O PREÇO DO AMOR: IDENTIDADES FLUIDAS EM O MERCADOR DE VENEZA / The price of love: fluid identities in The Merchant of Venice

July 23, 2017 | Autor: Deborah Scheidt | Categoria: Shakespeare, The Merchant of Venice
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O PREÇO DO AMOR: IDENTIDADES FLUIDAS EM O MERCADOR DE VENEZA1

Déborah Scheidt (doutoranda) - UEPG

Resumo Propomos, neste trabalho, uma dupla percepção das identidades em O mercador de Veneza, de William Shakespeare. Uma primeira leitura revela uma caracterização de personagens típicos da fórmula cômica tradicional, em que as questões identitárias contribuem para a atmosfera de conto de fadas e o inevitável final feliz. Num segundo nível de interpretação buscam-se os detalhes mais lúgubres que se infiltram no texto e na caracterização dos personagens, procurando desestabilizar a fórmula cômica e o maniqueísmo típicos da comédia, tornando a peça um comentário bastante crítico da sociedade elisabetana.

Palavras-chave: O mercador de Veneza, identidade, fórmula literária, sátira.

O Mercador de Veneza pode admitir dois níveis de interpretação. Numa primeira leitura, provavelmente a mais favorecida por seu público original, a peça é uma história de amor amena e altamente previsível, quase que um conto de fadas, em que as nuances mais sérias podem ser ignoradas em prol do inevitável happy ending. A tendência contemporânea, no entanto, é explorar as ironias presentes na peça e a crítica implícita à sociedade elisabetana que constantemente se faz presente no texto. O caráter de contos de fada permite que O mercador de Veneza possa ser lido como uma “fórmula literária”, na terminologia de John Cawelti, que examina as fórmulas do romance, mistério e aventura. Segundo Cawelti, as fórmulas literárias permitem uma dupla perspectiva. A primeira está relacionada às “possibilidades ideais inerentes ao gênero” e como essas possibilidades podem ou não ser concretizadas. Um segundo critério para a avaliação de fórmulas literárias encontra-se na transgressão dos 1

A versão completa em inglês deste trabalho encontra-se em SCHEIDT, Déborah. “The Price of Love”: levels of interpretation in The Merchant of Venice. Scripta, Curitiba, n. 1, p. 211-230, 2003.

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padrões básicos, dentro do escopo e da limitação das fórmulas, para “conseguir uma expressão ou um efeito único” (Cawelti, 1976, p. 7, minha tradução em todas as citações deste autor). Neste trabalho examinamos O mercador de Veneza por essas duas óticas, procurando demonstrar como Shakespeare construiu sua trama de tal maneira a combinar uma fórmula literária com sua própria transgressão, tornando-a adequada a diferentes tipos de público.

1. O mercador de Veneza como fórmula literária Estruturalmente, O mercador de Veneza é a combinação de dois enredos paralelos, que se encontram no decorrer da peça. O primeiro é a trama da libra 2 de carne, decorrente da amizade entre Bassânio, jovem de origem nobre mas de poucos recursos, e Antônio, a quem Bassânio recorre para conseguir 3.000 ducados. Essa quantia será usada para cortejar a rica e bela e Pórcia, senhora de Belmonte. Como toda a fortuna de Antônio está empenhada em seus seis navios mercantes, todos ausentes, Antônio empresta o dinheiro do judeu Shylock, um conhecido agiota, que exige uma libra da carne do próprio corpo de Antônio como garantia da dívida. O segundo enredo envolve a “prova de amor” dos três pretendentes de Pórcia, que devem escolher, dentre três baús feitos de ouro, prata e chumbo, o que contém o retrato da dama. Somente o verdadeiro amor permitirá a escolha certa. Os dois enredos se unem quando Antônio, tendo perdido todos os seus navios, não consegue pagar a dívida e Shylock exige sua libra de carne. Instaura-se um processo judicial e Pórcia, disfarçada de advogado, aparece para salvar a vida do amigo de seu marido. Sua sagacidade e habilidades retóricas possibilitam o final feliz. Este breve resumo demonstra que O mercador de Veneza faz uso da fórmula literárias do romance, em primeiro plano, mas também da história de aventura, às quais Shakespeare adiciona elementos cômicos. Tudo parece convergir para o envolvimento amoroso de Bassânio e Pórcia. Cabe aqui a definição da fórmula literária romântica de Cawelti (1976, p. 41-2): “o amor triunfante e permanente, superando todos os obstáculos e dificuldades”. Traços da fórmula da história de aventura – um herói “superando obstáculos e perigos e cumprindo uma importante missão moral” (Cawelti, 2

Uma libra equivale a 0,450 kg.

