O Positivismo Jurídico e a Legitimidade dos Juízos Eleitorais: A insuficência da resposta juspositivista à questão da judicialização da política

June 7, 2017 | Autor: João Andrade Neto | Categoria: Direito Constitucional, Direito Eleitoral, Supremo Tribunal Federal, Justiça Eleitoral
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO

JOÃO ANDRADE NETO

O POSITIVISMO JURÍDICO E A LEGITIMIDADE DOS JUÍZOS ELEITORAIS: A INSUFICIÊNCIA DA RESPOSTA JUSPOSITIVISTA À QUESTÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

Belo Horizonte 2010

JOÃO ANDRADE NETO

O POSITIVISMO JURÍDICO E A LEGITIMIDADE DOS JUÍZOS ELEITORAIS: A INSUFICIÊNCIA DA RESPOSTA JUSPOSITIVISTA À QUESTÃO DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Linha de Pesquisa: Poder e Cidadania no Estado Democrático de Direito Orientadora: Profª Drª Adriana Campos Silva

Belo Horizonte Faculdade de Direito da UFMG 2010

A553p

Andrade Neto, João O positivismo jurídico e a legitimidade dos juízos eleitorais: a insuficiência da resposta juspositivista à questão da judicialização da política / João Andrade Neto. - Belo Horizonte, 2010. 224f.; enc. Orientadora: Adriana Campos Silva Dissertação (mestrado) – Faculdade de Direito da UFMG. 1. Direito – Filosofia 2. Positivismo jurídico I. Título CDU: 340.12

Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Direito Programa de Pós-Graduação em Direito Dissertação intitulada “O Positivismo Jurídico e a legitimidade dos juízos eleitorais: a insuficiência da resposta juspositivista à questão da judicialização da política”, de autoria do mestrando João Andrade Neto, avaliada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

______________________________________________________________ Profª Drª Adriana Campos Silva – Orientadora

______________________________________________________________ Prof. Dr.

______________________________________________________________ Prof. Dr.

Belo Horizonte, ___ de ______________ de 2010.

A meus pais, João e Gracinda.

AGRADECIMENTOS

O estudo resultou de artigos apresentados em diferentes fóruns e congressos, nos quais tive oportunidade de expor as principais ideias deste texto e de submetê-las a debate. Sou grato a todos aqueles que se dispuseram a ouvir essas tentativas e a discutir as conclusões parciais apresentadas. Agradeço especialmente ao professor Ernani Carvalho, da Universidade Federal de Pernambuco, pela solicitude demonstrada, à professora Adriana Campos, pela gentileza de acolher esta pesquisa, e ao colega Gustavo Siqueira, por abraçar comigo a autoria de um dos primeiros trabalhos. Agradeço também a quem prontamente atendeu ao chamado e, cada um a sua maneira, contribuiu para a feitura da dissertação. A Adriano Gomes e James Andrade, pela paciente revisão do abstract. A Tiago Silveira, pelo auxílio com a língua alemã. A Ludmila Reis, pela prestimosidade diária. A Felipe Lopes, por dispor-se a ser um interlocutor. Sou imensamente grato a esses e a outros amigos, que por livre escolha resolveram compartilhar comigo o mundo, como partilhamos risos à mesa. Pois somente porque todos podemos falar e ser ouvidos, as histórias que dividimos se tornam uma narrativa comum. Os que estão presentes ocupam diferentes lugares; e o lugar de cada um não pode ser ocupado por mais ninguém.

“[...] é o discurso que faz do homem um ser político. [...] E tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido. Haverá talvez verdades que ficam além da linguagem e que podem ser de grande relevância para o homem no singular, isto é, para o homem que, seja o que for, não é um ser político. Mas os homens no plural, isto é, os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos.” (ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 11-12).

RESUMO

Este trabalho se insere no campo de estudos do Direito Constitucional e do Direito Eleitoral, sem desprezar as contribuições da Ciência Política. O objeto da análise é a relação entre o Positivismo Jurídico e a legitimidade dos órgãos e funções que integram o sistema brasileiro de controle eleitoral. O principal objetivo é averiguar se a concepção juspositivista da neutralidade da jurisdição é suficiente para justificar os juízos eleitorais. Observa-se que as instâncias que verificam a legitimidade das eleições são frequentemente acusadas de judicialização da política. Parte-se da premissa de que tais críticas supõem que a jurisdição é apolítica e que os juízes abusam de seu poder quando proferem decisões com base em princípios. Adota-se como marco teórico a concepção construtiva da interpretação jurídica, proposta por Dworkin (2007a; 2007b) em oposição ao caráter reprodutivo que, segundo o autor, o Positivismo atribui à mesma atividade. Por meio da análise de fontes doutrinárias, constata-se que o discurso da neutralidade da decisão judicial, predominante no passado, explica a substituição do sistema eleitoral anterior, de verificação dos poderes, a cargo do Poder Legislativo, pelo modelo judiciário, a cargo da Justiça Eleitoral. No entanto, o exame de fontes jurisprudenciais demonstra que esse discurso não mais oferece legitimação suficiente para os juízos eleitorais. Isso porque hoje se reconhece que o exercício da jurisdição não é puramente revelador, desprovido de considerações morais e políticas, como alguns querem acreditar.

Palavras-Chave: Justiça Eleitoral. Positivismo Jurídico. Jurisdição. Judicialização da política. Abuso de poder.

ABSTRACT

The dissertation adopts as its field of study the Electoral and Constitutional Law, with contributions of Political Science. The subject of this paper is the connection between the Legal Positivism and the legitimacy of the judicial organs that constitute the Brazilian system of electoral control. The main purpose is to verify if the positivist conception of jurisdictional neutrality does sufficiently justify the existence of the electoral judges and their decisions. The courts in charge of controlling the legitimacy of the elections are frequently accused of committing judicialization of Politics. It is assumed that those who criticize Electoral Justice believe that the jurisdictional activity must be apolitical and that judges abuse their power when they dictate their decisions motivated by principles. It is chosen as a theoretical benchmark the constructive conception of judicial interpretation, proposed by Dworkin in opposition to the reproductive character that, according to the writer, is attributed to the same activity by Legal Positivism. By analyzing doctrinal sources, it is confirmed that the discourse of political neutrality of the judicial decision, predominant in the past, explains the substitution of the previous electoral verification system, in which the Legislative Power was in charge of the inspection of the powers of its own members, by the judicial model, controlled by the Electoral Justice. Nevertheless, by examining jurisprudential sources, it is proved that the same discourse does not offer enough legitimacy to the functions that are carried out by the electoral judges. This is because nowadays it is known that the exercise of jurisdiction is not merely mechanical, deprived of moral and political considerations, as believed in the past.

Key words: Electoral Justice. Legal Positivism. Jurisdiction. Judicialization of Politics. Power abuse.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade CE – Código Eleitoral CPC – Código de Processo Civil CRF/88 – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 EC – Emenda Constitucional EUA – Estados Unidos da América LC – Lei Complementar LICC – Lei de Introdução ao Código Civil LOPP – Lei Orgânica dos Partidos Políticos MS – Mandado de Segurança PCB – Partido Comunista Brasileiro PCdoB – Partido Comunista do Brasil PEC – Projeto de Emenda à Constituição PFL – Partido da Frente Liberal PL – Partido Liberal PMN – Partido da Mobilização Nacional PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores PTB – Partido Trabalhista Brasileiro STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça TJ – Tribunal de Justiça TRE – Tribunal Regional Eleitoral TRF – Tribunal Regional Federal TSE – Tribunal Superior Eleitoral

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA ..................................................... 10 1 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA: UMA CRÍTICA FEQUENTE ........................ 19 1.1 Justiça Eleitoral: o desafio da separação de poderes ................................................ 26 1.2 Infidelidade partidária: um caso sintomático ............................................................... 31 1.3 Com que legitimidade? ................................................................................................ 40 2 LEGISLAR E JULGAR SOB O POSITIVISMO JURÍDICO................................ 49 2.1 Beccaria: em cada julgamento, um silogismo perfeito ............................................... 54 2.2 Mecanicismo: uma teoria positivista da aplicação da lei ............................................ 60 2.3 Uma concepção de Positivismo Jurídico..................................................................... 67 3 FUNÇÕES JUDICIAIS PARA CONTROLE DAS ELEIÇÕES ............................ 76 3.1 Aspectos formais da separação de poderes ............................................................... 81 3.2 O modelo brasileiro de distribuição de funções .......................................................... 87 3.3 As múltiplas funções da Justiça Eleitoral .................................................................... 93 4 A LEGITIMAÇÃO DO SISTEMA DE CONTROLE DA LEGITIMIDADE ........... 107 4.1 Condições formais de legitimidade: o Positivismo de Luhmann ..............................112 4.2 A legitimidade das eleições........................................................................................118 4.3 A legitimidade do controle judicial das eleições ........................................................126 5 UMA NOVA PERSPECTIVA HERMENÊUTICA ............................................. 139 5.1 Legislar e julgar sob a normatividade dos princípios ................................................146 5.2 Legislação e política, jurisdição e princípios .............................................................154 5.3 Limites à criatividade jurisdicional..............................................................................160 6 NOVAS ACUSAÇÕES, ANTIGAS PERPLEXIDADES ................................... 169 6.1 Concepções de judicialização da política ..................................................................175 6.2 O princípio da neutralidade e o abuso do poder jurisdicional ...................................183 6.3 A complexa situação da Justiça Eleitoral ..................................................................188 CONCLUSÃO.................................................................................................. 202 REFERÊNCIAS ............................................................................................... 211

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INTRODUÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

O objeto desta pesquisa envolve a relação entre o Positivismo Jurídico e a legitimidade das funções exercidas pela Justiça Eleitoral no âmbito do sistema brasileiro de controle das eleições. O objetivo principal do estudo consiste em averiguar se a concepção juspositivista da neutralidade da decisão jurisdicional é suficiente para justificar os juízos eleitorais. Com tais objeto e objetivo, o campo de conhecimento em que o trabalho se insere é o Direito Público brasileiro, notadamente o Constitucional e o Eleitoral, com repercussões para as Ciências Políticas. Dada a necessidade de garantir a normalidade do processo eleitoral e a imparcialidade na interpretação de suas regras, as modernas democracias representativas criaram sistemas de controle da legitimidade das eleições. Os órgãos que compõem tal estrutura são encarregados de verificar o preenchimento das condições exigidas para a posse do mandato eletivo. No Brasil, desde 1932, atribuiu-se essa função à Justiça Eleitoral (BRASIL, 1932). A ideia positivista de que a atividade do Poder Judiciário é natural e intrinsecamente apolítica parece ter motivado o abandono do modelo anterior, que vigorava desde a Carta Imperial de 1824 (BRASIL, 1824). Aquele sistema encarregava o Poder Legislativo, diretamente interessado no resultado das disputas partidárias, de nomear seus próprios membros e verificar-lhes os poderes. Ocorre que, se o Positivismo se apresentava como a concepção de Direito predominante no passado, contemporaneamente, juristas de grande expressão defendem a adoção de um novo paradigma interpretativo, que reconhece a normatividade dos princípios. As decisões judiciárias não se mantiveram alheias a essa mudança. Verifica-se que recentes acórdãos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF) fundamentaram-se em padrões jurídicos não explícitos para operar significativas modificações na organização política brasileira. Os membros desses Tribunais demonstram disposição para inserir a jurisprudência eleitoral no contexto hermenêutico pós-positivista. Simultaneamente, tornam-se frequentes as acusações de judicialização da política dirigidas contra juízes e cortes eleitorais. Amparados pela noção amplamente difundida de que os magistrados são neutros – qualidade que, afinal, se

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exige dos encarregados do controle das eleições –, os críticos, sem identificarem com precisão a verdadeira causa da perplexidade diante do que consideram ativismo judicial, intuem que o exercício da jurisdição não é puramente mecânico e desprovido de considerações morais e políticas, como se quer acreditar. Não bastasse a desconfiança acerca da verdadeira natureza da atividade jurisdicional, a Justiça Eleitoral passou a acumular, ao longo do século XX, poderes os mais variados, de condução do processo eleitoral, regulamentação das leis que o regem e formulação de respostas a consultas sobre a interpretação de tais normas. Contra o argumento de que a neutralidade da instituição decorre das garantias formais dos membros do Poder Judiciário, é possível, então, sustentar que as atividades não jurisdicionais confiadas ao órgão pouco diferem em substância dos atos praticados por membros dos demais Poderes, reconhecidamente políticos. É necessário, pois, investigar se a diversidade funcional dessa Justiça e a alegada superação do Positivismo pela jurisprudência eleitoral ameaçam a legitimidade da instituição e de seus julgamentos. Para tanto, há que averiguar em que medida a justificação do sistema de controle da legitimidade das eleições, encarregado de efetivar o princípio previsto no §9º do art. 14 da Constituição (CRF/88) (BRASIL, 1988), depende de uma concepção juspositivista da natureza da atividade jurisdicional. Indaga-se se a concepção juspositivista da neutralidade da decisão judicial é suficiente para justificar a atuação da Justiça Eleitoral na verificação da legitimidade das eleições. A hipótese é que o caráter apolítico atribuído pelo Positivismo à jurisdição foi determinante para a criação dos juízos eleitorais e a organização do sistema brasileiro de controle dos processos eletivos. Durante décadas, a perspectiva positivista acerca das atividades do Poder Judiciário pareceu uma resposta satisfatória à questão da necessidade de uma instância neutra de solução dos conflitos político-partidários. No entanto, atualmente, tal visão se revela insuficiente para responder às críticas dirigidas às decisões do órgão, uma vez reconhecido pelas doutrinas contemporâneas não ser a aplicação jurisdicional do Direito reveladora e apolítica, mas construtiva e política. Cumpre ressaltar que o objetivo deste trabalho não é legitimar o sistema de controle eleitoral e suas funções. Não se pretende justificar tal instituição ou as atividades a ela atribuídas. A pesquisa lança-se, sim, à identificação de uma premissa que subjaz aos mais comuns argumentos que as próprias autoridades

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judiciárias oferecem como resposta à questão sempre em aberto da legitimidade dos órgãos e entidades que compõem o Estado democrático. Noutras palavras, intentase expor um problema não resolvido, que se encontra como que atrás do cenário em que se costuma desenvolver o debate acerca do Poder Judiciário como um todo e dos juízos eleitorais em especial. Para atingir o objetivo principal, durante a exposição, pretendeu-se alcançar alguns objetivos específicos: a) levantar decisões jurisdicionais que permitam averiguar a inserção da jurisprudência eleitoral no novo paradigma interpretativo (seção 1); b) pesquisar em um jornal de grande circulação críticas recentes dirigidas às decisões do Poder Judiciário sobre matéria eleitoral (seção 1); c) propor um conceito de Positivismo Jurídico, a partir do qual as decisões judiciais e as críticas selecionadas possam ser avaliadas (seção 2); d) explicitar em qual espécie de sistema de controle da legitimidade das eleições se insere o modelo brasileiro (seção 3); e) definir as atividades que compete à Justiça Eleitoral desempenhar no exercício da função de controle do processo eleitoral (seção 3); f) investigar as condições históricas e políticas que motivaram a criação da Justiça Eleitoral e os valores que a inspiraram (seção 4); g) expor uma teoria hermenêutica reconhecida como pós-positivista, a fim de avaliar os dados levantados e as conclusões parciais encontradas (seção 5); h) identificar a concepção de política que subjaz à doutrina de separação de poderes influenciada pelo Positivismo (seções 5 e 6); i) negar a visão amplamente difundida de que o exercício jurisdicional não é político (seção 5); j) propor um conceito de jurisdição que permita diferenciar a decisão jurisdicional legítima da ilegítima (seções 5 e 6); e k) testar as conclusões parciais obtidas, confrontando-as com a jurisprudência levantada (seção 6). O marco teórico que fundamenta a investigação e serve de controle do processo metodológico é a concepção criativa do exercício jurisdicional proposta por Ronald Dworkin em oposição ao caráter reprodutivo que, segundo o autor, o

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Positivismo Jurídico atribui à mesma atividade. Tais ideias se encontram expostas principalmente nas obras Levando os direitos a sério (2007b) e O império do direito (2007a). O jurista norte-americano concebe as doutrinas juspositivistas como teorias convencionalistas acerca do Direito, as quais sustentam uma visão restrita da prática jurídica que não admite a normatividade dos princípios nem a natureza construtiva da interpretação. O reconhecimento de que os princípios são normas impacta a compreensão da prestação jurisdicional, na medida em que introduz no julgamento elementos politicamente controversos. Princípios são padrões de moralidade pública. Portanto, os juízos que apelem a eles não podem ser considerados apolíticos, como tradicionalmente se caracteriza a jurisdição. Essa

mudança

de

perspectiva

acerca

da

aplicação

jurídica

necessariamente repercute nas críticas de judicialização da política frequentemente dirigidas às decisões da Justiça Eleitoral brasileira. Pois a teoria de Dworkin (2007a; 2007b) não permite presumir que os magistrados sejam alheios a preferências partidárias nem desprovidos de um senso particular de justiça ou de valores morais específicos. Ela não nega que as conclusões do julgador sejam sensíveis às próprias convicções políticas dele. Ao contrário, exige que, na condição de autoridades públicas, os juízes se esforcem para interpretar o Direito como um conjunto coerente de princípios, sem os quais a própria existência da comunidade política estaria ameaçada e – tendo em vista ser o povo a fonte de todo o poder, o que inclui a autoridade do juiz –, a própria tarefa judicante seria comprometida. Dessa maneira, a superação do ponto de vista do Positivismo, desencadeada pela possibilidade de que as decisões jurisdicionais se fundamentem não em regras convencionais explícitas, mas em princípios, exige um esforço para redefinir a prática jurídica como um todo. O impacto da adoção de uma perspectiva hermenêutica diversa não se esgota na redefinição da própria atitude interpretativa. Conceitos sobre os quais há relativo consenso – como o de separação dos poderes – têm de ser reavaliados. Afinal, se o apelo a princípios introduz considerações políticas e morais na jurisdição, a imagem de que essa função estatal é meramente reveladora tem de ser abandonada. Consequentemente, devem ser propostos outros critérios para diferenciá-la da legislação. Em razão do exposto, adotam-se também concepções auxiliares propostas por Dworkin em outras obras. Interessa aqui a distinção entre legislação e

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jurisdição, e entre argumentos de política e argumentos de princípio. Embora o jurista estadunidense inicie essa discussão em Levando os direitos a sério (2007b), ela é mais bem detalhada em Uma questão de princípio (2005). Semelhantemente, buscam-se em O direito da liberdade (2006) aspectos específicos da diferença entre o exercício jurisdicional legítimo e o ilegítimo, originalmente proposta em O império do direito (2007a). O marco teórico adotado, que introduz na interpretação jurídica a valoração política, e o objeto sobre o qual a pesquisa se debruça, o impacto da concepção positivista em instituições estatais específicas, tornam impossível que o problema seja tratado de forma unidisciplinar. É forçoso considerar o Direito não apenas em seu aspecto normativo, mas também no político (axiológico). Para tanto, estabelecer-se-ão relações coordenadas de concepções fundamentais do Direito Constitucional, do Direito Eleitoral e da Ciência Política, sendo ainda necessário o uso de definições da Teoria Geral do Direito. Nesses termos, a pesquisa é interdisciplinar. Além disso, a interpretação legal e constitucional realizada por órgãos do Poder Judiciário será problematizada e avaliada. Afirma-se a insuficiência da concepção positivista da jurisdição (e, consequentemente, do Direito) para justificar as práticas da Justiça Eleitoral. O ponto de vista adotado para avaliar essa proposição, a concepção construtivo-criativa da atividade jurisdicional, pressupõe que o Direito consiste em uma prática argumentativa. Assim, introduz-se na pesquisa uma complexidade contextual que exige a superação de metodologias de corte puramente positivistas ou formalistas. A despeito do que inicialmente pode sugerir a perspectiva pós-positivista de que se parte, extraem-se os dados primários da análise do repertório jurídico positivo, da legislação (constitucional e infraconstitucional) e da jurisprudência brasileira em matéria eleitoral. É dado secundário a doutrina acerca do Positivismo, da natureza da atividade jurisdicional, dos modelos de sistema de controle das eleições e das funções da Justiça Eleitoral. A fim de esclarecer as críticas dirigidas à atuação dessa instituição, também se coletaram textos jornalísticos em diário de grande circulação nacional. O procedimento mais adequado para realizar o exame qualitativo das fontes – tendo em vista que tanto as primárias quanto as secundárias são textuais, de papel – é a análise de conteúdo.

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Quanto ao aspecto quantitativo, cumpre esclarecer que, considerando o grande repertório de jurisprudência disponível e a necessidade de testar a hipótese da influência do Positivismo nas atividades judiciais, colhe-se uma amostra intencional de recentes decisões do TSE e do STF sobre temas eleitorais controversos. Entre os cinco casos de maior repercussão midiática desde 2002 – verticalização das coligações, número de vereadores por município, cláusula de desempenho partidário, distribuição dos fundos partidários e infidelidade partidária (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008) – o da tipificação da perda do mandato parlamentar decorrente da desfiliação da legenda de origem mostrou-se o mais adequado. Primeiro, porque nele se operou uma mudança de interpretação declaradamente com base em um princípio constitucional que o TSE e, depois, o STF, consideraram implícito na CRF/88. Ou seja, ambos os Tribunais alegaram apelar à nova hermenêutica para romper com a jurisprudência anterior, que consideraram formalista e apegada à interpretação positivista estrita. Segundo, porque o processo de reconhecimento da vedação da infidelidade partidária envolveu

manifestações

judiciárias

de

natureza

distinta,

nem

todas

elas

jurisdicionais. A combinação dos dois fatores permite averiguar se as críticas de judicialização da política provocadas pelo caso são fundadas – se ocorreu abuso de poder e, em caso afirmativo, se a conduta abusiva decorreu do exercício da jurisdição ou de outro poder estatal. No que se refere à doutrina juspositivista que oferece concepções para a jurisdição, também foi necessário colher uma amostra intencional. Optou-se por selecionar, entre os vários autores considerados positivistas, aqueles cuja obra teve (ou tem) grande impacto no pensamento jurídico brasileiro. Notadamente, destacamse Kelsen (2009) e Bobbio (2006). A referência à teoria da legitimação pelo procedimento de Luhmann (1980) se deveu ao fato de ser esta uma concepção amplamente difundida acerca de como os processos estatais garantem a legitimidade do sistema jurídico como um todo. Quer-se demonstrar, porém, a insuficiência da perspectiva dos três teóricos quando reconhecida a normatividade dos princípios. Ressalte-se que não se aprofunda na pesquisa o estudo dos principais juspositivistas do Common Law contra os quais se volta Dworkin (2007a; 2007b): Hart (2009), Bentham (1979) e Austin (2002). A justificativa para deixá-los de lado se apoia na necessidade de garantir a transposição dos conceitos do jurista

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estadunidense, formulados com base no sistema de Direito americano e inglês, ao Civil Law, sistema de origem romano-germânica adotado no Brasil. Expostas as opções metodológicas, há que esclarecer como se dá a divisão do trabalho, e quais são as ideias e os argumentos discutidos em cada parte. Na seção 1, apresentam-se com mais detalhes o problema e a hipótese da pesquisa; definem-se alguns conceitos essenciais, como o de processo eleitoral; problematizam-se a recente atuação da Justiça Eleitoral e as críticas a ela dirigidas; seleciona-se um caso entre os de maior repercussão midiática – o reconhecimento do princípio da infidelidade partidária – para ilustrar a análise e testar as conclusões; e sugere-se que o aumento do número de acusações de judicialização da política dirigidas à Justiça Eleitoral se relaciona à nova postura hermenêutica adotada pelos Tribunais. Na seção 2, expõe-se a concepção de Dworkin acerca do Positivismo Jurídico e do modo como esta corrente doutrinária define os poderes estatais de legislação e jurisdição; e, a partir da doutrina de Bobbio (2006), demonstra-se a familiaridade desses conceitos positivistas com o pensamento jurídico do País, e sugere-se a influência teórica dessa perspectiva no contexto brasileiro. Na seção 3, discute-se o modelo de separação de poderes adotado no Brasil; destaca-se a diversidade de funções atribuídas à Justiça Eleitoral; utiliza-se a doutrina tradicional, de influência kelseniana, para avaliar os poderes regulamentar e consultivo de que dispõe a instituição; e sugere-se a insuficiência dessa concepção para avaliar a legitimidade do exercício das tarefas envolvidas no controle das eleições. Na seção 4, problematiza-se o controle da legitimidade do processo eleitoral; constata-se que a criação do sistema judiciário de verificação das eleições respondeu à necessidade de moralização do sistema representativo brasileiro; demonstra-se que a expectativa de correção da esfera política se relaciona à imagem de um juiz neutro, que aplica as regras eleitorais sem considerações políticas; expõe-se que uma noção positivista de legitimidade como a que se encontra em Luhmann (1980) subjaz à ideia de que as prerrogativas e vedações procedimentais a que se submetem a magistratura e o exercício jurisdicional típico asseguram a neutralidade do sistema judiciário; e sugere-se ser essa perspectiva insuficiente para justificar as decisões da Justiça Eleitoral.

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Na seção 5, discutem-se a superação do Positivismo Jurídico e a difusão de uma nova concepção do Direito e da interpretação jurídica; afirma-se que padrões morais públicos subjazem às descrições positivistas, ainda que os teóricos que as formulam não o admitam; propõem-se, a partir do reconhecimento da normatividade dos princípios, critérios para diferenciar o exercício jurisdicional legítimo do ilegítimo; e sugere-se que subjaz ao tradicional ponto de vista sobre a jurisdição uma noção ontológica de neutralidade judicial, incompatível com o novo paradigma. Na seção 6, testam-se as conclusões parciais obtidas nas seções anteriores; verifica-se se as críticas de judicialização da política dirigidas à Justiça Eleitoral no caso da fidelidade partidária partem de uma concepção de jurisdição superada pelo novo paradigma hermenêutico; e averigua-se como se deu a difusão das concepções pós-positivistas em um contexto fortemente influenciado pelo Positivismo – no que diz respeito tanto à organização institucional quanto ao pensamento jurídico. Há que destacar um obstáculo não previsto inicialmente, que teve de ser enfrentado no desenvolvimento da pesquisa: a quase ausência de doutrina que se aprofunde no estudo da função eleitoral consultiva. A maioria dos estudiosos do Direito Eleitoral a classifica ou como atividade administrativa ou como sui generis. Entretanto, no primeiro caso, não se enfrentam as peculiaridades do instituto e, no segundo, não se esclarece por que ele não poderia ser concebido como exemplo de administração em sentido amplo ou, ainda, de jurisdição voluntária. A questão foi examinada neste trabalho apenas na medida em que poderia impactar os resultados. Todavia, longe de considerar definitivas as conclusões obtidas, entende-se que elas são parciais. Trata-se, portanto, de tema que merece uma análise de maior fôlego, em pesquisa própria, com metodologia adequada ao objeto. Advirta-se, por fim, que, dados os limites desta exposição, algumas consequências dos resultados obtidos não serão problematizadas. O tempo e os recursos

disponíveis

tornaram

necessário

um

corte

metodológico

que

desconsiderasse o impacto das conclusões em sistemas políticos mais abrangentes. O universo de análise será o dos institutos constitucionais e legais, embora a perspectiva adotada não seja, por vezes, exclusivamente jurídica e faça-se uso de

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conceitos das ciências políticas. Não se pretende, pois, explorar as repercussões da pesquisa na Teoria Geral do Estado. Isso não quer dizer, no entanto, que elas inexistam. Se a função desempenhada pelos membros da Justiça Eleitoral é essencialmente política, e a concepção juspositivista da atividade judicial não se mostra mais adequada para justificá-la, o que o faz? De onde essa instituição retira a legitimidade? Certamente, não do próprio sistema representativo, vez que no Brasil os juízes não são eleitos. Essas perguntas continuam a ecoar sem resposta, por trás das acusações de judicialização da política dirigidas à instância responsável pelo controle da legitimidade das eleições. Ainda hoje, reverbera a perplexidade que Beccaria (2005, p. 114) expressou em outro contexto, diante dos mecanismos de repressão criminal do século XVIII, mas que dá voz à questão sempre em aberto da legitimidade das instituições políticas modernas: “Como vigiar os vigilantes?”

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1 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA: UMA CRÍTICA FREQUENTE

A mixórdia política deve mudar de gênero, mas não de grau. O decreto judicial da fidelidade talvez tenha sido uma tentativa de suscitar outras mudanças, como a adoção do voto distrital com listas fechadas de candidatos. Não seria uma solução, mas rima com a cassação de infiéis. E com judicialização da política. (FREIRE, 2007, grifo nosso).

Esta epígrafe foi publicada pelo colunista Vinicius Torres Freire no jornal Folha de S. Paulo de 7 de outubro de 2007. Meses antes, em 27 de março, o TSE julgara a Consulta n. 1.398 (BRASIL. Tribunal... Consulta..., 2007). Na Resolução n. 22.526/07, expedida em resposta a ela, a corte afirmara ser devida a perda do mandato parlamentar de deputados que deixassem a legenda partidária pela qual se haviam elegido (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). Criticando a decisão, o articulista acusava a Justiça Eleitoral de judicializar a política. Não se trata, porém, de uma crítica isolada. A consulta ao banco de dados do mesmo periódico revela que, desde 1997, 32 textos foram escritos sobre o fenômeno da interferência judicial na esfera política. Obteve-se tal número considerando apenas os artigos que fazem menção direta à expressão judicialização da política. Se se consideram aqueles que contêm as palavras judicialização e política, independentemente da ordem em que citadas no texto, as ocorrências sobem para 48, desde 1996. De qualquer modo, enquanto a expressão só aparece em quatro textos da última década do século XX – dois de 1997, um de 1999 e um de 2000 –, de 2001 a 2009 ela consta de 28 – um em 2001, três em 2002, um em 2003, três em 2004, dois em 2006, sete em 2007, sete em 2008 e quatro em 2009.1 Como a Folha de S. Paulo é um jornal de grande circulação e influência nacional2, o exame de seus arquivos pode servir para sustentar algumas conclusões generalizáveis. Primeiro, a de que a judicialização da política é um fenômeno que vem ganhando especial atenção midiática desde a década de 1990. Segundo, a de

1

A pesquisa foi realizada no arquivo do jornal Folha de S. Paulo disponível para assinantes pela internet. Buscaram-se, primeiro, textos de que constasse a expressão judicialização da política, depois, as palavras judicialização e política, neste caso, independentemente da ordem, desde que no mesmo artigo. Consulta disponível em: . Acesso em: 14 jan. 2010.

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que o interesse pelo assunto tende a ser crescente, embora episódico. Cada quadriênio apresenta mais registros que o imediatamente anterior. Contudo, agrupando-se os anos em triênios ou biênios, a intervalos de grande frequência, seguem-se os de baixa. Uma das hipóteses para explicar tal variabilidade é que a quantidade de ocorrências reage a julgamentos de grande repercussão na esfera pública nacional. O período de maior incidência da expressão, de 2002 a 2009, responsável por 27 registros, coincide com o de diversas alterações nas regras da competição políticopartidária promovidas por sucessivas decisões do STF e do TSE. Como observa o cientista político V. Ferraz Júnior (2008, p. 5), “Desde 2002, [as duas cortes] vêm interpretando a legislação eleitoral com um perfil mais arrojado.” O autor aponta cinco casos emblemáticos dessa nova atitude interpretativa: a) determinação da verticalização das coligações majoritárias – o TSE, a fim de fortalecer os partidos políticos, determinou que as coligações partidárias

formadas

nas

eleições

estaduais

majoritárias

correspondessem às firmadas nacionalmente para a eleição do presidente da República (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008); b) fixação do número de vereadores das câmaras municipais – com base numa decisão do STF que estabelecia limites quantitativos para a composição da câmara de uma cidade do interior paulista, a corte eleitoral editou uma resolução que transformou tais exigências em regra para todos os municípios do País (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008); c) declaração da inconstitucionalidade da cláusula de desempenho – o STF, em 2006, considerou inconstitucionais os artigos da Lei Orgânica dos Partidos Políticos (LOPP) (BRASIL, 1995) que impunham condições

ao

funcionamento

partidário

nas

casas

legislativas

(FERRAZ JÚNIOR, V., 2008); d) definição das regras de distribuição do fundo partidário – quando o STF “[...] entendeu que a cláusula de desempenho era inconstitucional por ferir o princípio do multipartidarismo [...], o TSE editou uma

2

Segundo dados da Associação Nacional de Jornais (ANJ), a Folha de S. Paulo foi o jornal pago de maior circulação nacional, com tiragem superior a 300.000 exemplares/dia, em todos os anos, de 2002 a 2008 (ASSOCIAÇÃO NACIONAL..., 2010).

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resolução definindo novas regras para a distribuição dos fundos partidários [...]” (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 18-19); e e) tipificação

da

infidelidade

partidária



consultado

sobre

as

consequências do abandono partidário, o TSE respondeu que as vagas nos órgãos legislativos proporcionais pertencem aos partidos, não aos mandatários. Ao fazê-lo, abriu caminho para que se reivindicassem as cadeiras antes ocupadas por deputados e vereadores que, durante o mandato, houvessem deixado a legenda de origem (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008). Dessa forma, se, desde a retomada das eleições amplas no País, em 1989, quase não houve polêmica em relação à confiabilidade dos resultados eleitorais, não se pode dizer o mesmo sobre as decisões da Justiça Eleitoral (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008). O TSE “[...] tem interpretado as normas do jogo competitivo de maneira inovadora, alterando-as substancialmente [...]” (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 14). Na medida em que o faz, vem sendo objeto de críticas. A principal é a de que ultrapassa suas prerrogativas típicas e avança sobre a atividade legiferante, exclusiva do Parlamento, o que acarretaria a judicialização da competição político-partidária (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008). Os manuais de Direito Constitucional e de Teoria Geral do Estado usualmente se ocupam do princípio da separação de poderes ao tratar do art. 2º da CRF/88: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Há consenso entre os autores, pelo menos entre os mais renomados, de que o conceito adotado pela norma, a um só tempo, exprime as três funções estatais básicas (os poderes, com iniciais minúsculas) e indica os órgãos aos quais são respectivamente atribuídas (os Poderes, com maiúsculas) (BONAVIDES, 2006; CARVALHO, 1990; MORAES, 2008; SILVA, 2008b). A divisão de poderes consiste em confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes, que tomam os nomes das respectivas funções, menos o Judiciário (órgão ou poder Legislativo, órgão ou poder Executivo e órgão ou poder Judiciário). (SILVA, 2008b, p. 108, grifo do autor).

A repartição de poderes se fundamenta, portanto, na noção de especialização funcional, “[...] significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função [...]” (SILVA, 2008b, p. 109). Por óbvio, tal ideia depende da aceitação prévia de que as funções podem ser diferenciadas. A absoluta maioria da

22

doutrina também parece estar de acordo quanto ao fato de que tal diferenciação decorre da natureza de cada uma das atividades. José Afonso da Silva (2008b, p. 554, grifo do autor) chega a afirmar que “Não é difícil distinguir jurisdição e legislação.” O constitucionalista parte da tradicional noção de que “A função legislativa consiste na edição de regras gerais, abstratas, impessoais e inovadoras da ordem jurídica, denominadas leis. [...] A função jurisdicional tem por objeto aplicar o direito aos casos concretos a fim de dirimir conflitos de interesse.” (SILVA, 2008b, p. 108, grifo do autor). Basta uma breve análise dessa concepção para revelar-lhe o formalismo e a insuficiência. A possibilidade formal de desarmonia – delegação ou usurpação indevida de competências, por meio de lei, por exemplo –, é reconhecida: O princípio da separação ou divisão de poderes foi sempre um princípio fundamental do ordenamento constitucional brasileiro. […] A Constituição de 1988 manteve o princípio com um enunciado um pouco diferente. […] o Prof. e então Dep. Michel Temer sugeriu a reinserção da regra da harmonia e independência que figura no art. 2º, sem porém indicar as ressalvas ao princípio que sempre constavam nas constituições anteriores, do teor seguinte: “Salvos as exceções previstas nesta Constituição, é vedado a qualquer dos poderes delegar atribuições; quem for investido na função de um deles não poderá exercer a de outro”. Ressalva desnecessária. (SILVA, 2008b, p. 106).

Não obstante, não se oferecem critérios para avaliar os casos em que um Poder,

no

exercício

aparente

da

competência

própria,

exerce

atividades

materialmente atribuídas aos demais. A definição das funções proposta pela doutrina majoritária nada diz sobre a importante proibição, amplamente reconhecida, embora, na maioria das vezes, não escrita, de que o Poder Judiciário decida “questões políticas” (MARRADI, 1998, p. 1162-1163). O que acontece se o caso concreto colocado sob apreciação do juiz resulta do conflito de interesses entre partícipes da competição político-partidária? Diante da inexistência de vedação jurídica expressa, o Poder Judiciário está autorizado a exercer a jurisdição nessa hipótese? Se negativa a resposta, a distinção fundamental entre legislação e jurisdição tem de ser reformulada, por inadequação. Faz-se necessário propor um critério de separação que leve em conta o elemento político. Se, no entanto, positiva, perde sentido falar em judicialização da política. Estar-se-ia diante da usual aplicação do Direito sobre fatos do mundo do ser, independentemente da natureza deles. Mas chama atenção que os próprios magistrados frequentemente se preocupam em explicar publicamente que as decisões que tomam não são políticas. E permanece em aberto a questão de que, a

23

despeito disso, acusações de abuso jurisdicional continuam sendo dirigidas aos juízes que, provocados, intervêm nos conflitos partidários. Nesse sentido, é sintomática (e será adotada como exemplo para conduzir a análise aqui proposta) a recente atuação judiciária no combate à disseminada prática de troca de partidos à qual recorrem os parlamentares brasileiros.3 Em 2007, o Partido da Frente Liberal (PFL) dirigiu ao TSE a Consulta n. 1.398, na qual indagava: “Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). O consulente antepôs à pergunta propriamente dita as seguintes considerações: a) que a eleição dos candidatos a cargos proporcionais é resultado do quociente eleitoral, apurado entre os diversos partidos e coligações, nos termos do art. 108 do Código Eleitoral (CE) (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007); b) que a filiação partidária é condição constitucional de elegibilidade que indica ao eleitor o vínculo político e ideológico dos candidatos (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007); e c) que o cálculo das médias eleitorais decorre do resultado dos votos válidos atribuídos a partidos e coligações. (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). O ministro César Asfor Rocha, relator do processo, respondeu positivamente à consulta. Afirmou que “[...] os Partidos Políticos e as coligações conservam o direito à vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência de candidato eleito por um partido para outra legenda.” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). A decisão do Tribunal, consubstanciada na Resolução n. 22.526/07, deu-se na forma

3

O uso do verbo “recorrer” no presente do indicativo, e não no pretérito, é aqui significativo. De acordo com a pesquisa realizada por V. Ferraz Júnior (2008, p. 175-176), “Mesmo diante de um ambiente condenatório para a migração partidária [após a decisão do TSE], ela permaneceu com a mesma intensidade de antes.” Para o pesquisador, “[...] a continuidade da migração partidária é um sinal claro de que a prática não atende de fato a interesses conjunturais e pontuais, mas expressa uma lógica intrínseca ao sistema político-partidário brasileiro.” (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 175176).

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do voto do relator, por maioria, vencido o ministro Marcelo Ribeiro. (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). Noutras palavras, a resposta à Consulta n. 1.398 declarou que as condutas abrangidas pelo conceito de infidelidade partidária, a saber, a transferência e o abandono do partido pelo qual se elegera o deputado, não justificadas, dão azo à perda do cargo eletivo (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). A decisão modificou substancialmente a jurisprudência do TSE. Desde a promulgação da CRF/88, predominava o argumento de que a nova ordem jurídica não previa tal hipótese

de

perda

de

mandato

nem

havia

recepcionado

as

normas

infraconstitucionais que o faziam.4 Por maioria, restava consolidada, tanto no STF quanto no TSE, “[...] a tese de que, se o parlamento optou por uma orientação mais liberalizante, permitindo o fluxo de mandatários entre os partidos, não caberia ao Judiciário assumir uma postura mais restritiva.” (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 165). Ademais, defendia-se que o julgamento dos casos de perda de mandato causados por fatos ocorridos após a diplomação dos candidatos eleitos era atribuído não à Justiça Eleitoral, mas à Comum.5 Tal entendimento se baseava no conceito de processo eleitoral. Aqui, não se vale desta locução no sentido em que usualmente empregada nas ciências jurídicas processuais, mas como conceito do Direito das eleições. Não se designa com ela a prestação jurisdicional, como poderia supor um processualista, mas o encadeamento de atos políticos e jurídicos que vai das convenções partidárias para a escolha de candidatos até a diplomação dos eleitos, passando pelo registro de candidaturas, pela campanha político-partidária e pela votação propriamente dita. (GOMES, 2009; RIBEIRO, 2000). O início do processo eleitoral – em sentido amplo – coincide com as convenções partidárias para escolha de candidatos e deliberação sobre coligação. Concluída a convenção, já se pode pleitear o registro de candidaturas. Assim, seu marco inicial pode ser fixado no dia 10 de junho do ano das eleições. A partir daí é que efetivamente começa a marcha rumo ao pleito. (GOMES, 2009, p. 192). 4

O Acórdão n. 11.075/90, cuja ementa se cita a seguir, é exemplo de julgado nesse sentido. Observe-se apenas que o fenômeno da não recepção da legislação infraconstitucional pela CRF/88 foi, no caso, erroneamente denominado revogação: ”INFIDELIDADE PARTIDARIA. PERDA DE MANDATO. [...] REVOGADAS PELA CARTA DE 1988 AS NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS DISPONDO SOBRE A PERDA DE MANDATO POR INFIDELIDADE PARTIDARIA (RES. N. 15.135), CARECE O RECURSO DE PRESSUPOSTO PARA SUA ADMISSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL NAO CONHECIDO.” (BRASIL. Tribunal..., 1990, grifo nosso). 5 Nesse sentido, podem-se citar a Resolução n. 17.643/91 (BRASIL. Tribunal... Resolução..., 1991) e a Resolução n. 19.762/96, cuja ementa dispõe: “CONSULTA. INFIDELIDADE PARTIDARIA. PERDA DE MANDATO ELETIVO. INCOMPETENCIA DA JUSTICA ELEITORAL. (PRECEDENTE CONSULTA N. 12.232, REL. O MIN. PAULO BROSSARD). CONSULTA NAO CONHECIDA.” (BRASIL, 1996, grifo nosso).

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Alguns

autores

incluem

no

conceito

atos

anteriores,

como

o

cadastramento do eleitor, pela repercussão que têm no processo. Outros defendem que o marco inicial é o registro dos candidatos. Independentemente da abrangência que os doutrinadores conferem à definição, há consenso de que não se trata aqui do processo em sentido estrito, da “[…] relação que se estabelece entre autor, Estadojuiz e réu.” (GOMES, 2009, p. 191). Em sentido amplo, a expressão nomeia o conjunto de complexos procedimentos que envolvem “[…] candidatos, partidos políticos, coligações, Justiça Eleitoral, Ministério Público e cidadãos com vistas à concretização do sacrossanto direito de sufrágio e escolha dos ocupantes dos cargos político-eletivos em disputa.” (GOMES, 2009, p. 191). Tais procedimentos se encerram com a diplomação dos eleitos. (GOMES, 2009). A despeito da notável mudança de jurisprudência da mais alta corte eleitoral brasileira em relação aos atos que compete a ela apreciar, conferiu especial importância à Resolução n. 22.256/07 o fato de tê-la sido fundamentada não numa regra constitucional expressa, mas num princípio que o TSE considerou implícito na CRF/88. Na ocasião, o Tribunal adotou uma postura hermenêutica que, para o ministro César Asfor Rocha, afirmou a prevalência dos princípios constitucionais sobre as regras. Segundo o relator, o caso levou à revisão das teorias que explicam “[...] o fenômeno jurídico somente na sua dimensão formal positiva, como se os valores pudessem ser descartados ou ignorados, ou como se a norma encerrasse em si mesma um objetivo pronto, completo e acabado.” (BRASIL. Tribunal... Consulta..., 2007). O mesmo ministro, cujo voto conduziu a sessão, argumentou que a aplicação de um princípio por um órgão judicial não ultrapassa os limites da ordem jurídica positiva, apenas concretiza normas preexistentes. Admitiu que tanto regras quanto princípios são dotados de normatividade. Reconheceu que estes, como aquelas, podem imediatamente fornecer soluções às controvérsias jurídicas. Confessou que isso atribui ao Poder Judiciário uma importância diversa daquela conferida pela “visão positivista tradicional”. Não precisou, contudo, em que consiste esse diferente papel. (BRASIL. Tribunal... Consulta..., 2007). No que interessa a este trabalho, os fundamentos da Resolução n. 22.256/07 e as razões invocadas nos debates em torno dela são em si significativos. Eles demonstram a confusão da Justiça Eleitoral diante de uma autoproclamada nova hermenêutica (BONAVIDES, 2008), que alega romper com o modelo anterior,

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positivista. Revelam a dificuldade enfrentada por esse ramo judiciário na definição dos limites e, consequentemente, da extensão das funções que tem de desempenhar num paradigma interpretativo supostamente novo.

1.1 Justiça Eleitoral: o desafio da separação de poderes

O fenômeno da judicialização de matérias originalmente legislativas não é uma peculiaridade do Brasil nem está limitado aos órgãos judiciais encarregados do controle das eleições. Há de admitir que o Poder Judiciário do País se esforça para acompanhar uma tendência percebida em boa parte do Ocidente. Nos Estados Unidos da América (EUA), por exemplo, a Suprema Corte decidiu, já na década de 1960, que uma matéria até então reconhecida como tipicamente política – a ordenação dos distritos eleitorais – sujeitava-se à revisão judicial. Poucos anos depois, declarou o caráter normativo do princípio da igualdade de participação democrática, “um homem, um voto”. Então, por meio dele, operou a reforma de toda a estrutura distrital norte-americana. (RODRIGUES, 1991). Mais recentemente, em 3/3/09, na Alemanha, a Corte Constitucional reconheceu que a publicidade dos atos de controle do processo eleitoral é um princípio do Estado alemão, e, em obediência a ele, impediu a implantação do sistema eletrônico de votação no país (ALEMANHA, 2009): O princípio da natureza pública das eleições, que emerge do art. 38 em conjunção com o art. 20.1 e 20.2 da Lei Maior (Grundgesetz – GG) exige que todos os passos essenciais nas eleições estejam sujeitos a exame público, a menos que outros interesses constitucionais justifiquem uma exceção. Quando as máquinas eletrônicas de votação estiverem preparadas para uso, deve ser possível aos cidadãos checar os passos essenciais no ato da votação e na apuração dos resultados, com segurança e sem o conhecimento especial de um perito. (ALEMANHA, 2009, tradução nossa).

No entanto, dada a necessidade de restringir o universo de investigação, a Justiça Eleitoral brasileira se mostra um interessante objeto de análise. A instituição guarda características que parecem contribuir para as acusações de judicialização da política contra ela dirigidas. Primeiro, porque a própria esfera de disputa político-partidária e os agentes e condutas nela situados são o objeto das deliberações desse órgão, o que, em si, torna problemático separar a jurisdição

27

eleitoral da política. E, segundo, porque juízes e Tribunais eleitorais não detêm somente atribuições de natureza jurisdicional, mas também administrativas em sentido amplo, muito semelhantes às atribuídas a agentes políticos típicos, imbuídos de funções executivas6 – e não se pode dizer que o exercício da jurisdição seja a única atividade fim desse ramo judiciário. As duas particularidades devem ser enfrentadas por quem se propõe a debruçar sobre o fenômeno da judicialização da política a partir da análise da atuação desse órgão judicial num caso específico. A premissa de que a CRF/88 e a legislação atribuem a essa Justiça especializada

a

competência

para

submeter

à

jurisdição

questões

que

reconhecidamente pertencem à competição partidária ameaça a posição segura da maioria dos críticos. Já de início, derruba a retórica simplista que alega faltar ao Poder Judiciário legitimidade para enfrentar conflitos políticos. Permite que se problematize o pressuposto amplamente difundido, mas inquestionado, de que é possível diferenciar a função legislativa da jurisdicional, com relativa facilidade, sem enfrentar a natureza política de ambas. Já a segunda premissa, de que são atribuídas à Justiça Eleitoral funções não jurisdicionais, torna inservíveis os argumentos formalistas em favor da separação de poderes. Exige critérios materiais para a distinção das funções. Demonstra que é um erro inferir que toda decisão judicial seja jurisdicional. Mostra que os juízes eleitorais exercem atribuições semelhantes às dos outros Poderes, tradicionalmente vistas como políticas. Levanta dúvidas acerca do caráter intrinsecamente apolítico da jurisdição e da efetividade dos efeitos despolitizantes das garantias institucionais da magistratura. O exame de ambas as especificidades será útil para: a) identificar a concepção7 de política que subjaz à tradicional doutrina de separação de poderes;

6

Como se verá na seção 3, segundo a recente jurisprudência do STF, a instituição detém também competência legislativa extraordinária. 7 Usam-se os termos “conceito” e “concepção” no sentido proposto por Dworkin (2007a). Para diferenciar as expressões, o autor parte da imagem de uma árvore. “Em termos gerais, as pessoas concordam com as proposições mais genéricas e abstratas [...] que formam o tronco da árvore, mas divergem quanto aos refinamentos mais concretos ou as subinterpretações dessas proposições abstratas, quanto aos galhos da árvore.” (DWORKIN, 2007a, p. 86). Um conceito equivaleria ao tronco da planta. Ele funciona “[...] tanto nos debates públicos quanto nas reflexões privadas, como uma espécie de patamar sobre o qual se formariam novos pensamentos e debates.” (DWORKIN, 2007a, p. 87). Alguém que negue algum aspecto constitutivo desse tronco comum se coloca “[...] à margem do discurso útil, ou pelo menos habitual sobre a instituição.” (DWORKIN, 2007a, p. 87). É possível, no entanto, partir do patamar compartilhado para propor uma interpretação da árvore como

28

b) negar a visão amplamente difundida de que a atividade jurisdicional não é política, pelo menos no sentido identificado na alínea anterior; e c) propor um conceito de jurisdição que permita diferenciar o exercício jurisdicional legítimo do ilegítimo. Em relação ao primeiro objetivo, interessa aqui a constatação de que a doutrina majoritária evita a todo custo problematizar as duas premissas – tanto a da multiplicidade de funções confiadas aos juízos eleitorais quanto a da dificuldade de separação entre política e jurisdição eleitoral – porque parte da tradicional concepção de repartição de poderes, que, como se quer demonstrar, é positivista. Denomina-se “juspositivismo” o conjunto de doutrinas segundo as quais os juízes não criam Direito. Apenas retiram o envoltório e expõem a lei aos olhos de todos. Embora não se encontre aceitação para essa versão extremada nem na teoria de Kelsen (2009) nem na definição de Positivismo Jurídico de Bobbio (2006), dois autores que muito influenciaram a formação dos juristas brasileiros, e ainda que, segundo Cardozo (2004, p. 91), “[...] ninguém, desde os tempos de Bentham e Austin, tenha aceito essa teoria sem dedução ou reserva [...]”, percebem-se, “[...] em decisões atuais, vestígios de sua prolongada influência.” (CARDOZO, 2004, p. 91). O modelo brasileiro de distribuição de funções intraestatais deve muito a tal concepção positivista. Ela foi determinante para a organização das estruturas judiciárias encarregadas do controle da legitimidade das eleições. Esses sistemas de verificação do cumprimento das condições para posse do mandato, criados pelas democracias representativas modernas, constituem mecanismos destinados a garantir a moralidade do processo eleitoral e a imparcialidade na interpretação de suas regras. Os modelos variam conforme a composição dos órgãos responsáveis pelo controle. No País, desde o Decreto n. 21.076, de 1932 (BRASIL, 1932), recepcionado pela Constituição de 1934 (BRASIL, 1934), a função foi atribuída à Justiça Eleitoral. A criação dessa estrutura judiciária especializada implicou o abandono do sistema anterior, que vigorava desde a Carta Imperial de 1824 (BRASIL, 1824) e encarregava o Poder Legislativo, diretamente interessado no resultado das disputas,

um todo diversa de outras interpretações anteriores. Nesse caso, trata-se de uma concepção, que Dworkin (2007a) associa à imagem de um galho. Portanto, “O contraste entre conceito e concepção é aqui um contraste entre níveis de abstração nos quais se pode estudar a interpretação da prática. No primeiro nível, o acordo tem por base idéias distintas que são incontestavelmente utilizadas em

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da nomeação e da verificação dos poderes dos próprios membros. Encaradas como instâncias neutras de solução das demandas decorrentes das eleições, as cortes eleitorais acumularam, ao longo do século XX, poderes os mais variados. Tornaramse responsáveis não apenas por verificar a regularidade do pleito, mas também por conduzir o próprio processo eleitoral, regulamentar as leis que o regem e formular respostas a consultas sobre a interpretação de tais normas. (RIBEIRO, 2000). E não se notam vestígios do Positivismo apenas na organização política. Podem-se percebê-los também na jurisprudência. As decisões judiciais, muito frequentemente, tomam como reconhecida a natureza mecânica que, os positivistas insistem em afirmar, é intrínseca à jurisdição. Negar o caráter apolítico do exercício jurisdicional diz respeito ao segundo objetivo desta pesquisa. Para tanto, pretende-se demonstrar que as denúncias de abuso de poder formuladas pelos agentes políticos que se sentem prejudicados pelos julgados eleitorais partem da visão que muitos juízes têm da atividade que exercem. Os acusadores põem em xeque a crença da mecanicidade da decisão judicial e da absoluta neutralidade política do Poder Judiciário. Tal ideia foi predominante no passado, mas é ainda percebida nos julgados produzidos no âmbito do controle das eleições. Não bastasse a desconfiança acerca da verdadeira natureza da jurisdição, há o desconforto causado pelas demais funções da Justiça Eleitoral. É conhecido o argumento de que a neutralidade judicial se assegura, em parte, por uma série de garantias formais, típicas do Poder Judiciário como um todo ou específicas dos juízos eleitorais. Contra essa afirmação, porém, sustenta-se que a organização das eleições, a regulamentação legal e a resposta a consultas são atividades predominantemente não jurisdicionais confiadas a esse corpo de juízes. Pois as decisões tomadas no exercício de tais funções pouco diferem em substância dos atos praticados por membros dos demais Poderes, embora os magistrados não gozem da mesma legitimação destes, uma vez que não são eleitos. Se a ideia positivista de neutralidade é indissociável do modo como normalmente se concebe a jurisdição, mas insuficiente para responder às acusações de judicialização da política, faz-se necessária uma nova concepção da atividade jurisdicional. Tal é o objetivo desta pesquisa mencionado na alínea “c” desta todas as interpretações; no segundo, a controvérsia latente nessa abstração é identificada e assumida.” (DWORKIN, 2007a, p. 87).

30

subseção. A doutrina contemporânea é pródiga em oferecer teorias nesse sentido, comumente reunidas sob o título de “pós-Positivismo” ou “nova hermenêutica” (BONAVIDES, 2008). Durante o século XX, as ciências políticas e jurídicas reconheceram abertamente o caráter político (SCHMITT, 2007a), decisório (SCHMITT, 2007a) e criativo (DWORKIN, 2007b) de toda sentença ou acórdão, independentemente da atitude ativista dos magistrados que os proferem. Pensadores que, para contrariar esse fato, apelem hoje a teorias positivistas como a do silogismo (BECCARIA, 2005), serão por certo acusados de ingenuidade. Essa mudança acerca da compreensão

da

natureza

da

atividade

jurisdicional

é

inseparável

do

desenvolvimento do novo paradigma interpretativo, que afirma a normatividade dos princípios constitucionais. Entre os autores que se destacam em percebê-la, Ronald Dworkin (2007a, 2007b) oferece a concepção mais adequada para, coerentemente, responder às questões levantadas pelas duas premissas e conduzir ao alcance dos objetivos propostos. Eis por que o adotamos como marco teórico da investigação. É fato que a comunidade jurídica brasileira não permaneceu alheia à mudança de paradigma. Pelo menos desde a década de 1990, a jurisprudência do País reconhece a importância dos novos teóricos e vem demonstrando clara intenção de incorporar elementos do pós-Positivismo. Ainda assim, o Poder Judiciário nacional continua enfrentando as acusações de judicialização da política contra ele dirigidas negando o caráter político da jurisdição. É notória a recusa da Justiça Eleitoral em admitir a natureza das atividades que exerce, não obstante o crescente impacto da participação dos órgãos judiciários eleitorais na conformação do cenário político-partidário nacional. Tal negação se torna problemática se confrontada com os mais recentes julgados eleitorais, especialmente os que se referem a casos polêmicos, como o da infidelidade partidária. Os acórdãos, notadamente do TSE, apelam frequentemente ao aspecto axiológico da nova hermenêutica, que reconhece o caráter normativo dos princípios (DWORKIN, 2007b). Os ministros, quando votam, declaram rechaçar a perspectiva tradicional, positivista. Mas o fazem sem enfrentar os impactos que o reconhecimento da normatividade dos princípios traz para a concepção dominante da jurisdição e do papel dos órgãos encarregados de aplicá-la. Os julgadores parecem desconhecer que as doutrinas pós-positivistas fizeram acompanhar a afirmação de que princípios são normas (DWORKIN, 2007b)

31

da formulação de critérios de interpretação que limitam ou, ao menos, expõem à critica o decisionismo judicial. Se é certo que os métodos variam de autor para autor conforme as exigências de coerência do sistema sobre o qual serão aplicados, é correto também ser impensável a ausência de tais técnicas de aplicação. Afinal, como não se concebem normas isoladas, mas um sistema jurídico em que elas interagem entre si, faz-se necessário, ao menos, explicar como ocorrem tais interações entre princípios e entre princípios e regras.8 Não se nota, nem de longe, semelhante esforço de sistematização nos recentes acórdãos da Justiça Eleitoral.

1.2 Infidelidade partidária: um caso sintomático

Já se mencionara que o processo de tipificação da infidelidade partidária (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007) representou notável mudança na jurisprudência do TSE. Expusera-se sucintamente que ele: a) trouxe para a Justiça Eleitoral matéria tipicamente atribuída à Justiça Comum – antes, era entendimento firme do TSE9, aceito pelo STF (BRASIL. Supremo..., 1989), que não competia aos Tribunais e juízes eleitorais o julgamento das hipóteses de perda de mandato por fato posterior à diplomação do candidato eleito; b) estabeleceu como causa de perda de mandato a desfiliação partidária do deputado – até então, predominava o entendimento de que a CRF/88 não apenas não previra tal hipótese como não havia recepcionado as normas infraconstitucionais que o faziam (BRASIL. Tribunal... Resolução..., 1991; BRASIL, 1996); e

8

Além de Dworkin (2007b), cuja doutrina fundamenta este trabalho, poder-se-ia adotar, como um reconhecido expoente da nova hermenêutica, Alexy (2008) – embora, neste caso, a análise dos julgados do TSE certamente conduzisse a resultados diversos dos obtidos. Na obra Teoria dos direitos fundamentais, o autor alemão concebe, como técnica de aplicação de normas com elevado grau de abstração, um complexo sistema de sopesamentos que não pode ser separado da noção de princípios por ele proposta. 9 A jurisprudência do TSE a respeito da incompetência da Justiça Eleitoral para cominar a perda de mandato por ato praticado após a diplomação era até então pacífica. Considerava-se sê-lo “[...] tema pertinente ao direito constitucional, federal ou estadual, que ultrapassa os limites do direito eleitoral, pois este cessa com a diplomação dos eleitos [...]” (BRASIL... Consulta..., 1991). Entendia-se ter a CRF/88 atribuído à Justiça Comum – e ao Supremo Tribunal Federal (STF) – a competência para

32

c) fundamentou-se numa norma que não constitui regra expressa na CRF/88 nem na legislação. Resta então justificar por que a análise dessa decisão pode contribuir para os resultados desta pesquisa. Esclarece-se que, não obstante sejam relevantes as duas primeiras razões, interessa de início a terceira. Como fundamento de seu paradigmático acórdão, o TSE conscientemente adotou, em detrimento de regras, normas com elevado grau de abstração. Primeiro, deduziu do sistema de representação proporcional o princípio da fidelidade partidária, que considerou implícito na CRF/88. Em seguida, aplicou o padrão recém-deduzido no caso sob análise, para solucioná-lo. Ao fazê-lo, deu nova interpretação a textos legais, afirmou a existência de uma norma até então desconhecida e definiu o sentido concreto do enunciado normativo que, na mesma oportunidade, foi estabelecido. Os seguintes trechos do voto do relator, ministro Asfor Rocha, são claros quanto à nova postura hermenêutica adotada pela corte: Creio que o tempo presente é o da afirmação da prevalência dos princípios constitucionais sobre as normas de organização dos Partidos Políticos [...]. [...] o julgamento desta Consulta traz à tona a sempre necessária revisão da chamada teoria estruturalista do Direito [...]. Com efeito, as exigências da teoria jurídica contemporânea buscam compreender o ordenamento juspositivo na sua feição funcionalista [...], no esforço de compreender, sobretudo, as finalidades (teleologias) das normas e do próprio ordenamento. Ouso afirmar que a teoria funcionalista do Direito evita que o intérprete caia na tentação de conhecer o sistema jurídico apenas pelas suas normas, excluindo-se dele a sua função, empobrecendo-o quase até à miséria; recuso, portanto, a postura simplificadora do Direito e penso que a parte mais significativa do fenômeno jurídico é mesmo a apresentada no quadro axiológico. (BRASIL. Tribunal... Consulta..., 2007, grifo nosso).

