O pensamento jurídico de Robert Alexy. Problemas fundamentais, teses centrais, interconexões sistemáticas

Share Embed


Descrição do Produto

1

O PENSAMENTO JURÍDICO DE ROBERT ALEXY. PROBLEMAS FUNDAMENTAIS, TESES CENTRAIS, INTERCONEXÕES SISTEMÁTICAS1 ROBERT ALEXY’S LEGAL THOUGHT. FUNDAMENTAL ISSUES, CENTRAL THESES, SYSTEMATIC INTERCONNECTIONS Ivan Rodrigues2

Resumo: Este artigo empreende um sobrevoo sobre a teoria da argumentação jurídica, a teoria dos direitos fundamentais e a teoria do direito de Robert Alexy a fim de: (i) explicitar os problemas fundamentais que as propulsionam; (ii) expor as teses centrais que ele adota como argumentos primordiais na articulação delas; (iii) reconstruir interconexões sistemáticas que as perpassam. A conclusão do sobrevoo é: não é possível compreender fragmentariamente o pensamento jurídico alexyano, obliterando os vínculos conceituais e as comunicações argumentativas entre aquelas três teorias. Não é possível, por exemplo, assumir a teoria dos princípios desarvorando-a de seu lastro discursivo, não positivista inclusivo. Palavras-chave: Robert Alexy; teoria da argumentação jurídica; teoria dos direitos fundamentais; teoria do direito; dupla natureza do direito.

Abstract: This paper undertakes a reconnaissance on the theory of legal reasoning, the theory of constitutional rights and the jurisprudence Robert Alexy articulates in order to: (i) making explicit the fundamental problems they envisage; (ii) exposing the central theses they unfold; (iii) reconstructing their systematic interconnections. The conclusion of the reconnaissance is this: understanding Robert Alexy’s legal thought in a fragmentary fashion is unfeasible. Thus, obliterating the conceptual liaisons and the argumentative communications among his theories corresponds to failing understanding him. For instance, it is not possible to assume his theory of principles uncoupling it from its inclusive non-positivist, discursive background. Keywords: Robert Alexy; theory of legal reasoning; theory of constitutional rights; jurisprudence; dual nature of law. 1

Elaborado em virtude de convite a mim formulado pela Profa. Dra. Juliana Diniz para discorrer sobre o tema aqui investigado na disciplina Hermenêutica Constitucional, por ela ministrada no PPGD/UFC. A ela, minha gratidão pela instigante ocasião. 2 Docente para Teoria Geral do Direito e Direitos Humanos e Fundamentais, coordenador do Grupo de Estudos Robert Alexy – GERA (UNICHRISTUS). Doutorando em Ética e Filosofia Política (UFSC), mestre em Direito Constitucional (UFC), bacharel em Direito (UFC), licenciado em Letras Vernáculas (UECE). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3085919257774539. E-mail: [email protected].

2

(1)

INTRODUÇÃO

O pensamento jurídico de Robert Alexy se expressa em três livros e mais de uma centena de artigos. Esses três livros tornam patentes os três grandes flancos do pensar alexyano acerca do direito: teoria da argumentação jurídica, teoria dos direitos fundamentais e teoria do direito. No Brasil, o professor catedrático (aposentado desde 2013) para Direito Público e Filosofia Jurídica na Christian-Albrechts-Universität zu Kiel é conhecido, sobretudo, por sua teoria dos direitos fundamentais, embora cada vez mais se disseminem entre nós os dois outros grandes flancos de sua obra. Contudo, ainda opera, no Brasil, uma tendência dispersa a ler fragmentariamente a obra jurídica alexyana. Essa leitura fragmentária consiste em adotar uma daquelas três teorias (frequentemente a teoria dos direitos fundamentais) ou somente um fragmento de uma delas (por exemplo, a teoria dos princípios como mandados de otimização), desentranhando a teoria ou o fragmento de teoria de seu contexto sistemático. Ao abraçar tal tipo de leitura incompleta e “caolha”, sequer se soergue a desconfiança sobre se a leitura é inconsistente, ou seja, sobre se a leitura produz uma compreensão errônea, deturpada, parcial, da teoria ou do fragmento de teoria. Aqui pretendo apresentar laconicamente os problemas fundamentais que estão em jogo em cada uma daquelas teorias, isto é, os problemas basilares que impulsionaram Alexy a empreender tais teorias. Também pretendo identificar claramente as teses centrais com as quais Alexy formula suas articulações teóricas, quer dizer, os argumentos primordiais que ele sustenta para tentar solucionar os problemas fundamentais aos quais se dedica. Além disso, pretendo defender que há interconexões fortes entre os três grandes contextos de conteúdos do pensamento jurídico alexyano, ou seja, interconexões não meramente superficiais (por exemplo, convergências temáticas, referências auxiliares), mas interconexões estruturais que tornam a obra alexyana um quadro teórico sistematicamente concatenado. Por “interconexões estruturais”, entendo interconexões conceituais tanto entre os problemas fundamentais quanto entre as teses centrais dos três grandes flancos do pensar jurídico de Alexy. Na medida em que esses três grandes flancos se erguem sobre problemas fundamentais e teses centrais que são tecidos com os mesmos fios conceituais, eles compõem um quadro teórico único e consistente. Assim, (i) compreender Alexy sobre argumentação jurídica, (ii) compreender Alexy sobre direitos fundamentais e (iii) compreender Alexy sobre o conceito de direito são três tarefas que não podem ser preenchidas fragmentariamente: (i), (ii) e (iii) são indissolúveis.

3

(2)

PROBLEMAS FUNDAMENTAIS

A seguir, são explicitados os problemas fundamentais em torno dos quais o pensamento jurídico alexyano orbita. Neste momento, esses problemas são apresentados separadamente, de tal modo que fiquem claras as questões essenciais de cada um dos três flancos daquele pensamento. Aqui importa, portanto, responder a seguinte pergunta: Em Alexy, qual é o problema primordial da teoria da argumentação jurídica, qual é o problema primordial da teoria dos direitos fundamentais, qual é o problema primordial da teoria do direito? A resposta a essa pergunta é a seguinte: Em Alexy, o problema primordial da teoria da argumentação jurídica é o problema da insuficiência da subsunção e da inevitabilidade das valorações; o problema primordial da teoria dos direitos fundamentais é o problema da indeterminação das disposições jusfundamentais e do protagonismo judicial na determinação das normas jusfundamentais; e o problema primordial da teoria do direito é o problema da existência de casos difíceis problematizadores do conceito de direito. Desdobro detalhadamente essa resposta abaixo.

