“O Poema é Solitário: Sobre a Poesia de Paul Celan”, 33rd APEAA Meeting, Universidade Católica Portuguesa/ Faculdade de Ciências Humanas, Lisboa, Setembro de 2012

June 22, 2017 | Autor: Joao do Vale | Categoria: Paul Celan, Poesía, Poesia, Poesia moderna
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João do Vale Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto

“O Poema é Solitário: Sobre a Poesia de Paul Celan” Artigo apresentado na 33rd APEAA Meeting, Universidade Católica Portuguesa/ Faculdade de Ciências Humanas, Lisboa, Setembro de 2012 Abstract (Português): “O poema é solitário”. Estas são palavras de Paul Celan, um poeta que sofre até ao fim os efeitos do totalitarismo numa dor interior que continuou ao longo da vida até ao seu suicídio. Celan escreveu sempre em alemão. Mas não terá o uso do alemão na poesia aumentado a sua dor? E que lições (se as há) tirou da visita a Heidegger em Todtnauberg em 1967? Este artigo tenta seguir o papel da poesia na regeneração da identidade do poeta com o que o rodeia: deverá o poeta aceitar o discurso adverso e usá-lo para transformá-lo desde o interior (como eu penso que Celan pensou que conseguiria)? Ou deve o poeta confrontar a sociedade adversa na qual vive ao usar uma linguagem contrastante (criando assim um puro choque, esperando que o contraste tenha um efeito transformador sobre as condições externas adversas). De qualquer modo, pensar (e poetar) para Celan (de acordo com “La Poésie Comme Expérience” de Lacoue-Labarthe) é estar “a caminho”, caminhando na direção do diálogo, mas para isto o poeta deve sofrer uma alteridade, colocar-se não em si mesmo mas no lugar em que possa alcançar o outro. Para isto a poesia deve seguir o caminho para fora do próprio (“o passo para fora da arte”) em direção a uma exposição da intimidade, em direção ao diálogo: “a relação com o mesmo, que guarda a mais íntima diferença”, “dispor extaticamente a “presença” do outro em si mesmo: deixar a intimidade abrir-se”. Palavras-chave: Celan; Heidegger; poesia; poema; alteridade; dor; luz.

Abstract (English): “The poem is solitary”. These are words of Paul Celan, a poet that suffered until the end the effects of totalitarianism in an interior pain that continued throughout his life until his suicide. Celan always wrote in German. But wouldn’t using German in poetry increase his pain? And what lessons (if any) did he take of the visit to Heidegger at Todtnauberg in 1967? My paper aims at following the role of poetry in a regeneration of the poet’s identity with his surroundings: should the poet accept adverse speech and use it as to transform it from within (as I think Celan thought he might do)? Or must he confront the adverse society in which he lives by using a contrasting language (creating thus a pure shock, hoping that the contrast will have a transformative effect on adverse external conditions?). Either way, thinking (and poetising) for Celan (according to Lacoue-Labarthe’s “Poetry as Experience”), is to be “on the way”, walking in the direction of the dialogue, but for this the poet must endure an

otherness, to place himself not on the self but on the position where he can reach the other. For this, poetry must perform the way out of the self (“The pace outside art”) towards an exposition of intimacy, towards dialogue: “the relation to the same, that shelters its most intimate difference”, “to dispose, ecstatically, the “presence” of the other in himself: to let intimacy open”. Keywords: Celan; Heidegger; poetry; poem; otherness; pain; light.