Noutra passagem, Rocha reconheceu que admitir que “[...] as normas compreendem as regras e os princípios e, portanto, [que] estes são também imediatamente fornecedores de soluções às controvérsias jurídicas [...]” implica atribuir ao Poder Judiciário uma importância diversa daquela conferida pela “[...] visão positivista tradicional, certamente equivocada [...]” (BRASIL. Tribunal... Consulta..., 2007): Outro ponto relevante que importa frisar é o papel das Cortes de Justiça no desenvolvimento da tarefa de contribuir para o conhecimento dos aspectos axiológicos do Direito, abandonando-se a visão positivista tradicional, certamente equivocada, de só considerar dotadas de força normativa as regulações normatizadas; essa visão, ainda tão arraigada tratar das hipóteses de perda de mandato que não se devesse a fatos ocorridos durante o processo eleitoral, que se finda com a diplomação dos eleitos (BRASIL. Tribunal..., 1997).

33 entre nós, deixa de apreender os sentidos finalísticos do Direito e de certo modo desterra a legitimidade da reflexão judicial para a formação do pensamento jurídico. (BRASIL. Tribunal... Consulta..., 2007, grifo nosso).

A leitura dos trechos da decisão reproduzidos permite inferir dois problemas. O primeiro, facilmente perceptível, diz respeito ao diferente papel dos órgãos jurisdicionais exigido pela nova hermenêutica. Embora se constate que o Poder Judiciário tem, no Estado contemporâneo, “uma importância diversa” daquela a ele atribuída no passado, não se esclarece em que ela consiste. Permanece sem resposta como os juízes devem “[...] contribuir para o conhecimento dos aspectos axiológicos do Direito [...]”, e o que significa, na prática, abandonar “[...] a visão positivista tradicional [...]” (BRASIL. Tribunal... Consulta..., 2007). O segundo problema decorre do uso não sistemático dos conceitos básicos da nova hermenêutica: normas (gênero) e princípios e regras (espécies) (DWORKIN, 2007b). Se a afirmação categórica da normatividade dos princípios é o traço distintivo do novo paradigma interpretativo que o TSE afirma adotar, importa reconhecer que são, no mínimo, descuidadas as frequentes menções à expressão “normas” como sinônimo perfeito de “regras”. Isso ocorre, por exemplo, na passagem: “[...] a teoria funcionalista do Direito evita que o intérprete caia na tentação de conhecer o sistema jurídico apenas pelas suas normas, excluindo-se dele a sua função, empobrecendo-o quase até à miséria [...]” (BRASIL. Tribunal... Consulta..., 2007). Tal assistematismo, porém, não gera graves consequências. A menos que não se trate de descuido, e sim do uso intencional e preciso do termo, como gênero que abrange princípios e regras. Todavia, admitir esta hipótese, a ser analisada na subseção 5.3, seria considerar que, naquela decisão, o ministro confessara deixar de aplicar o Direito. Supondo a boa-fé dos julgadores, não há motivo para crer que o fazia. Como se vê, os fundamentos da resposta à Consulta n. 1.398 e as razões expostas no debate que a precedeu são relevantes para ilustrar a suposta mudança de

paradigma

hermenêutico

do

TSE.



de

considerar,

porém,

que,

independentemente do resultado, a decisão, por si mesma, não seria apta a alterar o repertório jurídico positivo. É cediço na jurisprudência que as resoluções expedidas

34

pelas cortes eleitorais em resposta a consultas não têm força normativa.10 Não são vinculantes nem dotadas de imperatividade. Não há, portanto, obrigatoriedade de que sejam seguidas por outros órgãos estatais, judiciais ou não, nem pelo próprio TSE, em decisões futuras: Mandado de segurança. Ato. Tribunal Superior Eleitoral. Res.-TSE nº 22.585/2007. Resposta. Consulta nº 1.428. Não-cabimento. 1. Conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal (Recurso em Mandado de Segurança nº 21.185/DF, rel. Min. Moreira Alves, de 14.12.1990), a resposta dada a consulta em matéria eleitoral não tem natureza jurisdicional, mas, no caso, é ato normativo em tese, sem efeitos concretos, por se tratar de orientação sem força executiva com referência a situação jurídica de qualquer pessoa em particular. 2. Esta Corte Superior, em casos similares, já assentou que não cabe mandado de segurança contra pronunciamento de Tribunal em sede de consulta. Agravo regimental a que se nega provimento. (BRASIL. Tribunal..., 2008, grifo nosso).

O princípio da infidelidade partidária só ganhou efetivo status de norma a partir do acórdão proferido pelo STF no Mandado de Segurança (MS) n. 26.602, em 2007. Naquela sessão, julgaram-se os MS n. 26.602, 26.603 e 26.604, impetrados, respectivamente, pelo Partido Popular Socialista (PPS), pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e pelo Democratas (DEM). As agremiações se levantavam contra a decisão do presidente da Câmara dos Deputados, que havia indeferido uma petição administrativa por elas formulada. No requerimento, pleiteavam se declarasse, com base na Resolução TSE n. 22.526/07, a vacância do cargo de três deputados federais que haviam mudado de filiação, dois deles antes e um depois da decisão eleitoral. Os impetrantes alegaram que os partidos políticos possuem o direito líquido e certo de manter as vagas por eles conquistadas em eleições proporcionais no caso de desfiliação dos parlamentares que as preenchem. A ementa do julgado é esclarecedora quanto ao decidido pelo STF: 1. Mandado de segurança conhecido, ressalvado entendimento do Relator, no sentido de que as hipóteses de perda de mandato parlamentar, taxativamente previstas no texto constitucional, reclamam decisão do Plenário ou da Mesa Diretora, não do Presidente da Casa, isoladamente e 10

É vasta a jurisprudência nesse sentido. Além do acórdão citado no texto, menciona-se: “Nota-se claramente que a presente consulta foi formulada com base em caso concreto, e não em tese. Transcrevo lição do eminente Ministro Torquato Jardim: ‘Consultar em tese é descrever situação, estado ou circunstância genérica o bastante para (a) tal qual a norma jurídica, admitir-se provável sua repetição sucessiva e despersonalizada, e (b) revelar-se a dúvida razoável e genuína em face de lacuna ou obscuridade legislativa ou jurisprudencial, porém, jamais, antecipação de julgamento judicial ou supressão de instância. (...) O Supremo Tribunal Federal assentou que 'a consulta em matéria eleitoral não tem natureza jurisdicional (...) é ato normativo em tese sem efeitos concretos por se tratar de orientação sem força executiva com referência à situação jurídica de qualquer pessoa em particular'. (...) As respostas às consultas refletem recomendação, um entendimento prévio posto em situação abstrata, porquanto não se respondem a casos concretos (...).’ (DIREITO ELEITORAL POSITIVO, ed. Brasília Jurídica, 1996, p. 150 e 151).” (BRASIL, 2004, grifo nosso).

35 com fundamento em decisão do Tribunal Superior Eleitoral. 2. A permanência do parlamentar no partido político pelo qual se elegeu é imprescindível para a manutenção da representatividade partidária do próprio mandato. Daí a alteração da jurisprudência do Tribunal, a fim de que a fidelidade do parlamentar perdure após a posse no cargo eletivo. 3. O instituto da fidelidade partidária, vinculando o candidato eleito ao partido, passou a vigorar a partir da resposta do Tribunal Superior Eleitoral à Consulta n. 1.398, em 27 de março de 2007. 4. O abandono de legenda enseja a extinção do mandato do parlamentar, ressalvadas situações específicas, tais como mudanças na ideologia do partido ou perseguições políticas, a serem definidas e apreciadas caso a caso pelo Tribunal Superior Eleitoral. 5. Os parlamentares litisconsortes passivos no presente mandado de segurança mudaram de partido antes da resposta do Tribunal Superior Eleitoral. Ordem denegada. (BRASIL. Supremo..., 2007, grifo nosso).

Novamente, durante os debates, suscitaram-se questões referentes à nova hermenêutica e ao papel do julgador que a aplica. O ministro Eros Grau, relator do MS n. 26.604, afirmou em seu voto que a hipótese de perda de mandato arguída pelos impetrantes não está prevista expressamente na CRF/88 – “[...] o artigo 55 da Constituição não trata dela [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007). Diante da ausência textual, entendeu que a declaração da existência de tal norma implicaria um juízo político amparado somente em concepções pessoais, não em padrões públicos: Não vejo como, na qualidade de guardião da Constituição, este Tribunal conceder a segurança. Não vejo também como transformarmos o mandado de segurança em ação declaratória para o feito de, obter dictum ou não, dizer aquilo que eu gostaria de dizer enquanto cidadão, que a filiação partidária é conveniente etc. não, essa não é a nossa função aqui. Estou inteiramente convicto de que, infelizmente – digo-o agora como cidadão –, o instituto da fidelidade partidária não foi contemplado a este ponto. E eu devo cumprir a Constituição. Meu compromisso é com a Constituição. Não posso ir além do que ela me autoriza a ir, porque só tenho legitimidade para me manter dentro dos seus limites, interpretando-a nos limites do texto. (BRASIL. Supremo..., 2007, grifo nosso).

O ministro ainda acusou o impetrante de tentar levar o STF a legislar: Resulta bem nítido, aliás, o desígnio nutrido pelo impetrante, no sentido de que o Supremo Tribunal Federal crie, por via oblíqua, hipótese de perda de mandato parlamentar não prevista no texto constitucional. Pretende transformar este Tribunal em legislador, trilhando a estreita via do mandado de segurança. (BRASIL. Supremo..., 2007, grifo nosso).

E “desafiadoramente”, segundo ele próprio definiu, lançou aos demais membros da corte uma pergunta: [...] onde está escrito, na Constituição ou em qualquer lei, que o cancelamento de filiação partidária ou a transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda consubstancia renúncia tácita? Onde está escrito isso no direito posto, como diz o Ministro Marco Aurélio? (BRASIL. Supremo..., 2007).

36

O ministro Menezes Direito, que votou em seguida, não respondeu à provocação, como não o fez nenhum dos demais votantes. Ficou a cargo do ministro Gilmar Mendes oferecer um contra-argumento a ela, sem, no entanto, respondê-la diretamente: “Pergunto: a inexistência de dispositivo normativo expresso – ou, explicando melhor, a ausência de texto – pode ser razão única para a conclusão, muitas vezes apodítica, sobre a inexistência de determinada norma no ordenamento jurídico?” (BRASIL. Supremo..., 2007). Para Mendes, a decisão do TSE na Consulta n. 1.398, “[...] baseada nos princípios da democracia, da representação proporcional, do pluralismo político e da fidelidade partidária [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007), promoveu uma releitura do sistema representativo na CRF/88 e tornou “imperiosa” a revisão da jurisprudência do STF, que se mostrou inadequada diante da “[...] realidade partidária observada no Brasil, no último decênio.” (BRASIL. Supremo..., 2007). O ministro afirmou tratarse de um caso “[...] em que se altera jurisprudência longamente adotada pela Corte [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007) em decorrência de uma nova interpretação do texto constitucional. Com base nessas declarações, pode-se argumentar que a decisão do STF no MS n. 26.602/07 não deveria causar estranheza. Tratar-se-ia de um caso típico de alteração jurisprudencial, sinalizada em diversos julgamentos, e não somente necessária, mas também desejável, demonstrada a inadequação da interpretação prévia. De fato, nunca existira unanimidade quanto ao entendimento anteriormente predominante, da impossibilidade de cominação da perda do mandato ao deputado que deixa o partido de origem (BRASIL. Supremo..., 1989). Ademais, coerentemente, não há, nas recentes decisões do STF e do TSE, passagem em que não se considere a migração partidária algo prejudicial ao sistema político brasileiro. A

mudança

da

perspectiva

dominante

se

deveu

muito

ao

descontentamento da opinião pública com a organização política nacional, após sucessivos escândalos envolvendo partidos e autoridades eletivas. Não por acaso, a decisão do TSE consubstanciada na Resolução n. 22.526/07 ocorreu logo após as denúncias do denominado “Mensalão”, em que membros da cúpula do Governo Federal foram acusados de usar doações de campanha recebidas de empresas estatais para negociar o apoio de pequenas legendas (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008). A literatura política, porém, não é unânime em condenar “[...] a migração como uma

37

prática que provoque efeitos negativos sobre os partidos ou sobre a qualidade da representação política [...]” (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 192). Ainda que seja controversa a efetividade da medida adotada pelo Poder Judiciário para moralizar a arena política, esses são argumentos a favor ou contra o acerto da decisão. Nada dizem sobre a legitimidade do acórdão do STF – que as acusações de judicialização da política questionam – e a possibilidade de que nele se tenha cometido abuso no exercício jurisdicional. Pois o assombro gerado pela decisão não tem causa na reforma política supostamente promovida nem no impacto gerado sobre a competição partidária. “Não se trata de avaliar os benefícios da fidelidade partidária nos termos [em] que foram colocados, mas de avaliar como foram colocados.” (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 186). O espanto envolve a prévia atuação jurisdicional do STF em outros julgados e o modo como se exerceu a jurisdição no caso. Em relação a este, há que analisar tanto o dispositivo quanto os fundamentos do acórdão.11 Quanto à atuação prévia do STF, para Ferraz Júnior (V., 2008), o Tribunal incentivou a judicialização da demanda, ao adiantar em dois julgamentos anteriores – no MS n. 23.405 (BRASIL. Supremo..., 2004) e na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 1.351/06 (BRASIL, 2006) – como decidiria uma nova ação eventualmente formulada sobre a matéria. De fato, em 2004 o STF apreciou o MS n. 23.405, em que o impetrante pleiteava o reconhecimento de que a permanência do parlamentar no mandato depende da manutenção da filiação partidária. Naquela oportunidade, o relator, ministro Gilmar Mendes, julgou prejudicada a demanda. Argumentou que, encerrada a legislatura a que se referia a controvérsia, e renovada a ocupação das cadeiras da Câmara, a decisão não produziria efeitos, independentemente do que se decidisse. Ao Tribunal, cumpria, portanto, declarar a perda do objeto da ação, sem enfrentar o pedido do autor. Contudo, a ementa e o voto condutor fizeram menção ao mérito da causa e expuseram posição diversa da que se adotaria três anos depois (BRASIL. Supremo..., 2004):

11

Segundo o inciso II do art. 458 do Código de Processo Civil (CPC), os fundamentos da decisão constituem-se da análise das questões de fato e de direito envolvidas no caso. Já nos termos do inciso III do mesmo artigo, o dispositivo é a parte propriamente decisória da sentença, a resolução das questões submetidas a juízo pelas partes. O art. 165 da mencionada lei dispõe que os fundamentos e o dispositivo são requisitos essenciais do acórdão, juntamente com o relatório – o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo. (BRASIL, 1973).

38 EMENTA: Mandado de Segurança. 2. Eleitoral. Possibilidade de perda de mandato parlamentar. 3. Princípio da fidelidade partidária. Inaplicabilidade. Hipótese não colocada entre as causas de perda de mandato a que alude o art. 55 da Constituição. 4. Controvérsia que se refere a Legislatura encerrada. Perda de objeto. 5. Mandado de Segurança julgado prejudicado. (BRASIL. Supremo..., 2004, grifo nosso).

A decisão basicamente repetiu a jurisprudência, então dominante, da inexistência, no ordenamento jurídico, de texto normativo expresso que prescreva a sanção de perda do mandato ao deputado que deixa a legenda pela qual foi eleito. Da ementa, fez-se constar que o princípio da infidelidade partidária não fora recepcionado pela CRF/88, na medida em que não se encontra regra nesse sentido entre os incisos do art. 55, que constituem um rol taxativo das hipóteses constitucionalmente admitidas de perda do mandato parlamentar.12 Não obstante tais considerações constassem do julgado, e não se negasse serem elas a resposta do ordenamento jurídico à questão, o voto de Mendes deixou transparecer, ao manifestar sobre o mérito do MS, a opinião pessoal do ministro acerca dos efeitos negativos da recorrente troca de partido praticada pelos mandatários proporcionais: Embora a troca de partidos por parlamentares eleitos sob regime da proporcionalidade revele-se extremamente negativa para o desenvolvimento e continuidade do sistema eleitoral e do próprio sistema democrático, é certo que a Constituição não fornece elementos para que se provoque o resultado pretendido pelo requerente. (BRASIL. Supremo..., 2004, grifo nosso).

Cerca de dois anos depois, no julgamento da ADI n. 1.351, de 2006, o ministro, novamente relator, deu sinais de que a jurisprudência até então consolidada viria a sofrer modificações. O objeto da ADI era a Lei n. 9.096, de 19 de setembro de 1995. Ao manifestar-se sobre o caso, porém, Mendes foi “[...] um pouco além da questão posta [...]” (BRASIL, 2006) – como ele mesmo reconheceu – e voltou a tornar público o que pensava sobre a infidelidade partidária. A ação questionava a constitucionalidade da norma federal que previa a adoção do número de votos obtidos por cada partido como critério para reduzir o tempo de propaganda gratuita das legendas menores e a participação delas no rateio do Fundo Partidário.

12

Dispõe o art. 55 da CRF/88: “Perderá o mandato o Deputado ou Senador: I - que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior; II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar; III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada; IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição; VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.” (BRASIL, 1988).

39

O voto do ministro, contudo, avançou sobre os temas da mudança partidária e das consequências dela para o funcionamento do sistema proporcional brasileiro: O nosso sistema proporcional, consagrado a partir de 1932, vem dando sinais de alguma exaustão. A crise política que aí está bem o demonstra. E acredito que nós aqui estamos inclusive desafiados a repensar esse modelo a partir da própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – e vou um pouco além da questão posta neste voto, neste caso: talvez estejamos desafiados a pensar inclusive sobre a conseqüência da mudança de legenda por aqueles que obtiveram o mandato no sistema proporcional. [...] É preciso pensar isso com seriedade. Se olharmos, então, essa questão nessa perspectiva, tenho a impressão de que vai chegar o momento e talvez, ainda nessa legislatura, devêssemos rever aquela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que consagrou o entendimento segundo o qual a infidelidade partidária não teria repercussão sobre o mandato exercido. (BRASIL, 2006, grifo nosso).

A despeito dos protestos do ministro Eros Grau, que chegou a afirmar, “Acho que nós estamos saindo do assunto [...]” (BRASIL, 2006), e do deliberado reconhecimento do relator de que a matéria extrapolava o objeto da ADI sob análise – “Estamos saindo conscientemente [do assunto], neste caso, por conta da discussão que se coloca [...]” (BRASIL, 2006) –, Mendes continuou a argumentar em favor de uma revisão da jurisprudência sobre a infidelidade partidária: Se considerarmos a exigência da filiação partidária como condição de elegibilidade e a participação do voto de legenda na eleição do candidato, tendo em vista o modelo eleitoral proporcional adotado para as eleições parlamentares, essa orientação que admite não haver reflexo no mandato quanto à opção por uma nova agremiação partidária afigura-se amplamente questionável. Assim, ressalvadas as situações específicas decorrentes de ruptura de compromissos programáticos por parte da agremiação ou outra situação de igual significado, a meu ver, o abandono de legenda deveria dar ensejo à perda de mandato. (BRASIL, 2006, grifo nosso).

Dessa forma, os interessados foram provocados a novamente submeter a juízo a questão da infidelidade partidária. As declarações do ministro Gilmar Mendes no MS n. 23.405, de 2004, e na ADI n. 1.351, de 2006, sinalizaram que o Judiciário recepcionaria uma demanda eventualmente formulada nesse sentido. O PFL aceitou a provocação e acionou o TSE por meio da Consulta n. 1.398, de 2007. O partido era então membro da coligação que se opunha ao Governo Federal, e havia sido fortemente prejudicado pela migração partidária ocorrida entre 2002 e 2006.13 A 13

Nas eleições gerais de 2002, compunham originalmente a coligação vitoriosa os partidos PT, PCB, PCdoB, PMN e PL. Uma vez eleito o candidato a presidente da República, o PTB foi atraído para a base governista. Essas legendas foram quantitativamente beneficiadas pela migração partidária no período do mandato presidencial (2002-2006). (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008). “Entre a data das eleições, outubro de 2002, e a data da posse, fevereiro de 2003, 15 parlamentares ingressaram no PTB e oito no PL. Ao longo do primeiro semestre do novo governo, o PTB e o PL continuaram a receber parlamentares. O primeiro aumentou sua bancada em 130%, ocupando 11,7% das vagas. Já o segundo teve um crescimento de 89% entre as eleições e agosto de 2003, ficando com 9,55%

40

resposta da Justiça Eleitoral, a Resolução n. 22.526/07, deu-se conforme sinalizara o STF. (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008).

1.3 Com que legitimidade?

A atuação do STF anterior ao MS n. 26.602/07 é suficiente para que muitos juristas e cientistas políticos deem por encerrada a discussão acerca da judicialização da política. O incentivo explícito à submissão da demanda a juízo, que terminou por provocar uma significativa mudança na jurisprudência da corte, configuraria tão claro exemplo de que os tribunais por vezes exercem papel ativo na contenda política que qualquer argumento em sentido contrário seria evidentemente falso. Entretanto, para a análise que se propõe, o caso mais confunde que ajuda. A doutrina tradicional não nega que haja abuso de poder quando uma autoridade investida em cargo público age sem estar legal e formalmente autorizada a fazê-lo. Os desvios de finalidade – que ocorrem, por exemplo, se o presidente da República expede um mandado de prisão sob a forma de um decreto, ou se o Congresso Nacional se vale de uma lei para sentenciar que determinado indivíduo tem o dever de indenizar outro – são facilmente perceptíveis. Eles decorrem da tipificação negativa da conduta em regras constitucionais e legais ou da não tipificação positiva, nos casos em que se exige autorização normativa expressa. Ainda que os atos praticados nessas situações assumam a aparência de outros formalmente legítimos, sem disposição jurídica autorizativa, o vício de finalidade persiste (CRETELLA JÚNIOR, 1993). E não há norma que autorize o Poder Judiciário a se manifestar sobre matérias não submetidas a juízo e, ao fazê-lo, captar na sociedade as pretensões sobre as quais decidirá – como fazem os agentes políticos. O fato de tê-lo feito em acórdãos não descaracteriza o desvio. O problema para o qual a doutrina positivista não oferece solução é o de abuso no exercício jurisdicional típico. Ele ocorre, por exemplo, se o juiz se excede

das cadeiras na Câmara dos Deputados.” (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 168). Movimento inverso afetou as legendas de oposição PFL e PSDB. “Logo após as eleições, antes mesmo da posse, esses partidos tiveram suas bancadas reduzidas, fenômeno que durou até o final do primeiro semestre do governo Lula. O PFL perdeu 25 parlamentares, e o PSDB, 23. Menos de um ano após

41

ao aplicar a jurisdição e fundamenta uma sentença em critérios não reconhecidos de julgamento, quer públicos, quer privados. Daí por que persistir no exame do processo de reconhecimento do princípio da fidelidade partidária. Retoma-se o acórdão proferido pelo STF no julgamento do MS n. 26.602/07, discutido na subseção anterior. Propõe-se que se desconsiderem os abusos de finalidade que se queira atribuir à atuação dos ministros do STF prévia àquele caso. Tal proposta se revela importante para isolar o conteúdo da decisão e compreender se as críticas feitas à atividade judiciária no caso se dirigem ao exercício abusivo do poder de julgar ou às outras funções judiciais envolvidas. Para autores como Ferraz Júnior (V., 2008, p. 207), a atuação do Judiciário no combate à infidelidade partidária é tão significativa que se pode considerar tê-la inaugurado “[...] uma nova prática na judicialização da competição político-partidária.” No episódio, a Justiça Eleitoral e o STF teriam demonstrado disposição para tratar como uma delegação parlamentar os temas de difícil consenso legislativo que compõem as regras da competição política. A matéria vinha sendo discutida há várias legislaturas. Inúmeros projetos de lei foram apresentados para disciplinar a questão de os parlamentares eleitos pelo sistema proporcional deixarem o partido durante o exercício do mandato, seja por intenção de mero abandono, seja para migrarem para outra legenda. Não obstante, nenhuma das iniciativas legislativas logrou êxito. (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008). A infidelidade partidária foi sempre considerada um dos pontos centrais da reforma política de que o Brasil carece. Já somam mais de uma centena os projetos de lei e de emenda à Constituição que foram propostos na Câmara e no Senado tentando resgatar a previsão constitucional de punição aos mandatários migrantes. Em todas as comissões especiais sobre a reforma política que se formaram no Legislativo nacional nas últimas décadas, o tema sempre ganhou destaque. Hoje, há ainda alguns projetos que tramitam no Congresso desde meados da década de 1990. Contabilizando apenas os que não estavam arquivados no início de 2008, temos 14 PECs tratando do tema: seis de 1995, uma de 1997, três de 1999, uma de 2000 e três de 2007. (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 174-175).

Não resta claro, contudo, a que se dirige a perplexidade dos críticos da atuação do Poder Judiciário no caso. Pois, desconsiderados os eventos anteriores à Consulta n. 1.398/07, a definição das hipóteses de infidelidade partidária envolveu diversos atos judiciais praticados por órgãos judiciários distintos:

as eleições, suas bancadas eram, respectivamente, 30% e 32% menores do que em relação ao resultado eleitoral.” (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 169).

42

a) a Resolução n. 22.526/07 (BRASIL, Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007), emitida pelo TSE em resposta à mencionada consulta e responsável pela afirmação de que, devido à existência do princípio constitucional

da

fidelidade

partidária,

decorrente

do

sistema

representativo proporcional, o mandato pertence ao partido, não ao parlamentar; b) o Acórdão no MS n. 26.602 (BRASIL, Supremo..., 2007), julgado pelo STF, que, nos fundamentos da decisão, confirmou o caráter normativo do princípio e, no dispositivo, decidiu que a validade do novo entendimento retroagiria à data da Resolução n. 22.526/07; c) a Resolução n. 22.610/07 (BRASIL. Tribunal.... Resolução n. 22.610, 2007), emitida pelo TSE a fim de regulamentar a perda do cargo eletivo em virtude da desfiliação; e d) o Acórdão na ADI n. 3.999/08 (BRASIL. Supremo..., 2008), no qual o STF convalidou a Resolução n. 22.610/07. Quanto às alíneas “b” e “c”, causou pasmo a muitos o fato de a decisão do STF no MS n. 26.602/07 ter sido interpretada como se atribuísse ao TSE a competência para editar uma resolução para regular a matéria da infidelidade partidária, ainda que não houvesse lei a respeito e sem que essa conclusão decorresse dos elementos juntados aos autos. Assim votou o ministro Gilmar Mendes naquela sessão: “[...] caberá ao Tribunal Superior Eleitoral editar resolução para regulamentar, por meio de normas materiais e processuais, o tema da extinção dos mandatos decorrentes da mudança de partido [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007). Embora tal delegação de competência ao Tribunal Eleitoral não constasse do dispositivo ou da ementa do acórdão, o STF, no julgamento da ADI n. 3.999, de 2008, reconheceu que ela estava implícita na decisão: 3. O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento dos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604 reconheceu a existência do dever constitucional de observância do princípio da fidelidade partidária. Ressalva do entendimento então manifestado pelo ministro-relator. 4. Não faria sentido a Corte reconhecer a existência de um direito constitucional sem prever um instrumento para assegurá-lo. (BRASIL. Supremo..., 2008).

Eis que, confirmada pelo STF a existência de um princípio constitucional que atribui ao partido a titularidade do mandato proporcional – de forma que o abandono ou a transferência da legenda pela qual se elegera o parlamentar se torna causa necessária da perda do mandato (BRASIL. Supremo..., 2007) –, o TSE editou

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a Resolução n. 22.610, de 25 de outubro de 2007, para “[...] disciplinar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de desfiliação partidária [...]” (BRASIL. Tribunal..., 2007). Contra tal ato pesavam, contudo, suspeitas de tê-lo sido praticado abusivamente, por desrespeito aos limites do poder administrativo regulamentar que detém aquela corte e por não se ter restringido a tratar da perda do mandato obtido em eleições proporcionais. A primeira crítica parte da premissa de que o TSE emite normas com força regulamentar para instruir a execução da legislação, com base no inciso IX do art. 23 do CE: “Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior, [...] expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código [...]” (BRASIL, 1965). Dispor sobre a execução de leis é atividade tipicamente administrativa (MELLO, 2010). Quando o faz, a corte age como autoridade jurígena infralegal. É condição para o exercício dessa competência que os órgãos dela encarregados se detenham a especificar conceitos e procedimentos correlacionados à matéria eleitoral e anteriormente previstos em lei (RIBEIRO, 2000). No caso sob análise, entretanto, elaborou-se uma resolução, um ato administrativo, para regulamentar não a legislação, mas um princípio cuja existência só se reconheceu a partir de uma decisão judicial prévia. Noutras palavras, o que se regulamentou não foi a lei, mas o próprio acórdão do STF, que apelava a um princípio implícito na CRF/88. Ainda assim, ao fazê-lo, o TSE não observou os limites impostos pelos fundamentos que sustentaram o MS n. 26.602. Pois, nele, a perda de mandato estava condicionada a ter sido o parlamentar eleito pelo sistema proporcional (BRASIL, Supremo..., 2007). Tal condição não se repetiu no regulamento, que não previu expressamente a impossibilidade de que as disposições nele contidas incidissem sobre os ocupantes de cargo majoritário. Ao contrário, o art. 1º dispôs genericamente: “O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa.” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.610, 2007). Para muitos juristas e cientistas políticos, ficou demonstrado no caso que a competência para expedir instruções para a execução das leis eleitorais levou a Justiça Eleitoral a atuar na tipificação da infidelidade partidária como instituição eminentemente legislativa. Isso permitiu que, às já não raras acusações de abuso da função jurisdicional dirigidas aos órgãos judiciais, somassem-se as suspeitas de que agira o TSE como legislador extraordinário. O Tribunal não teria apenas

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regulamentado o CE; teria, sim, criado regras que não executam a lei e, diante do silêncio da legislação, trazem conteúdos jurídicos originais e inovam no ordenamento como se fossem autênticos atos legislativos. A percepção de que ali ocorrera exercício da legislação foi confirmada pelo Acórdão na ADI n. 3.999/08 (BRASIL. Supremo..., 2008). Embora na decisão o STF tenha atestado a constitucionalidade do regulamento, o relator, ministro Joaquim Barbosa, cujo voto conduziu a sessão, não deixou de reconhecer o caráter legislativo do ato. Barbosa justificou, porém, a validade da resolução por recebê-la “[...] amparo da extraordinária circunstância de o Supremo Tribunal Federal ter reconhecido a fidelidade partidária como requisito para permanência em cargo eletivo e a ausência expressa de mecanismo destinado a assegurá-lo.” (BRASIL. Supremo..., 2008). Ou, como constou da ementa do julgado: 5. As resoluções impugnadas surgem em contexto excepcional e transitório, tão-somente como mecanismos para salvaguardar a observância da fidelidade partidária enquanto o Poder Legislativo, órgão legitimado para resolver as tensões típicas da matéria, não se pronunciar. 6. São constitucionais as Resoluções 22.610/2007 e 22.733/2008 do Tribunal Superior Eleitoral. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida, mas julgada improcedente. (BRASIL. Supremo..., 2008).

Embora o pronunciamento do STF encerre a discussão jurisprudencial acerca do exercício abusivo do poder regulamentar pelo TSE, ele não esgota os motivos de perplexidade com as decisões das duas cortes sobre a infidelidade partidária. Não se pode presumir que, no próprio julgamento da ADI n. 3.999/08, não tenha havido abuso no exercício da função judicial típica, a jurisdição. Também não se pode supor o mesmo quanto ao MS n. 26.602 (BRASIL, Supremo..., 2007). Há que reconhecer, porém, que a identificação de eventual excesso ou desvio de poder cometido na prestação jurisdicional demanda a análise de um objeto de maior complexidade. Especificamente no caso do acórdão proferido no MS n. 26.602/07 (alínea “b”, acima), a decisão fez apelo a princípios constitucionais para inovar de modo significativo o Direito brasileiro. E a aplicação de normas implícitas com alto grau de abstração usualmente gera protestos. Parte considerável dos intérpretes que partem da perspectiva positivista considerará que esses padrões de julgamento não constituem normas jurídicas. Portanto, não admitirá falar em exercício da jurisdição. Mais adequado, sob esse ponto de vista, seria designar a atividade de legislativa e buscar nas regras dos códigos e da CRF/88 a autorização excepcional para que o

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Poder Judiciário legisle nessa hipótese. Diante da inexistência de uma convenção explícita nesse sentido, fala-se em judicialização abusiva da política. Mesmo entre aqueles que reconhecem o caráter normativo dos princípios, não são menores as chances de controvérsias. Na medida em que o novo sentido atribuído às práticas jurídicas interfere na posição dos que se submetem à norma, aqueles que se sentem prejudicados pelo novo status tendem a manifestar desacordo. A divergência se agrava se a concepção anterior era largamente percebida pelo conjunto de intérpretes como estabelecida, e as críticas a ela constituíam manifestações isoladas, não institucionalizáveis. A situação se torna ainda mais complexa se se leva em consideração a possibilidade de que os recentes acórdãos em matéria eleitoral só aparentemente tenham superado a perspectiva positivista da jurisdição que alegam abandonada. O exame das decisões proferidas no julgamento da infidelidade partidária pode ser útil nesse sentido. Tanto na Consulta n. 1.398, respondida pelo TSE, quanto no MS n. 26.602, julgado pelo STF, mencionaram-se entre os fundamentos da decisão critérios de julgamento que não são regras. Os ministros creem ter superado a velha hermenêutica ao apelar a parâmetros típicos do pós-Positivismo. Todavia, como antecipado na subseção anterior, uma análise mais detida da fundamentação expõe tais decisões à crítica. As cortes parecem ignorar a diferença entre padrões privados e públicos. Mesmo em relação a estes, demonstram desconhecer que nem todos os critérios públicos de decisão são considerados pelos teóricos do novo paradigma interpretativo aptos a amparar uma decisão jurisdicional. Para alguns críticos, há pelo menos uma década, a jurisprudência em matéria eleitoral proveniente do TSE e do STF ilustra um dos aspectos mais perversos da perspectiva positivista. Esses Tribunais, que declaradamente se esforçam para romper o contexto hermenêutico anterior, em verdade, têm, na visão de muitos, conservado o pior dele – e exatamente nas oportunidades em que se dispõem a não o fazer. Diante de um autoproclamado novo modelo interpretativo, que alega ter superado o positivista, o Poder Judiciário se mostra confuso em relação aos limites – e, consequentemente, à extensão – do papel que tem de desempenhar. Incapaz de situar-se adequadamente, atrai para si acusações de que, quando decide casos difíceis, judicializa irregularmente a disputa partidária. Ao se esforçarem para abandonar a perspectiva novecentista, os agentes encarregados do exercício da jurisdição correm o risco do erro oposto.

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Desconsiderando as leis escritas que constituem o Direito, não alcançam as técnicas hermenêuticas pós-positivistas. Ao contrário, trafegam dentro de horizontes juspositivistas – por mais paradoxal possa essa afirmação parecer. Pois é consequência de um Positivismo radical que “Quando uma ação judicial específica não pode ser submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição, o juiz tem [...] o ‘poder discricionário’ para decidir o caso de uma maneira ou de outra.” (DWORKIN, 2007b, p. 128). Ou seja, da inexistência de uma regra expressa, o juiz depreende a ausência do Direito. Sem identificar critérios jurídicos publicamente reconhecidos para aplicar ao julgamento, o decisor se vê autorizado ao arbítrio. A esse contexto de indefinição acerca das condições e dos limites das possibilidades

interpretativas

oferecidas

pelos

princípios,

somam-se

as

peculiaridades dos órgãos do sistema de controle da legitimidade das eleições. Como se verá na seção 4, certo ímpeto corretivo das relações político-partidárias está na origem dos juízos eleitorais, ainda que associado a uma noção positivista de neutralidade judicial. Concebida como instância moralizadora da realidade política, a Justiça Eleitoral se desenvolveu de forma a acumular funções judiciárias tanto típicas (jurisdicionais) quanto atípicas (governativas). Diante da generalizada percepção da necessidade de correição do modelo político brasileiro e da ausência de mudanças substantivas promovidas pelo Poder Legislativo, o Judiciário tornou-se o protagonista da reforma das regras eleitorais. Questões como a da infidelidade partidária, que se colocaram como um problema para a opinião pública, mas não encontraram solução na esfera parlamentar, migraram para o âmbito de consideração judicial. A expressão “judicial” aqui designa tudo o que concerne aos juízes em sentido amplo – as autoridades que compõem a judicatura, quer sejam juízes propriamente ditos, quer sejam desembargadores ou ministros –, exercendo funções tanto jurisdicionais quanto administrativas em sentido amplo e, para alguns, legislativas. A percepção de aumento do impacto da atuação judicial na esfera política difundiu a imagem de que, favorecidos pela posição central que desempenham no sistema brasileiro de controle da legitimidade das eleições, os juízes eleitorais adotaram uma nova postura. Abandonaram a finalidade de apenas interpretar e aplicar as regras do jogo competitivo. Passaram a esforçar-se para reformá-las,

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corrigi-las. Esse novo papel atribuído ao Judiciário é conflitante com a representação tradicionalmente feita da jurisdição. Ademais, se é arraigada a certeza em relação à natureza apolítica da jurisdição – suposta por doutrinas juspositivistas –, não existe o receio de reconhecer o caráter político das atividades tipicamente exercidas pelos Poderes Executivo e Legislativo. Cumpre, pois, observar que, se algumas funções desempenhadas pelos juízes eleitorais no controle das eleições em nada diferem daquelas, sê-las-iam também políticas. Essa constatação, porém, ameaça o argumento corrente de que as garantias institucionais dos membros do Judiciário conferem a eles uma posição intrinsecamente imparcial diante da disputa partidária. Por ora, chama-se a atuação do Poder Judiciário de política em sentido amplo, sem deter-se sobre o que o conceito significa (ver seção 5). Adianta-se, porém, que, na perspectiva de Dworkin (2006; 2007a; 2007b), a postura dos juízes diante da prestação jurisdicional pode conduzir: a) ao ativismo judicial, que tradicionalmente designa o abuso dos poderes jurisdicionais, por basear-se em argumentos de política ou na moralidade privada; e b) à leitura moral, desde que se entenda tratar da moralidade pública, não, da privada. Antecipamos, também, que o Positivismo não pode limitar a atitude jurisdicional decisionista, vez que nem a reconhece. Isso deixa o juiz livre para apelar a qualquer fundamento ao embasar a decisão, seja tal argumento público ou não, jurídico ou político. As distorções, na maioria dos casos, em que há regras claras a ditar a conclusão, não são perceptíveis ou podem ser facilmente reformadas pelas instâncias jurisdicionais superiores. Entretanto, em situações mais complexas, nas quais não há uma regra expressa a aplicar, e os tribunais, autorizados pela nova hermenêutica, têm de apelar a princípios, a ausência de freios pode se revelar preocupante. Nesse caso, o ativismo judicial não encontra limites externos nem na comunidade jurídica nem na opinião pública, pois os críticos à conduta desses magistrados partem de uma concepção de separação de poderes também positivista. Eles reclamam que o Poder Judiciário volte a decidir os casos colocados sob sua apreciação mecanicamente, sem qualquer consideração moral ou política. Ocorre, contudo, que, como se verá na seção 5, as ações judiciais nunca foram

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decididas assim. Tal espécie de julgamento não é nem mesmo possível. Ainda quando a jurisdição é exercida por um juiz de boa-fé e que tem à disposição regras claras que ele se esforça para aplicar aos casos concretos colocados sob seu juízo, a doutrina juspositivista, longe de corresponder à realidade do funcionamento judiciário, revela-se uma ideologia que possibilita não a fuga da política – o que promete –, mas uma outra espécie de política, que insiste em não reconhecer. Por óbvio, essa breve exposição das relações entre o modo como se estrutura e atua a Justiça Eleitoral e a perspectiva positivista da natureza da jurisdição fica a depender de uma definição mais precisa do que é o Positivismo Jurídico. Esse será o objeto da seção 2. Após, nas seções 3 e 4, estudar-se-ão as peculiaridades históricas e funcionais desse ramo judiciário. O objetivo é identificar, no processo de criação e organização dessa Justiça, elementos de uma visão específica acerca do Direito e das instâncias estatais encarregadas da aplicação jurídica. Uma vez identificado o conjunto de ideias que norteou a concepção do sistema judicial brasileiro de controle das eleições, aquela teoria deverá ser confrontada com a definição de Positivismo Jurídico proposta na seção 2. Caso se confirme a identidade de ambas, cumpre indagar na seção 5 se, diante da nova hermenêutica que marca a segunda metade do século XX e a primeira década do XXI, o Positivismo Jurídico é uma teoria ainda adequada para descrever o exercício da jurisdição e justificar o sistema judiciário de controle das eleições. A hipótese é que a perspectiva positivista acerca da neutralidade do juiz, embora tenha servido à legitimação da Justiça Eleitoral, é insuficiente para responder às demandas contemporâneas e tem de ser abandonada. Supõe-se que, apesar da imagem que o Poder Judiciário faz de si mesmo, ela ainda não o foi.

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2 LEGISLAR E JULGAR SOB O POSITIVISMO JURÍDICO

“Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não esteja assegurada, nem a separação dos poderes, determinada, não possui constituição.” (FRANÇA, 1789, tradução nossa, grifo nosso). A recomendação, contida no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, foi posteriormente incorporada à Constituição francesa de 1791. O alcance do recomendado, no entanto, extrapolou em muito as fronteiras da França. Desde o século XVIII, a repartição do poder, distribuído entre órgãos estatais distintos, tornou-se matéria tipicamente constitucional, observada pela assembleia constituinte dos mais diferentes Estados. Montesquieu (1979) inspirou a noção moderna de que o poder estatal se desdobra em diferentes espécies: Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo das que dependem do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado. (MONTESQUIEU, 1979, p. 148-149).

Sabe-se que o filósofo não foi o precursor da ideia. O conceito encontra esboço já em Aristóteles, concepção aproximada em Bodin e Locke, e resultados semelhantes em Grotius, Wolf e Puffendorf. O autor de Do espírito das leis, no entanto, foi o responsável pela sistematização da teoria e pelo emprego dela como técnica de garantia da liberdade política individual (BONAVIDES, 2006). Nas palavras do ex-presidente norte-americano James Madison (1788, tradução nossa), Montesquieu é “O oráculo sempre consultado e citado sobre a matéria […]. Se ele não é o autor desse inestimável preceito das ciências políticas, tem o mérito, ao menos, de mais eficazmente o exibir e recomendar à atenção da humanidade.” O iluminista francês enfaticamente afirmou a existência de três espécies de poderes, substancialmente distintos uns dos outros, devido à diversidade de conteúdo e finalidade. Mas não se limitou a descrever a natureza de cada um. Amparado pela premissa de que “[...] a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites [...]”

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(MONTESQUIEU, 1979, p. 148), o pensador propôs para o Estado tal organização, que, “[...] pela disposição das coisas, o poder freie o poder.” (MONTESQUIEU, 1979, p. 148). O objetivo era garantir a liberdade, concebida como a certeza de que “[...] ninguém será constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer as que a lei permite.” (MONTESQUIEU, 1979, p. 148). Desde o início, portanto, a separação de poderes foi pensada como técnica política de garantia da legitimidade da atuação estatal contra a ilegalidade (o abuso de poder). Montesquieu (1979, p. 149) adverte: “Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes [...].” Do alerta, decorre a recomendação mais específica de que se atribuam os poderes legislativo e judiciário a diferentes agentes, sob pena de a jurisdição dar azo à arbitrariedade. “Se [o poder de julgar] estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador.” (MONTESQUIEU, 1979, p. 149). O filósofo considera que, ao decidir os crimes e as divergências individuais, exerce-se uma terrível coerção sobre indivíduos específicos. Logo, é racional supor que os membros da comunidade tentem evitar o exercício da jurisdição contra si. Entretanto, eles só o poderão fazer se souberem “[...] precisamente os compromissos que nela [na sociedade] são assumidos.” (MONTESQUIEU, 1979, p. 150). A lei, a vontade geral do Estado elaborada pelo Parlamento e exercida sobre a coletividade, constitui então um limite ao poder do juiz. Essa é a razão de o autor defender julgamentos fixos, “[...] a tal ponto, que nunca sejam mais do que um texto exato da lei.” (MONTESQUIEU, 1979, p. 150). Desdobramentos das noções de Montesquieu acerca da relação entre os poderes foram incorporados aos ideais do liberalismo político e assim adentraram as constituições do século XVIII. O Estado moderno foi em parte concebido a partir do postulado da separação das funções, reinterpretado como doutrina da limitação horizontal do poder. Na Declaração de Direitos da Virgínia (Virginia Bill of Rights), de 1776, a máxima foi, pela primeira vez, prevista explicitamente num documento político da Modernidade. Associada às formas liberais de contenção do exercício da autoridade, a ideia permitiu o desenvolvimento da técnica dos freios e contrapesos (checks and balances), adotada pela Constituição federal americana de 1787. Desde então, ela se difundiu pelo Ocidente, alcançando o status de dogma constitucional durante o século XIX. (BONAVIDES, 2006).

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O Brasil, a partir da Constituição de 1891, abandonou a repartição inspirada em Benjamin Constant, adotada durante o Império, e “[...] aderiu ao princípio da separação de poderes na melhor tradição francesa – a de Montesquieu – com explicitação formal.” (BONAVIDES, 2006, p. 154). O preceito constou de todas as Constituições republicanas brasileiras, com redação quase idêntica à do atual art. 2º da CRF/88: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” (BRASIL, 1988). Na técnica adotada pelo constitucionalismo do País, o termo “Poder” possui duplo sentido. Ora nomeia as três funções estatais objetivamente diferenciadas ora se refere às instituições, orgânica ou subjetivamente consideradas, as quais exercem aquelas atividades (MELLO, 2010). No caput do art. 44, a CRF/88 dispõe que o Poder Legislativo da União se exerce pelo Congresso Nacional, composto pela Câmara de Deputados e pelo Senado. No caput do art. 76, confere o exercício do Poder Executivo federal ao Presidente da República, auxiliado pelos ministros de Estado. Em ambos os casos, a expressão “Poder” se refere ao objeto da atuação desses órgãos – respectivamente, à função legislativa e à executiva. De modo diverso, no art. 92, a CRF/88 trata o Poder Judiciário organicamente, ao afirmar que o compõem os juízes e tribunais ali listados. (SILVA, 2008a). Os doutrinadores, no entanto, embora afirmem que o art. 2º da CRF/88 exprime a um só tempo o sujeito e o objeto de cada competência (SILVA, 2008a), majoritariamente empregam “Poder”, com inicial maiúscula, exclusivamente como sinônimo de conjunto de órgãos, e “poder”, com minúscula, como função estatal, legislação, execução ou jurisdição. Tal uso será adotado neste trabalho. Ressaltese, porém, não se tratar de uma mera opção ortográfica. A terminologia reflete o critério adotado para observar o fenômeno. O critério subjetivo, ou orgânico, define a função a partir do órgão que a produz. Nesse caso, a legislação resulta aprioristicamente do Poder Legislativo; a execução (ou administração), do Executivo; e a jurisdição, do Judiciário. Já o critério objetivo toma como parâmetro a própria atividade, independentemente do sujeito encarregado de exercê-la. Mas o objeto de cada função pode ainda ser considerado a partir de dois pontos de vista: o material, que destaca a substância do ato, e o formal, que destaca a forma que o reveste. (CAMPOS, 1962). Como se pretende demonstrar, a opção por um dos pontos de vista representa uma concepção insuficiente dos fenômenos jurídicos, exclusivamente formal (nos dois primeiros) ou

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material (no último). De

qualquer maneira,

embora

sempre reconhecidos

na história

constitucional brasileira, os três poderes estatais não encontram definição autêntica, textual, em dispositivo constitucional algum.14 A despeito disso, a maior parte da doutrina consente que certos elementos lhes são característicos – e suficientes para diferenciar uns dos outros. Deixando de lado por ora a função executiva, a legislação é predominantemente descrita como a atividade por meio da qual o Estado “[...] edita normas de caráter geral e abstrato [...]” (SILVA, 2008a, p. 500), e a jurisdição, como a função que “[...] se destina a aplicá-las [as normas de caráter geral e abstrato] na solução das lides.” (SILVA, 2008a, p. 500). Noutras palavras, a sentença, decisão jurisdicional típica, consiste num ato de aplicação de Direito; e a lei, resultado do exercício legislativo, num ato de criação jurídica. Assim consideradas, “Não é difícil distinguir ‘jurisdição’ e ‘legislação’.” (SILVA, 2008a, p. 500). A função legiferante é tradicionalmente caracterizada como uma atividade criativa, num sentido em que a jurisdição não o é. “[...] somente a lei, em seu sentido próprio, é capaz de inovar no Direito já existente, isto é, de conferir, de maneira originária, pelo simples fato de sua publicação e vigência, direitos e deveres a que todos devemos respeito.” (REALE, 1998, p. 162, grifo do autor). Não que se desconheça a possibilidade fática de que os juízes inovem, por exemplo, nos casos de lacuna, quando inexiste uma regra expressa sobre a demanda na legislação. Alguns doutrinadores reconhecem tal fato. Todavia, em geral, quando o fazem, tratam-no como uma excepcionalidade tolerada pelo sistema. Mais especificamente, como uma situação de exercício da função legislativa por um órgão judicial: “Nessas hipóteses, inexistindo dispositivo legal, o juiz edita para o caso concreto uma norma como se fosse legislador.” (REALE, 1998, p. 170). Ao

classificar

como

exercício

legislativo

os

casos

notoriamente

reconhecidos de criação jurisprudencial, preserva-se a imagem criativa da legislação

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É verdade que, em relação à função legislativa, o art. 59 da CRF/88 dispõe: “O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções.” (BRASIL, 1988). Percebe-se, contudo, que se trata de uma enumeração dos atos que resultam da aplicação do processo legislativo, não, de uma definição da atividade legiferante. A afirmação de que legislar consiste exclusivamente na elaboração desses atos só é verdadeira se se adota um critério formal, em prejuízo do material. Nesse caso, os dois sentidos da palavra “legislação”, o de ato de legislar e o de conjunto das leis de um país, coincidem.

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e reafirma-se a natureza tipicamente reveladora da jurisprudência. Mantém-se a opinião corrente de que, Em casos jurídicos fáceis, os direitos podem ser deduzidos, quase que de modo silogístico, a partir de proposições apresentadas em livros disponíveis a qualquer pessoa, e principalmente aos juristas aos quais essas pessoas podem recorrer. (DWORKIN, 2007b, p. 516).

Mas subjaz a essa constatação a premissa de que a jurisdição propriamente dita se exerce em situações de normalidade, diante da necessidade de revelação de uma regra concreta e individualizada, que decorre logicamente de outra, mais abstrata e geral. Nas hipóteses em que não há norma a revelar, ou o sentido da regra existente é indefinido, o juiz legisla. (DWORKIN, 2007b). Coerentemente com tal premissa, pode-se, pois, afirmar ser “[...] próprio da norma legal ‘inovar’ no Direito vigente, quer alterando, quer aditando novos preceitos obrigatórios.” (REALE, 1998, p. 164). A ideia de que a atividade jurisdicional é intrinsecamente reveladora, não criativa, embora tenha influenciado o pensamento do século XX, especialmente na primeira metade dele, foi predominante no século XIX. Manifestou-se em diversos movimentos políticos do período e adquiriu importância central para as doutrinas reconhecidas como juspositivistas. A expressão “Positivismo Jurídico” designa uma corrente do pensamento da Modernidade surgida na Alemanha nos fins do século XVIII. Trata-se de um conjunto de doutrinas que, estritamente consideradas, compartilham certo modo de abordar o Direito e as instituições político-jurídicas, uma teoria acerca desses elementos – aspectos descritivos – e, embora nem sempre admitido, uma ideologia – aspecto propositivo. (BOBBIO, 2006). No que se refere aos aspectos descritivos, “O positivismo jurídico pressupõe que o direito é criado por práticas sociais ou decisões institucionais explícitas [...]” (DWORKIN, 2007b, p. XII). Apesar das diversas formas como se apresenta, “[...] todas elas têm em comum a ideia de que o Direito existe somente em virtude de algum ato ou decisão humana.” (DWORKIN, 1985, p. 131, tradução nossa). Noutras palavras, trata-se daquela “[...] doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo.” (BOBBIO, 2006, p. 26, grifo do autor). A noção de direito positivo, ou “[...] posto pelo poder soberano do Estado, mediante normas gerais e abstratas, isto é, como ‘lei’ [...]” (BOBBIO, 2006, p. 119), era conhecida desde a Antiguidade. O termo atual, contudo, só apareceu na Idade Média, provavelmente no século XI, na obra Dialogus inter philosophum, judaeum et

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christianum, de Abelardo. Até então o conceito recebeu denominações diversas, como jus civile e lex humana. Independentemente da terminologia, porém, sempre se definiu como o Direito oposto ao natural. (BOBBIO, 2006). Por obra do Positivismo Jurídico, “[...] ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ não são mais considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio.” (BOBBIO, 2006, p. 26). O conjunto de regras jurídicas postas pelo Poder Público segundo os critérios previamente estabelecidos para tanto – também por meio de regras – passa a ser coextensivo com o conteúdo do Direito (DWORKIN, 2007b). A concepção positivista reduz, portanto, todo o Direito a Direito positivo. Consequentemente, exclui da categoria o Direito natural, que, desde a Antiguidade, fornecia critérios de julgamento publicamente reconhecidos como válidos. (BOBBIO, 2006).

2.1 Beccaria: em cada julgamento, um silogismo perfeito

O abandono da concepção jusnaturalista em prol da positivista não ocorre por acaso. Historicamente, ele se liga à formação do Estado moderno e do monopólio estatal do poder político. Na Idade Média, cada um dos agrupamentos sociais dispunha de um ordenamento próprio. O Direito se apresentava como regras produzidas pela sociedade civil. Somente com o dissolver da organização medieval ocorreu a centralização da produção jurídica. Os poderes tipicamente jurídicos, de criar e de aplicar o Direito, concentraram-se no Estado. “A esta passagem no modo de formação do direito corresponde uma mudança no modo de conceber as categorias do próprio direito.” (BOBBIO, 2006, p. 27). Semelhante opinião se lê em Carl Schmitt (1996), para quem, antes da Modernidade, não se pode falar propriamente em Estado. Na baixa Idade Média, do século XIII ao XVI, não havia na Europa a unidade e a centralização política tipicamente estatais. Ao contrário, formavam-se estamentos baseados em acordos jurados pelos membros de cada grupo. Organizações estamentais, como a alta e a baixa nobreza, o clero e a burguesia das cidades, incluíam “[...] pactos de múltiplas classes, entre si e com o senhor do país, mas também com príncipes estrangeiros.” (SCHMITT, 1996, p. 66, tradução nossa).

55 [...] A palavra “Estado” designa com singular acerto a particularidade dessa moderna formação política, porque oferece a conexão verbal e mental com a palavra status. Pois o status amplo da unidade política relativiza e absorve todas as outras relações estatais, em particular, estamentos e Igreja. O Estado, como é, o Status político, converte-se assim no Status em sentido absoluto. Esse Estado moderno é soberano; seu poder, indivisível. (SCHMITT, 1996, p. 67-70, tradução nossa).

Nas comunidades políticas pré-modernas, “[...] originariamente e por um longo tempo o direito não era posto pelo Estado [...]” (BOBBIO, 2006, p. 28). O juiz era então livre órgão da sociedade, a quem o governante se limitava a nomear para dirimir controvérsias entre os particulares. Encontram-se evidências do caráter não estatal dos juízos na obra de Montesquieu (1979). Segundo o filósofo iluminista, “Na maior parte dos reinos da Europa, o governo é moderado, porque o príncipe, que tem os dois primeiros poderes [o executivo e o legislativo], deixa a seus súditos o exercício do terceiro.” (MONTESQUIEU, 1979, p. 149). O pensador não apenas constatava a situação então estabelecida no continente europeu, como entendia sêla benéfica para a organização política: O poder de julgar não deve ser outorgado a um senado permanente mas exercido por pessoas extraídas do corpo do povo [como em Atenas] num certo período do ano, de modo prescrito pela lei, para formar um tribunal que dure apenas o tempo necessário. Desta maneira, o poder de julgar, tão terrível entre os homens, não estando ligado nem a uma certa situação nem a uma certa profissão, torna-se, por assim dizer, invisível e nulo. Não se têm juízes constantemente juízes diante dos olhos e teme-se a magistratura mas não os magistrados. (MONTESQUIEU, 1979, p. 149).

O autor de Do espírito das leis enfaticamente defendia: Os outros dois poderes [executivo e legislativo] poderiam, preferivelmente, ser outorgados a magistrados ou a corpos permanentes, porque não se exercem sobre nenhum indivíduo, sendo um somente a vontade geral do Estado e outro somente a execução dessa vontade geral. (MONTESQUIEU, 1979, p. 150).

Apesar disso, propunha que os julgamentos se fundamentassem exclusivamente nas regras emanadas pela autoridade encarregada da função legislativa. Caso contrário, corriam o risco de tornarem-se arbitrários. “Se fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos.” (MONTESQUIEU, 1979, p. 150). Ocorre que, na Idade Média, o terceiro nomeado para decidir controvérsias entre os indivíduos, ao resolvê-las, “[...] não estava vinculado a escolher exclusivamente normas emanadas do órgão legislativo do Estado.” (BOBBIO, 2006, p. 28). O decisor podia obter a norma a aplicar tanto nas regras

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sociais preexistentes quanto no Direito natural. Na Modernidade, ao contrário, o juiz se torna órgão do Estado, um autêntico funcionário público, titular de um poder estatal, e, em certa medida, “[...] subordinado ao legislativo [...]” (BOBBIO, 2006, p. 28). Ao julgador, impõe-se a observância exclusiva das normas legisladas pelo órgão estatal competente para tanto. “As demais regras são descartadas e não mais aplicadas nos juízos [...]” (BOBBIO, 2006, p. 29). Como “A subordinação do juiz à lei tende a garantir um valor muito importante: a segurança do direito [...]” (BOBBIO, 2006, p. 40), o dogma da onipotência legislativa passa a ser encarado como uma solução para o problema do arbítrio judicial, e é acolhido tanto pelas concepções políticas absolutistas quanto pelas liberais. Além do óbvio elemento absolutista decorrente da centralização da produção do Direito, a monopolização da tarefa jurígena por parte do legislador possui “[...] um aspecto liberal, porque garante o cidadão contra as arbitrariedades de tais poderes [judiciários] [...]” (BOBBIO, 2006, p. 38): [...] a liberdade do juiz de pôr normas extraindo-as do seu próprio senso da eqüidade ou da vida social pode dar lugar a arbitrariedades nos confrontos entre os cidadãos, enquanto que o legislador, pondo normas iguais para todos, representa um impedimento para a arbitrariedade do poder judiciário. (BOBBIO, 2006, p. 38).

Como percebe Bobbio (2006, p. 38, grifo do autor), “[...] a concepção liberal acolhe a solução dada pela concepção absolutista ao problema das relações entre legislador e juiz, a saber, o assim dito dogma da onipotência do legislador [...].” Incorporado aos ideais do liberalismo, o princípio encontra justificação política na doutrina da separação dos poderes, “[...] o fundamento ideológico da estrutura do Estado moderno [...]” (BOBBIO, 2006, p. 79). Uma vez que se atribuíram a órgãos diversos as três funções fundamentais do Estado, legislativa, executiva e jurisdicional, “[...] o juiz não podia criar o direito, caso contrário invadiria a esfera de competência do poder legislativo [...]” (BOBBIO, 2006, p. 79). A partir da ideia do diferente papel do legislador e do juiz, a jurisprudência – o resultado da atividade de aplicação do Direito – adquire natureza estritamente cognoscitiva. Na medida em que não se volta para a produção normativa, deve aterse à “[...] explicitar com meios puramente lógico-racionais o conteúdo de normas jurídicas já dadas.” (BOBBIO, 2006, p. 212). Noutras palavras, é vista como “[...] atividade puramente declarativa ou reprodutiva de um direito preexistente [...]” (BOBBIO, 2006, p. 211), e a finalidade a ela atribuída, como o “[...] reconhecimento

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puramente passivo e contemplativo de um objeto já dado [...]” (BOBBIO, 2006, p. 211). Tal conclusão se pode extrair de Montesquieu (1979, p. 151), para quem "[...] os juízes de uma nação não são, como dissemos, mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem a força nem o vigor dela.” Todavia, o publicista francês não estava isolado nessa posição. A ideia do caráter declarativo da jurisdição alcançou diversos pensadores do período. Idêntica manifestação pode ser encontrada, por exemplo, em Beccaria (2000). O criminalista italiano diz serem os julgamentos15 “[...] nocivos à liberdade política, quando não são proposições de uma máxima geral emanada do código público.” (BECCARIA, 2000, p. 103). Trata-se de concepções que compreendem o Direito como ordenamento racional da sociedade. Desse modo, ele “[...] não pode nascer de comandos individuais e ocasionais (porque então [...] seria capricho e arbítrio), mas somente de normas gerais e inerentes postas pelo poder soberano [...]” (BOBBIO, 2006, p. 120). Decorre do racionalismo uma teoria da interpretação que Bobbio (2006) denomina “mecanicista”, por fazer prevalecer o elemento declarativo da atividade jurisdicional em detrimento dos aspectos produtivos ou criativos, os quais, muito frequentemente, nem mesmo se reconhecem. O dogma do mecanicismo encontrou sua mais rigorosa formulação na teoria silogística, cujo maior expoente é Beccaria (2000). Para o autor, o juiz, ao aplicar a legislação, deve fazê-lo como se deduzisse a conclusão de um silogismo. Assim considerada, a atividade jurisdicional não inova, só revela o que se encontrava implícito na premissa maior, a lei. O jurista que renuncia à “[...] toda contribuição criativa na interpretação da lei [...]” (BOBBIO, 2006, p. 80) e se limita a “[...] tornar explícito, através de um procedimento lógico (silogismo), aquilo que já está implicitamente estabelecido [...]” (BOBBIO, 2006, p. 80) atende à exigência de segurança jurídica e garante a certeza do direito.