(2.1)

Teoria da argumentação jurídica

Alexy elabora sua contribuição à teoria da argumentação jurídica em 1976 como tese de doutoramento na Georg-August-Universität Göttingen. Essa tese foi publicada na forma de livro, em 1978, com o título “Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica”. Esse livro debruça-se sobre um problema fundamental, a saber, o problema da existência de várias controvérsias jurídicas que não podem ser resolvidas logicamente, ou seja, para as quais não se pode construir uma decisão jurídica mediante uma subsunção. Subsunção é a operação lógica consistente em derivar dedutivamente uma decisão U a partir tanto das formulações das normas jurídicas aplicáveis ao caso N1, N2, ... Nn como dos enunciados empíricos (fatos) relevantes ao caso A1, A2, ... An. O ponto de partida de Alexy é a consideração de que a subsunção não corresponde a uma ferramenta onifuncional, com cujo exclusivo uso todas as controvérsias jurídicas seriam resolúveis. Quatro são os tipos de controvérsias jurídicas, segundo Alexy (2013, p. 19-20), nas quais a subsunção sucumbe e é insuficiente para propiciar uma solução: (1) casos nos quais as formulações das normas jurídicas aplicáveis são tão imprecisas que suscitam diversas interpretações, diversas possibilidades significativas; (2) casos nos quais emergem antinomias, ou seja, nos quais diferentes normas jurídicas aplicáveis (pelo menos, duas)

4

conduzem a consequências jurídicas irreconciliáveis umas com as outras; (3) casos nos quais não se encontra no repertório vigente (estatutos, costumes, precedentes) do direito positivo uma regulamentação, a determinação de uma solução; (4) casos nos quais se rejeita a solução determinada pela norma jurídica aplicável e se pretende tomar uma decisão contra legem. Nesses casos, é inevitável recorrer a valorações, ou seja, juízos de valor. Nos casos do tipo (1) valorações são inevitáveis para escolher uma das diversas possibilidades significativas da formulação da norma jurídica aplicável: como o juiz tem de escolher somente uma dessas possibilidades significativas para ser a solução da controvérsia jurídica sob seu exame, ele tem de valorar uma como sendo a solução “digna”. Nos casos do tipo (2), se o juiz surpreende diante de si dois ou mais princípios antinômicos, em colisão, então ele tem inevitavelmente de valorar qual dos princípios é precedente (tem primazia) sobre o(s) outro(s) dentro da constelação de circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto. Nos casos do tipo (3), o juiz inevitavelmente realiza um juízo de valor porque ele tem de criar (introduzir no direito positivo) uma regulamentação para a controvérsia jurídica submetida a ele e que ele não pode eximir-se de solucionar (vedação de non liquet): essa criação é permeada por valores defendidos pelo juiz. Ademais, nos casos do tipo (4), o juiz inevitavelmente valora a solução que o direito positivo determina para a controvérsia jurídica sob seu exame como sendo “indigna” e, além disso, valora a solução que ele advoga em substituição à solução do direito positivo como sendo “digna”. O problema fundamental, portanto, da teoria alexyana da argumentação jurídica, teoria que parte do reconhecimento da insuficiência da subsunção, é esclarecer como podem ser fundamentadas racionalmente decisões jurídicas tomadas sem o uso da subsunção, urdidas sem a (robusta) autorização de uma conclusão dedutivamente rigorosa. Trata-se de perguntar como é possível não descambar definitivamente no voluntarismo judicial em controvérsias jurídicas que só podem ser resolvidas através de uma valoração realizada pelo juiz. Que as valorações sejam incontornáveis no âmbito da decisão jurídica implica necessariamente que as decisões jurídicas elaboradas com base em valorações seriam irracionais, arbitrárias e incontroláveis? Para Alexy, a resposta a esse problema consiste essencialmente em apresentar regras e procedimentos cuja observância é imprescindível se não para eliminar a arbitrariedade na formação de uma decisão jurídica dedutivamente não respaldada, pelo menos para mitigar, o máximo possível, o grau de irracionalidade e aumentar, o máximo possível, o grau de controlabilidade intersubjetiva da aceitabilidade da decisão jurídica.

5

(2.2)

Teoria dos direitos fundamentais

A contribuição alexyana à teoria dos direitos fundamentais, por sua vez, aparece como tese de habilitação (livre-docência) em 1984, tese publicada sob a forma de livro em 1985 e com o título “Teoria dos direitos fundamentais”. Esse livro propõe-se a realizar “uma teoria jurídica geral dos direitos fundamentais da constituição alemã” (ALEXY, 2015, p. 31). Assim, tal livro, em primeiro lugar, não trata dos direitos fundamentais per se, considerados antes de sua incorporação em uma constituição qualquer, considerados apenas como formas abstratas; e, além disso, não trata dos direitos fundamentais incorporados noutra constituição (por exemplo, na constituição colombiana) que não a constituição alemã. Em segundo lugar, o livro não oferece uma teoria histórica dos direitos fundamentais, nem uma teoria filosófica, sequer uma teoria sociológica; o que o livro oferece é uma teoria dogmática dos direitos fundamentais, isto é, uma teoria destinada a: (1) analisar sistematicamente os conceitos estruturantes dos direitos fundamentais na constituição alemã; (2) descrever o direito legislado e o direito jurisprudencial que se relacionam com os direitos fundamentais na constituição alemã e, além disso, investigar a efetividade de tal direito legislado e tal direito jurisprudencial; (3) elucidar criticamente as práticas jurisprudenciais relacionadas aos direitos fundamentais na constituição alemã. Em terceiro lugar, o livro contém uma teoria não sobre algum ou alguns direitos fundamentais específicos da constituição alemã; antes, o livro se ocupa com uma teoria sobre todos os direitos fundamentais outorgados pela constituição alemã. Alexy empreende, portanto, uma investigação abrangente da plenitude dos direitos fundamentais que a constituição alemã confere. O problema fundamental que Alexy enfrenta nesse livro é “a questão acerca da decisão correta e da fundamentação racional no âmbito dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2015, p. 43). Essa passagem revela claramente a preocupação central de Alexy no livro: tratase de desenvolver uma teoria da fundamentação jurídica no campo específico da prática jurisprudencial relacionada aos direitos fundamentais conferidos pela constituição alemã. Em especial, Alexy enfoca a prática jurisprudencial do Tribunal Constitucional Federal alemão. Esse problema emerge basicamente porque as formulações do texto constitucional alemão a respeito dos direitos fundamentais são extremamente indeterminadas: “O catálogo de direitos fundamentais regula de forma extremamente aberta questões em grande parte muito controversas acerca da estrutura normativa básica do estado e da sociedade” (ALEXY, 2015, p. 26). O caráter sucinto e semanticamente vago das disposições jusfundamentais da

