O que a Estética tem a dizer à Ciência

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O que a Estética tem a dizer à Ciência Fazer Ciência não é buscar apenas pela ordem e definir generalizações, pois o conhecimento do mundo demanda considerar em maior proporção o caos que alimenta as assimetrias e as singularidades das coisas

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pós quatro séculos de cartesianismo, a modernidade se apaixonou pelo racionalismo cientificista e se convenceu daquilo que Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) escreveu em seu famoso livro: “o essencial é invisível aos olhos”. Porém, não deixa de ser uma curiosa ironia a anedota, segundo a qual, na tentativa de superar o materialismo pragmático de O Príncipe, de Nicolau Maquiavel (1469-1527), o idealismo dos modernos não conseguiu produzir nada melhor do que um pequeno príncipe. Obviamente, seria estultícia imaginar que o mundo é composto apenas de coisas “visíveis”, mesmo quando traduzimos visível por “sensível”. Os estoicos entendiam que o fenômeno emerge da superfície das coisas como resultado das ações entre os corpos (sensíveis), denominando-o de “incorporal”. No entanto, os incorporais não pertencem ao campo da Metafísica, pois

são elementos invisíveis da phýsis que produzem, tanto quanto são produzidos por acontecimentos entre os corpos. Os incorporais são as forças invisíveis da natureza que podem ser percebidas na medida em que se observam os efeitos de ordens naturais sobre as coisas. Não se tratam, portanto, de habitantes de um mundo suprassensível por trás do mundo realmente existente. Por isso, dizer que o essencial é invisível aos olhos beira a ingenuidade idealista, ao considerar as essências como dados de realidade, quando elas não passam de criações da Gramática. “Deve-se confessá-lo, a vida não seria possível sem toda uma engrenagem de apreciações e de aparências, e se se suprimisse o ‘mundo aparente’, com toda a indignação voltada contra ele por certos filósofos, supondo-se que isso fosse possível, nada restaria tampouco de nossa ‘verdade’. (...) O filósofo não tem razão de declarar-se

Marcos H. Camargo é mestre em Comunicação e Linguagens pela UTP, doutor em Artes Visuais pela Unicamp. Pós-Doutor pela Escola de Comunicação da UFRJ. Professor do campus de Curitiba II da Unespar, onde leciona Filosofia e Semiótica. Autor do livro Cognição estética: o complexo de Dante, Editora Annablume, São Paulo, 2013

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Apesar de a Metafísica reconhecer o estado de idiotia do mundo, ela se engana ao pensar que somos capazes de encontrar algum sentido em outro mundo

Na medida em que a Ciência se depara com o estranho movimento do mundo, a Estética funciona como um batedor em terra ignota

r­ ebelde contra a confiança cega concedida à Gramática?”.1 As linguagens da cultura, dentre elas a verbal e a Matemática, são aparências de realidade, na medida em que representam apenas partes do mundo real para o entendimento humano, por meio de ideias abstratas. A verdade dos pensadores não é mais do que uma eficiente interpretação inscrita em textos, cuja lógica tenta simular certas qualidades do real. A verdade é uma aparência de realidade. A crença em verdades universais gera a ilusão de que há um significado e um sentido próprios do real, que poderia ser capturado pelo verbo humano. Mas a humanidade de nossas interpretações não permite encontrar uma verdade neutra, única, total; somente verdades provisórias. Por outro lado, o real é sempre 1

