O que a rede nos ensina sobre o pescador? (Revista Coletiva, 2010)

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O que a rede nos ensina sobre o pescador?

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O que a rede nos ensina sobre o pescador? Carlos Emanuel Sautchuk O que estamos dizendo quando caracterizamos alguém como pescador artesanal? Existem pelo menos duas maneiras de responder essa questão. A primeira delas remete a aspectos comuns às populações que se dedicam à captura de fauna em ambientes hídricos. Entre eles, estão o valor da relação entre os ambientes terrestre e aquático, a incerteza da atividade, o tipo de vinculação com o Estado e a organização política semelhante ao longo do território nacional, o uso limitado de inovações técnicas custosas e complexas, os problemas de acesso aos recursos e de seu repasse ao mercado consumidor. Pensar a partir desses aspectos comuns é fundamental para compreender os problemas das diversas populações de pescadores, contribuindo para a melhoria de sua condição de vida, inclusive junto ao Estado. Entretanto, é razoável dizer também que há muitas diferenças entre aqueles chamados de pescadores artesanais. Em diversas situações, pensar nessas particularidades é importante para não generalizar características que não correspondem, necessariamente, à realidade de todos eles. Essa é a segunda forma de compreender a expressão "pescador artesanal", ou seja, como uma indagação. Tanto é assim que alguns cientistas sociais chamam a atenção para a importância de problematizar a noção de pesca e de pescador, inclusive apontando a distinção do sentido dessas palavras para pescadores e/ou pesquisadores. Essas diferenças são evidenciadas no texto Gênero e trabalho nas sociedades pesqueiras, escrito pela antropóloga Edna Alencar em 1993, e no livro As redes do suor, de Luiz Fernando Dias Duarte, também antropólogo, publicado em 1999. A considerável produção de estudos socioantropológicos sobre a pesca no Brasil enfatiza, em diversos momentos, as particularidades de diferentes grupos de pescadores. Por exemplo, a pesquisadora Lourdes Furtado, que estudou pescadores de curral e de rede em Marudá, na costa paraense, diz o seguinte: “conquanto o mar, como objeto de trabalho, seja comum a essas categorias de pescadores (curralistas e redeiros), ele é manipulado de forma diferente em termos da tecnologia empregada e da organização do trabalho”. Nessa linha, e para ressaltar o interesse de uma análise dirigida aos processos técnicos da pesca, enfocando suas particularidades, refiro-me ao caso da Vila Sucuriju, no litoral do Amapá. Nessa vila de pouco mais de quinhentos habitantes, existem dois tipos de pescadores especializados: os laguistas, que usam canoas a remo para se movimentar numa região de lagos, visando principalmente à captura do pirarucu por meio do arpão; e os pescadores costeiros, que navegam a bordo de barcos motorizados, utilizando o espinhel de fundo (linha com centenas de anzóis) para capturar a gurijuba. Notemos, então, que há um leque de aspectos em comum: a rede de relações sociais, a história local, as formas de organização política e, inclusive, as relações econômicas, estruturadas pelo sistema de aviamento. Mas a forma de interação com o meio é bastante distinta, além dos modos de aprendizagem, das capacidades e habilidades dos pescadores, do significado dos peixes e dos petrechos de pesca, etc. Isso sem falar no modo particular de organização das famílias e de participação na vida da comunidade. Sobre isso, é interessante perceber, por exemplo, como o anzol pode ter sentidos diferentes na pesca costeira e lacustre. Se no mar ele está ligado ao espinhel, no lago ele aparece conectado à linha de mão. Essas diferenças, bastante evidentes, implicam interações técnicas muito distintas entre pescadores, artefatos, ambientes e peixes. Tanto é assim que, no mar, o pescador considera o anzol um parceiro, que captura o peixe no fundo, mas que, devido ao funcionamento do aparelho, pode “trair” o pescador, fisgando-o e levando-o para a água. Já no lago, o anzol é considerado uma extensão do braço do laguista, que o lança próximo a alguma espécie de peixe menor e mimetiza o movimento de um alimento apreciado por ele, seja um fruto ou um peixinho. Mas, além das especificidades técnicas, é importante também notar aqui como essas diferenças incidem sobre o modo dos