6

constituição alemã conduzem a um grande protagonismo do Tribunal Constitucional Federal alemão na determinação dos sentidos normativos precisos daquelas disposições. Esse protagonismo é tão acentuado que “o significado atual dos direitos fundamentais é devido, sobretudo, à jurisprudência desse tribunal” (ALEXY, 2015, p. 267). Por outro lado, tal protagonismo é um efeito direto da necessidade prática de determinar, em cada controvérsia jurídica em torno dos direitos fundamentais na constituição alemã que é apresentada ao tribunal, as soluções que essa constituição precisamente provê. Como o que os direitos fundamentais na constituição alemã significam é determinado primordialmente pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, então é necessária uma contribuição dogmática que, quanto àqueles direitos fundamentais, esclareça sistematicamente os conceitos elementares, que descreva fielmente o direito vigente e que ilumine criticamente as práticas judiciais. Só a partir de uma dogmática sólida sobre os direitos fundamentais na constituição alemã é que, segundo Alexy, os riscos de arbitrariedade judicial a respeito de tais direitos fundamentais serão combatidos: “Se não há clareza acerca da estrutura dos direitos fundamentais e de suas normas, não é possível haver clareza na fundamentação nesse âmbito. O mesmo vale para todos os conceitos relativos á dogmática dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2015, p. 45). Segundo Alexy, a resposta ao problema da transparência racional da decisão jurídica sobre normas jusfundamentais da constituição alemã consiste essencialmente em distinguir entre normas jurídicas com estrutura de regra e normas jurídicas com estrutura de princípio, pois “uma adequada dogmática dos direitos fundamentais não é possível sem uma teoria dos princípios” (ALEXY, 2015, p. 29). Como uma adequada dogmática dos direitos fundamentais é indispensável à resolução do problema da suspeita de irracionalidade sobre a práxis judicial acerca dos direitos fundamentais na constituição alemã, então a teoria dos princípios se revela como a pedra angular da resposta alexyana ao referido problema.

(2.3)

Teoria do direito

A contribuição de Alexy à teoria do direito cristaliza-se em “Conceito e validade do direito”, livro publicado em 1992. O problema fundamental que está em jogo nesse livro reside em saber qual é o conceito de direito mais adequado à resolução de casos difíceis. Alexy ressalta dois tipos de casos difíceis: (1) os casos de injustiça extrema legalizada, que Alexy (2008, p. 283) observa como “casos espetaculares”; (2) os casos duvidosos, não espetaculares, que emergem na “vida cotidiana do direito” (ALEXY, 2008, p. 283). Os casos duvidosos, por sua vez, compreendem

7

os casos em que o juiz pretende tomar uma decisão contra legem, os casos de lacunas (ausência de solução já estabelecida pelo direito positivo), os casos em que é necessário sopesar princípios circunstancialmente colidentes e os casos de imprecisão da linguagem jurídica (os casos situados no domínio da “textura aberta do direito”). É notável que os tipos de casos difíceis (eles são difíceis porque colocam em xeque o próprio conceito de direito, o qual deve ser clarificado para que eles possam ser resolvidos racionalmente) coincidem exatamente com os tipos de controvérsias jurídicas que provocam o naufrágio da subsunção e reclamam valorações racionalmente fundamentadas. Noutras palavras: os desafios práticos que, segundo Alexy, suscitam o problema fundamental da teoria da argumentação jurídica são os mesmos que suscitam o problema fundamental da teoria do direito. A única diferença é que Alexy inclui expressamente na teoria do direito o desafio prático da injustiça extrema legalizada (conceito introduzido por Gustav Radbruch), conferindo-lhe aí especial ênfase. A injustiça extrema legalizada apresenta-se, de acordo com Alexy (2011, p. 9), em “normas de um regime injusto, normas essas estabelecidas conforme o ordenamento e socialmente eficazes, que exijam ou autorizem medidas que atentem contra os direitos humanos”. Não é qualquer injustiça que, para Alexy, caracteriza um caso como sendo um caso difícil; somente a injustiça extrema, insuportável, altamente evidente, o faz. Os exemplos de injustiça extrema legalizada que Alexy fornece referem-se normalmente a estatutos legais nazistas. O que significa injustiça extrema para Alexy, entretanto, é mais abrangente e mais preciso do que a simples referência exemplificadora a estatutos legais nazistas: injustiça extrema, em Alexy, corresponde à violação dos direitos humanos. Assim, é necessário compreender o que são os direitos humanos para compreender o que é injustiça extrema legalizada. Por “direitos humanos”, Alexy (2000, p. 24-31) entende direitos: (1) universais, ou seja, titularizados por todo indivíduo humano; (2) moralmente válidos, ou seja, justificáveis racionalmente perante qualquer pessoa; (3) fundamentais, quer dizer, imprescindíveis à satisfação de necessidades e interesses cuja obliteração provocaria a morte, um sofrimento grave, ou a perda da autonomia; (4) prioritários em face do direito positivo, quer dizer, cuja violação por uma norma jurídica editada pela autoridade competente segundo o procedimento adequado implica que tal norma jurídica é não somente moralmente defeituosa, mas também contém um defeito moral tão extremo que sua validade jurídica é eliminada; (5) abstratos, isto é, cujos destinatários (sujeitos passivos), cujos objetos protegidos e cujas restrições não são apontados de antemão, mas só podem ser paulatinamente determinados nas práticas judiciais

