O que é a Guerra? - Da Violência como Género

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O que é a Guerra?

Da violência como género

Introdução

Neste ensaio procuro distinguir qualitativamente (a) o tipo de violência ocorrente em eventos que não cabem na extensão do conceito de «guerra» e (b) o tipo distintivo de violência ocorrente em eventos que cabem na extensão do conceito

de

«guerra».

Estruturalmente,

este

ensaio

fragmenta-se em duas secções: I. Avanço uma definição operativa do conceito de «guerra», justificando o conjunto de condições postuladas para que este se aplique a determinado evento. Analiso adicionalmente as condições (2) e (4), segundo as quais, respetivamente, ser um conflito armado e instanciar um tipo distintivo de violência são caraterísticas necessárias de qualquer evento x em que x exemplifica apropriadamente um evento de «guerra»; II. Diferencio (a) violência em sentido lato de (b) violência em sentido distintivo, como estabelecido em (g), demonstrando que, se (a) e (b) diferirem em grau, (b) pode ser tomado como uma espécie de (a). Concluo defendendo que é constitutivo do conceito de «guerra» que qualquer instância de (b) apresente em relação a qualquer instância de (a) uma diferença de género e não de grau.

I

A reflexão sobre o fenómeno da guerra é decomponível na discussão (i) das propostas de definição e análise do conceito e (ii) das questões da ética de guerra. As propostas em (i) são alvo de intensa disputa. De Cícero, que definiu

«guerra» como um estado de contenção pela força, a Grotius, muitíssimo influente na teorização de (ii), até Clausewitz, apontado como o único «filósofo da guerra», o conjunto de teorias e argumentos tratados é discrepante e complexo. O uso recorrente que farei do termo «guerra» impõe esclarecimento prévio. Definições essencialistas de conceitos pretendem reduzir um conceito t, ou definiendum, a conceitos mais básicos, especificando as condições da sua aplicação. A postulação de condições separadamente necessárias e conjuntamente suficientes, ou definiens, que determinado evento tem de satisfazer para caber na extensão de t é um modo informativo de explanar o conceito definido. Ao longo deste ensaio considerarei que, para que um evento x caiba na extensão do conceito «guerra», x tem de satisfazer as seguintes condições positivas: (1) ser um conflito (2) armado, (3) intencional, (4) violento em sentido distintivo e (5) com atualidade verificável, (6) entre duas ou mais partes (7) amplamente consideradas comunidades ou organizações políticas. Abreviarei esta definição por (g). As condições (1), (3), (5), (6) e (7) são relativamente incontroversas. Não é plausível que algum caso de «guerra», i.e. um evento x que caiba na extensão de (g), não seja um caso de conflitualidade intencional que decorre num tempo t cognoscível entre, pelo menos, duas comunidades políticas com determinações ideológicas ou objetivos contrastantes. A condição (2) justifica análise adicional. Se um evento x cabe na extensão de (g), x é um caso de conflitualidade armada, o que implica que os objetos tomados por armas nesse caso sejam minimamente identificáveis e utilizados para infligir ou potenciar a inflação de danos letais num dado oponente. A noção de armamento é contextualmente determinada. Historicamente, conflitos prolongados resultam em corridas tecnológicas armamentistas com subsequente desenvolvimento das técnicas e utensílios de guerra.

Exponenciar a eficácia do armamento utilizado é sinónimo de o tornar mais letal e impremeditado. Ataques imprevisíveis supõem-se, assim, mais letais do que ataques expectáveis: aviões furtivos, silenciosos e indetetáveis a radares são, neste sentido, mais eficazes do que aviões grosseiros de fácil localização; ataques informáticos a bases de dados virtuais envolvem menor probabilidade de erro do que o envio de soldados para destruição dos dispositivos materiais que as suportam. A condição (2) de (g) parece albergar que dispositivos tecnológicos menormente identificáveis, mais acessíveis e cujos efeitos podem não ser explicitamente apontados, sejam utilizados como armas. É expectável que, a longo prazo, o caráter disposicional dos conflitos seja altamente reforçado. A condição (4) estabelece que, se um evento x cabe na extensão de (g), este instancia necessariamente um tipo distintivo de violência. É trivialmente verdadeiro que qualquer caso de (g) implica a manifestação de algum tipo de violência. Manifestações distintivas de violência são-no, primariamente, em sentido lato – incluem-se nesta categoria –. Daqui não se segue, portanto, que (b) se diferencie genericamente de (a), porque (b) cabe em (a), mas que (b) [necessariamente indexada a um caso de (g)] seja, de algum modo, distintiva em relação a todas as manifestações singulares de violência irradias de (a) [que necessariamente não são remissíveis a casos de (g)]. Não basta afirmar de um caso de (g) que indexe (b) que é violento em sentido lato. Ainda assim, afirmar de um caso deste tipo que instancia uma forma distintiva de violência é demasiadamente ambíguo. Que distintividade é esta e como é que a estrita análise de uma provável condição necessária para a aplicação do conceito de «guerra» a um evento x pode contribuir significativamente para responder à questão «o que é a guerra?»?