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pescadores considerarem a si mesmos ou, nos termos da antropologia, na concepção de pessoa destes dois grupos. Muito resumidamente, podemos dizer que, para se tornar pescador costeiro, é preciso conseguir interagir com os artefatos a bordo, fazendo de seu corpo mais um componente do sistema mecânico do barco, que age conforme o todo. Já para se dizer um laguista, é necessário acoplar os petrechos a seu próprio corpo, fazendo com que o anzol e o arpão sejam extensões de suas próprias ações. Entretanto, pode-se perguntar qual a utilidade de investigar as características da técnica e da pessoa em estudos sobre populações de pescadores? Respondo por meio de um caso exemplar, indicando como essa perspectiva pode auxiliar na compreensão de processos de inovação técnica. A partir da década de 1990, difundiu-se, no Sucuriju, a utilização de rede de espera, tanto no mar, para capturar a gurijuba, quanto no lago, visando emalhar o pirarucu. Nos dois ambientes, e sob certas condições, a rede demonstrara maior eficiência de captura. Entretanto, ela causa logo um problema de consciência para os laguistas, a tal ponto que eles mesmos a sub-utilizam e decidem, com o apoio do órgão ambiental, interditar o uso da rede de pirarucu na região. Ora, como explicar então que uma “mesma” inovação técnica, mais eficiente sob o ponto de vista econômico, chega numa vila e é adotada na pesca costeira, mas rejeitada no lago? Acredito que só podemos responder adequadamente a tal questão se pensarmos nas conexões entre técnica e pessoa. Em primeiro lugar, notemos que não se trata de uma “mesma” inovação técnica se, apesar de, fisicamente, as redes serem semelhantes, tivermos por princípio que um objeto técnico só pode ser compreendido em operação, como define o arqueólogo e antropólogo Leroi-Gourhan no livro O Gesto e a Palavra, de 1984. Sim, pois a rede no mar é fixada no leito para que, na maré enchente, a correnteza conduza por ali os cardumes, que ficarão capturados. Isso não difere muito do princípio do espinhel, usado do mesmo modo, fixo ao fundo, aguardando os peixes virem no movimento das águas para prendê-los (às vezes pelo corpo, sem que eles mordam a isca). Já a rede de lago é posicionada na água parada, vedando a passagem do pirarucu que, perseguido pelo laguista ou tendo ali seu único caminho, acaba por “enfiar a cara na rede”. Portanto, a eficiência da rede no lago implica na diminuição das chances do peixe no confronto direto com o laguista. Isso significa uma mudança radical em relação à captura com o arpão, na qual laguista e peixe fazem uma espécie de duelo, que envolve esperteza e agilidade de ambas as partes. Fica claro, então, que a operação da rede de espera é muito distinta no mar e no lago – num lugar, ela tem o mérito de “resistir à maré”; no outro, ela força o pirarucu a “se entregar”. Mas, feita essa observação, ainda é preciso explicar por que ela se torna um incômodo apenas no segundo caso. Para tanto, precisamos notar qual o papel dos dois tipos de pescadores nessas interações técnicas, que resulta nas suas qualidades e competências particulares. O pescador costeiro se considera parte do barco, junto com outros componentes (motor, linha, anzóis, embarcação, etc.). Na dinâmica intensa e de sofisticada coordenação do “serviço a bordo”, um bom pescador é aquele que tem disposição para manter a força e a agilidade diante do ritmo extenuante de trabalho, da correnteza, das ondulações, do sal, do sol, etc. Diante disso, é bem verdade que, na pescaria de rede, não é necessária a coragem para manipular os anzóis e, por isso, o uso da rede não é tão valorizado quanto “pescar de linha”. Mas, com ela, o ritmo da maré, o sal e o sol continuam sendo a tônica da existência do pescador costeiro. E seus atributos principais, resistência e disposição para o serviço, se mantêm necessários. Já no caso do lago, a rede produz uma mudança que gera grande incômodo, pois ela modifica completamente os termos da relação entre laguista e pirarucu. E a relação de igual para igual com o peixe é fundamental para a identidade desse pescador. Isso se expressa no fato de que o peixe pode, inclusive, “vencer o laguista”, enganando-o. Aliás, ele é tão esperto que, na verdade, por mais habilidoso que seja o laguista, não é ele que captura, mas o peixe é quem “se entrega”, permitindo que o arpão o alcance. Não é preciso dizer mais para entender que a rede se configura como uma “covardia”, um ato vil, que desrespeita o peixe e desmerece o laguista que a utiliza. Frente à valorização da relação de igual para igual com o animal, o uso da rede é uma espécie de trapaça, que depõe contra o prestígio do arpoador. Retomando a questão inicial, friso que as perspectivas generalizantes e particularistas a respeito dos pescadores são complementares. Tanto é assim que, no Sucuriju, todos se consideram pescadores, filiados à Colônia, com situações política, econômica e histórica semelhantes. Mas, em outro nível, há uma diferença nítida e importante entre pescadores costeiros e laguistas que não pode ser negligenciada. Busquei ilustrar essas diferenças aqui por meio do caso da inovação técnica da rede, mas há muitos outros planos de diferenciação, como o aprendizado das habilidades da pesca, as relações familiares, os significados de peixes e do ambiente, etc. Essa distinção pode ser analisada em termos das técnicas e das pessoas envolvidas em atividades diferentes e, através desse tipo de enfoque, é possível compreender aspectos fundamentais da vida dos pescadores e de sua atividade. O principal deles é que, para compreender a existência e a identidade do pescador,

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vale se perguntar pelos objetos e animais com os quais ele se relaciona. Para saber mais ALENCAR, E. 1993. Gênero e trabalho nas sociedades pesqueiras. In: Furtado, L., Leitão, W. e Mello, A. F. d. (org.). Povos das águas: realidade e perspectivas na Amazônia. Belém; MCT/CNPq/Museu Goeldi: 63-81. CHAVES, L. d. G. M. 1973. Trabalho e subsistência. Almofala: aspectos da tecnologia e das relações de produção. Rio de Janeiro; Dissertação de mestrado em Antropologia Social; Museu Nacional/UFRJ. DUARTE, L. F. D. 1999. As redes do suor: a reprodução social dos trabalhadores da pesca em Jurujuba. Niterói; EdUFF. FURTADO, L. 1987. Curralistas e redeiros de Marudá: pescadores do litoral do Pará. Belém; Museu Paraense Emílio Goeldi. LEROI-GOURHAN, A. 1984. O Gesto e a Palavra. Lisboa; Edições 70. LOUREIRO, V. R. 1985. Os parceiros do mar: natureza e conflito social na pesca da Amazônia. Belém; CNPq e Museu Paraense Emílio Goeldi. MANESCHY, C. 1993. Pêcheurs du littoral de l'Etat du Para, nord du Brésil: systèmes techniques et sociaux d'exploitation des ressources marines. TOULOUSE; Tese de doutorado em sociologia, Université de Toulouse Le Mirail. SAUTCHUK, C. E. S. 2007. O arpão e o anzol: técnica e pessoa no estuário do Amazonas (Vila Sucuriju, Amapá). Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de Brasília.

Carlos Emanuel Sautchuk Universidade de Brasília

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