8

em torno de controvérsias jurídicas sobre direitos humanos. A ligação que Alexy estabelece entre a injustiça extrema e os direitos humanos corresponde a uma ligação da teoria do direito com uma teoria filosófica dos direitos humanos, pois é uma teoria filosófica dos direitos humanos que fornece o conceito de direitos humanos. O que interessa à teoria do direito nos casos difíceis é que eles tornam “uma aplicação do direito não arbitrária, justificada, impossível sem argumentação moral” (ALEXY, 2008, p. 283). Se, nos casos difíceis, a formação de uma decisão jurídica bem fundamentada passa necessariamente pela incorporação de razões morais (por exemplo, argumentos de justiça) – o que é admitido até por um positivista exclusivo como Joseph Raz –, então se coloca sobre a mesa a questão de se essa incorporação implica uma vinculação necessária entre direito e moral. Essa questão é, de acordo com Alexy, o coração da querela contemporânea entre positivistas e não positivistas. Positivistas como Raz negam que a incorporação de razões morais nos raciocínios formadores de decisões jurídicas em casos difíceis implique que haveria entre direito e moral uma conexão necessária. É que os positivistas partem da tese oposta, a tese da separação (entre direito e moral). Raz, representante de um positivismo forte, defende que “razões morais enquanto razões morais são necessariamente razões não autoritativas, sendo que o direito somente compreende razões autoritativas” (ALEXY, 2008, p. 283). Mesmo que os juízes empreguem razões morais na fundamentação de decisões jurídicas, essas razões não perfuram a couraça do direito para se alojarem dentro do direito; antes, elas permanecem fora do direito, continuam como razões extrajurídicas, de modo que seu emprego na justificação da decisão jurídica não lhe confere um passaporte para adentrar o território do jurídico. Alexy responde essa questão assumindo uma postura não positivista, assumindo, portanto, a tese da vinculação necessária (entre direito e moral). Ele não adota uma versão forte dessa tese, versão cosoante a qual todo defeito moral importaria a invalidade jurídica da norma jurídica que fosse por ele eivada; essa seria uma versão não positivista exclusiva. Tampouco Alexy acolhe uma versão fraquíssima daquela tese, versão cosoante a qual nenhum defeito moral ostentaria a força de produzir a invalidade jurídica da norma jurídica que fosse por ele impregnada; essa seria uma versão não positivista superinclusiva. Em lugar disso, Alexy endossa uma versão moderada da tese da vinculação necessária, versão segundo a qual somente alguns defeitos morais conduziriam uma norma jurídica à perda da validade jurídica: os defeitos morais juridicamente invalidantes seriam apenas os que encarnassem a injustiça extrema.

9

(3)

TESES CENTRAIS

Uma vez explicitados os problemas fundamentais do pensamento jurídico alexyano, passo a explicitar, a seguir, as teses centrais com as quais Alexy se aproxima desses problemas. Tais teses serão, neste momento, expostas separadamente, apesar das fortes interrelações que elas mantêm umas com as outras. O objetivo aqui é iluminar cada uma das teses para que cada uma se torne claramente compreensível.

(3.1)

Teoria da argumentação jurídica

Como salientado acima, o problema fundamental examinado por Alexy no âmbito da teoria da argumentação jurídica é o problema do uso esgotável da subsunção como ferramenta lógica para dirimir controvérsias jurídicas. Na medida em que a subsunção não se acopla com todos os desafios práticos, sendo inadequada à resolução dos casos difíceis, o recurso a valorações por parte do juiz é inevitável. Valorações, entretanto, quedam sob a sombra de uma profunda suspeita de irracionalidade: valorações seriam mantos nos quais a arbitrariedade se ocultaria. Perante esse problema fundamental, Alexy elabora uma tese central para dissolvê-lo. Trata-se da tese de que, quando for necessário proceder a uma valoração, o juiz deve fundamentá-la: deve fornecer uma justificação para a tomada de determinada decisão jurídica em vez de outra. Essa justificação não pode ser meramente subjetivista, senão que deve ser guiada por uma racionalidade construída e partilhável intersubjetivamente, ou seja, deve ser urdida com argumentos que possam ser questionados, verificados, reformados e aceitos ou até refutados (pois falíveis, apesar de autoritativos) por qualquer afetado pela decisão jurídica baseada na valoração. Assim, quando um juiz se encontra diante da necessidade de realizar uma valoração, ele não está autorizado a recorrer meramente a sua subjetividade, isto é, a extrair uma decisão “de sua cabeça”: de suas convicções morais, filiações políticas, crenças religiosas, metas egoístas, experiências pessoais, idiossincrasias biográficas, variações de humor. Isso tornaria a decisão judicial dependente do tamanho do pé de cada juiz e inspiraria uma incerteza devastadora quanto à aplicação oficial do direito. Uma fundamentação que contorne o subjetivismo, entretanto, não pode ser uma fundamentação baseada unicamente em proposições. É que fundamentações simplesmente semânticas (baseadas unicamente em proposições) resvalam em uma encruzilhada insolúvel, o trilema de Münchhausen. Nessa encruzilhada insidiosa, três caminhos precários se oferecem. O primeiro caminho é o do regresso ao infinito: toda proposição fundamentadora é, ao

10

mesmo tempo, carente de fundamentação e conduz a outra proposição fundamentadora igualmente carente de fundamentação. O segundo caminho é o da interrupção arbitrária: toma-se a decisão de cortar a cadeia de fundamentação em algum ponto, mas esse corte é meramente arbitrário. E o terceiro caminho é o da circularidade lógica: a proposição última se fundamenta na proposição primeira, de modo que o fundamentante fundamenta-se no fundamentado. Segundo Alexy, uma fundamentação que contorne o subjetivismo judicial nos casos difíceis não pode ser uma fundamentação meramente semântica, mas só pode ser uma fundamentação pragmática, quer dizer, uma fundamentação que se ancora nas regras constitutivas do jogo de linguagem da fundamentação jurídica: A situação pode-se evitar se a exigência de uma fundamentação de cada proposição por meio de outra proposição se substitui por uma série de exigências na atividade de fundamentação. Essas exigências podem formular-se como regras do discurso racional. As regras do discurso racional não se referem, como as da lógica, só a proposições, mas também ao comportamento do falante. Nesse sentido, podem designar-se como ‘regras pragmáticas’. O cumprimento dessas regras certamente não garante a certeza definitiva de todo resultado, mas caracteriza o resultado como racional (ALEXY, 2013, p. 179).

