, a leveza e a poética do cotidiano são elementos recorrentes em filmes realistas. Através da escolha de alguns artigos chaves do livro, será feita rápida explanação sobre o tema. No artigo “O Sublime no Banal”, Lopes identifica a experiência em algo cotidiano, banal e em momentos que passam despercebidos na vida, como algo entre o sublime e o belo, como algo que revela de dentro da realidade aparentemente sem chamativos, a experiência do “agora”. Lopes conceitua sublime como “a experiência entre horror e prazer, experiência de fascínio diante de uma paisagem, pessoa ou uma obra de arte. No “Dicionário Teórico e Crítico do Cinema”, Jacques Aumont retoma o conceito de Kant em relação ao sublime: “é sublime aquilo perto do que nada pode parecer maior”. E que juntamente com a estética, é

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atualizado, já nas palavras de Aumont para: “é sublime o que nos inspira um sentimento de terror delicioso (delight), diante de um espetáculo que nos ultrapassa, mas do qual, entretanto, gostamos de fruir” (LOPES, 2007, p.279). Trazendo essa experiência do sublime ao banal, em oposição à mesma experiência diante de temas grandiosos, Lopes traça um caminho, buscando Kierkegaard: “associar o sublime com o extremamente pequeno, possível de ser identificado na “fisionomia do comum”. E ainda À medida que cada vez mais o grandioso, o monumental pode ser associado à arte dos vencedores, de impérios autoritários, da arte nazista, do Realismo Socialista aos épicos hollywoodianos, é justamente no cotidiano, no detalhe, no incidente, no menor, que residirá o espaço da resistência, da diferença. (LOPES, 2007, p.40).

Pensando esse conceito do sublime no banal, faz-se possível ver em filmes realistas como Ladrões de Bicicleta e mesmo em “Viajo” como essa característica salta aos olhos. Ali, é a experiência e a vivência do banal, juntamente com os recursos cinematográficos utilizados, que torna possível vivenciar o real, o agora, através da evocação de situações cotidianas e banais. Colocado de outra forma: “trata-se da possibilidade de uma experiência de beleza que emerge de um cotidiano povoado de clichês, implica repensar o banal”. No artigo “Elogio da Leveza”, Lopes, mantendo o mesmo ritmo de narração e pensamentos, apresenta a “leveza”. Buscando definições para o conceito de leveza em Milan Kundera e Ítalo Calvino, o autor identifica a leveza que ocorre em viagens e road movies: “Essa leveza na rapidez pode também se radicalizar na leveza da viagem de tantos road movies, no se deixar ser estrangeiro, sem raízes, ser outro constantemente até se perder [...].(LOPES, 2007, p.76).

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Essa leveza, juntamente com a banalidade da situação, pode ser remetida diretamente a “Viajo...”. Tanto pela sua história e narrativa ficcionais como pela forma de produção do filme e as imagens geradas, montadas de forma definitivamente “leve” ao concluir o filme. No próximo artigo, “Poética do Cotidiano”, Denilson Lopes relaciona a esse tema as questões do Real. Para avaliarmos as possibilidades dessa poética do cotidiano é que temos de enfrentar o problema do Real. O que fazer quando o real se transforma mais e mais em experiência midiática? Seria o Real o último espetáculo, como afirma Zizek (2003, p.31), ou o fim da sociedade do espetáculo, como aponta Baudrillard? Essas questões nos serviram como pano de fundo para marcar nosso interesse nesse debate sobre a questão do Real na arte contemporânea a partir da presença dos meios de comunicação de massa não só como técnica ou mercadoria, mas experiência, afeto, memória (LOPES, 2007, p.84).

A principal questão levantada é, portanto, se a cada mudança e criação de novos meios de comunicação e tecnologia há reconfigurações de até mesmo a experiência, como fica a experiência do Real? A partir daí é possível entender, portanto, a função que o cotidiano e o banal possuem perante a obra de arte, e ressaltando uma das falas anteriores, sendo eles as últimas gotas da resistência perante a sociedade atual. Citando autores como André Bazin, Lopes conclui “essa poética do cotidiano aponta, portanto, para a serenidade, como uma reação contra a sociedade violenta em que estamos forçados a viver” (BOBBIO, 1998, P.45-46). Serenidade aqui entendida como uma ‘virtude ativa e social’ (idem, pg 35), [...] por ser marcada pela suavidade e simplicidade (idem, p. 43) [...](LOPES, 2007, p.89).

E também, segundo o conceito de ética em que se questiona “o que fazer quando se está diante de uma realidade cruel?”: Ao invés da estética do efeito, implícita nas técnicas expositivas do choque, do grotesco e do escândalo; o desafio artístico se colocaria em termos de uma estética do afeto, entendida aqui como o surgimento de um estímulo imaginativo que liga a ética diretamente à estética; não mais uma arte de limites, de transgressão, mas de possibilidades (idem, pg 16). (LOPES, 2007, p.90).

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Neste capítulo foi possível ver que Fernão Ramos delimita possíveis definições para documentário, trazendo o importante conceito de imagens-câmera. Que será importante para identificar no filme analisado como seu recurso peculiar de imagens documentais e som ficcional é trabalhado no filme. A partir daí, Bill Nichols especifica os tipos de documentário, e aqui, apresenta-se o documentário poético, cujas características também podem ser identificadas em “Viajo...”, pelas imagens desconexas, poéticas, imagens do mundo e não sobre o mundo. Já Denilson Lopes pensa a presença de elementos poéticos em filmes que trabalham com o banal. Posto isso, vale ser feita a seguinte questão: como o poético pode ser evocado no banal, através de imagens-câmera? Como em “Viajo...” ocorre uma evocação do poético no banal através de imagens-câmera? Questão essa que deverá ser respondida durante análise fílmica.

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3 O PENSAMENTO AFETIVO NO CINEMA

3.1 O PENSAMENTO AUTÔNOMO

Estudos sobre cinema e pensamento existem desde a criação do cinema. Entender o que acontece com o pensamento ao assistir a um filme é entender melhor os mecanismos do filme. De acordo com Ils Hugyens, em seu artigo “Deleuze and Cinema: Moving Images and Movements of Thought”, Gilles Deleuze acredita que o cinema tem a potencialidade de transformar o pensamento. Logo, o cinema deve ser capaz de produzir modos específicos de pensamento. Os primeiros teóricos de cinema conceituaram o pensamento fílmico como uma forma de pensamento “não-humano”. Isso porque a percepção do espaço e do ambiente do ser humano deixou de ser percebido e organizado de “dentro para fora”, de acordo com nossos interesses. Enquanto isso, A visão cinematográfica não possui tal centro de ancoragem, ou um ponto de vista organizador, sua visão é completamente fragmentada e descentralizada e produz uma realidade cinematográfica e autônoma pura, onde o movimento não pára no 6 7 pensamento, mas se prolifera. (HUYGENS, 2007)

Além disso, o cinema tem a capacidade de nos mostrar aspectos da realidade que estão além do alcance dos olhos humanos. Isso geraria um certo “inconsciente ótico”, para autores como Walter Benjamin.

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Livre tradução para “[...] cinematic vision does not have such anchoring centre, or organizing viewpoint, its perception is completely fragmented and decentred and produces a purely cinematic and autonomous reality where movement is not stopped in thought but proliferates.” 7 Documento sem paginação

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Benjamin e outros tomaram o mecanismo da câmera e a visão maquínica que isso produz como ponto de partida para uma teoria do cinema, como este sendo uma 8 máquina para produzir pensamento. (HUYGENS, 2007)

Outros autores continuaram a ver o cinema como um criador de imagens mentais puras, um produtor de imagens automáticas e autônomas. E isso se liga diretamente à produção natural de pensamento do ser humano. A partir daí, Deleuze e outros sistematizaram a forma e o tipo de pensamento que é gerado no espectador, a partir do cinema. De início é importante conceituar o pensamento como maquínico por sua natureza autônoma e automática. É automático porque o pensamento se forma sem que haja um pensamento consciente. E é autônomo, pois Estudos recentes da neurobiologia (Daniel Libet, Joseph Ledoux) provaram que esses automatismos moleculares podem processar informações e pensamentos autonomamente, sem interação com o pensamento consciente ou a cognição. É somente em segunda instância que a mente consciente e o pensamento racional entram em ação como um princípio ordenador que lineariza e hierarquiza a massa de 9 informações que são produzidas por esses processos automáticos. (HUYGENS, 2007)

O conceito de pensamento para Deleuze é o de que o pensamento é autônomo, já que não é algo que é desempenhado pelo sujeito, mas algo que acontece ao sujeito de fora pra dentro. Ele ainda cria o conceito de “imagem de pensamento”, que segundo Huygens: Existe uma ‘imagem de pensamento’ que delineia todo o nosso pensamento, e age como um tipo de pressuposição a ele. Essa imagem de pensamento também está constantemente em movimento e variando no tempo. [...] constantemente desafiada precisamente pelo que é externo a ela, pelo que ainda está para ser pensado. [...] É o confrontamento com o não-pensado que nos força a pensar e a repensar nosso 10 próprio pensamento, trazendo uma nova imagem de pensamento. (HUYGENS, 2007)

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Tradução livre para “Benjamin and other took the mechanism of the câmera, and the machinic vision it produces as the starting element for a theory of cinema as a machine for producing thought. 9 Tradução livre para “And as recent neurobiology (Daniel Libet, Joseph Ledoux) has proven, these molecular automatisms can process information and perform thinking autonomously, without interaction of conscious thought or cognition. It is only in second instance that the conscious mind and rational thought step in to act as an ordering principle that linearizes and hierarchizes the unformed mass of information that is produced by these automatic sub- and unconscious thought-processes.” 10 Tradução livre para “there is 'an image of thought' that underlies all of our thinking, and acts as a kind of presupposition to it. This image of thought is also constantly moving and varying in time.[...] constantly challenged precisely by what lies outside of it, by what is yet to be thought, the unthought.[...] It is the confrontation with this unthought which forces us to think and re-think our own thinking, bringing about a new image of thought.”