15

Embora Beccaria (2000), no original, utilize a palavra equivalente a “decretos”, o autor o faz num sentido diverso do atualmente atribuído ao termo, que, como exposto na seção 3, remete a atos administrativos infralegais. Depreende-se que, em verdade, a passagem se refere às decisões jurisdicionais, denominadas, no Direito brasileiro, “despachos”, “decisões interlocutórias”, “sentenças”, “acórdãos” ou “votos”. Optou-se, então, pelo uso da expressão “julgamentos”, que, por referir-se ao ato ou efeito de julgar, abrange as diferentes espécies de decisão proferidas pelos juízes no exercício da jurisdição.

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Beccaria (2005, p. 46) é autor da célebre proposição sobre o exercício jurisdicional, que viria a inspirar a concepção anticriativa da atividade interpretativa dos tribunais: “Em cada delito, o juiz deve formular um silogismo perfeito: a premissa maior deve ser a lei geral; a menor, a ação em conformidade ou não com a lei; a consequência, a liberdade ou a pena.” A obra do pensador italiano ilustra a visão liberal acerca das modificações ocorridas no pensamento europeu no início da Modernidade: o rompimento com a tradição jusnaturalista, o processo de monopolização da produção jurídica pelo Estado, a formulação do princípio da legalidade e a descrição apolítica da natureza da jurisdição. Tais ideias foram assimiladas pelas doutrinas positivistas algumas décadas depois. Ainda inserido no paradigma do iluminismo oitocentista, o autor admite a existência de três fontes de princípios morais e políticos que permitem aos homens viver em comunidade: “A revelação, a lei natural, as convenções factícias da sociedade [...]” (BECCARIA, 2005, p. 34). Esse reconhecimento normativo da revelação e da lei natural, contudo, ocorre sob um esquema de pensamento fundamentalmente diverso do da Idade Antiga e do da Idade Média. Pois Beccaria (2005, p. 35) propõe que as leis sociais, nascidas “[...] de convenções puramente humanas, ou manifestas, ou supostas para a necessidade e a utilidade comum [...]”, sejam examinadas “[...] independentemente de qualquer outra consideração [...]” (BECCARIA, 2005, p. 35). Acerca da lei social, o filósofo afirma ser “[...] importantíssimo separar o que resulta desta convenção, ou seja, dos pactos explícitos ou tácitos entre os homens, porque tal é o limite daquela força que pode exercer-se legitimamente entre homem e homem [...]” (BECCARIA, 2005, p. 35). Ao legislador se reserva a função de representar o soberano, “[...] toda a sociedade unida por um contrato social [...]” (BECCARIA, 2005, p. 44). Dessa forma, só as leis, estritamente consideradas, estabelecem o Direito, a agregação das porções de liberdade cedidas pelos homens. Nesse esquema teórico, compete ao magistrado, um terceiro que não representa o soberano nem o acusado, julgar, com base nas leis gerais, os casos de violação ao contrato social. O pensador exige que as decisões revelem a verdade, e que as sentenças “[...] consistam em meras asserções ou negações de fatos particulares.” (BECCARIA, 2005, p. 45). Partindo dessas noções, Beccaria (2005, p. 45) conduz a argumentação ao ponto de afirmar: “Nem mesmo a autoridade de interpretar as leis penais pode

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caber aos juízes criminais, pela própria razão de não serem eles legisladores.” Para o autor, o legítimo intérprete da lei é o soberano, representado pelo legislador, “[...] o depositário das vontades atuais de todos [...]” (BECCARIA, 2005, p. 46). O oficio do juiz “[...] é apenas determinar se um homem cometeu ou não uma ação contrária às leis [...]” (BECCARIA, 2005, p. 46). Isso porque os juízes recebem-nas [...] da sociedade viva ou do soberano que a representa como legitimo depositário atual da vontade de todos [...], [...] como efeito de um juramento tácito ou expresso que as vontades reunidas dos súditos vivos fizeram ao soberano, como vínculos necessários para frear e reger a agitação intestina dos interesses particulares. Essa é a autoridade física e real das leis. (BECCARIA, 2005, p. 46).

Beccaria (2005, p. 47) defende que os julgadores consultem “[...] a voz imutável e constante da lei [...]”, não “[...] a instabilidade errante das interpretações.” O autor pretende evitar que os cidadãos sejam vitimas “[...] dos falsos raciocínios ou das variações ocasionais de humor de um juiz, o qual toma como interpretação legítima o vago resultado de toda uma série de noções confusas que se agitam em sua mente [...]” (BECCARIA, 2005, p. 47). O criminalista não desconhece que “[...] da obediência rigorosa à letra de uma lei [...]” possa nascer “desordem” (BECCARIA, 2005, p. 47). Mas a vê como preferível às “desordens” decorrentes da interpretação legal. Primeiro, porque “[...] aquele momentâneo inconveniente pode levar à correção fácil e necessária dos termos da lei, que são a causa da incerteza [...]” (BECCARIA, 2005, p. 47). Segundo, porque a literalidade da aplicação legal “[...] impede o fatal abuso da razão, do qual nascem as controvérsias arbitrárias e venais.” (BECCARIA, 2005, p. 47). Quando um código de leis fixas, que devem ser observadas à risca, não deixa ao juiz outra incumbência senão a de examinar os atos dos cidadãos e de julgá-los conformes ou não à lei escrita; quando a norma do justo e do injusto, que deve conduzir os atos tanto do cidadão ignorante quanto do filósofo não é uma questão de controvérsia, mas de fato, então os súditos não estão sujeitos às pequenas tiranias de muitos [...]. Dessa forma, os cidadãos adquirem aquela segurança de si, que é justa por ser o objetivo pelo qual os homens vivem em sociedade e é útil por habilitá-los a calcular exatamente os inconvenientes de um delito. (BECCARIA, 2005, p. 47-48).

O autor valoriza a certeza garantida pelas leis escritas e codificadas. Nisso, a posição do criminalista se assemelha à de Montesquieu (1979). Pois, ao propor o modelo teórico da tripartição de poderes, o filósofo francês pretendeu assegurar a liberdade contra o arbítrio, o que implicava o reconhecimento da legalidade. Esse princípio, positivado nas constituições de modo similar ao previsto no inciso II do art. 5º da CRF/88, assevera que “[...] ninguém será obrigado a fazer

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ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei [...]” (BRASIL, 1988). Levado ao extremo pelo Positivismo mais rigoroso, o mandamento terminou por sustentar a teoria da onipotência do legislador. “A lei exsurgiu a plano tão alto que passou a ser como que a única fonte de direito.” (REALE, 1998, p. 280). Consequentemente, reservou-se à jurisdição o papel de fonte jurídica subordinada ou secundária.16

2.2 Mecanicismo: uma teoria positivista da aplicação da lei

As considerações de Beccaria (2000) sobre a separação dos poderes do legislador e do juiz repercutiram para além da esfera propriamente penal. O autor ressalvou, acerca da abrangência das próprias observações, que examinava “Essas leis, seqüelas dos séculos mais bárbaros, [...] sob o aspecto que interessa o sistema criminal [...].” (BECCARIA, 2000, p. 33). Entretanto, as posições do criminalista foram, em larga medida, recebidas como “[...] uma pesquisa [...] sobre a objetividade do juiz que opera em um contexto social dominado de modo mais ou menos explícito pelo preconceito.” (CAMPA, 2005, p. 9). Na medida em que se assistia à codificação das leis, encarou-se a aplicação silogística da jurisdição como modelo a seguir pelos juízes. Se se tomam os códigos como a expressão segura e completa da vontade do legislador que pôs a norma jurídica em nome do soberano, basta aos operadores do Direito aplicarem-nos, sem interferir-lhes nas disposições. (BOBBIO, 2006). O fato histórico que constitui a causa imediata do positivismo jurídico deve [...] ser investigado nas grandes codificações ocorridas entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, que representam a realização política do princípio da onipotência do legislador. (BOBBIO, 2006, p. 55).

O Código Civil Napoleônico, de 1804, iniciou uma tradição jurídica. Os primeiros intérpretes “[...] pretenderam que não havia parcela da vida social que não tivesse sido devida e adequadamente regulada, razão pela qual haviam sido

16

Segundo Bobbio (2006, p. 161), “[...] são fontes do direito aqueles fatos ou aqueles atos aos quais um determinado ordenamento jurídico atribui a competência ou a capacidade para produzir normas jurídicas.” Contudo, tal definição não estabelece claramente a necessária relação entre o conceito de fonte e o de Direito positivo. Encontra-se a ligação explicitamente mencionada na seguinte passagem, de autoria de Reale (1998, p. 140): “Por ‘fonte do direito’ designamos os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa.”

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revogadas todas as ordenações, usos e costumes até então vigentes.” (REALE, 1998, p. 279). O sistema legal recém-instituído impôs expressamente ao juiz o dever de manifestar-se sobre todos os casos submetidos à jurisdição. Não se admitia a recusa com base na alegação de silêncio, obscuridade ou insuficiência da lei. O dispositivo foi entendido como se determinasse ao Poder Judiciário deduzir exclusivamente da legislação a norma para resolver qualquer controvérsia. Na prática, os teóricos juspositivistas viram nele afirmados dois dogmas que defendiam: a onipotência do legislador e a completude da ordem legal. (BOBBIO, 2006). O Positivismo Jurídico consagrou o argumento de que o “[...] juiz deve sempre encontrar a resposta para todos os problemas jurídicos no interior da própria lei [...]” (BOBBIO, 2006, p. 74). Por vias indiretas, asseverava-se que “[...] nela [na lei] estão contidos aqueles princípios que, através da interpretação, permitem individualizar uma disciplina jurídica para cada caso.” (BOBBIO, 2006, p. 74). Bobbio (2006) cita a Escola da Exegese como exemplo da atitude rigorosamente positivista que se disseminou entre os juristas após as codificações. É neste modo de entender o art. 4º que se fundou a escola dos intérpretes do Código Civil, conhecida como “escola da exegese” (école de l’exégèse); esta foi acusada de fetichismo da lei, porque considerava o Código de Napoleão como se tivesse sepultado todo o direito precedente e contivesse em si as normas para todos os possíveis casos futuros, e pretendia fundar a resolução de quaisquer questões na intenção do legislador. (BOBBIO, 2006, p. 77, grifo do autor).

Os doutrinadores reconhecidos como pertencentes a tal corrente compartilhavam uma concepção exclusivamente estatal do Direito. Jurídicas são as regras postas pelo Estado, o conjunto das leis promulgadas pelo legislador. Como se estabelece uma identidade entre o texto legal e a própria norma, cabe ao intérprete subordinar-se estritamente às disposições escritas. Nos casos em que a redação se revela insuficiente, lacunosa ou obscura, ele deve recorrer à analogia. Compreendese o apelo a esse recurso como uma operação lógica, que não permite valorações. O juiz estende ao caso sob análise o preceito expressamente previsto para uma situação semelhante. Assim, preserva a vontade do legislador. (BOBBIO, 2006). Sob o nome de “Escola da exegese” entende-se aquele grande movimento que, no transcurso do século XIX, sustentou que na lei positiva, e de maneira especial no Código Civil, já se encontra a possibilidade de uma solução para todos os eventuais casos ou ocorrências da vida social. Tudo está em saber interpretar o Direito. (REALE, 1998, p. 280).

Nos países de tradição jurídica romanística ou europeia-continental, seguiram-se à Escola da Exegese diversas doutrinas. Nos sistemas de origem

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anglo-saxã, ocorreu o mesmo, a partir das premissas lançadas por Bentham (1979) e Austin (2002). Apesar da diferente forma assumida pelo Positivismo em cada corrente teórica, para Bobbio (2006), as doutrinas positivistas podem ser assim definidas por compartilharem algumas características. Entre os elementos identificados pelo autor por serem comuns à maioria dos teóricos dessa corrente, repercutem na investigação proposta os seguintes: a) uma teoria17 sobre a abordagem jurídica, o formalismo, segundo o qual, deve-se tratar o Direito como um conjunto de fatos sociais dados, análogos aos demais, mas qualificados pela validade18, que diz respeito unicamente à forma, ao aspecto exterior que apresentam, independentemente do conteúdo; e b) algumas teorias sobre o que o Direito é: - a da onipotência do legislador (ou da exclusividade da fonte legislativa), de acordo com a qual, válido é o Direito legislado, e a legislação é a fonte jurídica exclusiva ou preeminente, e - a lógica ou mecanicista, que faz prevalecer o elemento declarativo da atividade de interpretação (em sentido amplo), em prejuízo do aspecto criativo da tarefa. Encarado como um certo modo de abordar as ciências jurídicas e a atividade interpretativa realizada pelo juiz – intérprete oficial, encarregado da aplicação das normas –, o Positivismo, “[...] considera o direito como um fato e não como um valor [...]” (BOBBIO, 2006, p. 131, grifo do autor), um conjunto de fenômenos sociais análogos aos do mundo natural. Não que negue a possibilidade 17

Bobbio (2006) diferencia teoria e ideologia. Para o autor, a primeira “[...] é a expressão da atitude puramente cognoscitiva que o homem assume perante uma certa realidade e é, portanto, constituída por um conjunto de juízos de fato, que têm a única finalidade de informar os outros acerca de tal realidade.” (BOBBIO, 2006, p. 223, grifo do autor). Já a segunda “[...] é a expressão do comportamento avaliativo que o homem assume face a uma realidade, consistindo num conjunto de juízos de valores relativos a tal realidade, juízos estes fundamentados no sistema de valores acolhido por aquele que o formula, e que têm o escopo de influírem sobre tal realidade.” (BOBBIO, 2006, p. 223, grifo do autor). Enquanto os enunciados de uma teoria são avaliados como verdadeiros ou falsos, conforme correspondam ou não aos fatos sob análise, as proposições de uma ideologia são do tipo conservador ou progressista, “[...] segundo avalie positivamente a realidade atual e se proponha influir sobre ela, para conservá-la, ou que a avalie negativamente, destarte se propondo a influir sobre ela, para mudá-la.” (BOBBIO, 2006, p. 223, grifo do autor). Tal distinção entre interpretações puramente descritivas ou avaliativas do Direito não subsiste na teoria de Dworkin (2007b), como se verá na subseção 5.1. 18 O termo “validade” adquire diferentes definições a depender do contexto. Aqui se utiliza como sinônimo de existência jurídica de uma norma. Ou seja, a norma válida é aquela que existe juridicamente como norma. (BOBBIO, 2006). Se se trata de uma regra legal, emprega-se mais comumente a expressão “vigência”.

63

de avaliação do Direito e das instituições políticas. Mas sustenta “[...] que tal juízo se afasta do campo da ciência jurídica.” (BOBBIO, 2006, p. 137). A

partir

dessa

premissa,

os

positivistas

formulam

concepções

supostamente avalorativas do Direito. Elas têm em comum o fato de definirem-no como simples técnica, “[...] que pode servir à realização de qualquer propósito ou valor, porém é em si independente de todo propósito e de todo valor.” (BOBBIO, 2006, p. 142). Pois o atributo essencial das normas jurídicas, o que as diferencia das demais normas sociais, é a vigência, que independe da conformidade com uma ordem ideal, mais justa. Quem se põe a conhecer o fenômeno jurídico como fato, como ele é, deve, pois, abandonar a atitude valorativa. (BOBBIO, 2006). São normas jurídicas todos os comandos emanados em conformidade com o estabelecido pelo próprio ordenamento. O jurista, ao desenvolver sua atividade, busca a norma incidente no repertório de regras cuja existência jurídica foi formal e previamente atestada pelo legislador. Por isso, o instituto da vigência da lei tem fundamental importância. Ele permite ao intérprete supor a validade do Direito antes de indagar o conteúdo do mandamento que aquela norma traz. Tais critérios aceitos pelas doutrinas positivistas para identificar e distinguir regras jurídicas, com base não no conteúdo, mas na “[...] maneira pela qual foram adotadas ou formuladas [...]”, são nomeados por Dworkin (2007b, p. 28) “testes de pedigree”. Para Bobbio (2006), tal modo de definir o Direito sem considerações acerca do conteúdo pode ser chamado de formalismo jurídico. Encontramos na teoria pura, de Kelsen (2009), uma das mais expressivas manifestações dessa corrente doutrinária. O jurista afirma: Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. (KELSEN, 2009, p. 221).

Disso decorre que “[...] todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma norma jurídica.” (KELSEN, 2006, p. 221). Na medida em que “As normas de uma ordem jurídica têm de ser produzidas através de um ato especial de criação [...]” (KELSEN, 2006, p. 221), os comandos estatais emitidos conforme esse ato “São normas postas, quer dizer, positivas, elementos de uma ordem positiva.” (KELSEN, 2006, p. 221).

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A permanência de tal ideia na doutrina jurídica do século XX permitiu a Luhmann (1980), um positivista de projeção no período pós-Segunda Guerra, observar que os processos jurídicos de decisão ocultam a própria causalidade. Para ele, na fundamentação das sentenças e acórdãos, formulam-se argumentos a partir de conceitos jurídicos considerados ontologicamente como dados. Aceitam-se como fatos as regras segundo as quais se tomou a decisão. Embora essas normas mesmas sejam decisões tomadas em procedimentos anteriores, elas são tratadas como se nunca tivessem sido produzidas, apenas descobertas e interpretadas. (LUHMANN, 1980). “O regulamento é considerado como já existente, como uma categoria do mundo.” (LUHMANN, 1980, p. 123). O juiz, em geral, não tem de demonstrar e justificar a validade das leis que cita – o que exigiria o exame do procedimento no qual foram elaboradas. A existência de situações excepcionais em que se questiona a validade legal só confirma a regra. Não por acaso elas geram ou a abertura de outro procedimento ou a formação de um incidente processual, interno ao processo jurisdicional, mas com rito próprio. Em todo caso, a diferença de trâmite reforça a ideia de que a questão suscitada foge à normalidade. (LUHMANN, 1980). Para atribuir a condição de normas jurídicas aos mandamentos, as concepções formalistas adotam o critério exclusivo da autoridade de quem os põe. Isso repercute necessariamente na questão das fontes do Direito e da pertinência das normas ao ordenamento jurídico. “Uma norma é válida (isto é, existe juridicamente [...]) se for produzida por uma fonte autorizada [...]” (BOBBIO, 2006, p. 161). O que confere ao comando o caráter de norma jurídica é a possibilidade de remontar a origem dele “[...] a um dos fatos ou atos competentes ou capazes, segundo o ordenamento, de produzir normas jurídicas.” (BOBBIO, 2006, p. 161). Os ordenamentos jurídicos estabelecem quais as fontes do Direito válido, ou seja, quais as autoridades estatais encarregadas da produção jurídica, e em que condições os comandos por elas expedidos podem ser considerados normas jurídicas existentes. Em comunidades políticas complexas e hierarquizadas, como é o Estado moderno, há mais de uma fonte normativa. Cada uma ou algumas delas, no entanto, ocupam uma posição na hierarquia superior às demais. (BOBBIO, 2006). A doutrina juspositivista: [...] sustenta que a fonte predominante, quer dizer, a que se encontra no plano mais alto, é a lei, visto que ela é a manifestação direta do poder

65 soberano do Estado e que os outros fatos ou atos produtores de normas são apenas fontes subordinadas. (BOBBIO, 2006, p. 164).

Para o Positivismo, portanto, as fontes jurídicas que não sejam legislativas são delegadas. Produzem regras que só adquirem o status de norma se qualificadas pela lei. Dessa forma, só detêm competência para “[...] estabelecer normas jurídicas para certas matérias e dentro de certos limites estabelecidos pelo próprio Estado [por meio da legislação].” (BOBBIO, 2006, p. 164). A concepção escalonada de ordenamento jurídico, “[...] no sentido de ele ser constituído por um conjunto de normas hierarquicamente subordinadas umas às outras [...]” (BOBBIO, 2006, p. 165), como a imaginada por Kelsen (2009), utiliza, ainda que a ele não faça referência expressa, “[...] o conceito de delegação para explicar outras relações de subordinação existentes entre as várias categorias de normas.” (BOBBIO, 2006, p. 165). Haveria uma relação de delegação entre o Legislativo e o Judiciário, “[...] considerado o poder delegado para disciplinar os casos concretos, dando execução às diretrizes gerais contidas na lei.” (BOBBIO, 2006, p. 165). Explica Kelsen (2009): A relação entre um escalão superior e um escalão inferior da ordem jurídica, como a relação entre Constituição e lei, ou lei e sentença judicial, é uma relação de determinação e vinculação: a norma do escalão superior regula – como já se demonstrou – o ato através do qual é produzida a norma do escalão inferior, ou o ato de execução, quando já deste apenas se trata; ela determina não só o processo em que a norma inferior ou o ato de execução são postos, mas também, eventualmente, o conteúdo da norma a estabelecer ou do ato de execução a realizar. (KELSEN, 2009, p. 388).

Da noção de delegação entre o Poder Legislativo e o Judiciário decorre certa subordinação da competência do juiz, a quem se reserva a função de disciplinar os casos concretos, mediante a aplicação das diretrizes gerais previstas na legislação. A própria decisão jurisdicional adquire, então, caráter de fonte subordinada. A sentença, ato infralegal, não tem força para ab-rogar a lei. Os juízos só são válidos na medida em que autorizados pela legislação vigente, nunca em contraste às disposições legislativas. (BOBBIO, 2006). A teoria da preeminência da legislação torna imprescindível uma doutrina da interpretação jurídica que reserve a esta um caráter puramente reprodutivo. Concepção diversa da atividade hermenêutica implicaria elevar o status da jurisdição a fonte primária do Direito. Coerentemente com o dogma da onipotência do legislador, “[...] o positivismo jurídico concebe a atividade da jurisprudência como sendo voltada não para produzir, mas para reproduzir o direito [...]” (BOBBIO, 2006,

66

p. 212). Pois o modo como se compreende o exercício da atividade hermenêutica reflete na maneira como se percebe a prestação jurisdicional. A aplicação jurídica supõe a prévia interpretação. Sob a perspectiva positivista, no entanto, a atividade interpretativa equivale à definição linguística dos termos legais. Se o Direito se constitui de um conjunto de textos que exprimem os comandos do soberano, que pôs a lei contida em tais documentos, a tarefa própria da jurisdição consiste em remontar os signos legislativos à vontade por meio deles expressa.

Para

tanto,

faz-se

uso

dos

processos

lógicos

adequados,

predominantemente analíticos. “Era natural que [...] a interpretação fosse vista, de início, apenas sob dois prismas dominantes: um prisma literal ou gramatical, de um lado, e um prisma lógico-sistemático, do outro.” (REALE, 1998, p. 281). Por certo, existirão hipóteses em que o ordenamento apresentará lacunas. Não haverá, no repertório das regras contidas nos códigos, um texto adequado a solucionar determinada demanda. Nesses casos, admite-se o raciocínio por analogia (analogia legis), mediante o qual, “[...] estende-se a casos não expressamente previstos a mesma disciplina estabelecida por uma norma que prevê casos similares.” (BOBBIO, 2006, p. 215). Sustenta-se que o apelo a tal estratégia hermenêutica constitui: [...] uma atividade puramente interpretativa, porque o raciocínio por analogia é um raciocínio lógico, [...] do tipo silogístico (hoje diríamos um juízo analítico ou uma tautologia), que se limita a evidenciar certas conseqüências já implicitamente presentes nas premissas dadas. (BOBBIO, 2006, p. 216).

O recurso à analogia garante a expansão do ordenamento. A admissão de tal método depende, porém, de justificativas coerentes com os dogmas positivistas. Primeiro, há que o conceber como um processo lógico puro, em que ao intérprete não restam escolhas políticas ou morais. Caso contrário, o argumento de que constitui a jurisdição uma fonte jurídica secundária não se sustenta. “Quando recorremos, portanto, à analogia, estendendo a um caso semelhante a resposta dada a um caso particular previsto, estamos, na realidade, obedecendo à lógica substancial ou à razão intrínseca do sistema.” (REALE, 1998, p. 298). Depois, a fim de preservar o dogma da onipotência legislativa, apela-se a um conceito adicional: a vontade presumida do legislador. Isso permite ao intérprete positivista imputar as normas formuladas por ele ao soberano: “[...] à sua vontade expressa, no caso de interpretação em sentido estrito; sua vontade presumida, no

67

caso de integração.” (BOBBIO, 2006, p. 219). Assim, segundo a Escola da Exegese e as vertentes positivistas que a ela se seguiram, por meio da interpretação lógica e gramatical, “[...] o jurista cumpria o seu dever primordial de aplicador da lei, de conformidade com a intenção original do legislador.” (REALE, 1998, p. 282).

2.3 Uma concepção de Positivismo Jurídico

Como exposto na subseção anterior, Bobbio (2006) concebe o Positivismo Jurídico como um conjunto de doutrinas que compartilham alguns pontos de vista acerca do Direito e da abordagem jurídica. Dentre os aspectos que o autor atribui às correntes positivistas, destacam-se três teorias: a formalista, a da prevalência legislativa e a mecanicista. As definições propostas pelo pensador italiano são úteis não apenas pela clareza com que formuladas, mas também por demonstrarem afinidade com o contexto brasileiro. É notório o fato de que o sistema jurídico do País tem origens romanísticas e, mesmo modernamente, sofre expressiva influência das instituições jurídicas e dos teóricos da Europa continental. Todavia, a fim de alcançar os resultados pretendidos neste trabalho, as concepções do mencionado jurista terão de ser postas de lado. E o serão, em parte, pelos mesmos motivos que as tornam convincentes. Primeiro, porque Bobbio (2006) confessa adesão a pelo menos quatro das sete ideias positivistas de Direito que expõe. Entre elas, o jurista afirma concordar com duas daquelas que foram destacadas na subseção 2.2 por impactarem diretamente os resultados desta pesquisa: o método jurídico-formalista e a teoria da superioridade legislativa. Portanto, pelos critérios formulados pelo próprio autor, é forçoso considerá-lo um pensador positivista. Segundo, porque a familiaridade da perspectiva, que se demonstrou adequada para a exposição inicial, histórica e pretensamente descritiva dos elementos do Positivismo, torna-se, ela mesma, problemática ao avançar a investigação. Afinal, não é incorreto supor que a afinidade reflita uma grande influência teórica. Se o pensamento brasileiro majoritariamente recepciona e compartilha das posições do autor, seria um truísmo fazer uso delas para analisá-lo.

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Na primeira seção, expôs-se a hipótese a ser averiguada por este estudo. Pretende-se demonstrar que a perspectiva juspositivista da natureza da jurisdição foi determinante para a legitimação da Justiça Eleitoral, mas tornou-se insuficiente para justificar a atuação desse órgão, diante do reconhecimento de um novo paradigma hermenêutico. Só se pode verificar o acerto da afirmação se se adota um ponto de vista externo, tanto em relação às convenções intelectuais tradicionalmente dominantes no País quanto ao Positivismo Jurídico. Mesmo porque se presume a existência de uma relação entre aquelas convenções e esta corrente jurídicodoutrinária. Logo, o critério para avaliar a proposição tem que ser buscado num teórico que reconhecidamente pertença ao contexto pós-positivista. Dworkin (2007b) preenche esses requisitos. É sabido o papel do autor como expoente de um paradigma hermenêutico que pretende superar o Positivismo. Por esse motivo, o ministro Menezes Direito, no voto proferido durante o julgamento do MS n. 26.602, valeu-se da doutrina do teórico norte-americano para defender que o STF adotasse um método interpretativo novo, ao afirmar a existência do princípio constitucional da fidelidade partidária (BRASIL. Supremo..., 2007): Esse método chamado tradicional [que toma certo dispositivo apenas no sentido histórico, gramatical, sistemático] não consegue esgotar o alcance da Constituição, não sendo ele já agora suficiente para orientar a leitura da Constituição feita pela Suprema Corte. É necessário ir além para propiciar uma adequada presença da Constituição na vida social. Não é por outra razão que Ronald Dworkin enfrenta o que denomina leitura moral da Constituição norte-americana. (BRASIL. Supremo..., 2007).

Para o pensador estadunidense, o Positivismo representa uma concepção essencialmente convencionalista do Direito. Reconhece a existência de convenções acerca de quais são as fontes jurídicas, e afirma que os juízes são obrigados “[...] a aplicar aquilo que essas convenções declaram como direito em casos específicos, aprove-o ou não.” (DWORKIN, 2007a, p. 150). Delas decorrem somente os direitos e deveres individuais que estejam explícitos ou a partir delas possam ser explicitados “[...] por meio de métodos ou técnicas convencionalmente aceitos pelo conjunto de profissionais de direito.” (DWORKIN, 2007a, p. 119). A doutrina positivista faz derivarem duas conclusões das considerações acerca do convencionalismo que atribui ao Direito. A primeira é a de que diferentes convenções podem estabelecer fontes diversas para o Direito positivo e organizá-las de formas distintas. A segunda é a de que, uma vez convencionadas as fontes do Direito, ou seja, os órgãos autorizados a produzi-lo, as questões jurídicas “[...]

69

sempre podem ser respondidas mediante o exame dos arquivos que guardam os registros das decisões institucionais.” (DWORKIN, 2007a, p. 10). Apesar do relativo consenso entre os autores juspositivistas acerca do aspecto convencional do fenômeno jurídico, Dworkin (2007a) reconhece duas formas, ou versões, de convencionalismo. Elas se distinguem de acordo com a extensão, explícita ou implícita, que cada uma confere às convenções jurídicas. A extensão explícita é o conjunto de proposições que (quase) todos os que se diz participarem da convenção aceitam como parte da extensão dela. A implícita é o conjunto de proposições que se seguem da melhor ou mais bem fundada interpretação da convenção, independentemente de sê-la parte da extensão explícita. (DWORKIN, 1986, p. 123, tradução nossa).

A primeira forma de convencionalismo, a estrita, restringe o Direito da comunidade “[...] à extensão explícita de suas convenções jurídicas, como a legislação e o precedente.” (DWORKIN, 2007a, p. 152). A segunda, moderada, não o limita ao conteúdo explícito. Em verdade, “[...] inclui tudo que estiver dentro da extensão implícita dessas convenções.” (DWORKIN, 2007a, p. 152-153). Tal distinção é essencial para a correta caracterização do Positivismo. Apenas o convencionalismo estrito corresponde exatamente ao que Dworkin (2007b) entende por Positivismo Jurídico. Pois, para o autor, esta doutrina reduz o Direito ao conteúdo explicitado nas decisões institucionais anteriormente tomadas. Pressupõe sê-lo “[...] criado por práticas sociais ou decisões institucionais explícitas [...]” (DWORKIN, 2007b, p. XII). Os juspositivistas afirmam que o Direito “[...] nada mais é que aquilo que as instituições jurídicas, como as legislaturas, as câmaras municipais e os tribunais, decidiram no passado.” (DWORKIN, 2007a, p. 10). Adotam, então, o “[...] ponto de vista da simples questão de fato dos fundamentos do direito.” (DWORKIN, 2007a, p. 10). O jurista norte-americano atribui à doutrina positivista três afirmações essenciais19 (DWORKIN, 2007b): a) o Direito é um conjunto de regras especiais que podem ser identificadas e distinguidas com auxílio de critérios formais específicos, “[...] que não têm a ver com seu conteúdo, mas com o seu pedigree ou

19

Dworkin (2007b) reconhece que nem todo filósofo apontado como positivista subscreve tais preceitos da maneira como apresentados. Defende, porém, que os três elementos que identifica no Positivismo definem a posição geral da doutrina naquilo em que contraria a concepção de Direito que propõe. Nesta dissertação, procede-se da mesma forma, na medida em que se adota o jurista como marco teórico.

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maneira pela qual foram adotadas ou formuladas [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 28); b) “O conjunto de regras jurídicas é coextensivo com ‘o direito’ [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 28); e c) ausente uma regra assim reconhecida, não há Direito (DWORKIN, 2007b). No que se refere à alínea “a”, a asserção coincide com o que usualmente se denomina formalismo jurídico. Sob a perspectiva do Positivismo, as proposições jurídicas são tentativas de “[...] relatar significados ontologicamente independentes, espalhados entre os objetos do universo.” (DWORKIN, 2005, p. 252). Acredita-se que elas sejam descrições de fatos históricos comuns que regulamentam comportamentos individuais ou sociais. Na visão dos juspositivistas, a veracidade de uma proposição desse tipo depende da prévia ocorrência de um evento institucional nos termos estipulados pela convenção. Não necessariamente, contudo, defendem a identidade entre as proposições jurídicas e o evento histórico a que remetem. Mas faz parte do programa dessa corrente doutrinária a alegação de que “[...] as condições de verdade das proposições de direito não incluem nada além de tais condições históricas.” (DWORKIN, 2007b, p. 533). Ou seja, que [...] é característico de um sistema jurídico que um teste mais ou menos mecânico forneça as condições necessárias e suficientes para a verdade das proposições sobre o que o direito é, distintas que são das proposições sobre o que o direito deve ser. (DWORKIN, 2007b, p. 531).

Segundo essa doutrina, os fatos que compõem o objeto da prática jurídica são as regras sociais válidas. A validade consiste no atributo que adquirem após aprovadas em testes de pedigree convencionalmente reconhecidos. Os critérios adotados para testá-las diferenciam-nas tanto de regras espúrias, que, por um defeito formal, não vieram a ser jurídicas, quanto de outras regras sociais, “[...] que a comunidade segue mas não faz cumprir através do poder público.” (DWORKIN, 2007b, p. 28). Noutras palavras, o Positivismo supõe que, por meio da adequação a uma regra social comumente aceita, “[...] os padrões jurídicos podem, em princípio e como grupo, ser distinguidos de padrões morais e políticos.“ (DWORKIN, 2007b, p. 96). Nesse sentido, age como uma teoria semântica. Utiliza o termo “Direito” de maneira a significar apenas tal conjunto de regras distintas, públicas e confiáveis, reconhecidas como jurídicas porque qualificadas pelo teste fundamental válido.

71

Limita a linguagem, de forma a tornar a tese que defende verdadeira por estipulação. Assim, diferencia o Direito da justiça, “[...] uma questão que remete à melhor (ou mais correta) teoria do que é justo moral e politicamente [...]” (DWORKIN, 2007a, p. 122), e da tradição moral popular, [...] o conjunto de opiniões sobre a justiça e outras virtudes políticas e pessoais que são vistas como questões de convicção pessoal pela maioria dos membros dessa comunidade, ou, talvez, de alguma elite moral dentro dela [...] ao longo de um período histórico que inclui o presente. (DWORKIN, 2007a, p. 121)

Uma vez que os testes de pedigree são, eles mesmos, jurídicos e, portanto, distintos dos critérios fornecidos pela moral ou pela justiça, o Positivismo crê que o apelo às regras formais de validade é suficiente para separar as questões jurídicas das políticas ou morais. O objetivo, embora nem sempre admitido, é dúplice. Primeiro, definir um objeto de análise mais facilmente apreensível. Segundo, apresentá-lo sob uma perspectiva socialmente mais desejável. Pois as proposições políticas e morais são tidas como inerentemente controversas. Ao separá-las das proposições jurídicas, garante-se a estas a aparência de neutralidade exigida pela concepção estrita do princípio da legalidade. Ou seja, difunde-se a imagem de que as expectativas sociais serão asseguradas. (DWORKIN, 2007a). Reconhecida a existência ontológica e independente do Direito, “[...] a prática jurídica, bem compreendida, é uma questão de respeitar e aplicar essas convenções, de considerar suas conclusões, e nada mais, como direito.” (DWORKIN, 2007a, p. 142). Os órgãos encarregados da jurisdição se submetem ao dever de observar as convenções jurídicas em vigor naquele momento. “O direito é o direito. Não é o que os juízes pensam ser, mas aquilo que realmente é. Sua tarefa é aplicá-lo, não modificá-lo para adequá-lo à sua própria ética ou política.” (DWORKIN, 2007a, p. 142). O julgador deve extrair o significado jurídico das decisões reconhecidas como aptas a produzir as regras válidas. (DWORKIN, 2007a). Mas as técnicas de extração de sentido jurídico são elas mesmas convencionais, como as demais regras do sistema. E a segunda asserção essencial do Positivismo (alínea “b”), a qual decorre da primeira, propõe que o conjunto dessas regras coincide com o Direito. Ocorre que “O direito por convenção nunca é completo, pois constantemente surgem novos problemas que ainda não haviam sido resolvidos de nenhuma maneira pelas instituições que dispõem da autoridade convencional para resolvê-los.” (DWORKIN, 2007a, p. 142). Logo, a inexistência de

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regra ou convenção desse tipo produz uma importante consequência: da ausência de um padrão explícito, infere-se haver uma lacuna no próprio sistema (alínea “c”). A concepção positivista associa a prestação jurisdicional à leitura do repertório de leis disponíveis. Existe então o risco de que o aplicador se veja forçado a reconhecer que “[...] em alguns casos não existe direito algum.” (DWORKIN, 2007a, p. 144-145). Se um caso judicial [...] não estiver claramente coberto por uma regra dessas (porque não existe nenhuma que pareça apropriada ou porque as que parecem apropriadas são vagas ou por alguma outra razão), então esse caso não pode ser decidido mediante ‘a aplicação do direito’ (DWORKIN, 2007b, p. 28).

Um teórico que defenda essa visão sobre o papel do intérprete oficial oferece conselhos sobre os julgamentos controversos, em que a solução não decorre inequivocamente da lei. “Argumenta, positivamente, que os juízes devem decidir casos controversos tentando descobrir o que está ‘realmente’ no texto jurídico, em outro sentido dessa afirmação.” (DWORKIN, 2005, p. 10). Caso não seja possível fazê-lo, recomenda que o decisor encontre “[...] outro tipo de justificativa além da garantia do direito [...]” (DWORKIN, 2007a, p. 143). Nessas circunstâncias, o julgador tem que se basear em “[...] padrões extrajurídicos para fazer o que o convencionalismo considera ser um novo direito.” (DWORKIN, 2007a, p. 145). Para Dworkin (2007a, p. 28), está implícita nas proposições positivistas a autorização para que a autoridade pública encarregada da decisão, em certas situações, vá “[...] além do direito na busca por algum outro tipo de padrão que o oriente na confecção de nova regra jurídica ou na complementação de uma regra existente.” Isso não implica que o Positivismo reconheça algum aspecto criativo na decisão jurisdicional. Ao contrário, para essa doutrina, quando “[...] uma ação judicial específica não pode ser submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 127), o juiz “[...] legisla novos direitos jurídicos (new legal rights), e em seguida os aplica retroativamente ao caso em questão.” (DWORKIN, 2007b, p. 127, grifo do autor). À concepção positivista do Direito, associa-se, portanto, a teoria da decisão judicial que coloca “[...] o julgamento à sombra da legislação.” (DWORKIN, 2007b, p. 128). O Positivismo parte da premissa de que, na prestação jurisdicional, “Os juízes devem aplicar o direito criado por outras instituições; não devem criar um novo direito.” (DWORKIN, 2007b, p. 128). Reconhece, contudo, que na prática esse ideal não pode ser plenamente concretizado por duas razões: a vagueza ou a lacuna da

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legislação. Na primeira hipótese, como as leis “[...] são quase sempre vagas [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 128), elas “[...] devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos.” (DWORKIN, 2007b, p. 128). Na segunda, pelo fato de alguns dos casos colocarem problemas novos, eles “[...] não podem ser decididos nem mesmo se ampliarmos ou reinterpretarmos as regras existentes.” (DWORKIN, 2007b, p. 128). Os teóricos positivistas admitem, então, que “[...] os juízes devem às vezes criar um novo direito, seja essa criação dissimulada ou explícita.” (DWORKIN, 2007b, p. 128). Ressalvam, porém, que, ao fazê-lo, os decisores “[...] devem agir como se fossem delegados do poder legislativo, promulgando as leis que, em sua opinião, os legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema.” (DWORKIN, 2007b, p. 128-129). Dworkin (2007b) percebe subjazer à concepção positivista da atividade jurisdicional uma ideia profunda de subordinação conceitual e política entre jurisdição e legislação. O autor afirma existir uma suposição generalizada de que o Judiciário age como segundo Poder Legislativo. As decisões que toma nos casos em que não há uma regra explícita a aplicar têm a mesma natureza dos atos legislados. Sob tal ponto de vista, “Eles [os juízes] criam leis, em resposta a fatos e argumentos, da mesma natureza daquelas que levariam a instituição superior a criar, caso estivesse agindo por iniciativa própria.” (DWORKIN, 2007b, p. 129). Por óbvio, esse entendimento coloca a compreensão da atividade judicial na dependência da definição anterior da função legislativa. (DWORKIN, 2007a). Como visto nesta seção, diferentes concepções positivistas têm em comum o fato de atribuírem à legislação um caráter essencialmente criativo. Cabe ao legislador introduzir no Direito conteúdos novos, até então pertencentes à esfera política ou moral. Por contraste, percebe-se a jurisdição como uma atividade reveladora ou reprodutora. A atuação judicial nos casos que envolvem indefinição quanto ao texto da lei (vagueza) ou à existência da própria regra (lacuna) é, portanto, legislativa, não jurisdicional. Nas duas hipóteses, não há aplicação do Direito a um caso concreto, mas a criação jurídica excepcionalmente tolerada. Dessa forma, o Positivismo preserva a imagem politicamente neutra da jurisdição. A incerteza e a controvérsia, típicas das considerações políticas que acompanham os atos legislativos, só se reconhecem nos julgamentos não jurisdicionais. Na decisão propriamente jurisdicional, reserva-se ao juiz o papel do

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decisor que, objetivamente, sem considerações pessoais, subsume um fato ao tipo legal correspondente, explícita e publicamente reconhecido. Ou, noutras palavras, aplica as regras já juridicizadas pelo legislador. A despeito de ser cada vez mais incomum encontrar teóricos dispostos a defender publicamente a teoria do silogismo ou a do mecanicismo puro, a ideia de objetividade jurisdicional a elas subjacente parece ainda hoje familiar. Isso sugere que a repercussão das noções juspositivistas no pensamento jurídico brasileiro foi profunda. É verdade que não se encontram afirmações a favor da interpretação estritamente mecânica num autor positivista como Kelsen (2009), cuja influência no País é notável. Todavia, antes de ameaçar a hipótese desta pesquisa, tal dado ilustra que elementos da concepção do Positivismo acerca da aplicação do Direito se descolaram da doutrina dos principais autores e passaram a integrar o ambiente de fundo em que se desenvolvem as práticas jurídicas. A concepção neutra e objetiva da função jurisdicional foi suficiente para que as decisões judiciais, mesmo as eleitorais, que têm por objeto a disputa políticopartidária, fossem reconhecidas como legítimas (ou, ao menos, assim toleradas). Tamanha fora a difusão da ideia que, durante mais de um século, as investigações acerca do real sentido da neutralidade judicial promovidas por juristas e cientistas políticos pouco avançaram. Limitaram-se a aperfeiçoar aspectos secundários da doutrina, criando variações da teoria, sem alterar-lhe o essencial. [...] durante muito tempo, uma compreensão formalista do Direito julgou possível reduzir a aplicação da lei à estrutura de um silogismo, no qual a norma legal seria a premissa maior; a enunciação do fato, a premissa menor; e a decisão da sentença, a conclusão. À luz desses ensinamentos, não faltam processualistas imbuídos da convicção de que a sentença se desenvolve como um silogismo. (REALE, 1998, p. 303).

Para demonstrar que, como afirmado na seção 1, o Positivismo influenciou a organização das instituições judiciárias encarregadas do controle da legitimidade das eleições, nas seções 3 e 4, discutir-se-ão características do sistema brasileiro de verificação eleitoral. Antes, contudo, há que esclarecer alguns pontos acerca do que até agora se expusera. Considerar-se-á o Positivismo Jurídico como a teoria que apresenta os elementos identificados por Dworkin (alíneas “a”, “b” e “c”), associados à noção de decisão judicial dela decorrente. Assim tratada como uma corrente do pensamento jurídico moderno, a doutrina positivista pode ser apreendida como uma concepção acerca do Direito, que, embora demonstre variações, a depender do enfoque de um

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autor ou outro, possui elementos intrínsecos. O que interesse à pesquisa são tais ideias, não a opinião de cada teórico juspositivista. Desse modo, não há dificuldade em fazer uso de passagens de diferentes juristas, na medida em que sirvam para ilustrar ou destacar os aspectos essenciais expostos nesta subseção. Não se deve depreender disso que todos os teóricos mencionados, usualmente reconhecidos como positivistas, façam as três afirmações essencialmente positivistas exatamente como apontado. Por fim, ressalte-se que tanto a obra de Kelsen (2009) quanto a de outro autor considerado positivista, Luhmann (1980), a serem mencionadas nas seções seguintes, são posteriores à criação da Justiça Eleitoral brasileira, em 1932. Por óbvio, não se quer afirmar que elas a tenham influenciado. Em verdade, ambos os autores são enfrentados na medida em que se supõe que se relacionam com a estrutura atual da instituição, positivada pela CRF/88, e com o pensamento jurídico atualmente dominante – inclusive com as críticas de judicialização da política dirigidas contra os juízos eleitorais. De qualquer maneira, entendemo-nos autorizados a tal uso, na medida em que as duas teorias ilustram perspectivas diversas que partem de um paradigma positivista comum. Ou, para usar a imagem de Dworkin (2007a), são galhos que têm origem no tronco da mesma árvore.

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3 FUNÇÕES JUDICIAIS PARA CONTROLE DAS ELEIÇÕES

Ao analisar a principal obra de Montesquieu, Do Espírito das Leis, Paul Visscher (1947) observou que o filósofo iluminista não empregou nela a expressão “separação de poderes” nem se referiu a cada Poder como um ente personificado. Em verdade, diferenciou as funções fazendo uso de elementos que considerou intrínsecos a cada uma delas. Ademais, identificou a necessidade de que não estivessem concentradas nas mãos do príncipe ou dos mesmos magistrados. Mas não formulou propriamente um critério orgânico de partição, que vinculasse as atividades a sujeitos específicos. Ficou a cargo do liberalismo político fazê-lo. Com a constitucionalização das reivindicações liberais, a partir do fim do século XVIII, a organização tripartida de poderes se tornou uma técnica de distribuição

de

competências

prescritas

em

regras

jurídicas

positivas.

O

constitucionalismo iniciou o processo de regulação da matéria originalmente política pelo Direito. O que em Montesquieu (1979) era visto como inerente à natureza das coisas passou a ser tratado como um fato juridicamente qualificado. Tal positivação gerou duas importantes consequências. A primeira foi o estabelecimento de instituições permanentes para o exercício das funções. A segunda, a formulação de critérios jurídicos próprios para diferenciá-las. Uma vez reconhecidos os parâmetros para distinguir cada função, e instituídas organizações aptas a exercê-las, diferentes Estados adotaram técnicas também diversas para distribuí-las a cada instituição. Durante o período das grandes codificações e da expansão do Positivismo, concorrem dois modelos de separação. O da independência absoluta das atividades era então predominante. “Os escritores do século XIX e começo do século XX, em sua maior parte, criam na neutralidade e necessariedade da tripartição.” (MIRANDA, 1960, p. 348, grifo do autor). Concebiam as interações entre as funções do Estado como “Independentes, sem conflito, sem rivalidade, sem lutas, – tal como é o ideal (ou o sonho) da concepção apriorística da separação perfeita dos podêres [sic].” (MIRANDA, 1960, p. 348). A tradição das Constituições é no sentido da tripartição absoluta, pelo menos em tese, tendo-se chegado a uma espécie de personificação dos podêres [sic], pela imanência das funções, e a quase perfeita coincidência entre a diferenciação material e a formal (lei = o que sai do poder Legislativo). Diferenciação subjetiva dos órgãos. Nenhuma lei fora do órgão

77 legiferante. A rigidez das finas excisões anatômicas, que só o apriorismo sabe fazer. (MIRANDA, 1960, p. 351-352, grifo do autor).

Opina o cientista político John Ferejohn (2002): Deve ter parecido natural no século XVIII conceber os poderes governamentais naturalmente associados de alguma forma a departamentos institucionais específicos. Quem mais deteria o poder legislativo, senão o Legislativo? Então, em sua maioria, os teóricos atribuíram o poder legislativo ao Congresso, o poder executivo ao Presidente, e o poder judiciário à Suprema Corte [...]. (FEREJOHN, 2002, p. 47, tradução nossa).

Entretanto, no início do último século, a ideia da separação absoluta começa a ser substituída pela teoria concorrente, da especialização não exclusiva, associada à coordenação entre as funções. “Contra a repartição apriorística falavam duas experiências: a Constituição de 1791 e a dos Estados Unidos da América. [...] Sob outras formas, o fato se reproduziu por todo o mundo, alterando o conceito mesmo da divisão dos podêres [sic].” (MIRANDA, 1960, p. 351-352). Apesar da notória influência do princípio da separação de poderes na organização dos Estados modernos, ele foi adaptado aos diversos sistemas políticos em que se aplicou. Em especial, o rigor da associação de cada função a um conjunto específico de órgãos foi criticado e historicamente abandonado. Na prática, a necessidade de que novas condutas fossem constantemente normatizadas relativizou a repartição originalmente apriorística. “De fato, no Estado moderno, o Poder Legislativo produz apenas uma quantia muito pequena das normas sob as quais

vivemos.”

(FEREJOHN,

2002,

p.

48,

tradução

nossa).

Diante

da

impossibilidade de que um único centro produzisse normas na velocidade exigida por uma sociedade sempre em transformação, várias instâncias jurígenas foram reconhecidas como legítimas. A atividade legiferante tem lugar em qualquer departamento governamental; apenas a forma institucional difere de um órgão para o próximo. [...] algumas normas adquirem o aspecto particular de estatutos elaborados por congressistas em conformidade com procedimentos estabelecidos constitucionalmente, enquanto outras emanam de processos administrativos ou de decisões de casos jurídicos. (FEREJOHN, 2002, p. 47, tradução nossa).

Bonavides (2006, p. 158) chega a afirmar não existirem dúvidas de que, desfeita a ameaça de absolutismo do Estado que justificou a concepção oitocentista, “[...] a separação de poderes expirou desde muito como dogma da ciência.” O autor reconhece tê-la sido “[...] dos mais valiosos instrumentos de que se serviu o liberalismo para conservar na sociedade seu esquema de organização do poder.”

78

(BONAVIDES, 2006, p. 158-159). Mas aponta, também, que, “Como arma dos conservadores, teve larga aplicação na salvaguarda de interesses individuais privilegiados pela ordem social.” (BONAVIDES, 2006, p. 159). O professor entende que, “Contemporaneamente, bem compreendido, ou cautelosamente instituído, com os corretivos já impostos pela mudança dos tempos e das idéias [...]” (BONAVIDES, 2006, p. 159), o princípio pode coibir a formação de novos núcleos de concentração excessiva de poder: Convertido numa técnica substancialmente jurídica, o princípio que se empregou contra o absolutismo dos reis, o absolutismo dos parlamentos e o absolutismo reacionário dos tribunais, segundo demonstra, através da Suprema Corte, a experiência americana em matéria de controle de constitucionalidade das leis, não ficaria definitivamente posposto. Competiria pois a esse princípio desempenhar ainda, conforme entendem alguns de seus adeptos, missão moderadora contra os excessos desnecessários de poderes eventualmente usurpadores [...]. (BONAVIDES, 2006, p. 159, grifo nosso).

Incorporada ao ordenamento como princípio jurídico de controle do poder, a

separação

de

funções

foi

determinada

em

diversas

regras

positivas,

constitucionais e legais, de distribuição de competências. As atribuições de cada órgão passaram a ser, tanto quanto possível, detalhadamente estabelecidas pelo Direito. Disso decorre uma importante conclusão. Sem desconsiderar a técnica da especialização de poderes, o legislador constituinte pode adotar critérios diversos de distribuição de competências, os quais levem em conta, em maior ou menor medida, a natureza de cada um dos órgãos e das atribuições. Não há, nem nunca houve, perfeita simetria entre os órgãos e as funções. Bem que princípios a priori pretendessem e pretendam que a regra jurídica há de ser feita pelo órgão legislativo, que a execução caiba ao órgão executivo, e a função de julgar ao órgão judiciário, o que se vê, na vida real e no direito positivo, ainda onde se parta da separação dos podêres [sic], é competirem: ao Poder Legislativo atos e, pois, funções, que são executivas, e, às vêzes [sic], judiciárias; ao Poder Executivo, a edicção [sic] de regras jurídicas e a prática de atos que valem julgamento; e ao Poder Judiciário, atos puramente administrativos, tais como nomeações, concessões de licenças, demissões, bem como a colaboração, quotidiana e eficiente, na elaboração de regras jurídicas, ao lado daquelas que são formuladas pelo poder Legislativo ou daquelas que partem do Poder Executivo, ou, ainda, ao lado da criação costumeira. (MIRANDA, 1960, p. 363-364, grifo do autor).

Nesse sentido, não parece haver na doutrina controvérsia sobre o fato de que o constitucionalismo brasileiro não adotou o princípio da separação dos poderes como formulado por Montesquieu (1979) nem com o apriorismo e a rigidez proposta pelos liberais do século XVIII (BONAVIDES, 2006). Diferentes autores concordam acerca do caráter normativo da determinação, contida no art. 2º da CRF/88, de que

79

a relação entre os Poderes seja harmônica. Majoritariamente, concordam, também, quanto aos critérios básicos disponíveis para identificar cada função (v. seção 2). Materialmente consideradas, as funções legislativa e jurisdicional adquirem muito comumente as características expostas na subseção 2.3. A legislação é vista uma atividade criativa e politicamente influenciada, no sentido de que introduz no Direito conteúdos novos, até então pertencentes à esfera política ou moral. A jurisdição, diferentemente, consiste na solução de casos concretos mediante a aplicação das matérias já juridicizadas pelo legislador. Nessa medida, é juridicamente reprodutiva e politicamente neutra. Todavia, como nem toda manifestação judicial possui tais características, é forçoso reconhecer que algumas decisões judiciárias não são propriamente jurisdicionais. Especificamente no que se refere a sentenças e acórdãos proferidos em situações de vagueza ou inexistência de texto legal expresso, tende-se a considerá-los atos materialmente legislativos. Essas hipóteses ilustram casos em que se introduzem no julgamento matérias notadamente controversas e sujeitas ao debate ideológico comumente associado ao legislador. Tratar-se-ia, portanto, de situações em que se substitui o juízo político do Poder Legislativo pelo do Judiciário. Historicamente,

outras

funções

originalmente

concebidas

como

legislativas foram atribuídas aos juízes. Segundo o cientista político norte-americano John Ferejohn (2002), três possibilidades de interferência dos órgãos judiciários nas atividades típicas de legislação têm adquirido crescente importância: a imposição de limites materiais às leis pelo controle de constitucionalidade; a formulação de políticas públicas por via jurisdicional; e o controle judicial do comportamento dos atores políticos: Podem-se distinguir pelo menos três maneiras pelas quais os tribunais têm exercido novos e importantes papéis em relação às legislaturas. Primeiro, têm aumentado a capacidade e a vontade de limitar e regular o exercício da autoridade parlamentar, mediante a imposição de limites substantivos ao poder das instituições legislativas. Segundo, vêm cada vez mais se tornando locais onde programas políticos substantivos são feitos. Terceiro, juízes cada vez mais se dispõem a regular a condução da própria atividade política – praticada por câmaras, agências e eleitorado, ou em torno deles –, por meio da construção de padrões de comportamento aceitáveis a serem seguidos por grupos de interesse, partidos políticos e representantes eleitos ou indicados. (FEREJOHN, 2002, p. 41, tradução nossa).

As três atividades têm em comum o fato de implicarem considerações valorativas, seja acerca das leis (na apreciação da constitucionalidade), seja acerca das metas a serem adotadas pelo governo para concretizar o interesse público (nas

80

políticas públicas), seja acerca da conduta dos agentes políticos (no controle da competição partidária). Noutras palavras, trata-se de situações em que o Poder Judiciário é provocado a manifestar-se não sobre uma controvérsia entre particulares, mas acerca de aspectos da própria organização estatal. Nesse sentido, elas se assemelham às hipóteses anteriormente mencionadas de legislação tolerada, por indeterminação ou lacuna legal. As cinco exigem do decisor um juízo manifestamente político. Sob a perspectiva do Positivismo, todas são antes compatíveis com as atividades materialmente governativas, de legislação e regulamentação, que com a neutralidade atribuída à atividade jurisdicional. Como se afirmara na seção 2.3, Dworkin (2007a; 2007b) depreende das afirmações juspositivistas essenciais uma conexão entre poder legislativo e atividade política, de um lado, e jurisdição e neutralidade, de outro. Pode-se agora compreender que o autor busca no interior do Positivismo uma concepção material de cada uma dessas funções. O jurista norte-americano observa que os teóricos dessa doutrina toleram a legislação excepcionalmente praticada pelo Poder Judiciário. Ele presume subsistir-lhes às principais alegações um critério substantivo de distinção dos poderes. Por certo, os autores que se identificam com os elementos essenciais do Positivismo não necessariamente admitem o uso de um parâmetro material de avaliação das atividades estatais. Ao contrário, expõem, em geral, critérios exclusivamente formais de distinção. Isso não obsta, porém, que se perceba a persistência, nessa corrente doutrinária, da ideia de que cada função demonstra aspectos materialmente distintos e juridicamente identificáveis. A constatação de que uma mesma atividade podia ser exercida por diferentes instituições, e de que atividades substancialmente diversas eram atribuídas a um único Poder gerava dificuldades teóricas ainda não superadas pelo pensamento do início do século XX, em grande parte, preso à rigidez da tripartição apriorística. A concepção formal do Estado e da separação dos poderes pretendeu contornar o problema por meio do reconhecimento do caráter normativo de todos os órgãos e funções estatais. Nos países cujo Direito tem origem europeia continental, como o Brasil, o formalismo20 impactou fortemente o pensamento jurídico. Mais especificamente, a teoria de Kelsen (2009) obteve ampla repercussão entre os

20

Ver definição de formalismo na seção 2.2.

81

doutrinadores brasileiros. No que tange à questão das funções normativas conferidas ao Judiciário, o jurista austríaco esclareceu que a jurisdição é também atividade de criação jurídica. Consequentemente, as decisões judiciais são normas, tanto quanto as leis, embora formalmente distintas.

3.1 Aspectos formais da separação de poderes

A teoria pura, de Kelsen (2009), dificilmente poderia ser considerada um exemplo do convencionalismo estrito que Dworkin (2007b) associa ao Positivismo. Primeiro, aquele autor nega que a extensão do ordenamento jurídico seja coincidente com a do conjunto de regras explicitamente contidas nas decisões institucionais anteriores. Em verdade, defende que “[...] quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta.” (KELSEN, 2009, p. 272). Por rejeitar a possibilidade lógica de lacunas no Direito, a doutrina que expõe se assemelha ao convencionalismo moderado: Do que fica dito resulta que uma ordem jurídica pode sempre ser aplicada por um tribunal a um caso concreto, mesmo na hipótese de essa ordem jurídica, no entender do tribunal, não conter qualquer norma geral através da qual a conduta do demandado ou acusado seja regulada de modo positivo. [...] A aplicação da ordem jurídica vigente não é, no caso em que a teoria tradicional admite a existência de uma lacuna, logicamente impossível. Na verdade, não é possível, neste caso, a aplicação de uma norma jurídica singular. Mas é possível a aplicação da ordem jurídica – e isso também é aplicação do Direito. (KELSEN, 2009, p. 273).

Segundo, Kelsen (2009) admite certa indeterminação na aplicação do Direito realizada pelo juiz, e atribui à atividade jurisdicional um caráter constitutivo21, 21

Não se deve confundir o aspecto constitutivo que Kelsen (2009) identifica na decisão judicial com o caráter construtivo ou criativo que Dworkin (2007a) atribui a ela. Ambos negam que a aplicação jurídica seja mecânica. Mas, como se verá na seção 5, este autor afirma que a jurisdição inova materialmente no Direito. O jurista austríaco, ao contrário, atribui a ela o efeito formal de “constituir” a norma interpretada ao reconhecer-lhe a constitucionalidade, entendida como um atestado de que foi produzida em conformidade com o que as regras constitucionais estabelecem para tanto: “Uma decisão judicial não tem, como por vezes se supõe, um simples caráter declaratório. A função do tribunal não é simples ‘descoberta’ do Direito ou juris-‘dição’ (‘declaração’ do Direito) neste sentido declaratório. A descoberta do Direito consiste apenas na determinação da norma geral a aplicar ao caso concreto. E mesmo esta determinação não tem um caráter simplesmente declarativo, mas um caráter constitutivo. O tribunal que tem de aplicar as normas gerais vigentes de uma ordem jurídica a um caso concreto precisa de decidir a questão da constitucionalidade da norma que vai aplicar, quer dizer: se ela foi produzida segundo o processo prescrito pela Constituição [...]” (KELSEN, 2009, p. 264).

82

sem com isso afirmar que tais características demonstram o exercício de outra função estatal, que não a jurisdição: Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada em lei não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral. (KELSEN, 2009, p. 390-391, grifo do autor).