A figura de Paul Celan apresenta-nos uma verdadeira imagem do poeta do séc. XX: um ser dividido, fragmentado, fracturado. A forma da sua poesia insere-se naquilo que, em poesia, passou a ser, no séc. XX, o seu aspecto mais comum (se é que um aspeto comum existe em poesia): a brevidade do poema, um certo minimalismo da forma e a justaposição de diferentes abordagens ou perspectivas, que lhe confere um sentido oculto, enigmático quando a poesia é observada no seu todo. E também esse sentido oculto não é único mas pluriforme, perspetivista. Neste sentido a poesia vem tanto ao encontro do poeta como o poeta ao encontro da poesia. O Ser da ambiguidade (o Ser do século XX, o que se exprime por fragmentos por ser, também ele, um Ser fragmentado) procura e encontra a ambiguidade da poesia com a qual diz o que sente (numa abordagem directa ao sentimento) e diz, também, aquilo que mais intimamente (de forma oculta, um sentimento mais pungente, mais forte do que o perceptível) sente, ou seja, aquilo que nele está oculto, entranhado (e que só muito dificilmente a linguagem, mesmo a poética, atingirá na expressão). Pode dizer-se, então, que o poeta diz aquilo que quer e, ao mesmo tempo, não diz aquilo que quer: ele expõe-se expondo-se e ao expor-se ele diz a parte visível (no discurso directo da proposição ou no sentido implícito da metáfora), assim como deixa implícito, no silêncio das entrelinhas, aquilo que absolutamente não pode ser dito porque para tal não existe expressão possível. A obra de Celan, segundo Y. K. Centeno, “permanece como um dos referentes primordiais do século XX. Põe a questão do silêncio e do Verbo, do Verbo que se retrai quando a experiência vivida se torna impossível de dizer. Celan diz, precisamente, o indizível: o sofrimento e a morte nos campos de concentração (que só bastante tarde começaram a abalar a consciência do mundo).”1 No sentido em que o poeta não diz o que quer, ele fala ainda mas sem dizer aquilo que o leitor perceberá mas não conseguirá nomear: um sentido ou sentimentos profundos mas não um objecto. Em Celan a poesia é sem objecto, sem origem: apenas existe enquanto tal mergulhada no seu elemento aquoso ou vaporoso, no sentimento flutuante dominante: a dor. Mas não retrata a dor nem a procura despertar em quem lê o poema. Celan não nomeia a dor, apenas a reitera: a dor é, ela existe. “É minha e é tua, e é neste sentido que o poema não é só meu: é teu, também”. “O poema é nosso, somos nós, é a nossa dor”. E é por isso que o poema não tem objeto. Porque se o seu elemento (a dor) nos é comum, ela não nos é exterior como objeto empírico: ela é comunicável e é condição 1

Centeno, Y. K. - introdução a Paul Celan, Sete Rosas mais Tarde. Lisboa: Cotovia, 1993, p. xviii.

do poema, traz consigo o implícito do poema. É o que une o Ser (do poema) ao Outro (o leitor). Porque é bem de dor que fala Celan que, de origem judaica, sofreu a perseguição nazi na 2ª Guerra Mundial: primeiro forçado a habitar num gueto, depois deportado para um campo de trabalho. Os seus pais morreram num campo de extermínio e não se vê como, perante tais atrocidades sofridas, uma alma humana não se remete ao silêncio, possa ainda escrever poesia. Celan acabou por se suicidar nas águas do Sena. Mas, sendo a poesia um facto na vida do poeta (que talvez não a escolha por ser por ela inundado), o que se trata é, então, por mais dolorosa que seja a experiência, de dizer o que é, o que existe (a factualidade da poesia: o seu “Ainda-e-sempre”2). Mas mais ainda, de não dizer o que é. Não o dizer quer dizer, então, não o pronunciar, mas dar a ver, mostrá-lo. Mais uma vez (como em tanta da arte do século XX) a poesia não é um fim mas um meio: sendo um modo de expressão, é também um meio de exibição. O que se passa com Celan é que, ao mostrar o silêncio, Celan quebrou o silêncio, no sentido em que ultrapassou o próprio fim da poesia (o encanto do elogio e da ode, da elegia, da épica) para a tornar um meio, um modo de dar a ver o que não se vê, o que não se diz. Celan ultrapassou (como o diz “O meridiano”) o objecto de arte, a própria arte, ultrapassando assim a própria fórmula final de Adorno: “escrever poemas depois de Auschwitz é uma barbárie”. Porque o que Celan nos apresenta não é a poesia tal como o compreende a arte (a poesia dentro da arte) mas um “passo”, um “caminho”: “E que palavra, depois de todas as que foram ditas da tribuna (que é o cadafalso)! É uma contra-palavra, é a palavra que faz romper o “arame”, a palavra que já não se curva diante dos “cavalos de parada nem dos pilares da história”, é um acto de liberdade. É um passo”3. A poesia depois de Auschwitz será mesmo um acto de “liberdade”? Quanto muito um acto de libertação, mas não a libertação de si, antes a libertação no Outro, do Eu em Ti: uma entrega do Ser no Outro. É o que nos diz Philippe LacoueLabarthe: “Não exactamente que a arte seja estrangeira à poesia mas sim que a poesia é a interrupção da arte. Qualquer coisa, se quisermos, como o “sopro cortado” da arte (…). Ou bem, para retomar outra palavra de Celan, o “passo” para fora da arte (…): o passo – de arte, ou o passo – “da arte”. O acontecimento da poesia (e, como tal, a poesia é acontecimento, há a poesia) é, assim, “libertação” (dégagement), Freisetzung. É uma liberação (…) no sentido de uma entrega (délivrance)”4. É neste sentido que Celan afirma ainda em “O meridiano”: “O poema é solitário. É solitário e vai a caminho”5. E é solitário de duas formas: 1º como diz Stéphane Mosès (a partir da frase de Celan “tudo aquilo a que o eu se dirige, tudo aquilo a que ele dá um nome, junta-se em torno dele”), “no movimento da poesia, o Eu pode conseguir transformar o Ele em Tu; assim emergem aqui, do fundo da recordação, coisas que, elas, se dirigem ao Eu e lhe conferem sentido”6. Por outras palavras, o acto voluntarioso de se dirigir a um outro não toma a exterioridade (do poema, do diálogo que é o poema) como estando lá, como existente. Desta forma não existe um Ele que observe desde fora a situação do poema, ou melhor, não existe um fora do poema. Tudo se passa entre Eu e Tu, nessa forma de diálogo, de “estar a caminho” do Outro. E não se 2