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NIETZSCHE, 1977, pág. 55

apenas o real, sem significado nem sentido; completamente absurdo e idiota. “Esta idiotia da realidade é, aliás, um fato reconhecido desde sempre pelos metafísicos, que repetem que o ‘sentido’ do real não poderia ser encontrado aqui, mas sim em outro lugar. A dialética metafísica é fundamentalmente uma dialética do aqui e do alhures, de um aqui do qual se duvida ou que se recusa e de um alhures do qual se espera a salvação”.2 Apesar de a Metafísica reconhecer o estado de idiotia do mundo real, ela se engana ao pensar que o homem seria capaz de encontrar ou prover-lhe algum sentido, buscando-o em outro mundo. Ao homem não nos foi dado o poder de significar o mundo, mas apenas constituir sentido para nossas próprias ideias acerca do real. O mundo inteligível (o “alhures” da Metafísica) é uma duplicata fantasmagórica do real atada às linguagens lógicas, independente da idiotia do mundo concreto. Quando conseguimos por um breve momento nos afastar de nosso antropocentrismo, experimentamos uma cognição do real e de sua idiotia, por meio de nosso corpo, que desde sempre pertence ao devir3 e, de algum modo, também é idiota – na medida em que nosso próprio ego se encontra além da linguagem. Contudo, ao contrário dessa experiência estética, “os filósofos são caracterizados por seu ‘egipticismo’, visto que não manipulam senão ROSSET, 2008, pág. 54 Conceito que significa as mudanças que todas as coisas sofrem. O conceito de “vir a ser” nasceu na Grécia com o filósofo Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.), que no século VI a.C. disse que nada neste mundo é permanente, exceto a mudança e a transformação.

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‘múmias conceituais’ e impõem à vida do devir c­ategorias e i­dentidades que não são mais do que os pressupostos metafísicos da linguagem”.4 Essa disputa é antiga, e a Ciência a herdou da Filosofia. Os métodos e instrumentos científicos são meios para alcançar a verdade, que ganha existência nas linguagens da cultura, ao ser comunicada pelos pesquisadores. Essa operação de semantização (construção de sentido) dos fenômenos garante às verdades a impressão de que o homem pode, sim, tocar a realidade dos fatos, distinguindo sistematicamente a essência da aparência das coisas. “Mas antes de Parmênides, e mesmo antes de Heráclito, Xenófanes já havia negado que um homem pudesse ter uma visão clara ou um conhecimento certo sobre as coisas mais importantes, insistindo em que deveríamos nos satisfazer com conjecturas (dokos) ou o ­piniões próximas da verdade (dedoxastho). Assim, dokien invoca a noção de uma espécie de cognição tipicamente humana e tipicamente falível”.5 Na atualidade, quando finalmente entendemos que o real está em fluxo e que o conhecimento humano só pode ser histórico (narrativas de transformações), a verdade volta a ser uma opinião (doxai) válida, enquanto eficaz, embora transitória. A partir daí, a verdade científica perde exatidão e deixa de se opor à aparência. Por seu turno, a aparência (a pele das coisas) deixa de ser oposição à verdade, para ser outro modo de apreensão do real. “Sob o termo ‘aparência’, [o filósofo alemão Martin] Seel reúne as condições com as quais o mundo nos é dado e apresentado aos sentidos humanos (outra palavra que ele usa no mesmo contexto é Wahrnehmung, ‘percepção’). Como é óbvio, uma estética da aparência é uma 4 5

Jean LEFRANC, 2011, pág. 297 Charles KAHN, 2009, pág. 326

tentativa de nos devolver, à consciência e ao corpo, a coisidade do mundo. (...) Não por acaso, portanto, Seel repetidamente associa a aparência à presença – o que quer que ‘apareça’ está ‘presente’ porque se oferece aos sentidos do ser humano”.6

De princípios do século XX até hoje, equipamentos tecnocientíficos vêm detectando comportamentos da matéria que fogem às previsões de antigas teorias filosófico-científicas

Linguagem e Ciência

A Filosofia dos modernos ganhou mais racionalidade com a forma matemática de pensar a verdade, mas por outro lado, aumentou ainda mais seu grau de abstracionismo e de idealismo. Embora muito importante para a cultura humana, a Matemática não é a forma do real capturada imediatamente pelo intelecto, visto que se trata de uma linguagem de representação de ideias humanas sobre o real. Devido a axiomas e equações que independem de contexto, história ou espaço, cujas regras geram provas sempre idênticas e previsíveis, o pensamento matemático empresta uma grande sensação de confiança àquele que busca por verdades permanentes. Para extrapolar a Matemática como a própria engrenagem do mundo, basta um pequeno alento da vaidade intelectual. Porém, como qualquer linguagem, a Matemática se assemelha a um jogo, do 6

