O princípio da precaução e a suspensão judicial do enchimento do reservatório do Aprovietamento Hidrelétrico de Simplício / AHE de Simplício

September 26, 2017 | Autor: Ricardo Perlingeiro | Categoria: Meio Ambiente
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Nº CNJ RELATOR AGRAVANTE ADVOGADO AGRAVADO AGRAVADO ORIGEM

: 0003569-94.2012.4.02.0000 : JUIZ FEDERAL CONVOCADO RICARDO PERLINGEIRO : FURNAS CENTRAIS ELETRICAS S.A. : MARCIO SIMOES CASEMIRO DE ABREU E OUTROS : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO : VARA ÚNICA DE TRÊS RIOS (201051130004069) RELATÓRIO

Trata-se de Agravo de Instrumento interposto por FURNAS CENTRAIS ELÉTRICAS S/A. em face da r. decisão proferida nos autos da Ação Civil Pública (nº 2010.51.13.000406-9) movida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, a qual deferiu em parte a antecipação de tutela (fls. 635/638), determinando, em síntese, que não fosse realizado o enchimento do reservatório do "Aproveitamento Hidrelétrico de Simplício" (AHE de Simplício), bem como que, no prazo de 72 (setenta e duas) horas, a Agravante apresentasse o cronograma de implantação do empreendimento e o INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE - IBAMA exibisse o parecer/estudo técnico que fundamentara a expedição da Licença de Operação nº 1074/2012. Em suas razões (fls. 02/21), a Agravante sustentou a presença dos requisitos autorizadores da suspensão da decisão concessiva de tutela, uma vez que o fumus boni iuris restara configurado no cumprimento - pela Concessionária (ora Agravante) - de todas as exigências estabelecidas em virtude dos impactos ambientais eventualmente causados pelo empreendimento, além das obrigações legais necessárias à implantação do projeto. Aduziu, ainda, o risco de lesão grave e de difícil reparação proveniente do atraso no funcionamento da usina, uma vez que este fato ensejaria o descumprimento do contrato de concessão celebrado com a União Federal, que prevê a imposição de severas multas para tal hipótese. O pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso foi indeferido às fls. 1011/1017, sob o fundamento de que a presente demanda deveria se pautar no princípio da precaução, haja vista as inegáveis consequências sociais e ambientais que envolvem a matéria em apreço. Em contrarrazões (fls. 1035/1093 e 1118/1122), o Ministério Público Federal e o Estadual protestaram pelo não provimento do agravo,

alegando, em suma, que a Agravante descumpriu as condicionantes da Licença de Instalação nº 456/2007, uma vez que deixara de implantar o sistema de coleta e tratamento de esgoto. O membro do Parquet federal asseverou, ainda, que ao invés de cumprir integralmente as referidas condicionantes, Furnas Centrais Elétricas S/A. - buscou junto ao IBAMA a flexibilização das mesmas, tendo obtido a Licença de Operação nº 1074/2012, que, embora tenha estabelecido uma nova condicionante, não seria capaz de conter os danos ambientais na região. Por fim, o Ministério Público Federal - na condição de custos legis opinou pelo conhecimento e não provimento do recurso. É o relatório. Peço dia para julgamento. RICARDO PERLINGEIRO Juiz Federal Convocado VOTO O EXMO. SR. JUIZ FEDERAL CONVOCADO RICARDO PERLINGEIRO: (RELATOR) Conforme relatado, trata-se de Agravo de Instrumento interposto por FURNAS CENTRAIS ELÉTRICAS S/A., objetivando reforma da r. decisão proferida pelo Juízo da Vara Federal de Três Rios, nos autos da Ação Civil Pública movida pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual, que deferiu em parte o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, determinando que a Agravante se abstivesse de dar início ao enchimento do reservatório do "Aproveitamento Hidrelétrico de Simplício" (AHE de Simplício) e que, no prazo de 72 (setenta e duas) horas, apresentasse o cronograma de implantação do aludido empreendimento. A Agravante esclareceu, em sua defesa, que são diários os prejuízos advindos da paralisação da operação, computando-se o grande número de maquinários e mão-de-obra contratados; que o atraso no cumprimento dos prazos estabelecidos no cronograma poderá ensejar a configuração de descumprimento do contrato de concessão firmado para exploração do potencial hidráulico em questão, acarretando a aplicação de severas multas por parte da ANEEL; e que, além dos prejuízos financeiros, tal atraso também poderá acarretar impactos negativos de ordem ambiental, social e econômica, na medida em que a entrada em operação da AHE de Simplício traria benefícios à sociedade, tais como: a redução de custo no consumo de energia, o aumento da segurança no fornecimento desse