Celan, Paul in “O Meridiano” - Arte Poética. Lisboa: Cotovia, 1996, p.56. Celan, Paul in “O Meridiano” - Arte Poética. Lisboa: Cotovia, 1996, p.45. 4 Lacoue-Labarthe, Philippe - La Poésie comme Expérience. Paris : Christian Bourgois, 2004, p.65. 5 Celan, Paul in “O Meridiano” – Arte Poética. Lisboa: Cotovia, 1996, p.57. 6 Mosès, Stéphane in Celan, Paul - Entretien dans la Montagne. Lagrasse : Verdier, 2004, p.47. 3

pondo a exterioridade do poema (o conjunto da arte dentro do qual o poema se situaria como dentro de uma realidade que, embora compreendendo-o, lhe fosse exterior), tudo se passa dentro do poema que é entrega (do Eu no Outro). Entrega, como acto, é o acto de esperança que o Eu entrega ao Outro, que deposita no Outro, esperança do Eu encontrar no Outro o elemento (o mesmo elemento) do poema (a dor). Então, sem realidade exterior ao acto poético (da esperança no elemento) toda a realidade é realidade de um Eu, e toda a esperança não confirmada é esperança de encontrar no outro essa realidade; 2º se a poesia é o passo para fora da arte, a poesia não pertence já ao conjunto da arte: não pertence, isola-se naquilo que, sendo estrangeira à arte mas partindo da arte para fora dela, pretende alargar: o conteúdo da arte (no sentido em que a arte deixa de ser um conteúdo, um objecto e passa a ser “caminho”). Mas a poesia não poderia ser o passo para fora da arte se ela se confundisse absolutamente com a arte, ou se se medisse completamente pelo conjunto da arte. Não confundida, de certa forma sofrendo de um exílio do mundo da arte, ela surge, então, “solitária”, singular. É por isso que Philippe Lacoue-Labarthe nos diz que “‘solitário’ é uma palavra para dizer a singularidade, ou pelo menos, que não há sentido, aqui, que não referido à singularidade, à experiência singular. ‘O poema é solitário’ quer dizer: um poema não é efectivamente poema se não for absolutamente singular. É esta, não duvidemos, uma definição da essência da poesia (…): não há poesia, a poesia não advém ou não tem lugar (…) senão como evento da singularidade”7. No entanto, temos vindo a dizer com Celan, que o poema está a caminho. Mas como? Que há então de próprio na poesia de Celan e que a singulariza? O melhor a fazer será voltarmo-nos para a poesia e olhá-la de frente. Melhor, ao invés de olhá-la desde fora (uma vez que, como vimos, esta é uma poesia sem exterior) devemos colocar-nos dentro dela, captar-lhe o movimento e ir com ela no seu “caminho”. Fazermos, então, como Celan que, nas suas traduções (Celan foi também tradutor), “agarra a palavra por dentro, atende ao seu movimento, à força das imagens. E desse modo nos transporta para um mundo que é outro e é o mesmo – o da vivência poética”8. Já falámos da esperança do poema em Celan, da entrega da esperança no Outro (o que recebe? O próprio poeta?) no poema. Mas, como diz Y. K. Centeno, a poesia de Celan parte da falta de esperança: no poema “Fuga da morte”, poema sobre a experiência dos campos de concentração, “bebe-se o leite amargo (negro, como fel), a morte é o Mestre que reina (vindo da Alemanha, é certo, mas conivente com outros, com todos?), o que resta é um túmulo no ar (nem sequer aqui o repouso da terra) e o doloroso contraste dos cabelos, a marca da diferença que justifica o crime: o loiro de Margarete, o cinza de Sulamith, aquele evocando uma luz tão mortífera quanto a treva dos fornos crematórios evocada por este”9. A luz, tão cara à poesia desde, pelo menos, Goethe, já não é almejada como objecto ideal do poema, não se coloca à frente do poema (ou no seu fim) mas situa-se no próprio seio da produção poética (ou deveremos ainda aqui dizer “criação poética”?). A luz dos poetas e a luz loira dos cabelos alemães de Margarete iniciam uma dualidade que habitará, tão indelével como, por vezes, subtilmente, a poesia de Celan: a luz (como elemento criador, mas também como elemento doloroso que recorda os cabelos loiros dos carrascos) contrapõe-se à treva da vida que foi vivida em dor e que não é um 7