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1976, p. 39) às vezes impedido pelas maquinações de uma vilão – são também incluídos por Shakespeare. É importante notarmos que as funções de herói sofrem mudanças de personagem –sem nunca, porém, desviar-se do grupo cristão – de Bassânio, que arrisca tudo por Pórcia, para Antônio, que se dispõe a dar a vida por Bassânio, para Pórcia, que finalmente proporciona a solução para o impasse. Shylock, o judeu, é a fonte de todo o mal, figurando sozinho como o vilão. Esta oposição binária se destaca em uma leitura da peça como fórmula literária: os maus (somente Shylock) são punidos, enquanto que os bons (todos os outros personagens) são recompensados. Os possíveis defeitos dos heróis ou as razões para os atos do vilão podem ser justificados, tratados como efeitos cômicos, ou meramente ignorados. Nessa leitura a linha divisória entre o bem e o mal é perfeitamente discernível. Tal visão intensifica o “sentido de segurança e ordem” (Cawelti, 1976, p. 16) para o público, especialmente numa época como a elisabetana, em que as certezas da Idade Média estavam dando lugar aos questionamentos do Renascimento. Várias oposições maniqueístas podem ser detectadas na peça, como veremos nas próximas seções.

1.1. Riqueza X amor Referências a bens materiais e amor recorrem durante toda a peça. Tanto Shylock quanto Pórcia são bastante ricos. O dinheiro, no entanto, quando um fim em si mesmo, como no caso de Shylock, torna-se incompatível com os sentimentos nobres como o amor. Esses elementos só se reconciliam quando acompanhados pela generosidade e renúncia, como no exemplo de Pórcia e Bassânio. Em troca do amor de Bassânio, Pórcia está pronta a desistir de sua fortuna. Quando ela fica sabendo da situação de Antônio, ela pretende devolver uma soma muito maior do que os 3.000 ducados que Bassânio havia emprestado: “Pay him six thousand, and deface the bond: / Double six thousand, and then treble that, / Before a friend of this description / Shall lose a hair through Bassânio‟s fault.” (III.ii.298-301)3 Além

3

Pagai-lhe seis mil e rasgai a garantia, duplicai os seis mil, triplicai-o, mas não deixeis que semelhante amigo perca um só fio de cabelo por causa de Bassânio. (Shakespeare, 1978, p. 337)

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disso, como uma boa esposa elisabetana, ela põe toda sua fortuna à disposição do marido: “Happiest of all, is that her gentle spirit / Commits itself to yours to be directed,/ As from her lord, her governor, her king. / Myself, and what is mine, to you and yours /Is now converted”. (III.ii.163-67)4 Em O mercador de Veneza, como na maioria das boas histórias de amor, o dinheiro perde sua importância em face do sentimento verdadeiro, servindo apenas como um instrumento para que esse possa se desenvolver.

1.2. Aparência X realidade As coisas não são o que aparentam em O Mercador de Veneza, como sugere o desafio dos baús proposto pelo finado pai de Pórcia, para os pretendentes da filha. A mensagem do baú de ouro - “Who chooseth me, shall gain what many men desire” (II.vii.5) – leva o Príncipe de Marrocos a crer que o que o objeto de desejo refere-se à própria Pórcia. Qual é a sua surpresa ao encontrar no baú uma caveira, sugerindo que o que muitos desejam, é, na verdade, a morte. O arrogante Príncipe de Arragon recusa o baú de ouro para não misturar-se às almas comuns, sentindo-se mais atraído pela inscrição do baú de prata: “Who chooseth me, shall get as much as he deserves”. (II.vii.7) O conteúdo do baú - uma miniatura de bobo da corte – sugere que ele mesmo é um bobo revestido de prata, ou seja, um falso nobre. Ao contrário dos outros pretendentes, a escolha da Bassânio pelo baú de chumbo, revela sua propensão para a renúncia: “Who chooseth me, must give and hazard all he hath”. (II.vii.9) Seu longo monólogo revela a oposição entre aparências e realidade ao longo de toda a peça., terminando de forma bastante esclarecedora: (…) “ thou meagre lead / Which rather threaten’st than dost promise aught, / Thy paleness moves me more than eloquence, / And here choose I, — joy be the consequence!” (III.ii.104-7)5 Esse episódio dos baús evidencia a observância da fórmula do conto de fadas. É bastante comum nessa modalidade literária o tema 4