No entanto, há na teoria pura elementos nitidamente positivistas que coincidem com a concepção fornecida por Dworkin (2007b). O jurista austríaco afirma que o Direito são fatos sociais juridicamente qualificados, um conjunto de regras escalonadas, distintas de outros padrões de conduta, como a moral. Os elementos que integram o ordenamento cumprem o requisito de adequação a uma norma fundamental, que faz às vezes do teste de pedigree do sistema (v. alínea “a” da subseção 2.3). No que afeta diretamente os resultados deste trabalho, Kelsen (2009), como os teóricos estritamente positivistas, afirma que as decisões judiciais constituem exercício tolerado da função legislativa: quando o conteúdo da sentença ou do acórdão não é predeterminado “[...] por uma norma geral criada por via legislativa ou consuetudinária, ou quando essa determinação não é unívoca e, por isso, permite diferentes possibilidades de interpretação.” (KELSEN, 2009, p. 278). Em ambos os casos, há exercício de atividade criativa pelo julgador, seja porque, no primeiro, criou-se Direito materialmente novo, seja porque, no segundo, “[...] a interpretação contida na decisão assume o caráter de uma norma geral.” (KELSEN, 2009, p. 278). O autor percebe que, nas duas circunstâncias, “[...] a concepção éticopolítica do juiz toma o lugar da concepção ético-política do legislador [...]” (KELSEN, 2009, p. 275-276). Não fala, então, em exercício da jurisdição. “Em ambos os casos, o tribunal que cria o precedente funciona como legislador, talqualmente o órgão a que a Constituição confere poder para legislar.” (KELSEN, 2009, p. 278). Kelsen (2009) concebe como órgãos da comunidade os indivíduos que, isolados ou em colégios, constituem cada Poder. A esses indivíduos, a comunidade confere um poder jurídico designado “competência”. Na medida em que certas funções não podem ser desempenhadas por todos, para que alguém atue como

83

órgão dotado daquela competência, faz-se necessária determinada qualificação: “[...] um indivíduo só é considerado como órgão do Estado quando seja chamado ao exercício desta função através de um processo determinado pela ordem jurídica.” (KELSEN, 2009, p. 324). O vínculo entre comunidade e órgãos é de tal natureza que, quando um destes exerce uma função, ela deve poder ser atribuída àquela, de forma “[...] que por isso se diz que é exercida pela comunidade, pensada como pessoa, através do indivíduo que funciona como seu órgão.” (KELSEN, 2009, p. 167-168). A comunidade a que se refere o autor é a própria ordem jurídica. “Uma comunidade de indivíduos, quer dizer, aquilo que a estes indivíduos é comum, consiste apenas nesta ordem que regula a sua conduta.” (KELSEN, 2009, p. 168). Logo, “[...] ordem [jurídica] e comunidade não são dois objetos distintos [...]” (KELSEN, 2009, p. 168), e “Atribuir à comunidade um ato de conduta humana [...] significa [...] referir esse ato à ordem que constitui a comunidade, concebê-lo como um ato que a ordem normativa autoriza [...]” (KELSEN, 2009, p. 168). A ordem jurídica é um sistema de normas escalonadas em diferentes camadas e níveis cuja unidade se garante pelo fato de a validade de cada uma delas se fundar na norma fundamental. O escalonamento se dá de tal forma que a norma superior é mais geral que a imediatamente inferior e regula o modo como esta será produzida. Cada norma estabelece, ao menos, a competência para que determinados órgãos produzam as normas inferiores. Dessa forma, a competência de um órgão inferior deve sempre poder ser remetida a um superior, tanto quanto a norma inferior à superior. Pois o Estado, o conjunto de órgãos que o compõem, é apenas uma ideia personificada da ordem jurídica. (KELSEN, 2009). Se há identidade entre o Estado e a ordem normativa escalonada, certa divisão de tarefas de acordo com o critério da especialização funcional é essencial à própria noção estadual e dela indissociável. A ordem estatal constitui “[...] uma organização no sentido estrito da palavra, quer dizer, tem de instituir órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho para criação e aplicação das normas que a formam [...]” (KELSEN, 2009, p. 317). Isso acrescenta mais um elemento ao conceito de órgão exposto acima: o funcionamento “[...] segundo o princípio da divisão do trabalho [...]” (KELSEN, 2009, p. 324). Dizer que os órgãos do Estado são encarregados do exercício de certas funções significa que estão autorizados a fazê-lo em nome da comunidade. Kelsen

84

(2009, p. 169) usa o termo “autorização” “[...] no sentido mais estrito de atribuição de um poder jurídico, isto é, da capacidade de produzir e aplicar normas jurídicas [...].” Decorrem dessa definição duas conclusões relevantes. A primeira é a de que, se o órgão abusa do poder de que dispõe, se extrapola os limites da competência, não o faz em nome do Estado. Não há autorização para o exercício ilegítimo (porque desautorizado) de função estatal: Se se limita nestes termos aquela atribuição à comunidade jurídica, o indivíduo, na medida em que ponha um fato ilícito e, assim, realize uma conduta não ‘autorizada’, na medida, portanto, em que atue fora da sua autorização, quer dizer, fora da sua competência, não é considerado como órgão da comunidade e a sua conduta não é interpretada como função de um órgão [...].” (KELSEN, 2009, p. 170).

A segunda conclusão é a de que todos os órgãos com autorização para exercer funções jurídicas produzem e aplicam o Direito simultaneamente quando atuam. Portanto, a distribuição de funções não pode mais se basear na antiga definição de Montesquieu (1979), para quem o poder legislativo é o de fazer leis, e o judiciário, o de aplicá-las. A teoria proposta por Kelsen (2009) esvazia o sentido da distinção material dos poderes como até então concebida. Dado inexistirem diferenças a priori entre a natureza das duas competências jurídicas, o critério a adotar para a separação só pode se referir ao conteúdo delas se este for concebido como algo inseparável do modo de exercício da própria competência. O autor estabelece como distinção material entre as duas espécies de poder o fato de elas terem ou não o conteúdo determinado por uma regra hierarquicamente superior. Trata-se, pois, de um critério relacional, externo a elas. Pois o jurista austríaco entende que as normas individuais judiciárias “[...] são determinadas, tanto sob o aspecto formal como sob o aspecto material, pelas normas legislativa ou consuetudinariamente criadas [...]” (KELSEN, 2009, p. 258). A lei, ao contrário, é, em geral, determinada apenas formalmente: A Constituição (no sentido material da palavra) em regra apenas determina os órgãos e o procedimento da atividade legislativa e deixa a determinação do conteúdo das leis ao órgão legislativo. Só excepcionalmente – e, de modo eficaz, apenas por via negativa – determina o conteúdo das leis a editar, excluindo certos conteúdos. (KELSEN, 2009, p. 258).

Órgãos diversos são encarregados da aplicação e da criação de normas de diferentes níveis, tanto mais específicas quanto mais baixo o grau na escala normativa. Ao Poder Legislativo compete aplicar diretamente a Constituição e criar leis, normas gerais que ligam “[...] a um fato abstratamente determinado uma

85

conseqüência igualmente abstrata [...]” (KELSEN, 2009, p. 256). Ao Poder Judiciário, cumpre aplicar as normas gerais legisladas e criar normas jurídicas individuais. Pois “[...] a aplicação de uma norma geral a um caso concreto consiste na produção de uma norma individual, na individualização (ou concretização) da norma geral.” (KELSEN, 2009, p. 256). Logo, o juízo da jurisdição é, “[...] como a lei que aplica, [não] um juízo no sentido lógico da palavra, mas uma norma – uma norma individual, limitada na sua validade a um caso concreto, diferentemente do que sucede com a norma legal, designada como lei.” (KELSEN, 2009, p. 21). Embora essas duas conclusões nos sejam úteis, a segunda terá de ser parcialmente abandonada. A avançar a investigação, pretende-se demonstrar que as normas que constituem a decisão judicial não são necessariamente mais específicas nem ocupam inevitavelmente o nível mais baixo da ordenação vertical das normas jurídicas. As decisões jurisdicionais sobre matéria constitucional não possuem grau ou abrangência menores que os de uma lei. Isso é facilmente percebido no julgamento do MS n. 26.602/07 (BRASIL Supremo..., 2007), em que o STF declarou a existência do princípio constitucional da fidelidade partidária (v. seção 1.2). O acórdão proferido pelo Tribunal adquiriu, naquela hipótese, o caráter de norma tão geral quanto os artigos objeto de interpretação e de grau hierárquico imediatamente infraconstitucional.22 A definição de lei e decisão jurisdicional proposta por Kelsen (2009) repete a insuficiência das doutrinas tradicionais da tripartição de poderes. O critério material que propõe para diferenciar a jurisdição da função legislativa qualifica cada uma delas em razão da determinação do teor pela ordem jurídica. Os atos jurisdicionais têm necessariamente o conteúdo definido por uma regra de um escalão superior; os legislativos, não. Nisso, a doutrina kelseniana não difere da teoria positivista da decisão judicial. Já os critérios formais que o autor usa – a generalidade e o nível hierárquico – só aparentemente suprem a necessidade de distinção que se refira à substância dessas atividades. A teoria desconsidera que algumas sentenças e acórdãos sobre os quais não há dúvida quanto ao caráter jurisdicional não constituem normas específicas, e, sim, gerais. Ignora, enfim, que toda decisão judiciária, ainda que leve à criação de uma norma menos abrangente e

22

Em se tratando de uma regra não explícita decorrente de um princípio da CRF/88, há que indagar se a posição que ocupa na ordenação vertical das normas jurídicas não é superior à das leis.

86

de menor escala, subsumível ao caso concreto, (re)cria também uma norma mais geral e de maior hierarquia, na medida em que a aplica (v. subseção 5.1.) De qualquer maneira, a aceitação e a grande repercussão das teorias de Kelsen (2009) terminaram por concluir o processo, iniciado pelo constitucionalismo do século XVIII, de juridicização da repartição dos poderes estatais. A perspectiva kelseniana contribuiu para tornar jurídicos os conceitos até então políticos relacionados à ideia. O fato de o Estado haver imposto certa tarefa a determinado órgão tornou-se um critério para adjetivar tal atividade. Um critério orgânico formal, não coincidente com o objetivo material. Nesse sentido, um Positivismo extremo defende que tudo quanto elaborado pelo Poder Legislativo é exercício de função legislativa; pelo Executivo, função executiva; e pelo Judiciário, jurisdicional. Ao afirmá-lo, pressupõe uma concepção formalista de tais funções. Entende desnecessário dizê-lo, por desconsiderar a possibilidade de uso da concepção material dos mesmos termos. Um Positivismo mais moderado pode, porém, partir da premissa da existência dos dois critérios jurídicos, o formal e o material, para chegar a uma conclusão diferente. Reconhece que os poderes adquiriram para o Direito significado objetivo diverso daquele que inspirou as primeiras noções políticas de cada uma das funções. Mas, da não coincidência dos sentidos, não infere a necessária exclusão do critério substancial. As doutrinas positivistas que negam a possibilidade de uso dos conceitos materiais juridicizados repetem o erro dos liberais novecentistas, embora partam do ponto de vista oposto. Ambos afirmam a coincidência entre o poder e a instituição estatal encarregada de exercê-lo. Divergem apenas quanto ao pressuposto adotado. Estes se valiam da concepção apriorística para afirmar a naturalidade de que toda a função legislativa estivesse atribuída ao Poder Legislativo. Aqueles, de um critério objetivo formal, para demonstrar que todos os atos emanados pelo Legislativo são leis. É possível, todavia, fazer uso concorrente das concepções objetivas material e formal.

Afinal, tal regra implícita não pode ser revogada por via legislativa, senão por uma emenda à Constituição, nas hipóteses em que admitida.

87

3.2 O modelo brasileiro de distribuição de funções

Com a juridicização dos Poderes e das funções, o ideal político da separação se converteu num princípio jurídico. As três atividades estatais, originalmente

concebidas

como

espécies

aprioristicamente

distintas,

foram

diferenciadas por regras positivas e determinadas em competências, distribuídas, em cada Estado, a diferentes órgãos, de acordo com critérios formais próprios. A normatização conformou os poderes de modo a torná-los substancialmente diversos dos imaginados por Montesquieu (1979). No País, não foi diferente. Logo, não deve causar espanto a constatação de que o modelo brasileiro atribui aos órgãos do Poder Judiciário não só a função de julgar, mas também a de administrar e, em algumas circunstâncias (BRASIL. Supremo..., 2008), legislar. [...] não há poder Judiciário a priori, nem funções que tenham de pertencer, a priori, ao Poder Judiciário. [...] Na distribuição das competências dos Estados, cabe-lhes um bloco de poderes, que cada um deles reparte segundo a inspiração do seu círculo de cultura, isto é, segundo o que lhe parece melhor do seu tempo e em tôrno [sic]. Poder Judiciário é apenas aquêle [sic] poder que foi separado dos outros (nem sempre independente) e no qual se concentrou maior quantidade de funções de julgamento, por aplicação de leis. (MIRANDA, 1947, p. 156, grifo do autor).

Se por ora se deixa de lado a tentativa de proceder à definição dos poderes que supere a perspectiva positivista, pode-se aceitar a versão da teoria kelseniana que predomina entre os doutrinadores brasileiros. Autores como Silva (2008b), Mello (2010), Moraes (2008) e Meirelles (2010) demonstram concordar que, embora haja atividades precípuas de cada Poder, todos desempenham, autorizados pela CRF/88, tarefas que, a rigor, não lhes são típicas. Da obra desses juristas, depreende-se haver também aproximado consenso quanto aos elementos de identificação das funções. Desse modo, segundo Meirelles (2010, p. 61), [...] a função precípua do Poder Legislativo é a elaboração da lei (função normativa); a função precípua do Poder Executivo é a conversão da lei em ato individual e concreto (função administrativa); a função precípua do Poder Judiciário é a aplicação coativa da lei aos litigantes (função judicial).

A definição de José Afonso da Silva (2008b), mais específica, avança a partir desses conceitos e propõe uma concepção de lei que, embora não elaborada por Meirelles (2010), pode ser inserida na citação exposta acima, sem alterar-lhe o

88

sentido. O constitucionalista desenvolve também uma distinção entre duas espécies de função executiva – a administrativa e a governativa – as quais serão aqui referidas, porém, como função administrativa em sentido amplo: A função legislativa consiste na edição de regras gerais, abstratas, impessoais e inovadoras da ordem jurídica, denominadas leis. A função executiva resolve os problemas concretos e individualizados, de acordo com as leis; [...] é cabível dizer que [...] se distingue em função de governo, com atribuições políticas, co-legislativas e de decisão, e função administrativa, com suas três missões básicas: intervenção, fomento e serviço público. A função jurisdicional tem por objeto aplicar o direito aos casos concretos a fim de dirimir conflitos de interesse. (SILVA, 2008, p. 108, grifo do autor).

Já Celso Antônio Bandeira de Mello (2010) repete os elementos mencionados pelos demais doutrinadores, mas inclui outros na diferenciação que sustenta. Especialmente no que diz respeito à função jurisdicional, o autor eleva a aspecto essencial da concepção que propõe o efeito exclusivo das decisões judiciais de fazer coisa julgada. Além disso, explicita, como também faz Kelsen (2009), a relação entre Constituição e lei, entre esta e os atos administrativos e, finalmente, entre estes e a jurisdição. [...] a função legislativa é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de normas gerais, normalmente abstratas, que inovam inicialmente na ordem jurídica, isto é, que se fundam direta e imediatamente na Constituição. Função jurisdicional é a função que o Estado, e somente ele, exerce por via de decisões que resolvem controvérsias com força de “coisa julgada”, atributo este que corresponde à decisão proferida em última instância pelo Judiciário e que é predicado desfrutado por qualquer sentença ou acórdão contra o qual não tenha havido tempestivo recurso. Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder Judiciário. (MELLO, 2010, p. 36, grifo do autor).

Das citações acima, podem-se extrair conceitos úteis das três funções estatais

básicas,

que

atendam

ao

critério

“objetivo

formal”,

apegado,

essencialmente, “[...] em atributos especificamente deduzíveis do tratamento normativo que lhes corresponda, independentemente da similitude material que estas ou aquelas atividades possam apresentar entre si.” (MELLO, 2010, p. 32-33). Não se pretende afirmar que esta definição atende plenamente às exigências de distinção entre o regular exercício da jurisdição e a atividade judicial que se considera avançar materialmente sobre a legislatura. Por não se dispor ainda de elementos suficientes para propor a concepção mais adequada, tomam-se as descrições a seguir como provisoriamente satisfatórias.

89

A legislação consiste na elaboração de leis, normas infraconstitucionais predominantemente gerais e abstratas autorizadas a inovar na ordem jurídica; a administração, na prática de atos infralegais que, por serem-no, se submetem ao controle da legalidade; a jurisdição, na aplicação provocada da legislação a demandas submetidas a juízo com o objetivo de obter uma decisão individual e concreta apta a tornar-se definitiva. Cada uma das atividades é típica de um conjunto de órgãos estatais que se denomina “Poder”, respectivamente, Legislativo, Executivo e Judiciário. Nenhuma, porém, é exercida com exclusividade. A função de julgar é considerada precípua do Judiciário, por dizer respeito à finalidade da instituição. Compete essencialmente aos juízes aplicar a jurisdição aos casos concretos a eles submetidos, mediante provocação dos legitimados. Já as outras duas funções – administrar e legislar – são tradicionalmente consideradas atípicas desse Poder, seja porque servem de meio à realização do fim (no caso da administração), seja porque excepcionais (legislação). Ilustra uma hipótese de exercício autorizado de função judicial administrativa a alínea “f” do inciso I do art. 96 da CRF/88, que dispõe competir aos tribunais “[...] conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem imediatamente vinculados [...]” (BRASIL, 1988). Nesse caso, o exemplo atende aos elementos da definição exposta nesta subseção. As condições para a concessão de licença, afastamento e férias dos juízes, desembargadores e ministros estão previstas na Lei Orgânica da Magistratura23; e as dos servidores, na Lei n. 8.112/90 (BRASIL. Lei n. 8.112, 1990), em se tratando dos serviços auxiliares dos órgãos judiciários federais24, ou na

23

A Lei Complementar (LC) n. 35/79 “Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional”. Estabelece, no art. 66: “Os magistrados terão direito a férias anuais, por sessenta dias, coletivas ou individuais.” (BRASIL, 1979). No art. 69, prevê a concessão de licença para tratamento de saúde, por motivo de doença em pessoa da família, e para repouso à gestante. Por fim, os arts. 72 e 73 estabelecem as seguintes hipóteses de afastamento: casamento; falecimento de cônjuge, ascendente, descendente ou irmão; freqüência a cursos ou seminários de aperfeiçoamento e estudos, a critério do Tribunal ou de seu órgão especial; prestação de serviços, exclusivamente à Justiça Eleitoral; e exercício da presidência de associação de classe. (BRASIL, 1979). 24 A Lei n. 8.112/90 “Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais”. Ela estabelece a seguinte regra para férias: “Art. 77. O servidor fará jus a trinta dias de férias, que podem ser acumuladas, até o máximo de dois períodos, no caso de necessidade do serviço, ressalvadas as hipóteses em que haja legislação específica.” (BRASIL, Lei 8.112, 1990). O art. 81 da mesma lei prevê que se concederão licenças ao servidor: por motivo de doença em pessoa da família; por motivo de afastamento do cônjuge ou companheiro; para o serviço militar; para atividade política; para capacitação; para tratar de interesses particulares; e para desempenho de mandato classista. Quanto aos afastamentos, são previstas as hipóteses para: servir a outro órgão ou entidade (art. 93); exercer mandato eletivo (art.

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legislação de cada estado-membro, se se tratar dos estaduais. Assim, a autorização de gozo desses benefícios é um ato infralegal, de mera execução da lei, e, por sê-lo, submete-se ao controle da legalidade estrita. A definição de função administrativa aqui proposta atende, pois, ao caso reconhecido do exercício atípico dessa atividade, mencionado, entre outros, por Silva (2008b) e Moraes (2008). Quanto à legislação excepcionalmente autorizada ao Poder Judiciário, um exemplo frequentemente oferecido é o da competência para a edição de normas regimentais (MELLO, 2010; MORAES, 2008). A alínea “a” do inciso I do art. 96 da CRF/88 confere aos tribunais o poder de: “[...] elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos [...]” (BRASIL, 1988). O caso, todavia, não se ajusta perfeitamente à definição proposta de função legislativa. O regimento, embora seja uma norma geral e abstrata, é infralegal, como são os atos administrativos, e não infraconstitucional, como os legislativos. Afinal, a CRF/88 determina que, ao exercer tal competência, os tribunais observem a legislação processual. Depreende-se que as normas regimentais não têm status legal – não podem derrogar ou ab-rogar os atos emanados pelo Poder Legislativo. Portanto, seria mais adequado classificá-las como exercício atos de administração em sentido amplo. De qualquer maneira, a atividade de elaboração de um regimento interno pode ser subsumida, sem necessidade de reformulação, à definição de uma das funções aqui propostas, embora não na geralmente apontada. Isso confirma a utilidade dos conceitos sugeridos e a constatação inicial de que nem toda competência judicial (conferida ao Judiciário) é jurisdicional. A concepção de funções típicas, relacionadas à finalidade do órgão, e atípicas, instrumentais e excepcionais, à primeira vista, contorna o problema da insuficiência dos critérios materiais positivistas, sem negar a importância da distinção formal. Admite que um mesmo Poder pode deter competências de natureza distinta. Simultaneamente, permite a adoção de procedimentos adaptados a cada órgão para exercício de cada atribuição. Desse modo, ainda que exerça, excepcionalmente, funções normativas administrativas e legislativas, o Judiciário o faz em situações específicas e segundo um procedimento diverso dos estabelecidos para o Legislativo e o Executivo. 94); estudar ou executar missão no exterior (arts. 95 e 96) e participar de programa de pósgraduação stricto sensu no País (art. 96-A). (BRASIL, Lei n. 8.112, 1990).

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Todavia, a análise das múltiplas atribuições conferidas à Justiça Eleitoral demonstra que a distinção entre funções típicas e atípicas com base na finalidade institucional e na frequência do exercício de cada atividade não oferece uma explicação adequada do modo como se estrutura o sistema brasileiro de separação de poderes. A juízes e Tribunais eleitorais competem tanto funções consideradas típicas quanto atípicas do Poder Judiciário como um todo. Contudo, não se pode afirmar, sem prejuízo de desconsiderar as singularidades do órgão, que certas atuações administrativas em sentido estrito sejam instrumentais ou que as normativas (administrativas em sentido amplo) sejam pouco frequentes. Os juízos eleitorais estão autorizados pelo CE (BRASIL, 1965), pela LC 64/90 (BRASIL, 1990) e pela Lei nº 9.504/97 (BRASIL, 1997), entre outras, a exercer, além da jurisdição, funções executivas, não como meio para a realização de poderes típicos, nem excepcionalmente, mas precipuamente. A partir da finalidade prevista na CRF/88, o controle da normalidade e da legitimidade das eleições, as competências da instituição “[...] se apresentam como um conglomerado indiviso, mesclando todo o gênero de atividades, sem prenunciar qualquer critério diferenciador.” (RIBEIRO, 1990, p. 110). E para aumentar o nível da preocupação do analista, não se poderá valer da discriminação de teor orgânico, dado que na situação em exame todas as competências pertencem a um dos ramos da instituição judiciária brasileira, necessitando assim que as diferenciações se estabeleçam tomando por base os dois outros aspectos formal e substancial. (RIBEIRO, 1990, p. 112).

A CRF/88 não fixou detalhadamente as atribuições desse ramo judiciário. Ao contrário, o caput do art. 121 remeteu a matéria ao legislador infraconstitucional: “Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.” (BRASIL, 1988). Esse dispositivo de eficácia limitada25 estabeleceu, porém, os limites para a posterior legislação ordinária em

25

Para José Afonso da Silva (2007, p. 82-83), têm eficácia limitada as regras constitucionais “[...] que não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais, porque o legislador constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do Estado.” No caso das competências da Justiça Eleitoral, a CRF/88 exigiu que uma lei complementar as previsse. Sem a norma infraconstitucional que desenvolva a eficácia do caput do art. 121, o dispositivo constitucional não teria, nos termos da doutrina de Silva (2007), aplicabilidade plena. Desse modo, sem o CE, que, embora originalmente uma lei ordinária, foi recepcionado pela CRF/88 como complementar, os efeitos do artigo permaneceriam reduzidos aos “[...] nãoessenciais, ou, melhor, não dirigidos aos valores-fins da norma, mas apenas a certos valoresmeios e condicionantes [...]” (SILVA, 2007, p. 83).

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sentido amplo.26 Primeiro, a CRF/88 determinou o órgão que a poderia exercer. Concedeu competência privativa para tanto ao Congresso Nacional. É o que se depreende da leitura do caput e do inciso I do art. 20, juntamente com o caput do art. 4827. Segundo, fixou a forma do ato e o procedimento a serem observados: lei complementar, elaborada em conformidade com o art. 69 da CRF/88.28 Terceiro, de maneira a vincular teleologicamente as leis que dispõem sobre a competência da Justiça Eleitoral, previu, no §9º do art. 14, os fins a serem por ela perseguidos: [...] proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Como esclarece Fávila Ribeiro (1990), o constituinte adotou o critério finalístico para nortear o legislador e assim lhe limitou a possibilidade de escolha. O cuidado com a indicação dos fins dessa Justiça especializada não resultou de uma casualidade. Relaciona-se com a técnica legislativa adotada, de dispor sobre a instituição por meio de uma regra constitucional de princípio institutivo, e não, de eficácia plena.29 Tal opção sugere a possibilidade de que ao órgão se atribuam legalmente outras funções além daquelas de que já dispõe. A intenção parece ter sido encarregá-lo do controle do processo eleitoral sem fazer uso de um rol exaustivo de estipulações constitucionais. Por controle do processo eleitoral, entende-se o conjunto de atividades de diferente natureza que visam a assegurar a legitimidade dos pleitos. A normal apuração da votação popular nas democracias representativas modernas se garante 26

Aqui, a expressão legislação ordinária designa a função legislativa, em oposição à constituinte. Abrange, portanto, o exercício legislativo propriamente ordinário (em sentido estrito) e o complementar. 27 Respectivamente: “Art. 20. Compete privativamente à União legislar sobre: I - [...] direito eleitoral [...]” (BRASIL, 1988) e “Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, [...] dispor sobre todas as matérias de competência da União [...]”, ambos da CRF/88 (BRASIL, 1988). 28 Nos termos do caput do art. 69 da CRF/88: “As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta.” (BRASIL, 1988). 29 Seguindo-se ainda a classificação das regras constitucionais, conforme proposta por Silva (2007, p. 82), consideram-se dotadas de eficácia plena aquelas que, desde a entrada em vigor, “[...] produzem todos os seus efeitos essenciais (ou têm a possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador constituinte, porque ele criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto.” Já por regras de princípio institutivo o autor se refere a uma subespécie das normas de eficácia limitada. Trata-se daquelas regras constitucionais que “[...] contêm esquemas gerais, um como que início de estruturação de instituições, órgãos ou entidades, pelo quê também poderiam chamar-se de normas de princípio orgânico ou organizativo.” (SILVA, 2007, p. 123). Nesse caso, compete ao legislador ordinário efetivamente regular a instituição.

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por mecanismos de verificação da legitimidade das eleições. Já na origem do sistema de controle brasileiro, “[...] a jurisdicionalização da atividade de verificação eleitoral [...]” (RIBEIRO, 1990, p. 111) levou ao ajustamento dos órgãos judiciais a “[...] peculiaridades da concepção representativa, com as quais haveriam de conviver em razão de suas finalidades institucionais, sem perder, no entanto, qualquer das características de sua natureza judiciária.” (RIBEIRO, 1990, p. 111). Ainda que seja comum encontrar na literatura política referências à Justiça Eleitoral como parte de uma espécie jurisdicional de tais sistemas, essa não parece a classificação mais adequada para o conjunto de instituições e práticas encarregadas do controle eleitoral no Brasil. A progressiva expansão do rol de funções conferidas aos juízes e aos Tribunais Eleitorais levou-os a exercer diferentes tipos de atribuições, que compreendem não apenas a jurisdição, mas também atividades administrativas em sentido estrito, consultivas e resolutivas (RIBEIRO, 2000; GOMES, 2009). Mais preciso seria falar, portanto, em sistema judicial, porque, independentemente da natureza das competências, todas são exercidas por órgãos do Poder Judiciário. Na medida em que os problemas a enfrentar na realização das eleições e na fiscalização dos pleitos se mostraram diversos, a Justiça Eleitoral se muniu de diferentes potencialidades. Partindo da definição provisória das funções proposta nesta subseção, podem-se agora analisar as atribuições a cargo dos juízes e dos tribunais envolvidos no controle eletivo.

3.3 As múltiplas funções da Justiça Eleitoral

Após a Revolução de 1930, o Brasil institucionalizou um modelo de controle das eleições exercido por órgãos tipicamente judiciários, com competência exclusivamente eleitoral ou não. Os juízes e os Tribunais Eleitorais foram criados pelo Decreto n. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932 (BRASIL, 1932), e posteriormente incorporados à Constituição de 1934 (BRASIL, 1934). A partir de então, com exceção do período ditatorial de 1937, quando foi desfeita, para depois ser reinstalada pelo Decreto n. 7.586, de 28 de maio de 1945, e recepcionada pela Constituição de 1946, a Justiça Eleitoral permanece como instituição central do

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sistema de verificação brasileiro. (RIBEIRO, 2000). Desde a origem, esse ramo judiciário acumula funções não classificadas como jurisdicionais, a partir das definições oferecidas pela doutrina tradicional: Art 83 - À Justiça Eleitoral, que terá competência privativa para o processo das eleições federais, estaduais e municipais, inclusive as dos representantes das profissões, e excetuada a de que trata o art. 52, § 3º, caberá: a) organizar a divisão eleitoral da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, a qual só poderá alterar qüinqüenalmente, salvo em caso de modificação na divisão judiciária ou administrativa do Estado ou Território e em conseqüência desta; b) fazer o alistamento; c) adotar ou propor providências para que as eleições se realizem no tempo e na forma determinados em lei; d) fixar a data das eleições, quando não determinada nesta Constituição ou nas dos Estados, de maneira que se efetuem, em regra, nos três últimos, ou nos três primeiros meses dos períodos governamentais; e) resolver sobre as argüições de inelegibilidade e incompatibilidade; f) conceder habeas corpus e mandado de segurança em casos pertinentes à matéria eleitoral; g) proceder à apuração dos sufrágios e proclamar os eleitos; h) processar e julgar os delitos, eleitorais e os comuns que lhes forem conexos; i) decretar perda de mandato legislativo, nos casos estabelecidos nesta Constituição e nas dos Estados. (BRASIL, 1934, grifo nosso).

E, nas últimas décadas, as competências a ela atribuídas ampliaram-se sensivelmente. Como destacado na subseção anterior, isso se deve, em parte, ao fato de terem sido desconstitucionalizadas. Passíveis de previsão legislativa infraconstitucional,

as

atribuições

eleitorais

puderam

ser

alteradas

por

procedimentos menos rigorosos que aqueles específicos para emenda à Constituição. Apesar das modificações, mantém-se o fato de que a instituição opera em três níveis de governança eleitoral. A ela cabem a formulação de regras para a competição político-partidária (rule making) e a aplicação das normas na condução do processo eletivo (rule application) e nos conflitos surgidos no correr de tal processo (rule adjudication) (MOZAFFAR; SCHEDLER, 2002). Constituem competências tipicamente jurisdicionais o processo e o julgamento dos crimes eleitorais, das arguições de inelegibilidade, das ações de cassação do registro e do diploma, e das reclamações motivadas pelas obrigações impostas por lei aos candidatos (RIBEIRO, 2000; GOMES, 2009). Mas a função jurisdicional pode também “[...] ter origem em procedimento administrativo que, em razão da superveniência de conflito, convola-se em judicial. Um exemplo dessa situação é possível ocorrer na transferência de domicílio eleitoral.” (GOMES, 2009, p. 57). Além das hipóteses mencionadas, Gomes (2009, p. 57) aponta ainda o

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exercício da jurisdição nas [...] decisões que imponham multa pela realização de propaganda eleitoral ilícita (LE, arts. 36, §3º, e 37, §1º) [...].” Já a condução do processo eleitoral é atividade predominantemente administrativa confiada ao corpo de juízes eleitorais. Abrange poderes de execução dos comandos legais, praticados na organização das eleições. As ações a serem realizadas pela instituição de controle na condução desse processo encontram autorização jurídica, quer listada expressamente na legislação, quer inserida na hipótese aberta do inciso XVIII do art. 23 do CE.30 Em ambos os casos, os atos praticados subsumem-se perfeitamente à definição de administração proposta na subseção anterior. São notoriamente infralegais e, por isso, submetem-se ao controle da legalidade – exercido, no caso, pela própria Justiça Eleitoral. José Jairo Gomes (2009) entende haver exercício de administração: [...] por exemplo, na expedição de título eleitoral, na inscrição de eleitores, na transferência de domicílio eleitoral, na fixação de locais de funcionamento de zonas eleitorais, na designação de locais de votação, na nomeação de pessoas para compor a Junta Eleitoral e a Mesa Receptora, na adoção de medidas para fazer impedir ou cessar imediatamente propaganda eleitoral realizada irregularmente (CE, art. 242, parágrafo único), na autorização de transmissão de propaganda partidária em cadeia ou em inserções regionais (LOPP, art. 46). (GOMES, 2009, p. 56).

O autor observa que não se aplica aos juízes eleitorais no exercício de tais tarefas executivas o princípio processual da demanda, característico da jurisdição e “[...] previsto nos arts. 2º e 262 do CPC, pelo que o juiz deve aguardar a iniciativa da parte interessada, sendo-lhe vedado agir de ofício.” (GOMES, 2009, p. 56). Conclui que a independência quanto à provocação dos interessados decorre do fato de as atividades eleitorais administrativas serem majoritariamente praticadas no exercício do poder de polícia. Quando age assim, o Estado está autorizado pela lei a, independentemente da disposição ou da concordância dos administrados, intervir na ordem pública e restringir a propriedade ou a liberdade individual de ação para garantir o interesse coletivo, “[...] o que é feito com a imposição de abstenções ou com a determinação de que certos comportamentos sejam realizados.” (GOMES, 2009, p. 56). Em grande parte, esses atos são vinculados, limitam-se a concretizar dispositivos legais cujos resultados e hipótese de incidência foram expressamente

30

O inciso XVIII do art. 23 do CE afirma competir privativamente ao TSE “[...] tomar quaisquer outras providências [além das previstas nos incisos anteriores do mesmo artigo] que julgar convenientes à execução da legislação eleitoral.” (BRASIL, 1965).

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tipificados. Ilustram essa espécie as funções de registro de partidos políticos, controle das atividades partidárias financeiras e contábeis, verificação da capacidade da pessoa que se deseja alistar eleitor, apuração dos resultados e diplomação dos eleitos. Outros procedimentos, no entanto, são discricionários. Nesse caso, resta ao administrador algum juízo de conveniência e oportunidade típico dos atos de decisão, mas limitado por parâmetros jurídicos rígidos. São exemplos as atribuições de fixar a data das eleições extemporâneas e organizar plebiscitos e referendos. (RIBEIRO, 2000). Todavia, alguns atos praticados no exercício de funções não jurisdicionais de controle das eleições não são administrativos em sentido estrito, como os expostos acima. Tal e qual os discricionários, não são desprovidos de conteúdo decisório. Mas, diferentemente deles, são gerais, abstratos e dotados de caráter normativo. Assemelham-se aos atos legislativos e em nada diferem dos regulamentares, praticados, respectivamente, pelo Poder Legislativo e pelo Executivo. Trata-se da competência para expedir instruções, distintas num aspecto essencial da jurisdição: não pressupõem a provocação, a atitude passiva diante dos conflitos sociais e políticos. Quando regulamenta a lei, o TSE age de ofício. Como dispõe o parágrafo único do art. 1º do CE, “O Tribunal Superior Eleitoral expedirá Instruções para sua fiel execução.” (BRASIL, 1965). No caso, o pronome “sua” se refere às normas contidas no próprio CE. Similarmente, o inciso IX do art. 23 da mesma lei prevê competir privativamente ao TSE “[...] expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código [...]” (BRASIL, 1965). Já o caput do art. 105 da Lei 9.504/97 estabelece: Até o dia 5 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos. (BRASIL, Lei n. 9.504, 1997, grifo nosso).

Conforme explica Gomes (2009): [...] as instruções e demais deliberações de caráter normativo do Tribunal Superior Eleitoral são veiculadas em Resolução. Esta é compreendida como o ato normativo emanado de órgão colegiado para regulamentar matéria de sua competência. (GOMES, 2009, p. 58).

O termo resolução se refere, segundo Mello (2010), à forma pela qual se exterioriza a vontade do Estado, que, no caso, continua a ser materialmente uma instrução. Trata-se, mais precisamente, da “[...] fórmula pela qual se exprimem as

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deliberações dos órgãos colegiais.” (MELLO, 2010, p. 441). Como a forma não altera a natureza regulamentar da norma expedida pelo TSE, “[...] toda a dependência e subordinação do regulamento à lei, bem como os limites em que se há de conter, manifestam-se revigoradamente no caso [...]” (MELLO, 2010, p. 369-370). O fato de tratar-se de competência eminentemente normativa leva parte da doutrina a entender que se observa uma função legislativa atipicamente atribuída a um órgão judicial. Outros autores, embora não o afirmem diretamente, conferem às instruções eleitorais características que podem levar a serem-nas identificadas com as leis. Gomes (2009, p. 59), por exemplo, afirma que “[...] as Resoluções expedidas pelo TSE ostentam força de lei.” O mesmo jurista alerta logo adiante: “Note-se, porém, que ter força de lei não é o mesmo que ser lei! O ter força, aí, significa gozar do mesmo prestígio, deter a mesma eficácia geral e abstrata atribuída às leis. Mas estas são hierarquicamente superiores às resoluções pretorianas.” (GOMES, 2009, p. 59, grifo do autor). Apesar da ressalva, respeitosamente se discorda do jurista. Considerando que as convenções explícitas que compõem o repertório jurídico brasileiro se submetem a uma ordenação vertical31, da CRF/88 aos atos administrativos, entende-se uma incorreção afirmar que um ato normativo infralegal tenha força de lei. Muito provavelmente, com isso se quis dizer que, aprioristicamente consideradas, ambas são normas (imperativas, portanto) e estruturalmente indistintas. Ainda assim, o risco de má interpretação é por demais elevado, e as consequências dela, desastrosas, como se verá na seção 6. Afinal, a expressão “força de lei” é utilizada no caput do art. 62 da CRF/88 para designar as medidas provisórias, normas que, embora formalmente expedidas pelo Poder Executivo, podem revogar atos legislativos. Tal não ocorre com as instruções. Comumente se supõe haver exercício da legislação “[...] quando a competência dos tribunais inclui a elaboração de regras gerais que afetam a todos e não somente aos reais litigantes [...]” (FEREJOHN, 2002, p. 44, tradução nossa). Mas tanto as leis, que resultam da função legislativa, quanto as resoluções expedidas por órgãos no exercício da autoridade administrativa, independentemente do Poder em que esteja abrigada, são regras que podem ter caráter geral e abstrato. Essas não são, portanto, características legais exclusivas. Nem decorrem da força 31

Como se exporá na seção 6, embora a ideia de ordenação vertical tenha ganhado notoriedade com Kelsen (2009), ela não é incompatível com o pós-Positivismo de Dworkin (2007b).

98

da lei, vez que um ato legislativo será cogente independentemente da especificidade e da abstração de suas disposições. Contudo, enquanto as leis, cuja validade deriva diretamente da CRF/88, são fontes primárias do Direito, inovam originariamente na ordem jurídica, a fonte imediata da validade das resoluções é a legislação. Daí serem normas infralegais e fontes secundárias de juridicidade. Dada a subordinação dos atos administrativos às leis (MELLO, 2010), não parece cabível afirmar que ambas as espécies possuem a mesma força. Quando expede instruções, a Justiça Eleitoral age como autoridade infralegal. E assim produz normas com força regulamentar. É condição para o exercício dessa competência que os órgãos dela encarregados se detenham a especificar

conceitos

e

procedimentos

correlacionados

à

matéria

eleitoral

anteriormente previstos em lei (RIBEIRO, 2000). Uma possível consequência da leitura apressada das definições que, mais ou menos incisivamente, comparam resoluções a atos legislativos é a divulgação de uma concepção de poder regulamentar que, em casos extremos, fornece à autoridade dele investida razões para desconsiderar os limites inerentes à regulamentação. Eis que não são raras as situações em que se acusa o TSE de agir como legislador extraordinário, criando regras que não especificam a lei, mas, diante do silêncio da legislação, dispõem sobre conteúdos jurídicos como se fossem autênticos atos legislativos. No caso da Resolução n. 22.526/07, emitida pelo TSE para regulamentar a perda do mandato eletivo em virtude da desfiliação partidária, o texto introdutório da norma não deixa dúvidas. Ao afirmar o propósito de “[...] disciplinar o processo de perda de cargo eletivo [...]” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.610, 2007), faz referência não a uma lei, como usualmente ocorre com os atos administrativos, mas ao acórdão prolatado pelo STF no MS n. 26.602 (BRASIL, Supremo..., 2007): O TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, no uso das atribuições que lhe confere o art. 23, XVIII, do Código Eleitoral, e na observância do que decidiu o Supremo Tribunal Federal nos Mandados de Segurança n.º 26.602, 26.603 e 26.604, resolve disciplinar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de desfiliação partidária [...]. (BRASIL. Tribunal... Resolução n.º 22.610, 2007, grifo nosso).

Contudo, há de observar, e alguém poderia argumentar em defesa do ato, que o texto da instrução não afirma tê-la sido editada no exercício da competência conferida pelo citado inciso IX do art. 23 do CE. Em verdade, ele faz menção expressa ao uso das atribuições decorrentes do inciso XVIII do mesmo artigo (BRASIL. Tribunal..., 2007). Este dispositivo prevê que compete privativamente ao

99

TSE “[...] tomar quaisquer outras providências que julgar convenientes à execução da legislação eleitoral.” (BRASIL, 1965). Aparentemente, com isso, o Tribunal pretendeu evitar acusações de ilegalidade das disposições da resolução que ultrapassam os limites do poder regulamentar. Não pôde, porém, ser bem-sucedido. A autorização contida no inciso XVIII é certamente mais ampla que a do IX. Abrange a prática de atos que assumem formas diversas da resolução. Ademais, a precisa extensão (e os limites) da competência para expedir instruções com base neste dispositivo é reconhecida praticamente sem discussão pelos teóricos do Direito Eleitoral (RIBEIRO, 2000) e do Administrativo (MELLO, 2010). Ao contrário, a do inciso XVIII, “[...] tomar quaisquer outras providências que julgar convenientes [...]” (BRASIL, 1965), é vaga e pouco estudada. Em relação a ela, porém, existe um indiscutível limite, estabelecido pela própria lei. A conveniência da adoção das medidas deve ser avaliada pela adequação à finalidade de executar a “legislação eleitoral” (BRASIL, 1965). Outra competência não jurisdicional com que se dotaram as cortes eleitorais é a consultiva. Exerce-se tal função ao responder consultas sobre matéria eleitoral formuladas em caráter hipotético, sem referência a situações concretas, por autoridades públicas ou partidos políticos. Por meio dela, previnem-se as controvérsias que possam impactar negativamente a normalidade do processo eletivo. Consultada, a Justiça Eleitoral dirime dúvidas acerca da interpretação do repertório normativo e jurisprudencial cujo objeto se relacione às eleições. A doutrina reconhece que, ao fazê-lo, o órgão atua como instituição eminentemente parecerista. (RIBEIRO, 2000; GOMES, 2009). Por força dos incisos XII do art. 23 e VIII do art. 30, ambos do CE, apenas os TREs e o TSE exercem tal atribuição.32 Cumpre indagar, contudo, se a competência eleitoral consultiva se subsume à descrição de qualquer uma das funções expostas na subseção anterior, ou se constitui atividade absolutamente peculiar, com características tão incomuns, que não pode ser compreendida por nenhum dos três conceitos da doutrina clássica de influência juspositivista.

32

Nos termos do art. 23 do CE, “Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior, [...] XII responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político [...]” (BRASIL, 1965), e, segundo o art. 30 da mesma lei, “Compete, ainda, privativamente, aos Tribunais Regionais: [...] VIII - responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas, em tese, por autoridade pública ou partido político [...]” (BRASIL, 1965).

100

Embora tradicionalmente se considere o ato praticado pelos Tribunais em resposta a consultas atividade diversa da regulamentar, ele também assume a forma de resolução. A jurisprudência do STF e do TSE trata as orientações expedidas pelas cortes eleitorais nessas circunstâncias como normas em tese, sem efeitos vinculantes nem dotadas de imperatividade. Para esses Tribunais, não se trata do exercício da jurisdição. Inexiste, pois, obrigatoriedade de que sejam seguidas por candidatos, partidos políticos ou órgãos estatais, judiciais ou não, ou pelo próprio colegiado que as expediu: Resposta de Tribunal Regional Eleitoral a consulta em matéria eleitoral não tem natureza jurisdicional, mas, no caso, é ato normativo em tese sem efeitos concretos por se tratar de orientação sem força executiva com referencia a situação jurídica de qualquer pessoa em particular. (BRASIL. Supremo..., 1990).

Antes de verificar se tal atividade pode ser classificada como uma das três funções estatais típicas, há que enfrentar a questão da normatividade da resposta. Pois o fato de ela ser uma norma (ainda que, segundo a jurisprudência dominante, em tese) não exclui a possibilidade de que possua caráter jurisdicional. Como observara

Kelsen

(2009),

o

exercício

da

jurisdição

é

normativo

porque

simultaneamente aplica o Direito a um caso concreto e cria uma norma específica para esse caso. Depreende-se, então, que, ao afirmar a natureza normativa da resolução consultiva, o STF pretendeu atribuir-lhe a generalidade e a usual abstração típicas das leis e instruções. Interpretação diversa não explicaria porque a jurisprudência da corte constrói uma relação opositiva entre os atributos “ter natureza jurisdicional” e “ser ato normativo” (BRASIL. Supremo..., 1990). Contra a hipótese, fala o fato de a resposta constituir uma orientação de observância facultativa, desprovida do efeito vinculante inerente às manifestações estatais. Mas tal argumento, levado ao extremo, conduziria ao absurdo. Negaria o próprio fato de tratar-se de manifestação do Estado. Afinal, todas as decisões do poder público, tanto as legislativas quanto as jurisdicionais e administrativas, são vinculantes em seu âmbito de incidência. Ademais, embora não haja a obrigatoriedade da adoção da resolução que responde à consulta, nada impede que os juízos inferiores ou mesmo o tribunal que a emitiu a adotem, como, de fato, com frequência ocorre. Nesse caso, dado o caráter hipotético da pergunta, os efeitos da pacificação da controvérsia acerca da melhor interpretação não se restringem às partes em juízo. Antes, alcançam toda a

101

coletividade. O sentido que o tribunal dá à norma que interpreta é indissociável dela. Definido o exercício da jurisdição como a aplicação do Direito a demandas provocadas com o objetivo de obter uma decisão apta a tornar-se coisa julgada, forçoso é reconhecer que a competência consultiva não é jurisdicional. Embora o processo só se inicie mediante provocação pelos legitimados previstos no CE, e nisso se assemelhe aos procedimentos jurisdicionais, a decisão que dele provém não é um acórdão. Não possui aptidão para constituir coisa julgada, atributo essencial das decisões definitivas proferidas no exercício da jurisdição. Considerá-la atividade administrativa implica, contudo, atribuir-lhe caráter infralegal e submetê-la a controle de legalidade. Não parece ser o que ocorre se os Tribunais, para responder adequadamente a uma indagação, têm de interpretar um dispositivo constitucional. A Consulta n. 1.398/07 é um exemplo (BRASIL. Tribunal... Consulta..., 2007). Conforme analisado na subseção 1.2, a Resolução n. 22.526/07, expedida em resposta à questão formulada pelo PFL, afirmou a existência do princípio constitucional implícito da fidelidade partidária e dele deduziu uma regra aplicável ao caso (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). Em situações como essa, a regra deduzida adquire substância e hierarquia infraconstitucional, não, infralegal. Em tese, qualquer conduta subsumível à regra legal interpretada é afetada pelos efeitos do significado atribuído a ela pela corte eleitoral. Isso torna as resoluções

consultivas

atos

muito

semelhantes

aos

postos

pela

função

administrativa, no caso de especificar o sentido da legislação, ou legislativa, quando o objeto é a CRF/88 – em ambas as hipóteses, precedida de um processo típico da jurisdição, mediante provocação do interessado. A demonstração de que as resoluções consultivas são substancialmente semelhantes às leis ou aos regulamentos administrativos, mas precedidas de um procedimento similar ao da jurisdição, sugere que o processo pelo qual se produz uma função estatal é um critério para diferenciá-la de outras, mas não suficiente. Tal conclusão força qualquer tentativa de entendimento dos poderes a retomar as perspectivas formal e material, concorrentemente. Por certo, isso não implica que a classificação

formal

se

restrinja

à

hierarquia

do

órgão/competência

no

escalonamento normativo, como defende Kelsen (2009). A posição da norma na ordenação vertical dos padrões jurídicos é um elemento adotado pelo sistema de Direito para diferenciar as funções. Mas, como se exporá na seção 4, o critério

102

formal deve considerar também o procedimento que precede cada espécie de decisão. Ademais, não se deve subestimar a afirmação de que, partindo dos conceitos positivistas, a resolução expedida no exercício da competência consultiva pode ter o caráter de legislação, a depender do conteúdo. Confirmada a natureza normativa em tese da resposta às consultas, como afirmam o STF e o TSE, não são desprovidas de razão as acusações de que há exercício de função legislativa nessa hipótese. Coerentemente com as noções positivistas subjacentes à teoria dominante, os acusadores supõem que, ao definir o sentido de uma matéria constitucional controversa, o órgão judiciário atua como legislador. Pois, partindo da perspectiva ontológica da tradicional doutrina da separação de poderes, haverá exercício materialmente legiferante mesmo pressupondo uma atuação de boa-fé dos membros da instituição – admitindo que eles se esforcem para não usurpar competências tipicamente legislativas quando respondem a consultas sobre a interpretação das normas da CRF/88. Há de indagar, porém, se os Tribunais Eleitorais detêm autorização para responder a consultas sobre a interpretação de dispositivos constitucionais. Uma interpretação positivista estrita obteria a resposta negativa, diante da competência exclusiva conferida ao Congresso Nacional para legislar sobre Direito Eleitoral (v. subseção 3.2). Por autorização, entenda-se o fato de a ordem jurídica vincular a determinada conduta consequências que não sejam punitivas – não sejam sanções, na concepção kelseniana. “Na medida em que com a expressão ‘autorização’ (’Ermächtigung’) está ligado o significado lateral de ‘aprovação’, tal expressão é utilizada num sentido mais estrito que não inclui a capacidade delitual.” (KELSEN, 2009, p. 164, grifo do autor). Nesse sentido, o exercício autorizado de uma função é necessariamente lícito; o abusivo, ilícito. Estendida a mesma lógica, por analogia, às resoluções emanadas com o fim de comunicar instruções sobre a interpretação do Direito Eleitoral, constata-se que também elas podem ter caráter de administração (como normalmente ocorre, quando regulamentam as leis) ou legislação (nas situações em que instruem a CRF/88). Neste caso, porém, há que indagar se a atividade legislativa é autorizada. Ou seja, se há um padrão jurídico que preveja a possibilidade de que seja exercida. Afinal, os dispositivos legais que dispõem sobre a competência regulamentar, o art. 1º e o inciso IX do art. 23 do CE (BRASIL, 1965) e o art. 105 da Lei 9.504/97

103

(BRASIL, 1997), expressamente a admitem apenas para instruir a execução das próprias leis que os contêm. A indagação se revela pertinente, pois a análise da Resolução n. 22.610/08 permite constatar que o ato não se restringiu a determinar conceitos e procedimentos já previstos em alguma regra legislativa superior. Ao contrário, verifica-se que, nela, sem previsão legal autorizativa, criaram-se: a) prazos, como o do §2º do art. 1º: “Quando o partido político não formular o pedido dentro de 30 (trinta) dias da desfiliação, pode fazê-lo, em nome próprio, nos 30 (trinta) subseqüentes, quem tenha interesse jurídico ou o Ministério Público eleitoral [...]” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.610, 2007); b) ações, como a do §3º do art. 1º: “O mandatário que se desfiliou ou pretenda desfiliar-se pode pedir a declaração da existência de justa causa, fazendo citar o partido, na forma desta resolução [...]” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.610, 2007); e c) direitos e deveres processuais, como os do art. 3º: “Na inicial, expondo o fundamento do pedido, o requerente juntará prova documental da desfiliação, podendo arrolar testemunhas, até o máximo de 3 (três), e requerer, justificadamente, outras provas, inclusive requisição de documentos em poder de terceiros ou de repartições públicas [...]” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.610, 2007). A possibilidade de que tenha ocorrido abuso de poder administrativo no caso – e usurpação de função legislativa – foi apreciada pelo STF no julgamento da ADI n. 3.999/08 (BRASIL. Supremo..., 2008). Na ocasião, o ministro Joaquim Barbosa, encarregado da relatoria, afirmou “[...] que as hipóteses que levam à perda do cargo eletivo e o procedimento respectivo são temas que devem ser tratados pelos órgãos de representação popular, com base em disposição expressa e inequívoca da Constituição.” (BRASIL. Supremo..., 2008). Segundo o relator, a CRF/88 “[...] reserva à lei a aptidão para dispor sobre matéria eleitoral (art. 22, I, 48 e 84, IV da Constituição).” (BRASIL. Supremo..., 2008). Para ele, trata-se, pois, de hipótese a ser disciplinada pela legislação: “Entendo que, em princípio, o debate legislativo é o ambiente adequado para resolver essas e outras questões, que são eminentemente políticas.” (BRASIL. Supremo..., 2008). Não obstante, Barbosa concluiu que:

104 A atividade normativa do TSE recebe seu amparo da extraordinária circunstância de o Supremo Tribunal Federal ter reconhecido a fidelidade partidária como requisito para permanência em cargo eletivo e a ausência expressa de mecanismo destinado a assegurá-lo. (BRASIL. Supremo..., 2008, grifo do autor).

O ministro não enfrentou o fato de a Resolução n. 22.610/07 não ter limitado a aplicação das prescrições nela contidas aos mandatos obtidos por meio da representação proporcional, como fizera o Acórdão no MS n. 26.602. Prevê o art. 1º da instrução: “O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa.” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.610, 2007). O texto deixou em aberto a possibilidade de o mandatário eleito pelo sistema majoritário também se submeter aos procedimentos ali estabelecidos. Tal extensão da hipótese de perda de mandato não decorre, porém, da decisão que o ato afirma regulamentar. Pois ela havia restringido a incidência do princípio da fidelidade ao âmbito do sistema proporcional (BRASIL. Supremo..., 2007). Apesar disso, o STF, “[...] por maioria, julgou procedente a ação direta e declarou a constitucionalidade da resolução impugnada, nos termos do voto do relator [...]” (BRASIL. Supremo..., 2008). Na prática, portanto, o Tribunal reconheceu que, em situações extraordinárias de inexistência de convenção jurídica explícita, a Justiça Eleitoral está autorizada a legislar. Tal conclusão depende, contudo, da prévia aceitação da ideia de que o abuso de uma função produz atos idênticos aos emanados no exercício regular de outro poder. A despeito das críticas que se pode fazer à decisão (v. seção 6), ela reconhece algo que não se deve desprezar. Deixada de lado a definição a priori, o Estado pode distribuir as três funções tradicionais de diversas maneiras. Os limites e as condições dessa partição têm, portanto, de ser encontrados no Direito positivo. Nenhuma das cinco possibilidades de interferência legislativa identificadas no início desta seção é, então, aprioristicamente ilegítima. “[...] o que está em jogo, institucionalmente, é a alocação do poder legislativo – o poder de estabelecer regras gerais de aplicação futura.” (FEREJOHN, 2002, p. 44, tradução nossa). O mesmo se pode dizer das funções atribuídas à Justiça Eleitoral. Elas só adquirem a condição de ilegitimidade se o agente encarregado de exercê-las abusa do poder de que dispõe, porque pratica o ato para alcançar finalidade diversa da legalmente estabelecida ou porque ultrapassa os limites jurídicos de sua

105

competência. Só se concebe a judicialização da política nesses termos, quando juízes e Tribunais Eleitorais fazem uso abusivo do poder que detêm, jurisdicional ou não, e ilegitimamente – porque não autorizados pelo Direito – praticam atividades materialmente legislativas precipuamente conferidas ao Poder Legislativo. Não se desconhece que alguns cientistas políticos partem de uma premissa diversa. Ferejohn (2002, p. 42, tradução nossa), por exemplo, chama de judicialização “[...] o fenômeno que de Tocqueville percebeu sobre a política americana há anos: a transformação das questões políticas em legais.” Para o autor estadunidense, trata-se do processo de deslocamento do poder, que, desde a Segunda Guerra Mundial, tem migrado dos órgãos legislativos em direção a tribunais e outras instituições jurídicas (FEREJOHN, 2002). Já Ferraz Júnior (V., 2008) entende que duas características da organização política brasileira por si sós apontam a judicialização da competição partidária no País: a adoção de um modelo judicial de governança eleitoral – ou, como aqui se prefere, de controle da legitimidade das eleições – e a atribuição, às decisões da Justiça Eleitoral, de potencial para impactar as regras da competição política. Não é esse, porém, o pressuposto adotado nesta pesquisa. O princípio da separação de poderes se converteu numa matéria prescrita em convenções positivas, nas leis e na Constituição. Logo, só se podem identificar os casos de interferência ilegítima de um Poder em outro pela desconformidade da conduta dos agentes estatais com aquelas normas. Seria um contrassenso afirmar que houve delegação ou usurpação de poder, constitucionalmente vedadas, nas hipóteses previamente autorizadas pelo Direito. De um lado, essa definição de judicialização da política restringe o sentido comum do termo. Deixam de pertencer ao significado dele as situações em que os órgãos judiciários juridicamente autorizados exercem funções materialmente legislativas. O conceito passa a remeter necessariamente a uma acusação de ilegitimidade. De outro lado, a concepção amplia o uso vulgar da expressão. Afirma que a judicialização pode ocorrer não apenas pelo exercício da jurisdição, mas também das demais funções atípicas e típicas, atribuídas, respectivamente, ao Poder Judiciário como um todo e especialmente à Justiça Eleitoral. Ressalte-se que o constitucionalismo brasileiro historicamente desautoriza o exercício das funções estatais por agentes públicos não investidos no Poder que as detêm, típica ou atipicamente. O art. 79 da Constituição da República dos

106

Estados Unidos do Brasil de 1891, por exemplo, dispunha: “O cidadão investido em funções de qualquer dos três Poderes federais não poderá exercer as de outro.” (BRASIL, 1981). A Constituição de 1934 manteve dispositivo com redação idêntica e a ele acresceu, no §1º do art. 2º, prescrição explícita mais restritiva: “É vedado aos Poderes constitucionais delegar suas atribuições.” (BRASIL, 1934). Praticamente todas as Constituições que se seguiram conservaram as duas regras, cuja redação foi modificada na CRF/67, de forma que um único dispositivo, o parágrafo único do art. 6º, passou a abranger ambas: “Salvo as exceções previstas nesta Constituição, é vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições; o cidadão investido na função de um deles não poderá exercer a de outro.” (BRASIL, 1967). O texto da CRF/88 não repetiu a regra da vedação da delegação de atribuições, expressamente prevista nas cartas anteriores. Não obstante, a doutrina majoritária entende serem tais proibições explícitas desnecessárias, porque “[...] a Constituição, agora como antes, estabelece incompatibilidades relativamente ao exercício de funções dos poderes (art. 54), e porque os limites e exceções ao princípio decorrem de normas que comporta pesquisar no texto constitucional.” (SILVA, 2008, p. 111). Sob influência de um Positivismo moderado, fala-se em analogia, ou em regras implícitas, por meio das quais se completa, logicamente, o conteúdo das convenções explícitas, de modo que, por não autorizar explicitamente a delegação, entende-se que a CRF/88 a vedou. É possível, porém, compreender sob a perspectiva do novo paradigma interpretativo a afirmação de que as incompatibilidades decorrem de padrões constitucionais implícitos. Os teóricos que o fazem enxergam as normas como um gênero, que inclui não só a espécie regras, mas também os princípios (DWORKIN, 2007b). Ressalte-se, contudo, que, como se verá na seção 6, o apelo à concepção pós-positivista do Direito modifica a abrangência do conceito de judicialização abusiva da política. Permanece a exigência de que, para caracterizar o abuso, a atuação judicial não decorra de uma competência estabelecida normativamente. Passa-se a admitir, no entanto, que a autorização (ou, ao contrário, a desautorização) derive de normas que não sejam regras convencionais.

107

4 A LEGITIMAÇÃO DO SISTEMA DE CONTROLE DA LEGITIMIDADE

Não existe consenso sobre o significado da expressão “judicialização da política”. Apesar disso, autoridades judiciárias são frequentemente acusadas de cometê-la. Não somente os acusadores divergem dos acusados acerca das hipóteses em que o fenômeno ocorre – ou da gravidade da ocorrência –, mas também os membros de cada um dos grupos discordam entre si. Na subseção 3.3, propôs-se um sentido em que a crítica dirigida à atuação da Justiça Eleitoral pode ser compreendida: como uma afirmação que supõe a ilegitimidade da judicialização. Há que reconhecer possíveis, contudo, dois níveis de ilegitimidade. No primeiro, criticam-se as decisões políticas do poder constituinte. Questiona-se a própria distribuição de funções públicas aos órgãos estatais, sob o argumento de que ela confere prerrogativas excessivas ao Poder Judiciário em detrimento do Legislativo. No caso, indaga-se se a repartição de poderes positivada por um Estado específico é a mais adequada. Inevitavelmente, o critério a ser adotado para responder à pergunta terá de comparar a organização política vigente com a de outros países, com a de momentos anteriores da própria história institucional ou com as representações ideais do funcionamento do corpo político. No segundo nível, a judicialização da política é tratada como um fenômeno antijurídico. Em determinado ordenamento, as autoridades judiciais dispõem de competências típicas e atípicas estabelecidas na Constituição e nas leis. Todavia, se, no aparente exercício dessas atribuições, abusam ou excedem do poder, de forma a praticar atos legislativos não autorizados, judicializam a política. Dworkin (2007a) dá a cada uma dessas perspectivas o nome de, respectivamente, “ponto de vista exterior” e “ponto de vista interior”. Segundo o jurista, qualquer fenômeno social argumentativo, como o Direito, [...] pode ser estudado de duas maneiras, ou a partir de dois pontos de vista. Um deles é o ponto de vista exterior do sociólogo ou do historiador, que pergunta por que certos tipos de argumentos jurídicos se desenvolvem em certas épocas ou circunstâncias, e não em outras, por exemplo. O outro é o ponto de vista interior daqueles que fazem as reivindicações. Seu interesse não é, em última análise, histórico, embora possam considerar a história relevante; é prático [...]. Essas pessoas não querem que se especule sobre as reivindicações jurídicas que fazem, mas sim demonstrações sobre quais dessas reivindicações são bem fundadas e por quê [...]. (Dworkin, 2007a, p. 17-18).