Lacoue-Labarthe, Philippe - La Poésie comme Expérience. Paris : Christian Bourgois, 2004, p.63. Centeno, Y. K. - introdução a Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde. Lisboa: Cotovia, 1993, p. xv. 9 Centeno, Y. K. - introdução a Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde. Lisboa: Cotovia, 1993, p. xvi. 8

objecto do poema porque o foi profundamente vivida, de forma que se une inseparavelmente ao Ser, e o compõe e o forma. A treva da vida é a vida a negar, é pelo menos o que Celan tenta. Mas posta na poesia ela é tanto mais afirmada. Então a vida não chega a negar-se completamente, é treva, vida negada, mas vida ainda, que foi vivida. E se a vida é negação e se a poesia nega (ou tenta) negar a vida que se viveu, ela comporta, no entanto, o “mistério do encontro”: a luz do poema é a candeia que alumia o caminho na noite que se percorre ao encontro do outro (que é o único destino possível do poema). Mas para uma poesia que diz o indizível não o dizendo, que não diz o que quer, a luz não é o elemento (este é a dor, já o vimos). A luz é problemática, porque a luz é aquilo que, justamente, não se diz: “Não há salvação possível na obra de Celan, que não aponta caminhos, não filosofa, apenas lambe feridas que não cicatrizam nunca mais. Se de vez em quando usa a imagem da luz não é porque a luz seja redentora, mas porque assim resulta mais pungente o contraste com as trevas, da essência e da existência”10. Mas prometemos colocar-nos no interior da poesia. Façamo-lo. Escolhemos um poema cujo título é revelador: “Cintilar”: “Algum brilho irrompeu até mim? Ou foi o bastão que sobre nós quebraram que ora veio cintilar?”11 Neste poema sentimos a hesitação de Celan. O brilho, a luz que o poeta transporta na sua criação é posta em causa. A poesia desfalece logo de início e a cintilação do Ser (o poeta) é dividida pela dúvida entre a luz da inspiração (“Algum brilho irrompeu / até mim?”) e a luz loira, essa luz dos carcereiros cujo bastão “sobre nós quebraram”. O que sentimos neste poema é, mais exactamente, a fractura do Ser do poema, a dúvida do poema sobre si mesmo e sobre a poesia que cria. O acto de luz distancia-se da luminosidade ideal da poesia (de toda a poesia) e o poema passa a viver a singularidade da dúvida, dum Eu fragmentado que duvida de si e que não sabe onde reside ou onde está a origem da luz inspiradora: se em si, se na dor provocada pelos seus carcereiros. Também o poema “De escuridão em escuridão” comporta a mesma dúvida: “Abriste os olhos – vejo a minha escuridão viver. Vejo-a até ao fundo: também aí é minha e vive. Será que isso transporta? E desperta? De quem é a luz que se atrela aos meus passos para encontrar um barqueiro?”12 Aqui a escuridão vem primeiro (a vida negada). O Outro (aquele a quem se dirige o poema, aquele para quem o poema “está a caminho”) abre os olhos e o que ele vê é a 10

Centeno, Y. K. - introdução a Paul Celan, Sete Rosas mais Tarde. Lisboa: Cotovia, 1993, pp. xix, xx. In Celan, Paul - Sete Rosas Mais Tarde. Lisboa: Cotovia, 1993, p.39. 12 In Celan, Paul - Sete Rosas Mais Tarde. Lisboa: Cotovia, 1993, p.45. 11

