[«O poeta serralheiro. Drummond, o deus menor e o mundo incorrigível»], Inimigo Rumor, vol. 13, Cotovia | 7Letras | Angelus Novus | Cosac & Naïfy, 2002, pp. 54-59.

July 31, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Literatura brasileira, Poesia Brasileira, Carlos Drummond de Andrade
Share Embed


Descrição do Produto

[O POETA SERRALHEIRO: Drummond, o deus menor e o mundo incorrigível] PEDRO SERRA

O poema «A Chave» pertence ao livro Corpo (1984), conjunto textual enviado por uma epígrafe que nos diz do adiamento de quaisquer coisas como «corpos» acabados: «O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente» (PC: 1230). O problema, um problema de representação, o problema da representação, é aqui modulado pela figura de um trabalho editorial sempre aquém da sua consumação. Esta figura é da Modernidade, para não dizer mesmo que é a Modernidade, enquanto produto do artefacto inventado por Gutenberg — que, sendo consequentes com a epígrafe, é nome que mal nomeia esse próprio que fizesse dele agente: «Gutenberg» mal nomeia a temporalidade nomeada. Assim, a figura do trabalho editorial sobre um impresso inacabado é justa para com uma Modernidade que, precisamente, é inventada como História pelo livro impresso. Note–se, neste sentido, como a epígrafe propõe a elipse da agência, precisamente pela ausência do agente da passiva: falta o arconte que inventasse e a quem pudesse ser imputada a invenção. O Outro que move o ser inventado sem corolário que convença — i.e., sem produzir «corpos» orgânicos — desloca ou historiciza o sujeito plural que se sinta representado naquele «nossa»: todos os sujeitos à História precisamente. Aduzindo ainda ao implicado do que aqui leio, recordo o que nos diz Francisco Rico a propósito do Humanismo, e daquele que considera ser o seu mais determinante legado: «Al humanismo, en efecto, le seguimos debiendo haber descubierto que nuestra dimensión es la historia, que el hombre vive en la historia, o sea en la variación, en la diversidad de entornos y experiencias, en el relativismo. Pero, por ahí, también en la esperanza. Porque esa visión de la realidad y la temporalidad implica de suyo un programa de acción: implica que es

posible cambiar la vida, que la restitución de la cultura antigua abre perspectivas nuevas, que el mundo puede corregirse como se corrige un texto o un estilo...» (1993: 43–44). A correctibilidade do texto, em suporte impresso (que redefine a textualidade), o possível e a necessidade já inscritos no limiar da Modernidade, reverberam na epígrafe drummondiana. A dimensão histórica — fuga de remanescente arqueológico mas também abertura escatológica — é inerente ao livresco. Que materializa a variabilidade, dispondo a consciência da afecção do Outro como dimensão dos sujeitos. Uma consciência que, lendo ainda Rico, tem uma dimensão prática: move o agir. Agir ou ser agido como inventar ou ser inventado: é o Outro que sustenta os possíveis, que abre a história ao Passado e ao Futuro, e que subsume a história dos indivíduos ao imperativo ético da alteridade. Acontece que a epígrafe é extraída do conjunto poemático «Canções de Alinhavo», concretamente da secção V. Os versos deslocados para um lugar do livro antecipativo do poemário Corpo, são precedidos nessa série por uma síntese auto–poética, em que o «corpo» é o tal qualquer «corpo», neste caso o/um «poema»: «Condenado a escrever fatalmente o mesmo poema / e ele não alcança perfil definitivo. / Talvez nem exista. Perseguem–me quimeras.» (PC: 1257) Concedamos, por exemplo, que esse «perfil definitivo» fosse algo como uma «ode cristalina». Por uma vital «lição discreta» ensina–se ser esta «a que se faz sem poeta» (PC: 1250). Teríamos, assim, o ser inventado antes considerado. Todavia, o ser inventado significa sê-lo enquanto tempo, ser edição pouco convincente ou perfil que se não alcança. Só se pode fazer «com poeta», desde o contingente. E aqui voltamos ao problema. Se o «cristalino» é consumável apenas sem mediação, se o poema só coincide consigo próprio na ausência do poeta, como convencer–nos de que o poema que nos aparenta dizer isto mesmo, é isto mesmo que diz? O pouco convincente da «nossa edição» é o que sempre nos interpela à correcção — escrever fatal —, sendo a resposta à interpelação — que faz de nós inventados convictos — o que garante a pouca convicção das edições.

Este já extenso arranque é o que me situa perante o poema de Drummond: A CHAVE E de repente o resumo de tudo é uma chave.