serviço, e, ainda, proteção ao meio ambiente, tendo em vista que diminuiria a dependência da geração de energia termelétrica, mais poluidora do que a hidrelétrica. Por sua vez, o Ministério Público Federal sustentou que a Licença de Instalação já previa a imprescindibilidade da implantação do sistema de tratamento e coleta de esgotos, notadamente no trecho de vazão reduzida, visando a mitigar os efeitos advindos do estresse hídrico gerado pela redução da vazão do Rio Paraíba do Sul, no trecho entre o "barramento de Anta" e o "canal de fuga do Simplício". Aduziu que, sem o cumprimento dessa condicionante, restará prejudicada a preservação do equilíbrio ambiental das áreas impactadas pelo empreendimento, invocando, para tanto, o Parecer Técnico nº 35/2012 da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão: “Entende-se que há um potencial de risco em piorar a qualidade da água no TVR, provocado pelo lançamento dos esgotos sem a completa operação do sistema de tratamento, principalmente devido aos impactos ao sistema de tratamento de água da CEDAE-RJ, podendo haver necessidade de ampliação/modificação dos processos de filtragem para controlar a turbidez e a presença de cistos e oscitos de protozoários. Sendo assim, para assegurar que não ocorram problemas na qualidade da água, o enchimento do reservatório do AHE Simplício deve ser iniciado somente após a conclusão, com a efetiva operacionalização, e compromissos celebrados entre o empreendedor e as prefeituras, de toda o sistema de esgotamento sanitário aprovado e licenciado pelo IBAMA.” Ademais, segundo o membro do Parquet federal, ao invés de dar cumprimento às condicionantes previstas na Licença de Instalação (sistema de coleta e tratamento de esgotos), a Agravante buscara - junto ao IBAMA - a aprovação de uma proposta de flexibilização, o que teria sido concretizado com a expedição da Licença de Operação nº 1074/2012, que autorizara o enchimento do reservatório, desde que respeitada a vazão mínima de 200 m³/s no TVR (trecho de vazão reduzida), o que, de modo algum, seria capaz de assegurar a preservação ambiental da área. Consignou, ainda, que a diminuição da oferta de água reduz a capacidade de diluição e depuração de poluentes no corpo d´água, sendo inevitável, portanto, uma significativa piora na qualidade da água, caso a limitação da vazão do rio seja realizada sem que se diminua a quantidade de afluentes lançados no trecho sob redução. Expôs, por fim, que o IBAMA não teria se preocupado em verificar efetivamente a implantação das medidas necessárias à minimização de

todos os impactos ambientais, dentre elas a elaboração do plano de contingência, impondo-se, pois, a atuação do Poder Judiciário, que tem o dever de garantir o direito fundamental ao meio ambiente preservado e equilibrado e o respeito à legalidade por parte da Administração Pública. Nesse contexto, a Agravante afirmou que o enchimento do reservatório do AHE de Simplício não causará danos ambientais, razão pela qual - segundo a mesma - não poderia a discordância ministerial afastar a presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos, sob pena de invasão do mérito administrativo e ofensa ao princípio da separação de poderes. Vale destacar, por oportuno, trecho da r. decisão recorrida: “Entende-se que o artigo 225 da Constituição da República consagra o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado na qualidade de bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Consagra a norma constitucional imposição ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presente e futuras gerações. O meio ambiente como valor constitucional é regido pela pr oteção pr évia, tendo- se em vista a potencial irreversibilidade dos danos ambientais mais agressivos. Vislumbra-se que uma das exigências da decisão de fls. 540/543 ainda não foi devidamente cumprida, ou seja, a apresentação por parte do segundo impetrado (IBAMA) do parecer/decisão responsável pela edição da Licença de Operação n. 1074. O Juízo, até por acesso pela internet e envio eletrônico por parte do IBAMA, tem à referida Licença de Operação, mas não ao parecer que a fundamenta. Em sede de cognição sumária, vislumbra-se o potencial de risco de elevada monta para o meio ambiente e para a população local, em especial no que diz respeito à captação de água para consumo contaminada pela ausência de funcionamento de estação de esgoto, manuseio do lixo doméstico, alteração do ecossistema etc. Essa exigência não foi satisfeita pelo peticionamento do IBAMA à fl. 1053 e à fl. 1057. À fl. 1061, o Juízo determinou que se aguardasse, por 15 dias, o relatório da vistor ia técnica implementada pelo I BAMA no empreendimento AHE de Simplício, bem como se requereu que FURNAS apresentasse cópia do cronograma (ainda não atendido formalmente pela juntada aos autos). Dessa forma, não foi devidamente cumprida a decisão de