A tese central de Alexy no âmbito da teoria da argumentação jurídica é, portanto, a tese de que as controvérsias jurídicas que só podem ser resolvidas mediante valorações não podem deixar de ser fundamentadas segundo uma racionalidade intersubjetivamente acessível e, além disso, não podem deixar de ser fundamentadas segundo uma racionalidade pragmática e procedimental, a saber, a racionalidade inscrita nas regras constitutivas do discurso jurídico. Discurso jurídico é o uso específico do discurso racional para fundamentar decisões jurídicas em controvérsias jurídicas. Em suma, pode-se dizer que Alexy propugna que os movimentos no jogo (de linguagem da resolução fundamentada de controvérsias jurídicas) só podem ser justificados com base nas regras que determinam o jogo como tal. Há, entretanto, outra tese central na teoria alexyana da argumentação jurídica. Trata-se da tese do caso especial. Segundo essa tese, o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral. Discurso prático geral é o tipo de discurso no qual se apresentam, questionam e confirmam ou infirmam pretensões de correção, ou seja, pretensões de que determinada ação ou determinada norma de ação seria correta. Ele abrange toda argumentação em torno de questões morais (acerca do que é justo), questões éticas (acerca do que é bom) e questões jurídicas (acerca do que é juridicamente correto). O discurso jurídico é, conforme Alexy, um caso especial do discurso prático geral porque o discurso jurídico é fortemente constrangido por limites específicos, especialmente “a

11

sujeição à lei, a consideração obrigatória dos precedentes, seu enquadramento na dogmática elaborada pela ciência do direito organizada institucionalmente, assim como [...] as limitações das regras do ordenamento processual” (ALEXY, 2013, p. 31). Na medida em que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral, o discurso jurídico opera tanto de acordo com as regras gerais do discurso prático geral quanto de acordo com regras específicas ao raciocínio jurídico. Uma das tarefas primordiais que Alexy assume no livro “Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica” é formular uma tábua de regras do discurso jurídico. A apresentação dessas regras extrapola o objetivo deste artigo.

(3.2)

Teoria dos direitos fundamentais

Como visto acima, o problema fundamental que Alexy investiga no âmbito da teoria dos direitos fundamentais é o problema de como pode ser racionalmente domesticada a atuação maciçamente protagonista do Tribunal Constitucional Federal alemão na determinação dos sentidos normativos específicos das disposições jusfundamentais da constituição alemã. Essa domesticação racional não pode ser obtida, para Alexy, sem um esclarecimento dogmático (em três dimensões: análise dos conceitos básicos, descrição do direito positivo e crítica das práticas judiciais) dos direitos fundamentais no direito positivo alemão. Alexy enfatiza a importância da dimensão analítica do esclarecimento dogmático. A dimensão analítica da dogmática dos direitos fundamentais, no entanto, não pode ser superestimada. Por um lado, a dimensão analítica é imprescindível porque: Clareza analítico-conceitual é uma condição elementar da racionalidade de qualquer ciência. Nas disciplinas práticas, que apenas muito indiretamente podem ser controladas por experiências empíricas, esse postulado tem um significado ainda maior. Isso vale principalmente para o campo dos direitos fundamentais, os quais são marcados por uma tradição analítica em uma medida muito menor que, por exemplo, o direito civil e expostos em medida muito maior a influências ideológicas (ALEXY, 2015, p. 43).

Por outro lado, a dimensão analítica não “engole” a dogmática dos direitos fundamentais inteira; essa dogmática engloba a dimensão analítica, mas não se reduz a ela. Por que a dimensão analítica não esgota a dogmática dos direitos fundamentais? Porque, “nos casos minimamente problemáticos, a decisão não tem como ser tomada apenas com base nos meios da lógica, a partir de normas e conceitos jurídicos pressupostos. Para tanto, são

12

necessários valores adicionais e, como fundamento desses valores, conhecimentos empíricos” (ALEXY, 2015, p. 48). Alexy deixa claro, portanto, que a dimensão analítica da dogmática dos direitos fundamentais não fornece uma panaceia para quaisquer problemas sobre a determinação protagonistamente judicial das normas jusfundamentais da constituição alemã. Em todo caso, Alexy sublinha que, sem levar a sério a dimensão analítica, seria “impossível falar de um controle racional das valorações indispensáveis à ciência do direito e de uma aplicação metodologicamente controlada do saber empírico. Se há algo que pode livrar ao menos um pouco a ciência dos direitos fundamentais da retórica política e das idas e vindas das lutas ideológicas, é o trabalho na dimensão analítica” (ALEXY, 2015, p. 49). Assim, parece a Alexy que, se se pretende reforçar o controle racional intersubjetivo do protagonismo judicial na determinação dos significados normativos precisos dos direitos fundamentais, não se pode recusar a tarefa analítica de esclarecer os conceitos básicos relacionados aos direitos fundamentais na constituição alemã. A tese central do livro “Teoria dos direitos fundamentais” é, por conseguinte, uma tese essencialmente analítica, ou seja, uma tese referente àquele que Alexy considera o conceito axial de uma dogmática dos direitos fundamentais na constituição alemã. Fazendo jus a sua compreensão da “análise sistemático-conceitual do direito como opus proprium da ciência do direito” (ALEXY, 2015, p. 49), Alexy sustenta que o conceito de princípios é o coração de uma dogmática dos direitos fundamentais na constituição alemã. A tese central do livro é, pois, a tese de que uma norma jurídica ou têm a estrutura de regra, ou têm a estrutura de princípio, sendo que essa distinção estrutural “é a base da teoria da fundamentação no âmbito dos direitos fundamentais e uma chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2015, p. 85). Essa tese é desdobrada em uma teoria dos princípios. Aqui cabe ressaltar dois elementos da teoria alexyana dos princípios: o conceito de princípio e o conceito de proporcionalidade. Trata-se de dois conceitos distintos, mas familiares, ou seja, mutuamente implicados. A mútua implicação entre ambos reside em que “a máxima da proporcionalidade é válida se os direitos fundamentais têm o caráter de princípios, e os direitos fundamentais têm o caráter de princípios se a máxima da proporcionalidade determina a aplicação dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2010, p. 24). Alexy compreende as normas que conferem direitos fundamentais na constituição alemã como sendo normas com estrutura de princípio. Isso implica, entre outras coisas, que: (1) os direitos fundamentais devem ser realizados na maior medida possível dentro da

13

constelação de condições fáticas e jurídicas de cada caso concreto; (2) direitos fundamentais podem conduzir a consequências normativas concretas irreconciliáveis entre si, de modo que o exercício de um direito fundamental pode reclamar uma restrição sobre o exercício de outros direitos fundamentais em um caso concreto; (3) as restrições a direitos fundamentais só são constitucionais se forem justificadas à luz da otimização da satisfação de outros direitos fundamentais (e/ou de finalidades coletivas) em jogo em um caso concreto; (4) uma restrição a um direito fundamental em um caso concreto só pode ser constitucional se for proporcional à realização, no mesmo caso, de outros direitos fundamentais (e/ou finalidades coletivas).