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O que Deleuze faz, a partir desse conceito, é entender se acontece e como acontece o encontro entre a imagem de pensamento e a imagem cinematográfica. Logo, ele faz as conexões entre pensamento, imagem de pensamento e “imagem pensante”. Para isso, ele deixa de lado o pensamento reducionista da psicanálise, que tomou conta nos primeiros estudos sobre pensamento e cinema, que somente pensavam significação da imagem e suas representatividades. Deleuze cria os conceitos de imagem-movimento e imagem-tempo e identifica os processos de pensamento gerados pela imagem fílmica. Tendo como pressuposto que o cinema se diferencia de todas as outras formas de arte por ser primordialmente imagem em movimento, e não imagem que possa sugerir movimento (como na pintura, escultura, por exemplo), é importante pensar que essa imagem gerada pelo cinema não está, portanto, ancorada em um ponto de vista, como no teatro e nem em um sujeito. A imagem do cinema não representa movimento, mas move-se ela mesma. É ainda autônoma e automática, assemelhando-se à imagem de pensamento, gerando um automatismo psicológico. E ainda, “o fluxo contínuo de imagens passando rapidamente não nos deixa tempo de pensar criticamente e contemplá-la, [...] mas age imediatamente em um nível de pensamento de forma pré-reflexivo, e pré-linguístico” 11. (HUYGENS, 2007) Outra correlação entre pensamento e cinema é dada através de ordem formal e estética da imagem. De como ocorre a percepção e o pensamento. É usado aqui o conceito de autômato espiritual. Ele diz respeito à capacidade que o pensamento tem de se movimentar, de se ligar a outra idéia. O autômato espiritual que o cinema produz não se refere a uma forma de pensamento que se baseia no filme, nem em certa ilustração de uma imagem de 11

Livre tradução para “The continuous flow of images speeding by does not leave us the time for critical distance and contemplation [...]but acts immediately on a pre-reflexive, pre-linguistic level of thought. “

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pensamento. É o circuito de pensamento que se entra com um filme, um circuito que 12 é ativado por um choque no nosso cérebro. (HUYGENS, 2007)

Assim, como já apontado a crença de Deleuze que o cinema pode mudar pensamento, é através de choques intelectuais e afetivos, gerados pelo cinema, que vão forçar o espectador a pensar. É uma relação constante entre imagem que gera choque que gera pensamento. Posto isso, é necessário diferenciar os “regimes de imagem” e os tipos de pensamento que elas irão gerar. Deleuze as diferencia em imagem-tempo e imagemmovimento, a partir de como é a representação do tempo no filme. O conceito de imagem-movimento é [...] Baseado na montagem de continuidade clássica e na narrativa linear, que tenta superar os cortes e lacunas inerentes na montagem, criando um movimento fluido de uma imagem para outra. A imagem-movimento nos mostra uma imagem do tempo em sua forma empírica, tempo derivado da sucessão de tomadas, em uma forma de progressão linear em direção ao final. O tempo é representado indiretamente e 13 quantitativamente através do movimento. (HUYGENS 2007)

Aqui é possível entender uma relação sensório-motora, onde ocorre ação e reação. Já o conceito de imagem-tempo surge a partir do pensamento gerado por filmes do cinema pós-guerra, como o neo-realismo Italiano, a Nouvelle Vague e outros, (cinema moderno), que rompem com essa representação do tempo até então dominante nos filmes. A nova imagem cristalina que emerge nos apresenta uma imagem direta do tempo, por exemplo, colocando diferentes níveis de tempo em uma imagem (Antonioni) ou confundindo os limites entre imagens do passado, presente e futuro (Alain Resnais). [...] Imagens não são mais dominadas por sua funcionalidade à narrativa, mas se tornam puramente autônomas, ‘imagens ótico sonoras’. Espaços são desconectados, personagens não mais se definem pela sua ação, mas por suas visões, e a narração se

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Livre tradução para “ The spiritual automaton cinema produces does not refer to a form of thinking that lies at the basis of a film, nor is it a certain illustration of an image of thought. It is the circuit thinking enters into with the film, a circuit that is activated by a shock in our brains” 13 Livre tradução para “based on classic continuity montage and linear narrative, which tries to overcome the cuts and gaps inherent to montage by creating a fluid movement from one image to the other. The movement-image shows us an image of time in its empirical form, time derived from the succession of shots, as a linear progression towards the ending. Time is represented indirectly and quantitatively through movement.”

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torna essencialmente falsificadora, ao invés de tentar nos contar uma história 14 ‘verdadeira’. (HUYGENS, 2007)

Essas imagens passam a gerar novos tipos de conexão “que emancipam os sentidos em direção a uma relação direta entre tempo e pensamento”. (DELEUZE, 2007, p.17-18). Como já dito, os diferentes tipos de cinema/imagem produzem diferentes tipos de choque, e conseqüentemente, pensamento. Deleuze faz a distinção utilizando o famoso efeito Kulechov, e a montagem intelectual, de choque, de Eisenstein: O choque de pensamento de Eisenstein vem do conflito entre duas cenas o que nos força a pensar em síntese [...] É a confrontação com o contraste entre essas duas 15 imagens que nos força a pensar no Todo, que é uma unidade, uma verdade. (HUYGENS, 2007)

Deleuze afirma ainda que este princípio utilizado por Eisenstein é similar ao utilizado pela montagem clássica. Ali, o espectador recebe a imagem que lhe é dada. Esse choque, chamado de choque unidirecional é o que confirma a capacidade manipulativa do meio “cinema”, e o que permitiu que propagandas nazistas, por exemplo, tivessem tanto “sucesso” em atingir o público com uma “verdade absoluta”. Já em relação à outra potencialidade do cinema, Deleuze usa como exemplo Antonin Artaud, cujo conceito de cinema é uma desassociação de imagens “um vínculo ambíguo de idéias indefinidas, uma fusão descentralizada de múltiplas vozes e pontos de vista, que não pode ser assimilada em um todo unificado.” 16 E ainda, sobre o choque causado pela imagem-tempo, Artaud afirma que ao invés de nos levar a pensar em um todo, ele nos confronta com uma lacuna fundamental em nosso pensamento: “O cinema revela nossa 14

The new crystalline image that emerges presents us with a direct image of time, for instance by putting different timelevels in one image (Antonioni) or by confusing the limits between images from the past, present and future (Alain Resnais). […] Images are no longer dominated by their functionality to the narrative, but become purely autonomous 'optical-sound images'. Spaces are disconnected, characters are no longer defined by their actions but by their visions and narration becomes essentially falsifying rather than trying to tell us a 'true' story. 15 Livre tradução para “Eisenstein’s shock to thought comes from the conflict between two shots, wich forces us to think in synthesis. […] It is the confrontation with the contrast between these two images that forces us to think the Whole, which is a unity, a truth.” 16 Livre tradução para “an ambiguous linking of unclear ideas, a decentred conflation of multiple voices and viewpoints, that cannot be assimilated into a unified whole”

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própria impotência, o fato de que ainda não estamos pensando, e é precisamente o confronto com essa impotência (impuissance) de pensamento que pode produzir uma nova imagem de pensamento.” 17 Para finalizar, é importante solidificar o conceito de imagem-tempo: O cinema da imagem-tempo com suas bifurcações, falsos movimentos, espaços desconectos e imagens e sons autônomos não querem nos mostrar um mundo real ou uma idéia real, mas ao invés disso, recriam o objeto em uma lógica puramente cinemática, que é definida por suas ambigüidades, irracionalidades e incertezas. A impossibilidade de dar ao filme uma singular e única interpretação nos faz pensar e repensar a 18 imagem em uma cadeia de interpretações possíveis, sempre se renovando. (HUYGENS, 2007)

3.2 O AFETO E O PENSAMENTO AFETIVO

Como já dito, Deleuze distingue os diferentes tipos de imagens geradas no cinema clássico e, posteriormente, no cinema moderno, como imagem-movimento e imagem-tempo respectivamente. A partir daí, é importante aprofundar no conceito de afeto para Deleuze, o qual é explicado por Lisa Akervall em “Cinema, Affect and Vision”. Em segundo lugar é importante voltar na definição de imagem-movimento, que é a imagem do cinema clássico. Nesse cinema, que visa passar um significado fechado ao espectador a cada plano, em que os personagens agem e reagem ao meio em que estão inseridos e a narrativa desempenha grande papel, a imagem gera ações e reações no espectador. Ela dirige emoções e entendimentos; fica claro ao espectador o que ele deve sentir e pensar. Com isso, esse cinema gera um tipo de pensamento e reação sensório-motor, uma 17

Livre tradução para “Cinema reveals our own powerlessness, the fact that we are not yeet thinking, and it is precisely the confrontation with this ‘impower’ (‘impuissance’) of though that can produce a new image of tought.” 18 Livre tradução para The cinema of the time image with its bifurcations, false movements, disconnected spaces and autonomous images and sounds does not claim to show us a true world or a true idea, but in stead recreates the object in a purely cinematic logic, which is defined by ambiguities, irrationalities and uncertainties. The impossibility of giving the film a single and unitary interpretation makes us think and rethink the image in an endless chain of possible interpretations.”