fls. 540/543 e determinação de fl. 1061. Por outro lado, em virtude da magnitude de eventual lesão irreversível ao meio ambiente, vislumbra-se presente, também, o requisito do fumus boni iuris, razão pela qual o provimento de urgência deve ser deferido em parte para determinar que Furnas abstenha-se do início do enchimento do reservatório do AHE de Simplício e que forneça, em 72 horas, formalmente (peticionando nos autos) o cronograma de implantação do AHE de Simplício, bem como para que o I BAMA apr esente o par ecer /estudo técnico que fundamentou a expedição da Licença de Operação 1074. Em face do exposto, DEFIRO EM PARTE O PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA, nos termos do artigo 273 do Código de Processo Civil, para determinar que Furnas abstenha-se do início do enchimento do reservatório do AHE de Simplício e que forneça, em 72 horas, formalmente (peticionando nos autos) o cronograma de implantação do AHE de Simplício, bem como para que o IBAMA apresente o parecer/estudo técnico que fundamentou a expedição da Licença de Operação 1074. Fixo multa de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) pelo descumprimento dessa decisão.” Sendo assim, antes de adentrar no mérito da questão, impõe-se fazer uma breve digressão quanto aos fatos narrados no presente recurso. Vejamos. O Aproveitamento Hidrelétrico de Simplício – Queda Única, localizado no Rio Paraíba do Sul, abrange os Municípios de Três Rios e de Sapucaia, ambos no Estado do Rio de Janeiro, bem como os Municípios de Chiador e de Além Paraíba, no Estado de Minas Gerais. Tal empreendimento tem por objetivo gerar e transmitir energia elétrica, suprindo a carência de oferta de energia existente. Em meados do ano de 2005, o IBAMA apresentou uma análise do Estudo de Impacto Ambiental e o respectivo Relatório de Impacto Ambiental do AHE de Simplício, consubstanciado no Parecer nº 85/2008, que, juntamente com o Parecer Técnico nº 109/2005, embasou a concessão da Licença de Instalação do empreendimento, tendo, inicialmente, sido emitida a Licença Prévia nº 217/2005, aprovando a concepção e localização do AHE de Simplício, estabelecendo requisitos e condicionantes para a implementação do programa, dentre as quais: a necessidade da implantação de rede coletora e de tratamento de esgotos nos municípios de Sapucaia e Anta. Na sequência, em agosto de 2007, o IBAMA emitiu a Licença de

