O que é a teologia? Uma redefinição a partir da Filosofia Reformacional

Share Embed


Descrição do Produto

FACULDADES BATISTA DO PARANÁ RUAN BESSA DA SILVEIRA

O QUE É A TEOLOGIA? UMA REDEFINIÇÃO A PARTIR DA FILOSOFIA REFORMACIONAL

CURITIBA 2014

FACULDADES BATISTA DO PARANÁ Programa de Bacharelado em Teologia

O QUE É A TEOLOGIA? UMA REDEFINIÇÃO A PARTIR DA FILOSOFIA REFORMACIONAL

RUAN BESSA DA SILVEIRA

Monografia apresentada como requisito de conclusão do Curso de Bacharel em Teologia nas Faculdades Batista do Paraná.

Prof. Ms. Gleyds Silva Domingues.

Curitiba 2014

DEDICATÓRIA

Aos meus pais, José e Adriana.

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Senhor Jesus que caminhava comigo ao fim da tarde indo para faculdade e ouvia minhas orações a respeito desta monografia, pedindo que fosse para Sua glória, minha alegria nele e o bem comum.

Agradeço aos meus pais José e Adriana Bessa que investiram em mim não apenas financeiramente, mas todo seu amor e vidas. A minha esposa Anna Bessa que deixou seu lar, cultura e tudo que lhe era familiar para casarse comigo, mudar-se para o Brasil e me permitir concluir esta etapa da caminhada.

Agradeço a minha orientadora Gleyds Domingues por todo seu apoio, incansáveis correções e por ter abraçado a minha proposta de monografia.

Agradeço ao Robson Ghedini por sua amizade e por me dar oportunidades sem as quais eu não teria chego aqui. Aos amigos do EAD pelas pizzas e calorosos debates.

Agradeço ao Henrique, Martin, Jackson e Willibaldo, por me darem uma turma. Agradeço também aos amigos Christian Britto e Bruno Porreca, pois foi numa conversa informal com eles que surgiu o tema desta pesquisa.

Agradeço grandemente aos professores Renato Colleto, Daniel Strauss e John Vander Stelt que generosamente corresponderam aos meus e-mails e gentilmente cederam seus artigos sem os quais eu não poderia ter concluído esta monografia.

Por fim, agradeço aos funcionários e professores da FABAPAR, pois é o trabalho de cada um que faz cada dia de aula possível.

RESUMO

Esta monografia tem como objetivo apresentar uma redefinição da teologia a partir da filosofia reformacional. A história das teologias sugere que as diversas definições da teologia, muitas vezes radicalmente opostas entre si, apontam para pontos de partidas divergentes. A virada hermenêutica do século XX e o advento do pós-modernismo pôs em cheque a filosofia moderna, mais especificamente a versão Kantiana, que serviu de estrutura básica para como os problemas teológicos eram e ainda continuam sendo colocados em alguns círculos teológicos. Assim, busca-se articular um ponto de partida fundamentado pela confissão cristã para um redefinição da teologia. Para tal, no primeiro momento, delimita-se a natureza do problema “o que é a teologia”. Sugere-se que ele é necessariamente de ordem filosófica. No segundo momento, sugere-se a filosofia reformacional como ponto de partida filosófico para esta redefinição, justamente por, em princípio, buscar articular uma visão teórica total da realidade não-reducionista e que faça jus a confissão cristã ortodoxa. No terceiro momento, apresenta-se a definição de teologia que surge do ponto de partida filosófico assumido. Sugere-se que a teologia é distintivamente teologia não, primariamente, pelo o que ela estuda, mas pelo o como ela estuda. Assim, a teologia seria a ciência que estuda a realidade criada a partir do aspecto pístico, isto é, ela busca aprofundar o conhecimento a respeito da vida da fé. Por fim, são apresentadas algumas vantagens dessa perspectiva focando especialmente na Faculdade ou Universidade Cristã, no problema do secularismo na ciência e na organização da teologia sistemática. Palavras-Chave: Teologia - Filosofia Reformacional - Filosofia da Teologia

ABSTRACT

This monograph aims to present a redefinition of theology from a reformational philosophy perspective. The history of theology suggest that the various definitions of theology, many times radically opposed, points to divergent starting-points. The twentieth century hermeneutic turn and the advent of postmodernism contested modern philosophy, specifically Kant’s version, which has served as the basic structure for posing theological problems, in many theological circles, even until now. Therefore, the meaning of theology must be revisited. The project seeks to articulate a Christian philosophical starting-point based on the basic contours of a Christian confession in order to redefine theology. First, the nature of the problem “what is theology” is delimited. It is suggested that necessarily it is of a philosophical order. Second, reformational philosophy is suggested as starting-point to redefine theology, for in principle, it seeks to articulate a non-reductionist theoretical view of reality as well as to honor the Christian orthodox confession. Third, it is presented a definition of theology based on the reformational philosophical perspective. It is suggested the theology is distinctively theology, not primarily, for what it studies but for how it studies. Therefore, theology would be the science that studies the creation through the pistic aspect of reality, i.e., it seeks to deepen the faith-life meaning of creation. Finally, some advantages of this definition are presented focusing specially in a Christian College or University, the problem of secularism in science and the organization of systematic theology.

KEY-WORDS: Theology - Reformational Philosophy - Philosophy of Theology

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................... 8 1. A NATUREZA DO PROBLEMA ................................................................... 12 1.1. Objeções................................................................................................ 13 1.2. Quatro Modelos para Relação Filosofia-Teologia .................................. 14 1.2.1. Identificação .................................................................................... 15 1.2.2. Acomodação ou Escolasticismo ...................................................... 16 1.2.3. Oposição ......................................................................................... 18 1.2.4. Parceria ........................................................................................... 19 1.3. Objeções Revisitadas ............................................................................ 20 2. A PERSPECTIVA FILOSÓFICA................................................................... 23 2.1. Crenças religiosas e teorias da realidade .............................................. 24 2.2. Esboço de uma ontologia cristã ............................................................. 27 2.2.1. Diferença qualitativa infinita Criador-criatura................................... 28 2.2.2. Coerência última da diversidade e da unidade cósmica ................. 28 2.2.3. O caráter significante de toda a realidade criada. ........................... 29 2.2.4. Cosmonomia ................................................................................... 30 2.2.5. Os aspectos modais e a estrutura da realidade .............................. 32 2.2.6. Núcleo modal e analogias modais................................................... 33 2.3. Na direção de uma redefinição da teologia............................................ 35 3. REDEFININDO A TEOLOGIA ...................................................................... 36 3.1. Experiência pré-teórica e experiência teórica ........................................ 36 3.2. Análise de algumas definições clássicas ............................................... 37 3.2.1. Estudo de Deus ............................................................................... 38 3.2.2. Estudo da revelação bíblica ............................................................ 39 3.3. Confissão, teologia e o aspecto pístico.................................................. 41 3.4. Teologia como estudo da vida de fé ...................................................... 42 3.5. Vantagens............................................................................................. 43 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 46 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 49