GUMBRECHT, 2010, pág. 88

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Os teóricos dos séculos XX e XXI passaram a produzir novas explicações para este mundo em imprevisíveis transformações, que se contrastam com aquele mundo pacífico, estático e perfeito, idealizado pela tradição filosófica

tipo que Ludwig Wittgenstein (1889-1951) atribuiu à Gramática. Apesar de suas regras, a Matemática permite inúmeras formas de “jogo” – cálculos aplicáveis a um sem-número de situações conhecidas, além daquelas que a criatividade possa inventar, porque as abstrações matemáticas fazem parte da cultura humana; elas são invenções do homem, como ferramenta cognitiva adaptada para lidar com o real de maneira vantajosa para nós. Portanto, a Matemática não é a revelação da essência do real, mas o nosso próprio modo antropológico de pensar e enxergar o mundo em que vivemos. A Matemática não reproduz completamente o mundo em suas equações, porque toda linguagem é mapa de um território, mas não substitui sua realidade.

Contudo, ao longo dos séculos modernos, a Matemática abandonou a cautela que os gregos se impuseram em sua relação com a realidade e se tornou a linguagem de representação da Ciência e da Filosofia, permitindo grandes avanços para a civilização humana. Mas o idealismo das formas matemáticas trouxe aos cientistas a mesma soberba dos filósofos – a caprichosa pretensão de extrapolar matematicamente o mundo, pretendendo que os fenômenos naturais correspondam universalmente às cadeias classificatórias, chegou a iludir muitos matemáticos. “Para o grego, a Matemática é a ordem da natureza, e não a ordem que o homem impõe à natureza. Fazer Matemática, para o grego, significa, então, captar tudo o que a natureza (phýsis) oferece à visão (ideîn) e não comprimir a natureza numa série de hipóteses aprioristicamente construídas pelo homem. Na Grécia, portanto, havia a Matemática, mas não o matematicismo, ou seja, a absorção da natureza num sistema conceitual abstrato e pré-constituído pelo homem, em que os elementos sensíveis e visualizáveis deixam de valer por si para adquirir uma relevância proporcional à sua tradutibilidade em entidades matemáticas não sensíveis e não visualizáveis”.7 7

GALIMBERTI, 2006, pág. 338

Uma crítica ao platonismo Gilles Deleuze (1925-1995) afirma em seu livro A lógica do sentido que “o idealismo é a doença congênita da Filosofia platônica e, com seu cortejo de ascensões e de quedas, a forma maníaco-depressiva da própria Filosofia”. O nosso senso comum é platônico, ou seja, idealista; emprestamos excessivo valor a ideias, abstrações e puras formas metafísicas, menosprezando as manifestações do mundo real em que vivemos, onde as coisas quase sempre desmentem as teorias. O mundo real depende dos desequilíbrios, assimetrias e desproporções entre os sistemas e os elementos, para

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criar o movimento que faz fluir a vida. Enquanto a Ciência só vê a ordem, mal admite que aquilo que define as leis é a desordem que tudo envolve. Para ampliar o conhecimento humano é necessário entrar em contato com mais mistérios. Por isso não devemos nos limitar só ao modo inteligente de conhecer, buscando apenas pela ordem e os sistemas. Precisamos acrescentar ao esforço de entender o mundo os modos perceptivos, experimentais e estéticos da cognição, como prática de uma pesquisa mais aberta, que considere todos os aspectos do real acessíveis à cognoscência humana.