Instalação nº 456/2007, com base no Parecer Técnico nº 42/2007, autorizando a Agravante a dar início à implantação do empreendimento de acordo com os projetos aprovados e mediante o cumprimento de exigências específicas, estabelecidas visando à preservação do equilíbrio ambiental das áreas impactadas, tais como: a implantação de aterro sanitário de Sapucaia, a recuperação da área do lixão de Anta e a implantação do sistema de coleta de esgotos, especialmente, no trecho de vazão reduzida (TVR). Por último, em fevereiro do corrente ano, foi expedida pelo IBAMA a Licença de Operação nº 1074/2012, baseada no Parecer Técnico nº 21/2012, autorizando o enchimento do reservatório, sob a condicionante de que o mesmo se desse sob a vazão de 200 m³/segundo no TVR. No caso dos autos, a controvérsia reside em analisar se o enchimento do aludido reservatório, realizado sob a vazão de 200 m/s³ no TVR (trecho vazão reduzida), conforme estabelecido na Licença de Operação supramencionada, seria suficiente para resguardar o meio ambiente e evitar risco à população local, enquanto não concluída a rede de esgoto. Vale ressaltar, a propósito, que a referida Licença de Operação nº 1074/2012, impõe, para o enchimento do reservatório, até que a rede de esgoto esteja concluída, o seguinte: “2.5. A vazão remanescente (Qram) no Trecho de Vazão Reduzida (TVR) deverá ser: . Qrem ≥ 200 m³/s – durante a execução das obras de implantação do sistema de coleta de tratamento de esgoto, até que se comprove que a eficiência do sistema atingiu 80%, e que a remoção da carga gerada no TVR tenha alcançado 65%, exceto quando a vazão afluente ao reservatório de Anta foi inferior a 200 m³/s, quando toda vazão afluente ao reservatório citado deverá ser destinada ao TVR; . Qrem ≤ 110 m³/s durante a execução das obras de implantação do sistema de tratamento de esgoto, até que se comprove a remoção de 80% da carga gerada no TVR, exceto quando a vazão afluente ao reservatório de Anta foi inferior a 110 m³/s, quando toda vazão afluente ao reservatório citado deverá ser destinada ao TVR; Qrem ≥ 90 m³/s a partir do efetivo funcionamento das ETEs de Sapucaia e Anta, município de Sapucaia-RJ, e de ETE de Sapucaia de Mines, município de Chiador-MG, mediante comprovação da remoção de 80% da carga gerada pela população urbana do TVR. Parágrafo único – A população a ser considerada para a estimativa de redução da carga deverá ser aquela

obtida com base no censo IBGE de 2010. 2.6. Encaminhar boletins mensais com as vazões diárias afluentes ao reservatório de Anta, até que a vazão remanescente de 90 m³/s seja autorizada; 2.7. Todos os relatórios periódicos de cumprimento das ações previstas nos programas ambientais deverão contar uma avaliação critica dos resultados até a data da sua elaboração e ter periodicidade anual, com exceção dos Programas que apresentem especificidades.” Registre-se que ambas as partes - Recorrente e Recorridas fundamentaram suas alegações em argumentos técnicos. De um lado, a Agravante (Furnas) busca amparo ao seu suposto direito na Licença de Operação, embasada no Parecer nº 21/2012; e, de outro lado, o Ministério Público Federal embasa suas conclusões em estudos e pareceres elaborados pelo Instituto Estadual do Ambiental (INEA), pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (CREA-RJ), pelo Grupo de Apoio Técnico Especializado (GATE) do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP/RJ) e, ainda, por analista pericial da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, destacando a imprescindibilidade da conclusão da rede de esgoto para o avanço do empreendimento. As conclusões trazidas aos autos pelo Ministério Público Federal dão conta de que a vazão remanescente mínima estabelecida para o TVR (trecho de vazão reduzida) - de 200 metros cúbicos por segundo no primeiro período (em que o empreendimento estaria em operação sem a conclusão das ETEs e das redes coletoras de esgoto) - representaria redução de, aproximadamente, 65% da vazão média observada no Rio Paraíba do Sul pela Agência Nacional de Águas (ANA). Tal subtração da oferta de água diminuiria, segundo o ilustre membro do Parquet, a capacidade de diluição e depuração de poluentes no corpo d'água, o que acarretaria, inevitavelmente, a piora na qualidade da água, caso a limitação da vazão do rio viesse a ser realizada sem que fosse diminuída a quantidade de afluentes lançados no trecho sob redução, havendo risco de desenvolvimento de um quadro de eutrofização, com a possibilidade de floração de algas e bactérias nocivas à fauna e flora locais, nas águas do trecho de vazão reduzida e nos reservatórios. Já as afirmações feitas pela Agravante têm fundamento no Parecer Técnico nº 21/2012, que embasou a Licença de Operação nº 1074/2012, e que teria levado em consideração o estudo realizado pela "HICON Engenharia de Recursos Hídricos", empresa esta que concluíra, com base em resultados advindos de quatro modelagens matemáticas (realizada nos anos de 2010 e 2011), que a vazão de 200m³/s, para início do enchimento do reservatório, garantiria a manutenção da qualidade da água. Cumpre