108

Embora seja possível (e não incomum) discutir o modo como o Estado distribui funções aos órgãos encarregados de exercê-las – ou seja, criticar as opções legislativas e constituintes –, não parece ser o que ocorre quando a Justiça Eleitoral é acusada de judicializar a política. Se, como afirmado na seção 1, a atuação desse órgão é questionada quando se diz que ao Poder Judiciário não compete resolver sobre questões políticas, as acusações se dirigem a decisões específicas, não à instituição ou à organização estatal como um todo. “O que se entende afirmar é que se não pode intrometer em assuntos, encarregados, pela Constituição, ou pelas leis, à discrição de outro poder.” (MIRANDA, 1947, p. 182). Não é coincidência que a legitimidade seja elemento essencial do conceito de judicialização abusiva da política. A questão é intrínseca a organizações como as modernas, cuja estrutura se baseia no poder. Uma vez abandonados os modelos metafísicos que pretendem explicar a origem do Direito – baseados na noção de verdade –, o governo passa a ser tratado como produto da ação de homens. Faz sentido, então, indagar se a comunidade política não se poderia organizar de maneira diversa daquela como se apresenta. Se positiva a resposta, pode-se julgar se as alternativas concebidas ou comparadas histórica ou geograficamente são melhores – mais justas, por exemplo – que as concretamente existentes. Nem se estranha que, dada a relevância do conceito de legitimidade, haja diversas concepções a respeito dele. Dependendo do enfoque ou da teoria adotados, uma leitura se apresenta tão diversa de outra que, pode-se dizer, é quase impossível defini-lo com precisão. É possível, no entanto, como fez Luhmann (1980), identificar que, nas mais diversas acepções, o termo sempre se refere a uma relação entre consenso e coação.33 Lucio Levi (1998, p. 675), por exemplo, defende que a legitimidade “[...] consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos.” Embora tal definição seja exata quando se pensa a legitimidade como atributo do Estado, ela revela ter pouca utilidade quando se pretende, como neste trabalho, focar não na organização 33

Luhmann (1980, p. 29-30) não nega que a legitimidade pressuponha a existência de qualquer forma de relação entre coação e consenso. O autor apenas questiona a importância e a suficiência desses recursos “escassos” quando se pretende explicar a institucionalização e a generalização da legitimidade, as quais provocam, para ele, “[...] uma aceitação quase desmotivada [...]” (LUHMANN, 1980, p. 30) das decisões.

109

política total, suposta como legítima, mas em instituições e decisões específicas, cuja conformidade com o Direito se questiona. Na condição de órgão do Poder Judiciário, a Justiça Eleitoral é responsável pela aplicação da jurisdição e de outras funções estatais, o que ocorre necessariamente mediante o desenrolar de processos formalmente estabelecidos. Uma das conclusões provisórias da subseção 3.3 foi que o procedimento pelo qual se exercem as funções estatais oferece critérios formais para diferenciá-las. No caso do exercício jurisdicional, o fato de ser ele provocado, de não se iniciar pela deliberada iniciativa judiciária, caracteristicamente o distingue da legislação e da administração. Ocorre que os procedimentos não apenas permitem diferenciar as funções do Estado, como também as legitimam – ao menos, formalmente. Para um positivista como Luhmann (1980, p. 30, grifo do autor), a legitimidade consiste numa “[...] disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância.” (LUHMANN, 1980, p. 30, grifo do autor). O autor deixa propositadamente em aberto, no caso, a causa psicológica de tal disposição. Pois os próprios procedimentos juridicamente estabelecidos são tratados como fonte de legitimação do regime e das instituições. (LUHMANN, 1980). Contemporaneamente,

constata-se

a

dependência

da

noção

de

legitimidade da de Direito positivo. Legítima é a atuação autorizada por leis ou outras normas jurídicas. No entanto, faz-se necessário esclarecer em que sentido tal afirmação deve ser apreendida. É reconhecida pelas ciências políticas a existência de íntimas relações entre o problema da legalidade

e o da justificação das

instituições públicas. Diferentes pensadores conceberam explicações diversas para o fenômeno. Até o século XVIII, considerava-se “[...] a legitimidade como um valor na ordem abstrata dos conceitos [...]” (BONAVIDES, 2004, p. 34), relacionado ao Direito natural. O iluminismo oitocentista, amparado pelas cogitações racionalistas, tornou-a uma questão política ao vinculá-la à liberdade individual – à certeza dos governados quanto à proteção que a lei lhes assegura contra o arbítrio dos governantes. Conforme visto na seção 2, Montesquieu (1979, p. 148) concebeu a separação dos poderes por entender devido que ninguém fosse “[...] constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer as que a lei permite.” Pois, como fundamento da doutrina da tripartição, a legalidade integra os ideais do liberalismo político. E, com o

110

constitucionalismo, converte-se numa nova forma de legitimidade, típica do Estado moderno. “A crença da legalidade fora, aliás, a legitimidade dos sistemas jurídicos dos países burgueses do Ocidente: o pedestal das suas leis, dos seus códigos e das suas Constituições.” (BONAVIDES, 2004, p. 51). O século XIX foi marcado pela juridicização da legitimidade, que migrou “[...] das mãos do direito natural para a esfera do direito positivo ou que se exprime pelas regras dos Códigos e das Constituições, das leis ordinárias e das leis constitucionais.” (BONAVIDES, 2004, p. 42). O Positivismo mostrou-se decisivo nesse processo. Pelas vias formalistas, neutralizou e despolitizou o conceito. “Deixou [...] a legalidade de ser a legitimidade material do Estado burguês para se converter na sua legitimidade formal [...]” (BONAVIDES, 2004, p. 42). A perspectiva positivista reduziu a ideia do que é legítimo à do que é legal. “Com essa concepção formalista de lei e legalidade conduzida ao extremo, a legalidade deixava, portanto, de ser uma forma de legitimidade para se transverter, com o positivismo jurídico, na antítese da legitimidade.” (BONAVIDES, 2004, p. 44). No século XX, o formalismo de Kelsen (2009), embora não tenha negado a possibilidade de um juízo valorativo do Direito, relegou a matéria a outros ramos do conhecimento, como a Filosofia e a Sociologia. Suprimiu-a, pois, do debate jurídico-doutrinário. A ciência jurídica devia mostrar-se indiferente ao problema, vez que o Estado só compõe seu objeto de estudo na medida em que concebido como idêntico ao ordenamento escalonado de regras convencionalmente elaboradas. Na prática, então, os formalistas resolveram a questão da legitimidade pela supressão dela. Mas “A refutação da legitimidade como um valor em relação ao Direito não se cingiu tão-somente à escola clássica do Positivismo, aos utilitaristas e aos juristas do formalismo, nomeadamente os da teoria pura do Direito [...]” (BONAVIDES, 2004, p. 46-47). Para Paulo Bonavides (2004, p. 47), ela “[...] recebeu sua mais aperfeiçoada versão na obra de um jurista-sociólogo da envergadura de Niklas Luhmann.” Segundo este pensador alemão, o último século impeliu a noção de legítimo “[...] para a realidade pura [...]” (LUHMANN, 1980, p. 29), de modo que hoje legitimidade não significa outra coisa senão crença na própria legitimidade. O conceito historicamente usado na Idade Média para a defesa contra a usurpação e a tirania, esvaziado do sentido original, passou a nomear, para Luhmann (1980, p. 29), “[...] a convicção, realmente divulgada da legitimidade do direito, da obrigatoriedade de determinadas normas ou decisões ou do valor dos princípios que as justificam.”

111 [...] com o formalismo de Kelsen, o decisionismo de Schmitt e o funcionalismo procedimental de Luhmann, a legitimidade já não se define como uma crença na legalidade, senão como uma legalidade sem crença. [...] Em suma, com essas posições finais do positivismo, cada sistema jurídico se faz juiz de sua própria legitimidade, ou num entendimento mais rigoroso, cada sistema se legitima por si mesmo. (BONAVIDES, 2004, p. 51).

O Positivismo Jurídico mais extremo recusa falar em legitimidade material, por compreender que o conceito foi completamente absorvido pelo de legalidade. Considera que “[...] a indubitabilidade da validade legítima de decisões obrigatórias faz parte das características típicas do sistema político moderno [...]” (LUHMANN, 1980, p. 31). Se reconhece que “A legitimidade não pode ser considerada como algo mais do que uma relação jurídica consentida [...]” (LUHMANN, 1980, p. 139), reduz o consentimento a algo próximo de um consenso básico que estabiliza o sistema e “[...] que se pode alcançar sem acordo quanto ao que é objetivamente justo no caso particular [...]” (LUHMANN, 1980, p. 31). Luhmann

(1980)

defende

que

se

aceitam

os

governos,

independentemente dos governantes e das decisões governamentais específicas, porque os aspectos fundamentais da organização política são considerados legítimos. Entretanto, para o autor, o conceito de aceitação não diz respeito a convicções pessoais motivadas pela verdade, por exemplo. Refere-se, antes, ao fato de os indivíduos, independentemente dos motivos, adotarem as decisões dessas instâncias como premissas de comportamento, e, a partir delas, estruturarem as próprias expectativas. O fenômeno da aceitação desmotivada das decisões é, por isso, indissociável da positivação do Direito, imposta no século XIX. Pois ela permitiu que se concebessem as normas jurídicas como decisões fundadas exclusivamente em outras decisões. Assim, garantiu que o poder pudesse instituir seu próprio processo de legitimação. (LUHMANN, 1980). Na medida em que a verdade deixa de ser o principal mecanismo social de orientação dos indivíduos, o poder passa a exercer essa função. Mas este instrumento difere daquele em aspectos essenciais. A verdade transmite ideias com base na certeza. Ela é evidente e obrigatória. Quem não a reconhece se acusa de não estar no pleno gozo de suas faculdades sensíveis e intelectuais. Aquele que a afirma o faz como se portasse o sentido do mundo. O poder, ao contrário, implica a aceitação de ideias por motivo de filiação ou submissão. Quem detém o poder pode motivar outros a adotar suas decisões como premissas para restringir as próprias

112

alternativas de comportamento. Mas a redução das possibilidades de ação não é aqui apresentada como consequência da razão de ser do mundo ou de outro fundamento externo. O próprio poder que gera a decisão a torna legítima. Por isso, depende de razões adicionais de aprovação. Para Luhmann (1980), tais razões são criadas nos procedimentos juridicamente organizados. Nas palavras do ator, “[...] uma legitimação pelo procedimento não consiste em comprometer internamente o interessado, mas sim em isolá-lo como fonte de problemas e em apresentar a organização social como independente do seu acordo ou da sua rejeição.” (LUHMANN, 1980, p. 103). O conceito de validade do Direito – ou de vigência das leis –, essencial às teorias positivistas, exprime exatamente tal indiferença quanto à motivação individual para obedecer à norma ou rejeitá-la. (LUHMANN, 1980). Para o jus-sociólogo alemão, o consenso efetivo e a harmonia coletiva de opiniões sobre a justiça da decisão não é uma finalidade essencial da legitimação pelo procedimento. Não se pode concebê-la como “[...] ‘interiorização’ duma instituição, como conscientização pessoal de convicções socialmente construídas.” (LUHMANN, 1980, p. 100). Recebe-se a decisão como obrigatória sem depender de uma disposição interior. O que ocorre é a reestruturação das expectativas jurídicas. A concepção de aceitação como um processo psíquico que leva à satisfação interior do tipo agradável tem de ser, então, abandonada. O interessado aceita as decisões às quais reconhece obrigatoriedade – ou seja, aquelas que não pode alterar ou ignorar. Mas a solução psíquica que individualmente elabora para tanto não é posta em questão. (LUHMANN, 1980).

4.1 Condições formais de legitimidade: o Positivismo de Luhmann

A Justiça Eleitoral é a instituição encarregada pela CRF/88 e pela legislação do controle eleitoral no Brasil. Trata-se de um órgão judiciário no exercício de atividades materialmente jurisdicionais, legislativas – segundo a jurisprudência recente do STF (BRASIL. Supremo..., 2008) – ou administrativas. As funções estão intrinsecamente relacionadas à competição político-partidária e à finalidade, exposta pelo §9º do art. 14 da CRF/88, de garantir a legitimidade das eleições (BRASIL,

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1988). A compreensão do papel dessa instituição como centro do sistema de verificação eleitoral será indispensável para responder às indagações acerca da natureza das atividades que exerce – legítima ou abusivamente. Na medida em que o conceito de legitimidade é elemento essencial da concepção de judicialização abusiva da política, nesta seção, investigam-se as condições legitimadoras – os requisitos mínimos exigidos para que se considere autorizado o exercício da função estatal. Pois tais exigências serão, na subseção 4.2, aplicadas às duas dimensões a serem justificadas no controle eleitoral: as eleições e o próprio sistema que as verifica. A expressão “condições legitimadoras” possui dois sentidos. O primeiro, material, remete a fatores (comportamentos de indivíduos ou grupos) percebidos como compatíveis ou de acordo com o sistema de crenças da comunidade e tratados como fundamento ou finalidade das instituições e critério para julgar se “[...] o agir é orientado para a manutenção de aspectos básicos da vida política [...]” (LEVI, 1998, p. 678). O segundo, cuja versão mais atual e notável se encontra na obra de Luhmann (1980), refere-se aos aspectos formais – mais especificamente, processuais – que legitimam a estrutura jurídica, por serem capazes “[...] de produzir uma prontidão generalizada para aceitação de suas decisões, ainda indeterminadas quanto ao seu conteúdo concreto, dentro de certa margem de tolerância.” (FERRAZ JÚNIOR, T., 1980, p. 3). Segundo

Luhmann

(1980),

qualquer

procedimento

juridicamente

organizado, para garantir a legitimidade das decisões dele decorrentes, tem de assegurar: a) a especificação dos papéis dos participantes; b) a produção de incerteza quanto ao resultado; e c) a remissão a uma regra, que forneça apoio e controle e autorize a decisão. O autor trata os procedimentos jurídicos como sistemas diferenciados do ambiente circundante, a sociedade. Não porque estejam totalmente isolados, sem comunicação ou relação causal com o entorno. A diferenciação decorre da capacidade de seleção dos fatos exteriores que adentrarão o sistema. Só são válidos internamente os acontecimentos externos reconhecidos por meio da filtragem de informações. Cumpre a função de filtro um programa de seleção préconstituído, dirigido por critérios internos aos processos. Dessa forma, embora os

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procedimentos jurídicos sejam sistemas sociais, nem todos os fatos sociais são jurídicos. Como a autonomia perante o exterior é relativa, influências externas adentram os processos, desde que filtradas pelas regras jurídicas convencionais – critérios

publicamente

reconhecidos

porque

também

elaborados

mediante

procedimentos prévios. (LUHMANN, 1980). Nesse sentido, o Direito positivo, entendido como o conjunto de convenções, constitui uma condição para a autonomia dos sistemas jurídicos. Fornece as normas reguladoras, responsáveis pelo apoio, pelo controle e pela ocasião da decisão (alínea “c”). Mas não é só. Pois proporciona a diferenciação dos argumentos e dos papéis sociais com força estritamente moral daqueles com força conferida pelo próprio Direito (alínea “a”). O procedimento autônomo desvincula do ambiente externo, tanto quanto possível, os temas que compõem seu objeto e os papéis internos dos indivíduos. Torna os conflitos não generalizáveis. Isola os atores. (LUHMANN, 1980). Nem todos os que se interessam pela matéria tratada ou são por ela influenciados podem ocupar a posição de parte num processo. Isso contribui para insular temática e socialmente o indivíduo que participou da produção da decisão, mas não está de acordo com ela. Enquanto subsistir no ambiente social a convicção de que tudo se passa naturalmente, é generalizada entre os não participantes a ideia de que, eventualmente, caso se faça necessário, também eles poderão valerse daquelas instituições para recuperar ou garantir os próprios direitos e interesses. Desse modo, “[...] aquele que se quer revoltar contra uma decisão obrigatória não pode contar com o apoio dos outros. O seu protesto ser-lhe-á imputado e não atribuído a uma falha da instituição.” (LUHMANN, 1980, p. 104). Entretanto, a manutenção do clima de normalidade institucional e das expectativas difusas dos não participantes – a segurança de que, caso venham a participar, serão adequadamente considerados –, exige que a incerteza quanto ao resultado se mantenha durante todo o procedimento. Ela não é, pois, um elemento acidental ao procedimento. Antes, é o motivo que leva os partícipes a se comprometerem com a conclusão do processo (alínea “b”). Há uma função positiva na imprevisibilidade na solução de conflitos. Provém dela a própria força impulsionadora do trâmite processual. A incerteza leva os receptores da decisão a cooperar pelo andamento do processo – sem o qual não haveria sequer decisão. No desempenho das tarefas procedimentais internas, o partícipe confirma a validade

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das regras do sistema, a legitimidade do cargo do decisor e o próprio papel. (LUHMANN, 1980). Não que os participantes não se desiludam. Não se nega que alguns recebam o resultado com insatisfação ou indignação. A função dos procedimentos não é impedir desilusões, mas, sim, especificar o descontentamento. O objetivo é proteger os sistemas sociais. (LUHMANN, 1980). Ferraz Júnior (T., 1980, p. 4) observa que a legitimação pelo procedimento consiste, na realidade, na imunização da decisão final contra as inevitáveis frustrações, por meio da operação de “[...] uma ilusão funcionalmente necessária.” Para ele, contorna-se o problema da incerteza em relação “[...] a qual decisão ocorrerá pela certeza de que uma decisão ocorrerá [...]. O direito se legitima na medida em que os seus procedimentos garantem esta ilusão.” (FERRAZ JÚNIOR, T., 1980, p. 5). Nesse sentido, cabe aos procedimentos gerar ilusões permanentes. Para Luhmann (1980), as ilusões operam, no entanto, em níveis. No mais imediato, o interessado se convence da confiabilidade do sistema como instrumento de solução diferida das necessidades, cuja satisfação direta se adia e substitui por expectativas. Proporciona-se às partes uma segurança atual, a despeito da incerteza quanto ao futuro. O segundo nível de ilusão, mediato, decorre da função simbólicoexpressiva dos processos. Eles garantem às decisões a aparência de continuidade e identidade de forma. Cada um dos partícipes espera ser tratado de forma idêntica aos

demais.

Assim,

independentemente

do

resultado

concreto

de

cada

procedimento, a frustração decorrente da decisão é aliviada pelo reconhecimento de que ele foi conduzido de forma correta. (LUHMANN, 1980). Segundo o autor, essas ilusões são provocadas por aparências que o Direito projeta sobre si. O sistema mantém e até mesmo estimula duas ficções operacionais: a de que o processo jurídico constitui o próprio processo de decisão; e a de que a finalidade precípua de cada procedimento é declarada e publicamente reconhecida. (LUHMANN, 1980). No primeiro caso, Luhmann (1980) demonstra que nenhuma das espécies de procedimento jurídico – eletivos, administrativos, legislativos e judiciais – regulamenta os processos mentais pelos quais se selecionam e eliminam possibilidades. No máximo, servem à apresentação da decisão. Assim é que a verdadeira decisão obtida pelas eleições permanece como o resultado de escolhas individuais dos eleitores, que nem mesmo são obrigados a expô-las ou justificá-las.

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Do mesmo modo, embora a fundamentação da sentença judicial ou da decisão administrativa possibilite o controle e a revisão da decisão, ela não necessariamente constitui os motivos que levaram o decisor àquela manifestação. Ocorre que, ainda assim, a ficção da coincidência entre o processo jurídico e o de decisão se mantém – em muito, estimulada pelo modo como se estruturam os procedimentos. Essa ficção não degenera necessariamente em farsa. Normalmente34, contribui para a permanência de um sentimento difuso de confiança na organização política. (LUHMANN, 1980). No segundo caso, Luhmann (1980) adverte que, embora a legitimação não seja declaradamente a tarefa dos procedimentos que antecedem a elaboração de decisões obrigatórias, ela é obtida, em grande parte, por meio deles. Noutras palavras, não se trata de uma finalidade operacional dos processos, nem de uma meta reconhecida, que leva à adoção de meios específicos. Ela subsiste como efeito latente. Deriva, em parte, da atuação simbólico-expressiva de participantes e não participantes. Os procedimentos perseguem, simultaneamente, objetivos de natureza dúplice. Alguns são instrumentais. Decorrem dos meios para alcançar a decisão mais adequada: nas eleições, o preenchimento de cargos executivos e legislativos; no processo legislativo, a elaboração do Direito; nos judiciais, a formulação de decisões para resolver conflitos de interesses. Outros fins são, contudo, expressivos. Visam a motivar as partes e justificar os esforços até que os efeitos pretendidos sejam alcançados. Assim, os procedimentos eletivos adquirem o sentido simbólico de manifestação de acordo político ou de recusa; os legislativos, de exposição pública dos conflitos políticos; e os judiciais, de participação na elaboração de uma decisão neutra e, portanto, justa. (LUHMANN, 1980). O significado simbólico de cada procedimento se vincula intrinsecamente à natureza da decisão que se apresenta como resultado dele. Embora existam características comuns aos diferentes processos político-jurídicos, cada espécie assume aspectos distintos a depender do resultado que torna público. Os jurisdicionais e os administrativos são típicos procedimentos para uma decisão 34

Luhmann (1980) reconhece que as ficções podem-se tornar nocivas. Indaga-se se isso ocorre quando elas são tomadas como fato para basear a organização das instituições estatais. Aqui, fazse referência à hipótese de que a concepção positivista da natureza neutra da jurisdição conformou a estrutura política brasileira e justificou a adoção do sistema judicial de controle da legitimidade das eleições.

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programada. Já as eleições e os processos legislativos podem ser classificados como procedimentos para decisões programantes. (LUHMANN, 1980). Os

processos

programados,

de

aplicação

jurídica,

servem

ao

enfraquecimento das desilusões. Canalizam a agressividade das partes para o próprio procedimento, de forma que a frustração das expectativas não repercuta nos demais sistemas sociais. (LUHMANN, 1980). Através de estruturas, no caso dos processos de aplicação jurídica através de normas jurídicas, é escolhido, com antecedência, um âmbito mais estrito de possibilidades, dentro das quais se podem então orientar de forma racional e adequada os processos de decisão. As estruturas reduzem a extrema complexidade do mundo a uma esfera de expectativas muito estrita e simplificada, expectativas essas que são pressupostas como premissas de comportamento e, normalmente, não são postas em dúvida. (LUHMANN, 1980, p. 189).

Ao contrário da jurisdição e da administração, as eleições e a legislação constituem procedimentos para uma decisão não programada, que decorre diretamente da esfera de disputa político-partidária. Elas dependem da elaboração de metas capazes de alcançar maioria e da formação de acordos com vistas à obtenção de apoio político. Nisso diferem do procedimento programado típico dos Poderes Judiciário e Executivo, os quais contam com possibilidades de ação consideravelmente reduzidas pela atuação legislativa prévia. (LUHMANN, 1980). Luhmann (1980) percebe que o sistema político encadeia os processos programantes e programados, de modo que o efeito da função legislativa é a prévia despolitização dos conteúdos a serem aplicados na prestação jurisdicional. Assim compreendida, a distinção entre as decisões decorrentes de cada um dos procedimentos remete à noção positivista de legislação e jurisdição apresentada na seção 2.3, que relaciona a legislação à controvérsia política, e a jurisdição à atitude apolítica. Como se verá na seção 5, a teoria do jus-sociólogo se revela insuficiente para explicar a legitimidade da atuação dos órgãos estatais, na medida em que não oferece critérios materiais para diferenciar o exercício formalmente autorizado mas substancialmente abusivo. O autor permite, no entanto, o aprofundamento dos aspectos formais envolvidos na questão. No que se refere à Justiça Eleitoral, a diferenciação funcional das decisões proposta por Luhmann (1980) repercute nas conclusões obtidas na subseção 3.3 acerca da diversidade de funções atribuídas à instituição. Como órgãos do Poder Judiciário, originalmente concebidos para o exercício jurisdicional, os juízos eleitorais encarregados do controle das eleições conduzem procedimentos

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típicos de atuações formalmente programadas, independentemente da natureza da função materialmente exercida em cada caso. Todavia, no caso, o objeto da verificação, as eleições, constitui ele mesmo outro processo, de natureza programante. Logo, torna-se forçoso o reconhecimento de que cada um deles responde a condições de legitimidade específicas e se submete a expectativas sociais diferentes.

4.2 A legitimidade das eleições

Nas modernas democracias, a maneira como se estrutura o sistema representativo gera consideráveis implicações na ordem política. Na medida em que os procedimentos são tratados como fonte de legitimação do regime e das instituições, as técnicas eleitorais adotadas para autorizar os mandatos para o exercício do poder público se tornam um importante elemento de sustentação da estrutura política. Sem sair do contexto da legitimação formal dos sistemas sociais pelos procedimentos, identificada por Luhmann (1980), pode-se afirmar, como fez Ribeiro (2000), que, nos regimes democráticos contemporâneos, a legitimidade do poder governamental envolve duas dimensões. Uma diz respeito ao exercício do mandato, ao desempenho do agente público encarregado da representação. Ela exige do investido na função eletiva a manutenção, durante o período no cargo, das condições legitimadoras da competência. Por se tratar de uma dimensão de justificação posterior à diplomação (que atesta a regularidade da fase anterior), os critérios jurídicos estabelecidos para autorizar a atuação do representante podem ser diversos dos que lhes garantem o direito à posse no mandato. (RIBEIRO, 2000). É a dimensão anterior, da legitimidade quanto à investidura, que diz respeito aos mecanismos eleitorais adotados pela comunidade política para o provimento das funções estatais. Ela compreende as ações que antecedem e autorizam o preenchimento de cargos públicos eletivos. O conjunto de instituições e mecanismos que justificam o sistema representativo nessa dimensão inicial pode ser denominado “sistema de organização eleitoral” e abrange os critérios de funcionamento do corpo eletivo e a distribuição dos mandatos representativos. Mas

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não é só. Inclui também os órgãos responsáveis pela verificação do funcionamento do próprio sistema e os instrumentos de que dispõem para tanto. O sistema de organização eleitoral de um Estado compreende os órgãos e as funções envolvidos nesta fase, que autoriza a investidura na representação. Contém, pois, tanto as eleições quanto o procedimento de verificação da normalidade e legitimidade delas. Dada a natureza diversa dos mecanismos mencionados, não há dificuldade em reconhecer que integram o sistema pelo menos dois subsistemas: um propriamente eletivo e um de controle. O subsistema propriamente eletivo diz respeito ao próprio processo eleitoral, que culmina na investidura no mandato, precedida, entre outras fases, da campanha de convencimento do eleitorado e da votação. Refere-se às instituições, grupos e pessoas que conduzem o processo ou dele participam. Coincide com o que as ciências políticas comumente definem como sistema eleitoral, os “[...] procedimentos institucionalizados para atribuição de encargos por parte dos membros de uma organização ou de alguns deles [...]” (MAROTTA, 1998, p. 1.175). Por meio dos mecanismos do subsistema, opera-se “[...] a redução do ‘mais’ das massas ao ‘menos’ das elites de Governo [...]” (MAROTTA, 1998, p. 1.175-1.776). O conceito de eleição coincide com o de processo eleitoral, que, no Brasil, se inicia com as convenções partidárias e finda com a diplomação dos candidatos eleitos. O termo exprime o procedimento pelo qual se recrutam indivíduos para o preenchimento dos cargos públicos eletivos. A votação propriamente dita, o comparecimento do eleitorado às urnas, constitui apenas uma etapa de tal processo. Durante a preparação para o pleito, diferentes papéis são criados por normas jurídicas, que lhes limitam as possibilidades de atuação. Desconsideradas as funções secundárias, auxiliares, os partícipes se apresentam essencialmente como eleitores e candidatos. Eles são assim classificados depois de passar por processos internos distintos: respectivamente, o alistamento eleitoral, para a obtenção do título de eleitor, e o registro de candidatura, para a obtenção do status de candidato. Tais

procedimentos

especificam

funcionalmente

os

indivíduos

interessados. Atribuem-lhes papéis com funções e possibilidades de comportamento previamente determinados. No primeiro caso, do eleitor, a influência na decisão final está garantida, mas sem capacidade de, na participação, promover interesses políticos concretos. No papel do candidato, tais interesses podem ser expostos, mas sem direito à decisão propriamente dita. Essa disposição, especialmente no caso do

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eleitor, torna os demais papéis sociais indiferentes à participação no procedimento (LUHMANN, 1980). Para Luhmann (1980), a diferenciação dos papéis se sustenta basicamente em três princípios: o sufrágio universal, o igual valor do voto e o segredo da votação. Conjuntamente, eles garantem a igualdade de participação no pleito e dão a cada eleitor a confiança negativa de que todos os demais, no exercício do mesmo papel, possuem as mesmas possibilidades de decisão que ele. Um mecanismo eleitoral como esse imuniza o sistema político contra desigualdades sociais, que tendem a aparecer como secundárias. Além disso, os princípios asseguram a indiferença também quanto aos motivos da decisão do eleitor. O voto não tem “[...] de ser justificado em outros contextos sociais, pois goza da garantia do segredo.” (LUHMANN, 1980, p. 134). Isso alivia consideravelmente a tarefa do votante. Faz com que o desempenho desse papel quase não traga consequências para os papéis exteriores. E, simultaneamente, transfere para ele a função de filtrar as influências externas. Obriga-o a eliminar por si um grande número de motivos possíveis de decisão. A filtragem é indispensável, vez que existem na sociedade mais causas políticas que possibilidades concretas de decisão. (LUHMANN, 1980). De qualquer maneira, as infinitas possibilidades políticas se concentram numa única decisão, em cuja participação se torna especial o indivíduo. Pois aquela é a única ocasião em que se pode exercer o distinto papel de eleitor. E apenas o fato de ganhar as eleições leva o candidato ao poder legítimo. Perdê-las significa perder o poder. Dessa forma, os conflitos sociais básicos trazidos para dentro do procedimento têm a complexidade reduzida. (LUHMANN, 1980). É forçoso reconhecer, portanto, que o processo de eleições não se presta a deixar que o povo decida questões políticas nem que expresse interesses concretos. Permite somente a distribuição de “[...] lugares e competências e não, simultaneamente, a satisfação das necessidades.” (LUHMANN, 1980, p. 137). Restringe-se ao preenchimento de papéis, “[...] à entrega dos votos para um candidato ou uma lista e à expressão do apoio político numa forma altamente generalizada.” (LUHMANN, 1980, p. 137). O objetivo declarado dos pleitos é, no entanto, satisfazer às expectativas de efetiva representação popular: O objetivo declarado da eleição política é a ocupação das instâncias politicamente decisórias com pessoas especialmente capazes e que tomarão corretamente decisões, isto é, de acordo com a vontade do

121 povo, que, neste sentido, podem, portanto, representar verdadeiramente. (LUHMANN, 1980, p. 19, grifo nosso).

Há considerável discrepância entre o objetivo oficial e a organização institucional eletiva, especialmente se consideradas as funções procedimentais latentes. (LUHMANN, 1980). A disputa se resolve numa votação secreta, precedida de campanhas de convencimento ao eleitorado que obedecem a regras preestabelecidas. A participação formal do eleitor se resume a marcar um xis na cédula – ou, no caso brasileiro, a teclar alguns números num painel eletrônico. “Permanece obscura a forma como aquele objetivo [de garantir a representação da vontade popular] pode ser assim atingido.” (LUHMANN, 1980, p. 19). Segundo Luhmann (1980), para que a ficção eleitoral funcionalmente útil não degenere em farsa, faz-se necessário que os três princípios que garantem a igualdade de participação do eleitorado sejam mantidos. Mas não somente. Um importante fator de absorção de protestos, especialmente no que se refere aos candidatos derrotados na disputa, é o fato de as eleições repetirem-se periodicamente. A certeza quanto à oportunidade de participação futura permite que as expectativas sejam adiadas, não desenganadas. Ao mesmo tempo, a periodicidade transforma cada eleição isolada em parte de um processo maior, com uma história própria, que pode ser usada para orientar o sistema político. Não fosse o bastante, as repetidas votações oferecem mais oportunidades de expressão da insatisfação sem riscos sistêmicos. Mesmo o voto derrotado num pleito específico adquire, na história das eleições, valor expressivo. Ou se torna representativo de interesses sociais minoritários ou “[...] digno de atenção como ‘sintoma’ de alteração da vontade eleitoral no sistema político.” (LUHMANN, 1980, p. 141). A despeito dos mecanismos de legitimação fornecidos pelo próprio subsistema eletivo, organizações políticas complexas, como as modernas, garantem-se contra conflitos surgidos durante o processo eleitoral, conduzindo-os a outro subsistema, o de controle da legitimidade das eleições. Tal estrutura compreende: as instituições estatais encarregadas, em caso de descumprimento, da aplicação forçada das regras fixadas para o processo eleitoral; e as práticas que elas institucionalizam. Ou seja, abrange os órgãos e as decisões que definem, em última análise, os casos de obediência e desobediência a tais normas, e qualificam os agentes políticos como infratores ou não. (RIBEIRO, 2000). A ciência política reconhece três tipos básicos de sistemas para controle

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da legitimidade das eleições: o de verificação dos poderes, o eclético e o judicial. Eles diferenciam-se, essencialmente, devido ao Poder estatal ao qual se atribui a função controladora e às peculiaridades que ela adquire em razão dessa atribuição. O primeiro e o último modelo foram adotados no Brasil em períodos históricos diversos. (RIBEIRO, 2000). O sistema da verificação dos poderes confere a órgãos tipicamente legislativos a prerrogativa de atuar como juízes da elegibilidade e da regularidade da eleição dos próprios membros. Consolidado historicamente na Inglaterra do século XVII, o modelo reconhecia à Câmara dos Comuns a função de controle das eleições, e assim a resguardava do despotismo dos príncipes. Pois, em princípio, a verificação eleitoral cabia ao monarca. Por meio da assunção do controle sobre a regularidade da votação e a elegibilidade dos membros do Parlamento, antes prerrogativa régia, o Legislativo pôde “[...] firmar a sua independência funcional do Executivo [...]” (RIBEIRO, 2000, p. 152). Todavia, o mecanismo não se manteve restrito à comunidade inglesa, nem aos regimes monárquicos. Foi incorporado à Constituição Americana de 1787 como elemento do esquema de freios e contrapesos de separação dos poderes. A partir de 1789, nos Estados Gerais, foi introduzido também à organização política da França. (RIBEIRO, 2000). No Brasil, não foi diferente. Com a Carta Imperial de 1824, o País se filiou a tal sistema. Dispunha o art. 21 da Constituição Política do Império: “A nomeação dos respectivos Presidentes, Vice Presidentes, e Secretários das Câmaras, verificação dos poderes dos seus Membros, Juramento, e sua polícia interior se executará na forma dos seus Regimentos.” (BRASIL, 1824). Segundo Bueno (1857, p. 128), a finalidade era evitar que “[...] o ministério ou facções [...]” pudessem “[...] abusar, violentar as eleições, e impor à Câmara criaturas suas a despeito dos direitos do País, e das liberdades de sua representação nacional.” Pelos mesmos motivos, proclamada a República, o modelo foi mantido pela Constituição de 1891, que, no parágrafo único do art. 18, previu competir a cada uma das Câmaras “[...] verificar e reconhecer os poderes de seus membros [...]” (BRASIL, 1891). Sistema de controle diverso é o eclético, no qual a verificação se realiza por um tribunal misto, formado não só por membros do Parlamento. Nesse caso, visa-se a, sem admitir a intromissão judiciária, corrigir os defeitos do mecanismo de verificação dos poderes, exclusivamente político, sujeito às pressões partidárias. Historicamente, o modelo foi adotado na Constituição alemã de Weimar, de 1919,

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que instituiu o Tribunal de Verificação Eleitoral, de composição heterogênea, e na francesa de 1958, que conferiu competência para julgamento das eleições ao Conselho Constitucional, de composição também mista. (RIBEIRO, 2000). O último dos sistemas é o de controle por um tribunal tipicamente judiciário, com competências exclusivamente eleitorais ou não. A origem dessa estrutura judicial remete à crise de legitimidade do modelo político que predominava anteriormente, o da verificação dos poderes, inerentemente sujeito a uso e manipulação despótica pelas maiorias políticas – no sentido de grupos dominantes (RIBEIRO, 2000). O risco era de que, “[...] com vistas às eleições e votações do período eleitoral subseqüente, um partido majoritário decida [decidisse] as diretrizes eleitorais legais em seu próprio benefício e em detrimento de seu concorrente na política interna.” (SCHMITT, 2007b, p. 37). Segundo Ribeiro (2000, p. 152), em todas as comunidades políticas, as razões para a adoção do sistema de controle dos poderes exercido pelo Parlamento “Não foram outras [...], senão de preservar também das ingerências e das pressões do governo.” O primeiro modelo histórico surgiu no contexto inglês como mecanismo para tornar possível a autonomia das assembleias representativas, preservando-as da interferência executiva – como princípio, portanto, do liberalismo político. Todavia, ele logo se demonstrou institucionalmente incapaz do cumprimento satisfatório de tal função. (RIBEIRO, 2000). No Brasil, ele possibilitou a degeneração do processo democrático da República Velha, marcado por deformações dos tipos mais variados, cometidas mediante coação aos votantes, falsificação de votos e seleção facciosa de eleitores. Tais deturpações acabavam por revelar a falta de legitimidade dos investidos nos mandatos governamentais. (RIBEIRO, 2000). Para Pontes de Miranda (1947), O Império não foi democrático, como se precisava que fôsse [sic]. As eleições, pela insignificância da camada que sabia ler e a inconsciência, a subserviência, a inércia moral e intelectual dessa, não tinham significado real de democracia. Tão-pouco, a República, de 1889 a 1930. Pregavam-se princípios democráticos sem que efetivamente se quisesse praticar democracia. [...] Era a evidência de que não havia eleições verdadeiras. (MIRANDA, 1947, p. 296, grifo nosso).

O reconhecimento da impossibilidade de que os parlamentares dirimissem com padrões igualitários as controvérsias nas quais eram os principais interessados motivou o abandono do sistema legislativo de verificação dos poderes (RIBEIRO, 2000). O sistema judiciário parecia atender à necessidade de um árbitro neutro,

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imparcial em relação aos grupos em disputa, e capaz de desempenhar o controle de maneira politicamente não influenciada. A imagem de neutralidade institucional do Poder Judiciário decorre, simultaneamente, da natureza avalorativa que se atribui à jurisdição e da não participação direta dos juízes na esfera de disputa política pelo poder, o que se garante por prerrogativas e vedações típicas da judicatura. Desde o início, portanto, são elevadas as expectativas sociais em relação às consequências da atuação jurisdicional neutra sobre as eleições. Certo ímpeto corretivo das relações partidárias está na origem da Justiça Eleitoral, concebida como instância moralizadora da arena política. Mas a atuação esperada era então meramente formal e estava vinculada à noção positivista de legitimidade. Tratava-se de impor a observância da legislação eleitoral recém-adotada e, assim, garantir “[...] a segurança dos resultados da operação eleitoral.” (RIBEIRO, 2000, p. 151). A República Velha (1889-1930) trazia em seu bojo – entre outros vícios, certamente – um pelo menos que, interessando de perto às instituições judiciárias, de alguma forma contribuiu para apressar-lhe o fim: a negação da verdade eleitoral, a ausência de lisura dos pleitos políticos – que decorriam, não apenas da flagrante violação do sigilo do voto, do acabrestamento do eleitorado inerme, mas por igual alijar-se o Poder Judiciário – na verdade o mais indicado, por isso que eqüidistante dos conflitos e das paixões partidárias – das instâncias mais decisivas do processo eleitoral. (NIQUETE, 1973, p. 63).

Uma grave fragilidade do sistema de verificação dos poderes da Primeira República decorria das funções atribuídas à mesa eleitoral, instituída pelo Decreto n. 511, de 23 de junho de 1890, conhecido como ”Regulamento Alvim”. Além do fato de competir ao presidente de cada câmara legislativa a nomeação de todos os membros da mesa apuradora – nas hipóteses em que ele não a presidia –, causava suspeita a prática de, uma vez lavrada a ata de apuração, serem os votos queimados, sem possibilidade de recontagem (LEAL, 1948): '[...] em cada distrito, compunha-se de cinco membros. No distrito da sede do Município, era presidida pelo presidente da câmara, que designava os quatro mesários, sendo dois vereadores e dois eleitores. Nos demais distritos, todos os membros eram nomeados pelo presidente da câmara. [...] Só podiam os eleitores da seção suscitar ou discutir questões quando a mesa o consentisse. [...] A mesa eleitoral é que apurava os votos e lavrava a ata respectiva, queimando, em seguida, as cédulas [...]. As câmaras municipais do Distrito federal e das capitais dos Estados procediam à apuração final, à vista das cópias autênticas das atas. (LEAL, 1948, p. 64).

A partir da Proclamação da República, a legislação eleitoral sofreu sucessivas alterações, que ampliaram os poderes de interferência judicial nos pleitos. A despeito de tais reformas legislativas, as fraudes persistiram. Para Niquete

125

(1973),

a

permanência

dos

abusos

demonstrava

a

necessidade

da

institucionalização definitiva do controle judiciário: De nada adiantaram [...] as sucessivas reformas da lei eleitoral, nem mesmo aquelas que se processaram em 1916, com as Leis n.ºs 3129, de 2 de agosto, regulamentada pelo Decreto n.º 12.913, de 6 de setembro, e 3208, de 27 de dezembro, ocasião em que a magistratura teve aumentadas algumas de suas atribuições [...]: o que se queria [...] era elevar e colocar sob a sua égide protetora a segurança do nosso direito político, assim como a ela já tínhamos confiado a garantia de todos os nossos direitos individuais, os que diziam respeito à liberdade, à honra e à propriedade. [...] Inutilmente. Os magistrados continuaram partícipes inocentes de todo um sistema de fraudes [...]. (NIQUETE, 1973, p. 65).

Conforme destaca Cunha Mendes (1926), as pressões sociais do período levaram o então candidato à Presidência da República Washington Luís a incluir, entre as promessas esboçadas no seu programa de governo, a de criar uma magistratura especial, encarregada do alistamento eletivo: Se há uma magistratura especial para os resguardos dos direitos civis, outra para os direitos comerciais, outra para aplicações de direito penal, não se compreende que não exista a privativa para os direitos políticos, fonte esta de todos os outros. (MENDES, 1926, p. 235-236).

Tal judicatura, prometia-se, seria dotada das “[...] garantias indispensáveis da competência, da idoneidade, da independência [...]” (MENDES, 1926, p. 236). Os juízes que a integrassem [...] teriam a incumbência privativa para formação do eleitorado brasileiro [...]. A seu cargo ficaria também o processo e registro de naturalização e os de suspensão, perda e reaquisição dos direitos de cidadão brasileiro [...]. Por fim, lhes incumbiria ainda a competência para conhecimento e julgamento de todos os delitos eleitorais, isto é, dos direitos políticos, desde o alistamento até a apuração. (MENDES, 1926, p. 236).

Assim, a criação da Justiça Eleitoral foi precedida pela institucionalização da exigência de imparcialidade da magistratura diante da competição política. Mais especificamente, pela proibição do exercício, pelos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, de funções eletivas e partidárias. [...] o Governo provisório, através do decreto n.º 19.656, de 3 de fevereiro de 1931, [...] estabeleceu que os magistrados e membros do Ministério Público Federal não poderiam dali por diante aceitar nem exercer cargo de eleição, nomeação ou comissão, mesmo gratuita, ou qualquer outra função pública que não a do magistério. (NIQUETE, 1973, p. 67).

O Decreto n. 21.076/32 (BRASIL, 1932), que instituiu o primeiro Código Eleitoral republicano e, com ele, a Justiça Eleitoral, foi então recebido como solução para as distorções eleitorais. [...] coube ao governo discricionário de 30 pôr cobre definitivo, desde logo, às distorções do processo eleitoral: o Decreto n.º 21.076, de 24 de fevereiro

126 de 1932, instituindo o Código Eleitoral, marcou o início da Justiça Eleitoral – constituída pelo Tribunal Superior Eleitoral (que se instalou no dia 20 de maio, sob a presidência do Ministro HERMENEGILDO DE BARROS), os Tribunais Regionais Eleitorais, nos Estados, e os Juízes eleitorais, nas comarcas, distritos ou termos judiciários – aos quais ficou afeta a direção do alistamento, dos pleitos, da apuração eleitoral, e bem assim, a proclamação dos eleitos (acabando de vez com a fase do reconhecimento, delegada até então aos órgãos legislativos). (NIQUETE, 1973, p. 67).

Sobre a norma, Pontes de Miranda (1947, p. 297) comentou que “[...] a facção liberal [...] logrou dotar o Brasil de seu primeiro estatuto eleitoral eficiente [...].” O constitucionalista chegou a afirmar que o pleito que se seguiu a ela “[...] foram as primeiras eleições reais do Brasil.” (MIRANDA, 1947, p. 297). Entendeu o autor que “Tão profundamente atendeu o Código Eleitoral a necessidades do ambiente brasileiro, que a sua estrutura central se impôs à Constituïção [sic] de 1934 e agora à de 1946.” (MIRANDA, 1947, p. 297).

4.3 A legitimidade do controle judicial das eleições

Dadas as garantias de imparcialidade a que se submeteram os juízos, tornaram-se evidentes para a doutrina da primeira metade do século XX as vantagens da adoção do modelo judicial de controle das eleições. Pois o juiz ocupa no imaginário positivista um papel intrinsecamente neutro. A posição em que se encontra – e que sem esforço se lhe considera natural –, de terceiro inerentemente desinteressado nas disputas político-partidárias, veio a tornar-se valorizada pelas exigências históricas concretas de correição do funcionamento político. A justiça eleitoral brasileira é produto da revolução de 1930. E, como tal, sua fundação foi inspirada pelas bandeiras levantadas à época: críticas à oligarquia competitiva, que tinha se instalado ao longo da primeira república, e o evidente descrédito do processo eleitoral, marcado pelo poder dos coronéis e pelo ‘voto de cabresto’. A combinação desses elementos denunciados pelos revolucionários de 30 atentava contra a legitimidade da competição pelo poder político e a confiabilidade nos resultados das urnas. (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 37).

Pontes de Miranda (1947, p. 302) assegura que a opção constituinte visou à “[...] despolitização do diploma eleitoral [...]”: A Justiça Eleitoral, criação constitucional de 1934, teve por fito a despolitização do diploma eleitoral. Havia a tendência, na ocasião dos reconhecimentos de deputados e senadores, para reconhecerem os deputados e senadores pelo número de votos dos diplomados de cada

127 partido, ou coligação, sem atender à verdade eleitoral, isto é, ao cômputo dos votos dos eleitores. Não importavam trinta mil votos contra três mil ou menos, se o candidato dispunha de fôrça [sic] política, quase sempre só das “simpatias do Catete”. (MIRANDA, 1947, p. 302).

Há que entender, contudo, o que se pode corretamente inferir acerca da despolitização. No Brasil – mas não só no País –, a atribuição do controle das eleições à Justiça Eleitoral – a adoção do sistema judiciário de controle eletivo – se deu para evitar os frequentes abusos do modelo anterior, o sistema de verificação dos poderes, a que faltava neutralidade. A imparcialidade institucional da Justiça Eleitoral – característica muito distinta da pretensa despolitização de seus membros –, é, em parte, garantida por uma série de elementos formais, típicos do Poder Judiciário como um todo (a vitaliciedade dos magistrados, por exemplo) ou específicos, como a periodicidade bienal das funções judicantes eleitorais. Em relação às garantias específicas, havia a necessidade de que a estrutura judiciária encarregada do controle eletivo fosse permanente, a despeito da intermitência das eleições: A mecânica do regime político representativo impõe periódicas renovações de mandatos, com eleições com termos certos de realização, tendo por isso de estar em permanente funcionamento esse específico aparelhamento de controle eleitoral. (RIBEIRO, 2000, p. 156).

Apesar disso, no País, a estrutura judiciária de controle eletivo recebeu peculiar ajustamento quanto ao modo de composição dos órgãos que a integram. A Justiça Eleitoral é perene, mas seu quadro não. (RIBEIRO, 2000). Os membros dos órgãos colegiados eleitorais se submetem a um regime de periodicidade similar ao aplicado às investiduras representativas, de modo que não permaneçam no exercício da função de controle por prazo superior à duração dos mandatos parlamentares. Por paralelismo com os revezamentos periódicos, os juízes e ministros dos Tribunais Eleitorais o são por período bienal, admitida uma única recondução, o que totaliza quatro anos – o tempo exato de duração dos mandatos executivos e legislativos proporcionais. (RIBEIRO, 2000). A Constituição de 1934 previu a bienalidade das funções judiciárias eleitorais no §5º do art. 82: “Os membros dos Tribunais Eleitorais servirão obrigatoriamente por dois anos, nunca, porém, por mais de dois biênios consecutivos [...]” (BRASIL, 1934). Desde então, todas as demais Constituições brasileiras, exceto a de 1937, trouxeram dispositivo similar. Veja-se o §2º do art. 121 da CRF/88, atualmente em vigor, Os juízes dos tribunais eleitorais, salvo motivo justificado, servirão por dois anos, no mínimo, e nunca por mais de dois biênios consecutivos, sendo os

128 substitutos escolhidos na mesma ocasião e pelo mesmo processo, em número igual para cada categoria. (BRASIL, 1988).

Para Ribeiro (2000), esse modelo previne contra desgastes decorrentes das fricções políticas e atende à finalidade de que o exercício do controle seja feito imparcialmente. Com o impedimento de que a condição de magistrado se prolongue por duas eleições para os mesmos cargos, pretende-se evitar que se acumulem, de um para outro pleito, sequelas e interesses contrariados. Dessa forma, a organização da Justiça Eleitoral brasileira atentou para o problema da formação do que Luhmann (1980) denomina “sistemas de contato”. Segundo o autor, os processos judiciais são caracterizados pela diferenciação dos papéis dos participantes. Os papéis sociais exercidos fora deles por partes, juízes, testemunhas etc. não são reconhecidos como válidos para fundamentar a decisão judicial. Contudo, como a autonomia do procedimento em relação ao ambiente externo – a sociedade –, é apenas relativa, não são incomuns as circunstâncias de interdependência entre o sistema e o meio circundante. Pode ocorrer, por exemplo, de os mesmos participantes se reencontrarem frequentemente em diversos processos. Nessa situação, eles são levados a planejar a própria atuação sem considerar apenas o procedimento isolado. É racional que pensem “[...] que em outros procedimentos o poder pode estar repartido doutra forma.” (LUHMANN, 1980, p. 65). Fatores como boas relações sociais, influência recíproca e confiança mútua tornam-se relevantes nesse contexto. Sob “[...] a lei da necessidade de reverem-se [...]” (LUHMANN, 1980, p. 65), os participantes passam a atuar no procedimento segundo regras exteriores a ele, não selecionadas por mecanismos procedimentais. Ao fazê-lo, introduzem no processo uma complexidade que lhe é estranha. Ameaçam, assim, a garantia da imparcialidade (e da legalidade) como condição de legitimidade das decisões judiciais. (LUHMANN, 1980). No caso da Justiça Eleitoral, a formação de sistemas de contato pode ser agravada por outras causas. O universo de pessoas aptas a atuarem como partes nos feitos sob sua competência é relativamente restrito. Os autores e réus habituais nos

processos

procedimentos

eleitorais

são

anteriores,

de

os

candidatos,

reconhecimento

indivíduos da

selecionados

cidadania

(mediante

em o

cadastramento e a obtenção do título eleitoral), filiação partidária e registro de candidatura (que efetivamente confere ao cidadão filiado o status de elegível). A possibilidade de que juízes e partes revejam-se em procedimentos futuros é,

129

portanto, consideravelmente alta, embora, em função do caráter bienal das eleições, as relações entre eles já se processem, normalmente, de forma esporádica. Ademais, uma vez eleitos, aqueles que se submeteram à jurisdição eleitoral passam a ocupar funções públicas que lhes permitem interferir substancialmente no funcionamento desse ramo judiciário, seja pela nomeação de membros, seja pela iniciativa de alterações legislativas. Além da condição da bienalidade imposta pelo §2º do art. 121 da CRF/88, cuja finalidade é tornar temporárias as relações entre os julgadores e os partícipes da competição político-partidária, podem-se identificar, nas normas constitucionais de organização da Justiça Eleitoral, outras estratégias para evitar o agravamento da situação. O inciso III do §1º do art. 120 determina que dois dos membros de cada TRE sejam advogados nomeados pelo presidente da República: § 1º - Os Tribunais Regionais Eleitorais compor-se-ão: [...] III - por nomeação, pelo Presidente da República, de dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Tribunal de Justiça. (BRASIL, 1988).

Note-se que tal atribuição foi conferida ao chefe do Poder Executivo federal, e não ao do estadual. Isso retira dos governadores influência sobre a composição da instância judiciária eleitoral à qual respondem. Por fim, o fato de tais regras gozarem de status constitucional, e não meramente legal, reveste-as de alguma garantia contra mudanças legislativas ordinárias, na medida em que a alteração desses dispositivos só pode ocorrer por meio de emenda, precedida por um procedimento legislativo dificultado, com quórum especial.35 Não obstante, há de observar que, de forma alguma, tais aspectos da organização eleitoral são suficientes para impedir a formação de sistemas de contato. A composição dos Tribunais Eleitorais se dá, em grande medida, pela votação secreta dos membros de outros tribunais. Em cada caso, desembargadores e ministros elegem alguns entre seus pares ou entre os juízes de 1º grau para exercerem a função de controle eleitoral. No caso do TSE, nos termos dos incisos I e II do art. 119 da CRF/88, cinco ministros provêm do STF e do Superior Tribunal de

35

O art. 60 da CRF/88 prevê um procedimento específico para a elaboração de emendas à Constituição, notadamente dificultado em relação ao processo legislativo ordinário. Entre outras exigências, o dispositivo impõe, no §2º, a condição formal de que a proposta seja aprovada pelo quórum qualificado de três quintos do total de deputados e senadores, em cada Casa do Congresso Nacional, obtidos em dois turnos de votação tanto na Câmara quanto no Senado: “A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,

130

Justiça (STJ): Art. 119. O Tribunal Superior Eleitoral compor-se-á, no mínimo, de sete membros, escolhidos: I - mediante eleição, pelo voto secreto: a) três juízes dentre os Ministros do Supremo Tribunal Federal; b) dois juízes dentre os Ministros do Superior Tribunal de Justiça; [...] (BRASIL, 1988).

Em se tratando dos TREs, segundo os incisos I e II do §1º do art. 120 da CRF/88, nomeiam-se dois desembargadores do Tribunal de Justiça (TJ), dois juízes de direito (escolhidos pelo TJ) e um juiz do Tribunal Regional Federal (TRF) ou juiz federal (escolhido pelo TRF): 1º - Os Tribunais Regionais Eleitorais compor-se-ão: I - mediante eleição, pelo voto secreto: a) de dois juízes dentre os desembargadores do Tribunal de Justiça; b) de dois juízes, dentre juízes de direito, escolhidos pelo Tribunal de Justiça; II - de um juiz do Tribunal Regional Federal com sede na Capital do Estado ou no Distrito Federal, ou, não havendo, de juiz federal, escolhido, em qualquer caso, pelo Tribunal Regional Federal respectivo; [...] (BRASIL, 1988).

Dessa forma, entre os membros dos tribunais, tendem a ganhar importância as boas relações sociais, a influência recíproca e a confiança mútua. E, como já dito, tais fatores externos aos procedimentos podem acabar por adentrá-los, sem passar pelos mecanismos internos de filtragem. Além disso, a possibilidade de que as autoridades eleitas interfiram no funcionamento judicial não pode ser totalmente eliminada. Cabe, por exemplo, ao presidente da República nomear os dois advogados que comporão o TSE, embora seja atribuição desse órgão controlar o processo de eleição presidencial.36 Não se deve, ainda, superestimar os reais limites que o processo dificultado de alteração constitucional impõe ao sistema político. Afinal, num intervalo de aproximadamente 22 anos, a contar da promulgação da CRF/88 até 4/2/10, a Constituição foi objeto de 64 emendas. A bienalidade, contudo, não é a única condição formal de legitimidade da atuação judiciária de verificação das eleições. A temporariedade do exercício da função judicial de controle não implica ausência das garantias típicas dos

considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.” (BRASIL, 1988). 36 Nos termos do inciso II do art. 119 da CRF/88, “O Tribunal Superior Eleitoral compor-se-á, no mínimo, de sete membros, escolhidos: [...] II - por nomeação do Presidente da República, dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Supremo Tribunal Federal.” (BRASIL, 1988). Já o inciso III do art. 158 do CE afirma que a apuração dos resultados da votação compete “[...] ao Tribunal Superior Eleitoral nas eleições para presidente e

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magistrados no exercício da jurisdição. Além do fato de a maioria dos seus membros serem recrutados entre integrantes de outros órgãos judiciários e, por isso, transportarem para a Justiça Eleitoral as garantias que lhes são vitalícias (RIBEIRO, 2000, p. 158), mesmo os que não o são passam a gozar de tais mecanismos de proteção enquanto exercem a atividade. O §1º do art. 121 da CRF/88 expressamente assegura: “Os membros dos tribunais, os juízes de direito e os integrantes das juntas eleitorais, no exercício de suas funções, e no que lhes for aplicável, gozarão de plenas garantias e serão inamovíveis.” (BRASIL, 1988). Ao fazê-lo, estende a todos os investidos no juízo eleitoral as prerrogativas e vedações estabelecidas pelo art. 95 da CRF/88: Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias: I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado; II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII; III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I. Parágrafo único. Aos juízes é vedado: I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério; II - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo; III - dedicar-se à atividade político-partidária. IV - receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; V - exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração. (BRASIL, 1988).

No que diz respeito a essas garantias gerais, típicas de toda a magistratura, a independência judicial difere da de outros agentes estatais, tanto da dos demais funcionários de carreira quanto da dos parlamentares. Em relação a estes, ela é mais ampla: “[...] não se pensa [...] apenas na independência judicial no sentido estrito do termo, i.e., na independência perante instruções de um outro cargo que atingem o exercício de uma atividade judicial [...]” (SCHMITT, 2007a, p. 225). Em comparação àqueles, é reforçada: “[...] os juízes [...], contra sua vontade, só podem ser permanente ou temporariamente exonerados do cargo, transferidos ou aposentados por força de decisão judicial e pelos motivos e sob as formas que a lei determina [...]” (SCHMITT, 2007a, p. 224).

vice-presidente da República, pelos resultados parciais remetidos pelos Tribunais Regionais.”

132

A vitaliciedade aparece, pois, como “[...] elemento constitucional de estática e permanência [...]” (SCHMITT, 2007a, p. 219) da instituição e “[...] posição juridicamente protegida [...]” (SCHMITT, 2007a, p. 223) de seus membros. O juiz, que “[...] não pode ser destituído ou demitido à discrição, é retirado do conflito dos antagonismos econômicos e sociais. Ele se torna ‘independente’ e, por isso, está em condições de ser neutro e imparcial [...]” (SCHMITT, 2007a, p. 223). Schmitt (2007a, p. 160), diferentemente dos teóricos que partem do Positivismo rigoroso, entende por neutralidade exclusivamente a imparcialidade, ou seja, “[...] apenas a eliminação de um determinado tipo de política, a saber, da política partidária [...].” Para ele, o termo designa a não participação direta na esfera de disputa política pelo poder, nunca a ausência de ideologia ou valoração. Pois, como observou o autor acerca da legalidade do Estado legiferante parlamentar, a neutralidade política, a absoluta indiferença quanto à matéria da deliberação estatal, não é possível. (SCHMITT, 2007a). Ainda que se parta de uma perspectiva que iguale o Direito ao conjunto de convenções legais – às decisões da maioria parlamentar, sem relação com qualquer conteúdo –, “[...] sempre se deverá pressupor um princípio de justiça, caso não se queira ver sucumbir todo o sistema de legalidade no mesmo momento [...]” (SCHMITT, 2007b, p. 29). Para o autor, tal princípio é o da igualdade incondicional de chances de obter maioria, isto é, o poder político (SCHMITT, 2007b). Sem tal garantia, logo após a primeira obtenção do poder, o próprio sistema representativo perde a legitimidade, que depende da regular alternância dos representantes (mandatários). Pois a maioria inicial poderia instalar-se como permanente (SCHMITT, 2007b, p. 29-30), fechando “[...] atrás de si a porta da legalidade, por meio da qual entrou [...]” (SCHMITT, 2007b, p. 31). Em Luhmann (1980), a relação entre o princípio da maioria e a igualdade de chances também é percebida. O autor, porém, diferentemente o nomeia de “princípio de constância da repetição do poder”. Ele afirma: “Se o princípio da maioria for institucionalizado com regra decisiva, todo o poder político, antes de se tornar legitimamente eficiente quanto à decisão, tem de se submeter ao princípio da constância de repetição do poder.” (LUHMANN, 1980, p. 146, grifo do autor). Schmitt (2007b, p. 37) nota que, mesmo sem considerar situações

(BRASIL, 1965).