Feliz principalmente por confiar seu dócial espírito à vossa direção para que o dirijais como seu dono, seu governador e seu rei. Minha pessoa e o que me pertence são transferidos para vós e em vossos convertidos. (Shakespeare, 1978, p. 333) 5 Porém tu, fraco chumbo, que fazes uma ameaça em lugar de uma promessa, tua palidez causa-se mais emoção do que a eloquência e eu te escolho! Que seja feliz a consequência desta escolha! (Shakespeare, 1978, p. 331)

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do pretendente que deve provar seu legítimo merecimento à mão da heroína (ex., “Branca de Neve”, “A Bela Adormecida”), ou derrotar as aparências externas (“Cinderela”, “A Bela e a Fera”).

1.3 Veneza X Belmonte Veneza é o local geograficamente localizável na peça e representa a realidade que, no entanto, se revela como a realidade da riqueza como um fim em si mesma, ou a realidade do usurário. Todos os acontecimentos ligados a Veneza denotam algum grau de negatividade: a melancolia de Antônio no início da peça, a falta de dinheiro de Bassânio, as notícias sobre o naufrágio, a perda do anel de Pórcia. Principalmente, em Veneza está a moradia de Shylock, cuja atuação profissional e vida familiar respondem por grande parte dessa negatividade. A fala de Jéssica no ato II, cena iii revela que Shylock não desempenha sua função primordial de patriarca: servir como parâmetro moral. Jéssica sente-se culpada por ter vergonha de seu próprio pai, rejeitando seu estilo de vida e sua religião. A atitude anti-social de Shylock revela-se em sua reprovação à música e ao entretenimento. O ato IV, cena iii revela o episódio mais sério da peça, o julgamento de Antônio, quando Veneza revela-se como o local onde as leis cruéis do homem são cegamente postas em prática. Por outro lado, Belmonte, como o nome já sugere (“Bela Montanha”), é o cenário fantasioso da peça, onde imperam o amor, a música, a poesia, o bom-gosto, a misericórdia, a amizade, ou seja, valores “autênticos”. A tristeza, em Veneza, é causada por falta ou cobiça por dinheiro. Em Belmonte, as preocupações são bem mais leves e a solução para os problemas já são visíveis de saída. A ansiedade de Pórcia por seus pretendentes não precisa ser levada a sério, já que os termos da competição dos baús garantem que somente se casará com seu verdadeiro amor. O “tormento” de Belmonte, paradoxalmente, é o exagero do amor, como fica evidente no diálogo entre Bassânio e Pórcia no ato III, cena ii. Também Belmonte é o cenário romântico da música e da poesia à meia-noite (ato III, cena ii, versos 42-47). Em certo momento, a negatividade de Veneza alcança Belmonte (na forma do emissário de Antônio com as notícias sobre a exigência da libra de carne) e isso ameaça

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a paz de seus habitantes. Uma solução, no entanto, logo se estabelece, quando Belmonte, personificada em Pórcia disfarçada de advogado, invade Veneza e impõe sua lei. A cena final da peça, em que todos os personagens cristãos se encontram em Belmonte para festejar sua vitória é emblemática do triunfo de Belmonte sobre Veneza.