destacar trecho do referido estudo: “Em especial, simulações indicaram que os efeitos negativos provenientes da redução da vazão no TVR, com Qmín=200m³/s, sem o tratamento das cargas (Cenário 2), não causam alterações significativas se comparadas ao panorama observado, sem influência do empreendimento. Já o tratamento de 65% das cargas, a partir do dia 15 de julho, mesmo associado a uma redução nas vazões para Qmín=90m³/s, gerou efeitos positivos para todo o estirão, com aspectos de qualidade de água melhores que os atuais”. As conclusões a que chegaram os estudos trazidos aos autos, no que tange à possibilidade de enchimento do reservatório, abordam questões específicas, tais como: (1) análise de modelagem unidimensional da qualidade da água no trecho de vazões reduzidas (fl. 951); (2) modelo de qualidade da água (fl. 977); (3) resultados da modelagem (fl. 986); (3) oxigênio dissolvido (fl. 1097); (4) coliformes termotolerantes, cistos e ocistos (fl. 1097/v); (5) monitoramento limnológico e de qualidade de água (fl. 1103/v); (6) monitoramento do mesoclemmys hogei na área do empreendimento (fl. 1105/v); (7) proliferação de cianobactérias (fl. 1112/ v); (8) aumento da sedimentação de metais pesados (fl. 1112/v.). O controle para o qual o Judiciário foi convocado a exercer, in casu, exige a análise das próprias conclusões periciais e das razões que a teriam ensejado. Resta, pois, evidenciado, que se trata de um conflito de natureza técnica. Apesar de não haver margem de apreciação pelo Administrador nas denominadas “discricionariedades técnicas”, uma vez que este, diante de uma alternativa deve obrigatoriamente adotar a melhor, o controle jurisdicional correspondente - em tese, admissível - encontra sérias dificuldades diante de controvérsias puramente científicas, haja vista que a função do juiz não deve se resumir à chancela ou escolha aleatória de um dos laudos técnicos em confronto, de modo a evitar uma inversão de papéis, em que o perito seja transformado em juiz. Em relação ao tema, Michele Taruffo enumera problemas importantes e de difícil solução quanto ao uso da prova científica, dando destaque ao da “capacidade del juez para obrar realmente como peritus peritorum en la oportunidade en que es llamado a hacer diretamente uso de conocimientos científicos en el momento de la formulación de la decisión final”. Assinala: “El recurso a la ciencia como instrumento de racionalización de los aspectos meta jurídicos del razonamiento del juez abre, por tanto, numerosas perspectivas de indudable interés, pero también da lugar a una serie muy amplia de problemas de ardua solución, que conciernen bien sea a la validez de los conocimientos científicos de los