5

10

15

20

25

30

A chave de uma porta que não abre para o interior desabitado no solo que inexiste, mas a chave existe. Aperto-a duramente para ela sentir que estou sentindo sua força de chave. O ferro emerge de fazenda submersa. Que valem escrituras de transferência de domínio se tenho nas mãos a chave-fazenda com todos os seus bois e os seus cavalos e suas éguas e aguadas e abantesmas? Se tenho nas mãos barbudos proprietários oitocentistas de que ninguém fala mais, e se falasse era para dizer: os Antigos? (Sorrio pensando: somos os Modernos provisórios, a-históricos...) Os Antigos passeiam nos meus dedos. Eles são os meus dedos substitutos ou os verdadeiros? Posso sentir o cheiro de suor dos guardas-mores, o perfume-Paris das fazendeiras no domingo de missa. Posso, não. Devo. Sou devedor do meu passado, cobrado pela chave. Que sentido tem a água represa no espaço onde as estacas do curral concentram o aboio do crepúsculo? Onde a casa vige? Quem dissolve o existido, eternamente

existindo na chave?

35

40

45

50

O menor grão de café derrama nesta chave o cafezal. A porta principal, esta é que abre sem fechadura e gesto. Abre para o imenso. Vai-me empurrando e revelando o que não sei de mim e está nos Outros. O serralheiro não sabia o ato de criação como é potente e na coisa criada se prolonga, ressoante. Escuto a voz da chave, canavial, uva espremida, berne de bezerro, esperança de chuva, flor de milho, o grilo, o sapo, a madrugada, a carta, a mudez desatada na linguagem que só a terra fala ao fino ouvido. E aperto, aperto-a, e de apertá-la, ela se entranha em mim. Corre nas veias. É dentro em nós que as coisas são, ferro em brasa – o ferro de uma chave.

O primeiro dístico suplementa o categórico do título, dando a «chave» como o representante de «tudo» sub specie «resumo». Supõe assim uma totalidade («tudo») significável por uma unidade discreta (i.e., resumida) que é a «chave». Deste modo se estabelece uma autonomia para o que seja «chave», nome particular do todo sem um mais além dos seus limites, cancelando a sua condição discreta. Todavia, é já na segunda estrofe que tal «cristalino» se mostra completamente opaco. Pois o que antes se dizia «tudo» é agora aqui dado como um «interior desabitado» e um «solo que inexiste», sendo que o acesso a ele é também truncado pois a chave é-o de «uma porta que não abre». Vemos já, por outro lado, que estamos perante outro produto da condenação que antes líamos. De resto, esta clave tem pauta na «Procura da Poesia», de A Rosa do Povo (1945).

A «chave», vamos vendo, elide sujeito/objecto, elisão que de resto vai reverberando ao longo do livro: «Meu nome novo é coisa» (PC: 1254), como lemos no poema «Eu, Etiqueta», modulação baudelairiana em cenário de capitalismo tardio. Efectivamente, as duas longas estrofes que se seguem, de 13 e 14 versos respectivamente, dão conta dessa dissolvência. O sujeito lírico começa por cifrar–se como extensão corporal sensível que empresta ao objecto «chave» essa sensibilidade: «Aperto–a duramente / para ela sentir que estou sentindo / sua força de chave». O que aqui se abisma é a prioridade da sensibilidade, em que o «estou sentindo» é homologável ao ser inventado: a sensibilidade é empréstimo da «chave». Concomitantemente, nesse par estrófico claudica também a consecutividade «passado/presente», «Antigos/Modernos», «verdadeiros/ substitutos», tópicas (ontológicas, existenciais e epistémicas) introduzidas pela modulação «chave– fazenda». A possibilidade de o sujeito se dizer extensão corporal é da ordem de um «Devo», posição ética que lhe advém do Outro a quem paga dívida. O par, assim, faz versão do fazendeiro do ar, e penso–a neste poema no devir da tragicidade inerente ao sentimento de culpa familiar drummondiano, como aprendo em Vagner Camilo. Culminando a leitura que faz do poema «Morte de Neco Andrade», incluído em Fazendeiro do Ar (1954), diz–nos: «[I]nteressa aqui observar que, curiosamente, após essa enfática admissão de culpa, ela parece se extinguir, respondendo pela relação menos conflituosa e mais distanciada com o passado familiar, que praticamente deixa de ser tematizado no livro subseqüente (A Vida Passada a Limpo), para reaparecer depois, noutro registro, liberto e gaio, em Lição de Coisas e, mais ainda, nos livros memorialísticos da série Boitempo» (2001: 276). O agonismo apaziguado, no poema «A Chave», é dado pela sobredeterminação da dubitatio existencial e epistemológica: «Quem dissolve o existido, eternamente / existindo na chave?» A interrogação retórica, eco da epígrafe, é a retórica da interrogação: não há «chave» que transcenda a «chave». O poema concluirá, por outro lado, intensificando a dialéctica