8

INTRODUÇÃO Esta monografia se debruça sobre o seguinte problema: o que é a teologia? Passados aproximadamente dois mil anos de desenvolvimento teológico poderia questionar-se o porquê desta pergunta ser refeita. Afinal, possivelmente é consenso entre teólogos cristãos que a teologia é a ciência que estuda Deus e as suas relações com o mundo. Entretanto, uma análise mais atenta desta definição, aparentemente simples, apresenta uma série de dificuldades. Se a teologia é uma ciência, isto é, um conhecimento sobre algo, ela não apela necessariamente a uma ontologia? Ainda, se é necessário formar um conceito para falar de Deus, não seria a teologia necessariamente sustentada por uma ou outra perspectiva epistemológica? E como estudar Deus (assumindo que ele seja o “Deus cristão”) se ele transcende o universo criado? E qual seria a natureza das relações de Deus com o mundo? Emocional, social, ética, de fé? Por fim, essa definição não sugere que a teologia é um projeto inerentemente cristão? Em outras palavras, essa definição não falha em mapear outras direções teológicas (judaica, islâmica, budista, pagã, etc.)? O problema também pode ser apontado pelo olhar da história das teologias. A teologia se resignifica ao longo do tempo. Isto não indica justamente que pontos de partidas mais-do-que teológicos e até mesmo radicalmente opostos fundamentam diferentes posições teológicas? Uma teologia cuja norma está no “andar de cima”, no Absolutamente Outro (Barth), uma teologia von oben não é radicalmente contrária a uma teologia cuja norma está no “andar de baixo”, no profundo sentimento de dependência do homem finito para um Outro superior e infinito (Scheleimarcher), uma teologia von unten? E uma teologia vista apenas como reflexão sobre a fé em geral e que não tem nada a declarar sobre Deus (Heidegger) não estaria em conflito com a afirmação de que a teologia não pode evitar “falar sobre Deus” (Pannenberg)? Assim, qual seria a natureza desses pontos de partida, de maneira que, ora a teologia é subestimada como pseudociência, ora superestimada como a rainha de todas as ciências?

9 Assim, se pontos de partida distintos apontam para diferentes definições de teologia, qual ponto de partida deve ser abraçado? Em outras palavras, o que deve fundamentar a teologia? Estas questões parecem remeter ao antigo problema da relação entre a filosofia e a teologia, entre os prolegômenos e a teologia sistemática. Até aqui alguns problemas foram colocados. Entretanto, parece que a questão dos pontos de partida, isto é, a relação entre prolegômena e teologia sistemática, entre filosofia e teologia se repete. Por isso, a presente pesquisa se delimita a este prisma da questão por entender que ele parece funcionar como uma das engrenagens principais das quais depende uma ou outra definição da teologia. Delimitado o assunto, o objetivo geral da monografia é sugerir uma definição de teologia a partir da confissão cristã articulada pela filosofia reformacional. Por consequência, sugerir uma relação de parceria entre a teologia cristã e as outras disciplinas acadêmicas, mais especificamente dentro do contexto de uma Universidade cristã. Sugere-se também uma filosofia cristã como ponto de partida para uma teologia cristã e a reorganização da teologia sistemática a partir da cosmovisão cristã (criação-queda-redenção). Para tentar alcançar os alvos da pesquisa três perguntas são feitas numa sequência lógica e sistemática lançando mão do método bibliográfico: Primeira: qual a natureza do problema “o que é a teologia”? Segunda: de qual ponto de partida a teologia deve ser definida? Terceira: qual definição de teologia resultará do ponto de partida assumido? Sugere-se que a natureza da pergunta é de caráter filosófico e que o problema deve, então, ser respondido a partir de uma filosofia distintivamente cristã. Os principais referenciais teóricos utilizados na pesquisa são: Herman Dooyeweerd (2010 e 2012), Daniel Strauss (2009), Roy Clouser (2005), Gordan Spykman (1992), James K. A. Smith (2004) e Renato Coletto (2008 e 2012) e John Vander Stelt (1981 e 1989). O primeiro capítulo, “A Natureza do Problema”, se debruça sobre a primeira questão levantada acima. No primeiro momento tenta-se responder o porquê a tarefa de definir a teologia é de natureza filosófica. Para isso, apontase para a divergência entre as definições ao longo da história e para os limites do pensamento teológico. Este sugere apenas dois tipos de ciências: as

10 especiais, que estudam um aspecto modal da realidade e a filosofia que busca apresentar uma visão teórica total da interação entre esses aspectos. Diante dos argumentos dados passa-se a responder algumas objeções. Para tentar sugerir possíveis respostas a elas, no segundo momento, apresenta-se um breve panorama da relação entre a teologia e a filosofia. O objetivo é apontar para uma relação de parceria entre as duas disciplinas e a impossibilidade de se evitar pontos de partidas filosóficos ao se fazer teologia, restando ao teólogo, portanto, somente duas opções: deixar claro o ponto de partida filosófico pelo qual ele se orienta ou partir de maneira acrítica de uma ou outra construção filosófica da realidade. O segundo capítulo, “A Perspectiva Filosófica”, foca na segunda questão. Sugere-se que para a elaboração de uma teologia distintivamente cristã, o ponto de partida filosófico deve ser distintivamente cristão. No primeiro momento, reconhecendo que a ideia de uma filosofia cristã não é um consenso geral, sugere-se que toda construção filosófica é fundamentada num pressuposto confessional. O intuito é nivelar o terreno e apontar para a possibilidade de um filosofia distintivamente cristã. No segundo momento articulam-se alguns princípios básicos da confissão cristã elaborados dentro da cosmovisão reformacional. Estes servem para orientar e fundamentar a proposta ontológica apresentada posteriormente. No terceiro momento, apresenta-se a teoria modal de Dooyeweerd como uma ontologia, em princípio, não reducionista e que confesse a Cristo como o Archê da realidade. O intuito é sugerir que, em princípio, apenas uma filosofia cristã (transcendente) é capaz de evitar reducionismos ontológicos e epistemológicos e sendo, por isso, escolhida para redefinir a ciência teológica. O terceiro capítulo, “Redefinindo a Teologia”, se volta para a última pergunta da sequência sugerida nesta introdução. No primeiro momento, faz-se uma distinção epistemológica entre a atitude pré-teórica ou ordinária e a atitude teórica ou científica. Esses dois modos de conhecimento da realidade são considerados igualmente válidos e intimamente conectados apesar de distintos. No segundo momento, esta distinção fundamenta a análise e crítica de algumas definições clássicas da teologia. Sugere-se que elas são insuficientes ao tentar-se definir a teologia. O intuito é apontar algumas dificuldades que elas apresentam como subestimar a teologia (pseudociência) ou superestimar a

11 teologia (rainha das ciências), além de não deixar claro em como distinguir a teologia de outras disciplinas e em grande parte, falhar em mapear teologias

não-cristãs.