cuales se hace uso no proceso, bien a aspectos importantísimos acerca del modo como el juez desempeña su rol y elabora sus valoraciones”. Leonardo Greco também faz referência à questão e lembra que “Dificilmente o juiz deixa de reconhecer a verdade revelada pela prova pericial, porque ele, magistrado, não é – ou não se presume ser – portador dos conhecimentos próprios do perito. Neste ponto, reside o maior risco da prova pericial, que é justamente o de transformar o perito em juiz.” Ressalta, ainda, que “a dificuldade de compreensão e de avaliação de conhecimentos muito especializados também justifica certa resistência, na Alemanha e nos Estados Unidos, ao controle jurisdicional das políticas públicas, relegadas a órgãos internos de solução de conflitos da própria Administração ou de agências reguladoras, ou consideradas questões políticas a serem decididas pelas instâncias próprias”. Segundo Ernesto Pedraz Penalva, a dificuldade com as provas periciais exige do juiz um cuidado maior com a fundamentação das decisões, de modo que não seja permitido ao juiz agir como perito, nem ao perito agir como juiz. A propósito, decidiu recentemente o Supremo Tribunal Federal Administrativo alemão (Bundesverwaltungsgericht - BVerwG): "A base del derecho fundamental a una tutela judicial efectiva (Art. 19.4 LF), el Tribunal Federal Administrativo denegó en una sentencia del 31 de marzo de 2011 la exención judicial del margen de apreciación a que se refirió el encargado de seguridad del Servicio Federal de Inteligencia de la RFA com respecto al control de la confiabilidad de un colaborador de este organismo. Destacando que "la existencia de un margen de apreciación de la Administración con una consecuente limitación de la densidad de control por los tribunales" tiene que estar fundamentada en la ley, el Tribunal de Leipzig exige además que esta ley debe "rendir cuenta a la complejidad o dínamica especial de la materia reglada". Según esta sentencia un margen de apreciación de la Administración, exento de un control judicial, no se puede justificar solo por los "hechos complejos, ya sea por las circunstancias poco claras o su variabilidad frecuente. Más bien hay que coincidir con eso que en el marco de su tarea de comprobar y valorar independientemente y legalmente los hechos relevantes para la decisión, los tribunales se topan con sus límites aun cuando recurran en la medida de lo conveniente a los conocimientos de la Admistración o cuando se

sirvan de otro modo de peritaje" (BVerwG, sentencia del 31.03.2011 - 2 A 3.09, notas 36s.). De ahí resulta que el Tribunal Federal Administrativo reconoce, incluso en el caso de una autorización legal de la Administración para ejercer un margen de apreciación, una excepción del control judicial sólo cuando un tal control de la decisión administrativa traspasaria - a pesar de una consulta juducial de la pericia de los administradores o de otras capacidades periciales - los límites de la capacidad cognitiva de los jueces". Contudo, a controvérsia técnica trazida aos autos permite extrair algumas conclusões jurídicas, quais sejam: (1) a impossibilidade de invocação da presunção de legalidade dos atos administrativos em detrimento do princípio da tutela judicial efetiva em face da Administração Pública; (2) a aplicação do princípio da precaução em matéria ambiental, em virtude da existência de laudo indicando - de modo consistente - o risco grave ao meio ambiente. Ora, a presunção de legalidade dos atos administrativos não serve de justificativa para impedir a proteção judicial de direitos subjetivos em face da Administração, sob pena de ofendermos o princípio do Estado de Direito e restaurarmos, indevidamente, o “in dubio pro adminstratione”. Por sua vez, um dos alicerces do direito ambiental, o princípio da precaução, aplica-se ao caso concreto. Segundo Patryck de Araújo Ayala, o princípio da precaução estabelece, no domínio da regulação jurídica dos riscos e da proteção jurídica do ambiente, uma autêntica proibição de non liquet, mesmo perante o conhecimento indisponível, inacessível ou inexistente: “A principal causa de justificação de medidas de proteção do meio ambiente é justamente a ausência de conhecimento adequado e o estado de dúvida sobre a situação de risco que se afigura. Desse modo, ainda que não configurada de forma conclusiva a situação de risco, ou não demonstrada de forma adequada a qualidade do risco suficiente para motivar ações justificadas a partir de dados científicos, não se pode justificar a omissão na adoção de medidas destinadas a conter a probabilidade de prejuízo potencialmente irreversível. A incerteza é o pressuposto que move a adoção das medidas precaucionais, que são justificadas exatamente a partir de situações de risco não provado ou não demonstrado de forma suficiente a partir de base científica conclusiva”.