II

Defendo duas ordens de ideias: (1) afirmar que qualquer caso de guerra indexa algum tipo de violência não basta para tratar inteiramente o domínio da violência praticada em casos de guerra; (2) é erróneo afirmar que o que centralmente distingue um evento que cabe em (g) de um evento que não cabe em (g) é o facto de o primeiro ser, ao contrário do segundo, por definição, um conflito entre comunidades ou organizações políticas. Para adereçar (1) distingamos (a) violência em sentido lato de (b) violência em sentido distintivo, como postulado em (g). Casos de violência são, extensivamente, casos de destabilização negativa ocorrente em, pelo menos, um sujeito, remissíveis para um domínio (i) fisiológico e/ou (ii) psicológico. Teorias complexas da violência descrevem o fenómeno em domínios mais completos. Para os nossos propósitos é suficiente explorar esta dupla divisão. Um

tipo

de

destabilização

negativa

de

ordem

estritamente física é um fenómeno de natureza coerciva ou privativa, como um evento y de dor fisiológica num sujeito s, em que s considera y indesejável. Um tipo de destabilização negativa de ordem estritamente psicológica é um fenómeno atual ou potencialmente privativo que implica algum tipo de desiquilíbrio emocional, ou moral, como um fenómeno w de medo, vergonha, humilhação, etc, tácita ou expressamente ocorrente num sujeito s, em que s considera w indesejável. Todas as formas singulares de violência compreendem (i) e/ou (ii). Há algo de manifestamente distintivo entre casos que cabem em (a) e casos que indexam (b). É intuitivamente defensável que a violência-de-guerra, i.e. o tipo de violência praticada em casos que cabem na extensão de (g),

se distingue em sentido muito forte de todos os outros tipos singulares de violência. Eventos de (a) e eventos que indexam (b) podem diferir em grau ou em género. Demonstrarei que existem boas razões para acolher a segunda alternativa face à primeira. Consideremos que o caso (b1), matar a tiro 200 soldados americanos em contexto de guerra, estabelece uma diferença de grau em relação ao caso (a1), agredir domesticamente alguém a tiro. É argumentativamente adequado afirmar que (a1) é, em grau, inferior ou menormente violento que (b1). Correntemente, afirmar-seia ainda que ambos os casos satisfazem 6 das 7 condições de (g), que é o facto de que o primeiro conflito não decorre, ao contrário do segundo, entre comunidades políticas, que primariamente os distingue. Mas será esta diferença crucial? Afirmar que, entre si, a violência manifesta nestes dois casos difere em grau, implica que (b1) seja admitido como uma espécie de (a1). Concretamente, (b1) é uma espécie de (a1) se, e só se, disparar contra alguém em contexto de guerra for idêntico, ou o mesmo tipo de ato, em grau, a disparar contra alguém noutro contexto. Com efeito, matar 200 soldados americanos a tiro mais não é do que disparar contra cada um dos soldados americanos. Agredir domesticamente alguém a tiro difere de (b1) na proporção (quantidade) e contexto em que a agressão decorre, bem como, evidentemente,

no facto de que a pessoa

domesticamente agredida não é uma entidade politizada. Mas, se casos lancinantes de violência-de-guerra podem ser analisados como meras exponenciações quantitativas de formas básicas de agressão, então é despropositado afirmar que a violência caraterística de casos de (g) difere da violência de casos não-(g) em mais do que nos aspetos mecanicamente quantificáveis de um e outro casos. Esta

afirmação não vinga. É insuficiente considerarmos que um massacre de guerra estabelece em relação à morte a tiro de um dos membros de um casal em acesa discussão conjugal uma mera potenciação, ou aumento em grau, das ações singulares subjacentes às mortes registadas. Temos de conseguir diferenciar integralmente estes dois casos. Como

tal,

defendo

que

a

violência-de-guerra

caraterística de casos (b) [como (b1)] difere em género de formas amplas de violência de casos que indexam (a). Adereçar os aspetos quantificáveis da violência ocorrente num e noutro casos como fatores de alteração do grau de violência é insuficiente para tratar inteiramente este domínio. Diferenciar tipos de violência em grau é muito mais inverosímil do que afirmar que alguns deles estabelecem, entre si, diferenças de género. Situações-limite, como qualquer caso de (g), exibem padrões normativos de conduta incomuns. A normalização do ato de matar como necessidade vital de sobrevivência, a regularização das práticas agressivas e a subsunção da singularidade do indivíduo combatente ao missionarismo comunitário que materializa são caraterísticas qualitativas de regulação da ação, inverificáveis em eventos que não são casos de guerra, e portanto, próprias do género distintivo de violência praticada em eventos que o são.

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