Como

alternativa

sugere-se

que

a

teologia

as é

distintivamente teologia não pelo o quê ela estuda, mas sim pelo como ela estuda. O terceiro momento propõem, portanto, uma redefinição da teologia como a ciência que estuda a realidade criada a partir do aspecto pístico. Por fim, baseado nos fundamentos lançados e na redefinição de teologia apresentada sugere-se um modelo alternativo para a interação entre a teologia e as outras ciências acadêmicas dentro do contexto de uma academia ou faculdade cristã e uma proposta de reorganização da teologia sistemática a partir de uma cosmovisão cristã.

12 1. A NATUREZA DO PROBLEMA Para tentar delimitar a natureza do problema “o que é a teologia”, dois caminhos complementares são apresentados, que juntos, sugerem que a questão só pode ser de ordem filosófica. O primeiro: suponha que alguém pergunte a um matemático do que se trata a sua disciplina. Imagine que ele responda que a matemática é a “ciência que estuda conceitos abstratos, como números, figuras geométricas, etc, desvelando suas propriedades e as suas relações com outros conceitos”.1 Neste momento fica claro que a resposta dada não é de natureza matemática. Ela não foi deduzida de uma equação ou teorema, ou seja, fazer matemática e falar sobre a matemática são tarefas distintas.2 O mesmo acontece com a teologia, “no momento em que alguém começa a falar sobre a teologia”, comenta Strauss, “ele já deixou a área de investigação específica dessa disciplina”.3 Ao tentar definir o que é a teologia, uma eclesiologia ou escatologia (fazer teologia) não oferecem nenhuma ajuda! Strauss aponta, então, que existem apenas dois tipos de ciências: aquelas que precisam ir para além do seu universo de discurso para justificar a sua tarefa, ou seja, as ciências especiais e aquela disciplina cuja tarefa é justamente tratar dessas questões que dizem respeito aos limites da ciências especiais, isto é, a filosofia.4 O segundo caminho é relação entre a filosofia e as ciências especiais. “Não é verdade que o conhecimento racional atesta para a objetividade e imparcialidade do pensamento teórico”?5 Se assim o é, a história das ciências especiais não evidenciaria posições conflitantes e por vezes completamente divergentes a respeito de qual seja o papel de uma determinada ciência. Isto aponta para pelo menos duas ideias: (a) que pressuposições distintas estão em operação ao se tentar definir o papel de qualquer ciência e que (b) esses pressuposições delineiam uma visão teórica total da realidade (ontologia) e de

1

AULETE, Caldas. Minidicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2009. p. 523. 2 STRAUSS, Daniel. Philosophy: Discipline of the Disciplines. Grand Rapids: Paideia Press, 2009. p. 58. 3 Ibidem. 4 Ibidem. 5 Ibid. p. 5.

13 como está realidade é conhecida (epistemologia) que funcionam como ponto de partida filosófico para o trabalho das diversas ciências. Strauss oferece uma lista de exemplos dessa dependência de pontos de partida filosóficos dentro das diversas ciências. Aqui faz-se um recorte focando na teologia por ser o interesse desta pesquisa. Teologia Dialética (Barth, Gogarten, Brunner) na sua dependência de Kierkegaard e Jaspers, Bultmann (dependente de Heidegger), teologia da esperança (Moltmann – dependente do Neo-Marxismo de Ernst Bloch), o modelo historicista de Pannenberg (dependente de Dilthey e Troeltsch), a teologia “ateísta” de Altizer e Cox (influenciada pelo neo-positivismo), correntes existencialista-hermenêuticas (Fuchs, Ebeling, Steiger), teologia da libertação (influenciada pelo Neo6 Marxismo).

Outros exemplos poderiam ser indicados. Entretanto, esses bastam para sugerir que a teologia busca um ponto de partida em alguma estrutura filosófica. Expostos esses dois caminhos, algumas objeções são levantadas e devem ser consideradas com atenção.

1.1. Objeções Um teólogo poderia dizer que é impossível um filósofo definir “o que é a teologia”, por ele não estar informado a respeito do que ocorre dentro da disciplina.7 Entretanto, esta objeção não inválida os pontos apresentados acima. Antes aponta justamente para interação entre as duas disciplinas. Strauss explica, porém, que o problema não é de ordem pessoal, isto é, se é a pessoa do teólogo ou a pessoa do filósofo que deve responder a questão.8 Em outras palavras, um professor de teologia não precisa convidar seu colega do departamento de filosofia quando fosse necessário explicar o que é a teologia para seus alunos. “O que está em jogo é um problema sistemático: qual é a natureza da resposta dada à questão? É de natureza científica especial ou filosófica”? Ou seja, é possível responder o problema de maneira puramente teológica? Os pontos apresentados acima sugerem que

6

STRAUSS, 2009, p. 7. Ibid. p. 59. 8 Ibid. p. 59. 7

14 não. Ao se tentar definir a teologia é necessário apelar para um ponto de partida filosófico que está para além da própria teologia.9 Uma segunda objeção, vindo do lado moderno, mais especificamente a neo-ortodoxia de Barth, ecoa Tertuliano (160-220): “o que Jerusalém tem a ver com Atenas?”. Como fundamentar a teologia na filosofia se seu princípio de conhecimento é a fé e o da filosofia é a razão? Uma terceira objeção, encarando a pós-modernidade como uma condição teológica10, John Milbank11 comenta que a teologia, “caso deseje pensar novamente o amor de Deus e pensar a criação como manifestação do seu amor [,..] deve evacuar-se inteiramente da filosofia, que é a metafísica”.12 Milbank discorda de Barth que a filosofia seja autônoma com relação a compromissos de fé, entretanto, ele sugere que a teologia deve fornecer suas próprias bases epistemológicas13. Na tentativa de se propor respostas possíveis para essas duas últimas objeções, uma breve exposição de como a teologia tem se relacionado com a teologia ao longo da história pode ser útil.