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reação em cadeias de pensamentos que vai gerar no espectador certo entendimento dos planos/cenas/filme. Os elementos estão em função da narrativa e do entendimento da história. Na imagem-movimento há três principais tipos de imagens identificadas por Deleuze: a imagem-ação, a imagem-percepção e a imagem-afecção (como brevemente descrito no capítulo um deste trabalho). O movimento que ocorre entre esses diferentes tipos de imagem é “da imagem-percepção para a imagem-ação, com a imagem-afecção ocupando a lacuna entre os dois.”19 (AKERVALL, 200820) A imagem-afecção é talvez a que faz uma ponte entre o cinema de imagemmovimento com o cinema de imagem-tempo, por suas potencialidades. Ou nas palavras de Akervall: “Deleuze menciona dois tipos de imagem-afecção: de um lado o close-up como o plano paradigmático e a face como seu objeto paradigmático, e do outro o ‘any-spacewhatever’ com sua preferência por espaços vazios”.21 (AKERVALL, 2008). Demonstra ainda que: Essa substituição de situações sensório-motoras através de situações óticas e sonoras leva os vínculos racionais entre planos e seqüencias a serem substituídos por conexões irracionais, incomensuráveis, em espaços vazios ou desconexos. Essas 22 mudanças também têm um impacto importante no tempo da imagem. (AKERVALL, 2008)

Posto isso, é necessário partir agora para a conceituação de afeto. Para Deleuze, o afeto não é entendido, mas sentido; ele força o espectador a pensar. O conceito Deleuziano de afeto não se relaciona com qualquer idéia de uma afecção direta ou puramente corporal, nem é um sentimento no senso comum da palavra. Um afeto não deve ser entendido como o ponto de partida de um encadeamento de 19

Livre tradução para “from the perception-image to the action-image, with the affection-image occupying the gap between

the two.” 20

Documento sem paginação Livre tradução para “Deleuze mentions two types of affection-images: the close-up as the paradigmatic shot and the face as its paradigmatic object on the one side, and the any-space-whatever with its preference of emptied spaces on the other side.” 22 Livre tradução para “This substitution of sensory-motor situations through optical and sound situations leads rational links between shots and sequences to be replaced by irrational, incommensurable connections in emptied or disconnected spaces.These changes also have an important impact on the time of the image.” 21

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estímulo-resposta, mas como um encontro, que em sua insistente virtualidade nos 23 força a pensar. (AKERVALL, 2008)

Em outras palavras, a ruptura do encadeamento sensório-motor leva a uma não conclusão em uma ação, em significar algo fechado. Pelo contrário, o pensamento latente estará sempre em devir, e não chegará a se fechar. Segundo Lima: A imagem, então, vai sempre alimentar o exercício do pensar. [...] O rompimento do circuito faz com que o espectador não responda em nível de apreensão da imagem, logo, ele não apreende imediatamente os sentidos, voltando-os para a narrativa. Por conseguinte, os afetos e perceptos na imagem forçam o pensamento na medida em que não repercutem, respectivamente, em afeição (emoção) e percepção. O afeto causa certo desconforto ao espectador, uma vez que ele não consegue substantivá-lo, já que o afeto não se prolonga em emoção (lembrando que ele só pode ser sentido). (LIMA, 2012)

Assim, o espectador sempre buscará uma nova maneira de ver, fazendo novas conexões de pensamentos.

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Livre tradução para “The Deleuzian concept of affect does not relate to any idea of a direct or purely corporal affection, nor is it a feeling in the usual sense.An affect is not to be understood as a starting point of a stimulus-response-chain, but rather as an encounter, which in its insistent virtuality forces to think.”

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4 SOBRE O FILME

4.1 DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO REALISTA

Afinal, que filme é esse “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”? Em que contexto ele se insere? Que espectador é esse que o assiste? O início desse capítulo trata de fazer um panorama sobre o cinema brasileiro contemporâneo, cenário em que o filme em questão se insere. Esse cenário é de grande importância para entender a forma de produção e realização desse filme, e muita de suas características estéticas e narrativas, que são pontos-chave para entender as peculiaridades e as questões suscitadas pelo “Viajo...”. Para isso será feita uma síntese das idéias apresentadas no catálogo “Cinema Brasileiro – Anos 2000: 10 questões”

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, do evento de mesmo nome ocorrido em 2011. Ele

refletiu sobre o cinema brasileiro e processos culturais e históricos ocorridos na década de 2000 a 2010. A curadoria do festival escolheu obras que dariam conta de mapear a produção do cinema brasileiro, já que houve grande aumento de produção na última década devido à “consolidada” revolução causada pela tecnologia. Na verdade, esse aumento de produção deveu-se não somente às novas tecnologias, mas à facilidade de leis de incentivo que já existem (número longe de contemplar toda a demanda, mas que contempla os produtores atuais que não tiveram que “lutar” por essas leis). A curadoria preocupou-se em categorizar em 10 as questões suscitadas pelos filmes escolhidos.

24 Não se trata aqui de esgotar o conhecimento sobre o cinema a partir de um catálogo. O objetivo aqui é usá-lo para fins didáticos.

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Ao partirmos em busca dessas aproximações possíveis, não quisemos nos limitar a um só caminho: temas, formatos, gestos estéticos, questões de produção ou de relação com um público idealizado (seja o espectador, sejam os críticos ou curadores de festivais), todos e cada um destes aspectos foram colocados em jogo. (2011, p.12)

São as categorias: “Que país é esse?”, “Para onde vão nossos heróis?”, “Que gêneros são os nossos?”, “Quais imagens do Brasil lá fora?”, “Ação entre amigos: opção, afirmação ou necessidade?” “Subjetividade: modo ou moda?”, “O outro: temer, tolerar ou conhecer?”, “Deslocamentos:

para onde e por quê?”, “Obra em processo ou processo com obra?”.

Serão sintetizados brevemente alguns tópicos, que são mais relevantes para o trabalho:

Quais imagens do Brasil lá fora?

Nesse artigo, escrito também por Eduardo Valente, é feito um breve panorama sobre quais os filmes e diretores brasileiros que mais se destacaram no cenário internacional, principalmente o de festivais de cinema. Enquanto no imaginário geral do cinema brasileiro por olhos estrangeiros há filmes como Cidade de Deus (Fernando Meirelles, Katia Lund, 2002) e Central do Brasil (Walter Salles, 1998), outros filmes se destacam em nichos mais específicos de apreciação cinematográfica, em festivais como de Cannes, Veneza e Roterdã. Alguns dos diretores que ganharam certa notoriedade foram Walter Salles, com Diários de Motocicleta (2004), por exemplo; Fernando Meirelles com O Jardineiro Fiel (2005) e até José Padilha com os Tropa de Elite 1 e 2 (2007/2010), e que em 2013 lançará remake do RoboCop. Já entrando no terreno de festivais, importantes para lançar o cinema brasileiro lá fora, filmes como O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006), Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002), O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hamburguer, 2006) e À Deriva (Heitor Dahlia, 2009) foram exibidos com relativa boa recepção em mostras paralelas dos

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mais importantes festivais da Europa. No entanto,

[...] uma coisa é exibir um filme nessas seleções, o que até pode se dever a várias circunstâncias do ano em que ficam prontos; uma outra totalmente diferente é dar continuidade a essa exposição ao longo da carreira do cineasta. (2011, p.34)

Nesse caso, de notoriedade contínua, um dos diretores brasileiros que mais se destacou foi, sem dúvida, Karim Aïnouz, diretor do Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo que teve, além desse, mais dois longas exibidos nos festivais de Veneza ou Cannes, com o mais recente O Abismo Prateado (2011) exibido também em Cannes, e o Marcelo Gomes, diretor do filme em questão junto com Aïnouz, que também teve longas em festivais internacionais, como o Cinema, Aspirinas e Urubus (2005). Alguns outros filmes são chamados, por Valente, de filmes exceções, como Alegria (Felipe Bragança, Marina Meliande, 2010) e Estômago (Marcos Jorge, 2007), que em um ou outro país tiveram visibilidade e foram bem recebidos.

Ação entre amigos: opção, afirmação ou necessidade?