(3.3)

Teoria do direito

Como explicitado acima, o problema fundamental da teoria do direito alexyana é o problema do conceito de direito. O conceito de direito torna-se problemático sempre que surgem casos difíceis, casos suja resolução desafia os limites do direito positivo3. A tese central com a qual Alexy se debruça sobre esse problema é a tese de que um conceito de direito plenamente desenvolvido não deixa de tomar em consideração três elementos, a saber, a legalidade conforme o ordenamento, a eficácia social e a correção material (ALEXY, 2001, p. 15-16). Um conceito de direito que é construído sem tomar em consideração qualquer um desses elementos é um conceito “capenga”, incompleto. Por conseguinte, Alexy assume que unicamente uma posição teórico-jurídica não positivista pode articular um conceito de direito plenamente desenvolvido, já que só o não positivismo toma em consideração os três elementos constitutivos do direito, nãodeixando de lado a correção material, mas incorporando-a àquilo que é o direito. Outra consequência da doutrina dos três elementos é: para Alexy, tanto as posições positivistas, quanto as posições sociológicas e realistas, como as posições jusnaturalistas são errôneas. O positivismo é errôneo porque reduz o conceito de direito a dois elementos: a legalidade conforme o ordenamento e a eficácia social. A sociologia jurídica e o realismo são errôneos porque se circunscrevem ao elemento da eficácia social e obliteram os dois outros elementos. E o jusnaturalismo revela-se errôneo na medida em que ilumina o elemento da 3

Para Alexy, só em casos difíceis, adotar um conceito de direito qualquer impacta (indiretamente) a decisão jurídica: “Em que extensão uma teoria do direito pode (ou deveria, ou tem de) ter implicações para a resolução de discussões jurídicas concretas? Aqui os teóricos têm proposto uma grande variedade de respostas, que poderiam ser consideradas em uma sucessão de ideias. Em um extremo, Ronald Dworkin parece argumentar que uma teoria jurídica do juiz sempre tem um impacto na solução de casos individuais. Alexy parece defender uma posição intermediária de que tal teoria jurídica – ou pelo menos a particular teoria do direito que ele defende – é decisiva em um pequeno número de casos, mas, de outro modo, tem pouco ou nenhum efeito. No outro extremo está a visão que eu já defendi noutro lugar: que tal teoria do direito não tem (ou não deveria ter) efeito na resolução de casos particulares” (BIX, 2008, p. 74).

14

correção material e, ao mesmo tempo, obscurece os dois outros elementos. Assim, Alexy adota uma posição teórico-jurídica que, de um ponto de vista negativo, caracteriza-se como simultaneamente antipositivista, antissociológica, antirrealista e antijusnaturalista. Alexy, de um ponto de vista afirmativo, compreende-se como representante do não positivismo inclusivo, uma posição teórico-jurídica que parte da tese da conexão necessária entre direito e moral e da tese da injustiça extrema (introduzida por Gustav Radbruch), segundo a qual uma norma jurídica perde a validade jurídica em razão de apresentar um conteúdo moralmente incorreto exclusivamente quando esse conteúdo encarnar a injustiça extrema. Com base nessa posição teórico-jurídica, o direito é definido por Alexy como: [...] um sistema de normas que (1) formula uma pretensão de correção; (2) consiste na totalidade das normas que integram uma constituição socialmente eficaz em termos globais e que não são extremamente injustas, assim como na totalidade das normas estabelecidas de acordem conformidade com essa constituição e que apresentam um mínimo de eficácia social ou de possibilidade de eficácia e não são extremamente injustas; e (3) ao qual pertencem os princípios e outros argumentos normativos nos quais se apoia e/ou deve apoiar-se o procedimento da aplicação do direito para satisfazer a pretensão de correção (ALEXY, 2011, p. 151).

A partir dessa definição de direito, esclarece-se que, segundo Alexy, direito é ordenamento normativo: (1) estruturado hierarquicamente, cujo ápice hierárquico é formado por uma constituição e cujos componentes são normas que não quebram a hierarquia, mas mantêm as relações de subordinação hierárquica e, portanto, não violam a constituição; (2) que levanta uma pretensão de correção4 (justiça) para distinguir-se de um ordenamento normativo baseado meramente na violência desenfreada (ordenamento absurdo, imposto por bandoleiros armados), assim como para distinguir-se de um ordenamento baseado meramente na violência organizada (ordenamento predatório, imposto por bandidos articulados); (3) composto por normas emanadas de autoridades competentes, criadas de acordo com procedimentos adequados, minimamente eficazes e não marcadas pela injustiça extrema. As normas jurídicas podem até veicular conteúdos injustos, mas não podem reduzir-se a uma formalização jurídica da injustiça extrema (violação dos direitos humanos); (4) dotado de componentes primordialmente orientados à satisfação da pretensão de correção, a saber, os princípios, os quais constituem a incorporação jurídico-positiva de

4

“A pretensão de correção é um elemento necessário do conceito de direito” (ALEXY, 2011, p. 41). Assim, “sistemas normativos que não formulam explícita nem implicitamente uma pretensão à correção não são sistemas jurídicos. Todo sistema jurídico implica uma pretensão à correção” (ALEXY, 2011, p. 41-42).

15

imperativos emancipatórios do jusracionalismo iluminista (especialmente os direitos humanos).

(4)

INTERCONEXÕES SISTEMÁTICAS

A partir de agora, interessa-me explicitar interconexões sistemáticas entre os três subsistemas do pensamento jurídico alexyano. Empreenderei essa tarefa mediante a explicitação de que há uma trama conceitual que atravessa (e une) aqueles subsistemas. Sustento que os problemas fundamentais e as teses centrais do pensamento jurídico alexyano enfeixam-se em torno de uma problematização conceitual fundamentalíssima, a saber, a pergunta pela natureza do direito (ou pelo conceito de direito). É em seu último livro, “Conceito e validade do direito”, que Alexy expõe uma formulação clara dessa pergunta e desenvolve uma resposta completa a ela. A pergunta é: A natureza do direito é simplesmente factual? O direito reduz-se àquilo que é baixado por autoridades competentes seguindo procedimentos adequados e guardando a hierarquia sistêmica e que, ademais, minimamente obtém tanto observância voluntária quanto sanção coercível (quando inobservado)? O direito se compõe só de fatos sociais? O direito se circunscreve à empiria? A resposta, por sua vez, é: A natureza do direito é dupla5. O direito possui tanto uma dimensão factual (ou autoritativa) quanto uma dimensão ideal (ou crítica), a qual é formada pela pretensão de correção que incontornavelmente o direito levanta, pretensão que engloba uma pretensão de correção moral. Em última análise, o que é o direito reside em uma conexão indissolúvel entre (i) coerção e segurança e (ii) justiça.