1.2. Quatro Modelos para Relação Filosofia-Teologia Segundo Dooyeweerd sempre houve uma desconfiança natural de muitos teólogos com relação à filosofia, pois “desde seus primórdios, [a filosofia] tem se postado como uma perigosa rival da teologia cristã”.14 Já a partir do pensador grego Parmênides, fundador da metafísica ocidental, a teorização filosófica tem-se oposto à “crença popular”. A filosofia se apresentou como o caminho da verdade, contra o caminho da doxa (opinião enganadora), que estaria atrelado às representações sensórias e as emoções. No famoso diálogo de Platão, Fedro, Sócrates diz que está destinado apenas aos filósofos abordar a raça dos deuses. Era a convicção comum de todos os

9

STRAUSS, 2009, pp. 57-58. VANHOOZER, Kevin. The Cambridge Companion to Postmodern Theology. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. pp. 21, 130, 258. 11 John Milbanck é professor de Religião, Política e Ética na Universidade de Nottingham. 12 SMITH, James K. A. Introducing Radical Orthodoxy: Mapping a Post-SecularTheology. Grand Rapids: Baker Academy, 2004. p. 155. 13 MILBANK, John. Theology and Social Theory: Beyond Secular Reason. Oxford: Blackwell Publishing, 2006, p. 1 14 DOOYEWEERD, Herman. No Crepúsculo do Pensamento: Estudos sobre a Pretensa Autonomia do Pensamento Filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010. p. 175. 10

15 pensadores gregos, crentes na possibilidade de conhecimento teológico, que a verdadeira teologia poderia apenas ser de caráter filosófico, não podendo ser fundada na fé, mas tão somente no 15 pensamento teórico.

Segundo Dooyeweerd e Spykman, pelo menos quatro modelos entre a filosofia e a teologia podem ser apontados: identificação, acomodação, oposição e parceria.

1.2.1. Identificação Neste modelo, a teologia cristã é identificada com a verdadeira filosofia. Os pais da igreja, em grande parte, defenderam que a teologia possuía seu próprio princípio de conhecimento que continha a verdade absoluta a parte da filosofia. Portanto, a teologia cristã superaria as filosofias pagãs e o “pensamento teórico não poderia alcançar a verdade, exceto se iluminado por este princípio”.16 Por conter diversos erros, a filosofia pagã não poderia ser tomada como uma ciência autônoma.17 Assim, comenta Dooyeweerd, [...] a própria teologia cristã seria a suprema ciência, a verdadeira filosofia cristã. A filosofia grega e greco-romana, no seu melhor, poderia apenas fornecer alguns serviços à sacra doctrina à medida 18 que permanecesse sua serva, sujeita ao controle da teologia.

Agostinho de Hipona (354-430) foi quem especialmente defendeu essa visão.

19

A sua rejeição da autonomia do pensamento filosófico é uma

característica apreciada e abraçada pela tradição na qual esta pesquisa se encaixa. Entretanto, como Dooyeweerd aponta, a perspectiva agostiniana sobre a relação entre a filosofia e a teologia é problemática por causa do seu uso ambíguo do termo teologia.20 Por um lado, o termo “teologia cristã” se referia ao verdadeiro conhecimento de Deus e do ser humano revelado nas Escrituras e endereçado ao coração21 do ser humano e por outro, como a 15

DOOYEWEERD, 2010, p. 176. Ibid. p. 177. 17 Ibidem. 18 Ibidem. 19 Ibidem. 20 DOOYEWEERD, 2010, p. 177. 21 Coração no pensamento de Dooyeweerd não se refere ao centro das emoções, antes a raiz religiosa unificada do ser humano e ponto de concentração de todas as suas funções 16

16 explicação teórica dos artigos da fé em confronto com as Escrituras e com as visões heréticas daquele tempo.22 Segundo Dooyeweerd, o verdadeiro conhecimento de Deus, que não é de caráter teológico, mas sim religioso, foi confundido com a teologia teórica cristã, de forma que “a gnose teológica, permeada por ideias filosóficas gregas, foi elevada acima da simples fé da congregação”.23 Dooyeweerd explica que: [...] a doutrina metafísica da finalidade última e do bem tem o controle sobre todas as demais ciências, as quais, como suas escravas, não podem contradizer suas verdades. Essa afirmação claramente se refere ao conhecimento metafísico de Deus, o qual, no segundo capítulo do primeiro livro (Metafísica de Aristóteles), foi chamado “a ciência guia e a mais estimável”. Consequentemente, a teologia 24 filosófica foi considerada a rainha de todas as ciências.

Desta forma, a teologia cristã enquanto disciplina teórica é confundida com a fé cristã e se torna uma mediadora necessária entre as pessoas e Deus. Dooyeweerd defende que toda ideia da teologia como rainha das ciências é, portanto, de origem grega25 e que essa identificação da teologia dogmática com a filosofia cristã, por um lado, e com a religião cristã, por outro, “permaneceu uma característica da tradição agostiniana no Escolasticismo”.26

1.2.2. Acomodação ou Escolasticismo Este modelo sugere que a filosofia é distinta da teologia cristã. A filosofia, partindo da razão natural é serva da teologia que parte da fé. Essa alternativa remonta a pensadores como Justino Mártir (?-165), Clemente de Alexandria (160-215) e Orígenes (185-253). Entretanto, foi Tomas de Aquino (1225-1274) quem marcou a história do pensamento com essa abordagem. Aquino acomodou a religião cristã à cosmovisão aristotélica dividindo a realidade em “dois andares”. O andar de baixo (natureza) é o espaço da razão autônoma que explica as verdades naturais. O andar de cima (graça) é o temporais, isto é, biótica, social, econômica, ética e assim por diante. De lá procede tudo o que o ser humano faz. cf. Provérbios 4.23. 22 DOOYEWEERD, 2010, p. 178. 23 Ibidem. 24 Ibidem. 25 Ibidem. 26 Ibid. p. 179.