No mesmo sentido, Édis Milaré e Joana Setzer sustentam que diante da ausência de dados disponíveis que permitam uma avaliação detalhada dos riscos envolvidos, o princípio da precaução tem sido invocado como estratégia de riscos, in verbis: “Na maioria dos casos, as medidas que nos permitem atingir um nível elevado de proteção, nomeadamente proteção da saúde humana, da fauna, flora, e até mesmo de elementos abióticos importantes, podem ser determinadas com fundamento em uma base científica suficiente. Contudo, se há motivos razoáveis para suspeitar que potenciais perigos, decorrentes de determinadas atividades podem afetar o meio ambiente ou a saúde humana, e os dados disponíveis não permitem uma avaliação detalhada dos riscos envolvidos, o princípio da precaução tem sido invocado como estratégia de gestão de riscos. Neste sentido, coloca-se que o princípio da precaução deve ser seguido por ‘todos aqueles que adotam uma decisão relacionada à atividade que se suponha possa comportar razoavelmente um perigo grave para a saúde ou para a segurança das gerações atuais e futuras, ou para o meio ambiente”. Por ele, impõe-se ao Poder Público o ‘dever de fazer prevalecer os imperativos da saúde e da segurança sobre a liberdade comercial dos Estados’, com vistas a que sejam adotados ‘todos os dispositivos que permitam, por um custo econômico e socialmente suportável, detectar e avaliar o risco e reduzi-lo a um nível aceitável’, sendo que tal dispositivo deve ser ‘proporcional à amplitude do risco e pode ser revisado a qualquer momento.’ É também possível dizer que o princípio da precaução apresenta dois pressupostos: ‘a possibilidade de que condutas humanas causem danos coletivos vinculados a situações catastróficas’ que podem afetar o conjunto de seres vivos – por uma parte – e a falta de evidência científica (incerteza) a respeito da existência do dano temido – por outra incerteza não somente na relação de causalidade entre o ato e suas consequências, mas quanto à realidade do dano, a medida do risco ou do dano". O referido princípio está concretizado no art. 225, § 1º, incisos IV e V, da CF/88 e no art. 54, § 3º, da Lei nº 9.605, de 12.2.1998. Porém, sua aplicação deve ocorrer de maneira ponderada, visando a alcançar o

equilíbrio através da adoção de medidas proporcionais e não discriminatórias. Apresenta-se, pois, como um mecanismo eficaz para evitar danos permanentes ou de difícil reparação ao meio ambiente, de modo a assegurar a preservação dos ecossistemas para as futuras gerações. Corroborando o entendimento acima esposado, confiram-se os seguintes precedentes do E. Superior Tribunal de Justiça: PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBL I CA. AT E RRO I NDUST RI AL . L I MI NAR. SUSPENSÃO DE LICENÇA PRÉVIA. PROCESSUAL CIVIL. OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. REQUISITOS DA TUTELA DE URGÊNCIA. SÚMULA 7/STJ. [...] 6. O julgador ordinário deve-se restringir ao pedido e aos elementos probatórios constantes nos autos - o que in casu foi observado -, cabendo-lhe solucionar a divergência, segundo a parêmia narra mihi factum dabo tibi ius. 7. A revogação da liminar é inviável em Recurso Especial, porquanto a verificação do risco de dano ambiental que justificou a tutela de urgência, ou mesmo de dúvida que a impõe pelo princípio da precaução, demanda, no caso concreto, reexame dos elementos fático-probatórios dos autos, o que esbarra no óbice da Súmula 7/STJ. 8. A jurisprudência do STJ admite, excepcionalmente, a concessão de Ação Civil Pública antes da oitiva do ente público, mitigando a norma contida no art. 2º da Lei 8.432/1997. 9. Agravo Regimental não provido. (AGA 201001105716, 2ª Turma, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJE 4.2.2011) – grifo nosso. DIREITO AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚLICA. CANADE-AÇÚCAR. QUEIMADAS. ART. 21, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI N. 4771/65. DANO AO MEIO AMBIENTE. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. QUEIMA DA PALHA DE CANA. EXISTÊNCIA DE REGRA EXPRESSA PROIBITIVA. EXCEÇÃO EXISTENTE SOMENTE PARA PRESERVAR PECULIARIDADES L OCAI S OU RE GI ONAI S RE L ACI ONADAS À IDENTIDADE CULTURAL. INAPLICABILIDADE ÀS ATIVIDADES AGRÍCOLAS INDUSTRIAIS. 1. O princípio da precaução, consagrado formalmente pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Rio 92 (ratificada pelo Brasil), a ausência de certezas científicas não pode ser argumento utilizado para postergar a adoção de medidas eficazes para a

