O perigo do outro indesejável

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O perigo do outro indesejável Pretensamente protegido pelo "Brexit", o bem-estar social se traduz, no Brasil, como manutenção de privilégios TAGS: bolsa-família, brexit, direito, Privilégios, Reino Unido

por Lucas Bulgarelli A notícia sobre a saída do Reino Unido da União Europeia precisou apenas de algumas horas para se tornar o evento político mais importante da última década. O rompimento da ilha com o bloco atravessou os trópicos como um primo distante, que embora pouco dele se conheça, invariavelmente ganha um status de reconhecimento, um lugar de uma importância pré-validada em nossas vidas. Fossem inclusive os estados-nação representados como uma grande família, daquelas que apostam no caráter unificador da guerra, como tantas festas de Natal, muito poderia se aprender com esta analogia possivelmente absurda. A começar pelos mecanismos de apagamento da violência do Estado e suas interlocuções com os processos de naturalização do convívio violento em arranjos familiares excludentes e colonizadores ou, ditos de outra forma, tradicionais. Nada contra primos ou contra o Reino Unido, no entanto. Daquilo que soubemos pela imprensa daqui e de lá, a vitória apertada do “sim” vem rodeada de especulações. Desde um anseio popular que sonha com o milagre do ressurgimento de um bem-estar social – pretensamente ameaçado pelos fluxos migratórios ao mesmo tempo que deve, e muito, às dinâmicas de colonização –, passando pelas particularidades da xenofobia e também os impactos da crise econômica e os limites participativos das políticas de integração regional, entre outros fatores que flutuam pelas gerações e contextos locais, são aspectos que mais inviabilizam do que permitem qualquer conclusão precipitada. É possível que tampouco os britânicos consigam mensurar propriamente o peso da decisão tomada. Uma petição que já ultrapassou o mínimo de 100 mil assinaturas necessárias deverá ser encaminhada ao Parlamento Britânico, exigindo um segundo referendo com novas regras. Escócia e Irlanda do Norte, que votaram pela permanência e se organizam em torno da vontade de trocar Londres por Bruxelas, sinalizam que nem mesmo o Reino Unido é imune às desuniões. Até o sempre atento mercado financeiro

deixou transparecer, como em outras inúmeras oportunidades, que a futurologia também falha, e então só restam as incertezas. Sobretudo para quem paga historicamente esta fatura. Incertezas à parte, é possível que alguém pergunte: o que o Brexit, então, tem a ver conosco, brasileiros? A complexidade da vida humana traduzida em números e estatísticas, tal como acompanhamos nos noticiários, afirmam, com exatidão, que o impacto é incerto. O bem-estar social chega a parecer fantasioso para quem foi obrigado a se acostumar com a violência de uma meritocracia incentivada inclusive por um Estado que mais exclui do que provê. Não podemos saber o que é perder aquilo que nunca tivemos. Como entender então um povo que pelo menos desde o neoliberalismo de Tatcher tem sofrido um intenso processo de “desidentificação” de sua classe trabalhadora ao mesmo tempo em que convive com fluxos migratórios anunciados por uma extrema-direita enquanto um perigo? A bem da verdade, não vivemos em uma sociedade monárquica com uma constituição quase milenar sustentada por um conjunto de tradições tão democráticas quanto colonialistas. Muito pelo contrário, o nosso bem-estar social, talvez justamente por não existir, aqui ganha outro nome: o de privilégio. Privilégio este que em nada tem a ver com os encantadores ideais de igualdade do modelo europeu e que enfrenta ainda as mais variadas deturpações a depender de quem enuncia. A começar pelos reais beneficiários da desigualdade social, que insistem em valores como a igualdade e a universalidade de modo a garantir que não há nada de privilegiado em suas posições. Privilegiados, sempre, são os outros. Aqueles que se levantam de manhã para produzir uma riqueza que pertence ao chefe, à multinacional norte-americana que o emprega, ao banco europeu que financia operações da empresa, enfim, a qualquer um que não a si próprios, são obrigados a ouvir que seus direitos trabalhistas são um privilégio. Qualquer aceno do Estado em se responsabilizar pelas reparações das desigualdades sociais entre seus cidadãos é facilmente denunciada como um privilégio. Imaginários populares não faltam. Basta pensar em duas figuras: a primeira é médica; a segunda, empregada doméstica beneficiária do bolsafamília. Qual raça/etnia, qual classe e que localidade regional você atribui de imediato a cada uma delas? Não é preciso entrar em uma faculdade de medicina para entender porque a casa grande surta quando a senzala vira médica, repetindo as palavras da estudante de medicina Suzane da Silva. Aprendemos com as manifestações pró-impeachment que há quem chegue a considerar privilégio todo e qualquer tipo de reparação social. No último país independente das Américas a abolir a escravidão, as cotas raciais são consideradas um privilégio. O desemprego aparentemente também. A miséria, para muitos, é um empreendimento. Também aprendemos com os deputados pastores e seu vertiginoso crescimento parlamentar que até o próprio ato de viver em segurança, de existir, é um privilégio. O país que mais mata pessoas trans no mundo é o mesmo que convive com a construção discursiva de uma “ditadura gay” supostamente instaurada para garantir privilégios. Falar de “gênero” passa a ser atributo de uma “ideologia”. Seus adeptos, cuja taxa de mortalidade parece ser o único privilégio, devem ser fielmente combatidos com a neutralidade ideológica que naturalmente cabe à família tradicional brasileira. Sabemos pouco dos sentimentos, das motivações e das necessidades que mobilizaram o povo britânico a aprovar o Brexit, é verdade. Em que pesem as notícias sobre o tratamento vergonhoso dado a migrantes latino-americanos,