A prática da ação entre amigos para fazer um filme não é necessariamente nova na história do cinema brasileiro. Seja a união feita para realizar ou financiar um projeto, fato é que na última década, a ação entre amigos foi importante para lançar bons filmes em circuitos de festivais. Um dos motivos para isso foi que o mercado se abriu para aceitar filmes não finalizados em 35mm, barateando os custos, facilitando o surgimento desses filmes. Alguns meios de produção entre amigos foram ganhando força em Minas Gerais, Ceará e Pernambuco. Parte do que ajudou a que este processo se naturalizasse foi, sem dúvida, a expansão do circuito dos festivais de cinema pelo país, processo iniciado nos anos 1990, mas radicalizado nesses anos 2000. Com uma quantidade maior de mostrar abria-se mais e mais espaço, tanto para produções regionais dos vários lugares que recebiam eventos como principalmente para que festivais fossem criando seu recorte diferencial – inclusive pela aposta nesse cinema que surgia com força. (2011, p.40)

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Alguns desses filmes podem ser visto na parceria de um grupo pernambucano em filmes como Estrada par Ythaca (2010) e Os Monstros (2011), de Pedro Diógenes, Guto Parente, Luis e Ricardo Pretti. E também do mineiro A Falta que Me Faz (Marília Rocha, 2009). Esse tipo de ação é importante, pois: [...] assim, vai se formando aos poços um pequeno circuito alternativo de força e interesse para os realizadores deste cinema mais arriscado. É, em muitos sentidos, a partir dos encontros mais constantes nestes festivais que vão se delineando e consolidando algumas características desta produção mais recente, que tem chamado a atenção de curadores lá fora e da mídia aqui no Brasil. (2011, p.41)

Esse cenário e essas colocações podem ser mais densas do que parecem, pois com afirma Valente, esse “momento” do cinema brasileiro pode ainda vir a ser um “movimento. Essa ação entre amigos pode ser identificada até no “Viajo...”, já que Marcelo Gomes e Karim Aïnouz se uniram para realizar, efetivamente, pela primeira vez, um filme juntos. O décimo e último artigo é intitulado O que pulsa além dos longas? e faz um levantamento sobre os curtas, médias-metragens, seriados, mini-séries e outros formatos audiovisuais que apareceram e ganharam relevância na última década. É importante pensar nesse processo de incorporação e aceitação de diversos formatos audiovisuais, para pensar a própria origem do filme Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, cuja semente está em um média-metragem realizado em 2005, como será visto a seguir.

4.2 DA REALIZAÇÃO: IMAGENS DOCUMENTAIS, FILME DE FICÇÃO

Embora tenha sido lançado somente em 2009, a gênese do filme Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo data de 1999. Os diretores Marcelo Gomes e Karim Aïnouz fizeram uma viagem pelo sertão nordestino fazendo imagens em diversos formatos: digital,

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película e fotografia (Super 8, High 8, DVCam e “snap shots”). O primeiro fruto dessa viagem e dessas imagens seria colhido em 2005, ao montarem um documentário chamado Sertão Acrílico Azul Piscina, de 26 minutos, como realização de um projeto financiado pelo Itaú Cultural. Esse documentário, que pode se encaixar na estética de documentário poético, como apresentado no capítulo um deste trabalho, é um cheio de imagens documentais, sendo um registro mesmo da viagem de Gomes e Aïnouz. Somente em 2006, os diretores passaram a montar uma ficção com imagens do mesmo banco de dados do documentário. Esse filme viria a ser Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo. Pode-se notar, portanto, que o próprio nascimento do filme deu-se de forma documental. As imagens, além de ser um relato da própria viagem dos diretores, são imagens que trazem inserções sobre o mundo histórico, se encaixando no conceito de documentário e de imagens-câmera de Fernão Ramos. Como pode-se imaginar, devido à própria origem das imagens, não há um personagem corporificado no filme. Não se vê a voz que fala. As imagens assumem um ponto de vista ora de primeira pessoa, ora de um documentário científico, com será melhor explicado a seguir. A ficção no filme é gerada, portanto, com a inserção de áudio (voz over) sobre essas imagens documentais, e outros elementos de som. Com uma narração dramática, músicas diegéticas (ouvidas no rádio) e músicas que compõe a trilha sonora. Gomes e Aïnouz, no pressbook do filme, falam em entrevista do processo de produção do filme e de idéias por trás de todo o processo. Na sinopse é apresentada a situação vivida pelo geólogo José Renato, que parte em uma viagem pelo sertão a fim mapear a região, que será afetada pela transposição de um

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rio. José Renato visita lugares e famílias para fazer um balanço de quem será atingido ou não por essa transposição. De acordo com o press book: Para muitos dos habitantes da região, o canal será uma solução, uma possibilidade de futuro, de esperança. Mas, para aqueles que moram em áreas por onde fisicamente o canal passará, ele significa desapropriação, partida, perda. Muitas dos lugares por onde José Renato passa, serão submersas; muitas das pessoas e famílias que ele encontra, serão removidas. (2009)

Enquanto José Renato vai documentando sua viagem e construindo um “diário” com finalidade de acordo com seu trabalho, começa também a mostrar seu estado, seus sentimentos. O espectador então descobre que José Renato acabara de terminar um relacionamento, e passa por um momento de tristeza. O geólogo começa a fazer uma espécie de “diário pessoal”, com seus sentimentos e suas impressões, se misturando com o diário de trabalho. De acordo com a fala de Gomes, O filme, por ser em primeira pessoa, tem a construção de um diário de viagem, no qual a plasticidade e a textura das imagens e sons transmitem certas sensações, como aquela de um segredo revelado, de uma emoção clandestina. (2009)

José Renato, então, experiencia essa viagem, por paisagens desoladas, vazias, e vê pessoas e olhares. É uma errância; o caminho se torna uma jornada interior de redescobrimento, de início de uma nova etapa da vida. É uma viagem de deslocamento espacial e subjetivo. Ao final, José Renato está mudado. Nas palavras de Aïnouz: Mas, ao mesmo tempo, é um diário de viagem absolutamente clássico, um “road movie”, em que o personagem sai de um lugar para outro e a travessia o transforma, como alguém que atravessou um deserto ou cruzou o oceano. A narrativa em primeira pessoa expõe a intimidade, as dúvidas, a vulnerabilidade do personagem.

Para os diretores, o filme é construído muito com a idéia de “fricção”, de encontros e atritos. Entre cidade e sertão, entre paisagens inóspitas e pessoas passageiras, entre o diário pessoal e o uso da internet para esse fim, entre documentário e ficção e até

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mesmo entre imagem digital e analógica. Na fala de Aïnouz “a linha é cada vez mais tênue, como o é entre documentário e ficção, entre industrial e artesanal, entre o íntimo e o público, entre o que é o cinema e o que será o cinema.” Muitas são os questionamentos levantados pelo filme. Em relação aos formatos utilizados, para Aïnouz é interessante, pois “Tem materiais arcaicos, como o super 8, antigos como o High 8, e atuais, como o digital. No próprio formato, carrega diferentes tempos.”. Um outro questionamento é entre o contemporâneo e o arcaico, e quais as formas de lidar com esse encontro/distanciamento, de acordo com Aïnouz: O filme dialoga com álbuns de família, “polaroids”, foto digital instantânea. Com uma série de maneiras de olhar o mundo e registrar o cotidiano, como blogs, You Tube, fotologs. São modos contemporâneos de fazer um diário. [...] Brincamos com os cânones clássicos da narrativa para entender como é fazer cinema dentro de um novo contexto. Qual o papel do cinema com a internet? Qual o papel do cinema quando o diário de viagem se tornou algo bem diferente e 90% das pessoas fazem mais fotos do que faziam cinco anos atrás? Nossa idéia é que o personagem fosse viajando e juntando fotos, filmes, gravações, fitas cassete com músicas, objetos, sons e depois isso virasse um álbum audiovisual. (2009)

Outra questão que salta aos olhos, como já dito anteriormente, é a ausência de um corpo de um personagem com o qual identificar, a ausência de um corpo na tela: Precisamos ver o protagonista para se identificar com ele? Cada espectador pode construir o personagem que imaginar. [...] Tínhamos a expressão física e a imagem do personagem, fomos atrás da fala, da entonação, da textura da voz, momento a momento, ponto a ponto, para a partir daí, construir a curva dramática. (2009)

Percebendo-se a importância do áudio para o filme, é interessante pensar sobre a música, a trilha sonora e a própria narração, que foi feita pelo ator Irandhir Santos. Perguntas como “É necessário ver um personagem para um filme ser narrativo? É preciso que a narrativa tenha causalidade para o filme existir?” perpassam também questionamentos sobre a linguagem do cinema e a experimentação da mesma. Já sobre a trilha sonora, Aïnouz fala

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Tem desde o Noel Rosa, da década de 1930, às músicas pop que o personagem fica ouvindo o tempo inteiro enquanto está viajando, passando por uma trilha sonora composta especialmente para traduzir as sensações dele. [...] A música “Morango do Nordeste” tocava em todo lugar quando nós estávamos viajando por aquela região. [...] E o que acontece é que músicas de diferentes épocas migram para aquele lugar por onde passa o personagem, causando um certo estranhamento. (2009)

Percebe-se, portanto, que Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo é um filme complexo. Os questionamentos feitos pelos diretores não foram poucos. E são ainda maiores os questionamentos gerados pelo espectador ao lidar com um filme tão denso. É uma ficção? É um documentário? Mas eu nunca vou ver o dono da voz? Quem é ele? Poderia essa ser uma viagem que eu mesmo fiz? Para quem José Renato fala? Quem vai assistir a esse diário de José Renato? Com o termo “ensaio cinematográfico”, Karim Aïnouz e Marcelo Gomes tenta sintetizar um pouco da espinha dorsal do filme. É o que a gente gostaria que o Viajo causasse o tempo inteiro: uma sensação de pertencimento e não-pertencimento, de estar naquele lugar e não ser, de atravessar aquele lugar e não querer voltar. Um constante estado de alerta. (2009)

Uma das falas mais importantes da entrevista é justamente “um constante estado de alerta”. Essa frase colabora para que se perceba melhor o que é o afeto, é esse devir de pensamento que é sentido a todo momento pelo espectador, mas que não se concretiza em pensamentos fechados, é o estado de alerta em que o espectador está. Esse conceito é um conceito chave para esse trabalho, e será discutido a seguir.