17 espaço da fé, que explica as verdades supranaturais das escrituras. Assim, diante da insuficiência da razão humana para compreender as verdades supranaturais da doutrina sagrada, a teologia revelada seria uma ciência superior à filosofia, ad humanam salutem27 e distinta da teologia natural, baseada na razão. Dooyeweerd aponta que o problema desse modelo é que “a filosofia “acaba sendo subtraída do controle interno da palavra de Deus” e a teologia é, ora equalizada com as Escrituras e com fé cristã e ora com a doutrina da igreja”.28 Como resultado, a teologia torna-se um dogma supranatural infalível. Não é a toa que até pelo menos o século XV, a filosofia não podia contrariar as verdades teológicas cristãs. Spykman aponta para o mesmo problema: Tanto a teologia como a filosofia acabam saindo perdedoras. O Tomismo exclui a possibilidade de uma filosofia verdadeiramente cristã. Ao invés, insere a teologia natural como a substrutura da teologia supranatural. De forma que torna impossível uma prolegômena autenticamente bíblica. A teologia também perde. Espiritualizada, ela se esvai para a esfera impalpável da visão beatífica. Assim, ela se exclui de um contato significativo com a vida 29 do povo de Deus neste mundo.

Essa alternativa também marcou o período após a contrarreforma, por exemplo, no pensamento de Theodore Beza (1519-1605). Este tipo de acomodação também é conhecido como escolasticismo, o qual adentrou o período moderno e ainda é presente. Em geral, essas teologias buscam acomodar a teologia cristã a uma estrutura filosófica supostamente neutra. Em geral, tanto em suas vertentes protestantes como católicas o escolasticismo, baseou-se “nas estruturas dualistas, juntamente com as formas, categorias e conceitos da teologia escolástica medieval”.30

27

DOOYEWEERD, 2010, p. 180. Ibid. p. 181. 29 SPYKMAN, Gordon. Reformational Theology: A New Paradigm for Doing Dogmatics. Grand Rapids: B. Eerdmans Publishing Co., 1995. p. 21. 30 Ibid. pp. 23-25. 28

18 1.2.3. Oposição Neste modelo, a teologia cristã e a filosofia estão em oposição radical, sendo por natureza irreconciliáveis. Tertuliano (150-225) já esboçava esta posição na conhecida questão retórica, “o que Jerusalém tem a ver com Atenas?”. Este modelo sugere que a razão e a fé são antagônicas, isto é, dois princípios irreconciliáveis de conhecimento. Assim como o modelo anterior, esta alternativa abraça a autonomia da razão e por isso mesmo dispensa toda e qualquer filosofia para se fazer teologia. Karl Barth (1886-1968) sustentou essa perspectiva. No primeiro volume de sua Church Dogmatics, Barth comenta que na tarefa de criticar e revisar sua linguagem sobre Deus, a igreja é confrontada com o conceito de teologia.31 Ele distingue, então, pelos menos três sentidos32 para a

teologia:

(1) a

teologia

enquanto

religião

cristã (verdadeiro

conhecimento de Deus e do ser humano), enquanto (2) função do ministério eclesiástico e (3) enquanto conhecimento “científico” das verdades reveladas da fé cristã.33 Barth passa a dar atenção a este terceiro sentido de maneira especial. Segundo ele, a “teologia existe nesse sentido especial e peculiar, porque anterior e a parte dela há na igreja, linguagem sobre Deus”34 e nessa tarefa de articular essa linguagem sobre Deus a teologia é necessária, dispondo do seu próprio princípio de conhecimento e utilizando uma epistemologia teológica.35 Barth está correto ao pensar que antes mesmo de articular uma teologia cristã, a igreja já existe. Entretanto, aceitando a autonomia da razão, Barth é arrastado para o dilema de como a teologia dogmática é possível, independente de pressupostos filosóficos, se o seu instrumento de trabalho é justamente o pensamento teórico (razão).36 Dooyeweerd aponta que Barth também sofre de uma ambuiguidade no uso do termo teologia.

31

BARTH, Karl. Church Dogmatics: Volume I. Edinburg: T & T Clark, 1936. p. 2. Ibidem. 33 Ibidem. 34 Ibidem. 35 DOOYEWEERD, 2010, p. 182. 36 Ibidem. 32

19 Por um lado, ele entende por “teologia” o verdadeiro conhecimento de Deus em Jesus Cristo; por outro lado, a ciência dogmática das verdades da fé cristã reveladas nas sagradas escrituras. Mas ele não 37 distingue esses dois sentidos de forma satisfatória.

O problema dessa alternativa é que a teologia é vista como uma tarefa necessariamente cristã e como uma supra-ciência, sem ponto de contato entre a fé e a racionalidade. Por fim, essa alternativa apresenta a grande dificuldade de como se apropriar de conceitos filosóficos de maneira “puramente” formal38 para posteriormente usá-los na teologia cristã.

1.2.4. Parceria Neste modelo, a filosofia e a teologia são consideradas distintas, mas igualmente operando a partir de compromissos de fé. Assim, recusando que a filosofia seja autônoma, essa alternativa sugere que tanto uma teologia cristã como uma filosofia cristã deveriam ter como princípio de conhecimento a religião cristã. A filosofia não precisa ser uma serva da teologia e nem viceversa. Antes, as duas operam em parceira como disciplinas acadêmicas. Calvino (1509-1564), segundo Spykman foi o precursor desse modelo. Entretanto, durante o século XIX, Abraham Kuyper (1837-1920), estadista e teólogo holandês, buscando reler Calvino para os seus dias, abraçou essa perspectiva de maneira mais consistente. Segundo Spykman, na perspectiva Kuyperiana [...] a prolegômena é de fato introdutória, mas não no sentido de que alguém passe por ela e depois a deixe para trás. [A prolegômena] Não é uma subestrutura racionalmente argumentada sustentando uma superestrutura teológica qualificada pela fé. A sua função não é justificar a sistemática pelo lado de fora, mas iniciar uma explicação dela pelo lado de dentro da tradição [de fé]. A prolegômena é, portanto, integral para o resto da sistemática tomando uma resposta de fé a palavra de Deus como seu ponto de partido constante. Ela também é enraizada numa cosmovisão bíblica. Elaborada de forma mais teórica, tal cosmovisão assume a forma de uma filosofia cristã. A teologia [cristã] demanda por tal estrutura de referência teórica e é precisamente a tarefa de uma filosofia cristã oferecer tal esboço da 39 totalidade.

