O pensamento de esquerda: um pensamento em construção.

September 27, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: Historia, Marxismo, História, Socialismo S. XXI, TEORIA MARXISTA, Socialismo del siglo XXI
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O PENSAMENTO DE ESQUERDA: UM PENSAMENTO EM CONSTRUÇÃO



José Flávio Motta [1]
Iraci del Nero da Costa [2]


Para nós, o desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital
conhece seu ponto culminante com a emergência da mercadoria força de
trabalho, ou seja, com o estabelecimento do capitalismo, no âmbito do qual
se dá o pleno amadurecimento de tais formas. Estabelecido em espaço
geográfico considerável passa ele a operar de maneira a subordinar e
recriar, à sua feição, todo o espaço social, econômico e físico com o qual
entra em contato. Observa-se, assim, não só a emergência da história
universal, mas, também, de uma mudança qualitativa na própria história da
humanidade; a partir de então só persiste o modo de produção capitalista (
que a tudo ilumina, como se diria em termos clássicos ( tudo subordinando,
condicionando e determinando.

De outra parte, justamente por ter ocorrido o desenvolvimento
superior daquelas formas, chega-se à derradeira forma de sociabilidade
natural da humanidade; a partir de então ( e na medida em que o capital
industrial traz implícitas as condições de sua reprodução, de sua reposição
( apenas um movimento do espírito, da ação conscientemente dirigida do
homem, poderá conduzir à superação das condições dadas, vale dizer, do
capitalismo, o qual, caso contrário, repor-se-á indefinidamente. O primeiro
passo necessário à sua superação estará, pois, no estabelecimento da
crítica teórica das condições dadas, estudo este que deverá fundamentar a
ação consciente no sentido da negação do status quo; assim, a crítica da
lógica de funcionamento do capital industrial e do capitalismo define-se
como pressuposto imprescindível à aludida superação.

A nosso ver, as análises cujo apogeu atingiu-se com a elaboração e
publicação de O Capital ( incluído aqui o estudo que privilegiou a
categoria modo de produção e o desenvolvimento histórico observado na
Europa Ocidental, que teria ocorrido segundo o encadeamento de modos de
produção num continuum lógico-histórico característico dessa área (
representaram o primeiro momento do referido movimento do espírito
indispensável à criação das condições subjetivas para que a humanidade
pudesse propor-se a negação do capitalismo e, portanto, passar a empenhar-
se nessa tarefa.

Do exposto, infere-se a existência de dois elementos que estão a
condicionar a possibilidade de se superar o modo de produção capitalista.
Um primeiro, óbvio, de ordem objetiva: a constituição e o irrecorrível
espraiamento do próprio capitalismo. Outro de ordem subjetiva: a crítica do
sistema (da lógica de funcionamento do capital industrial) e a formulação,
inda que num mero bosquejo, de uma nova forma de sociabilidade, a primeira
a se assentar inteiramente no espírito e que, portanto, terá de ser por ele
sustentada (isto é, terá como suporte a ação consciente do homem, ou de
homens livremente associados, ou do "Partido", caso se queira).

No que respeita à referida formulação, dever-se-á ter em mente o
seguinte: no capitalismo, a dimensão econômica representada pela produção
física e, em larga medida, a própria esfera política assim como a
ideológica ( todas integrantes da vida social ( subordinam-se à dimensão
do lucro imediatamente vinculada à produção de valores de troca, dimensão
esta a qual, de resto, além de passar a desempenhar papel central na esfera
econômica apresenta desdobramentos novos à medida que se dá o
amadurecimento pleno das formas mercadoria, dinheiro e capital. Este
domínio da dimensão dos ganhos ou do lucro faz com que a ela também se
subordinem a alocação dos fatores, a maneira ou modo de produzir, o que e
quanto produzir, bem como a distribuição do produto ou dos resultados da
produção. Prevalece, pois, no capitalismo, a solidariedade fundada no
lucro.

Já as políticas que foram propugnadas pela velha esquerda, sobretudo
por socialistas e comunistas, ferem, por via de regra, apenas a tecla
concernente à distribuição do produto. Ademais, os teóricos do socialismo
preconizaram, principalmente, formas mais equânimes, harmônicas ou
igualitárias de se efetuar a distribuição da produção sem se voltarem mais
detidamente ao estudo de formas de alocação e de produção alternativas às
que são próprias do capitalismo. Tal estreiteza teórica, aliada a outros
fatores dos quais alguns colocam-se abertamente no campo da patologia
individual e social, também contribuiu para o derruimento do socialismo
real colaborando, portanto, para a afirmação e universalização de práticas
neoliberais.