1.4 Usura X amizade O nobre sentimento da amizade, tema recorrente na obra de Shakespeare, é o elemento que une os dois enredos da peça. É o sentimento nobre de Antônio com relação a Bassânio que o leva a submeter-se às condições desumanas de Shylock e que possibilita o capital necessário para a corte a Pórcia e o final feliz. A reciprocidade necessária à amizade aparece na forma das ações de Pórcia em favor de Antônio. Esse espírito de camaradagem entra em confronto direto com a prática da usura por parte de Shylock. O fato de que Antônio empresta dinheiro sem cobrar juros provoca em Shylock um ódio mais profundo do que as diferenças religiosas entre eles: “I hate him for he is a Christian; / But more, for that in low simplicity / He lends out money gratis and brings down/ The rate of usance here with us in Venice”. 6 (I.iii.41-4) Shylock torna-se mais e mais solitário no decorrer da peça, perdendo sua filha, seu dinheiro, seu empregado e, finalmente, toda a sua fortuna e sua liberdade de crença. Já os outros personagens são apresentados em duplas, de maneira geral, culminando na sua reunião ao final da peça. Enquanto Shylock, a despeito de sua cobiça, perde todo o tempo, os outros personagens, para os quais o dinheiro é apenas uma ferramenta para a felicidade, ganham: Pórcia descobre o verdadeiro amor, Bassânio encontra tanto o amor quanto a riqueza, Antônio recupera seus navios, Jéssica e Lorenzo herdam a fortuna de Shylock, Graciano se casa com Nerissa e o bobo Launcelot consegue um patrão mais digno.

1.5 Vingança X piedade O ponto culminante da peça na cena do julgamento reúne as forças opostas apresentadas até então – o valor superficial do dinheiro versus o valor real do amor, 6

Eu o odeio porque é cristão, muito mais ainda, porém, porque em sua vil simplicidade, empresta dinheiro grátis e faz assim baixar a taxa de usura em Veneza. (Shakespeare, 1978, p. 298)

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Veneza versus Belmonte, usura versus amizade, Shylock versos Antônio, Bassânio e Pórcia – face a face no tribunal do júri. Os três meses do empréstimo se esgotaram e Shylock exige que os termos do acordo sejam cumpridos. Shylock quer vingança contra os cristãos que o desprezam. As leis de Veneza, que já haviam permitido a oficialização do contrato, se acham agora impotentes contra a realização de tamanha crueldade. Esse impasse é resolvido por Pórcia, disfarçada de advogado. Ao explorar as limitações do contrato, ela primeiramente desafia Shylock a não derramar uma única gota de sangue juntamente com a carne, já que isso não está especificado no documento. Em segundo lugar, ela observa que Shylock deve cortar exatamente uma libra da carne de Antônio, nem mais e nem menos do que o que havia sido estipulado. Por último, ela observa que Shylock, como um estrangeiro ameaçando a vida de um cidadão veneziano, de acordo com a lei, deve ser punido com sua vida e seus bens, que devem ser divididos entre o governo e a vítima, Antônio. A piedade cristã, no entanto, faz com que Antônio interceda pela vida de Shylock e desista de sua metade da fortuna, que Shylock deve entregar para sua filha Jéssica e Lorenzo. Um último ato de misericórdia, aos olhos de um público elisabetano, seria o condicionamento do perdão à conversão do judeu ao cristianismo. Ao fazer isso, Antônio estaria duplamente salvando a vida de Shylock, impedindo tanto sua morte física como a perdição de sua alma. Alguns críticos, como Elmer Edgar Stoll, são de opinião que ao compor o personagem Shylock, Shakespeare não estaria tentando lucrar comercialmente com a antipatia dos elisabetanos por estrangeiros e, mais especificamente, judeus, mas que o dramaturgo compartilhava dessa atitude negativa. Prova disso, segundo Stoll (1986, p. 7-10), é que, de todas as histórias de libra de carne que já existiam anteriormente a Shakespeare, a penalidade de Shylock é a mais rigorosa.