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A desenvoltura com que a Matemática projeta cenários com seus cálculos não se refere à intimidade que ela desfruta com o real, mas se deve à sua liberdade com relação ao mundo. Os desenvolvimentos mais avançados da Matemática não se vinculam com experimentos ou fatos realmente existentes, mas a resultados extraordinários derivados de suas próprias regras. Apenas alguns desses experimentos abstratos encontram utilidade na vida prática. “[A] maioria das construções matemáticas habita um mundo abstrato, desvinculado da realidade em que vivemos. Este transplante de ideias, abstraindo formas e números da Natureza para uma melhor manipulação conceitual, explica por que a Matemática, mesmo quando aplicada ao mundo, é sempre uma aproximação da realidade, não a realidade em si”.8 A arbitrariedade dos conceitos matemáticos permite a seus usuários constituir fantásticos universos teóricos, cuja perfeição e simetria fascinam seus operadores, a ponto de fazê-los crer terem alcançado algum nicho misterioso da realidade, de onde pensam sacar frutos da mítica árvore do conhecimento que se situaria no centro do mundo dos números. “A crença em um domínio matemático habitado por verdades que a mente humana pode captar com maior ou menor eficiência – dependendo da imaginação e habilidade do indivíduo – tem todos os ingredientes de uma fantasia religiosa: um mundo imaginário, que existe em uma realidade paralela à nossa, 8

GLEISER, 2014, pág. 289

onde se ocultam verdades eternas, acessíveis apenas àqueles que, como profetas, têm a habilidade de enxergar mais longe do que os outros e que podem, então, traduzir para o deleite e sabedoria do homem comum”.9 Em consequência dessa visão idealista da Matemática, provém uma extrapolação entre verdade e beleza. Ao considerar a imagem do mundo uma projeção imperfeita da realidade, os platônicos e cartesianos buscaram elevar o conceito de belo para as alturas abstratas do pensamento, fazendo crer que a beleza “real” só pode ocorrer como uma qualidade da “verdade eterna”. Porém, o que encanta os idealistas, de fato, são as simetrias perfeitas, a pacificação eterna dos conflitos e a identificação completa do mundo ao pensamento humano. “[A] noção de que ‘a verdade é bela e a beleza é verdade’, ou seja, de que existe uma estética de beleza na Matemática que se espelha na Natureza, é falaciosa. (...) a maioria das simetrias é fruto de aproximações e todos os objetos

reais são essencialmente assimétricos, mesmo que alguns apenas de forma sutil. (...) o poder criativo da Natureza emerge principalmente das imperfeições, não de simetrias e perfeições”.10 “A Natureza precisa do desequilíbrio para criar. Benoît Mandelbrot, o inventor dos fractais, expressou isso de forma bem clara: ‘Nuvens não são esferas, montanhas não são cones, as costas dos países não são círculos, os troncos das árvores não são lisos e os relâmpagos não viajam em linha reta’. A riqueza que identificamos na Natureza não vem de isolarmos a ordem acima de tudo, mas ao contrastarmos ordem e desordem, simetria e assimetria, como aspectos complementares de nossa descrição do mundo natural. (...) O perigo (e aqui identificamos a origem da falácia platônica) é considerar as simetrias uma característica essencial da Natureza quando na verdade são ferramentas conceituais que usamos para descrever o que vemos e medimos no mundo”.11 10

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Idem, 2014, págs. 290-291

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Idem, 2014, págs. 293-294-296 Idem, 2014, págs. 293-294-296

Crer que a Matemática tem o poder de colocar o real em equações é se esquecer de que as figuras abstratas (calculáveis pela Matemática) são meras aproximações sintéticas das formas reais www.portalcienciaevida.com.br •

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As revoluções no pensamento científico e filosófico do século XX levaram à percepção de que o conhecimento nunca é final nem progressivo, mas rizomático, ganhando direções inesperadas, conforme influências históricas imprevisíveis

Apenas a ordem não explica o real. A regularidade que o cientista encontra (ou fabrica!) não é suficiente para conhecer um dado sistema, visto que tais padrões são formações sobre um fundo de desordem e caos. Enxergar apenas o padrão significa tropeçar em seus limites, além dos quais a entropia do real é soberana. A tradição científica não aborda a realidade das assimetrias. Nem todo conhecimento provém de cálculos racionais e metodológicos. A cognição experimental, pela qual o cérebro investe a maior parte de sua energia, tem grande capacidade de conhecer o mundo esteticamente. A cognição estética é a forma de conhecimento mais apta a realizar o trânsito entre as formas simbólicas da cultura (às quais pertencem a Gramática e a Matemática) e as formas assimétricas do real, permitindo ao pesquisador experimentar as relações entre a ordem e a desordem do mundo. “Considere, portanto, que a totalidade de nosso conhecimento acumulado constitua uma ilha, que eu chamo de “Ilha do Conhecimento” (...) cercada por um vasto oceano, o inexplorado Oceano do Desconhecido, onde, i­ nevitavelmente,