5 A IMAGEM E A VOZ EM “VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO”

5.1 ANÁLISE DESCRITIVA DO FILME

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5.1.1 A metodologia de análise

A presente análise fílmica foca-se na descrição de cenas escolhidas e na pontuação de elementos singulares do filme, a fim de observar inferências sobre determinados processos mentais no espectador. No caso, é pretendido menos uma interpretação subjetiva do filme, mas, traçar uma busca por características de texto (voz),

imagem e som, que podem

proporcionar ao espectador o pensamento afetivo.

5.1.2 Análise descritiva dos elementos imagem, voz e som

A primeira parte escolhida para análise são os 10 primeiros minutos do filme, que ditam o tom do início da experiência do espectador. Posteriormente, imagens localizadas mais ao final do filme. Como já defendido em capítulos anteriores, aqui passa-se a perceber sutis diferenças de imagem, texto e som que ditam tipos de imagem presentes no filme: a imagemcâmera e a imagem diegética. Didaticamente, pensa-se ser necessário ler brevemente a decupagem desses minutos, a fim de criarem-se hipóteses dos elementos dados ao espectador e como é construída sua experiência. Após cada “bloco” separado por constituir-se de um sentido fechado, (normalmente com um só plano, mas alguns com mais de um, sem muitas variações) será feita análise.

Bloco 1: de 00:00:40 a 00:02:23

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Até os primeiros 40 segundos, tela preta, produtores, apoios financeiros e culturais (REC Produções, ANCINE, créditos em geral, etc). A partir daí, passa-se a ouvir uma música, que aparenta estar sendo tocada em um rádio. Com um minuto e quinze segundos de filme, a imagem aparece, em formato digital, com a câmera semelhante ao ponto de vista de um motorista ou carona de um carro. Câmera aparente na mão, imagem tremendo. O que se vê é uma estrada, à noite, o carro em movimento. O som continua sendo música dando-se a entender que está sendo tocada no rádio, e também há o som de carro em movimento, como se a pessoa que está filmando está dentro do carro. Essa cena inicial já remete o espectador a uma imagem caseira, ao que poderia ser ele mesmo a pessoa segurando a câmera, gravando uma viagem que ele mesmo fez, viajando de férias ou qualquer outra situação recorrente. Ou seja, por não ser apresentado um personagem, pensa-se que já aí o espectador se coloca como essa pessoa que está segurando a câmera e que está fazendo essa viagem. O espectador é o personagem.

Bloco 2: de 00:02:24 a 00:03:37; 00:03:38 a 00:04:49

Após um corte seco do plano anterior, a imagem agora (ainda em formato digital) é de uma estrada perdendo-se de vista no horizonte, porém já de dia. Há continuação do ponto de vista do carona ou do motorista. O ponto de fuga da imagem é do horizonte da estrada. Passam poucos carros e/ou motos de encontro com o carro. Paisagem de sertão, vegetação seca, céu carregado de nuvens.

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Nesse momento o que dá a entender é a passagem do tempo. O plano anterior era uma imagem semelhante, porém à noite. Ao que tudo indica, a viagem teve continuidade e já se vê agora a luz do dia. Quanto ao som, ouve-se ainda o som de carro em movimento e estrada, quando há encontro de outros carros. Inicia-se aqui uma narração com o seguinte texto, dito por um homem, uma voz quase sem muita variação de tom, sotaque do nordeste do país: Mochila para carregar amostras, soro antiofídico com umas seringas hipodérmicas, martelo, bússula geológica e caderneta de campo quadriculada, é... Lupa de bolso oito vezes, lápis vitográfico, trena de dois metros e íma... estereoscópio de espelho, cantil, ácido clorídrico diluído, transferidor e compasso, mira, escalímetro, planímetro, curvímetro, altímetro, máquina fotográfica, câmera super oito e a câmera digital, carregador de bateria, lanterna, lâmina, canivete, facão.

O som e o texto remetem o espectador a uma gravação técnica, um diário técnico, feito provavelmente por algum trabalhador, com a finalidade de se documentar fatos para futuramente serem mostrados para outra(s) pessoa(s). Isso se dá principalmente pelo tom de voz sério com que o texto é dito e pelo seu próprio conteúdo recheado de termos técnicos. O que antes aparentava ser um documentário amador e pessoal, aqui atinge um nível de documentário técnico, com uma finalidade bem definida, sem muito espaço para outras interpretações. Após isso e já por volta dos três minutos e 38 segundos, há o que poderia se chamar de “virada” no sentido que está sendo construído pelo espectador. A imagem é um plano estático, em que a câmera se localiza de dentro do carro já parado, novamente ocupando um possível ponto de vista do motorista, mostrando a porta aberta e uma casa do outro lado da estrada. O som é som ambiente (vento, pássaros e outros elementos). O texto é inesperado: “parada pra mijar. Êta vontade de voltar”. A mesma voz que antes falava tão seriamente a um espectador documental, agora fala de uma vontade sua, pessoal, de forma espontânea e inesperada, o que tira o ar sério que poderia ser esse documentário técnico.

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Sempre após cortes secos, o plano muda nos próximos segundos: de 00:04:15 a 00:04:49. A imagem é um carro viajando atrás de um caminhão. Mais uma vez no que poderia ser o ponto de vista do motorista, imagem tremendo, câmera na mão, mostrando a paisagem lateral e a traseira de um caminhão. O som continua no mesmo “clima”: o som que sai do rádio e os barulhos de um carro em movimento.

Bloco 3: 00:04:50 a 00:05:10; 00:05:11 a 00:06:01

Aqui ocorre uma mudança importante em relação à imagem: muda de digital para o formato de uma Super 8 (?). O que se vê é um ponto de vista já fora do carro, com paisagem de sertão; uma árvore seca e uma casa bem ao fundo. Há outro plano, que muda para a paisagem da estrada e um caminhão passando ao fundo. Vale ressaltar que essas imagens que não são de dentro do carro possuem uma altura semelhante à altura dos olhos humanos, o que ainda continua remetendo o espectador ao cinegrafista, que se apresenta ora como uma pessoa comum, um personagem que não sabe que está sendo visto, ora como um trabalhador que está documentando dados técnico-científicos para alguma finalidade clara. A essa mudança de pontos de vista subjetivos há a diferenciação em quanto a o que a imagem aparenta ser: imagem-câmera e imagem diegética. Ainda descrevendo qualidades da imagem, por ser uma Super 8 ela se torna aqui granulada, com ruídos, e características de película. O filme aparenta estar levemente queimado. A transição para o próximo filme é como se fosse o filme queimado, avermelhando e esbranquiçando a imagem. Essa imagem dá um tom de ser ainda mais antiga, ainda mais

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diarista e até algo poético. Remete a velhas fotografias e vídeos de famílias, de álbuns de família. Também volta a existir narração: “Dia dois. Pesquisa geológica das estruturas tectônicas para implantação do canal de águas ligando a região do Xexéu ao Rio das Almas. Tempo de duração da viagem: 30 dias. Porra. 30 dias.” O som aqui ocupa papel de dar novamente o tom documental-técnico, ou seja, participando para complementar o que seria a imagem-câmera, mesmo embora a imagem não aparente ser de um documentário técnico. Parece aqui que há um conflito entre imagem e som. Ao mesmo tempo, o personagem mostra seu descontentamento com a viagem. “Porra. 30 dias”. Ocorre logo uma aproximação do espectador no sentido de começar a descobrir quem é essa pessoa e o que ela está fazendo ali. Por que ela está filmando um documentário que parece sério mas ao mesmo tempo diz “palavrões” e opinião pessoal? Quem vai assistir a esse documentário que está sendo feito? Já por volta dos cinco minutos e onze segundos a imagem volta para digital. Aparenta ser a mesma casa que aparece anteriormente, porém retratada por outro ponto de vista. Há pessoas andando ao fundo. Ocorre uma mudança de plano, novamente com corte seco, que muda o ponto de vista, mostrando outras casas. A paisagem apresenta-se sempre com a terra bem seca, o céu azul, árvores secas e casas bem humildes. Novamente uma mudança de plano, retratando imagens estáticas: casa e roupas brancas no varal. O texto para essas imagens é a continuação da narração, feita pelo personagem masculino: Estou na BR 432, quilômetro 45, altitude 450 metros. O clima da região é árido, o terreno terciário, argilas de calcário composta por arenitos, siltitos, e conglomerados ferruginosos de forte coloração vermelho arroxeado de idade cambriana. A região se chama Varzinha. Apesar disso não vejo nenhuma várzea. São 12 horas da manhã. Aproveito o trabalho de mapeamento para fazer contato com os poucos habitantes,

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que vai ser necessário para desapropriação das terras que vão servir para travessia do canal.

Nesse momento, mais uma vez é retomada a imagem-câmera, e agora som e imagem são congruentes. Parece mesmo ser um documentário técnico, informação dada principalmente pela linguagem altamente especializada do que poderia ser um geólogo a falar.