2. Leituras satíricas de O mercador de Veneza A sátira, na concepção de Linda Hutcheon (1985, p. 46) envolve a presença de uma crítica “extramural” (isto é, social e moral), envolvendo mais do que preocupações estéticas e artísticas. A sátira visa a melhorar a sociedade, por meio da exposição ao

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ridículo dos vícios da humanidade. Vários detalhes se desviam e desestabilizam a fórmula romântica em O mercador de Veneza e, numa leitura satírica, os polos que apresentamos anteriormente como antagônicos acabam se aproximando e até mesmo se igualando. Diversos críticos têm observado que os heróis e os vilões da peça não são tão virtuosos ou sanguinários quando comparados uns aos outros. Uma corrente crítica tem se ocupado em encontrar justificativas para essas “falhas”, mantendo assim a heroicidade dos heróis, enquanto outra corrente alega que tais falhas são instrumentos com os quais Shakespeare, intencional, porém veladamente (receoso de ser prejudicado na venda de ingressos), ataca certas mazelas sociais. Como vimos acima, os temas da riqueza e do amor parecem estar extraordinariamente entrelaçados na peça. John Russel Brown (1968, p. 46) identifica, na obra de Shakespeare os momentos em que o dramaturgo teria escrito sobre o amor como uma espécie de uma riqueza comercializável. Um exemplo é que, em O mercador de Veneza, uma mesma palavra é usada para referir-se ao amor e ao dinheiro, como ocorre logo após Bassânio ter escolhido o baú correto, nessas falas de Pórcia: “O love,/ Be moderate; allay thy ecstasy; / In measure rein thy joy; scant this excess. / I feel too much thy blessing: make it less, / For fear I surfeit.” 7(III.ii.111-5) . Brown (1968, p. 62-3) observa que o termo excess como sinônimo de “usura” já havia sido utilizado por Antônio. Após ter encontrado o pergaminho no baú de cobre, Bassânio exclama: A gentle scroll. Fair lady, by your leave; / I come by note, to give and to receive. Brown menciona que to come by note era o equivalente, em inglês elisabetano, a apresentar uma promissória a alguém. Bassânio arriscou tudo e agora exige seu pagamento. Esse é somente um pequeno recorte do extensivo trabalho de Brown sobre o uso de terminologia comercial na peça. A interpretação de Brown (1968, p. 64), no entanto, parece caber mais na leitura da peça como fórmula, na medida em que o crítico afirma que Shakespeare faz uso do tema “riqueza do amor” como um “ideal”, que demonstra que a riqueza tende a aumentar quanto maior for a generosidade do doador em termos 7

Ó amor! Modera-te, acalma teu êxtase, contém a chuva de alegria, limita teu ardor! Sinto excessivamente tua ventura, atenua-a, a fim de que não chegue a sufocar. (Shakespeare, 1978, p. 331)

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materiais. Brown não leva em consideração o fato de que o uso indiscriminado de termos comerciais relacionados tanto à prática da usura e ao cortejo amoroso aproxima os dois processos e enfatiza o lado material do amor, no qual, como no comércio, o indivíduo é movido pelo desejo de lucro, isto é, pela intenção de receber mais do que dispendeu. Bassânio tem o lucro claramente em vista quando empresta dinheiro para cortejar Pórcia, já contando com toda a fortuna de Pórcia (que seria sua após o casamento) para pagar Antônio. Por outro lado Pórcia, tendo em vista que deveria de um modo ou de outro abrir mão de sua fortuna, escolhe o pretendente menos inconveniente e dissimuladamente, lhe auxilia na tarefa de escolher o baú correto. Note-se que não pode ser uma mera coincidência que a canção por ela escolhida para ser cantada durante o ritual da escolha do baú siga um esquema de rimas condizente com a palavra lead (cobre): bred, head, nourished. A atitude materialista de Bassânio em relação ao casamento é sugerida já nas suas primeiras falas, em que, ao descrever Pórcia para Antônio, ele menciona primeiramente sua riqueza, para depois elencar suas outras qualidades. Apesar de não podermos afirmar que Bassânio não esteja realmente apaixonado por Pórcia, fica claro que seu amor não é desinteressado . A dama tem muito mais e lhe oferecer do que ele a ela. De certo modo ele tem algo em comum com o príncipe de Marrocos, que é cegado pela ganância, e com o arrogante Arragon. Em uma produção israelense da peça em 1972 (OZ, 1980, 178-180), o mesmo ator faz o papel dos três pretendentes8, o que enfatiza seu objetivo comum, apesar de seus diferentes níveis de afeição, ou talvez de sua sagacidade, em desempenhar a tarefa. As aparências e a realidade, assim como o material e o ideal, são assim aproximadas. Também Pórcia não pratica sua pretensa generosidade tão prazenteiramente como Brown dá a entender, mas impõe sua autoridade de jovem herdeira de forma bastante contundente. Ralph Berry (1985, p. 55-56) mostra que no ato III, cena ii, quando Bassânio toma a liberdade de receber Lorenzo, Jéssica e Saléria na casa de Pórcia esta responde com um “They are entirely welcome” ao invés de um “You are 8