escuridão da vida do poeta. A escuridão “vive”: é a vida negada. No entanto o poeta confronta-se com a sua luz, a sua inspiração, a sua poesia que é um facto: o poeta vive, também, irrevogavelmente, imerso na poesia. E no entanto…duvida: “De quem é a luz que se atrela aos meus passos…?” Tal circularidade que se vive entre a luz e a escuridão deu origem às palavras de Y. K. Centeno: “Com Paul Celan habitamos o silêncio. O silêncio do tempo, o silêncio do espaço entre as palavras. As palavras, escolhidas (vividas) demoradamente não pretendem exprimir mas fazer recuar (ou avançar) até ao limite do indizível a imagem de um universo e de um homem abalados na sua própria raiz: a do pulsar do Verbo que, por amor, se desdobrou na manifestação. (…) O tempo e o espaço são outros: de fratura, de divisão, de impotência e silêncio. O ser tão clamado por Heidegger não é o tempo, mas o seu reverso: o nada, o vazio, o sem-fundo, que em desespero Celan procura”13. E neste nada revela-se a experiência de um ser exilado, deserdado, desenraizado, um ser que, ao optar por escrever poesia em alemão (mais precisamente JudeuAlemão) adoptou a linguagem da vítima do extermínio mas, com isso mesmo, uma língua susceptível de ser compreendida pelos carrascos. Neste último sentido, talvez o Outro fosse ainda o carcereiro, e talvez Celan procurasse, pela poesia, encontrar nesse Outro o mesmo elemento (doloroso) de que o poema é composto, cumprindo assim o ciclo do poema, o seu “enigmático princípio dialógico”14. E talvez fosse este o motivo que o levou a encontrar-se com Heidegger em Todtnauberg: que da parte do pensador houvesse ainda uma palavra que o redimisse do seu passado: “Diante de Heidegger, o pensador – o pensador alemão -, Celan, o poeta – o poeta judeu – vinha com uma única prece, mas precisa: que o pensador que escuta a poesia, mas também o pensador que tinha estado comprometido, mesmo que o mais brevemente e o menos indignamente possível, com aquilo mesmo de que resultaria Auschwitz – e que lá em cima, sobre Auschwitz, qualquer que tenha sido o luxo das suas explicações sobre o nacional-socialismo, tinha (terá) mantido um silêncio total – que esse pensador dissesse uma palavra, uma única: uma palavra sobre a dor. A partir da qual, talvez, tudo seria novamente possível. Não a “vida” (ela é sempre possível, era-a mesmo em Auschwitz, sabemo-lo bem), mas a existência, a poesia, a palavra. A língua. Quer dizer, a relação com o outro. Celan, no Verão de 67, escreve no “livro de ouro” da cabana de Todtnauberg. (…) Tratava-se de uma palavra, de uma simples palavra. Ele escreve – o quê? Uma linha, um verso. Ele pede apenas a palavra e a palavra, evidentemente, não foi pronunciada. Nada, o silêncio: ninguém. (…) (“evento sem resposta”)”15. Heidegger falhou em dar a Celan a verdadeira palavra da língua alemã. Não conseguiu falar em dor, enquanto que Celan persistentemente a profere, rodeado pelo sentido e pela abertura do silêncio da dor. No entanto, no seu Judeu-Alemão, Celan não agarra ainda a conformidade com a língua alemã. Ele era ainda um estrangeiro, um exilado que tira vantagem do belo de uma língua estrangeira que não é a sua (não esqueçamos que Celan era romeno). O que Celan pretendia oferecer à língua alemã era essa conformidade com uma língua que ele não possuía: a dádiva do acolhimento na língua estrangeira. Terá o encontro falhado em revelar o verdadeiro significado da língua, uma salvação que apenas Heidegger poderia conceder e conciliar? Heidegger permaneceu em silêncio. Ele não deu aquele passo que está implicado na poesia pela 13

Centeno, Y. K. - introdução a Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde. Lisboa: Cotovia, 1993, p. xxv. João Barrento - introdução a Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde. Lisboa: Cotovia, 1993, p. xxxii. 15 Lacoue-Labarthe, Philippe - La Poésie comme Expérience. Paris : Christian Bourgois, 2004, p.57. 14

exposição do poeta: a absoluta vulnerabilidade que a poesia contém e que, em Celan, atinge o verdadeiro sentido da poesia. Esta exposição, Heidegger não a concedeu. Não se expôs a si mesmo como Outro. E foi aí que Celan falhou, também ele: receber a vulnerabilidade da língua, o seu verdadeiro sentido, a sua natividade. No seu pensamento. No nosso ele salvou de Auschwitz a linguagem da poesia ao dar um passo adiante na exposição de pequenos poemas como pequenas flores (sobre as campas dos mortos? Sobre os prados das terras comprometidas pela guerra?): concatenação na vida, do acto de exposição e do acto de existência. Porque para Celan, o mais importante era ultrapassar a dialéctica do interior e do exterior (na vida e na poesia), do que eram ou pareciam ser opostos. Na exposição (na poesia) não há dialéctica. Tal como não há fronteiras. Tudo está no que é dado e no dar.

João do Vale, Porto, 30-7-2012

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