133

extraordinárias de exceção e de flagrante ilegitimidade – em que “[...] a grande recompensa pela posse do poder [...] desenvolve seu efeito integral maior e eliminador de qualquer possibilidade de chances iguais [...]” –, o poder político das maiorias parlamentares vai muito além do simples monopólio da capacidade de “[...] produção e sanção da legalidade [...]” (SCHMITT, 2007b, p. 32-33). O autor chega a falar em “[...] uma recompensa supralegal pela posse legal do poder e pela obtenção da maioria [...]” (SCHMITT, 2007b, p. 33, grifos do autor): [...] um conceito como ‘igualdade de chances’ também é [...] um daqueles conceitos indeterminados, diretamente ligados a uma situação dada, cuja exegese e cuja utilização são necessariamente coisas do poder legal, portanto, do partido que está no poder. [...] o partido que detiver a posse legal do poder tem de determinar e decidir, por força da posse dos meios hegemônicos estatais, acerca da aplicação e utilização concreta e politicamente importante dos conceitos de legalidade e ilegalidade a partir de sua própria ótica. (SCHMITT, 2007b, p. 34-35).

Todavia, em situações de normalidade, a exegese e a utilização do princípio da igualdade de chances são necessariamente não unilaterais. A minoria que almeja a posse dos meios hegemônicos estatais e que presume a igualdade de direitos de alcançar a posição de governo emite juízos de legalidade e de legitimidade sobre si mesma e sobre o partido antagônico. Não dificilmente, as situações de conflito de opiniões entre maioria e minoria caminharão para o impasse, um momento crítico do qual o resultado é “[...] um estado de coisas desprovido de legalidade e de Constituição.” (SCHMITT, 2007b, p. 36). Logo, tornase necessário responder à questão de “[...] quem é que, no caso de conflito, elimina e decide dúvidas ou incompatibilidades de opiniões.” (SCHMITT, 2007b, p. 35). Schmitt (2007b, p. 31) responde à pergunta ponderando: “Seria, na prática, uma saída buscar a solução por meio da inclusão de um ‘terceiro elemento imparcial’, o qual pudesse decidir o conflito, fosse conforme a Justiça, fosse de outro modo.” Adverte o autor, contudo, que: [...] esse terceiro elemento seria perante ambos os partidos um terceiro supraparlamentar, até mesmo suprademocrático, em posição superior, e a vontade política não mais ocorreria por intermédio da livre concorrência pela hegemonia de partidos políticos que tivessem sempre as mesmas chances de poder. (SCHMITT, 2007b, p. 35-36).

Nesse contexto, a busca de um árbitro neutro desencadeou a transição do sistema de verificação de poderes para o judiciário. Não parecia suficiente a atribuição da prestação jurisdicional a um órgão colegiado de composição política ou mista. O controle deveria ser exercido na própria esfera judiciária, para garantir a

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imparcialidade. Não apenas porque os magistrados se submetem a vedações de envolvimento em atividades partidárias, mas também porque se sujeitam a regras processuais rígidas, que incluem causas impeditivas e de suspeição da função judicante. (RIBEIRO, 2000). O anseio não era tanto por uma instância judicial, mas por um julgador independente e neutro. Utiliza-se o caráter judicial como o meio mais seguro de uma independência garantida institucionalmente (SCHMITT, 2007a). Ninguém consideraria independente e neutro um tribunal composto por políticos partidários, mesmo se seus membros ‘não estivessem vinculados, no exercício de sua atividade judicial, a ordens e instruções’, [...] semelhante tribunal – tanto em sua ocupação quanto em sua atividade – tornar-se-ia cenário do sistema pluralista da mesma forma que se tornou o parlamento e todo cargo influenciado pela ‘confiança no parlamento’. (SCHMITT, 2007a, p. 224).

A atribuição da tarefa de controle da legitimidade das eleições ao Poder Judiciário teve por fim condicionar às exigências formais rígidas de um procedimento jurisdicional a legitimidade de uma atividade inerentemente sujeita à composição política de metas e interesses; ou, usando a terminologia proposta por Luhmann (1980), submeter um procedimento voltado para a divulgação de decisões programantes a condições de legitimidade típicas dos procedimentos programados. Noutras palavras, o objetivo do reconhecimento da natureza judicial da atividade de verificação eletiva reside na possibilidade de a tensão causada pela disputa de forças entre grupos políticos opostos ser pacificada pela objetividade do julgamento baseado em um programa – em normas jurídicas publicamente reconhecidas. Apenas neste sentido – de separação de duas esferas de atuação estatal, uma

deliberadamente

política

(partidária)

e

outra,

tanto

quanto

possível,

despolitizada em termos partidários – pode-se concordar com a tese de Luhmann (1980) de que o procedimento judiciário despolitiza os temas de conflito. Torna-os não generalizáveis, de modo que a política passa a ser vista como um sistema autônomo em relação a eles. E assim evita a institucionalização das insatisfações. Luhmann (1980) percebe a ficção do caráter empiricamente neutro que se atribui à jurisdição, mas não vê problemas na permanência dessa imagem. Ao contrário, entende que a declaração enfática da imparcialidade do juiz é um dos meios de manutenção da incerteza no procedimento. O sistema fomenta a aparência técnica das decisões jurisdicionais por tratar-se de um mecanismo que alivia as decisões judiciárias da crítica e da desilusão. Isso explica por que comumente a imparcialidade é entendida como igualdade negativa de chances. Na acepção

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corrente, o princípio nega a parcialidade do juiz, como se as partes não tivessem oportunidade de exercer influência sobre o julgador. (LUHMANN, 1980). Para o autor, no entanto, uma vez que a sentença tem de ser prolatada a favor de determinados interesses, na prática, ela é sempre parcial. Logo, a imparcialidade não pode dizer respeito à decisão. Não há como garantir que ela seja efetivamente proferida “[...] sem atenção às relações pessoais ou aos outros papéis próprios do decisor, [...] de acordo com critérios universais, especifica e funcionalmente escolhidos.” (LUHMANN, 1980, p. 142). A expectativa de neutralidade se desloca, então, para o juiz, que tem de sustentar tal aparência na condução do procedimento. O julgador, “[...] evitando determinadas promessas de decisão e dissimulando opções já tomadas [...]” (LUHMANN, 1980, p. 98), cuida para que a curiosidade das partes em relação ao resultado seja conservada desperta até a sentença. Se a incerteza acerca de como se concluirá o processo tem de ser mantida para que os participantes sejam motivados a desempenhar os respectivos papéis, é fundamental que o decisor não demonstre levar para o interior do sistema um parecer social prévio sobre os intervenientes. (LUHMANN, 1980). A difundida imagem de neutralidade tem a função de reduzir as possibilidades de crítica ao resultado da prestação jurisdicional. Por dispor o processo de garantias formais de que a decisão seja tomada imparcialmente – a saber, sem considerações prévias ou externas –, presume-se que a própria decisão seja imparcial. Toma-se a sentença como algo já programado pelo Direito, porque fundamentada em normas jurídicas anteriormente conhecidas ou porque formulada no decorrer de um procedimento previamente estabelecido. (LUHMANN, 1980). O processo decisório é apresentado como uma operação técnica. E o juiz, aliviado da responsabilidade por todas as consequências da decisão, que se remete às normas, preserva a posição de terceiro nos conflitos. Não tem que atuar na esfera partidária para defender as próprias opiniões, pois, diferentemente do que ocorre com as decisões eletivas e legislativas, programantes, as decisões judiciais, programadas, não dependem de que a maioria dos membros da comunidade esteja de acordo com elas (LUHMANN, 1980). Mais especificamente, no que se refere aos participantes, a garantia de imparcialidade “[...] proporciona aos partidos [no sentido de partes da relação processual] a confiança de que o juiz não se compromete especificamente antes do

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processo.” (LUHMANN, 1980, p. 112). Essa confiança motiva o engajamento no processo. Ao atuarem com sinceridade no desempenho das funções atribuídas aos papéis que assumem no sistema, os interessados se veem implicados pessoalmente “[...] no acontecimento simbólico que legitima a decisão.” (LUHMANN, 1980, p. 112). Noutras palavras, Luhmann (1980) conclui que, apesar de as garantias formais, típicas da magistratura, não serem suficientes para assegurar de fato a neutralidade das decisões jurisdicionais, é importante que a aparência de imparcialidade se mantenha, pois ela legitima os processos judiciais. Há que se indagar, porém, se tal legitimação não seria, em verdade, ameaçada pela própria premissa positivista de que parte o autor. Nada impede que os juízes, como membros da comunidade e partícipes dos procedimentos, passem a acreditar na imagem imparcial que o sistema projeta sobre eles. Nessa hipótese, convencidos da neutralidade inerente a sua atuação, os magistrados não se esforçam para garantir que as decisões sejam efetivamente tomadas com base nos padrões de julgamento reconhecidos como legítimos. O risco é que, por não se empenharem para satisfazer a expectativa socialmente divulgada da objetividade dos juízos, acabem por institucionalizar o arbítrio, e, assim, comprometam a aparência imparcial que originalmente justificava a atuação do Poder. Ora, as garantias da magistratura e a exigência de que a jurisdição se fundamente no Direito contribuem para a neutralização da decisão, mas somente num sentido específico. Elas restringem a possibilidade de que o decisor atue de modo faccioso, arbitrário e deliberado na arena partidária, em favor de um dos grupos em disputa. É um erro, porém, concluir que o julgamento não será político. Como Schmitt (2007a, p. 160, grifo do autor) observara, a neutralidade leva a uma decisão política, certamente – na medida em que “[...] toda área imaginável de atividade humana é [...] política e se torna imediatamente política quando os conflitos e questões decisivas se passam nessa área [...]” –, mas não político-partidária. Mas a neutralidade imaginada para o Poder Judiciário adquire, muito comumente, outros significados que não o de expectativa de imparcialidade em relação aos grupos em disputa. Os sentidos variam do instrumental, como se a Justiça institucionalizada fosse “[...] um recurso técnico que deve funcionar com objetiva calculabilidade e dar a todos a igual chance de uso [...]” (SCHMITT, 2007a, p. 163), ao baseado num reconhecimento experto, não egoísta nem interessado,

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típico de um parecerista ou perito que, além de não ser expoente dos grupos em disputa, não é afetado pela decisão em si (SCHMITT, 2007a). Nos dois casos, erroneamente se identifica neutralidade com absoluta despolitização (fuga do político), e imparcialidade com atitude suprapolítica (não somente suprapartidária). Todavia, embora se perceba mais facilmente o erro de pressuposto nessas duas concepções, mais extremas, ele assombra também a de Schmitt (2007a), que diferencia a natureza política inerente a toda manifestação estatal daquela típica da atuação político-partidária. Não que esse importante autor alemão ignore a ilusão operada pelos mecanismos sociais que apresentam as decisões jurisdicionais como absolutamente despolitizadas, nem que ele a endosse, como faz Luhmann (1980). Ao contrário, Schmitt (2007a) é um constante crítico das doutrinas positivistas que alardeiam o caráter apolítico as atuações estatais programadas, seja porque não o reconhecem, seja porque o aprovam. Mas doutrinas aparentemente mais moderadas, não obstante partam do reconhecimento da diferença entre decisão política e político-partidária, podem conduzir a conclusões igualmente enganosas acerca das situações em que a atuação judicial é legítima. Pois Schmitt (2007a, p. 166) afirma que “É a vinculação à lei (que contém vinculações materiais) que possibilita a objetividade e, com isso, uma espécie de neutralidade, assim como a relativa autonomia do juiz perante a outra vontade estatal [...].” Ao fazê-lo, repete a constatação positivista de que a jurisdição é uma atividade objetiva, reveladora do Direito, na medida em que o conteúdo das decisões jurisdicionais é previamente definido pelas leis e por outros padrões jurídicos convencionais. As manifestações judiciárias sobre matéria politicamente controversa são, em oposição, classificadas como materialmente legislativas: “Toda instância que coloca, autenticamente, um conteúdo legal duvidoso fora de dúvida atua no caso como legislador.” (SCHMITT, 2007a, p. 67). Ademais, apesar do avanço em relação aos teóricos do Positivismo estrito, que sequer reconhecem o aspecto político em sentido amplo da manifestação jurisdicional, o autor trata a neutralidade como um fenômeno ontológico. Como se exporá na seção 5, porém, não é possível compreender adequadamente em que sentido se consideram os juízes neutros, senão pelo reconhecimento de que a neutralidade é uma norma, embora não uma regra convencional explícita. Trata-se de um princípio, um padrão de moralidade concorrente a observar, a fim de garantir a legitimidade material da decisão.

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A constatação da normatividade de padrões jurídicos implícitos exige o abandono da concepção apolítica da jurisdição. Não somente porque, em se tratando de uma representação estatal, ela é necessariamente política, como defende Schmitt (2007a), senão também porque, na medida em que o juiz está inserido no contexto social de relações entre governantes e governados, ele, como todos os demais membros da comunidade, formula concepções próprias da moralidade pública. Concebe, por exemplo, como as relações partidárias podem ser mais justas. É inevitável que, em certa medida, uma sentença reflita essas concepções. Nesse sentido, qualquer decisão jurisdicional é política (DWORKIN, 2007b).

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5 UMA NOVA PERSPECTIVA HERMENÊUTICA

Como demonstrado na seção 4, a criação da Justiça Eleitoral brasileira foi motivada pela ideia de que a verificação da legitimidade das eleições exige da instituição que a exerce neutralidade diante da competição político-partidária. No sistema até então vigente no País, o Legislativo, órgão diretamente interessado no resultado das disputas, estava encarregado da nomeação e da verificação das condições de elegibilidade de seus próprios membros. Com o abandono desse modelo, instituiu-se, em lugar do controle dos poderes, o sistema judicial de verificação, composto por juízes e Tribunais Eleitorais. A neutralidade comumente atribuída ao Judiciário se relaciona à concepção positivista da natureza da atividade jurisdicional, típica desse Poder. Conforme exposto na subseção 2.3, o Positivismo preserva uma imagem politicamente neutra e passiva da jurisdição ao afirmar que a incerteza e a controvérsia tipicamente políticas são atributos inerentes aos atos legislativos. Nas decisões jurisdicionais, o juiz objetivamente subsume um fato ao tipo legal correspondente, explícita e publicamente reconhecido, e aplica as regras já juridicizadas pelo legislador. Como se vincula a um programa prévio, a liberdade para valorações políticas é consideravelmente reduzida. Em verdade, para versões mais extremas desta concepção, como a silogística e a mecanicista, a criatividade no exercício jurisdicional é mesmo inexistente. O argumento que vincula dessa maneira a legislação à política e a jurisdição à neutralidade só se sustenta por supor uma distinção entre critérios materiais e formais de classificação das funções do Estado. O ordenamento jurídico pode distribuir a diferentes Poderes atividades materialmente legislativas. A forma como essas matérias são exercidas será certamente adaptada aos procedimentos típicos de cada órgão, mas sem que a substância se altere a ponto de a função ser subsumida em outra categoria. Desse modo, pode haver autorização jurídica para que juízes e tribunais legislem em situações específicas ou exerçam outras funções que não lhes são típicas. Os atos praticados nos limites dessa competência excepcional são

legítimos,

porque

legalmente

autorizados. Mas

não

são

jurisdicionais. Nesse contexto, compreende-se a disposição contida no art. 114 do

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Código de Processo Civil de 1939: “Quando autorizado a decidir por eqüidade, o juiz aplicará a norma que estabeleceria se fosse legislador.” (BRASIL, 1939). Ocorre, porém, que, a partir da definição positivista das funções legislativa e jurisdicional, o pensamento jurídico se desenvolveu de forma a atribuir o caráter de neutralidade política não somente à jurisdição, mas também à própria instituição judiciária. Não causa estranheza que tal inferência tenha ocorrido. Afinal, para evitar que interferências externas impactassem os procedimentos judiciais, dotaram-se os tribunais e os juízes de garantias jurídicas de imparcialidade e se lhes impuseram restrições à participação político-partidária direta (ver subseção 4.3). Eis porque, encarada como instância imparcial de solução das demandas decorrentes do processo eletivo, a Justiça Eleitoral passou a acumular as mais variadas funções, de natureza igualmente diversa. A salvo dos interesses negociados na esfera política, os órgãos judiciais de verificação da regularidade do pleito se encarregaram de tarefas não apenas adjudicativas, mas também normativas e de condução das próprias eleições. Constata-se, portanto, que o discurso jurídico-positivista que confunde neutralidade judicial com apoliticismo e confere aos membros do Poder Judiciário o dever (senão a qualidade) de serem homens suprapolíticos (não suprapartidários), influenciou, além da criação, o desenvolvimento do sistema brasileiro de controle da legitimidade das eleições. A concepção positivista da jurisdição cumpriu o importante papel de legitimação do modelo de verificação eleitoral adotado no País. Ela foi suficiente para que se reconhecessem (ou, ao menos, tolerassem) as decisões judiciais, mesmo aquelas que têm por objeto a disputa político-partidária, como legítimas. Tomada como dado do mundo dos fatos, a neutralidade tornava insustentável qualquer crítica ao papel do aplicador do Direito. Pois, se a atividade jurisdicional é inegável e intrinsecamente neutra – ou mecânica ou silogística, como defendem versões mais extremas da teoria –, a mera acusação de que um magistrado julgara com base em preferências políticas implicava não uma denúncia contra um caso de abuso de poder jurisdicional, mas uma ameaça a todo o sistema jurídico, que sobre a perspectiva do Positivismo se sustentava. Todavia, a doutrina positivista não pode mais ser adotada como elemento de justificação da instituição judiciária e de suas ações. Uma das últimas variações da teoria, o formalismo, alcançou o ponto mais alto com Kelsen (2009). A polêmica desse autor com Schmitt, na década de 1930, “[...] constitui um dos momentos

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decisivos da reação que o formalismo provoca na Alemanha, produzindo um divisor de águas na teoria do século XX.” (BONAVIDES, 2008, p. 171). O debate acerca da argumentação positivista revelou que as conclusões aparentemente descritivas da doutrina são, em verdade, proposições interpretativas disfarçadas. Exprimem uma avaliação da prática jurídica quando se dispõem a expôla como ela é. Afirmam a neutralidade da atividade jurisdicional, mas o que de fato fazem é prometer que os juízes aplicarão as leis sem considerações políticas. Ademais, partem de uma constatação falsa: a racionalidade do homem e da comunidade política. Pressupõem que o indivíduo encarregado da aplicação jurídica sempre age racionalmente, quando, na realidade, esperam que ele o faça. Tomam a suposição como fato, de forma que não oferecem condições para evitar que comandos jurídicos nasçam de decisões intuicionistas, arbitrárias e ocasionais (DWORKIN, 2007a). Negam que tais abusos aconteçam, “[...] porque então [...] seria capricho e arbítrio [...]” (BOBBIO, 2006, p. 120), e não, Direito. Já no final da década de 1920, defendia Schmitt (2007a, p. 67) que, nos casos de lacunas, obscuridades, contradições ou conceitos abertos normativos, a instância que coloca o conteúdo legal fora de dúvida atua como legislador, ainda que os efeitos da decisão se restrinjam às partes em juízo. Idêntica constatação, há de reconhecer, pode-se depreender também do Positivismo (v. seção 2.3). Mas o autor vai mais longe ao afirmar que, independentemente da clareza dos textos de lei, “[...] em toda decisão, mesmo na de um tribunal que decide um processo subsumindo de maneira correspondente ao tipo, reside um elemento de pura decisão que não pode ser derivado do conteúdo da norma.” (SCHMITT, 2007a, p. 67). A falácia da doutrina positivista que vê na interpretação praticada pelo juiz um silogismo puramente lógico, que permite deduzir a partir da lei uma resposta única e necessária ao caso concreto, pode ser percebida se se atenta para o que ocorre nos órgãos judiciais colegiados. Não raramente, existe desacordo entre os membros a respeito de uma decisão. É ilustrativo o fato de que os “[...] depositários do ‘papel judiciário’ reunidos num mesmo colégio para julgar uma mesma disputa possam tirar, do complexo das normas e dos precedentes, motivações para duas ou mais decisões diferentes, e às vezes em nítido contraste [...]” (MARRADI, 1998, p. 1161). A constatação não necessariamente ameaça “[...] os fundamentos da confiança pública na função judiciária [...]”, como pensa Marradi (1998, p. 1161), mas

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certamente joga por terra a concepção exclusivamente neutra da atividade jurisdicional. Admitir que o exercício da jurisdição não é uma atividade isenta de considerações subjetivas acerca da realidade significa reconhecer que a decisão jurisdicional contém elementos da visão política do juiz que a profere. Assim, a partir da segunda metade do século XX, torna-se cada vez menos provável encontrar um teórico disposto a defender a teoria silogística como formulada por Beccaria (2005). Também se acha em crescente descrédito o método da interpretação mecânica, literal, que propõe se atribua aos termos da lei “[...] aquilo que melhor chamaríamos de seu significado acontextual, isto é, o significado que lhes atribuiríamos se não dispuséssemos de nenhuma informação especial sobre o contexto de seu uso ou as intenções de seu autor.” (DWORKIN, 2007a, p. 22). Essa mudança de paradigma permitiu que se recebesse sem espanto a declaração do ministro Menezes Direito no julgamento do MS n. 26.602/07. No voto proferido naquela sessão, o magistrado afirmou que os órgãos encarregados da jurisdição têm o dever de “[...] considerar a cultura do seu tempo para que a lei possa ser um instrumento da realização da Justiça.” (BRASIL. Supremo..., 2007). Pois, como explicou o ministro, o “[...] método chamado tradicional não consegue esgotar o alcance da Constituição, não sendo ele já agora suficiente para orientar a leitura da Constituição feita pela Suprema Corte.” (BRASIL. Supremo..., 2007). O pensamento político em geral tem sido pródigo em produzir explicações para a legitimidade de que gozam os órgãos judiciários, mesmo reconhecido o caráter político de suas decisões, e negadas as premissas positivistas que sustentaram tal legitimidade por mais de um século. No âmbito acadêmico angloamericano, em que o debate público acerca da natureza e dos limites da atividade judicial é intenso, não faltam autores que se dedicaram a examinar a questão. Entre os mais notáveis, cita-se Ronald Dworkin (2007b). Contra as três afirmações essenciais do Positivismo expostas na subsecção 2.3, Dworkin (2007b) defende uma concepção argumentativa do Direito que pode ser resumida nas seguintes premissas: a) “[...] os princípios políticos inscritos na constituição fazem parte do direito, [...] apesar do fato de não serem produtos de decisão social ou política deliberada [...]” (DWORKIN, 2007b, p. X) e do de não se

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distinguirem de outras normas sociais por meio de um teste formal, de pedigree; b) “[...] ‘o direito’ inclui, pelo menos, tanto princípios como regras [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 47), de forma que o considerar somente um conjunto de regras implica tomar uma parte do conceito como se fosse o todo (DWORKIN, 2007b); e c) a ausência de uma regra jurídica reconhecida não implica a inexistência do Direito, porque “[...] os indivíduos podem ter outros direitos jurídicos além daqueles criados por uma decisão ou prática expressa [...]” (DWORKIN, 2007b, p. XVI). Para Dworkin (2007b), há pelo menos dois conjuntos de padrões públicos de julgamento: os princípios e as regras. As duas espécies se distinguem devido à estrutura lógica de cada uma. “As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.” (DWORKIN, 2007b, p. 39). Os princípios, diferentemente, “Mesmo aqueles que mais se assemelham a regras, não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas.” (DWORKIN, 2007b, p. 40). Isso porque um princípio não estabelece “[...] condições que tornem sua aplicação necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção, mas [ainda assim] necessita de uma decisão particular.” (DWORKIN, 2007b, p. 41). É possível, no entanto, que uma disposição funcione do ponto de vista formal como uma regra e do ponto de vista substantivo como um princípio. Termos como ”razoável” – ou, no caso do §9º do art. 14 da CRF/88, “moralidade”, “normalidade e legitimidade das eleições” (BRASIL, 1988) –, eventualmente constam de um dispositivo constitucional. Quando isso ocorre, a incidência da norma depende, até certo ponto, de considerações sobre princípios que extrapolam a própria regra. Nesse caso, ela se assemelha a princípios, embora não se transforme num deles. (DWORKIN, 2007b). O conceito de vigência, que as doutrinas positivistas consideram atributo essencial das normas jurídicas, apto a diferenciá-las de outros padrões sociais, não se aplica aos princípios jurídicos. Diferentemente das regras explícitas, eles não têm origem “[...] na decisão particular de um poder legislativo ou tribunal, mas na

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compreensão do que é apropriado, desenvolvida pelos membros da profissão e pelo público ao longo do tempo.” (DWORKIN, 2007b, p. 64). Embora se apoiem em atos oficiais de instituições jurídicas, a conexão entre essas normas e tais fatos não é simples ou direta. Não há como submetê-los a um critério formal de reconhecimento, como faz o Positivismo em relação às regras. (DWORKIN, 2007b). Logo, “[...] é errado supor [...] que em todo sistema jurídico existe algum teste fundamental, normalmente reconhecido como válido, para determinar quais padrões contam como direito e quais não contam.” (DWORKIN, 2007b, p. 73). Por não se submeterem a testes de pedigree, não se lhes aplica também a ideia de revogação. “Quando entram em declínio, eles sofrem uma erosão [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 64). Desse modo, não se demonstra a autoridade ou o peso de um princípio reportando-o a um ato do Poder Legislativo ou à decisão de um tribunal autorizado. “Saber se um princípio é ou não um princípio da comunidade nesse sentido é matéria para argumentação [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 125). Isso implica rejeitar a primeira afirmação positivista, “[...] segundo a qual o direito de uma comunidade se distingue de outros padrões sociais através de algum teste que toma a forma de uma regra suprema.” (DWORKIN, 2007b, p. 70). Dworkin (2007b) não nega a pertinência dos testes de pedigree. O autor observa, no entanto, que tais critérios formais só se aplicam a algumas das normas que se consideram jurídicas, mais especificamente, às regras explicitamente formuladas de acordo com as convenções sociais vigentes. Os princípios, embora sejam também jurídicos, submetem-se a um teste distinto. É um princípio de Direito aquele padrão moral público que figura na mais bem fundada teoria “[...] que possa servir

como

justificação

das

regras

explícitas,

tanto

substantivas

quanto

institucionais, da jurisdição em questão.” (DWORKIN, 2007b, p. 105). O argumento em favor de um princípio tem de identificar nas leis e na jurisprudência convencionalmente adotadas uma preocupação ou tradição moral comunitária que efetivamente as sustente. Tal processo de justificação leva necessariamente ao exame de questões de moralidade política. O apelo da argumentação a princípios é, portanto, necessariamente moral. (DWORKIN, 2007b). Define-se comumente a moral de uma comunidade como um conjunto de crenças apoiadas pelo consenso. Nesse sentido, é concebida como uma função estatística dos padrões morais individuais. Por isso, pode ser extraída mediante uma pesquisa de opinião. Não é essa, contudo, a moral que o autor entende constitutiva

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da prática jurídica. Dworkin (2007a; 2007b) defende a existência de uma moralidade política, publicamente reconhecida e atribuída à comunidade personificada, não aos indivíduos que a compõem. Ele propõe que se compreendam os padrões morais comunitários como os princípios que justificam as instituições e as leis, de modo que “[...] poderiam figurar em uma teoria do direito bem fundada [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 125). Noutras palavras, “[...] essa concepção sustenta que a moralidade comunitária é a moralidade política que as leis e as instituições da comunidade pressupõem.” (DWORKIN, 2007b, p. 197). Decorre disso que “[...] nenhuma distinção definitiva pode ser feita entre padrões jurídicos e morais, como insiste o positivismo.” (DWORKIN, 2007b, p. 73). Não há como diferenciar as normas jurídicas estatais, em tese e como grupo, do conjunto dos valores políticos nos quais certa comunidade se baseia para julgar o comportamento de seus membros. Os princípios são padrões de uma moralidade que o autor chama de “concorrente”. Trata-se de normas que os indivíduos cuja conduta elas regulam percebem como independentes de convenção. Elas se sustentam pelo acordo dos membros da comunidade, embora eles não considerem “[...] o fato desse acordo como parte essencial das razões que os levam a afirmar a existência dessa regra.” (DWORKIN, 2007b, p. 85). Há uma espécie distinta de moralidade política, a convencional, “[...] que leva em conta o fato do acordo.” (DWORKIN, 2007b, p. 85). O juspositivismo, ao reduzir o Direito ao conteúdo explícito das decisões institucionais anteriormente tomadas, revela-se uma teoria acerca dos padrões morais convencionais. Constitui, portanto, um convencionalismo estrito (v. subseção 2.3). Como nega que os padrões concorrentes, os princípios, sejam normas jurídicas – e, consequentemente, aptas a oferecer parâmetros para os julgamentos praticados no exercício da jurisdição –, a teoria positivista consegue separar com relativa facilidade a esfera jurídica da moralidade pública. Não que desconheça a origem política das leis. Em verdade, o que faz é superestimar o efeito politicamente neutralizante da positivação delas. O Positivismo supõe que, uma vez incorporados aos repertórios legislativos, os mandamentos políticos tornam-se fatos jurídicos independentes dos valores e expectativas que lhes deram origem. Reconhecida a legalidade do teste que confere vigência às regras, elas valem, a partir de então, contra todos e obrigam os órgãos estatais a aplicá-las. A força que possuem decorre desse atestado formal. Somente a ele devem reportar os juízes quando decidem os casos submetidos à

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jurisdição. Previamente despolitizado, o conteúdo das leis pode ser objeto de considerações estritamente lógicas e impessoais. A constatação da relação existente entre política e legislação se dá, portanto, à custa de uma concepção política da atividade jurisdicional.

5.1 Legislar e julgar sob a normatividade dos princípios

O reconhecimento da existência de princípios não é exclusividade das doutrinas pós-positivistas. O Positivismo não nega a possibilidade de que haja tais padrões normativos abstratos. Mas defende não se tratarem de normas jurídicas. Para os adeptos dessa concepção, ao apelar a tais parâmetros extralegais, “[...] o juiz vai além das regras que ele está obrigado a aplicar (isto é, ele vai além do ‘direito’) [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 47). O próprio sistema jurídico pode autorizar o uso desses referenciais extrajurídicos de julgamento. Um exemplo frequentemente citado pela doutrina tradicional se encontra na Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro (LICC). O art. 4º da LICC dispõe: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” (BRASIL, 1942). Nessa hipótese, contudo, para os teóricos positivistas, assiste-se ao exercício autorizado da função legislativa pelo Poder Judiciário. A mudança na concepção do Direito operada pelas correntes que se convencionou agrupar sob a nova hermenêutica não foi, portanto, o reconhecimento dos princípios. Pois eles não eram desconhecidos. A grande contribuição dos teóricos do novo paradigma interpretativo foi a expressa afirmação de que se deve tratar os princípios jurídicos “[...] da mesma maneira que tratamos as regras jurídicas [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 46). Noutras palavras, “[...] alguns princípios possuem obrigatoriedade de lei e devem ser levados em conta por juízes e juristas que tomam decisões sobre obrigações jurídicas.” (DWORKIN, 2007b, p. 47). Dworkin (2007b) observa que grande parte das práticas jurídicas estabelecidas se sustenta em princípios que mesmo os positivistas mais rigorosos pressupõem ou reconhecem explicitamente, embora sem lhes atribuir caráter normativo. Para o autor, qualquer concepção positiva do Direito confere valor à legalidade, o que significa subordinar as ocasiões de coerção pública à certeza

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garantida por formas jurídicas canônicas amplamente difundidas. Perpassa o Positivismo a ideia de que, se as normas estão dispostas num rol de regras simples e acessíveis a todos, limitam-se as possibilidades de abuso do poder. Os teóricos positivistas, inspirados em Montesquieu (1979), reconhecem um lugar de destaque para as convenções legislativas na estrutura estatal. Subjaz ao convencionalismo um “[...] ideal das expectativas asseguradas [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 145), que faz uma decisão política depender de outra, necessariamente anterior. Pode-se inferir ser esse princípio uma justificação compatível, por exemplo, com o modelo de ordenamento escalonado de Kelsen (2009), que condiciona a validade de uma norma inferior à conformidade com outra, superior. Também a teoria da legitimação pelo procedimento, proposta por Luhmann (1980), fica a depender de princípios, entre eles, o da periodicidade da alternância de poder e o do igual valor do voto, explicitamente mencionados pelo autor (v. seção 4). O jus-sociólogo defende que as sociedades modernas já não legitimam o Direito “[...] por meio de verdades invariáveis existentes, mas, sim, apenas ou principalmente, por meio de participação em procedimentos.” (LUHMANN, 1980, p. 8). Para ele, só faz sentido falar em processos se não se tratam mais questões jurídicas como problemas que exigem das decisões certeza. Pelo menos, não uma certeza exterior, ligada ao ambiente. Ela foi substituída por certezas interiores ao sistema, decorrentes da possibilidade de reconstituição da história da decisão tomada. Afinal, o Direito tornou-se relativamente autônomo se comparado a outros sistemas sociais. E isso se deu mediante a superação de formas de argumentação amparadas pela demonstração divina e pela dependência de papéis fixos. No primeiro caso, a legitimidade da decisão se baseava na certeza garantida pela fé no juízo de autoridades morais mais elevadas. No segundo, pela influência nos processos de papéis sociais externos. (LUHMANN, 1980). Daí não decorre, porém, que padrões substantivos de conduta e julgamento sejam inexistentes ou irrelevantes; que não se possam conceber limites materiais direcionadores da decisão; e que não haja parâmetros de avaliação política, relativamente independentes dos processos (e, neste aspecto, semelhantes às verdades de que fala o autor), mas não invariáveis nem externos (e, nisto, diferentes das certezas pré-modernas). Pois, embora descreva uma das mais importantes peculiaridades do Estado contemporâneo, a teoria da legitimação pelo procedimento (LUHMANN, 1980) é insuficiente. Apenas desloca o problema da

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legitimidade. Não o resolve. Reconhece que o procedimento é um fator de legitimação. Contudo, deixa sem resposta o que legitima o próprio procedimento. A menos que se admita existirem justificativas concorrentes, toda a estrutura estaria em permanente risco de ser, ela mesma, objeto dos processos jurídicos que a mantêm. Não haveria certeza, mas uma permanente instabilidade. Como tal não acontece, é de supor a existência de princípios fundamentais que sustentem o núcleo da organização estatal. Em todo caso, o reconhecimento do caráter normativo dos princípios modifica profundamente o modo como se concebem o Direito e as funções de criação e aplicação normativa. De imediato, a concepção neutra e meramente reveladora da jurisdição, em oposição à definição política e criativa da lei, tem de ser abandonada. E não somente porque, como percebera Schmitt (2007a, p. 160), “Tudo o que, de alguma forma, for de interesse público, é de alguma forma político e nada do que diz respeito essencialmente ao Estado pode ser despolitizado [...].” Mas porque, se, como explica Dworkin (2005, 2007a, 2007b), o Direito e, em especial, a Constituição fundem questões jurídicas a princípios de moralidade pública, o exercício da jurisdição depende da resposta necessariamente controversa a problemas políticos complexos da comunidade. A jurisdição é, então, uma atividade política em sentido amplo. E o é por duas razões. A primeira se refere ao fato de ser ela uma manifestação do Estado. “[...] as decisões judiciais formalmente anunciadas nos repertórios jurídicos são, em si mesmas, atos da comunidade personificada [...]” (DWORKIN, 2007a, p. 297). Idêntico caráter detém a legislação, “[...] a prática de reconhecer como lei as decisões explícitas de organismos especiais aos quais se atribui esse poder [...]” (DWORKIN, 2007a, p. 123). A personificação estatal permite considerar a comunidade política como uma forma especial de entidade, diversa do conjunto dos membros que a compõem, os cidadãos, e dotada de capacidade de ação e de responsabilidades morais próprias. As autoridades agem em nome da comunidade da qual são membros. As decisões que tomam são políticas, pois constituem manifestações da própria entidade coletiva acerca das circunstâncias em que se autoriza a coerção. (DWORKIN, 2007a). Dizer que os membros dos três Poderes são autoridades públicas implica considerá-los autorizados a prover, em nome da comunidade personificada, “[...] uma justificativa para o uso do poder coletivo contra cidadãos ou grupos individuais.”

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(DWORKIN, 2007a, p. 134). Resultam desses provimentos leis, sentenças, acórdãos e decretos. Tais deliberações constituem decisões políticas. Conformam a própria entidade comum que, na Modernidade, assume a forma de Estado. Interferem na organização e no funcionamento das instituições coletivas. Repercutem nos interesses dos indivíduos, não só no que esperam para si (preferências pessoais), mas também para a coletividade (preferências externas). (DWORKIN, 2005). Nesse primeiro sentido, que atribui formalmente caráter político a toda manifestação estatal, a afirmação da natureza política da atividade jurisdicional não é exclusiva das novas correntes jurídico-doutrinárias nem contradiz as premissas positivistas mais tradicionais. Conclusão similar pode ser depreendida da obra de Kelsen (2009), por exemplo. Contudo, as decisões jurisdicionais são políticas também por outro motivo, material, não reconhecido pelo Positivismo: “[...] a interpretação do Direito é essencialmente política.” (DWORKIN, 2005, p. 242). Qualquer empreendimento interpretativo exige mais que somente descrever o significado linguístico das frases gravadas nos códigos e no texto da Constituição. A empresa demandada pela interpretação jurídica “[...] não consiste apenas em estabelecer uma documentação textual e histórica, embora essa seja parte do trabalho.” (DWORKIN, 2005, p. 132). Interpretar o repertório de legislação, jurisprudência e atos administrativos “[...] significa oferecer-lhe uma justificativa [...]” (DWORKIN, 2005, p. 132). Tal processo se vale, “[...] embora não seja idêntico a ela, da citação de princípios que se consideram, de maneira independente, moralmente corretos.” (DWORKIN, 2005, p. 132). Para Dworkin (2007a), a atitude que um juiz encarregado da aplicação do Direito adota diante da tarefa que tem pela frente pode ser analiticamente dividida em três etapas. Na primeira, pré-interpretativa, cabe ao julgador identificar os padrões de julgamento publicamente reconhecidos como jurídicos. Na segunda, o intérprete formula uma “[...] justificativa geral para os principais elementos da prática identificada na etapa pré-interpretativa.” (DWORKIN, 2007a, p. 81). Na terceira, pósinterpretativa, o juiz reformula a “[...] idéia daquilo que a prática ‘realmente’ requer para melhor servir à justificativa que ele aceita na etapa interpretativa.” (DWORKIN, 2007a, p. 82). Ou seja, aplica a teoria aos dados obtidos na primeira fase. As convicções políticas do intérprete são indissociáveis de cada etapa e indispensáveis ao processo como um todo. Mesmo para definir os dados brutos da análise, na fase pré-interpretativa, torna-se necessária uma hipótese de quais

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parâmetros são reconhecidos como jurídicos pelos membros da comunidade. E a perspectiva da qual parte o julgador necessariamente conformará a escolha. Assim é que a doutrina positivista atribui caráter de normas de Direito exclusivamente às convenções explícitas adotadas por instituições estatais. Já os teóricos do pósPositivismo juntam a esses padrões, que também aceitam, os princípios jurídicos. (DWORKIN, 2007a). Na segunda e na terceira etapas, a influência da visão política do decisor no resultado do processo é ainda mais clara. A escolha de qual sentido pode ser mais adequadamente atribuído ao conjunto formado pela Constituição, pelas leis, pela jurisprudência e por outros documentos jurídicos há de ser decidida por quem esteja encarregado de pronunciar o julgamento. E, inevitavelmente, será tratada como um problema de teoria política. “As teorias interpretativas de cada juiz se fundamentam em suas próprias convicções sobre o ‘sentido’ – o propósito, objetivo ou princípio justificativo – da prática do direito como um todo [...]” (DWORKIN, 2007a, p. 110). Eis que o Positivismo, a fim de garantir a imagem objetiva e politicamente neutra da jurisdição, limita a segunda fase à identificação de relações sistêmicas lógicas entre as regras explícitas e nem sequer reconhece a existência da terceira. Mas a promessa juspositivista de que os juízes tomarão decisões apolíticas ao descobrirem e imporem o sentido do Direito não pode ser cumprida, pois os intérpretes-aplicadores não têm como descobrir esse sentido sem construir ou adotar uma concepção de sistema jurídico em lugar de outra, “[...] isto é, sem tomar as decisões de moralidade política que tinham como objetivo evitar.” (DWORKIN, 2005, p. 77). Os argumentos acerca do que determina a lei não são “[...] tentativas condenadas a relatar significados ontologicamente independentes, espalhados entre os objetos do universo.” (DWORKIN, 2005, p. 252). As afirmações interpretativas sobre o Direito são complexas, porque se trata de argumentos acerca daquilo que torna uma prática o melhor exemplo da categoria jurídica à qual o intérprete julga pertencê-la. Dessa maneira, o raciocínio jurídico se revela construtivo e inteiramente dependente de uma teoria política. (DWORKIN, 2005). O construtivismo que Dworkin (2005) atribui à interpretação conflita com a noção objetiva dela que subjaz à imagem do julgador politicamente neutro construída pelo Positivismo. Para o autor, a moralidade política substantiva é inerentemente controversa. Não há intenções reais estabelecidas na história

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institucional, independentes das opiniões dos intérpretes sobre a prática jurídica adequada, contra as quais se possa testar a precisão das concepções construídas. Assim, “[...] toda a questão da objetividade, que domina a teoria contemporânea nessas áreas [jurídica e moral], é um tipo de embuste.” (DWORKIN, 2005, p. 258). A crença de que o conhecimento do Direito pode compreendê-lo objetivamente não muda o fato de que os argumentos jurídicos são interpretativos. Por serem-no, o sentido e a força que têm derivam do empreendimento coletivo no qual figuram. Logo, “[...] julgamentos não podem ter um sentido ‘real’ e um valor de verdade ‘real’ que transcenda esse empreendimento e [que], de alguma maneira, apodere-se do mundo ‘real’.” (DWORKIN, 2005, p. 262). A questão sobre o que constitui objetividade e realidade do Direito é interna à própria prática jurídica. (DWORKIN, 2007a). A partir dessa concepção da atividade interpretativa, Dworkin (2005) propõe seja abandonada a divisão categórica entre a descrição, que o Positivismo defende realizar, e a pura avaliação do fenômeno jurídico, a qual atribui à perspectiva jusnaturalista radical. “[...] a distinção entre encontrar o Direito logo ‘ali’ na história e inventá-lo completamente – está mal colocada aqui, pois a interpretação é algo diferente de ambas.” (DWORKIN, 2005, p. 242). A decisão jurisdicional, “[...] em cada caso, exige um novo exercício de interpretação que não é nem pesquisa histórica pura nem uma expressão inteiramente nova de como as coisas deveriam ser em termos ideais.” (DWORKIN, 2005, p. 245). A constatação de que o raciocínio jurídico é construtivo repercute diretamente na questão da fácil separação que o Positivismo estabelece entre legislar e julgar, pois, a cada fato submetido à jurisdição, repete-se a tarefa interpretativa que Dworkin (2007a), analítica e esquematicamente, separou em três etapas. O julgador identifica os padrões de julgamento aplicáveis, propõe um sentido a eles e os avalia a partir daí. Elabora para a regra legal “[...] uma justificativa que se ajuste a essa lei e a penetre, e que seja, se possível, coerente com a legislação em vigor.” (DWORKIN, 2007a, p. 405). Dessa maneira, ao aplicar uma norma a uma situação concreta, o juiz, ainda que de boa-fé e disposto a encontrar um sentido no Direito, cria, além de uma regra específica para o caso, o próprio padrão abstrato e geral que aplica. (DWORKIN, 2007a). O elemento criativo da jurisdição se nota mais facilmente em casos difíceis, em que se vê a legislação a interpretar como insuficiente. Isso não implica,

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porém, que inexista construção nos julgamentos encarados como fáceis. A diferença é que, na segunda hipótese, uma vez que as respostas às perguntas colocadas pelo julgador são evidentes, ou pelo menos parecem sê-lo, não se identifica com clareza o processo construtivo em operação. Dada a força da convenção sobre determinadas matérias, a comunidade de intérpretes constrói e aplica a mesma solução, que aparece ao juiz como um fato do mundo, ontologicamente existente e independente da ação construtiva. (DWORKIN, 2007a). Ademais, como Dworkin (2007a) esclarece, a diferença entre casos fáceis e difíceis é ela mesma interpretativa. O intérprete considera um julgamento difícil se constata que a resposta oferecida pelo Direito àquela situação exige argumentação e pode ser contestada. Nessas ocasiões, a questão não se resolve pela atribuição de um significado linguístico ao texto. O que o julgador tem diante de si é uma matéria de convicção política. (DWORKIN, 2007a). Em sistemas jurídicos complexos como os contemporâneos, muito frequentemente, a controvérsia não surge por inexistir nos códigos uma disposição clara que se relacione à disputa, mas porque as regras ali dispostas não atendem à concepção do intérprete sobre o que é devido na ocasião. Um dispositivo que não seja satisfatório dessa maneira não será mais bem compreendido com a aplicação de técnicas de interpretação textual. No mais das vezes, as dificuldades ocorrem porque o juízo exige considerações sobre um conceito contestado, não devido a problemas semânticos de clareza. (DWORKIN, 2005). Para compreender adequadamente essa afirmação, há que considerar os dois sentidos em que pode ser apreendido o termo lei. No primeiro, ele designa uma entidade física, ontologicamente independente. Refere-se a “[...] um documento com palavras impressas, as próprias palavras que os congressistas ou membros do Parlamento tinham diante de si quando votaram para aprovar esse documento.” (DWORKIN, 2007a, p. 21). No segundo, mais complexo, ele descreve “[...] o direito criado ao se promulgar o documento [...]” (DWORKIN, 2007a, p. 21). A partir do texto canônico estabelecido nos códigos e na Constituição, o juiz tem de interpretar o Direito – a lei no segundo sentido –, o que significa afirmar os direitos e deveres juridicamente estabelecidos para diferentes pessoas (DWORKIN, 2007a). Todavia, o impulso semântico do Positivismo Jurídico confunde as duas definições do termo. Os teóricos positivistas afirmam que, nos casos de obscuridade do texto aprovado pelo Legislativo (primeiro sentido), o conteúdo da norma jurídica

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(segundo sentido) é também indeterminado. Ao fazerem-no, transpõem a indeterminação do documento para o Direito e atribuem a ambiguidade, a vagueza e a abstração legal a problemas linguísticos. (DWORKIN, 2007a). Entretanto, de impropriedades textuais não decorre necessariamente a obscuridade da legislação. Muito frequentemente, pode-se encontrar na integridade do Direito a resposta jurídica apropriada. O adjetivo “obscuro” é mais o resultado que a ocasião do método interpretativo. A obscuridade do Direito refere-se, mais apropriadamente, à existência de interpretações em confronto, cada uma delas sustentada por argumentos consideráveis. (DWORKIN, 2007a). Uma lei será, então, [...] problemática devido à ambigüidade, imprecisão ou abstração de alguma palavra apenas se houver, pelo menos, uma dúvida sobre se a lei representaria um melhor desempenho da função legislativa se interpretada de um modo, e não de outro. (DWORKIN, 2007a, p. 422).

Consequentemente, devem-se compreender as cláusulas constitucionais e legislativas vagas como um apelo aos conceitos contestados que elas empregam. Trata-se de opções de aplicação de normas morais, não de tentativas incompletas de estabelecer prescrições exaustivas do que seja devido juridicamente. Não se devem ler as disposições abertas como regras defeituosas. Um detalhamento maior não tornaria esses dispositivos mais precisos. (DWORKIN, 2007b). Um tribunal que assume o ônus de aplicá-las “[...] deve estar preparado para formular questões de moralidade política e dar-lhes uma resposta.” (DWORKIN, 2007b, p. 131). Os teóricos positivistas, porém, não concebem hipóteses sobre como fazê-lo. Diante de conceitos contestados, cujo sentido não se pode apreender gramatical ou literalmente, o Positivismo ora se vale da ficção da vontade do legislador implícita na lei, e então preserva a imagem neutra da jurisdição, ora credita a criatividade dos juízes ao exercício legislativo judicial. Na primeira situação, afirma-se buscar o propósito dos autores no documento legal ou num dispositivo nele contido. Mas o que se opera é o encobrimento das opções políticas tomadas pelo próprio juiz diante do caso. Pois “[...] não há nada semelhante a uma intenção dos constituintes esperando para ser descoberto, mesmo que em princípio. Existe apenas alguma coisa esperando para ser criada.” (DWORIN, 2005, p. 51). Na segunda hipótese, devido à ausência de uma regra expressa incontroversa, o Positivismo trata os casos como vagos ou lacunosos. Afirma que, acionado o Poder Judiciário, a solução da controvérsia demanda uma atividade judicial de legislação. Dworkin (2007b), diferentemente, não nega tratar-se da

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atuação jurisdicional típica. O autor aponta que as regras legislativas são fontes jurídicas, mas não as únicas. O intérprete oficial que alega vagueza ou lacuna não está livre para decidir a questão como se legislasse sobre a matéria. As decisões jurisdicionais necessariamente refletem a moralidade política do próprio juiz, mas, igualmente, a moralidade inscrita nas tradições legais. Mesmo nas circunstâncias difíceis, o Direito determina a resposta a dar ao caso submetido a juízo, pois os princípios são também normas jurídicas – aptas, portanto, a fornecer padrões publicamente reconhecidos de julgamento. Ocorre, no entanto, que os parâmetros deles decorrentes são, eles mesmos, contestados. Isso torna inerente à jurisdição a resposta a questões políticas controversas. (DWORKIN, 2005). Ademais, como esclarecido, nenhuma regra exige de maneira inequívoca uma decisão judicial específica. Se há controvérsia quanto a qual determinação é, de fato, imposta pela lei, os membros do Poder Judiciário terão de “[...] exercitar uma iniciativa e uma capacidade que vão além da aplicação da regra estabelecida.” (DWORKIN, 2007b, p. 109). Isso não significa, porém, que, ao fazê-lo, eles necessariamente legislem. Ainda quando nenhuma norma expressa regula o caso, cabe ao decisor encontrar qual padrão de julgamento incide. “[...] os juízes não deveriam ser e não são legisladores delegados, e é enganoso o conhecido pressuposto de que eles estão legislando quando vão além de decisões políticas já tomadas por outras pessoas.” (DWORKIN, 2007b, p. 129). Diante do inegável caráter político de toda proposição jurídica, Dworkin (2005) convida os julgadores a adotarem uma atitude francamente honesta. Não autorizados a legislar, os magistrados devem esforçar-se para aplicar a jurisdição, ou seja, devem basear os julgamentos em padrões publicamente reconhecidos como jurídicos. “O juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente.” (DWORKIN, 2007b, p. 127).

5.2 Legislação e política, jurisdição e princípios

Conforme exposto na subseção anterior, a atividade jurisdicional constitui um exercício de interpretação construtiva. Ao dizer qual Direito incide sobre o caso,

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o juiz é desafiado a formular uma justificativa para as práticas jurídicas coletivas. Para fazê-lo, tem de valer-se de juízos de moralidade política, em muito baseados nas convicções que desenvolve acerca do que a comunidade personificada exige politicamente dos cidadãos. (DWORKIN, 2007a). O reconhecimento de que a jurisdição é política e criativa parece ameaçar a tradicional distinção entre legislar e julgar. Mas apenas se se considera válida a concepção oferecida para cada uma dessas funções pela doutrina positivista. Uma vez superados os argumentos que associam com facilidade a jurisdição à atitude politicamente neutra e reveladora diante do Direito, em oposição à legislação, relacionada a controvérsias políticas e criação jurídica, podem-se formular parâmetros efetivos que diferenciem os dois poderes estatais. Formalmente, conforme visto na seção 4, não há dúvidas de que o processo legislativo é distinto do jurisdicional. Cada um deles possui características típicas, de acordo com a espécie de decisão pública a ser apresentada ao final. Enquanto aquele é programante, este é programado. Partindo dessa perspectiva formal-procedimental, a legislação brasileira e a CRF/88 identificam cada grupo de decisões. As jurisdicionais estão previstas no repertório legislativo processual. O art. 162 do CPC, por exemplo, estabelece: “Os atos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.” (BRASIL, 1973). Já os atos legislativos federais, as leis em sentido formal, são exaustivamente listados pelos incisos do art. 59 da CRF/88: Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções. (BRASIL, 1988).

Todavia, o critério formal não se mostra bastante para responder às críticas de que o Judiciário como um todo e, destacadamente, a Justiça Eleitoral judicializam abusivamente a política quando tomam decisões com conteúdo político, porque então legislam sem autorização. Ora o apelo ao procedimento para legitimar o exercício de um poder estatal é uma premissa logicamente incompatível com as acusações de legislação judiciária. Do ponto de vista exclusivamente formal, estritamente observadas as normas de condução dos processos jurisdicionais, só pode haver aplicação da jurisdição. Em verdade, sob essa perspectiva, seria um

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contrassenso falar em atividade legislativa judicial. Logo, para distinguir as hipóteses em que, supõe-se, o processo jurisdicional apresenta como resultado não um ato de jurisdição, mas de legislação, há que recorrer a um critério concorrente, material. O Positivismo sugere um parâmetro amplamente difundido, embora não problematizado, para tanto. A fim de diferenciar o conteúdo das duas atividades, a doutrina apela, ainda que sem admitir, a considerações acerca do conteúdo de cada uma delas. Alega que, de modo geral, são comuns nos Estados democráticos as cautelas relativas à possibilidade de interferência da jurisdição na esfera política. Usualmente, os sistemas jurídicos reconhecem a existência da “[...] proibição – importantíssima, mesmo que a maioria das vezes não esteja escrita por ser autoimposta pelos órgãos judiciários – de decidir ‘questões políticas’, ou seja, pertencentes à organização do sistema político [...]” (BOBBIO, 1998, p. 1162). A partir dessa premissa, os teóricos positivistas associam a legislação à política e retiram este objeto do âmbito de atuação jurisdicional. O problema intrínseco ao uso do conteúdo político como critério de partição entre as funções de legislar e julgar pareceu de difícil solução para Carl Schmitt (2007a) já na primeira metade do século XX. À época, advertiu o autor que, embora se possa diferenciar, “[...] com fáceis e cômodos confrontos [...]” (SCHMITT, 2007a, p. 161), política e Direito, para fazê-lo, “[...] parte-se comumente da falsa noção do século XIX liberal de que seria possível separar uma área especial de ‘política’ de outras matérias como economia, religião e direito.” (SCHMITT, 2007a). Entre os pensadores contemporâneos, persiste a noção da existência de uma relação intrínseca entre legislação e política, que repercute na ampla aceitação da proibição de que as controvérsias políticas se submetam a considerações jurisdicionais. Ferejohn (2002), por exemplo, afirma que a corriqueira identificação entre função legislativa e atividade política não se dá por acaso. Segundo ele, na organização estatal, existe a tendência de que as questões políticas sigam o Poder Legislativo e influenciem as funções desempenhadas pelos órgãos que o compõem. Com essa afirmação, o autor não pretende apenas constatar algo empiricamente perceptível, um fenômeno do mundo do ser. Para ele, a ligação entre a arena política e as ações legiferantes se impõe por estipulações normativas que têm o status de princípios. (FEREJOHN, 2002). O princípio democrático representativo, presente na Constituição da maioria dos Estados, estabelece o vínculo necessário entre legisladores e povo, de

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forma a justificar a ideia de que cada indivíduo é, ainda que indiretamente, autor das leis que o obrigam (FEREJOHN, 2002, p. 44, 46). Na CRF/88, tal norma encontra previsão expressa no parágrafo único do art. 1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” (BRASIL, 1988). A representação se concretiza, em âmbito federal, pela eleição dos membros do Congresso Nacional. Isso [a tendência a que a política siga a legislação] não quer dizer, contudo, que a atuação judicial tem a mesma natureza política que a do Poder Legislativo. Nem implica que haja algo de errado com o fato de a criação normativa pelo Judiciário ter aspectos políticos. Ao contrário. O poder de fazer regras deve ser submetido à contestação política e à deliberação daqueles a quem as regras afetam. A forma da política judicial, contudo, é e deve ser diferente de diversas maneiras da que cerca os órgãos políticos. (FEREJOHN, 2002, p. 46, tradução nossa).

Dworkin (2005, 2007a, 2007b) aprofunda a relação entre a função legislativa e o princípio democrático ao propor uma concepção para o conceito de política (policy) que permite diferenciar a legislação da jurisdição sem negar o caráter político de ambas. O autor encara a esfera que chamaremos de “propriamente política” ou “político-partidária” como a arena de debates sobre quais princípios a comunidade deve adotar como guias. Os parlamentares são atores típicos desse subsistema estatal. “O legislativo eleito pelo povo faz mais [...] que aprovar os dispositivos particulares que constituem os repertórios legais. Ele escolhe as políticas gerais que o Estado deve seguir e os princípios gerais que deve respeitar.” (DWORKIN, 2005, p. 24). Nesse sentido, “[...] a legislação convida a juízos políticos, diferentemente da jurisdição [...]” (DWORKIN, 2007a, p. 489). Os princípios que o Poder Legislativo considera quando define os objetivos a serem perseguidos pelo Estado são diversos daqueles que o Judiciário aplica ao exercer a jurisdição. Dworkin (2007b) reconhece existirem duas espécies de princípios políticos (ou em sentido amplo): os princípios em sentido estrito e as políticas. Estas estabelecem metas coletivas a alcançar, “[...] em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas).” (DWORKIN, 2007b, p. 36). Já aqueles são padrões a serem observados, não por promoverem ou assegurarem situações sociais desejáveis, mas por serem “[...] uma exigência de justiça ou eqüidade ou de alguma outra dimensão da moralidade.” (DWORKIN, 2007b, p. 36).

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Para se justificar, cada uma dessas espécies de padrões públicos de decisão exige argumentos políticos de natureza diversa. Como há princípios (em sentido estrito) e políticas, existem, também, argumentos de princípio ou de política. Os primeiros se destinam a estabelecer direitos individuais; os segundos, objetivos coletivos. Aqueles demandam que, a despeito dos interesses da coletividade, os indivíduos afetados pela decisão sejam respeitados. Estes, ao contrário, sem considerações pessoais específicas, “[...] exigem que uma decisão particular promova alguma concepção do bem-estar geral ou do interesse público.” (DWORKIN, 2005, p. 6). Na medida em que um princípio (em sentido estrito) é uma proposição jurídica que descreve direitos e deveres, os argumentos de princípio se destinam a estabelecê-los. As políticas, diferentemente, constituem proposições que se relacionam a metas. Por isso, os argumentos que as têm por base visam a definir e implementar um objetivo coletivo. Ambos os argumentos são justificativas para decisões de instâncias políticas estatais. Os segundos, porém, justificam-nas na medida em que mostram sê-las úteis, eficazes ou adequadas, por fomentarem ou protegerem posições estratégicas a serem alcançadas pela comunidade como um todo. Por isso, são comumente expressos pela aprovação da maioria percentual dos cidadãos, em eleições ou deliberações coletivas. Já os primeiros apelam à justiça da decisão, ao demonstrar que a manifestação do Estado “[...] respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo.” (DWORKIN, 2007b, p. 129). Argumentos de política recorrem a metas para justificar decisões que pretendem favorecer toda a coletividade. Apoiam o exercício da coerção estatal necessária “[...] para alcançar algum objetivo político geral, isto é, para realizar algum estado de coisas no qual a comunidade como um todo, e não apenas determinados indivíduos, estará em melhor situação em virtude da restrição.” (DWORKIN, 2007b, p. 422). Os argumentos de princípio, ao contrário, baseiam-se em direitos. Justificam uma decisão política por meio do apelo à ideia de que ela os protege ou faz cumprir. Para efetivá-los, propõem que certos programas sejam executados ou abandonados, independentemente dos impactos comunitários. Interessam-se pelas consequências dos objetivos coletivos sobre pessoas específicas, pois um direito conta em si a favor de uma decisão política que protege ou promove o estado de

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coisas que permite ao indivíduo fruí-lo. Trata-se de um objetivo político individuado, oponível a metas políticas, sempre coletivas. (DWORKIN, 2007b). Um indivíduo tem direito a uma oportunidade, a um recurso ou a uma liberdade se esse direito conta a favor de uma decisão política que promove ou protege o estado de coisas no qual ele desfruta tal direito, mesmo que com isso nenhum outro objetivo político seja servido e algum objetivo político seja desservido, se esse direito contar contra a decisão que retardar ou colocar em perigo esse estado de coisas, mesmo que com isso algum outro objetivo político possa ser atingido. (DWORKIN, 2007b, p. 142-143).