Bloco 4: 00:06:02 a 00:06:40

Nesse plano, que dura cerca de 40 segundos, a imagem é de Super 8, no interior de uma casa. Plano aberto com enquadramento médio nas duas pessoas que estão compondo o plano. Um em cada canto e no meio uma mesinha, que parece um pequeno altar. Ao fundo, imagens santas preenchendo toda parede. Acima, uma lamparina. A iluminação dá ênfase somente no rosto dos dois e no altar. A imagem é estática, porém a câmera parece estar na mão, e os dois “personagens” olham diretamente para câmera. Em determinado momento o Seu Nino sai do plano, mas volta. O som, para além da narração, é composto por uma música baixinho ao fundo (aparentando ser de um rádio dentro da casa), e som ambiente: pássaros. A narração: “Seu Nino e Dona Perpétua vão ser os primeiros a serem desapropriados. Eles estão casados há mais de 50 anos. Nunca tiveram outra casa. Nunca tiveram uma briga. Nunca dormiram uma noite longe um do outro. Seu nino saiu para desligar o rádio. Eu pedi para ele voltar. Não quis filmá-los separados”. Ao que aparenta, essa cena segue o padrão narrativo de “ao mesmo tempo em que está sendo feito um documentário, estão sendo colocadas emoções nesse documentário”. Vêse, ou melhor, ouve-se pela voz do narrador que há qualquer coisa sentimental acontecendo, e também pela fala “não quis filmá-los separados”. Essa cena precede o que vai ser duas das

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principais cenas “reveladoras” e exemplificadoras do filme, em relação às imagens-câmera e imagem diegética. (Aqui, aparenta-se qualquer mistura entre as duas coisas...).

Bloco 5: 00:07:10 a 00:07:44

Nesses 34 segundos algo diferente acontece. A imagem é estática: o que estamos vendo são fotos. Fotos de textura rochas, com instrumentos para medição, para dar idéia de escala, como caderno, lápis, caderneta. Uma delas aparece com uma bússola, (aparece a mão de uma pessoa segurando a bússola e a caderneta), talvez seja nessa foto a única parte do corpo que veremos de José Renato durante todo o filme. Foto com anotações técnicas no caderno, no geral, fotos técnicas. O som é a narração em tom sério, técnico. O texto: “Hoje faço as primeiras coletas e tomadas de medidas.” (Longe pausa); continuação. “Fraturas a 340/240 graus nordeste. Gnaisses bandados a hornblenda. Lembrar de escrever sempre a lápis pois o grafite não borra com água. Medidas de fraturas dos gnaisses da suíte xingó em 340 graus subverticais. A textura em veios dobrados indica estados de plasticidade durante a gênese. Notar o lápis servindo de escala na foto.” Nesses planos que a meu ponto de vista formam uma cena, fica claro que são imagens-câmera. Embora haja alguns indícios de que talvez seja até mesmo uma gravação para o próprio José Renato assistir (“lembrar de escrever sempre a lápis”), fica claro o seu caráter documental. Talvez, dentre todas as cenas e planos descritos anteriormente, é aqui onde há o tom mais sério e técnico.

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Bloco 6: 00:07:45 a 00:09:00; 00:09:01 a 00:10:44

Uma das cenas mais importantes para dar o início de um tom mais pessoal ao filme. A imagem retorna ao digital, câmera na mão, de dentro do carro. Ponto de vista do motorista/carona. Câmera tremendo bastante mostrando a estrada e a vista é o nascer do sol. Estrada, vegetação e montanhas. O som é a música “Morango do Nordeste” e vem, aparentemente, do rádio do carro. O texto “Galega, bom dia. Bom dia, meu amor. Hoje é dia 28 de outubro, dia do funcionário público. Em fortaleza ninguém trabalha na repartição e eu aqui nesse torrão seco dando um duro danado. Faltam 27 dias e 12horas para acabar a viagem. Parece uma eternidade. Do dia que saí de fortaleza até aqui quase não vi ninguém na estrada. Fico com o rádio ligado, pensando em você a viagem toda e só. Chega e me canso de tanto pensar em ti. É nesse momento o primeiro contato do espectador com a tristeza de Jose Renato. É o seu primeiro desabafo e é a primeira vez em que ficaria claro para quem ele está se dirigindo. No caso, sua amada. A imagem, do nascer do sol, pela sua beleza e pelo seu próprio conteúdo “poético”, dá um tom ainda mais pessoal, cria uma mensagem ainda mais com tons de poesia. Nessa cena parece ser esse diário de José Renato onde ele fala pela primeira vez claramente sobre seus sentimentos. Junto a isso, à imagem do nascer do sol, há o elemento musical. A música “Morango do Nordeste” é uma música romântica, muito conhecida e muito representadora do nordeste brasileiro. Ela contribui, sem dúvida, ao tom romântico, poético e sentimental. Já aos nove minutos, a imagem ainda é digital. Mas agora são imagens estáticas de um posto de gasolina, da estrada, com caminhões passando. Vê-se em uma parede no

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interior de algum lugar (no caso, provavelmente do posto de gasolina), um pôster, (o mesmo do filme) e escrito “Viajo porque preciso, volto porque te amo”; a imagem do pôster é de um casal, com o fundo de cores de pôr-de-sol. Logo após isso, um plano novamente estático, mostrando uma parte do carro e da estrada. Um porco entra na rodovia e para em frente à câmera. Logo, no plano seguinte, novamente é o nascer ou por do sol, a câmera no mesmo lugar da estrada. O som é ambiente, com caminhões passando. O texto: “Hoje parei em um posto e vi uma coisa pintado na parede. Meio hippie. Quando sai que reparei a frase que estava escrito “viajo porque preciso, volto porque te amo. Mal comecei a viajar e tudo já me irrita. A paisagem não muda, é tudo a mesma coisa, parece que não sai do lugar.” (Pausa). “Que agonia desse lugar. Tudo se arrasta. Saudade da porra.” Aqui, o filme dá prosseguimento ao clima criado com o início da aproximação de José Renato com seus sentimentos. Chamaria de imagem diegética, por seu caráter mais documentando o José Renato, do que o José Renato documentando suas informações necessárias. Nesse momento, penso que o som adquire um papel mais importante, e as imagens estão ali quase que para “preencher” o lugar onde José Renato estava. Quase para ilustrar o que ele diz.

Bloco 7 : 00:29:14 a 00:34:17

Aqui, a cena se inicia com trilha sonora ao fundo, imagens do processo de uma feira sendo montada de madrugada; pessoas trabalhando para montar suas “barraquinhas”. E o texto de José Renato Acordei no meio da noite suando de bicas. Tive um sonho que eu tava numa sala de cirurgia ai vinha uma mulher vestida de medica raspava o meu cabelo todinho e eu ficava careca. Depois vinha outro médico e perguntava se minhas dores

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de cabeça eram constantes e eu dizia que sim. Ai ele perguntava em que região da cabeça e eu apontava com o dedo no lugar. Ai ele abria minha cabeça com um bisturi e saíam pedacinhos do teu corpo de dentro da minha cabeça, galega. Porra, era tudo tão real que eu acordei em pânico. Tentei deitar novamente mas não consegui. Sinto amores e ódios por você. Sinto amores e ódios repentinos por você. Essa viagem ta me levando para trás. Pro dia que você me deixou. Fico o tempo todo pensando em voltar e não tenho nem mais para onde voltar. É insuportável. Inventei até que a gente tava junto, que a gente nunca tinha se separado. E comecei a escrever cartas e a responder as cartas que você nunca mandou. Fiz essa viagem para tentar esquecer o pé na bunda que você me deu e só foi pior. Só faço lembrar, sem parar. Esse lugar ta virando um pesadelo. Pela primeira vez tenho vontade de largar tudo: largar a viagem, meu emprego, meu trabalho de geólogo, minha vida, e me perder em um labirinto. Labirinto sem saída.

Aqui já há imagens da feira funcionando, pessoas indo e vindo, comprando, vendendo. Planos mais detalhados de elementos da feira: caixinhas de música, flores artificiais. Inclusive, a imagem da caixinha de música continua como música ao fundo durante algum tempo. “Gotas de orvalho artificiais em pétalas de flores de plástico. Não consigo mais trabalhar. Abandonei as rochas tectônicas. Fico olhando só para flores e pessoas. Não agüento mais tentar te esquecer”, é a fala final de José Renato nesse bloco de cenas.