O mesmo ator interpretando mais de um papel era uma prática comum no teatro elisabetano.

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entirely welcome”, que seria bem mais cordial. Berry interpreta essa recepção como um aviso a Bassânio de que ele ainda não é dono da propriedade e que “seus” amigos são bem vindos, desde que não se esqueçam de que ela ainda é a proprietária. Ao final da peça, como ainda observa Berry (1985, p. 62), Pórcia consegue transformar Bassânio de intrépido pretendente em marido conformado. Prova disso seriam as diversas formas de tratamento respeitosas que Bassânio usa ao se dirigir à altiva esposa, denotando sua insegurança: „madam‟, „sweet Portia‟, „sweet lady‟, „good lady‟, „sweet Doctor‟. Desse ponto de vista é a riqueza de Pórcia e o autoritarismo que provém dessa afluência, e não o amor que ela dedica ao marido e a aos amigos dele que inspirariam a reverência (ou melhor, a apreensão) dos outros personagens. Assim, o poder do dinheiro não se faz sentir somente em Veneza, mas também na idílica Belmonte. Os dois locais são muito mais parecidos do que uma análise superficial poderia revelar. Belmonte, que aparece na leitura anterior como um espaço de amor, música e poesia também é o local de outras situações desconfortáveis. O ato V começa com poesia, fato que é tradicionalmente interpretado como uma intenção de criar um certo encantamento característico de uma noite de luar, já que os teatros elisabetanos não possuíam os recursos técnicos para criar o escuro da noite. Existem diversas referências a personagens mitológicos – Tróilo, Crescida, Tisbe, Dido, Medéia, Jasão – e todos os episódios clássicos são iniciados com “In such a night”. Para um público com pouca familiaridade com o teatro clássico, esse jogo de palavras pode soar como uma brincadeira amorosa. Porém, é somente ao final do jogo que Lorenzo e Jéssica incluemse na cena, como também revelam um final trágico. Conclui-se, assim, que o jovem casal estava, na verdade, encenando uma briga cômica: a maior parte das referências denota traição e infidelidade ao invés de amor sereno, que o tom da conversa parece denotar. Mas são os detalhes que revelam a verdadeira posição dos judeus na peça que mais confundem as distinções maniqueístas previamente apontadas. Berry (1985, p. 67) demonstra como Jéssica não é tão bem recebida em Belmonte, como seu status de nova cristã deveria sugerir. A sombra de seu “perverso pai” a segue, fazendo com que Pórcia