ocultam-se inúmeros mistérios. (...) O crescimento da Ilha do Conhecimento tem uma consequência tão surpreendente quanto essencial (...) vemos que, quando a Ilha do Conhecimento cresce, nossa ignorância também cresce, delimitada pelo perímetro da Ilha, a fronteira entre o conhecido e o desconhecido: aprender mais sobre o mundo não nos aproxima de um destino final (...) mas, sim, leva a novas perguntas e mistérios. Quanto mais sabemos, melhor entendemos a vastidão de nossa ignorância...”12 O senso comum se engana ao imaginar que há um fim (uma finalidade) para o conhecimento, alcançável pelo esforço humano, no intuito de atingir a verdade plena sobre as coisas. Ledo engano! Na medida em que a “Ilha do Conhecimento” cresce, expande seu litoral, faz aumentar o contato com o mar da ignorância. Toda vez que o conhecimento humano se amplia, entra em relação com mais mistérios a serem superados e, assim, sucessivamente, quanto mais sabemos, mais entendemos não ser possível tudo conhecer. 12

Idem, 2014, págs. 22-23

O mundo real é completamente dependente dos desequilíbrios, assimetrias, desajustes e desproporções entre os sistemas e os elementos empíricos, para criar o movimento responsável por fazer fluir a vida 60 •

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Por isso não devemos nos limitar só ao modo inteligível de conhecer, visando apenas à ordem e aos sistemas. Precisamos acrescentar ao infindável esforço de entender o mundo os modos perceptivos, experimentais e estéticos da cognição, como prática de uma pesquisa mais aberta, que considere todos os aspectos do conhecimento acessíveis à cognoscência humana. A “Ciência é uma criatura dos olhos. Surgiu como uma tecnologia para ver melhor. Esse é o sentido da palavra ‘teoria’: no grego ela quer dizer ‘contemplar’. Saber é ver”.13 Mas os filósofos e cientistas preferem enxergar somente a ordem que determina os fenômenos, evitando o convívio com as coisas. O mito da objetividade filosófica e científica persiste na crença de que o olhar crítico do pensador/cientista não implica qualquer participação pessoal no exame do objeto recortado. Contudo, qualquer recorte realizado pelo pensador/ cientista, para pesquisar uma parcela do continuum real, é resultado de uma opção antropológica e subjetiva. Graças à humanidade dos cientistas, a Ciência não realiza por si mesma suas metas universais; muito pelo contrário, a Ciência é o conjunto desarticulado das mais variadas pesquisas, aleatoriamente distribuídas segundo interesses, por vezes, muito pouco racionais e até contraditórios. Encontrar as ordens que determinam o atual e o futuro comportamento de um ambiente faz a diferença entre a vida e a morte. Por isso, a ordem sempre fascinou o homem, porque ela permite que se façam previsões. “Esse espanto perante a ordem é a primeira inspiração da Ciência. Quando o cientista enuncia uma lei ou uma teoria, ele está contando como se processa a ordem, está oferecendo um modelo da ordem”.14 13 14

ALVES, 2011, pág. 62 Idem, 2009, págs. 28-29

Modelos do real

Para a Filosofia, tanto quanto para a Ciência, as coisas são meros fatos produzidos pela atuação das leis invisíveis que regem o mundo. No entanto, só se pode tomar conhecimento da ordem invisível a partir da percepção aguçada de seus efeitos sobre as coisas visíveis (perceptíveis) que habitam a realidade sensível – o que implica uma sensibilidade educada para distinguir as simetrias, das assimetrias que se manifestam na aparência das coisas. Mas os cientistas facilmente se esquecem de que lidam tão somente com modelos explicativos das ordens, fornecidos pelas linguagens da cultura em forma de textos, enquanto o real continua a fluir indiferentemente. Prova disso são os inúmeros fracassos experimentados por aqueles que aplicam com rigor os modelos científicos diretamente sobre a realidade natural e/ou cultural. O que lhes falta considerar, para o sucesso de suas adaptações, é a leitura das assimetrias do real que abarcam toda e qualquer manifestação de caráter material, individual e singular. “[A Ciência] nos dá apenas modelos hipotéticos e provisórios. Modelos: www.portalcienciaevida.com.br •