(4.1)

Interconexões sistemáticas entre os problemas fundamentais alexyanos

Por um lado, os problemas fundamentais que impelem o teorizar jurídico alexyano estão insitamente conectados à pergunta pela natureza do direito. Aquela pergunta está presente na teoria alexyana da argumentação jurídica sob a forma de uma inquietação pervarsiva a respeito da racionalidade da decisão jurídica em casos difíceis, cuja solução requer valorações. Nos casos difíceis, o repertório disponível do direito positivo ou não oferece uma solução clara, ou não oferece uma solução (moralmente) aceitável, ou não oferece qualquer solução. Para solucionar casos difíceis, segundo Alexy, o julgador inevitavelmente recorre a argumentos morais a fim de construir uma decisão 5

“Não obstante sua ancoragem no mundo real, o direito não pode ser reduzido a um conceito referente a um objeto natural, tal como os conceitos de água, buracos negros ou assassinato” (ALEXY, 2008, p. 284).

16

racionalmente fundamentada: nos casos difíceis, a moral representa uma fonte de argumentos práticos (sobre o curso de ação correto ou sobre a norma correta) da qual necessariamente o julgador bebe para não emitir uma decisão meramente arbitrária. Alexy, contra os positivistas, propugna que a adoção de argumentos morais em casos difíceis corresponde a uma necessária incorporação da moral ao direito, pois o julgador não pode abster-se de respaldar racionalmente decisões para casos difíceis e, portanto, não pode abster-se de apoderar-se de argumentos morais que conduzam a uma solução correta para tais casos: De acordo com o não positivismo, os argumentos morais que são indispensáveis a uma resposta bem fundamentada a uma questão jurídica são necessariamente incorporados ao direito. O positivismo em sua versão mais fraca, conhecido como positivismo inclusivo, rejeita a ideia de que essa incorporação é necessária. E, indo além, a versão mais forte do positivismo, conhecida como positivismo exclusivo, sustenta que tal incorporação é necessariamente excluída, pois – assim o argumento segue – razões morais qua razões morais são razões necessariamente não autoritativas, e o direito compreende apenas razões autoritativas (ALEXY, 2008, p. 283).

A pergunta pela natureza do direito também impregna a teoria alexyana dos direitos fundamentais. A pergunta fundamental que ocupa Alexy no âmbito dessa teoria é a pergunta acerca da racionalidade das decisões jurídicas concernentes a direitos fundamentais (conferidos pela constituição alemã), racionalidade desafiada pela extrema indeterminação semântica das disposições de direitos fundamentais (da constituição alemã). Alexy novamente expressa uma inquietação penetrante em afirmar a racionalidade da prática de aplicação do direito, pois essa prática não é separada daquilo que o direito é: o que o direito é comporta como as autoridades competentes aplicam o direito. Se o direito deve ser correto, as autoridades devem aplicar corretamente o direito, ou seja, lavrar decisões jurídicas corretas. De acordo com Alexy, decisões jurídicas corretas podem ser lavradas em casos difíceis envolvendo direitos fundamentais (por exemplo, em casos nos quais pretensões a direitos fundamentais colidem e conduzem a consequências práticas irreconciliáveis) caso os direitos fundamentais passem a ser compreendidos como direitos ancorados em princípios constitucionais. Princípios constitucionais veiculadores de direitos fundamentais, enquanto princípios, ordenam que os direitos fundamentais sejam satisfeitos na maior medida possível, levando-se em conta as condições fáticas e jurídicas de cada caso; e ordenam que os direitos fundamentais somente sejam restringidos na medida em que isso seja justificado com base nas condições fáticas e jurídicas adversas de cada caso, nomeadamente com base na precedência de princípios colidentes dentro de tais condições. Uma vez que os direitos fundamentais passam a ser compreendidos como direitos veiculados por princípios constitucionais, eles devem ser aplicados com base no procedimento

17

racional da ponderação, o qual corresponde a uma averiguação argumentativa do peso de cada princípio colidente em um caso (peso relativo às condições fáticas e jurídicas do caso), isto é, uma averiguação argumentativa da importância da satisfação e da necessidade de limitação de cada princípio em jogo. A ponderação “não é uma máquina que nos permite determinar exata, objetiva e definitivamente o peso de cada direito, mas mostra que argumentos racionais sobre os direitos são possíveis. E isso mostra que a inclusão dos direitos fundamentais no sistema jurídico leva a uma conexão entre direito e moral” (ALEXY, 1994, p. 49). A argumentação a ser desenvolvida na aplicação de direitos fundamentais abre necessariamente o direito para a moral porque os direitos fundamentais são relacionados aos “conceitos materiais básicos de [...] dignidade, liberdade e igualdade. [...] Com eles, os princípios mais importantes do direito racional moderno são incorporados à constituição e, com isso, ao direito positivo” (ALEXY, 2015, p. 544). Na verdade, segundo Alexy, direitos fundamentais equivalem a cristalizações constitucionais de direitos humanos, os quais são originariamente direitos morais: direitos fundamentais são a absorção jurídica de direitos humanos como direitos jurídicos dotados de máxima hierarquia sistêmica, máxima força jurídica, máxima importância social e máxima indeterminação semântica (ALEXY, 2003, p. 32-37). Assim, a simples incorporação constitucional de direitos fundamentais implica a incorporação da moral ao direito. Diante de casos difíceis envolvendo colisões entre princípios veiculadores de direitos fundamentais, o julgador está diante da tarefa de argumentar sobre conteúdos morais, já que direitos fundamentais são a transcrição jurídica de direitos humanos. Além disso, nesses casos difíceis, o julgador assume a tarefa de argumentar moralmente, ou seja, argumentar com razões morais. Tais casos difíceis, por conseguinte, instauram uma abertura necessária do direito para a moral porque, em face deles, o julgador necessariamente emprega argumentos morais a respeito de conteúdos morais. No âmbito da teoria do direito alexyana, a pergunta pela natureza do direito é uma pergunta capital. Segundo Alexy (2012, p. 3), “[s]e alguém afirma que apenas os fatos sociais podem determinar o que é e o que não é requerido pelo direito, essa alegação equivale a endossar um conceito positivista de direito. Uma vez que a correção moral é adicionada como um terceiro elemento necessário, um conceito não positivista de direito emerge. Assim, a tese da dupla natureza implica não positivismo”. Como Alexy acolhe a correção moral como um componente necessário do que é o direito, Alexy repele as teses segundo as quais o direito teria natureza exclusivamente factual e defende a tese de que o direito tem uma segunda

18

dimensão, uma dimensão aberta para a crítica moral, e, portanto, tem natureza dupla (factual e ideal).