37

DOOYEWEERD, 2010, p. 183. Ibidem. 39 SPYKMAN, 1995, pp. 38-39. 38

20 Posteriormente, Herman Dooyeweerd (1894-1977), jurista e filósofo holandês e seu cunhado Dirk Hendrik Theodoor Vollenhoven (1892-1978) expandiram o legado de Kuyper. Esse modelo abre caminho para que tanto a filosofia cristã como a teologia cristã tenha o seu espaço e trabalhem em parceira. Esse modelo tem a vantagem de dar conta das teologias não-cristãs, reconhecendo que os pontos partidas filosófico não são religiosamente neutros, mas dependem de um compromisso de fé que funciona como base de sustento.

1.3. Objeções Revisitadas Após esse breve esboço dos modelos básicos para se relacionar a teologia e a filosofia sugere-se que apenas duas opções são viáveis: aceitar a autonomia do pensamento filosófico ou rejeitá-la. Caso aceita, pode-se opor a teologia à filosofia ou subordinar a filosofia à teologia. Caso a autonomia da filosofia seja rejeitada, pode-se identificar a teologia com a filosofia ou distinguilas e apontar uma parceria entre as duas. Na segunda objeção, questionou-se que “Jerusalém não tem relação com Atenas”. Viu-se que, em geral, essa perspectiva está fundamentada na autonomia do pensamento filosófico. Portanto, caso seja possível por em xeque a auto-suficiência do pensamento filosófico essa objeção é, em princípio, respondida. Conforme Strauss, como dito no início desse capítulo,

se o

conhecimento filosófico fosse objetivo e imparcial, a história das ciências especiais não apontaria para posições conflitantes e por vezes completamente divergentes a respeito de qual seja o papel de uma determinada ciência.40 Dooyeweerd aponta para o mesmo problema, ao comentar que falta a essa alegada autonomia da razão, “que é considerada base comum da filosofia grega antiga, do escolasticismo tomista e da filosofia secular moderna, aquela unidade de sentido necessária para ser um fundamento comum”.41 Segundo o autor,

40 41

STRAUSS, 2009, p. 5. DOOYEWEERD, 2010, p. 49.

21 [...] tão logo buscamos penetrar à raiz dessas concepções [de autonomia] fundamentalmente distintas, somos confrontados com uma diferença fundamental de pressuposições que ultrapassa os 42 limites do pensamento teórico.

Além disso, a própria filosofia vem reconhecendo que outros compromissos mais-do-que racionais desempenham um papel importante na percepção filosófica da realidade que alguém sustenta.43 Apenas para citar alguns exemplos, o momento histórico-cultural (Wilhelm Dilthey), a economia (Karl Marx), o inconsciente (Sigmund Freud), a vontade de poder (Friedrich Nietzsche), a linguagem (Jean-François Lyotard), paradigmas (Thomas Kuhn) e a crença religiosa (Roy Clouser). Obviamente, apenas uma inquirição mais profunda na estrutura do pensamento filosófico poderia dar uma resposta adequada para essa objeção. Entretanto, ao apontar-se para esses autores, que de uma ou outra maneira executaram tal tarefa, já parece suficiente para pelo menos problematizar a autonomia do pensamento filosófico. Na terceira objeção, John Milbank recusa a autonomia do pensamento filosófico, entretanto, de maneira interessante, ele ainda sim igualmente recusa o ponto de partida filosófico da teologia. Assim, para tentar responder a sua objeção de que a teologia deve prover seus próprios fundamentos, faz-se necessário uma breve exposição do pensamento de Milbank, com intuito de entender a sua rejeição da filosofia como prolegômena44 da teologia. Na introdução de sua obra Theology and Social Theory45, Milbank afirma que seu intuito é “superar o pathos da teologia moderna”, buscando “restaurar em

termos

pós-modernos,

a

possibilidade

da

teologia

como

um

metadiscurso”.46 Em resumo, o autor busca apontar os compromissos profundamente religiosos que embasam as ciências sociais supostamente seculares e fazendo isto, apontar que as reivindicações ao conhecimento (nos seus diversos modos) são na verdade confessionais ao invés de neutros,

42

DOOYEWEERD, 2010, p. 49. Ibid. p. 48. 44 Prolegômena significa literalmente “aquilo que deve ser dito antes”. Assim, a prolegômena na teologia cristã, diz respeito ao que seria o candidato ideal para fundamentá-la. 45 Teologia e Teoria Social. 46 MILBANK, John. Theology and Social Theory: Beyond Secular Reason. Oxford: Blackwell Publishing, 2006, p. 1. 43

22 buscando, por fim, prover explicações, tanto sociais, como de outros modos de ser no mundo, distintivamente cristãs.47 Milbank, então, sugere que: [...] a teologia frequentemente tem procurado emprestar a partir de outro lugar uma descrição fundamental da sociedade ou da história e depois verificar quais insights teológicos vão ser coerentes com ela. Mas mostrou-se que tal descrição fundamental, no sentido de algo neutro, racional e universal, simplesmente não existe. É a própria teologia que terá que fornecer por conta própria, as causas finais que agem na história humana, com base na sua fé particular e 48 historicamente específica.

Milbank está certo em afirmar que o pensamento filosófico não é autônomo e que os métodos correlacionistas (Paul Tilich, por exemplo) são ingênuos quanto aos pressupostos confessionais da filosofia. Entretanto, Milbank parece identificar a filosofia em si com a própria ideia de autonomia do pensamento, isto é, como se filosofia fosse necessariamente a mesma coisa que autonomia da razão. Ele afirma então que, “para a ortodoxia radical49 é um ou/ou: filosofia (ocidental ou oriental) como uma disciplina puramente autônoma, ou a teologia: Herodes ou os magos, Pilatos ou o Deus-homem”.50 Segundo Smith, na tentativa de rejeitar a autonomia do pensamento filosófico, Milbank, ironicamente parece aceitá-la, “estabelecendo uma falsa dicotomia: ou filosofia ou teologia”.51 Smith, então, sugere: não estaria Milbank confundindo uma direção particular (ocidental) que a filosofia tomou com a própria estrutura de investigação filosófica? Em outras palavras, não poderia a filosofia (estrutura), tomar uma outra direção fundamental (religião cristã)? Assim, aceitando-se que filosofia não é, necessariamente, sinônimo de autonomia do pensamento essa objeção é, em princípio, respondida. Segundo Smith, “a questão, portanto, não é se a teologia pressupõe uma filosofia, mas sim de qual filosofia ela irá partir”52, o que remete ao tema do próximo capítulo.