negativa lançada nos versos 7–9: «E aperto, aperto–a, e de apertá–la, / ela se entranha em mim. Corre nas veias / É dentro em nós que as coisas são, / ferro em brasa — o ferro de uma chave». O «tudo»/«as coisas» resumidos pela «chave», sobretudo pela sua sua mineralidade férrea, contumaz e indiferente. A «chave» pode ser, na mesma colectânea, um outro «corpo»: «o desconhecido que me habita / e a cada amanhecer me dá um soco» («O Outro», PC: 1237). Ponhamos que se comuta também por «Carlos Drummond de Andrade», assinado pela assinatura, balanço de pleno e vazio, esquecimento e lembrança (cf. «O Pleno e o Vazio», PC: 1241). Voltando ao poema «A Chave», é neste balanço o sítio «provisório» (contingente) e «a-histórico» (presente do infinito, eterno) do sujeito do poema. Assim, tenhamos em conta os versos 45–50. A «voz da chave» que, com Rilke à vista, o ouvido escuta — algo como a Natureza, «canavial, uva espremida, berne de bezerro, / esperança de chuva, flor de milho, / o grilo, o sapo, a madrugada, a carta», aquela mesma que «recompõe seus prestígios onde o homem / parou de depredar» («O Céu Livre da Fazenda», PC: 1246) — é igualmente «mudez desatada na linguagem / que só a terra fala ao fino ouvido». Proponho este sublinhado pois a forma participial do verbo devolve-nos uma «linguagem» equivalente ao silêncio. Este mutismo — algo pouco semelhante a uma «linguagem comunicável» — da «chave» é desatado, i.e., súbito, iterando o «repente» por que começa o poema. Uma orelha dita nessa linguagem pode ser o «Poema-Orelha», conhecidamente colocado nesse lugar de um poemário cujo título ostenta, antecedendo a epígrafe de Corpo, a sua condição de livro — A Vida Passada a Limpo (1958). Dita nessa linguagem, uma orelha pode ser uma boca, sendo que essa linguagem é a poesia, tanto revelação como ocultação, «não–estar–estando», indistinção vivido/inventado: «A orelha pouco explica / de cuidados terrenos: / e a poesia mais rica / é um sinal de menos» (PC: 418). Poesia que, como a «chave» — não há destrinça, a bem dizer —, não chega ao Um. Precisamente a porta que dá para ele é «sem fechadura e gesto», e «Abre para o imenso». Sem

fechadura ou gesto, sem contingência, não seria inventada. É «principal» ou única por incriada. É a totalidade não objectivada — não resumida em «chave» — que possibilita um mundo temporal de discrições: «Vaime empurrando e revelando / o que não sei de mim e está nos Outros». O mundo, também «sinal de menos», é a subtracção do Outro ao Um. Sem deus criador, a potência do «acto de criação» é (des)figurada por um mechanical: o «serralheiro», deus menor e insciente: «O serralheiro não sabia / o ato de criação como é potente». Não foi um agir, mas um ser agido. O que deste modo se repete na «coisa criada» é tanto a insciência como o concomitante não-acto, de modo que voltamos ao problema da epígrafe, não inventar mas ser inventado: «e na coisa criada se prolonga, / ressoante». Muito próximo dos idos do livro Corpo, Derrida, num conhecido ensaio, faz a sua versão dos paradoxos da ars inveniendi na Modernidade, que é no fundo o que a epígrafe drummondiana também nos propõe, e que «A Chave» reescreve por condenação. Interessa–me destacar, para concluir, o modo como ambos relevam o laço inextricável que une uma técnica — por exemplo, editar um livro ou escrever um poema — ao anthropos: «This technoepistemic–anthropocentric dimension inscribes the value of invention in the set of structures that binds differentially the technical order and metaphysical humanism» (1989: 44). Tanto «edição pouco convincente» como «poesia sinal de menos» são figuras da repetição da assinatura a que são atribuídas mas que lhes não é essencial.

BIBLIOGRAFIA CITADA Andrade, Carlos Drummond de, Poesia Completa, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 2002. Camilo, Vagner, Drummond. Da Rosa do Povo à Rosa das Trevas, São Paulo, Ateliê Editorial, 2001.

Derrida, Jacques, «Psyche: Inventions of the Other», trad. por Catherine Porter, in Reading de Man Reading, edited by Lindsay Waters and Wlad Godzich, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1989. Rico, Francisco, El sueño del humanismo. De Petrarca a Erasmo, Madrid, Alianza Editorial, 1997.

Publicado com o título “‘A Chave’ de Carlos Drummond de Andrade”, Inimigo Rumor, vol. 13, Cotovia | 7Letras | Angelus Novus | Cosac & Naïfy, 2002, pp. 54-59.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.