Cartesianos e idealistas só veem a ordem e se maravilham com ela. Não entendem que aquilo que define a ordem é a desordem que tudo envolve

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A Ciência ainda persegue apenas os fundamentos das leis que causam as coisas, enquanto menospreza o testemunho sensível das coisas reais

A Ciência não deve se esquecer de duvidar de seus processos e, nesse gesto, garantir o próprio avanço, a invenção de novos métodos, novas “redes” para capturar dados ainda não observados

o que é isso? Miniatura de um original? Talvez. Um aeromodelo é uma miniatura. Como se faz para construir um aeromodelo? Antes de qualquer coisa é necessário conhecer o original. A partir do original constrói-se uma réplica, em escala reduzida. Quando dizemos que um modelo é bom? Quando, comparando-o com o original, verifica-se que ele está reproduzido, copiado, de forma precisa. Ora, isso só é possível se conheço o original”.15 Um bom modelo explicativo necessita de um conhecimento prévio da coisa sob análise. Antes de qualquer teoria é preciso experimentar o fenômeno com todos os sentidos disponíveis, fazendo-se da relação coisa-coisa (corpo humano-fenômeno real) a primeira atitude cognitiva, cuja memória 15

Idem, 2009, pág. 47

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afetiva agirá como juíza da fidelidade do modelo a ser construído pela linguagem. A Ciência busca dar sentido ao real por meio de modelos gerados a partir do que os cientistas denominam método. Mas todo método é uma rede de captura ajustada para identificar apenas a ordem previamente deduzida pela teoria antecipatória. Não há método científico que revele ordens desconhecidas ou singularidades originais, pois todos os métodos são – antes de tudo – apriorísticos e antropomórficos: o homem não pensa fora de sua humanidade. Por isso, um dos modos de auferir conhecimento é ordenar e reduzir parte do universo apreensível ao mundo conhecido por nós, através de nossas faculdades sensíveis e intelectuais. “O conhecido, o familiar, é a rede com que

nos aventuramos a pescar no mar do ignorado. Compreensivelmente – e não poderia ser de outra forma –, a gente só pesca o que cabe nessa rede (isso não quer dizer que, de vez em quando, a rede não sofra alterações)”.16 Contudo, a ordem emulada pelo modelo explicativo não provém de outra ordem anterior ou superior, mas da desordem primordial, advém do caos. A Ciência já sabe, por meio da segunda lei da termodinâmica, que os sistemas estão sempre a caminho da desordem, da entropia. A ordem, portanto, está em fluxo. Houve um tempo em que ela não existia e noutro tempo irá desaparecer. Ao desprezar as faculdades sensíveis da cognição humana, a Ciência tem produzido modelos explicativos deficientes, na medida em que se constrange à busca pela ordem, ignorando a miríade de singularidades que habita o real. Atada ao pressuposto da generalidade, a Ciência ainda persegue apenas os fundamentos das leis que causam as coisas, enquanto menospreza o testemunho sensível das coisas reais, que oferecem provas dos efeitos da ordem e do caos. Devido a essa ortodoxia, a Ciência também se prende às suas próprias idealizações, na 16

Idem, 2009, pág. 50

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CIÊNCIA E ESTÉTICA

Atualmente, a fronteira da Ciência está se movendo para além dos limites da tradicional noção de distinção e clareza, inclusive no âmbito das ciências ditas “exatas”. “O que é certo e que a atual ‘nova ciência’ está fortemente a redescobrir é a virtude do quase [grifo meu]. (...) O universo do impreciso, do indefinido, do vago ­ mostra-se 17 18