Na esteira de tais mudanças situa-se o novo alinhamento de segmentos
majoritários da antiga esquerda e da socialdemocracia que, em larga medida,
deixaram de lado a perspectiva socialista e passaram a propor soluções
meramente redistributivistas ou assistencialistas que não vão além dos
limites da sociedade capitalista. Essas propostas recentes configuram, tão-
somente, o que outro autor denominou capitalismo com desconto; com elas se
pretende, de fato, "parasitar" o capitalismo, cobrando da sociedade, com
incidência particularmente forte sobre o capital, um "tributo" que
clamaríamos de "taxa de garantia do direito de existir", cuja destinação
seria atender aos menos privilegiados. Assim, por exemplo, é deste feitio a
solução que tentam implementar na Europa alguns partidos de extração
socialdemocrata ou comunista, com o que não apenas se desfigura a esquerda
mas, sobretudo, obsta-se, de imediato, a própria construção da nova forma
de sociabilidade humana na qual se deveria empenhar.

Quanto a esse desfigurar-se da esquerda, escreveu-se já há alguns
anos: "Espremida entre uma base social cambiante e um horizonte político em
contração, a socialdemocracia parece ter perdido sua bússola. ... Houve
época, nos primeiros anos da Segunda Internacional, em que ela orientou sua
ação para a superação do capitalismo. Empenhou-se depois por reformas
parciais, consideradas passos gradativos rumo ao socialismo. Finalmente,
contentou-se com o bem-estar social e o pleno emprego dentro do
capitalismo. Se ela admitir agora uma diminuição do bem-estar e desistir do
pleno emprego, em que tipo de movimento vai se transformar?" (ANDERSON,
1996, p. 23-24).

De outra parte, se, como apontamos, as propostas que têm surgido no
seio das esquerdas são, digamos assim, diversionistas, quais os elementos
que deveriam, afinal, estar presentes no esboço de que aqui se trata? Sem
pretendermos sequer arranhar a resposta definitiva a esta questão, não nos
furtamos a tecer os breves comentários que se seguem com o intuito de
encaminhar a discussão.

Em primeiro lugar, considerando que terá de haver livre assentimento
com respeito à nova forma de sociabilidade, é indispensável uma ambiência
democrática, vale dizer, a democracia e os direitos que expressam a
cidadania têm de prevalecer, absoluta e irrestritamente, e a ambos,
obviamente, há de estar aliado o maior grau possível de liberdade pessoal e
coletiva. Em segundo, tal sociedade terá de se erigir com base na negação
da propriedade privada sobre os meios de produção, uma vez que não pode
haver, por hipótese, qualquer mediação entre a produção de bens e serviços
e sua distribuição consoante as necessidades dos indivíduos. Em terceiro,
para a gestão da vida econômica dessa sociedade "pós-capitalista" precisar-
se-á de uma engenharia econômica que não se confunde com a(s) engenharia(s)
de hoje, nem com a administração como a conhecemos, nem com a economia como
a praticamos nos dias correntes; a essa nova engenharia cumprirá
estabelecer as relações que vincularão a produção física com os recursos e
as técnicas disponíveis e com as demandas de caráter individual e social.

Em suma, temos, no capitalismo, um sistema "natural" integrado, auto-
regulado, no qual até mesmo as formas de pensar (a seu favor) encontram-se
"naturalmente" delineadas. De outra parte, deparamo-nos com o embrionário
pensamento da esquerda, ainda incapaz de compor um quadro coerente e
articulado do que deverá vir a ser, em ideia, o sistema pelo qual almejam
os críticos radicais do capitalismo. Pensamento este que nos parecerá muito
mais rudimentar se tivermos presente o quanto lhe resta por avançar, pois,
por se tratar de algo "antinatural", tudo, ou quase tudo, ainda está por
ser elaborado. Pensamento que, por esta mesma causa, defronta-se com o fato
de que não há nenhuma razão de ordem natural conducente ao estabelecimento
e à persistência no tempo de uma nova forma de sociabilidade humana.



Referências bibliográficas

ANDERSON, Perry. Introdução. In: ANDERSON, Perry & CAMILLER, Patrick. Um
mapa da esquerda na Europa Ocidental. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.
9-31.

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[1] Professor Doutor da FEA-USP.
[2] Livre-docente pela FEA-USP.
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