47

SMITH, 2004, p. 146. MILBANK, 2006, p. 382. 49 A Ortodoxia Radical (Radical Ortodoxia) é uma sensibilidade teológica articulada por diversos autores do velho continente. 50 MILBANK, John, et al. Radical Ortodoxy: A New Theology. London: Routledge, 1999. p. 32. 51 SMITH, 2004, p. 155. 52 Ibid. p. 153. 48

23 2. A PERSPECTIVA FILOSÓFICA A discussão do primeiro capítulo sugere que o problema “o que é a teologia” é de natureza filosófica. Assim, a próxima pergunta a ser examinada é: a partir de qual perspectiva filosófica, então, deve-se responder esta pergunta, fornecendo os fundamentos da teologia cristã. Este capítulo sustenta que para elaboração de uma teologia cristã a resposta deveria ser construída a partir de uma perspectiva filosófica distintamente cristã, pois em princípio53, (1) somente ela pode articular uma visão teórica total da realidade de maneira não-reducionista e que (2) faça jus a confissão de fé cristã (pressuposição religiosa) de que Deus é o criador soberano e sustentador da realidade. Dooyeweerd comenta, entretanto, que [...] toda filosofia que afirme ter um ponto de partida cristão é confrontada com o tradicional dogma da autonomia do pensamento filosófico, o que implica a sua independência de todos os 54 pressupostos religiosos.

Apreciar, portanto, como perspectivas filosóficas são inevitavelmente governadas por pressupostos religiosos pode ser útil ao tentar-se sugerir uma filosofia distintivamente cristã como prolegômena para a teologia. Para compreender como as articulações de uma visão teórica total da realidade (ontologia) são afetas por diversos pressupostos religiosos faz-se necessário definir o que é uma crença religiosa.

53

O filósofo judeu Michael Polany, por exemplo, apesar de não ser de confissão cristã, buscou articular uma ontologia, em princípio, não–reducionista. 54 DOOYEWEERD, 2012, p. 3.

24 2.1. Crenças Religiosas e Teorias da Realidade55

No livro The Myth of Religious Neutrality, após quarenta anos de estudos comparados em religião, o filósofo da religião Roy Clouser conclui que as diversas religiões divergem amplamente a respeito do que é o divino (Deus, Alá, o Nada, a Forma a Matéria e assim por diante). Ainda sim, elas concordam universalmente sobre o status daquilo que é divino, sendo este, o cerne da crença religiosa. Clouser define a crença religiosa como [...] a crença em algo que seja divino em si mesmo, sem importar como esse algo é posteriormente descrito, onde “divino em si mesmo” 56 significa ter realidade incondicional e não-dependente.

Note, novamente, que esta definição não está discutindo qual crença religiosa é a correta, mas sim o que é uma crença religiosa. Também não está em discussão o que é esta realidade não-dependente, pois como dito acima, as diversas religiões discordam amplamente sobre o que deve ocupar esta posição. O que está em destaque na crença religiosa é o status do que é divino. Nos termos de Calvino, a realidade “auto-existente” ou de Spinoza “aquilo que não é causado”.57 O problema é que com o processo de secularização da sociedade tendese a pensar que alguns indivíduos sustentam uma crença religiosa enquanto em outros ela estaria supostamente ausente. Estas dicotomias tem recebido diversos nomes: religioso versus secular, sagrado versus profano e fato versus

55

É importante ressaltar que a crítica da autonomia do pensamento filosófico esboçada aqui é pelo viés da filosofia da religião. Entretanto, esta não é a única alternativa possível. Apenas para apontar um exemplo conhecido, o filósofo Jean-Jacques Lyotard apresentou uma crítica da autonomia do pensamento teórico pelo viés da linguagem, apontando que a modernidade ao buscar legitimar a si mesma de maneira puramente racional, apela a uma narrativa, ou seja, um discurso mais-do-que racional. Para Lyotard, isso implica a morte das metanarrativas modernas, na qual uma suposta razão universal e autônoma seria o tribunal de apelo final e imparcial para discutição de qualquer matéria. 56 CLOUSER, Roy. The Myth of Religious Neutrality: An Essay on the Hidden Role of Religious Belief in Theories. Notre Dame: University of Notre Dame, 2005. p. 23. 57 CLOUSER, 2003, p. 7.

25 valor.58 Entretanto, um simples exemplo sugere um modelo alternativo para se olhar as coisas. Imagine que você foi jantar com o seu amigo. Durante a conversa você comenta que o saleiro sobre a mesa é muito bonito, ou seja, tem a propriedade de ser belo. O seu amigo, um materialista59, por exemplo, pode até concordar, num nível superficial, que o saleiro em questão é realmente bonito. Entretanto, num nível mais profundo ele: (a) ou irá afirmar que a propriedade de ser belo é de fato de física, pois só há a matéria ou que, (b) caso existam propriedades não-físicas, como a propriedade estética de ser belo, ela é nada mais do que a combinação de propriedades e leis de natureza física.60 Em qualquer uma das hipóteses (1 e 2), o aspecto físico (matéria) é a realidade não-dependente da qual as outras propriedades que são experimentadas na realidade dependem.61 O aspecto físico foi, portanto, escolhido como elemento explicador último da realidade, sendo elevado ao status de divino, o que caracteriza uma crença religiosa pagã, pois a uma parte da criação confere-se status de divino. Ao longo da história, diversas opções ocuparam o status de divino como elemento explicador último da realidade: ideias (Platão), números (pitagóricos), aspecto lógico e sensorial (Kant), aspecto histórico (Dilthey) e assim por diante. Na tradição filosófica reformacional62, Dooyeweerd cunhou o termo absolutização para se referir a essa tentativa de elevar ao status de divino 58

Para um abordagem sobre essa suposta dicotomia. cf. Nancy Pearcey. Verdade Absoluta: Libertando o Cristianismo do seu Cativeiro Cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. pp. 13-20; 2146; 59 Note que se este teste fosse feito levando em conta outra crença religiosa, o resultado ainda sim seria o mesmo. Algo precisa necessariamente ser selecionado como fator explicador último da realidade. Para uma apreciação dos tipos de crença de religiosa. Cf. Roy Clouser. The Myth of Religious Neutrality: An Essay on the Hidden Role of Religious Belief in Theories. Notre Dame: University of Notre Dame, 2005. 60 CLOUSER, Roy. Is there a christian view of everything from soup to nuts?. Pro Rege, June, 2003. pp. 8-9. 61 CLOUSER, 2003, p. 9. 62 Nesta monografia, que parte da tradição de pensamento reformacional, não há espaço para uma abordagem profunda sobre sua história. Por ora, basta sinalizar que a o teólogo e estadista Abraham Kuyper (1937-1920) foi quem buscou articular o calvinismo como uma cosmovisão integral buscando combater o secularismo e os efeitos tardios da filosofia iluminista e da revolução francesa na Holanda. Este movimento liderado por Kuyper ficou posteriormente conhecido como neocalvinismo holandês ou kuyperianismo. Para uma apreciação da cosmovisão cristã articulada por Kuyper. Cf. Abraham Kuyper. Calvinismo: o canal em que se moveu a Reforma do Século 16, enriquecendo a vida cultural e espiritual dos povos que o adotaram. O sistema que hoje a Igreja Cristã deve reconhecer como Bíblico. São Paulo: Cultura Cristã, 2010. Mais tarde, Herman Dooyeweerd (1894-1977), que fora criado por seus pais na tradição Kuyperiana, junto com seu cunhado Dirk Hendrik Theodoor Vollenhoven (1892-1978), buscaram a articular a cosmovisão Kuyperiana na forma de uma filosofia