Ao distinguir os argumentos de princípio dos de política, Dworkin (2005) não pretende negar o caráter político daqueles. Ambos constituem proposições políticas. Ocorre que, enquanto os princípios (em sentido estrito) são elementos constitutivos da moralidade política, valorizados por si mesmos, as políticas (policies) são derivadas, valorizadas como estratégias, como meios para alcançar posições constitutivas. (DWORKIN, 2005). O

problema

da

difícil

distinção

entre

esferas

não

políticas,

tradicionalmente sujeitas ao controle jurisdicional, e políticas, a ele não submetidas, se resolve, pois, inicialmente pela negação, vez que a jurisdição é, em si, uma atividade política (ver subseção 5.2). Mas, com a constatação do caráter político do objeto da jurisdição, não se pretende afirmar que a natureza dela é idêntica à da legislação. Superado o primeiro nível da perspectiva positivista, que facilmente diferencia as duas funções em virtude da substância política que atribui à segunda e exclui da primeira, pode-se demonstrar que persiste ainda uma diferença material entre elas. No exercício autorizado de cada um desses poderes estatais, empregamse espécies substancialmente distintas de princípios em sentido amplo. Noutras palavras, o argumento político que justifica a prestação jurisdicional tem natureza distinta daquela do que ampara a legislação. Compete ao “[...] poder legislativo aderir a argumentos de política e adotar programas gerados por tais argumentos.” (DWORKIN, 2007b, p. 130). Aos tribunais, cabe justificar as decisões por meio de regras e princípios em sentido estrito, “[...] mesmo que a lei em si tenha sido gerada por uma política.” (DWORKIN, 2007b, p. 131). De outro modo, não se pode entender a vedação de que questões políticas sejam objeto de decisões jurisdicionais (DWORKIN, 2007b). Leis que instituem direitos são aprovadas por questões de política, na maioria das vezes, sob o argumento utilitarista de que atendem ao interesse público ou à vontade da maioria. Não obstante o objetivo político permaneça na origem da

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legislação, a pretensão ajuizada pelo interessado na aplicação dela é uma reivindicação de Direito. Como tal, deve-se apoiar em argumentos de princípio. Pois, ao estabelecer direitos e deveres jurídicos, as leis retiram as questões da esfera político-partidária e as tornam matéria de princípios em sentido estrito. E os juízes não estão autorizados a decidir questões jurisdicionais com base em argumentos puros de política. (DWORKIN, 2005). “[...] a prestação jurisdicional substantiva no Direito é uma questão de princípio [...]” (DWORKIN, 2005, p. 113). A concretização dos direitos e deveres não mais depende de argumentos de política, uma vez que a lei os tenha transformado em questões de princípio (DWORKIN, 2007b). Isso certamente não os despolitiza, como quer o Positivismo Jurídico, mas repercute na extensão reconhecida à prestação jurisdicional, porque, como se demonstrara, a jurisdição é necessariamente política, mas não políticopartidária. Um juiz que julga com base em princípios em sentido estrito, que são, afinal, fundamentos políticos, não necessariamente decide por força de argumentos da esfera propriamente política. (DWORKIN, 2005). O fato de que a jurisdição se justifica por argumentos de princípio, “[...] mesmo que a lei em si tenha sido gerada por uma política [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 130-131), não impacta perceptivelmente os casos fáceis, em que as decisões jurisdicionais “[...] apenas aplicam os termos claros de uma lei de validade inquestionável [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 130-131). Repercute, porém, nos casos difíceis. Aplicada a eles, a conclusão se revela incompatível com as proposições positivistas acerca das situações em que juízes estão autorizados a legislar. Em ocasiões de lacuna ou vagueza, pode parecer legítimo que as decisões judiciais apelem indiferentemente a políticas ou princípios. Mas elas caracteristicamente são, e devem ser, baseadas em princípios. (DWORKIN, 2007b).

5.3 Limites à criatividade jurisdicional

Decorre do princípio democrático representativo que as decisões sobre metas políticas se operem por meio de processos criados “[...] para oferecer uma expressão

exata

dos

diferentes

interesses

que

devem

ser

levados

em

consideração.” (DWORKIN, 2007b, p. 133). Tais procedimentos tipicamente eletivos

161

e legislativos, mencionados na seção 4, não apenas permitem o contato do legislador com os ideais políticos em confronto na esfera partidária como também os estimulam. Para tanto, incluem mecanismos como a renovação periódica dos mandatos, que os torna dependentes do livre-convencimento do eleitorado, e as imunidades parlamentares, que livram os representantes da responsabilidade jurídica por opiniões, palavras e votos proferidos no exercício da função.37 Em posição oposta, os membros do Poder Judiciário detêm garantias de imparcialidade e se submetem à vedação de participação em atividades políticopartidárias. Ademais, as regras do procedimento jurisdicional conformam-no de modo a torná-lo relativamente autônomo em relação às pressões sociais. O objetivo é preservar a neutralidade da jurisdição, não por concebê-la como atividade apolítica, mas para impedir que se torne facciosa. “[...] um juiz que não é pressionado pelas demandas da maioria política, que gostaria de ver seus interesses protegidos pelo direito, encontra-se, portanto, em uma melhor posição para avaliar o argumento [de princípio].” (DWORKIN, 2007b, p. 134). Nesse sentido estrito, pode-se dizer que os juízes gozam de prerrogativas típicas para despolitizar as atividades que exercem. Pois, embora o Direito seja profunda e inteiramente político, e as autoridades no exercício da jurisdição não possam evitar “[...] a política no sentido amplo da teoria política [...]” (DWORKIN, 2005, p. 217), não há autorização normativa para que as decisões jurisdicionais se tornem politicamente pessoais ou partidárias (DWORKIN, 2005). Na realidade, o arbítrio jurisdicional é vedado. E o é por razões de moralidade política. Pelo menos desde Montesquieu (1979), reconhece-se que a legitimidade da autoridade judiciária, encarregada de aplicar a jurisdição, decorre da liberdade política, que garante os indivíduos contra o abuso do poder do governo. O mesmo fundamento justifica, para Beccaria (2005), as restrições ao exercício da decisão judicial. Já sob o Positivismo, a ideia de vinculação ao Direito assume a aparência de um princípio de legalidade estrita, que exige uma prestação jurisdicional neutra, ou mesmo silogística ou mecânica. Apesar dos problemas dessa concepção, permanece verdadeiro que, na Modernidade, atribui-se valor ao fato de as ocasiões de coerção política serem pública e previamente definidas. A segurança que advém dessa estipulação anterior atende à exigência amplamente difundida de 37

No Brasil, o caput do art. 53 da CRF/88 assegura que “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.” (BRASIL, 1988).

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que os indivíduos recebam adequado tratamento do Estado. Os sistemas jurídicos modernos, inclusive o brasileiro, reconhecem a legitimidade dessa expectativa social e atribuem a ela o status de princípio jurídico. O direito individual de ser tratado com o devido respeito pressupõe, simultaneamente, o reconhecimento da igual dignidade de cada homem e a proibição do arbítrio do soberano. Dele decorre a vinculação das instituições estatais aos padrões jurídicos, publicamente reconhecidos. Pois os indivíduos têm a legítima pretensão de ver assegurados seus direitos, inclusive o de se submeterem ao Direito, não à tirania. A aplicação de tal premissa normativa à ideia de que os juízos exigidos pela prestação jurisdicional são políticos e demandam que as autoridades encarregadas da decisão se baseiem, em alguma medida, nas próprias convicções acerca do que é moralmente devido produz uma importante conclusão. Há dois modos de os juízes considerarem as opiniões políticas pessoais ao realizarem a prestação jurisdicional. Um deles é inevitável; o outro, abusivo. (DWORKIN, 2007b). Na subseção 5.2, demonstrou-se que toda decisão jurisdicional é política em sentido amplo. Primeiro, por implicar uma manifestação do Estado. Sentenças, como leis, decretos, acórdãos, despachos e quaisquer outros atos emitidos pelo poder público são, assim, políticos. Decorrem da comunidade política personificada. Segundo, a jurisdição é política por constituir propriamente uma decisão acerca da melhor interpretação dos princípios e regras que compõem a moralidade institucional. Neste sentido, ela é o resultado de uma manifestação judicial política. Tal postura do Poder Judiciário, política em sentido amplo, é inevitável e inerente à atividade. Negá-la implica afastar artificialmente do conceito de jurisdição casos predominantemente reconhecidos como exemplos do exercício de tal poder. A atitude judiciária pode, contudo, converter-se em política no sentido estrito. Nessa situação, torna-se ilegítima, abusiva, pois, diferentemente do que supõe o Positivismo, não há autorização no Direito para que juízes e tribunais atuem como legisladores quando acionados para apreciar lesões ou ameaças a direitos. Adquire fundamental importância detalhar, então, as duas possibilidades de exercício político do poder de julgar: a) o abuso de poder jurisdicional (ativismo judicial): - o julgamento político (em sentido estrito), - o intuicionismo, - o apelo à autoridade;

163

b) a leitura moral, desde que se entenda tratar da moralidade pública, não, da moralidade privada (DWORKIN, 2006). Na hipótese da alínea “a”, os argumentos de princípio mencionados como fundamentos da decisão não remetem a normas pública e juridicamente reconhecidas como aptas a justificar o exercício da jurisdição. No caso, a fundamentação confere a aparência de legitimidade a um ato abusivo, tenha ou não o juiz consciência da antijuridicidade da prática. Pois o ativismo designa uma atitude deliberada de uso de padrões extrajurídicos de julgamento, o que implica o abuso dos poderes jurisdicionais. Ou, nas palavras de Dworkin (2007b, p. 225), “[...] envolve riscos de tirania [...].” É

uma

queixa

comumente

dirigida

aos

juízes

que

eles

“[...]

contrabandeiam convicções políticas sob pretexto de descobrir o que a legislatura realmente pretendia ou teria feito se estivesse consciente do problema. Alguns críticos acham que aí se dá uma atitude deliberada; para outros, ela é involuntária.” (DWORKIN, 2007b, p. 555). Embora mais frequentemente representado como um programa judiciário em prol de uma cruzada moral, o conceito de ativismo não pressupõe a ideia de que os julgadores tenham conhecimento de extrapolar as funções de que dispõem ou vontade de fazê-lo. Ao contrário, não é incomum que os decisores se vejam legitimamente autorizados a apelar a padrões não jurídicos de decisão. Na maioria das vezes, tal atitude busca justificativa na concepção positivista. Pois ela sustenta uma imagem politicamente neutra da jurisdição e não oferece instrumentos de controle da subjetividade judicial, na medida em que nega a possibilidade dos juízos morais. (DWORKIN, 2007b). De qualquer maneira, independentemente da disposição explícita de ir além da competência judicial ao impor ao indivíduo submetido à jurisdição padrões estranhos ao Direito, os juízes praticam ativismo – e, portanto, abusam do poder jurisdicional – quando encobrem com argumentos de princípio o julgamento político deliberado, o intuicionismo ou o apelo à autoridade (DWORKIN, 2007b). No primeiro caso (na primeira subalínea da alínea “a”), a decisão abusiva assume a forma de uma sentença ou acórdão e se submete ao procedimento típico da jurisdição, mas materialmente se assemelha a um ato legislativo. O juiz, para decidir, baseia-se nos argumentos de política discutidos na subseção anterior. Na medida em que o faz, comporta-se indevidamente. Não concretiza princípios em sentido estrito nem garante direitos individuais. Ao contrário, estabelece metas,

164

objetivos políticos que julga benéficos à coletividade como um todo ou à maioria, frequentemente, com base em razões utilitaristas – econômicas, sociais ou políticas. (DWORKIN, 2005). O juspositivismo sustenta que os membros do Judiciário, no exercício do poder

legislativo

tolerado,

têm

liberdade

para

criar

direitos

e

aplicá-los

retroativamente às partes em juízo. Ainda que se admitam divergências acerca de quais situações constituem casos tolerados, superada tal fase inicial da argumentação, a teoria positivista não oferece limites à ação judicial. Diante de uma hipótese em que se reconhece a legislação como admitida, a doutrina tradicional não se preocupa se, quando exercem as funções que detêm, os julgadores recorrem a princípios (em sentido estrito) ou a políticas. Cumpre reconhecer, no entanto, que os riscos à liberdade dos indivíduos – o que, afinal, o princípio positivista da legalidade pretendia resguardar – são maiores quando o sistema político tolera que os juízes legislem, baseados em argumentos de política. Já o intuicionismo (segunda subalínea da alínea “a”) consiste na formulação de “[...] decisões que parecem certas isoladamente, mas que não podem fazer parte de uma teoria abrangente dos princípios e das políticas gerais que seja compatível com outras decisões igualmente consideradas certas.” (DWORKIN, 2007b, p. 137). A atuação estatal intuicionista conflita, portanto, com o princípio que impõe ao Estado o dever de tratar adequadamente os indivíduos. Tal norma veda os julgamentos baseados em padrões não racionais nem universalizáveis, pois supõe que os agentes públicos não possuem autorização para agir irrefletidamente, com base em convicções intuitivas sobre as quais não estejam certos. Nesse sentido, “Os juízes, como qualquer autoridade política, [...] devem tomar somente as decisões políticas que possam justificar no âmbito de uma teoria política que também justifique as outras decisões que eles se propõem a tomar.” (DWORKIN, 2007b, p. 137). Na prática, o Direito exige “[...] coerência na aplicação do princípio que se tomou por base, e não apenas na aplicação da regra específica anunciada em nome desse princípio.” (DWORKIN, 2007b, p. 139). A terceira possibilidade de ativismo (terceira subalínea da alínea “a”) decorre do apelo do julgador à autoridade moral de uma pessoa ou de um grupo que sustentem uma crença ou opinião específica. Por vezes, os membros do Poder Judiciário recorrem a padrões morais de entidades religiosas às quais atribuem precedência sobre a normatividade estatal. Mais frequentes são, contudo, as

165

ocorrências de apelo à preferência política particular do próprio juiz encarregado da decisão. De qualquer maneira, quando se valem de argumentos de autoridade, os decisores não se preocupam em justificar a solidez da crença que defendem ou em incluir como parte da argumentação considerações acerca da substância do ideal a que aderem. Por valorizarem o argumento em si, são incapazes de justificá-lo juridicamente. Trata-se, portanto, de hipóteses em que o julgador ultrapassa a competência jurisdicional que detém. Afinal, a função pública o autoriza a aplicar o Direito, não a substituí-lo pela moralidade privada, individual ou coletiva. (DWORKIN, 2007b). Expostas as principais situações de abuso, o juízo moral autorizado pelo Direito (alínea “b” nesta subseção) consiste na aplicação de padrões de moralidade política publicamente reconhecidos como jurídicos. Dworkin (2007b) sustenta que: [...] em todos os países que têm um sistema jurídico desenvolvido, existe, na comunidade de seus juízes e autoridades judiciárias, alguma regra social ou conjunto de regras que determinam os limites do dever, por parte do juiz, de reconhecer qualquer outra regra ou princípio como direito. (DWORKIN, 2007b, p. 94-95).

Não necessariamente, porém, tais regras são expressas e convencionais. Como o dever de vinculação a tais parâmetros é, ele mesmo, um princípio jurídico, independe da existência de uma convenção explícita que o preveja. Cumpre aos juízes “[...] aplicar alguma regra ou princípio ao determinarem o que é exigido pelo direito, apesar de nenhuma regra social [convencional] indicar esse dever [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 102). O reconhecimento do conteúdo político da interpretação jurídica promovido pelo novo paradigma hermenêutico não modifica essa constatação, embora torne mais complexa a atividade jurisdicional. Qualquer juiz, ao fixar o sentido do Direito, tem de considerar as tradições morais da comunidade, pelo menos como captadas no conjunto do registro institucional que cabe a ele interpretar. Além disso, tem de oferecer uma estrutura formal a todo o conjunto e, então, propor um sentido material ao que é interpretado, “[...] como se este fosse o produto de uma decisão de perseguir um conjunto de temas, visões ou objetivo, uma direção em vez de outra.” (DWORKIN, 2007a, p. 71). Inevitavelmente, as convicções morais do intérprete permearão todas as fases da atividade. (DWORKIN, 2007a). Aqui se revela a insuficiência do formalismo positivista aplicado à interpretação do Direito. Ele se esforça para reduzir a hermenêutica à elaboração de

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conceitos jurídicos abstratos, deduzidos e depois aplicados com base numa operação puramente lógica. Mas, ao fazê-lo, pressupõe que a aplicação das leis pelo magistrado encontra limites inerentes à posição dos juízes (as garantias e vedações judiciais de imparcialidade) e à própria atividade jurisdicional (o dever de fundamentá-la juridicamente). Sobre os limites institucionais decorrentes do status de juiz, já foi dito (v. seção 4) que eles garantem ao julgador uma posição especial, de terceiro imparcial, nos processos jurisdicionais. Se a matéria dos julgamentos é eleitoral, a neutralidade só pode ser assegurada se o decisor se mantiver fora da esfera de disputa políticopartidária. Ainda assim, embora as garantias e vedações institucionais impeçam, tanto quanto possível, a postura judiciária deliberadamente ativa em favor de determinado partido ou facção, elas não previnem contra o julgamento político em sentido estrito. Para tanto, os Estados modernos exigem a motivação jurídica da decisão: “[...] o órgão que toma uma decisão judiciária é obrigado a justificá-la racionalmente de modo muito mais rigoroso do que, habitualmente, qualquer órgão administrativo [...]” (MARRADI, 1998, p. 1161). Mas se sabe que, “Na prática, [...] isto é um dever apenas aparente: é um fato indiscutível para estudiosos e reconhecido por muitos juízes [...] que antes se toma a decisão que resolve a contenda e, depois, se dá a razão [...]” (MARRADI, 1998, p. 1161). Ademais, “[...] dada a variedade das normas e o grande arsenal de técnicas argumentativas [...], não é difícil motivar decisões, mesmo amplamente diversas sobre o mesmo objeto [...]” (MARRADI, 1998, p. 1161). Constatadas a natureza política (em sentido amplo) da jurisdição e a possibilidade de decisões jurisdicionais abusivas (porque políticas em sentido estrito), é forçoso abandonar a perspectiva positivista. Pois, embora reconheça a existência das garantias judiciais de imparcialidade e da motivação jurídica, ela as concebe como decorrentes da neutralidade política do Poder Judiciário e da jurisdição. O Positivismo aprioristicamente atribui ao órgão e à função precípua que ele detém caráter neutro. Por isso, confere aos limites representados pelas prerrogativas judiciais e pela motivação jurídica um papel simbólico-expressivo uma função meramente ilustrativa dessa objetividade pressuposta. Não os vê como mecanismos de controle da criatividade jurisdicional, vez que não a admite. No entanto, sob a perspectiva hermenêutica da normatividade dos princípios, encara-se a neutralidade que os teóricos positivistas atribuem aos juízes

167

e à jurisdição como um princípio, não um fato. Por se tratar de uma norma, uma proposição acerca do que deve ser, não do que é, ela exige dos encarregados do exercício jurisdicional um comportamento específico. Impõe aos magistrados que, ao interpretar o Direito, têm de formular juízos de moralidade política, o dever de “[...] franca demonstração das verdadeiras bases desses juízos, na esperança de que os juízes elaborem argumentos mais sinceros, fundamentados em princípios, que permitam ao público participar da discussão.” (DWORKIN, 2006, p. 57). Ademais, exige que os decisores se esforcem para “[...] impor apenas convicções políticas que acreditam, de boa-fé, poder figurar numa interpretação geral da cultura jurídica e política da comunidade.” (DWORKIN, 2005, p. IX). Isso implica que eles têm de admitir o valor jurídico das regras convencionais explícitas, que não podem ser ignoradas. Um juiz que encare com seriedade a tarefa da qual foi encarregado reconhecerá que a legislação e as decisões dos tribunais são fontes de direitos e deveres a que se submetem os jurisdicionados. Pois os legisladores e as demais autoridades públicas são também intérpretes do Direito, e as decisões institucionais que proferiram traduzem a concepção que têm do que é politicamente exigido em cada situação. Noutras palavras, cumpre ao julgador reconhecer que as leis vigentes, bem como as normas infralegais válidas e a jurisprudência dos tribunais (ou do próprio tribunal ao qual pertence), constituem, elas mesmas, a aplicação de princípios constitucionais. Isso restringe consideravelmente a possibilidade de que não haja no repertório jurídico explícito uma solução adequada e justa para o caso submetido à jurisdição. Como grande parte dos dispositivos legais e constitucionais “[...] não são nem especialmente abstratos nem vazados na linguagem dos princípios morais [...]” (DWORKIN, 2006, p. 11), as ocasiões de apelo direto a princípios são limitadas. Resumem-se, basicamente, a duas hipóteses38. A primeira diz respeito aos “[...]

38

Dworkin (2007b) concebe uma terceira hipótese na qual os membros do Poder Judiciário não aplicarão o conteúdo das convenções explícitas da comunidade: quando as considerarem tão injustas (contrárias aos padrões jurídicos concorrentes) que a aplicação delas constituiria uma violação do Direito como integridade. Trata-se, contudo, de situação excepcional, de considerável impacto. Na versão mais extrema, essa autorização implica a declaração da injustiça do sistema político como um todo (no caso da ordem jurídica nazista, por exemplo). Mais comumente, no interior das democracias legitimamente estabelecidas, a possibilidade aparece na forma moderada do controle de constitucionalidade (difuso ou concentrado). Não se mencionaram tais possibilidades no texto porque nenhuma delas impacta o resultado da pesquisa. Ao julgarem os casos de infidelidade partidária, nem o STF nem o TSE pretenderam declarar a injustiça de todo o Direito brasileiro. Também não realizaram controle de constitucionalidade de atos estatais. Os dispositivos adotados como fundamento das decisões possuem todos hierarquia constitucional.

168

casos em que alguma fonte legislativa deliberadamente incorpora testes morais às regras jurídicas [...]” (DWORKIN, 2007b, p. 524), por fazer referência expressa a conceitos contestados como, no §9º do art. 14 da CRF/88, “moralidade” ou “normalidade e legitimidade das eleições” (BRASIL, 1988). A segunda trata dos casos encarados pelo Positivismo como vagos ou lacunosos, porque “[...] o que é exigido pela lei é controverso, uma vez que nenhuma fonte legislativa tenha dito algo realmente decisivo.” (DWORKIN, 2007b, p. 524). Em ambas as situações, o juiz tem de buscar nos padrões de moralidade política da comunidade soluções possíveis. Mesmo encontrado um princípio em tese adequado, a tarefa interpretativa não se esgota. O intérprete deve propor a ele um sentido compatível com o Direito como um todo, e o faz considerando a linguagem das convenções explícitas vigentes, a história institucional – o conjunto de decisões jurídicas anteriores – e a integridade – a conformidade com os demais valores que justificam as práticas políticas da comunidade. Os dois primeiros requisitos constituem paradigmas interpretativos. Eles estabelecem o que Dworkin (2005) denomina “reivindicações de coerência”. Já o terceiro, a justificativa moral oferecida pelos padrões políticos abstratos, consiste numa reivindicação concorrente, de correção das demais. (DWORKIN, 2006; 2007b).

169

6 NOVAS ACUSAÇÕES, ANTIGAS PERPLEXIDADES

No julgamento da Consulta n. 1.398, que fixou o novo entendimento do TSE acerca da infidelidade partidária, os ministros votantes pareceram adotar uma postura

tipicamente

pós-positivista.

Apesar

de

reconhecerem

a

mudança

jurisprudencial que promoviam, eles negaram que a perda de mandato motivada pela

desfiliação

injustificada

representava

uma

novidade

introduzida

no

ordenamento na Resolução n. 22.526 (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). Ao contrário, o relator, ministro Asfor Rocha, declarou que a decisão decorria de um princípio constitucional, reconhecido naquela ocasião, mas implícito na CRF/88 desde que publicada. O voto que proferiu apelou à ideia de que a aplicação de um padrão da moralidade concorrente por um órgão judicial não ultrapassa os limites do Direito positivo, na medida em que concretiza normas preexistentes: Não se trata, como poderia apressadamente parecer, que a afirmação de pertencer o mandato eletivo proporcional ao Partido Político seja uma criação original ou abstrata da interpretação jurídica, de todo desapegada do quadro normativo positivo [...]. (BRASIL. Tribunal... Consulta..., 2007).

A resposta da Justiça Eleitoral à consulta obteve ampla repercussão midiática e provocou críticas à autuação do Poder Judiciário: “O Legislativo abdicou de sua atividade legisladora. As decisões do TSE são resposta à abdicação do Legislativo, mas isso é preocupante e pode ter efeitos negativos. Essa judicialização da política provoca uma politização do Judiciário, colocando em risco sua imparcialidade.” (INTELECTUAIS..., 2007).

Essa declaração foi feita pelo cientista político Fábio Wanderley Reis e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo de 20/10/07, numa reportagem intitulada Intelectuais criticam fidelidade imposta (INTELECTUAIS..., 2007). Tanto Reis quanto o cientista político Carlos Ranulfo Melo, também ouvido na ocasião, embora avaliassem positivamente a imposição de limites à desfiliação partidária, por julgarem-nos capazes de “[...] aperfeiçoar o sistema político [...]” (INTELECTUAIS..., 2007), questionaram o fato de a decisão ter sido tomada por um órgão judiciário. Como visto na seção 4, a concepção de judicialização da política implícita nas críticas à atuação judicial supõe a ilegitimidade da ação do Estado. Quem invoca o conceito para se referir à atuação dos membros do Judiciário estabelece uma relação entre decisões judiciais com conteúdo político e o exercício

170

desautorizado (e, portanto, ilegítimo) de funções legislativas por juízes e tribunais. Os críticos, ainda que não o afirmem, intuem que: a) a CRF/88 adotou certo modelo de separação de poderes que distribui funções a órgãos de acordo com o estabelecido nas regras constitucionais e legais de competência; b) esse modelo atribuiu aos Poderes Legislativo e Judiciário funções típicas (ao primeiro, legislar e, ao segundo, julgar) e atípicas, instrumentais ou excepcionais; c) em alguns casos, contudo, os juízes e os tribunais abusam do poder que detêm e ilegitimamente – porque não autorizados pelo Direito – praticam atos precípuos do Poder Legislativo. Conforme exposto anteriormente, o Positivismo Jurídico propõe uma concepção dos poderes legislativo e jurisdicional que permite defini-los com relativa facilidade e associá-los a situações em que o exercício de cada um é autorizado ou, contrariamente, ilegítimo. Segundo as versões tradicionais dessa doutrina, a jurisdição consiste na aplicação politicamente neutra do Direito a um caso concreto submetido a juízo. Trata-se de atividade precipuamente atribuída ao conjunto de juízes e tribunais, que são capazes de interpretar a lei sem considerações subjetivas acerca da moral política da comunidade. Limitados pelas garantias de imparcialidade e pelo dever de fundamentar juridicamente as decisões, conseguem extrair da legislação uma resposta impessoal e desinteressada, expressamente contida num dispositivo legal (se se trata do convencionalismo estrito) ou logicamente dedutível dele (como admitido pelo convencionalismo moderado). Mas, se as convenções legislativas são lacunosas, por não haver uma solução explícita (nem a ser revelada pela lógica sistêmica), ou vagas, porque inexiste certeza quanto ao sentido do texto legal, os membros do Poder Judiciário não podem aplicar a jurisdição. Os sistemas jurídicos então os autorizam a apelar à analogia, à equidade ou aos princípios gerais do Direito, sem, contudo, estabelecer limites jurídicos a tais situações. Afinal, para os defensores dessa concepção, esgotado o conteúdo das regras legais, não há Direito a aplicar. Os julgadores têm de criar uma norma para solucionar o caso, e o fazem como legisladores delegados. A partir dessas premissas positivistas, as ocasiões de judicialização da política (ou de abuso de poder judicial) ocorrem usualmente em duas situações. Na primeira, diante de um caso para o qual o Direito (o conjunto das decisões explícitas

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e das relações sistêmicas logicamente estabelecidas entre elas) oferece uma solução, o decisor apela à noção de lacuna ou de vagueza para deixar de aplicar as regras jurídicas disponíveis. Na segunda, ele ignora os limites da jurisdição e a estende a objetos que não lhe são típicos, como é o caso das relações oriundas da esfera político-partidária. Na medida em que o controle de constitucionalidade, a formulação de políticas públicas e a verificação da legitimidade dos agentes políticos são matérias politicamente controversas e historicamente atribuídas ao Poder Legislativo, consideram-se questões tipicamente legislativas. Decidi-las implica abrir mão do papel imparcial de jurisconsulto para imiscuir-se na arena em que se negociam os interesses individuais e coletivos. Um sistema que autoriza os juízes a fazê-lo tolera o exercício judicial legiferante. A tradicional associação positivista feita entre neutralidade política, revelação jurídica e jurisdição, em oposição a controvérsia política, criação jurídica e legislação, impactou consideravelmente o pensamento dos países cujo Direito tem origem romano-germânica. Influenciou o modo como cada Estado distribuiu entre os órgãos públicos os poderes jurídicos de legislar e de julgar. Repercutiu também na comunidade de intérpretes. Condicionou o desenvolvimento hermenêutico e a formação acadêmica dos juristas à aceitação de premissas amplamente difundidas, mas, até meados do século XX, pouco problematizadas. No caso do Brasil, a concepção de neutralidade judiciária e jurisdicional proposta pelo Positivismo infundiu a crença de que a criação de juízos especializados em matéria eleitoral solucionaria o problema da crescente falta de legitimidade da democracia representativa que marcou a Primeira República. A transição do sistema de controle dos poderes para o modelo judicial de verificação das eleições respondeu ao anseio, crescente desde o início do século XX, de moralização do cenário democrático-representativo. Limitada pela perspectiva positivista, a expectativa moralizante em torno da atuação judiciária não era, contudo – pelo menos, não reconhecidamente –, a de concretização substantiva da justiça, de maneira a efetivar a igualdade de chances de todos os agrupamentos políticos tornarem-se maioria. Visava-se, antes, à garantia formal de que os procedimentos fixados legalmente seriam observados na condução do processo eleitoral até a diplomação dos eleitos.

172

Entretanto, com o reconhecimento da normatividade dos princípios, a verificação da legitimidade das eleições adquiriu uma dimensão também material, pois tais normas consistem em padrões morais substantivos que decorrem da melhor interpretação constitucional. Dessa maneira, embora os juízes e Tribunais Eleitorais sejam uma presença constante no cenário político brasileiro desde a década de 1930 – com exceção do período que vai de 1937 a 1945, quando se interrompeu a competição partidária –, somente após a promulgação da CRF/88, o papel desse ramo judiciário adquiriu destaque (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008). Desde sua criação, em 1932, pelo Decreto n. 21.076, a Justiça Eleitoral foi autorizada a exercer o controle da legitimidade das eleições. Para tanto, faz uso de funções judiciais típicas e atípicas. Já na Constituição de 1934, atribuíram-se ao órgão competências de diferentes espécies, adjudicativas e administrativas, normativas ou meramente executivas (BRASIL, 1934). O Código Eleitoral de 1965, ainda vigente, aumentou consideravelmente o rol de atribuições dos Tribunais Eleitorais (BRASIL, 1965). A CRF/88 recepcionou tal norma, conferindo a ela status de lei complementar, e estimulou a ampliação das competências da instituição por via legislativa. Eis que em 1990 se promulgou a Lei das Inexigibilidades (BRASIL. Lei Complementar..., 1990), em 1995 a LOPP (Brasil, 1995) e em 1997 a Lei das Eleições (Brasil. Lei n. 9.504, 1997). Mas a diversidade da natureza das atribuições da instituição por si só explica pouco da perplexidade que a atuação dessa Justiça especializada tem causado. Além da adjudicação do contencioso eleitoral, às cortes eleitorais competem a condução do próprio processo eletivo, a regulamentação das leis que o regem, e a formulação de respostas a consultas sobre a interpretação de tais normas. Nenhuma dessas funções, porém, foi-lhes conferida recentemente. Todas elas já se encontravam previstas no CE vigente desde a publicação. Datam, portanto, pelo menos da década de 1960. Em verdade, a matéria predominantemente afetada pela ampliação das atribuições institucionais e estimulada pela desconstitucionalização das regras de competência foi a sujeita à jurisdição. A partir de 1988, a legislação introduziu essencialmente novas ações e procedimentos jurisdicionais e novas hipóteses de perda de mandato em decorrência da inelegibilidade-sanção (COSTA, 2002). Ainda assim, é generalizada a percepção de que a atuação de juízes e Tribunais Eleitorais, em especial, a do TSE, tem impacto crescente no cenário político nacional desde a

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promulgação da CRF/88. E tal imagem não constitui uma conclusão apressada e pouco refletida, propagada pela opinião pública não especializada. Cientistas políticos como Ferraz Júnior (V., 2008) e Sadek (1995) também identificam a ocorrência do fenômeno. Sem dúvida, o considerável aumento das competências jurisdicionais contribuiu para a disseminação da ideia de uma instituição mais ativa. Uma consequência imediata da ampliação das possibilidades adjudicativas foi a expansão quantitativa das questões submetidas a juízo. Uma comprovação da crescente importância de nosso modelo de governança sobre o jogo competitivo está na evolução dos processos que chegaram até o TSE entre 1989 e 2006. [...] Ao longo da primeira metade dos anos de 1990, os processos distribuídos e julgados não ultrapassavam as centenas. A partir da segunda metade dos anos de 1990, esses processos passaram a ser milhares. E, pelo que a tendência aponta, continuarão a crescer. Somente em 2006, ano de eleições para presidente, governadores, senadores, deputados federais e estaduais, foram cerca de 7.000 processos distribuídos. (FERRAZ JÚNIOR, V., p. 44-45).

Contudo, não parece possível compreender o novo papel exercido pela Justiça Eleitoral sem atentar para a mudança qualitativa de atitude que os membros da instituição declaram ter adotado desde a década de 1990. Ela está relacionada às novas concepções do Direito e do papel do intérprete, disseminadas no Ocidente a partir de meados do século XX. Não se trata, portanto, de um fenômeno exclusivamente brasileiro. Como John Ferejohn (2002) observa acerca do contexto norte-americano, [...] a regulação judicial da conduta da vida política – tem claramente aumentado com o passar de poucas décadas. As cortes têm desempenhado um papel incrivelmente ativo – até mesmo agressivo – em assuntos como a regulação eleitoral, o financiamento de campanha, a organização de partidos e grupos de interesse e a manutenção do sistema eleitoral. (FEREJOHN, 2002, p. 43, tradução nossa).

A

mudança

ocorrida

no

Brasil,

porém,

guarda

peculiaridades.

Concomitantemente ao processo político que deu origem à CRF/88, ganham expressão no País doutrinas que declaram a normatividade dos princípios. Para Bonavides (2008, p. 294-295), entre os juristas brasileiros que o fizeram, “[...] ocupa, sem dúvida, lugar de destaque o Professor Eros Roberto Grau [...].” Na obra A Ordem Econômica na Constituição de 1988, publicada em 1990, Grau (2007) afirma que, diante de dispositivos como o inciso I do art. 5º da CRF/88, o não reconhecimento de que princípios são normas conduziria à conclusão absurda de

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que enunciados como “[...] homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição [...]” (BRASIL, 1988) não têm valor jurídico algum. Uma vez preparado o ambiente intelectual propício à aceitação das teses da nova hermenêutica, disseminou-se entre as instituições jurídicas a ideia de que prescrições diversas das regras podem ser também normas, aptas, pois, a fornecer respostas a demandas concretas judicializadas. O impacto da concepção normativa dos princípios nas decisões jurisdicionais foi significativo. Ela não só ampliou numericamente os padrões de julgamento a que podem apelar os decisores investidos na função jurisdicional, como também ofereceu novas interpretações aos dispositivos convencionalmente aceitos e critérios para avaliá-los. Como expôs o ministro Carlos Britto no julgamento do MS n. 26.602/07 pelo STF: O pós-positivismo, mais do que afirmar o caráter normativo dos princípios, atesta que eles são supernormas, as normas mais importantes do direito positivo, notadamente da Constituição, de modo que os princípios, hoje, enquanto normas de proa, de primeira grandeza, ocupam uma posição de centralidade, a partir da Constituição, vale dizer, os princípios que, na nossa Constituição, se dotam dessas virtudes da onivalência, da auto-referência e da auto-aplicabilidade em muitas situações, são aptos a resolver casos concretos. É possível extrair deles as normas de que os operadores do Direito precisam para solucionar controvérsias. (BRASIL. Supremo..., 2007).

Cumpre reconhecer, no entanto, que a disseminação do conceito de normatividade dos princípios ocorreu num ambiente em que as concepções positivistas

tradicionais

se

encontram

profundamente

enraizadas

tanto

no

pensamento jurídico como na própria organização política. A história institucional da Justiça Eleitoral brasileira ilustra esse contexto. A criação dos órgãos judiciais eleitorais foi, ela mesma, uma resposta positivista às exigências sociais de um terceiro que resolvesse imparcialmente os impasses entre os competidores da arena político-partidária. A imagem intrinsecamente neutra da instituição encarregada da prestação jurisdicional fundamentou a atribuição, a tal ramo judiciário, da função de controle das eleições. Ainda hoje recorrem a tal aparência de neutralidade tanto os críticos das decisões dos juízos eleitorais, que os acusam de judicializar a política, quanto os defensores, que frequentemente apelam à suposta imparcialidade inerente ao status de juiz para justificá-las. Desse modo, embora elementos das teorias pós-positivistas, como o conceito de princípios constitucionais, tenham-se tornado familiares à retórica jurídica contemporânea, dificilmente se poderia afirmar que o paradigma anterior,

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positivista, foi superado no Brasil. A adoção do novo modelo hermenêutico exige mais que o reconhecimento de que os princípios são normas, tanto quanto o são as regras. A despeito da percepção majoritária dos membros do Poder Judiciário brasileiro, a ruptura paradigmática com o juspositivismo não torna os juízes livres para impor aos jurisdicionados quaisquer decisões. Ao contrário, obriga os decisores a formular argumentos claros e refletivos acerca de que solução para o caso é exigida pela moralidade pública. Se tal não ocorre, o apelo aos princípios se revela uma farsa, uma ficção que encobre o fato de que, autorizado a utilizar qualquer padrão, o julgador não usa padrão algum. Na prática, a aplicação de princípios que se realiza dessa maneira em nada difere das hipóteses em que o Positivismo autoriza a legislação judicial. O voto do ministro Carlos Britto no MS citado acima é, também nesse aspecto, ilustrativo. Britto reconhece que, “Nesse modelo de ciência jurídica ou ciência do Direito que é o pós-positivismo, os princípios são normas [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007) e, como tal, dotados das qualidades “[...] da onivalência, da autoreferência e da auto-aplicabilidade em muitas situações [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007). Admite também que “É possível extrair deles as normas de que os operadores do Direito precisam para solucionar controvérsias.” (BRASIL. Supremo..., 2007). Todavia, se, como os teóricos da nova hermenêutica, o ministro enxerga nos princípios aptidão para, ”em muitas situações”, resolver casos concretos, diferentemente daqueles doutrinadores, ele não define quais seriam essas circunstâncias nem como se pode extrair dos padrões concorrentes uma resposta adequada e justa para solucionar as demandas. (BRASIL. Supremo..., 2007).

6.1 Concepções de judicialização da política

Conforme exposto na seção 4, a crítica a determinada atuação estatal mediante o apelo à ilegitimidade da interferência de um Poder em outro pode ter dois sentidos. No primeiro, presume-se que o modo como as competências estão distribuídas não é o melhor (não é o mais justo, útil ou eficiente, por exemplo), e se contestam as decisões políticas anteriores, do legislador constituinte ou ordinário em sentido amplo. No segundo, parte-se da distribuição existente – sem problematizar a

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prévia opção legislativa – para afirmar que houve abuso num caso específico. Embora se reconheça a pertinência das duas definições, a segunda, que parte de uma perspectiva mais específica, é a comumente invocada por aqueles que criticam as decisões da Justiça Eleitoral brasileira. Antes de questionar a própria existência da instituição ou a soma das diversas competências a ela atribuídas, o motivo imediato de perplexidade é o abuso que se supõe cometido por juízes e tribunais no exercício das funções de controle das eleições. Acusam-se os magistrados de legislar em casos não autorizados. Independentemente da existência de uma prescrição explícita impeditiva, considera-se ilegítimo o exercício da legislação judicial nas hipóteses: que não se subsumem às situações de vagueza e lacuna ou que envolvem questões políticas, as quais, pela própria natureza, reservam-se ao Legislativo, por não poderem ser objeto da jurisdição, aplicável somente a fatos politicamente incontroversos. De qualquer maneira, em um ou outro caso de abuso, os críticos da atuação judiciária partem de um único conceito de judicialização da política. Eles a concebem como a atividade judicial (jurisdicional ou não) ilegítima (porque juridicamente não autorizada) que usurpa funções legislativas. Tais são os elementos essenciais de tal definição: a) atividade judicial; b) ilegitimidade; c) função legislativa; e d) usurpação. Algumas

das

quatro

partes

que

integram

o

conceito

são

reconhecidamente controversas. Não é o caso da atividade judicial (alínea “a”). Como concluído na seção 3, a expressão remete ao critério orgânico de distribuição de poderes. Nomeia todos os atos praticados pelos órgãos judiciários no exercício das funções típicas ou atípicas a eles conferidas. Decorre daí ser errônea a inferência de que toda decisão judicial seja jurisdicional. Permanecem em aberto, contudo, as definições de ilegitimidade (alínea “b”), função legislativa (alínea “c”) e usurpação (alínea d). O sentido que se atribui a esses termos mudará consideravelmente, quer se parta da perspectiva positivista tradicional, quer do pósPositivismo. O Positivismo concebe a legitimidade como sinônimo de legalidade (v. seção 4). Logo, serão ilegítimas as atuações judiciais não autorizadas pelas leis e

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pelos dispositivos da CRF/88, que constituem, ambos, regras convencionais explícitas. Em se tratando do convencionalismo moderado, admite-se decorrer a autorização também das relações lógicas sistêmicas que se estabelecem entre eles. Nos dois casos, se as regras constitucionais ou legais retiram da competência de deliberação judiciária (jurisdicional, legislativa ou administrativa) certas matérias tradicionalmente consideradas políticas, haverá abuso de poder – e judicialização da política – se os juízes ignorarem tal restrição e se manifestarem sobre esses fatos. Dada a identidade que a doutrina positivista estabelece entre a legitimidade de uma manifestação do Estado e a conformidade desse ato com o Direito – o conjunto de regras explícitas vigentes –, o Positivismo não concebe uma crítica externa ao sistema jurídico. Não é coincidência, portanto, que as acusações de abuso da Justiça Eleitoral se dirijam a casos específicos, sem problematizar o cenário político subjacente. Diante do caráter fático atribuído às normas jurídicas, as opções políticas anteriores (legislativas e constituintes), que distribuem os poderes entre os órgãos estatais, não são questionadas. A perplexidade se volta para o exercício irregular das competências instituídas pelas regras jurídicas. Na medida em que o exercício não autorizado de funções legislativas pelo Poder Judiciário constitui uso ilegítimo de prerrogativas públicas, a conclusão (a ilegitimidade) fica a depender da precisa definição do que seja a função legislativa (alínea c, acima). Só haverá invasão de competência se se definirem previamente os limites da esfera de atuação de cada órgão. Para tanto, a utilização de testes formalmente estabelecidos é indispensável, mas não suficiente. O uso concorrente de critérios materiais se justifica porque subjaz à tradicional doutrina de separação de poderes uma concepção de política frequentemente não admitida (v. subseção 2.3, seção 4 e início da seção 5). Trata-se do pressuposto positivista amplamente difundido, mas inquestionado, de que é possível diferenciar a função legislativa da jurisdicional, com relativa facilidade, porque a primeira é política, e a segunda não. A disseminada crença na nítida distinção entre legislação e jurisdição parte, sucintamente, de duas premissas do Positivismo: a de que a função legislativa consiste na criação jurídica e, como tem por objeto questões políticas, é controversa e politicamente influenciada; e a de que a jurisdição se restringe à revelação do Direito criado pela legislação, e é objetiva e neutra, uma vez que seu objeto foi previamente despolitizado. Mesmo um positivista mais sofisticado, como Kelsen (2009), que concebe a legislação como simultânea aplicação da Constituição e

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criação de normas gerais e abstratas, e a jurisdição, como simultânea aplicação da legislação e criação de normas específicas e relativamente concretas, repete as premissas. Pois, ainda que veja criação jurídica no exercício jurisdicional, ele a considera só formalmente inovadora. A norma de menor abrangência e hierarquia que o juiz cria é materialmente deduzida da lei. Ela não introduz conteúdo jurídico novo. Tal possibilidade se mantém reservada à via legislativa. Todavia, no que se refere à tarefa de verificação das eleições, sem muitas dificuldades, identifica-se o caráter politicamente dependente do objeto dela. A definição e a aplicação das regras da disputa partidária constituem matéria originalmente confiada ao Poder Legislativo, naturalmente identificado como órgão de deliberações políticas. Para a maioria dos autores, ainda que tais prerrogativas de controle da conduta dos agentes públicos sejam judicializadas, atribuídas ao Judiciário, elas permanecem materialmente políticas. A regulação direta da atividade política é uma forma de judicialização especialmente importante e cada vez mais comum. [...] Historicamente, os tribunais têm-se envolvido fortemente na regulação da atividade política, [...] com o fim de traçar e policiar os limites entre práticas políticas aceitáveis e corruptas. Durante o curso do último meio século, juízes e promotores declararam a ilicitude de veneráveis práticas políticas que defensavelmente estão na base dos partidos políticos desde os primeiros anos da república [norte-americana]. Esses esforços são controversos e certamente nem sempre impactaram os partidos políticos ou as autoridades públicas da mesma maneira. (FEREJOHN, 2002, p. 61, tradução nossa).

Isso não necessariamente implica ser o controle judiciário da política abusivo. As regras jurídicas convencionadas podem atribuir competências substancialmente diversas a órgãos judiciais. Há que indagar, então, se as mesmas normas positivas que tornam o controle de constitucionalidade, a adoção de políticas públicas e a verificação dos agentes políticos atividades formalmente judiciárias também não os poderia materialmente submeter à jurisdição. Afinal, se, como afirma um positivista estrito, não existem padrões jurídicos que não sejam as decisões normativas explícitas, não há, no Direito, limites ao modo como o legislador constitucional ou ordinário pode dispor sobre a organização política. Logo, nada impede que, num determinado Estado, as convenções tornem tais conteúdos políticos objeto da prestação jurisdicional. Os críticos que partem da perspectiva positivista para acusar juízes e Tribunais Eleitorais de judicializar a política se veem então num impasse. Argumentam que, nas três situações, o julgador decide sobre questões que, pela natureza politicamente controversa, não poderiam ser objeto da jurisdição. Mas tal

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alegação – de que, ao contrário da lei, a decisão jurisdicional não pode ter por objeto matérias político-partidárias – contraria uma afirmação essencial do Positivismo: a de que qualquer conteúdo pode ser objeto do Direito, que o pode regular de maneiras diversas e indiferentes. Noutras palavras, a vedação apriorística de que o Poder Judiciário decida questões controversas nega a evidência de que um ordenamento jurídico específico pode autorizá-lo a fazê-lo. Ou, no caso investigado por esta pesquisa, a premissa contraria o fato de que, por força da CRF/88 e da legislação aplicável, submete-se à jurisdição eleitoral brasileira a verificação da moralidade da conduta dos agentes em disputa na arena partidária. Nesses termos, a existência de um elemento intrínseco impeditivo que veda sejam as questões tipicamente políticas objeto da jurisdição implicaria a negação: de que juízes e Tribunais Eleitorais julgam matérias tipicamente políticas ou de que normas conferem legitimidade aos julgamentos dos juízos eleitorais, porque os autorizam. Qualquer uma dessas conclusões se revelaria absurda. O Positivismo se mostra, pois, o arauto de uma concepção contraditória acerca dos poderes jurisdicional e legislativo – e da distinção existente entre eles. Ao supor ser o primeiro neutro e o segundo controverso, a doutrina positivista apela a uma noção apriorística de ambos, não conciliável com a tese de que não há padrões jurídicos necessários, decorrentes de algo como a natureza das coisas. Constitui opção deliberada dos constituintes serem eles conformados assim. Fossem outras as convenções jurídicas vigentes, eles seriam dotados de características diversas. A despeito disso, como reconhece a Ciência Política, todas as sociedades que possuem um sistema judicial associam a neutralidade ao que comumente denominam “papel judiciário” (MARRADI, 1998). Se não se trata de uma relação ontológica, decorrente da natureza da jurisdição e do cargo de juiz, há que esclarecer por que a ideia é tão amplamente difundida. Para autores como Marradi (1998), a resposta se encontra nas expectativas, nos valores e nas atitudes coletivamente demonstrados em relação aos tribunais. Para tais posições esperadas, confluem: [...] a convicção dos juízes de terem de decidir as contendas de acordo com as normas e/ou as decisões precedentes, e não segundo as opiniões pessoais sobre o que seria justo ou oportuno no caso; o fato de que efetivamente muitos juízes decidem grande parte dos litígios deste modo, que quase todos crêem fazê-lo de algum modo e que praticamente todos se comportem como se o fizessem; a pública expectativa – de que os juízes estão conscientes – de que as pendências sejam decididas deste modo, baseada sobre a convicção de que devem sê-lo. (MARRADI, 1998, p. 1161).

180

As expectativas em relação ao papel das estruturas, procedimentos e funções de “[...] adjudicação das controvérsias pela aplicação concreta das normas reconhecidas pela sociedade [...]” (MARRADI, 1998, p. 1161) são consideradas na organização política dos Estados. Pois é generalizada a percepção de que o Judiciário “[...] pode cumprir sua função com tanto maior serenidade, imparcialidade e adesão às normas quanto mais estiver tradicionalmente separado do resto do sistema político [...]” (MARRADI, 1998, p. 1162). De um lado, a autonomia judicial se traduz nas garantias da instituição e de seus membros, “[...] necessárias para que o sistema possa funcionar corretamente segundo os ditames da ‘função judiciária’, sem instruções ou coações de fora nem perspectivas de sanções (e/ou recompensas) devidas ao conteúdo das suas decisões [...]” (MARRADI, 1998, p. 1162). De outro, demanda um procedimento específico, o qual “[...] requer que o sistema judiciário não tenha meios de intervenção espontânea e direta na execução de tais decisões (e, em geral, na concretização de suas orientações interpretativas) e tenha de depender da colaboração de outros setores do sistema político.” (MARRADI, 1998, p. 1162).39 Apesar da pertinência dessas conclusões da Ciência Política, uma abordagem jurídica da questão deve ser capaz de considerá-la a partir da perspectiva normativa. Se existe uma expectativa pública quanto ao exercício politicamente neutro da jurisdição, é um erro considerá-la apenas um fenômeno ôntico, não relacionado ao Direito. Trata-se, antes, de uma ocorrência deontológica, do resultado da incidência de um enunciado acerca do que deve ser, não do que é. A neutralidade não deveria, pois, ser atribuída à prestação jurisdicional, mas dela exigida, porque constitui uma norma, não um fato social. A constatação do caráter normativo da neutralidade traz, no entanto, mais embaraços à doutrina positivista. Na maioria dos Estados, não existe uma regra explícita que imponha o dever de ser neutro às autoridades encarregadas de julgar com fundamento no Direito. Apesar disso, a vedação do uso político da jurisdição é amplamente aceita e impactou o desenvolvimento das instituições públicas. As evidências tornam forçoso o reconhecimento de que se está diante de um padrão

39

As condições formais de legitimidade da atuação jurisdicional, as garantias judiciais e o procedimento típico da jurisdição foram expostos na seção 4.

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jurídico não explícito, nem convencionado. Trata-se, portanto, de um princípio em sentido estrito (DWORKIN, 2007b). Admitir os princípios como normas jurídicas – e, portanto, como elementos constitutivos do conceito mais amplo de Direito – não implica o abandono de todas as conclusões positivistas acerca do significado da judicialização da política. Mas exige a redefinição das ocasiões em que ela ocorre. Em especial, torna necessário reformular a concepção de cada um dos dois elementos controversos do conceito expostos nesta subseção, legitimidade e função legislativa. Em relação ao primeiro, a perspectiva adotada pelos doutrinadores do que se convencionou chamar de “pós-Positivismo” não endossa a identidade que o Positivismo estrito estabelece entre legitimidade e legalidade. Os teóricos da nova hermenêutica, analogamente às doutrinas positivistas mais rigorosas, não negam que a legalidade exprime basicamente “[...] a acomodação do poder que se exerce ao direito que o regula.” (BONAVIDES, 2006, p. 120). Contudo, em oposição a elas, atribuem à legitimidade um sentido não coincidente com o de adequação legislativa. Nisso, assemelham-se aos teóricos do convencionalismo moderado. Um juspositivismo menos extremo pode aceitar as críticas ao próprio sistema de legalidade de um Estado. É comum entre os doutrinadores que se admita (ou mesmo estimule) a comparação da organização política brasileira com outras, geográfica ou historicamente distintas. Nessa condição, trata-se a legitimidade como algo diverso da legalidade. Mais especificamente, como “[...] a legalidade acrescida de sua valoração.” (BONAVIDES, 2006, p. 121). O pós-Positivismo, porém, não se esgota em tais métodos. Acresce a eles a possibilidade de julgamento com base em padrões publicamente reconhecidos, que integram o sistema jurídico sem depender de previsão em lei ou outra convenção. O reconhecimento do caráter normativo dos princípios introduz elementos da moralidade política no Direito (DWORKIN, 2007b). Logo, não é coerente com a ideia kelseniana de legalidade, que remete à totalidade das regras vigentes

em

dado

momento

num

ordenamento

jurídico,

hierarquicamente

escalonadas, dos regulamentos administrativos até a Constituição (KELSEN, 2009). Sob a normatividade dos princípios, torna-se forçoso reconsiderar as relações conceituais entre legitimidade e legalidade. Apenas em sentido mais estrito, este termo pode equivaler ao conjunto de códigos legais do Estado, às regras postas mediante o procedimento formal estabelecido para tanto. Pois, no sentido amplo,

182

mais usual, ele é tomado como sinônimo da integridade do Direito, conceito que abrange tanto princípios quanto regras (DWORKIN, 2007a). Nesta segunda concepção, a legalidade coincide com a definição de legitimidade proposta pelo pósPositivismo que parte da perspectiva interior ao sistema.40 O alargamento do conceito de Direito aumenta quantitativamente o conjunto de padrões a serem considerados para determinar se o exercício da jurisdição ou da legislação é, em cada caso, autorizado – e, portanto, legítimo. Mas também o amplia qualitativamente. Os princípios jurídicos introduzem parâmetros materiais de conduta a serem observados pelos órgãos do Estado. A legitimidade, a autorização para o exercício da competência estatal, passa a se referir também à substância do ato, nem sempre regulada pela legalidade em sentido estrito – que, em geral, esgota-se em regras de competências, limitadas exclusivamente a autorizar o exercício formal das funções. Faz-se necessária, então, uma teoria que, sem descartar as exigências formais, considere o aspecto substantivo da legitimidade. A tarefa está intrinsecamente relacionada à proposição de concepções adequadas dos poderes do Estado. Não por acaso, na seção 3, expuseram-se as descrições dominantes das três espécies de atuação estatal, baseadas no critério objetivo formal de inspiração kelseniana. Naquela ocasião, constatara-se o impasse da classificação que coloca os atos jurisdicionais necessariamente no nível mais baixo do ordenamento jurídico. Contudo, não é exclusividade do Positivismo a constatação de que cada sistema organiza a gradação do próprio repertório jurídico. Ainda que se adote uma perspectiva pós-positivista, e, com o reconhecimento da normatividade dos princípios, abandone-se a premissa da identidade do Direito a um conjunto escalonado de regras, a ideia de ordenação vertical entre as normas que compõem o sistema tem que ser mantida. Sem ela, não se pode compreender o papel do princípio da legalidade para o Direito Administrativo, ou a relação entre Constituição, lei e regulamento. Como percebe Dworkin (2007b, p. 182), “A ordenação vertical é fornecida por diferentes estratos de autoridade, isto é, estratos nos quais as decisões oficiais podem ser consideradas como controles das decisões tomadas em níveis inferiores.”

40

Sobre as perspectivas interior e exterior ao sistema, ver seção 4.

183

O problema reside na assertiva de que a decisão judicial constitui uma norma específica, de menor gradação no escalonamento normativo (KELSEN, 2009). Ela não se sustenta diante da evidência de que decisões tipicamente jurisdicionais também criam normas gerais (v. subseção 5.1). Só faz sentido diferenciar leis e sentenças com base em posições fixas de generalidade e hierarquia se se concebe o ordenamento jurídico como um escalonamento de regras convencionais explícitas. Reconhecer que a manifestação jurisdicional pode fundamentar-se num princípio constitucional, independentemente da existência de uma lei que o regule, implica admitir que essa decisão cria, além da regra específica e de menor escala – a que faz referência Kelsen (2009) –, uma regra mais geral e de maior hierarquia que supõe decorrer daquela norma da Constituição. A mesma premissa, aplicada à função administrativa resolutiva, permite constatar que, se o objeto da regulamentação é a CRF/88, não uma lei, a norma formalmente editada no exercício da competência executiva adquire status materialmente legislativo. Nesse caso, contudo, o regulamento é inconstitucional. Pois, se a jurisdição se subordina ao princípio implícito da neutralidade, cumpre às autoridades investidas na função administrativa observar o princípio da legalidade – este, porém, explícito no caput do art. 37 da CRF/88: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]” (BRASIL, 1988).

6.2 O princípio da neutralidade e o abuso do poder jurisdicional

Do reconhecimento de que a neutralidade constitui um princípio que incide sobre as autoridades no exercício da jurisdição – como a legalidade, sobre a administração, e a representação democrática, sobre a legislação –, extraem-se duas conclusões: a) as características materiais e formais atribuídas aos poderes não são ontologicamente inerentes a eles, mas constituem o resultado de prescrições normativas, de exigências acerca de como devem ser formal e materialmente exercidos; e

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b) a diferença entre as funções legislativa, administrativa e jurisdicional tem de ser estabelecida normativamente, a partir da identificação dos princípios aos quais cada uma delas se submete. As tentativas de diferenciar os poderes como fatos sociais com características empíricas próprias tenderão, portanto, ao fracasso. A partir dessa constatação, pode-se enfrentar o pressuposto amplamente difundido de que é possível distinguir a função legislativa da jurisdicional com relativa facilidade, porque a primeira é política e a segunda não. Subjaz à tradicional doutrina da separação dos poderes a concepção de que as atividades políticas são necessariamente facciosas, partidariamente influenciadas. Desse ponto de vista, a arena política é o espaço de negociação de interesses egoístas (DWORKIN, 2005). Como, sob a mesma perspectiva, o exercício jurisdicional é empiricamente neutro, conclui-se que a atuação legislativa é política, e a jurisdicional não. Todavia, como demonstrado na seção 5, não há como negar o caráter político da decisão jurisdicional. Toda atividade estatal é a expressão da comunidade política personificada e, nesse sentido, tem natureza política. Ademais, a prestação jurisdicional não consiste na aplicação mecânica de uma regra expressa da qual se extrai logicamente um sentido objetivo incontroverso. Julgar um caso implica declarar ou negar a conformidade de uma conduta com o Direito considerado integralmente. Para dizer o que é juridicamente exigido em certa situação, o julgador se vê forçado a examinar não apenas as convenções coletivas explícitas, mas também padrões concorrentes: os princípios. O apelo a estas normas ocorre necessariamente mediante juízos acerca do que a moralidade política exige dos membros da comunidade. (DWORKIN, 2007a). Logo, a jurisdição é política nesse sentido amplo, não admitido pelo Positivismo. Isso não quer dizer, porém, que deva ser política no sentido mais estrito, como se autoriza que a legislação seja. Ao descrever a judicialização da política como a atuação judicial ilegítima que usurpa funções legislativas, reconhecese haver uma implicação necessária entre o exercício do poder legislativo e as atividades desenvolvidas na esfera política. Tal inferência só é verdadeira, se, por política, pretende-se designar apenas a arena de disputa partidária. Por oposição, supõe-se acertadamente que os membros do Poder Judiciário têm o dever de não ser facciosos, de só agir mediante provocação e de justificar a decisão jurisdicional com base em normas jurídicas – ou, nas palavras de Dworkin (2007b), baseá-la em

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argumentos de princípio. Pois, diferentemente dos legisladores, que se submetem ao princípio democrático representativo, os juízes se sujeitam à neutralidade. As autoridades no exercício jurisdicional têm o dever jurídico de ser neutras ao decidir. Disso não decorre, como defende o Positivismo, que os juízes estejam impedidos de aplicar a jurisdição a casos para os quais considerem a resposta do Direito vaga ou lacunosa. Ao contrário, o princípio da neutralidade se realiza não pela recusa de decidir casos politicamente controversos, mas pelo sincero esforço de aplicar padrões públicos de julgamento a essas hipóteses. Afinal, ao prever que “[...] a lei não excluirá do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito [...]”, o inciso XXXV do art. 5º da CRF/88 instituiu a universalidade do acesso à jurisdição (BRASIL, 1988). O legislador não pode impedir que um indivíduo provoque o julgamento público, e tampouco os juízes podem se recusar a julgar. Combinada com o princípio da neutralidade, a garantia da prestação jurisdicional confere aos jurisdicionados o direito de se submeterem às normas jurídicas, publicamente reconhecidas, e impõe aos julgadores o dever de basearemse nelas ao decidir. Ainda assim, como esclarecido na seção 5, a decisão jurisdicional não é objetiva, apolítica ou isenta de considerações pessoais acerca dos valores morais publicamente reconhecidos. Por isso, a motivação jurídica constitui um importante freio ao decisionismo e à criatividade judicial – em especial, se considerado o novo paradigma hermenêutico, que reconhece abertamente a força normativa dos princípios constitucionais. Ao expor sentenças e acórdãos à crítica e à revisão, a motivação limita as chances de que eles se politizem de modo deliberado (DWORKIN, 2007b), o que permitiria aos julgadores exercer o papel de atores, e não de árbitros, da competição partidária. Além de impor o uso de padrões públicos, não privados de julgamento, o dever de fundamentar juridicamente torna efetiva a importante restrição institucional de que, ao decidir, os juízes apelem somente a direitos e deveres previstos em normas. Inicialmente, não interessa se por normas se entendem apenas regras convencionais, como quer o Positivismo, ou regras e princípios, segundo a nova hermenêutica. Importa somente que seja vedado o apelo a argumentos de política. Frequentemente ignorada, a distinção entre normas jurídicas e metas políticas é aqui essencial. Enquanto as segundas justificam decisões políticas que fomentam ou protegem objetivos coletivos da comunidade como um todo, as

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primeiras servem de base a julgamentos que garantem direitos de indivíduos ou grupos. Não subsiste, porém, nenhuma diferença entre os institutos que seja intrínseca ou emane da natureza deles. Um argumento será político se não jurídico, e vice-versa, de modo que a matéria hoje objeto de deliberação partidária pode vir a ser normatizada e fundamentar a decisão jurisdicional. (DWORKIN, 2007b). Do Poder Judiciário não se espera (ou não se deveria esperar) que relegue a outro órgão o exame de questões que tenham impacto em direitos e deveres – ainda que se trate de matérias politicamente controversas ou típicas da esfera político-partidária. Cobra-se apenas que, ao decidi-las, não o faça com base em argumentos de política. O reconhecimento público desse limite adicional à jurisdição e o consenso acerca dos limites tradicionalmente incidentes sobre o cargo de juiz e a atividade jurisdicional contribuem para restringir as possibilidades de ativismo, de intervenção judicial deliberadamente partidária na esfera política. Mas a eficácia desses mecanismos é restrita, e ainda menor se aplicados a partir de uma perspectiva formal-positivista da jurisdição. Pois eles não retiram o caráter político das sentenças e acórdãos, que necessariamente refletem as visões morais e políticas mais amplas do julgador. Ao contrário, pressupõem-nas. A concepção positivista, não. Ela as nega e, ao fazê-lo, torna os limites imprestáveis para coibir os abusos onde eles realmente acontecem. O alerta de Schmitt (2007a, p. 224-225) acerca dos riscos do controle judicial de constitucionalidade serve para a verificação judiciária das eleições, dado o caráter político não reconhecido de ambos: “[...] é por demais fácil entender que se acredita ter despolitizado todos os conflitos [...] quando a decisão é conferida a um colegiado de juízes funcionários públicos.” Mas, lembra o autor, constitui “[...] um mal-entendido e um modo de falar ilusório, se não enganoso, sugerir [...] que a incômoda responsabilidade e o risco do político pudessem [possam] ser evitados e exterminados [...]” (SCHMITT, 2007a, p.160). Como visto na seção 5, do fato de o Positivismo não reconhecer a possibilidade da atitude decisionista na jurisdição, decorrem a ausência de limites e a autorização implícita para o abuso. Pois o reconhecimento da normatividade dos princípios não confere ao Poder Judiciário discricionariedade para interpretá-los e aplicá-los livremente. Se o fizesse, a afirmação de que se trata de normas seria farsesca. Ao ampliar quantitativa e qualitativamente o conjunto de padrões jurídicos a serem considerados nos julgamentos, a nova hermenêutica aumentou a

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responsabilidade dos julgadores. Estabeleceu critérios e ocasiões em que os princípios podem justificar legitimamente acórdãos ou sentenças. Dessa forma, o apelo a princípios que declara reconhecer neles uma função normativa sem, no entanto, considerar as restrições hermenêuticas decorrentes desse reconhecimento nega a premissa da qual crê partir. O resultado desse aparente esforço pós-positivista é o uso retórico desses conceitos para encobrir as opções políticas reais do julgador. Sob a aparência de uma nova postura interpretativa, mantém-se uma atitude idêntica à do Positivismo rigoroso, que, diante da controvérsia política, tolera a prática da legislação judicial. Ao impor aos jurisdicionados padrões morais particulares ou públicos, mas neste caso políticos em sentido estrito, os juízes negam o direito que os indivíduos têm de se submeterem a um julgamento neutro, baseado no Direito. Por não se fundamentarem em argumentos de princípio, as decisões assim proferidas se assemelham às deliberações legislativas. Constitui, no entanto, um erro dizer que tais hipóteses implicam o exercício material da legislação. O procedimento próprio da prestação jurisdicional, diverso do processo legislativo, restringe a participação partidária dos membros do Judiciário. Ao fazê-lo, retira os juízos do âmbito de incidência do princípio da representação, que autoriza as manifestações legislativas. Logo, se os decisores não observam os limites do poder de julgar, mais apropriadamente se fala somente em abuso do poder jurisdicional. Das constatações das alíneas “a” e “b” desta subseção, decorre, pois, uma conclusão acerca do exercício abusivo das funções estatais. O Positivismo considera que, ao ultrapassar os limites da jurisdição, o juiz legisla. Se não há autorização para que o faça, comete usurpação de poder (alínea “d”). Tal abuso é percebido, porém, apenas formalmente. Se, como exposto, as características de uma atividade estatal não são ontológicas, mas derivam de prescrições normativas, é um erro afirmar que o exercício abusivo da jurisdição gera um ato materialmente legislativo. O desempenho de uma função em desconformidade com os princípios sobre ela incidentes não constitui uma usurpação de competência alheia. O abuso mostra a semelhança do resultado da atividade com o dos outros poderes, mas não a torna idêntica a nenhum deles. Pois, ao deixar de observar as normas que incidem sobre uma espécie, o agente não observa padrão algum: nem o que condiciona a função formalmente exercida, nem o que autoriza a materialmente assemelhada a ela.