Bloco 8 : 00:44:58 a 00:48:32

Esse bloco de cenas tem início com a imagem de três mulheres paradas à porta de uma lojinha, com um colchão atrás. Plano médio. Conheci Pati na frente da loja dos colchões. Ela tava saindo da delegacia que fica em frente. Me pediu um cigarro. Comprei uma carteira de cigarro pra ela. Pati é dançarina, mas faz programas nas horas vagas. Fiquei o dia inteiro com Pati. Pela primeira ver fiquei 24horas sem pensar no meu passado. A próxima imagem é novamente um plano médio, de Pati em frente à delegacia, com dois policiais ao lado. O som é de movimento de rua, pessoas conversando ao fundo. No

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próximo plano, Pati está sentada, com caixas de bananas e laranjas ao fundo, no que aparenta ser uma feirinha. Ela olha no sentido de uma pessoa ao lado da câmera, com quem conversa. Essa pessoa é, provavelmente, José Renato. Essa imagem adquire um formato de entrevista. Ocorre, portanto, um diálogo entre ela e José Renato. “José Renato – Diz seu nome. Pati – Patrícia. José Renato – Diz seu nome inteiro. Pati – Patrícia Simone da Silva. José Renato – É esse o seu nome é? Pati – Meu nome é Patricia Simone da Silva. José Renato – Quantos anos cê tem? Pati – 22. José Renato – O que você faz da vida? Pati – Eu estou apenas aqui querendo o meu, né? Mas se eu achar um trabalho melhor aí eu pulo de linha. José Renato – Onde é que você trabalha? Pati – Trabalho ali na boate. José Renato – Fica onde a boate? Pati – Fica ali. Eu não sei qual é o nome desse setor. E nem sei o nome da rua. Rua Manoel Pereira. O dono é? José Renato – O lugar é aquele lugar, como é que chama? Pati – Quer dizer, uma boate né? Agora eu não sei o nome da rua e nem sei o nome do setor. José Renato – A boate fica aonde, na feira, é? Pati – É. José Renato – Fala que a boate fica perto da feira. Pati – Fica, fica perto da feira. José Renato – Diga denovo. Pati – A boate fica perto da feira. José Renato – Me diga uma coisa, o que tu queria ser? Qual a profissão que tu queria seguir? Pati – Eu desejava de ser tanta coisa na minha vida. Mas seja lá o que for né, se for o melhor eu tô indo pro melhor, se for o pior eu tô indo pro pior. Eu queria ter é realmente... o meu sonho é tão alto nesse momento, era uma vida lazer para mim e minha filha e mais nada. José Renato – Mas o que é uma vida lazer?

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Pati – Uma vida lazer é assim: eu na minha casa, eu e minha filha, o companheiro que eu tiver ao meu lado, para esquecer esses momentos todos, porque não dá certo. É triste a pessoa gostar sem ser gostada. José Renato – Tu queria ter um amor? Pati – E como eu queria. José Renato – Então diga aí, como é que você queria teu amor. Pati – Eu queria ter um amor que assim seja reservado só para mim. Toda hora que eu chegar encontrar ele. Encontrar aquela pessoa só pra mim. Eu acho romântico. Apesar de todos os preconceitos que a gente tem que agüentar, bafo de cachaça, de cigarro, e outras coisas. Mas o que importa é que a gente tem que dar valor e dar lazer a quem dá a gente.”

Após essa conversa, há mais imagens de Pati, em plano médio, encostada em uma espécie de barraquinha na rua; há pessoas indo e vindo. A trilha sonora é uma música romântica que aparenta estar tocando em algum lugar ali perto.

5.2 ANÁLISE CONCEITUAL DO FILME

5.2.1 Metodologia de análise conceitual

Pretende-se aqui fazer uma análise conceitual do filme, a partir da análise descritiva. Dentre outros elementos, serão identificadas as imagens-câmera, suas funções, se e quando sofrem deslocamento para imagem diegética25. Como atuam o som e a imagem e a que tipo de pensamento eles podem proporcionar ao espectador. Identifica-se em que momentos do filme ocorrem o pensamento afetivo, e como isso ocorre. É importante que seja colocado que a análise do filme não se trata de aplicar uma teoria às imagens, mas sim, partir do filme. Identificar o que é dado pelo filme.

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A definição de imagem diegética é encontrada no Dicionário Teórico e Crítico de Cinema, de Jacques Aumont: “É diegético tudo o que supostamente se passa conforme a ficção que o filme apresenta, tudo o que essa ficção implicaria se fosse supostamente verdadeira.” (AUMONT, 2001: 77)

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5.2.2 A Análise

O primeiro bloco de imagens do filme é constituído de imagens diegéticas, de uma pessoa dirigindo um carro à noite, com uma música revelando-se também diegética, tocando no rádio. Não se sabe quem dirige o carro, não se tem uma imagem dessa pessoa. O espectador ainda não tem nenhuma informação, ainda não tem nenhuma outra imagem para ligar com essa e fazer inferências. Assim, ele fica em um estado de suspensão, e volta à imagem a fim de gerar novos afetos (esse é o pensamento afetivo). No cinema clássico, esse tipo de cena se aproxima muito de proporcionar um pensamento afetivo; isso só não ocorre porque, logo adiante, são dadas as informações ao espectador para “resolver o mistério” da cena, e o afeto se prolonga em ação. Posto isso e partindo do pressuposto de que o espectador espera que logo vai conhecer quem é que dirige o carro, quem é essa pessoa que nos empresta seu ponto de vista. Ou seja, o espectador se coloca como ele estando ali, mas ao mesmo tempo espera que seja revelado quem é essa pessoa. Como isso não acontece, o espectador está em ‘suspensão”. A imagem não se prolongou de forma sensório-motor e nem gerou um sentimento. Na primeira parte do segundo bloco, ao mudar a cena, espera-se novamente que será revelado o personagem. O ponto de vista continua o mesmo, não se identifica uma pessoa. No entanto, agora já há a voz do personagem, e pelo conteúdo de sua narração “mochila para carregar amostras [...]” o espectador é levado a pensar se tratar de um documentário sendo feito pelo personagem; um documentário que o personagem faz, por exemplo para mostrar a seu chefe. Aqui, as imagens-câmera e o som quase se unem em um

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objetivo comum. O espectador começa a formular pensamento em relação a esse tom documental, mas com o início do segundo bloco, isso muda. “Parada para mijar...”. Essa fala, juntamente com a imagem estática, perde a idéia de algo documental que estava começando a ser gerada pelo espectador. Logo, continua em estado de suspensão, sem conseguir entender o que está vendo, o que está acontecendo e porque esse personagem está fazendo isso e o que sentir em relação a isso. Aqui, o espectador está pensando a todo momento, procurando formas e mecanismos para entender o que está a sua frente. Perguntas poderiam surgir, como: “ora, se era um documentário técnico sendo feito por ele, por que agora ele insere informações pessoais? Quem é que vai assistir a esse documentário feito pelo personagem?” Podemos concluir, então, que se trata desse pensamento afetivo: o espectador é levado a voltar sempre ao que vê e ao que ouve e repensar sempre sobre o que esta vendo e ouvindo. O diretor reforça tendência, essa busca por ser afetado novamente, como veremos a seguir. O terceiro bloco, já em imagens de Super 8, começa novamente em tons documentais. Aqui volta-se a construir mais uma vez a idéia de que o que o personagem está fazendo - primeiramente por ser em câmera Super 8, com o tom altamente pessoal e caseiro – é um documentário científico; ele está ali colhendo dados com um objetivo. Mas logo no final da fala isso é revertido ao ser dito “Porra, trinta dias”. Mais uma vez o personagem insere aqui algo pessoal, o que faz com que a credibilidade daquele filme ser científico, cair por terra. Com as imagens que vem a seguir, juntamente com o som, novamente ocorre esse embate documental/pessoal. Som e imagem estão em conflito nessas cenas. Todo esse tempo presencia-se imagens-câmera, com som diegético-ficcional. O pensamento gerado por essa combinação é o pensamento das imagens-tempo: o espectador não fecha nenhum significado,

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não sente algo sobre isso – ele está em constante estado de afeto, gerando pensamento após pensamento. Poderia ser pensado algo semelhante ao seguinte esquema 1) Imagem-câmera (paisagens) com som documental (“Dia dois. Pesquisa geológica [...]”) 2) Imagem-câmera se desloca para imagem diegética quando há a inserção da narração “Porra, 30 dias”. 3) Retorno a imagem-câmera e som documental (“Estou na BR 432 [...]) O espectador se perde nesse jogo: mas é para ser um documentário, um diário ou um filme de ficção? Ao que é que eu estou assistindo? No bloco quatro, com a imagem de Seu Nino e Dona Perpétua salta aos olhos o poético e o banal. As imagens aqui são claramente imagens-câmera. Se pensarmos na circunstância da tomada, o espectador é levado a identificar essa imagem-câmera. É como se ele pensasse que o diretor do filme, ou José Renato falasse “Seu Nino, Dona perpétua, por favor, fiquem de frente para câmera e olhem para ela”. Aqui, com certeza, há uma inserção do mundo histórico. Assim, sabendo se tratar de uma imagem-câmera, o tom ficcional gerado pela narração – “eles estão casados há 50 anos, nunca tiveram outra casa, nunca tiveram uma briga, nunca dormiram uma noite longe do outro [...] - gera algo poético, surgido de uma imagem-câmera, de uma situação banal. Esse embate entre a imagem-câmera e o som ficcional, mais uma vez deixa o espectador em estado de suspensão. Ele tem que voltar à imagem e ao som para entender essa situação. É difícil não ser levado à circunstância da tomada, mas ao mesmo tempo acredita-se na história que José Renato conta sobre o casal. O espectador pode colocar-se a pensar: “E agora? Essa imagem parece real, mas será que a história deles é essa mesmo? Não tenho dúvidas de que essa casa é mesmo a deles. Será que o

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que os diretores do filme Marcelo e Karim pediram ao casal é o mesmo som que José Renato fala? (‘Seu Nino saiu para desligar o rádio e eu pedi para ele voltar’).” Ao mesmo tempo, emerge o poético, dado pela voz “Eles nunca tiveram uma briga”; “Não quis filmá-los separados”. O bloco cinco é essencial para identificar algo que, novamente, aparenta ser o documentário feito por José Renato, com imagens estáticas, de fotografia, com alto teor técnico. A narração é exclusivamente técnica, durante esses segundos: “fraturas a 340/240 graus nordeste. Gnaisses bandados a hornblenda. [...]”. Aqui, mais uma vez no filme, som e imagem possuem uma mesma função; ambos estão a favor do documentário feito por José Renato. A ação aqui pode chegar a se prolongar, mesmo que por alguns segundos a aceitar que esse seja um documentário. Mas, por outro lado, lembra-se ser uma ficção. A imagemcâmera não deixa de ser imagem-câmera, mas faz parte agora de um outro documentário, que está na verdade, dentro da ficção. A primeira parte do bloco seis é mais uma vez onde se percebe o poético, surgindo do banal, de uma situação cotidiana que é dirigir um carro, ao nascer do sol. O som colabora com esse tom poético, tocando a música romântica “Morango do Nordeste”, e ainda com a fala de José Renato, agora se direcionando a sua “galega”, e declarando que está pensando nela. O som e a imagem aqui também se completam. Agora, a imagem-câmera se refuncionaliza, e passa a ser imagem diegética, juntamente com o som, que é narração e música, são ambos parte da grande ficção. É interessante pensar que com a inclinação a algo sentimental vai levando o espectador a sair do aspecto de documental e a entrar em um aspecto ficcional. As imagens podem ser vistas como documentário poético, assumindo outro tom que é um diário de José Renato para sua “galega”. Todos esses processos que vão operando no filme, levam o espectador ao pensamento afetivo. “Não era um documentário?