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a ignore e nunca lhe dirija nenhuma fala significativa, mantendo uma atitude de fria cortesia em relação a ela. Já as divergências de Shylock em relação aos personagens cristãos não são tão proeminentes quanto uma leitura superficial poderia supor. A. D. Nutall chama a atenção para a simbiose econômica entre cristãos e judeus. Na peça ambos os grupos, os judeus que praticam a agiotagem abertamente e os cristãos, cujos lucros são provenientes de investimentos de risco, são mercenários. Na verdade, nas primeiras versões conhecidas da peça aparece o título alternativo O judeu de Veneza. Os judeus teriam uma “função ética” em Veneza, fazendo o “trabalho sujo mais óbvio para o funcionamento da cidade reluzente” (Nuttall, 1986, p. 286). Os judeus precisam dos cristãos para exercer sua profissão enquanto que os cristãos, também dependentes da prática da usura, precisam que os judeus realizem essa função pecaminosa por eles. Os atos de piedade e de vingança, ainda de acordo com Nuttall (1986, p. 289), também caminham lado a lado. Quando Shylock exclama no ato IV, cena i, linhas 371-2 “you take my life / When you do take the means whereby I live”, ele se refere a “life” como “living” (modo de ganhar a vida). Assim os cristãos, ao negar a Shylock seu direito a praticar sua profissão estariam cometendo um ato de assassinato, do mesmo modo como o judeu pretendia assassinar Antônio. A conclusão de Nuttall é a de que Shakespeare propõe que a virtude é uma questão de riqueza, já que a misericórdia parece ser possível somente para os ricos, como Pórcia, que fala de piedade quando Shylock prepara-se para retirar a libra de carne de Antônio; porém assim que a tensão termina, Graciano pede em altos brados que Shylock seja enforcado. Oposta, porém ao mesmo tempo contida na leitura da peça como fórmula literária, esta interpretação é perturbadora. Park Honan (2001, p. 319-20) também vê Shylock como um personagem ambíguo, que demonstra bem mais profundidade dramática do que o vago Antônio, ou a doce porém ardilosa Pórcia. Apesar de aparecer somente em cinco cenas, Shylock domina a peça. Ao contrário da visão de Edgar Stall discutida acima, Honan é de opinião de que Shakespeare não sentia nenhum preconceito pessoal contra os judeus. De acordo com sua pesquisa biográfica, Shakespeare conhecia alguns músicos judeus da corte de Elisabete, tinha amizade por John Combe, um rico agiota e até fez negócios com outro usurário famoso, Francis Langley, cujos empreendimentos comerciais

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incluíam o Swan Tehatre. Para Homan, a atitude geral em relação à usura estava mudando na Inglaterra e várias personalidades elisabetanas estavam abertamente fazendo uso de dinheiro proveniente dessa prática – o próprio pai de Shakespeare estava emprestando dinheiro a juros para seus conterrâneos. (Honan, 2001, p. 321) Ao construir Shylock desse modo complexo, Shakespeare deixa espaço para que o personagem seja representado de diversas maneiras, como rufião, monstro cruel, sofredor digno de pena ou mesmo com figura trágica. A fórmula do conto de fadas é, assim, transgredida, já que fica difícil para o espectador/leitor assumir uma posição definitiva quanto às questões morais sendo debatidas. Para concluir, voltamos a Cawelti e ao seu postulado de que “o tratamento da fórmula literária é único quando, além do prazer inerente à estrutura convencional, ele traz um novo elemento, ou incorpora a visão pessoal do criador.” (Cawelti, 1976, p. 12) Como vimos neste trabalho, O mercador de Veneza enriquece as fórmulas tanto da história de amor quanto da comédia romântica, ao questionar as instituições sociais tradicionais do comércio, religião, amor, família e justiça, tanto na era elisabetana quanto em nossos dias.

REFERÊNCIA

BERRY, Ralph. Discomfort in The Merchant of Venice. In: Ibid, Shakespeare and the Awareness of the Audience. New York: St. Martin’s Press, 1985. BROWN, John Russel. Shakespeare and his Comedies. London: Methuen, 1968. CAWELTI, John. Adventure, Mystery and Romance:Formula Stories as Art and Popular Culture. Chicago: The University of Chicago Press, 1976. HONAN, Park. Shakespeare: Uma Vida. Tr. Sonia Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 2001. HUTCHEON, Linda. A Theory of Parody. New York: Methuen, 1985. NUTTALL, A. D. The Merchant of Venice. In: BLOOM, Harold (ed.) William Shakespeare: Comedies and Romances. New York: Chelsea House Publishers, 1986.

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OZ, Avraham. The Doubling of Parts in Shakespearean Comedy: Some Questions of Theory and Practice. In: CHARNEY, Maurice (ed.) Shakespearean Comedy. New York: New York Literary Forum. 1980. SHAKESPEARE, William. The Merchant of Venice. London: Routledge. 1994. ______. O mercador de Veneza. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Victor Civita, 1978. STALL, Elmer E. Shylock. In: BLOOM, Harold (ed.) William Shakespeare: Comedies and Romances. New York: Chelsea House Publishers, 1986.

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