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6.3 A complexa situação da Justiça Eleitoral

As conclusões obtidas nas subseções anteriores acerca dos princípios que incidem sobre o exercício de cada uma das três funções estatais típicas e assim definem o exercício regular – ou abusivo – delas serão úteis para analisar a atuação do Poder Judiciário no processo de normatização da infidelidade partidária. De início, salta aos olhos o fato de, na ADI n. 3.999/08 (BRASIL. Supremo..., 2008), o STF ter declarado constitucional a Resolução n. 22.610/07, editada para “[...] disciplinar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de filiação partidária [...]” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.610, 2007). Como se expusera na subseção 3.3, o TSE detém autorização legal para regulamentar as leis eleitorais, e o faz por meio de resoluções. Entretanto, na regulamentação da fidelidade partidária, o Tribunal excedeu os limites da função administrativa ao disciplinar não a lei, mas um princípio constitucional implícito reconhecido pelo STF no MS n. 26.602/07 (BRASIL. Supremo..., 2007). Ademais, o ato não se restringiu a instruir a execução daquele acórdão, pois estendeu as conclusões da decisão a situações incompatíveis com os próprios fundamentos dela. É forçoso o reconhecimento da ocorrência de abuso na Resolução n. 22.610/07 (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.610, 2007). Dada a incidência do princípio da legalidade sobre a função administrativa em sentido amplo, só se considera válido o regulamento “[...] expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução de lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública.” (MELLO, 2010, p. 343). Isso não implica que a Justiça Eleitoral tenha usurpado funções legislativas. Como os órgãos judiciários não se submetem ao princípio representativo democrático, os atos que emitem não possuem força legal. Ainda que se assemelhem a leis, eles constituem mero resultado da atividade administrativa abusiva, nunca atos materialmente legislativos. Não obstante isso, o STF entendeu que, dada a excepcional existência de lacuna na legislação, “[...] enquanto o Poder Legislativo, órgão legitimado para resolver as tensões típicas da matéria, não se pronunciar [...]” (BRASIL. Supremo..., 2008), a resolução é válida. Ao fazê-lo, o Tribunal adotou para o caso uma solução típica do Positivismo Jurídico estrito, doutrina que, na jurisprudência imediatamente

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anterior, a corte parecia repelir. Pois, como demonstrado na subseção 2.3, essa corrente teórica tolera o exercício legislativo judicial quando inexistem convenções jurídicas explícitas que disciplinem uma situação concreta. Ressalte-se que o próprio acórdão não foi fundamentado em princípio ou regra constitucional alguma, senão na “[...] extraordinária circunstância de o Supremo Tribunal Federal ter reconhecido a fidelidade partidária como requisito para permanência em cargo eletivo e a ausência expressa de mecanismo destinado a assegurá-lo [...]” (BRASIL. Supremo..., 2008), como constou do voto do relator, ministro Joaquim Barbosa. Se aplicadas à decisão as conclusões obtidas na subseção 5.3 acerca do exercício regular da jurisdição, seria forçoso constatar que ela constitui uma hipótese de aplicação jurisdicional intuicionista e, portanto, abusiva. O argumento da excepcionalidade não explica por que, antes de se valer de uma função judiciária atípica, o poder regulamentar, a Justiça Eleitoral não optou por construir caso a caso, mediante decisões jurisdicionais típicas, a jurisprudência acerca das hipóteses que autorizam a perda do mandato – e de qual procedimento a ser adotado para processá-las. Até aqui, presumiu-se não ter havido exercício abusivo de funções públicas no próprio reconhecimento do princípio da fidelidade partidária, o que agora cumpre averiguar. Na Consulta n. 1.398/07, para responder a uma questão sobre matéria eleitoral, o TSE procurou um princípio subjacente às disposições constitucionais explícitas. Considerou que a melhor interpretação do repertório jurídico aplicável apelava à moralidade política implícita na CRF/88. (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). Conforme se expôs na seção 5, tal atitude pode inicialmente ser classificada como pós-positivista. A superação da perspectiva positivista gera, entretanto, dificuldades que não foram enfrentadas pelos ministros. A doutrina majoritária, que tradicionalmente classifica a competência eleitoral consultiva como uma função administrativa em sentido amplo, vê-se forçada a considerá-la materialmente legislativa quando inexiste lei expressa sobre a matéria, e o objeto da interpretação é uma norma constitucional. Pois não há convenção jurídica explícita que vede aos Tribunais a resposta sobre questões eleitorais constitucionalizadas. Ao contrário, o inciso XII do art. 23 e o VIII do art. 30 do CE atribuem ao TSE e aos TREs o poder-dever de respondê-las nas condições ali previstas, que não excluem tratar-se de conteúdo constitucional. Uma possível solução seria a declaração da inconstitucionalidade do

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próprio instituto da consulta. Mas afirmar que viola a CRF/88 que os Tribunais tenham atribuição consultiva contraria a prática histórica de tal competência, pelo menos desde o CE de 1965. Restaria, portanto, tratá-la como uma hipótese de legislação judicial autorizada. Todavia, tal solução se encontra em desacordo com as conclusões aqui desenvolvidas sobre o abuso de poder estatal. A competência eleitoral consultiva constitui exercício do poder de administração em sentido amplo, e não há dificuldade em reconhecê-lo, desde que se compreenda o princípio da legalidade sob a perspectiva pós-positivista – não como exigência de conformidade a um conjunto de regras legais explícitas, mas sim ao Direito como integridade. Na Consulta n. 1.398/07, não se enfrentaram diretamente as implicações que a normatividade dos princípios impõe às resoluções-resposta. Ainda assim, a linha argumentativa majoritária declarou a existência do princípio constitucional de fidelidade, implícito no sistema representativo proporcional. A tal entendimento, porém, opôs-se o ministro José Delgado, a quem causou “[...] estranheza o fato de a Constituição estar [então] prestes a completar dezenove anos [...]” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007), e aquela ter sido “[...] a primeira vez que se proclama que há a aludida perda de mandato. Ou seja, demorou-se um pouco para se perceber esse princípio.” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). Para o ministro, que afirmou não desconhecer existirem princípios implícitos, “Não há norma na Constituição, nem em lei infraconstitucional, que diga que aquele que mudar de partido perderá o mandato. Isso, no final das contas, é o objeto da consulta.” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). A questão seria repetida, com outras palavras, pelo ministro Eros Grau, no julgamento do MS n. 26.602/07 pelo STF: “[...] onde está escrito, na Constituição ou em qualquer lei, que o cancelamento de filiação partidária ou a transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda consubstancia renúncia tácita? Onde está escrito isso no direito posto [...]?” (BRASIL. Supremo..., 2007). A indagação de Grau parece limitada ao aspecto linguístico do problema, o que poderia levar à conclusão de que faz apelo ao método literal de interpretação, tipicamente positivista. Não é, contudo, o que ocorre. Conforme visto na subseção 1.2, o argumento do ministro parte da premissa de que as hipóteses de perda de mandato

parlamentar

constitucionalmente

autorizadas

estão

exaustivamente

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previstas no art. 55 da CRF/88. Como a infidelidade partidária não se encontra entre elas, indagar pelo texto equivale, no caso, a perguntar pela norma. Eis que o voto de Delgado foi recebido como uma negação direta da premissa que sustentava o argumento dos demais votantes. Isso levou o ministro Marco Aurélio de Mello a questionar se se “[...] precisaria de uma norma diante dos princípios consagrados pela Constituição Federal [...]” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007), ao que ele mesmo respondeu negativamente: “Seria acaciano.” (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007). Note-se, porém, que, ao formular tal pergunta, o ministro acabou por promover uma confusão terminológica. Usou o termo “normas” como sinônimo de regras explícitas na CRF/88. Logo, ainda que não intencionalmente, sugeriu não serem os princípios espécies normativas, o que vai de encontro ao que naquela sessão se sustentara: que princípios são normas tanto quanto o são as regras. Muito provavelmente, Mello pretendia indagar se o reconhecimento do princípio dependia da existência de uma regra constitucional explícita que a ele fizesse referência expressa. As objeções levantadas pelo ministro José Delgado não foram enfrentadas na decisão. O autor do voto divergente, ao questionar a existência do princípio da fidelidade partidária, não apelava a métodos hermenêuticos positivistas, como o da interpretação literal. Ao contrário, Delgado demonstrava reconhecer o caráter normativo de um padrão de moralidade política concorrente não considerado pelos demais ministros: o princípio da legalidade. Afinal, na medida em que se afirma ser a perda de mandato a consequência jurídica do abandono partidário, supõe-se existir a obrigação correspondente de que o parlamentar se mantenha filiado à legenda pela qual se elegeu. Tal dever, contudo, não se encontra previsto em nenhuma convenção legislativa, como exige o inciso II do art. 5º da CRF/88: “[...] ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei [...]” (BRASIL, 1988). Não se pretende, com isso, afirmar que a legalidade estrita seja um princípio forte o suficiente para tornar o reconhecimento da exigência de fidelidade partidária incompatível com a integridade do Direito. Não se trata de analisar o acerto ou o erro da interpretação que vê na infidelidade um ato juridicamente desautorizado, independentemente de haver regra explícita que a proíba, por sê-la contrária a uma norma mais abstrata, o princípio da representação parlamentar proporcional. Questiona-se o fato de a manutenção do vínculo partidário ser tomada

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como um dever obviamente decorrente dos padrões jurídicos positivos, explícitos ou implícitos, sem que se esgotassem os argumentos jurídicos em oposição. Como observa Dworkin (2007b, p. 60), “[...] um juiz que se propõe a modificar uma doutrina existente deve levar em consideração alguns padrões importantes que se opõem ao abandono da doutrina estabelecida; esses padrões são, na sua maior parte, princípios.“ Tais normas inclinam a favor do status quo. Uma regra pode ser “[...] sustentada de maneira afirmativa por princípios que o tribunal não tem a liberdade de desconsiderar e que, tomados coletivamente, são mais importantes do que outros princípios que contêm razões em favor de uma mudança.” (DWORKIN, 2007b, p. 61). Tanto as considerações sobre o peso de um princípio, quanto as reflexões acerca da suficiência da justificativa que ele oferece às regras legislativas explícitas constituem matéria argumentativa que a neutralidade exige seja exposta no fundamento da decisão. No caso, a argumentação em favor da hipótese da perda de mandato em razão da infidelidade deveria ter sido especialmente justificada, tendo em vista pesarem contra ela dois importantes fatores: a linguagem dos dispositivos constitucionais explícitos e a história institucional. Em relação ao primeiro, a única menção expressa feita na CRF/88 à fidelidade partidária se encontra no §1º do art. 17, que retira da Constituição a regulamentação da matéria, ao determinar que cabe a cada partido discipliná-la, por meio de regras estatutárias: É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária. (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Ademais, embora o inciso V do §3º do art. 14 da CRF/88 mencione a filiação partidária como condição de elegibilidade, ele não exige que o vínculo à mesma legenda seja mantido durante todo o exercício do mandato.41 Tampouco o art. 45, que trata do sistema representativo proporcional, estabelece qualquer relação entre a cadeira ocupada na Câmara dos Deputados e o partido político.42 A 41

Se, por analogia, estende-se à filiação partidária o mesmo entendimento praticado pelos juízos eleitorais em relação a outra condição de elegibilidade, o domicílio eleitoral na circunscrição, previsto no inciso IV do art. 14 da CRF/88, tende-se a concluir que, na medida em que a mudança da circunscrição do domicílio eleitoral não ocasiona a inelegibilidade – nem a consequente perda do mandato –, a mudança do partido ao qual se está filiado também não deveria causá-la. 42 A proporcionalidade da representação parlamentar, em âmbito federal, restrita aos deputados, está prevista no caput e no §1º do art. 45 da CRF/88: “Art. 45. A Câmara dos Deputados compõe-se de

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única convenção vigente que dispõe acerca da necessidade de manutenção da filiação à legenda de origem é o parágrafo único do art. 88 do CE. Ele dispõe, no entanto, que o período mínimo de permanência no partido será previsto no estatuto de cada agremiação: “Nas eleições realizadas pelo sistema proporcional o candidato deverá ser filiado ao partido, na circunscrição em que concorrer, pelo tempo que fôr fixado nos respectivos estatutos.” (BRASIL, 1965). No que diz respeito ao segundo fator, reconheceu o ministro Asfor Rocha: “Não é nova essa questão de saber se o mandato eletivo é de ser tido como pertencente ao indivíduo eleito, à feição de um direito subjetivo, ou se pertence ao grêmio político partidário sob o qual obteve a eleição [...]” (BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Consulta..., 2007). Em 1969, introduziu-se no Direito brasileiro o primeiro dispositivo que expressamente dispôs sobre a perda de mandato por abandono partidário. A hipótese estava prevista no parágrafo único do art. 152 da Emenda Constitucional (EC) n. 1, que revogou parte considerável da Constituição de 1967.43 Tratou-se, contudo, de norma de maior abrangência – pois alcançava os senadores, eleitos pelo sistema majoritário –, e curto período de vigência – apenas durante a ditadura militar, eis que derrogada em 1985 pela EC n. 25/85.44 Antes de 1969, as decisões do TSE apontavam a inexistência de regra legal que proibisse a mudança de partido. A corte considerava que tal ausência de convenção explícita constituía impedimento para que o Poder Judiciário declarasse a perda do mandato. Somente a partir da EC n. 1/69, a troca de legenda passou a

representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal. § 1º - O número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados.” (BRASIL, 1988). 43 Nos termos da EC n. 1/69, “Art. 1º A Constituição de 24 de janeiro de 1967 passa a vigorar com a seguinte redação: […] Art. 152 A organização, o funcionamento e a extinção dos partidos políticos serão regulados em lei federal, observados os seguintes princípios: [...] Parágrafo único. Perderá o mandato no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Municipais quem, por atitudes ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito. A perda do mandato será decretada pela Justiça Eleitoral, mediante representação do partido, assegurado o direito de ampla defesa.” (BRASIL, 1969, grifo nosso). 44 É vasta a jurisprudência a respeito. Cita-se: “2. A Emenda Constitucional n. 25/85 revogou os dispositivos constantes da E.C. n.º 1/69 que dispunham sobre a infidelidade partidária, e, em conseqüência, deixaram de vigorar os arts. 72 e seguintes da Lei 5.682/71 relativos a perda de mandato por infidelidade partidária. 3. Inexistente no nosso ordenamento jurídico a perda de mandato por infidelidade partidária, não mais decorrem quaisquer “prejuízos”, muito menos perda de mandato, para o filiado que, detentor de cargo eletivo, deixa o Partido sob cuja legenda foi eleito a fim de transferir para outro.” (BRASIL. Tribunal..., 1989, grifo nosso).

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produzir tal consequência. Entretanto, como esclarece Ferraz Júnior (V., 2008, p. 160), tratou-se de medida antidemocrática, característica daquele contexto histórico: [...] a competição política estava cerceada pela imposição de um bipartidarismo, em que a Arena representava o partido governista e o MDB a oposição tolerada, e pela suspensão das eleições majoritárias nacionais, estaduais e de alguns municípios [...] (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 160161).

Mesmo antes da EC n. 25/85 (BRASIL, 1985), que revogou a EC n. 1/69 (BRASIL, 1969), a regra da infidelidade partidária fora relativizada, “Como parte da estratégia de transição lenta, gradual e segura, do regime militar para a democracia [...]” (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 161). Desde a assinatura da EC n. 11, em dezembro de 1978, “[...] o parlamentar que deixasse seu partido com o objetivo de participar da fundação de um novo partido não seria punido com a perda do mandato.” (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 161). Assim, guiada pelos princípios que inspiraram o processo de redemocratização, a Assembleia Constituinte de 1988 não incluiu no rol das hipóteses constitucionais de perda do mandato de deputados e senadores – previsto no art. 55 da CRF/88 – sanção pela infidelidade partidária. Tal entendimento foi confirmado pelo STF em 1989. Ao julgar o MS n. 20.927, o Tribunal decidiu que, embora o Direito brasileiro acolhesse o princípio da representação proporcional, dele não decorria necessariamente a fidelidade partidária. A imposição dessa exigência dependia de que estivesse prevista numa regra da Constituição ou na lei.45 Segundo Ferraz Júnior (V., 2008), nesse julgamento, [...] o plenário do STF foi marcado por um amplo debate e por uma decisão longe de ser unânime: sete ministros contra quatro. A tese minoritária foi seguida pelos ministros Celso de Mello, Paulo Brossard, Carlos Madeira e Sydney Sanches, cujo argumento era que, mesmo na ausência de uma lei punitiva à prática, o Supremo poderia decidir pelo cancelamento do mandato do deputado migrante. (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 164).

De fato, não havia unanimidade quanto à jurisprudência, então predominante, da impossibilidade de cominação da perda do mandato ao deputado 45

Segundo a ementa do acórdão no MS n. 20.927, 1989, “MANDADO DE SEGURANÇA. FIDELIDADE PARTIDARIA. SUPLENTE DE DEPUTADO FEDERAL. - EM QUE PESE O PRINCÍPIO DA REPRESENTAÇÃO PROPORCIONAL E A REPRESENTAÇÃO PARLAMENTAR FEDERAL POR INTERMEDIO DOS PARTIDOS POLITICOS, NÃO PERDE A CONDIÇÃO DE SUPLENTE O CANDIDATO DIPLOMADO PELA JUSTIÇA ELEITORAL QUE, POSTERIORMENTE, SE DESVINCULA DO PARTIDO OU ALIANCA PARTIDARIA PELO QUAL SE ELEGEU. - A INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA FIDELIDADE PARTIDARIA AOS PARLAMENTARES EMPOSSADOS SE ESTENDE, NO SILENCIO DA CONSTITUIÇÃO E DA LEI, AOS RESPECTIVOS SUPLENTES. - MANDADO DE SEGURANÇA INDEFERIDO. (BRASIL. Supremo..., 1989, grifo nosso).

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que deixasse o partido de origem. Os ministros vencidos no julgamento do MS n. 20.927/89 defendiam decorrer da interpretação sistemática da CRF/88, amparada pelos princípios da fidelidade partidária e da democracia representativa, a existência de consequências jurídicas pelo abandono ou troca de legenda. Como notado pelo ministro Gilmar Mendes, no julgamento do MS n. 26.602, pelo STF, [...] já naquela ocasião do julgamento do MS n.º 20.927, essa suposta conexão lógica entre a ausência, no atual ordenamento, de texto como o do antigo art. 152 da Constituição de 1967/69 e a impossibilidade de aplicação da sanção de perda do mandato, além da taxatividade do art. 55, não ficou bastante clara aos olhos de alguns Ministros, que foram além da expressão textual de nossa Constituição e, por meio de uma interpretação sistemática baseada nos valores da fidelidade partidária e da democracia representativa, chamaram a atenção para a presença, em nosso sistema constitucional, de uma regra que impõe a perda do mandato ao parlamentar que abandona o partido por meio do qual foi eleito. (BRASIL. Supremo..., 2007).

No entanto, até a Consulta n. 1.398, restava consolidada, por maioria, “[...] tanto no Supremo como no TSE, a tese de que, se o parlamento optou por uma orientação mais liberalizante, permitindo o fluxo de mandatários entre os partidos, não caberia ao Judiciário assumir uma postura mais restritiva.” (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008, p. 165). Tal conclusão se apoiava no desenvolvimento jurisprudencial acerca das garantias parlamentares e na linguagem adotada pelas disposições da CRF/88 que tratam da perda de mandato. Sem a introdução de novas convenções constitucionais ou legislativas que alterassem o material jurídico até então disponível, torna-se forçoso reconhecer que os argumentos favoreciam a manutenção da jurisprudência dominante. O apelo à fidelidade partidária – como a qualquer princípio – exige coerência com o repertório legislativo e judicial sobre a matéria, pois a justificativa de um julgamento que se fundamenta num padrão moral implícito depende da demonstração de “[...] que o princípio citado é compatível com decisões anteriores que não foram refeitas, e com decisões que a instituição está preparada para tomar em circunstâncias hipotéticas.” (DWORKIN, 2007b, p. 138). Não se exclui a possibilidade de que a jurisprudência mais recente considere a anterior um erro ou não reconheça ser ela a melhor concepção do princípio no contexto atual. Em ambas as situações, a mudança jurisprudencial ocorre independentemente da permanência inalterada das regras e dos demais paradigmas interpretativos. Todavia, em respeito à história institucional, o aplicador tem de demonstrar que a manutenção da leitura prévia gera efeitos opostos aos

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pretendidos e ameaça a efetividade do princípio que deveria concretizar, seja porque mudaram as condições sociais de aplicação, seja porque se teve ciência de fatos até então desconhecidos. (DWORKIN, 2007b). A necessidade de atualização do sentido dado ao princípio da fidelidade partidária foi apontada pelo ministro Gilmar Mendes no voto proferido no julgamento do MS n. 26.602/07 (BRASIL. Supremo..., 2007). Na ocasião, ele justificou a nova interpretação da matéria, exigida pelo que denominou “mutação constitucional”: [...] A afirmação da mutação constitucional não implica o reconhecimento, por parte da Corte, de erro ou equívoco interpretativo do texto constitucional em julgados pretéritos. Ela reconhece e reafirma, ao contrário, a necessidade da contínua e paulatina adaptação dos sentidos possíveis da letra da Constituição à realidade que a circunda. (BRASIL. Supremo..., 2007).

Naquela sessão, foi vitorioso o argumento da mudança interpretativa quanto à existência e ao sentido do princípio. A maioria dos ministros do STF que se manifestaram sobre o MS n. 26.602 votou a favor da tese da fidelidade partidária conforme havia decidido o TSE. Estabeleceu, também, que os efeitos do acórdão então proferido retroagiriam a 27 de março de 2007, data da deliberação da Justiça Eleitoral sobre a Consulta n. 1.398. A decisão, porém, não foi unânime. Mesmo entre os ministros que analisaram o mérito do mandado houve considerável divergência. Foram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Marco Aurélio de Mello. Os dois primeiros votaram contra a tese da fidelidade partidária; os dois últimos, a favor dela, mas sem concordar com o termo inicial fixado. O primeiro conferiu efeito retroativo (ex tunc) ao julgado do Supremo, sem definir termo inicial algum; o último deu-lhe efeito não retroativo (ex nunc). (BRASIL. Supremo..., 2007). O voto condutor do acórdão foi proferido pelo ministro Menezes Direito, que entendeu ultrapassar “[...] os limites de uma interpretação subordinada apenas ao rígido esquema clássico e seus métodos [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007). Propôs se considerasse [...] o cenário do próprio sistema de valores e princípios fundamentais engendrados pela vontade constituinte, tirando deles as conseqüências que autorizem sua melhor aplicação para resguardá-los de dano quanto aos fins a que se destina. (BRASIL. Supremo..., 2007).

Para o ministro, o caso então sob análise, ainda que levasse à busca de uma resposta num princípio implícito na CRF/88, não constituía hipótese de criação de “norma artificial” ou ingresso “[...] em seara reservada ao poder de legislar.”

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(BRASIL. Supremo..., 2007). Representava, sim, o estabelecimento dos limites inerentes

ao

instituto

da

representação

democrática,

mediante

“[...]

uma

interpretação coerente com o que se contém na Constituição para preservar-lhe os princípios estatuídos e assegurar a plenitude do exercício da soberania popular por meio da representação política.” (BRASIL. Supremo..., 2007). Direito adotara como um dos fundamentos do voto a doutrina de Dworkin (2006). A frase do jurista norte-americano “[...] a leitura moral não é adequada para a interpretação de tudo quanto uma constituição contém [...]” (DWORKIN, 2006, p. 11) fora expressamente citada em defesa de um modelo de hermenêutica constitucional “[...] capaz de enlaçar a lei com a realidade, dando-lhe contorno que enseje a sua força normativa [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007). Para o ministro, isso não implica a subordinação do juiz à opinião pública ou aos “[...] critérios que são percebidos pela sociedade no rastro das emoções coletivas capazes de ocupar por inteiro o imaginário popular [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007). Pois o julgador deve se submeter apenas “[...] aos critérios que foram postos pelos constituintes [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007), a saber, os “[...] valores e princípios que eles [os constituintes] pretenderam fossem seguidos considerando a unidade do sistema normativo que construíram.” (BRASIL. Supremo..., 2007). A alegada adoção da doutrina da leitura moral (DWORKIN, 2006) se revela aqui especialmente relevante. O ministro Menezes Direito atestou não constatar a existência de “[...] lacunas constitucionais [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007) nos dispositivos da CRF/88 que dispõem sobre a perda do mandato parlamentar. Não obstante isso, ele defendeu que o STF “[...] não pode deixar de ponderar os valores e princípios de regência que estão na Constituição e deles extrair o conteúdo lógico capaz de autorizar uma interpretação que alcance a concretização desejada para mantê-los vigorosos na sociedade política.” (BRASIL. Supremo..., 2007). Tal declaração, porém, contraria as conclusões de Dworkin (2006) acerca das hipóteses em que o intérprete está autorizado a buscar diretamente nos princípios uma resposta para o caso submetido à jurisdição. Como mencionado na subseção 5.3, a menos que a regra faça menção expressa a um conceito contestado, ou o repertório legal seja considerado insuficiente (ou lacunoso), cumpre ao julgador aplicar as convenções explícitas disponíveis. A rigor, portanto, ao apelar a um princípio não diretamente incidente, porque não caracterizada a lacuna, o ministro praticou o que alegava evitar: “[...]

198

uma interpretação que avance contra o texto da lei [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007) – ou, no caso, contra as regras constitucionais explícitas. O descompasso entre o que se supunha fazer e os resultados obtidos é evidente se comparado o voto de Direito com o do ministro Joaquim Barbosa. Segundo Barbosa, não parecia adequado resolver a questão com fundamento em princípios implícitos. Para ele, o texto constitucional não é omisso sobre a matéria, negativamente disciplinada no rol taxativo do art. 55 da CRF/88, que não prevê a hipótese de infidelidade partidária: “[...] o constituinte de 1988 disciplinou conscientemente a matéria, e fez a opção deliberada de abandonar o regime de fidelidade partidária que existia no sistema constitucional anterior, que previa a perda do mandato nesses casos.” (BRASIL. Supremo..., 2007). Apesar da incoerência nos fundamentos do voto do ministro Menezes Direito, há que notar não lhe serem as conclusões absurdas. Houvesse admitido a insuficiência das convenções explícitas acerca da matéria, poderia chegar aos mesmos resultados partindo das novas teorias hermenêuticas que reconhecem o caráter normativo dos princípios. Nesse sentido, foi mais cuidadosa a construção desenvolvida pelo ministro Gilmar Mendes. Sob os argumentos hoje amplamente difundidos de que “[...] é somente no momento de sua aplicação aos casos ocorrentes que se revelam o sentido e o alcance dos enunciados normativos [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007) e, “[...] em verdade, a norma jurídica não é o pressuposto, mas o resultado do processo interpretativo, a norma é a sua interpretação [...]” (BRASIL. Supremo..., 2007), Mendes afirmou existir o direito dos partidos políticos às vagas por eles conquistadas segundo as regras do sistema proporcional (BRASIL. Supremo..., 2007). “Trata-se de um direito não expressamente consignado no texto constitucional, mas decorrente do regime de democracia representativa e partidária adotado pela Constituição (art. 5º, § 2º).” (BRASIL. Supremo..., 2007). Essa evidência de que, dado o caráter construtivo da interpretação jurídica (DWORKIN, 2007a), a relação entre as premissas e as conclusões da argumentação são complexas (e não mecânicas) explica muitas das críticas dirigidas ao Poder Judiciário. As denúncias de judicialização da política frequentemente presumem que tais situações são em si abusivas porque constituem exercício legislativo judicial não autorizado. Admitem, pois, ser verdadeira a afirmação

199

positivista de que a jurisdição é reveladora, neutra e objetiva, de forma que a atividade judicial controversa não pode ser caracterizada como jurisdicional. Partindo da perspectiva pós-Positivista, porém, há que se reconhecer a legitimidade da controvérsia política no interior da jurisdição, especialmente se, em casos como o do julgamento da infidelidade partidária, o intérprete se vê autorizado a basear-se em padrões concorrentes de moralidade pública, os princípios. Isso não significa negar a possibilidade de abuso do poder jurisdicional. Mas implica reconhecer que o exercício abusivo não ocorre pelo mero apelo do julgador a normas cujo conteúdo moral é controverso. Ao contrário, constata-se a violação ao princípio da neutralidade judicial quando a menção aos princípios (em sentido estrito é apenas retórica e encobre o uso de padrões morais privados ou de argumentos de política. Se se admite, então, que tanto os ministros do TSE quanto os do STF agiram de boa-fé e declararam a existência e o sentido de um princípio que honestamente entendiam implícito no Direito, o problema se desloca para a insuficiência da argumentação exigida para amparar a mudança jurisprudencial. Percebe-se, no entanto, que a perplexidade de certos críticos não decorre da imagem politicamente neutra da jurisdição. Subsiste no caso a desconfiança acerca de fundar-se o reconhecimento da fidelidade partidária não num princípio em sentido estrito, mas em metas políticas coletivas. Como observado na subseção 1.3, a Consulta n. 1.398 foi formulada pelo PFL, um partido de oposição ao Governo Federal, no contexto do escândalo denominado “Mensalão”. Durante os quatro primeiros anos de mandato do presidente Lula, a legenda havia sido uma das mais prejudicadas pela migração partidária negativa. De 2002 a 2006, chegou a perder 30% da bancada eleita pelo sistema proporcional. É forçoso, pois, o reconhecimento de que o partido tinha interesse direto na vedação da infidelidade partidária. O fato de a judicialização da demanda ter sido em grande parte provocada por declarações anteriores do ministro Gilmar Mendes agrava a percepção social acerca da atuação partidária da Justiça Eleitoral. (FERRAZ JÚNIOR, V., 2008). Mas as acusações de judicialização da política dirigidas contra o STF são também devidas à parte dispositiva do acórdão proferido no MS n. 26.602/07. A decisão atribuiu à data da resposta do TSE à Consulta n. 1.398 a condição de marco inicial de validade do princípio da fidelidade partidária, sem mencionar uma norma que autorizasse o STF a fazê-lo. Em razão disso, as críticas à atuação jurisdicional abusiva não partiram exclusivamente dos círculos externos à magistratura. Durante

200

aquele julgamento, o ministro Marco Aurélio de Mello esboçou reação similar à daqueles que acusam os tribunais de ultrapassarem a competência que detêm ao decidirem casos difíceis. Embora votasse com a maioria no que diz respeito à nova interpretação constitucional – de que a mudança de partido constitui hipótese implícita de perda de mandato –, Mello foi vencido na discussão acerca do termo a ser fixado para o início da produção dos efeitos do novo entendimento. Propôs que a data daquela sessão se considerasse o marco a partir de que modificada a jurisprudência do Tribunal: O Supremo pode atuar como legislador negativo, mas não pode atuar como legislador positivo, e o estará fazendo, inspirado, é certo, na resposta do Tribunal Superior Eleitoral, ao fixar como termo inicial da eficácia, da concretude, da Constituição Federal e das demais normas regedoras da espécie a data dessa resposta. [...] É que geralmente, quando se cogita de modificação de entendimento, cogita-se de modificação implementada no campo jurisdicional. E a resposta dada pelo Tribunal Superior Eleitoral o foi em processo administrativo. [...] Seria o caso, então, de fixar como termo inicial – e o argumento não é ad terrorem, não chegaria a isso evidentemente, senão estaria sendo incongruente – a data deste julgamento, porque hoje aquele que tem a apalavra final sobre a Constituição federal está modificando o entendimento. (BRASIL. Supremo..., 2007).

Todavia, a decisão do Tribunal confirmou a retroatividade dos efeitos do acórdão, que valeria a partir de 27/3/07, data em que o TSE julgou a Consulta n. 1.398/07, e, pela primeira vez desde a CRF/88, afirmou que a mudança partidária ensejava a perda do mandato parlamentar. Diante da derrota na argumentação, Mello expôs, em outras palavras, perplexidade semelhante à demonstrada pela opinião pública a acusar o Judiciário de, sob a aparência da jurisdição, legislar ou decidir sobre questões tipicamente políticas: “Confirma-se hoje que a Constituição Federal é o que o Supremo diz que ela é.” (BRASIL. Supremo..., 2007). Portanto, ainda que superada a questão da nova interpretação dada ao princípio da infidelidade partidária – cujas conclusões são plausíveis sob uma perspectiva pós-positivista da jurisdição –, a legitimidade da atuação judicial no caso se vê ameaçada pelo intuicionismo. Mas não somente. O exercício da competência para expedir instruções permitiu que, às acusações de abuso da função jurisdicional dirigidas aos órgãos judiciais, somassem-se as críticas de que agira o TSE como legislador extraordinário. O fato de ter o STF ratificado a resolução n. 22.526/07 torna o caso ainda mais complexo. Pois faz com que as múltiplas funções eleitorais e os diversos órgãos judiciários apareçam à sociedade como um todo indiviso.

201

A desconfiança que a comunidade, influenciada pela noção positivista de neutralidade judicial empírica, dirige à aplicação da jurisdição sobre questões politicamente controversas, agrava-se pela atitude deliberadamente ativa que os juízes demonstram ao exercer as funções judiciais atípicas. A Justiça Eleitoral se encontra na paradoxal situação de que a duplicidade de sua natureza (jurisdicional e administrativa) se deve a uma perspectiva positivista de neutralidade do Poder Judiciário, que levou à criação da instituição e ao seu acúmulo histórico de funções. Essa mesma concepção, no entanto, pode ser ameaçada pelo exercício simultâneo dessas diversas atividades. Se, como no caso do reconhecimento da infidelidade partidária, a instituição comete abuso no exercício da administração, permanece o risco de que as decisões que resultam da jurisdição sejam também questionadas. Ademais, independentemente do exercício irregular de poder estatal, quando os juízes eleitorais exercem tarefas predominantemente não jurisdicionais, como a organização das eleições, a regulamentação da legislação eleitoral e a elaboração de resposta a consultas, eles têm de observar o regime jurídico administrativo, diverso do jurisdicional. Mas a função administrativa, além de submeter-se à legalidade, sujeita-se também ao princípio da eficiência, que impõe ao Estado a escolha dos meios menos onerosos para realizar certas metas – objetivos políticos. O risco é que não se distingam com precisão as situações de exercício de cada um dos poderes, e a atividade jurisdicional seja encarada pelos próprios membros do órgão, ou pela sociedade, como instrumento para alcançar finalidades provenientes da esfera partidária. Há que considerar, por fim, que, diante da insuficiência dos critérios positivistas para distinguir as decisões jurisdicionais legítimas das abusivas, a opinião pública, antes de questionar a premissa falaciosa de que parte, agarre-se a ela para criticar a falta de neutralidade da instituição. Afinal, desfeita a ficção da imparcialidade inerente ao Poder Judiciário, o Positivismo não dispõe de mecanismos para coibir o partidarismo. Nesse caso, os críticos encontrarão, no acúmulo de funções dos Tribunais Eleitorais, sustentação para a suspeita de que, nas palavras de Montesquieu (1979, p. 149), “Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.”

202

CONCLUSÃO

As

críticas

à

atuação

do

Poder

Judiciário

têm

aumentado

consideravelmente nos últimos anos. No que se refere à Justiça Eleitoral, desde 2002, as acusações de que a instituição judicializa abusivamente a política são cada vez mais frequentes. Aponta-se que os juízes e os Tribunais encarregados do controle das eleições ilegitimamente legislam ao decidirem casos politicamente controversos. Antes de questionar a distribuição de competências entre os órgãos legislativos e judiciários, a opinião pública demonstra perplexidade diante da constatação de que as instâncias judiciais proferem decisões políticas. É disseminada a noção de que os juízes são imparciais e capazes de julgar sem considerações subjetivas acerca da moralidade política. Por gozarem de prerrogativas de independência e se sujeitarem a vedações de participação partidária direta, os membros do Poder Judiciário são considerados autoridades suprapolíticas, terceiros alheios às influências dos partidos em disputa e desinteressados quanto ao desenrolar da competição. Predomina a imagem de que tais atributos são inerentes aos cargos judiciais e aos ocupantes deles, pois se parte de uma concepção ontológica da neutralidade institucional. Igualmente difundida é a percepção de que a jurisdição consiste em uma atividade neutra, apolítica e objetiva. Sob essa perspectiva, julgar significa submeter um caso concreto ao Direito, conjunto de regras produzidas por meio de convenções que autorizam a criação jurídica. Quando decide, o juiz revela o conteúdo que já se encontra disponível no repertório de decisões anteriores. A tarefa interpretativa se resume, portanto, ao emprego de técnicas de extração do sentido linguístico ou lógico (sistêmico) dos documentos redigidos pelos órgãos autorizados a criar normas segundo procedimentos publicamente reconhecidos. Em oposição a tal imagem projetada sobre o Poder Judiciário e a jurisdição, o Legislativo e a função a ele precipuamente conferida, a legislação, são concebidos como politicamente influenciados. É generalizada a suposição de haver uma implicação necessária entre o exercício do poder legislativo e as atividades desenvolvidas na esfera política. Já que a representação é precedida de eleições em que o eleitorado decide quais membros da comunidade ocuparão os cargos eletivos, a obtenção do mandato depende da captação do sufrágio da maioria. E,

203

uma vez que a renovação das cadeiras nos órgãos legislativos é periódica, a manutenção da condição de parlamentar exige a formação de consenso. Isso vincula a atividade legislativa aos interesses negociados na arena partidária. Por meio do processo legislativo, as matérias são retiradas da arena político-partidária, inerentemente controversa. Uma vez positivado, o Direito torna-se neutro, indiferente aos interesses políticos e às negociações que o precederam. Passa a refletir a vontade do Estado, da comunidade como um todo, e não mais de uma das organizações que a compõem. Assim despolitizadas, as prescrições contidas nas regras jurídicas podem ser tecnicamente interpretadas. O sentido lógico que delas decorre se aplica sem considerações pessoais aos jurisdicionados. Todavia, mesmo os mais fervorosos adeptos de tais concepções se veem forçados a reconhecer que ao menos em duas situações as decisões judiciais são politicamente controversas: se o repertório de convenções jurídicas não dispõe de uma regra que ofereça uma reposta clara à demanda; ou se o objeto submetido à apreciação judiciária é, ele mesmo, originário da arena política. Em ambos os casos, no entanto, para preservar a imagem neutra e apolítica da jurisdição, a doutrina tradicional argumenta que não se assiste a hipóteses de verdadeira prestação jurisdicional, mas sim de legislação praticada por órgãos judiciários. Ao fazê-lo, desloca o problema. O motivo de preocupação passa a ser a eventual inexistência no repertório jurídico de autorização para que juízes e tribunais legislem. Conforme se demonstrou na seção 2, os diversos elementos dessa perspectiva acerca da natureza das atividades de legislar e julgar podem ser reunidos sob a doutrina do Positivismo Jurídico. As várias correntes positivistas compartilham três afirmações essenciais: o Direito é um conjunto de regras; as regras jurídicas podem ser distinguidas das demais regras sociais por meio de testes formais de pedigree; e, ausente uma regra assim reconhecida, não há Direito (DWORKIN, 2007b). Desses elementos, decorre a teoria da prestação jurisdicional que sustenta as divulgadas impressões acerca dos juízes e da jurisdição. Embora nem todo teórico reconhecidamente positivista formule tais proposições como expostas aqui, notam-se vestígios da influência delas, em maior ou menor medida, no pensamento político e jurídico dominante desde o século XIX. Autores como Bobbio (2006), Kelsen (2009) e Luhmann (1980), admitam ou não, compartilham aspectos do Positivismo. Ademais, percebem-se os efeitos desse ponto de vista na doutrina brasileira e nas definições propostas por juristas como

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Mello (2010), Silva (2008b), Moraes (2008) e Meirelles (2010) para as funções de legislação, administração e jurisdição (v. seção 3). Entretanto, o prestígio das concepções juspositivistas ultrapassa a esfera de discussão estritamente jurídica e repercute nas críticas publicamente dirigidas contra a atuação do Poder Judiciário no controle da legitimidade eleitoral. Elementos característicos do Positivismo são familiares à opinião pública, qualificada ou não. Subjaz à perplexidade causada pelas recentes decisões do TSE e do STF sobre matéria eleitoral a noção irrefletida, mas tipicamente positivista, de que os Tribunais abusam do poder que detêm quando não se limitam a aplicar o conteúdo explícito das convenções constitucionais e legislativas ou decorrente, por analogia, da interpretação sistêmica delas. Se se analisam as acusações de judicialização da política a partir do ponto de vista do Positivismo estrito, interno ao sistema, pode-se compreendê-las como proposições acerca do exercício abusivo de competências estatais. Elas pretendem qualificar as decisões judiciais (jurisdicionais ou não) contra as quais se dirigem como ilegítimas (juridicamente não autorizadas) porque usurpam funções legislativas (v. seção 6). É verdade que a grande maioria dos críticos não se mostra capaz de explicar nesses termos as declarações que faz. Mas isso não invalida a afirmação de que as críticas supõem tal definição. Sob a perspectiva positivista, a legitimidade coincide com a legalidade em sentido estrito. Ou seja, para que uma atuação estatal seja legítima, ela deve ser expressamente autorizada por uma regra constitucional ou legal – ou não ser por elas vedada, nos casos em que a autorização decorre de uma cláusula geral. O Poder Judiciário comete abuso se legisla quando o repertório de convenções jurídicas não autoriza – ou proíbe – que o faça. Há que se considerar, porém, os critérios a serem utilizados para identificar as situações de legislação judicial. Kelsen (2009) define as leis como atos infraconstitucionais e de abrangência geral (v. seção 3). Luhmann (1980) mostra que elas são apresentadas como decorrentes de um processo tipicamente legislativo (v. seção 4). Ambos oferecem parâmetros objetivos formais para avaliar se uma decisão é legislativa. Mas, como aqui se pretende analisar a ilegalidade que decorre da usurpação material de funções legislativas, os dois têm de ser deixados de lado. O critério fornecido pelo jus-sociólogo alemão pode ser, de pronto, afastado, pois, de antemão, sabe-se tratar de uma decisão judicial, elaborada por

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meio de um procedimento diverso do legiferante. O uso de um parâmetro exclusivamente formal-procedimental para avaliar se os tribunais legislam quando parecem julgar negaria, por definição, a existência do fenômeno que se pretende compreender. Pois conduz à conclusão de que tudo o que resulta do processo jurisdicional é exercício da jurisdição. No que diz respeito ao primeiro autor, a princípio, é possível concordar com a ideia de que os juízes legislam se proferem decisões gerais ou hierarquicamente localizadas, no escalonamento normativo, imediatamente abaixo da Constituição. Há que se perceber, contudo, que essa utilidade inicial da tese deriva do fato de que a ela se vinculam critérios materiais de distinção. Para Kelsen (2009), as normas produzidas pelos Tribunais adquirem generalidade e hierarquia legal quando: pacificam o sentido controverso e vago das leis; ou criam conteúdo jurídico, porque o repertório legislativo não oferece uma solução ao caso. As conclusões do jurista austríaco terminam, pois, por apelar à relação que o Positivismo estrito estabelece entre o exercício do poder legislativo e as escolhas políticas não limitas pelo Direito – ainda que, no caso do autor austríaco, a ausência de vinculação se restrinja ao aspecto material. Nesse sentido, quando juízes se pronunciam acerca de questões controversas, que exigem juízos acerca da melhor opção política, eles legislam. Assim ocorre se decidem casos vagos ou lacunosos. Partindo da mesma premissa, outros autores identificam haver também atividade materialmente legislativa se os tribunais impõem limites substantivos à legislação (pelo controle da constitucionalidade das leis), determinam a adoção de políticas públicas ou controlam a moralidade da conduta dos agentes políticos. Nas cinco hipóteses, se não há autorização para que o Poder Judiciário se manifeste sobre a questão politicamente controversa ou apele a parâmetros extrajurídicos, haverá usurpação da função legislativa, precipuamente atribuída ao Legislativo. Pode-se falar, então, em judicialização (abusiva) da política. Se se aplicam tais conclusões a decisões judiciais publicamente reconhecidas como polêmicas, pode-se avaliar se as críticas dirigidas aos julgadores são justificadas. A primeira década do século XXI foi marcada por julgamentos controversos sobre matéria eleitoral que receberam expressiva cobertura midiática. Entre os de maior repercussão, destaca-se o de reconhecimento do princípio da fidelidade partidária, implícito na CRF/88. Em 2007, consultado pelo PFL sobre o fato de os partidos terem direito a conservar o mandato do deputado no caso de

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desfiliação, o TSE respondeu afirmativamente. O Tribunal entendeu que a fidelidade partidária deriva implicitamente das disposições constitucionais e legais que ligam a representação proporcional ao vínculo partidário. Assim, da desfiliação não justificada do mandatário, decorre necessariamente a perda do cargo eletivo no Congresso Nacional (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.526, 2007) (v. seção 1). A Resolução n. 22.526/07, expedida pelo TSE naquela ocasião, foi objeto do MS n. 26.602, julgado pelo STF. Nos fundamentos do acórdão, este Tribunal confirmou o caráter normativo do princípio da fidelidade partidária. No dispositivo, decidiu que o novo entendimento retroagiria à data da resposta da corte eleitoral. Do ponto de vista do Positivismo estrito, é coerente afirmar que houve judicialização abusiva da política nesta decisão. Afinal, ao apelar a um princípio para decidir o caso, o STF se valeu de um padrão extrajurídico para suprir uma situação em que entendeu haver uma lacuna nos dispositivos constitucionais. Ao fazê-lo, porém, desconsiderou que, por força do inciso I do art. 22 e do caput do art. 48 da CRF/88, compete ao Poder Legislativo legislar sobre Direito Eleitoral. Todavia, da perspectiva positivista, que considera os poderes do Estado apenas

ontologicamente,

decorre

outra

conclusão,

que

nem

sempre

se

problematiza. Dizer que, ao desconsiderar os limites da jurisdição autorizada, o STF usurpou funções legislativas equivale a afirmar que o abuso torna o ato abusivo substancialmente idêntico ao que resulta do exercício legítimo (autorizado) de outro poder. Ou seja, significa reduzir a violação do Direito ao desrespeito formal de regras de competência e procedimento. Na prática, isso torna aceitável que, em situações excepcionais, a ilegitimidade seja desconsiderada, tratada como mero deslize burocrático. Assim se pode tolerar a atividade desautorizada. Observa-se a concretização de tal consequência nas decisões judiciais sobre a infidelidade partidária que se seguiram ao MS n. 26.602 (BRASIL. Supremo..., 2007). Para instruir o acórdão do STF, o TSE emitiu a Resolução n. 22.610/07 (BRASIL. Tribunal... Resolução n. 22.610, 2007). Sem que houvesse uma lei a ser regulamentada, a instrução disciplinou o processo de julgamento dos casos de perda do cargo eletivo em virtude da desfiliação injustificada. Além disso, estendeu as disposições contidas no regulamento aos ocupantes de cargos majoritários. Diante do notável exercício abusivo do poder administrativo de que dispõe o Tribunal Eleitoral, a constitucionalidade da resolução foi questionada na ADI n. 3.999/08. Ao

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julgar a ação, no entanto, o STF manteve o ato. Declarou ter havido ali exercício materialmente legislativo, mas entendeu tratar-se de hipótese justificada pela excepcional situação de lacuna (BRASIL. Supremo..., 2008). A identificação de elementos tipicamente positivistas no julgamento da ADI n. 3.999/08 é especialmente significativa. O Acórdão no MS n. 26.602, proferido meses antes pelo mesmo Tribunal, havia mencionado expressamente a adoção de uma nova postura hermenêutica. O apelo a uma norma não convencional nem expressa – um princípio – foi justificado, na ocasião, pela reiterada afirmação de que a interpretação do Direito se fazia sob um novo paradigma. A adoção posterior dos métodos

característicos

do

Positivismo

permite,

pois,

questionar:

se

o

reconhecimento da normatividade dos princípios é efetivo ou apenas retórico; e se o STF se preocupa em desenvolver uma jurisprudência coerente, não intuicionista. De qualquer maneira, é forçoso reconhecer que o Positivismo não fornece uma justificação suficiente para as decisões proferidas no âmbito do sistema de controle das eleições. Primeiro, porque todas as sentenças e acórdãos da Justiça Eleitoral têm por objeto os atores e as condutas provenientes da arena partidária. Se se aplica a tais julgados a premissa de que qualquer manifestação judiciária sobre matéria política implica o exercício de legislação judicial, obtém-se a conclusão absurda de que a jurisprudência eleitoral é só formalmente jurisdicional. Um Positivismo que, ainda assim, pretenda sustentar que as decisões cujo objeto contemple questões oriundas da competição partidária são atos materialmente legislativos contraria uma premissa essencial da doutrina da qual crê partir. Pois não há, nas convenções jurídicas vigentes – que o positivista afirma equivalerem ao Direito – elementos que sustentem a proposição de que os julgamentos dos tribunais eleitorais não são formal e substancialmente jurisdicionais. Parece difícil negar, sem recorrer a noções a priori dos poderes legislativo e jurisdicional, o que a todos é evidente: que a jurisprudência eleitoral decorre do exercício da jurisdição. Mas o apelo a noções apriorísticas, não reveladas pelas regras que constituem o Direito, constitui, ele mesmo, um desrespeito aos métodos hermenêuticos positivistas. O segundo motivo por que se defende a insuficiência do Positivismo diz respeito, aliás, à ideia que essa teoria sustenta sobre como ocorre a interpretação. Se se pensa no repertório jurídico como um conjunto de regras cujo sentido é evidente, a aplicação desses padrões pode ser mecânica ou silogística porque o

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significado que se extrai deles é incontroverso. Mas o Direito não é assim. Mesmo as convenções explícitas que compõem são objeto de controvérsia. Ademais, não é incomum constarem das decisões institucionais normativas conceitos contestados, aos quais se pode oferecer mais de uma concepção (v. seção 5). A própria CRF/88 introduz entre as disposições sobre matéria eleitoral termos que exigem dos intérpretes valorações políticas. Ao fazê-lo, autoriza que sirvam de fundamento para a prestação jurisdicional. Entendimento diverso não explicaria por que constam do § 9º do art. 14 expressões como “normalidade” e “legitimidade das eleições” (BRASIL, 1988), cujo sentido não pode ser plenamente apreendido por métodos linguísticos ou lógicos de interpretação. O fato de estarem contidas no texto de convenções jurídicas explícitas também não as permite considerar extrajurídicas. A constatação de que há normas jurídicas cujo sentido não é definido por convenções exige o abandono do Positivismo. Por isso, os autores que expressamente reconhecem a normatividade dos princípios são chamados de “póspositivistas”. Um jurista assim reconhecido, Dworkin (2007b), propõe, em oposição às três afirmações positivistas essenciais, que: os princípios fazem parte do Direito, embora não sejam produto de decisões deliberadas nem se submetam a testes de pedigree; o Direito inclui tanto princípios quanto regras; e a ausência de uma regra jurídica não implica a inexistência do Direito (v. seção 5). O novo paradigma amplia, quantitativa e qualitativamente, o conjunto de normas jurídicas disponíveis. Por isso, modifica a concepção de legitimidade exposta antes. Diferentemente do que sustenta o Positivismo, esse conceito não mais pode ser considerado idêntico ao de legalidade se esta se refere só ao repertório de regras convencionais explícitas. De um lado, ampliam-se as hipóteses em que o exercício estatal é legítimo, porque a autorização para que uma instância decida pode decorrer também de um princípio implícito; de outro, restringem-se as situações de legitimidade, pois, concorrentemente com os requisitos formalprocedimentais, passa-se a exigir do agente a observância de critérios materiais. Por se tratar de padrões que demandam avaliações acerca do que a moralidade política exige em cada caso, um julgamento que apele a eles será politicamente controverso. Uma decisão jurisdicional que os adote como fundamento será, portanto, política, mas não necessariamente político-partidária. Diferentemente dos legisladores, as autoridades no exercício da jurisdição se submetem ao princípio

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da neutralidade. Essa norma exige que os juízes se esforcem para decidir com base em parâmetros jurídicos, publicamente reconhecidos como tal. Ela desautoriza (torna ilegítimas) as decisões fundadas em metas políticas, em padrões não generalizáveis ou em concepções morais privadas, individuais ou não (v. seção 5). Nessas situações em que a decisão se politiza deliberadamente, ocorre abuso da jurisdição. Não é incorreto também falar em judicialização (desautorizada) da política, desde que se abandonem as concepções positivistas de legitimidade (pelas razões expostas anteriormente) e função legislativa e o próprio conceito de usurpação. Pois, sob uma perspectiva interna ao Direito, o que materialmente diferencia a legislação da jurisdição é o fato de a legitimidade da primeira decorrer do princípio democrático representativo e de a da segunda decorrer da neutralidade. Assim, é um erro considerar que do abuso jurisdicional possa resultar um ato materialmente legislativo. A ideia de usurpação não é bem compreendida. O desrespeito às normas que autorizam o exercício de um poder não o subordina às exigências jurídicas da função à qual aprioristicamente se assemelha. Um tribunal que não observa as condições em que se autoriza a prestação jurisdicional não legisla, apenas abusa do poder que detém. Logo, o problema da judicialização da política tem que ser enfrentado como um abuso de poder judiciário (jurisdicional ou não). Se se aplicam tais conclusões às decisões proferidas pelo STF e pelo TSE acerca da infidelidade partidária, obtêm-se resultados diversos daqueles advindos da análise positivista dos fundamentos do Acórdão no MS n. 26.602/07 (BRASIL. Supremo..., 2007). Como demonstrado anteriormente, de acordo com o Positivismo, o apelo a princípios, no caso, implicou a usurpação do poder de legislar sobre a matéria, atribuído pela CRF/88 ao Congresso Nacional. Sob a perspectiva pós-positivista, no entanto, o fato de o acórdão ter-se fundamentado em um padrão não explícito não o torna materialmente legislativo nem ilegítimo. Trata-se, antes, de uma decisão tipicamente jurisdicional e, ao menos inicialmente, autorizada. Se as acusações de judicialização da política dirigidas na ocasião contra os Tribunais decorreram da perplexidade com o uso de padrões jurídicos que não são regras expressas, há que considerar serem as críticas anacrônicas. Diante do novo paradigma hermenêutico que reconhece a normatividade dos princípios, é forçoso reconhecer a legitimidade do julgamento que apela a princípios. Todavia, reconhece-se a possibilidade de que alguns dos acusadores não

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partam da perspectiva positivista para questionar a legitimidade dos juízos eleitorais. Nesse caso, superada a dimensão mais superficial da análise, a ilegitimidade há de ser constatada quando o apelo a princípios é meramente retórico e encobre o julgamento político em sentido estrito. Se as suspeitas se referem ao ativismo, ao abuso na prestação jurisdicional, elas não são completamente infundadas. Constata-se que, apesar da divulgada inserção da comunidade jurídica brasileira no contexto pós-positivista, o modelo anterior mostra ainda uma grande influência. Já se havia percebido isso na opinião pública e na doutrina, e agora se afirma notá-lo também na jurisprudência. O que explica o fenômeno é o fato de a noção que o Positivismo sustenta de uma neutralidade inerente aos juízos ter conformado a organização estatal brasileira como um todo e destacadamente o sistema judiciário do País. A história da Justiça Eleitoral é aqui ilustrativa, pois, como exposto na seção 4, a criação e o desenvolvimento da instituição deveram-se muito ao papel naturalmente imparcial que a doutrina atribui ao julgador e à jurisdição. A análise do Acórdão no MS n. 26.602/07 (BRASIL. Supremo..., 2007) é também ilustrativa. Além do apelo a um princípio, dela não constam elementos que teóricos reconhecidamente pós-positivistas, como Dworkin, entendem necessários para justificar os juízos que os padrões de moralidade concorrente autorizam. A maioria dos ministros votantes não demonstrou por que a melhor interpretação do Direito exigia a aplicação de uma norma implícita naquela ocasião. Não enfrentou, por exemplo, os argumentos que a linguagem dos dispositivos constitucionais e a história institucional ofereciam em favor da manutenção da jurisprudência anterior (v. seção 6). Ainda assim, não se pode afirmar que, nesse aspecto, a decisão foi abusiva. É razoável supor que a mesma conclusão pudesse ser obtida por meio da adequada exposição das concepções políticas que orientaram o julgamento. Mas o caso oferece à comunidade jurídica um importante alerta: a disseminação dos ideais da perspectiva hermenêutica que pretende suplantar o Positivismo exige um esforço de sistematização maior do que aquele a que até então se assiste. O risco é que, convencidos da neutralidade empírica do cargo que ocupam e da função que exercem, os juízes não se esforcem para expor os reais fundamentos das decisões que tomam. Ao fazerem isso, estimulam a imagem de que encobrem com apelos a princípios as verdadeiras motivações. Ou seja, incentivam as críticas de judicialização abusiva da política contra eles dirigidas.

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