cubanos, haitianos, africanos e chineses em nosso país, o assunto de capa dos nossos jornais não é a xenofobia, e sim a corrupção. Seríamos por isso imunes aos perigos de um outro indesejável? A pergunta “o que o Brexit tem a ver conosco” poderia, então, ser substituída por outra: quais vidas merecem ser vividas? A indagação da filósofa Judith Butler convida a pensar a partir da ótica da precariedade. Trata-se de uma alternativa aos projetos multiculturalistas que pressupõem o Estado-nação como único enquadramento possível. Isto porque, para Butler, o multiculturalismo tende a pressupor comunidades já constituídas, sujeitos já estabelecidos, quando o que ocorre na realidade são comunidades ainda não reconhecidas como tais, sujeitos que, apesar de vivos, não são reconhecidos legitimamente como “vidas”. Embora não haja uma “ditadura gay” ou uma “ideologia de gênero”, e apesar das políticas sociais redistributivas e afirmativas antes contestarem privilégios do que propriamente reforçá-los, há algo além. A produção de outros indesejáveis oferece, em alguma medida, uma solução eficaz para reafirmar a exploração específica a populações-alvo, vidas consideradas destrutíveis e não passíveis de luto, como afirma Butler. Talvez não seja coincidência que, tanto lá quanto aqui, é justamente a extrema-direita quem tem tido êxito em redirecionar a raiva popular e a insatisfação com as instituições políticas. Se a travesti e o imigrante africano são representações de vidas perdíveis e sacrificáveis, isto se deve também ao perigo que oferecem à própria ideia de vida humana (ou a vida europeia ou do “homem de bem”, como queiram). Talvez seja por isso que, quando estas vidas são perdidas, a elas geralmente não cabe o luto, visto que se trata antes de uma perda necessária para proteger a vida dos “vivos”. O sonho do médico que ganha como o lixeiro deixou de existir para alguns europeus. Podemos não saber o que isso representa. Mas nem por isso deixamos de eleger aqui outros indesejáveis enquanto responsáveis pelas mazelas de um tempo interconectado globalmente. Quando trabalhadores passam a odiar trabalhadores, há nisso uma dimensão sensível da política que mexe as nossas emoções, reorienta nossos desafetos e, sobretudo, nossas possibilidades de aliança. As fotografias indesejáveis do nosso tempo talvez sejam esses enquadramentos violentos que levam trabalhadores a ver mais como uma ameaça os “desempregados que vivem luxuosamente” ou o “imigrante que tira seus recursos” do que seus próprios chefes. A distribuição desigual do luto público elevado a sentimento nacional é uma realidade estarrecedora. É possível dizer, como sugere Gilles Deleuze, que não haja nada longe o suficiente que não possa nos afetar. Na ocasião, o filósofo francês argumentava que cabia à esquerda europeia admitir que as dificuldades do terceiro mundo estariam tão ou mais próximas deles do que os problemas de seus próprios bairros. Do lado de cá, um dos clichês que muito se repetiu na era lulo-petista remontava ao incômodo de uma classe média que se via obrigada a dividir o aeroporto com o trabalhador, com a empregada doméstica. Somos o país que exportou recentemente o elevador de serviço para a China. O aeroporto que “parecia uma rodoviária” e o nosso brasileiríssimo elevador aparentemente guardam um oceano e toda uma história de distância com as preocupações e interesses do povo europeu. De todo modo, as escalas e as fabricações de outros indesejáveis em redes interconectadas de poder parecem, mais do que nunca, dizer completamente a nosso respeito.



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