Idem, 2009, pág. 11 PINTO, 2002, pág. 14

pois rico de sedução para a mentalidade contemporânea”.19 Ao adentrar pelo mundo da vagueza, do incomensurável e da obscuridade inerentes ao fluxo do real – campo do analogon rationis da Estética –, a Ciência tem de incorporar em seus métodos e procedimentos as ferramentas da cognição sensível. A Estética, entendida como uma teoria da percepção cognoscente, dispõe das trilhas sensitivas capazes de conduzir o cientista em direção às singularidades dos corpos habitantes do fluxo do real e de suas inter-relações indefiníveis. De fato, trata-se de enxergar aquilo que era considerado não científico, como possível contribuição ao conhecimento sistemático. “A questão continua a ser, porém, como pensar esse ‘outro’ da razão científica quando o pensamento, e em especial o pensamento por meio de conceitos, é visto como uma redução do ‘outro’ ao mesmo”.20 Se a Ciência não pode prescindir de seus métodos, ela mesma não tem como julgar sua eficiência por meio de juízos internos aos mesmos métodos que pretende testar. Seria razoável submeter a razão ao tribunal da própria razão? Não seria paradoxal, bizarro até, exigir que um instrumento critique sua própria natureza e sua própria competência, fazendo o reconhecimento de seu próprio valor, força e limites? Não é a mesma Ciência que diz ser necessário um parâmetro externo a um sistema para julgá-lo de modo objetivo? Devemos buscar por esse juízo em uma instância externa à C ­ iência. 19 20

CALABRASE, 1999, pág. 171 STEUERMAN, 2003, pág. 17

Neste caso, que parâmetro estrangeiro serviria para julgar a efetividade do conhecimento científico? Obviamente, não pode ser a Filosofia geral, nem as teorias do conhecimento científico (Epistemologia), porque estas partilham parentesco íntimo com a Ciência. Certamente, a Ciência – e mesmo a Filosofia – deveria considerar a Estética como um instrumento inferencial capaz de validar seus limites, métodos, procedimentos e resultados. Somente a Ciência do singular – a Estética – pode oferecer os contornos que definem de fora as Ciências do geral.

referências

medida em que enxerga a realidade do mundo com os óculos do método que abraça. Uma dessas idealizações científicas responde pela crença de que a especialização contínua faria surgir uma orquestra de disciplinas e campos de pesquisa capazes de compor em conjunto uma sinfonia metodológica unificada e coerente. Ledo engano! – o todo não é melhor que a soma das partes. “O que ocorre, frequentemente, é que cada músico é surdo para o que os outros estão tocando. Físicos não entendem os sociólogos, que não sabem traduzir as afirmações dos biólogos, que por sua vez não compreendem a linguagem da economia, e assim por diante”.17 A visão romântica de uma Ciência ordenada e progressiva se deve a um viés idealista herdado da tradição filosófica. Por isso, é preciso que a Ciência se recomponha a partir de sua própria história. “O grande lance é a hesitância, é a dúvida. O não saber produz o saber. Em outras palavras, a Ciência se funda na pergunta, e não nas respostas”.18

ALVES, Rubens. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Edições Loyola, 2009. _____. Variações sobre o prazer [Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette]. São Paulo: Planeta, 2011. CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1999. GALIMBERTI, Umberto. Psiche e technè: o homem na idade da técnica. São Paulo, Paulus, 2006. GLEISER, Marcelo. A ilha do conhecimento: os limites da Ciência e a busca por sentido. Rio de Janeiro: Editora Record, 2014. GUMBRECHT, Hans. U. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010. KAHN, Charles. H. A arte e o pensamento de Heráclito: uma edição dos fragmentos com tradução e comentários. São Paulo: Paulus, 2004. LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Petrópolis: Vozes, 2011. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal ou o prelúdio de uma filosofia do futuro. São Paulo: Hemus, 1977. PINTO, Júlio. O ruído e outras inutilidades; ensaios de comunicação e semiótica. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2008. STEUERMAN, Emília. Os limites da razão: Habermas, Lyotard, Melanie Klein e a racionalidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2003.

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