(4.2)

Interconexões sistemáticas entre as teses centrais alexyanas

Por outro lado, também as teses centrais desenvolvidas por Alexy estão insitamente conectadas com a tese da natureza dupla do direito. A teoria da argumentação jurídica apresenta como tese central a tese do caso especial, ou seja, a tese de que o discurso jurídico (destinado à fundamentação racional de decisões jurídicas) é um caso especial do discurso prático geral, o qual abrange também o discurso moral (sobre o que é universalmente correto, isto é, sobre o justo) e o discurso ético (sobre o que é correto do ponto de vista individual ou comunitário, isto é, sobre o bom). A tese do caso especial corresponde a assumir que: (1) “Argumentar nas lacunas do material autoritativo não pode, por definição, ser determinado unicamente por aquilo que é autoritativo. Deve ser livre até certo grau” (ALEXY, 1999, p. 375); (2) A liberdade argumentativa que o julgador adquire quando o material autoritativo (estatutos, precedentes, costumes) se revela lacunoso não é uma carta branca para argumentar subjetiva, caprichosa e descontroladamente; (3) Essa liberdade argumentativa, antes, conduz o julgador a prospectar argumentos corretos fora do material autoritativo, ou seja, dentro de outros âmbitos do discurso prático geral; (4) O julgador deve empregar argumentos práticos extrajurídicos nos casos lacunosos porque “as decisões jurídicas pretendem não somente ser corretas dentro do âmbito da ordem jurídica estabelecida validamente, mas também ser corretas enquanto decisões jurídicas” (ALEXY, 1999, p. 382); (5) Como as decisões jurídicas não podem deixar de levantar uma pretensão de correção (sequer podem ser compreendidas como arbitrariamente fundadas), elas devem alimentar-se de argumentos práticos extrajurídicos sempre que o ordenamento jurídico não lhes fornecer argumentos: “Argumentos práticos gerais devem flutuar por todas as instituições se as raízes dessas instituições na razão prática não podem ser cortadas” (ALEXY, 1999, p. 384). Na medida em que o discurso jurídico é intrinsecamente aberto ao discurso prático geral, também o discurso jurídico é intrinsecamente aberto ao discurso moral, embora o discurso prático geral não se reduza ao discurso moral. Razões morais penetram na

19

argumentação jurídica, portanto, porque ela tem uma dupla natureza, comportando duas dimensões indissoluvelmente conectadas. A argumentação jurídica comporta, em primeiro lugar, uma dimensão autoritativa, institucional, composta por estatutos, precedentes, costumes, dogmática, procedimentos. A argumentação jurídica comporta, em segundo lugar, uma dimensão livre, não institucional, composta por razões morais (por exemplo, direitos humanos) e razões éticas (por exemplo, interesses individuais, metas coletivas, convenções comunitárias). Assim, a tese da natureza dupla do direito se encarna na teoria da argumentação jurídica alexyana. A teoria alexyana dos direitos fundamentais, por sua vez, também está impregnada pela tese da natureza dupla do direito porque essa tese subjaz à e nutre a tese central daquela teoria, a saber, a tese dos princípios como mandados de otimização. É que os princípios são a incorporação pelo direito positivo dos “princípios fundamentais do direito natural e racional moderno e, por conseguinte, da moderna moral do direito e do estado” (ALEXY, 2011, p. 86). Alexy propugna que essa incorporação é necessária (não meramente contingente) em todos os ordenamentos jurídicos desenvolvidos, de forma que só ordenamentos jurídicos primitivos podem não ter incorporado princípios. Assim, todo estado constitucional democrático (que contém, por definição, um ordenamento jurídico desenvolvido, criado democraticamente e protagonizado por uma constituição que assegura direitos fundamentais) é necessariamente marcado por princípios e, logo, necessariamente aberto à moral. Os princípios, por conseguinte, ostentam uma dupla natureza: são normas jurídicas (dimensão autoritativa dos princípios) preenchidas com conteúdos morais (dimensão ideal dos princípios). Em última análise, os princípios encarnam a dupla natureza do direito. Quanto à teoria do direito alexyana, a tese da natureza dupla do direito, como já visto, ocupa aí um lugar central. Pode-se dizer que, em Alexy, a teoria do direito é uma teoria da natureza dupla do direito.

(5)

CONCLUSÃO

Suponhamos que alguém pretenda praticar arquearia; para satisfazer essa pretensão, deve munir-se de arco, flechas e alvo; caso não disponha de um desses objetos, não poderá realizar sua pretensão. De modo análogo, se alguém pretende compreender o pensamento jurídico alexyano, deve desincumbir-se da tarefa de compreendê-lo concatenadamente, isto é, como um todo coerente. Como o pensamento jurídico alexyano é um todo coerente que inclui uma teoria da argumentação jurídica, uma teoria dos direitos fundamentais e uma teoria do

20

direito, isto é, um pensamento jurídico discursivo, principiológico e não positivista inclusivo, uma recepção fragmentária do pensamento jurídico de Robert Alexy é, muito provavelmente, uma recepção errônea. Certamente não é uma recepção consistente. Discurso, princípios e tese da conexão moderada (entre direito moral) são três artefatos teóricos mutuamente implicados para Robert Alexy.

REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. __________. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. __________. Law, morality, and the existence of human rights. Ratio juris, v. 25, n. 1, 2012, p. 2-14. __________. Conceito e validade do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. __________. The construction of constitutional rights. Law & ethics of human rights, v. 4, i. 1, 2010, p. 20-32. __________. On the concept and the nature of law. Ratio juris, v. 21, n. 3, 2008, p. 281-299. __________. Los derechos fundamentales en el Estado constitucional democrático. Traducción de Alfonso García Figueroa. In: CARBONELL, Miguel (ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2003, p. 31-47. __________. La institucionalización de los derechos humanos en el estado constitucional democrático. Traducción de María Cecilia Añaños Meza. Derechos y libertades, n. 8, 2000, p. 21-41. __________. The special case thesis. Ratio juris, v. 12, n. 4, 1999, p. 374–84. __________. Derechos, razonamiento jurídico y discurso racional. Traducción de Pablo Larrañaga. Isonomía, n. 1, 1994, p. 37-49. BIX, Brian. Robert Alexy, a fórmula radbruchiana e a natureza do direito. Tradução de Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira. Panóptica, v. 3. n. 1, 2008, p. 70-79.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.