proteção ambiental. Na dúvida, prevalece a defesa do meio ambiente. 2. A situação de tensão entre princípios deve ser resolvida pela ponderação, fundamentada e racional, entre os valores conflitantes. Em face dos princípios democráticos e da Separação dos Poderes, é o Poder Legislativo quem possui a primazia no processo de ponderação, de modo que o Judiciário deve intervir apenas no caso de ausência ou desproporcionalidade da opção adotada pelo legislador. [...] (REsp 1.285.463, 2ª Turma, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, DJe 6.3.2012) – grifo nosso. Dessa forma, sopesando os valores em jogo, conclui-se que diante do risco gerado pelo enchimento do reservatório ("AHE de Simplício"), com possíveis consequências ao meio ambiente e à saúde da população, sendo esses direitos indisponíveis, inalienáveis e irreversivelmente reconstruíveis, impõe-se, em uma perspectiva precautória e à luz das provas produzidas até o momento, manter a r. decisão agravada. Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO. É como voto. RICARDO PERLINGEIRO Juiz Federal Convocado E ME NT A AGRAVO DE I NS T RUME NT O. AP ROVE I T AME NT O HIDRELÉTRICO DE SIMPLÍCIO. DANO AMBIENTAL. LICENÇA DE OP E RAÇÃO. CONF L I T O DE NAT URE Z A T É CNI CA. DI S CRI CI ONARI E DADE T É CNI CA. P OS S I BI L I DADE DE CONT ROL E . P RE S E RVAÇÃO AO ME I O AMBI E NT E EQUILIBRADO. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. PONDERAÇÃO DE VALORES. 1. Trata-se de Agravo de Instrumento interposto por FURNAS CENTRAIS ELÉTRICAS S/A., objetivando reforma da decisão proferida pelo Juízo da Vara Federal de Três Rios, nos autos da Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, que deferiu em parte o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, determinando que a Agravante se abstivesse de dar início ao enchimento do reservatório do "Aproveitamento Hidrelétrico de Simplício" - AHE de Simplício. 2. O cerne da discussão reside em analisar se o enchimento do reservatório

realizado com a observância da vazão mínima, no TVR (trecho de vazão reduzida), de 200 m³/s, conforme estabelecida na Licença de Operação nº 1074/2012, seria suficiente para resguardar o meio ambiente e evitar risco à população local, enquanto não concluída a rede de esgoto. 3. Apesar de não haver margem de apreciação pelo Administrador nas denominadas “discricionariedades técnicas”, uma vez que este, diante de uma alternativa, deve obrigatoriamente adotar a melhor, o controle jurisdicional correspondente - em tese admissível - encontra sérias dificuldades diante de controvérsias puramente científicas, uma vez que a função do juiz não deve se resumir à chancela ou escolha aleatória de um dos laudos técnicos em confronto, de modo a evitar uma inversão de papéis, em que o perito seja transformado em juiz. 4. No entanto, a controvérsia trazida aos autos permite extrair algumas conclusões jurídicas, quais sejam: (1) a impossibilidade de invocação da presunção de legalidade dos atos administrativos em detrimento do princípio da tutela judicial efetiva em face da Administração Pública; (2) a aplicação do princípio da precaução em matéria ambiental, em virtude da existência de laudo consistente, com indicação de risco grave ao meio ambiente. 5. A presunção de legalidade dos atos administrativos não serve de justificativa para impedir a proteção judicial de direitos subjetivos em face da Administração, sob pena de estarmos ofendendo o princípio do Estado de Direito e restaurando, indevidamente, o “in dubio pro adminstratione”. 6. Sopesando os valores em jogo, diante do risco de degradação ambiental gerado pelo enchimento do reservatório, com possíveis consequências ao meio ambiente e à saúde da população, sendo esses direitos indisponíveis, inalienáveis e irreversivelmente reconstruíveis, impõe-se, numa perspectiva precautória e à luz das provas produzidas até o momento, manter a r. decisão agravada. 7. Agravo de Instrumento não provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide, a Quinta Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, à unanimidade, negar provimento ao Agravo de Instrumento, nos termos do voto do Relator, constante dos autos, que fica fazendo parte integrante do presente julgado. Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2012 (data do julgamento). RICARDO PERLINGEIRO Juiz Federal Convocado

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