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Agora porque é que ele está gravando algo pessoal? Será que a Galega vai assistir a isso?”. O espectador busca sentidos, busca entender, e se coloca em um estado de pensar e não pensar, de suspensão, de volta à imagem e ao som, principalmente por esses terem mudado suas funções. A segunda parte do bloco seis é carregada de intenso clima poético, o qual é gerado por uma situação banal, provinda de uma imagem câmera que é deslocada de sua origem e transformada em imagem-diegética e junto com o som podem proporcionar pensamento afetivo. É o momento em que José Renato se depara com o pôster que está escrito “viajo porque preciso, volto porque te amo”. José Renato aqui não está fazendo um documentário científico. E também não está se dirigindo à Galega. É quase como se não ligássemos mais José à pessoa que faz as imagens. Ele fala a ele mesmo. Mais uma vez essas mudanças de função da imagem e do som deixa o espectador à procura de pensamentos, de significâncias, de formar relações e conexões entre as informações que já lhe foram apresentadas. Novamente ele se encontra em estado de suspensão, de pensamento afetivo. Nota-se a partir desses blocos certa tendência em que a o som direciona a função da imagem. Como pôde ser visto, em alguns momentos, a imagem-câmera junto com a narrativa de motivos técnico-científicos direciona o espectador a algo semelhante à experiência do documentário. Por outro lado, quando a imagem se une a uma narrativa voltada para o pessoal, com mais carga poética e emocional, que a imagem-câmera em primeira instância sofre um deslocamento de função, e passa a se tornar imagem diegética, parte de uma ficção maior, que é o filme Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo. Isso pode ser ilustrado pela imagem abaixo:

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Voltando à análise, o bloco sete se coloca de forma peculiar. As imagens de uma feira sendo montadas são claramente imagens-câmera (assim como outras imagens no filme que se passam na cidade, na presença de muitas pessoas). Ali, talvez, a interferência do cineasta no momento da tomada seja quase ausente, e a imagem é um recorte de representação daquele momento histórico. Já a narração, por outro lado, intensa, carregada de sentimentos. É um dos “desabafos” mais sinceros de José Renato. A trilha sonora continua aumentando a carga dramática. Novamente, essa imagem-câmera sofre deslocamento e passa a se colocar

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como imagem diegética. Como devaneios e impressões de José Renato. Nada ali mais tem nada de documental. O bloco oito é um “bloco resumo” do filme. Ali, a mistura entre ficção e documentário é o mais clara possível, o embate que ocorre aqui pode representar idéias que perpassam todo o filme. É um momento em que há interação entre José Renato e uma mulher, a Patrícia. Essa cena ocorre quase como se fosse uma “entrevista”. Há a câmera e seu ponto de vista, mas ao lado da câmera aparenta haver uma pessoa, para a qual patrícia dirige seu olhar. Mas há ainda interação entre outras pessoas ao redor. Em um determinado momento Pati olha para uma pessoa que fora de campo, e está pessoa responde “pode falar”. Que pessoa é essa? É impossível não retomar ao momento da tomada. A imagem é altamente documental, é claramente uma imagem-câmera: havia alguém ali que estava colhendo essas imagens e estava interagindo com Patrícia. No entanto, há a ocultação da fala de quem estava ali, e há a inserção da voz de José Renato interagindo com essa mulher. Mas, José Renato é um personagem fictício! Aparenta ser como se José Renato fosse um documentarista, no entanto, há inclusive problemas técnicos de som, em que a voz de José aparece limpa, destoando do resto do som ambiente e da voz de patrícia. “Essa fala de José Renato seria a mesma fala do diretor no momento da tomada? Eles teriam inventado outra fala para José Renato, durante a montagem do filme?” Diversas questões podem surgir aqui. Portanto, o espectador tem a sua frente esse jogo: uma imagem-câmera e som do mundo histórico interagindo com a voz de um personagem fictício. Os afetos, nesse momento, ficam em suspenso. O pensamento fica preso onde não é possível fazer inferências. Não é documentário, não é ficção, mas é imagem-câmera, e é voz de ficção. Fica muito claro nessa

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cena como ocorre o pensamento afetivo. O espectador, em seu estado de suspensão, precisa buscar mais informações, volta à imagem para ser afetado novamente, para tentar trilhar outros caminhos de pensamentos. Isso não se prolonga em uma ação, continua em estado de pensar com o não-pensar. Ainda nessa cena, após uma pergunta, há um jump cut, um elemento que vai contra o valor da imagem-câmera, e um close de Patrícia. Para ilustrar melhor, a mulher não possui um dos dentes da frente. No momento desse close, o espectador quase não consegue ouvir o discurso de Patrícia, como seria possível ouvir em um documentário clássico. Ele está reparando a cena, ele está prestando atenção no dente de Pati, ou no olhar de Pati. Esse jump cut, seguido de close bagunça a intuição do espectador, ele quebra o vínculo sensório-motor que poderia ocorrer no documentário clássico. Esse processo é o pensamento afetivo, é o estado de suspensão e de volta à imagem e ao afeto do espectador. Ele está à deriva. O afeto se insiste em não se transformar em ação. O percurso desse afeto pode ser ilustrado pelo esquema a seguir: 1) No filme ou documentário clássico: Afeto – Ação – Inferência 2) Na cena descrita Afeto – Suspensão – Retorno à imagem – Afeto Esse processo descrito por último é o percurso do afeto no pensamento afetivo. O espectador pensa e repensa.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O filme Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo é de grande colaboração para os cenários nacional e internacional de cinema contemporâneo. As questões levantadas por ele são inúmeras.

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Pela análise do filme no presente trabalho, pode-ser concluir que o filme, por um lado está na contramão das produções mainstream do cinema contemporâneo, de matriz narrativa clássica ou com formatos de teledramaturgia. Por outro lado, dentre as várias características citadas como recorrentes nos filmes da década 2000-2010 que, “Viajo...” foi fruto de uma ação entre amigos, desde a criação e direção, à produção (REC – Produtores Associados); também tiveram apoio de leis de incentivo (Programa Petrobras Cultural), como grande parte do cinema vem sobrevivendo. Levantou questões sobre os limites entre ficção e documentário, entre som e imagem. Pode-se perceber também, que os filmes que ganharam destaque em festivais internacionais (e não em bilheteria nos cinemas brasileiros), são os filmes que possuem quebras no esquema sensóriomotor de pensamento; filmes inovadores tanto em estética quanto em linguagem; filmes que estão longe de serem reprodutores de roteiros e clichês. O filme possui ainda muitas outras cenas que ficam constantemente no embate imagem-câmera que se transforma ou não em imagem diegética e a relação dessas imagens com o som. Cenas como a família que produz colchões, em que não há duvida de que eles estejam atuando: é aquilo ali que eles fazem, é um relato histórico. Bem como a cena do baile de forró, em que provavelmente o baile aconteceu. E tudo isso no filme, acontece de forma poética, de forma que o poético emerge ali das situações cotidianas e banais. Essas imagens vão gerar pensamentos afetivos o tempo todo. O espectador fica a todo momento em estado de suspensão, à deriva. Foi possível observar como o banal e o poético que emergem do filme, o qual conta com imagens-câmera deslocadas de seu sentido originário (pela presença da voz over) gera um pensamento afetivo. Por vezes, as imagens-câmera são identificadas como imagem tempo, como tais, interrompem o vinculo sensório motor e, na duração, permanecem no

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intervalo entre o afeto e a ação. Como o afeto não se transforma em ação de imediato na imagem tempo, há espaço para o espectador “procurar sentido”. No entanto, ficam em aberto perguntas como “como se coloca o espectador no filme, a partir do momento em que não há um corpo com o qual pode se identificar?”. Questões como essa poderiam ser sementes de trabalhos futuros.

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TROPA DE ELITE 2 - O INIMIGO AGORA É OUTRO. José Padilha. 2010. 115 min. VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO. Marcelo Gomes e Karim Aïnouz. 2009. 75min. Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo Press Book, 2009. Disponível em Acesso em: 10 jul. 2010. XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico – A Opacidade e a Transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1977.

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