26 (realidade não-dependente) um ou mais aspectos da criação. Segundo Dooyeweerd, “essa absolutização é a fonte de todos os ismos na visão teórica da experiência humana e da realidade empírica”63 como o racionalismo, o historicismo, o sensorialismo e assim por diante, sendo uma forma de idolatria. Dooyeweerd chamou essas perspectivas filosóficas de imanentistas, pois “elas procuram o fundamento e o ponto de integração da realidade” 64, que os gregos chamaram de arché, na ordem temporal, de maneira que, “ao negar a transcendência do Criador”65, como afirmada pela confissão cristã, as filosofias imanentes ”são obrigadas a absolutizar alguma característica ou aspecto da própria criação”66 para explicar a realidade sendo, portanto, filosofias distintivamente pagãs. É importante notar que isso não significa que os autores estavam conscientes dessa absolutização. Ainda

sim, a

inevitabilidade de se conferir status de divino a um ou mais aspectos da criação para explicar a realidade, evidencia como as diversas construções filosóficas são fundamentadas em uma ou outra crença religiosa e por implicação, que o pensamento filosófico não é autônomo. Paulo expressou esse ponto no capítulo primeiro de sua carta aos Romanos ao afirmar que os seres humanos suprimindo a verdade sobre o conhecimento de Deus, adoram as coisas criadas ao invés do Criador, colocando algo em seu lugar. O que está implícito aqui é confissão bíblica básica de que 67

[...] os seres humanos são inerentemente religiosos , criados para ter um relacionamento com Deus. Caso o rejeitem, eles não deixam de ser religiosos; apenas encontram outro princípio básico sobre o 68 qual fundamentar a vida .

sistemática. Esta elaboração é hoje conhecida como filosofia reformacional. Para uma apreciação geral do pensamento filosófico de Dooyeweerd. Cf. Herman Dooyeweerd. No Crepúsculo do Pensamento: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010. 63 DOOYEWEERD, 2010, p. 69. 64 DOOYEWEERD, 2010, p. 278. 65 Ibidem. 66 Ibidem. 67 Ressalta-se que o termo religião aqui não está relacionado a nenhuma expressão temporal da fé como orar, recitar mantras, ir à igreja ou a mesquita, mas ao que Calvino chamou de semente da religião, isto é, o impulso inerente do coração humano na direção do Deus verdadeiro ou de um falso deus, um ídolo. Em termos mais formais, a necessidade inerente de se amar algo como tendo valor absoluto. 68 PEARCEY, 2006, p. 29.

27 Assim, as diversas crenças religiosas, sustentadas de maneira tácita, orientam inclusive as articulações filosóficas (teóricas) da realidade. Em outras palavras, o verdadeiro conhecimento de si e do mundo, depende do verdadeiro conhecimento de Deus como sugeriu Calvino.69 Diante disso, abre-se espaço para uma filosofia distintivamente cristã, isto é, aquela que confessa Cristo como fundamento transcendente da realidade. Na linguagem do apóstolo Paulo [...] pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos ou soberanias, poderes ou autoridades; todas as coisas foram criadas por ele e para ele. Ele é 70 antes de todas as coisas, e nele subsistem todas as coisas.

Com o terreno nivelado, visto que toda filosofia assume uma ou outra crença religiosa em seu fundamento e portanto, assumindo a possibilidade de uma filosofia distintivamente cristã, é possível esboçar uma visão teórica total da realidade que faça jus a uma confissão bíblica e seja capaz de fornecer uma resposta para o problema “o que é a teologia”.

2.2. Esboço de uma Ontologia Cristã Em seu projeto para as ciências71, Herman Dooyeweerd buscou articular uma ontologia não-reducionista e que confessasse Cristo como sustentador da realidade por meio da sua palavra.72 Antes de explorar a ontologia de Dooyeweerd, alguns princípios ontológicos gerais de uma cosmovisão cristã na perspectiva reformacional73 serão colocados abaixo como pano de fundo para apresentação da ontologia de Dooyeweerd. 69

CALVIN, John. The Institutes of the Christian Religion. Grand Rapids: Christian Classics Ethereal Library, 2002. pp. 30-36. 70 BÍBLIA. Língua Portuguesa. Bíblia Sagrada: Nova Versão Internacional. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional, 2002. Colossenses 1.16-17. 71 Para uma apreciação mais ampla do programa de Dooyeweerd para as ciências. Cf. Roy Clouser. The Uniqueness of Dooyeweerd´s Program for Philosophy and Science: Whence the th Difference? Christian Philosophy at the Close of the 20 Century. Netherlands: Kampen, Kok, 1995. 72 Hebreus 1.3 - “O filho é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as coisas por sua palavra poderosa”. 73 Este trabalho parte do pressuposto de que não existe uma cosmovisão cristã unívoca, mas sim cosmovisões cristãs. Por isso, faz-se necessário esta especificação de que a cosmovisão que está sendo articulada aqui é dentro da perspectiva reformacional. Para uma abordagem

28 2.2.1. Diferença qualitativa infinita Criador-criatura O livro de Gênesis afirma a auto-existência de Deus, seu status de divino como criador soberano, absoluto e distinto da sua criação. Por implicação, a dependência total da realidade criada para com o Criador. Essa distinção ontológica fundamental é classicamente conhecia como distinção Criador-criatura.74 Segundo Guilherme de Carvalho, Nenhuma criatura pode ultrapassar esse limite. Mesmo na teologia cristã, a reflexão se processa dentro dos limites da revelação bíblica, e não se supõem que a natureza divina possa ser capturada teoricamente. Esse limite de que falamos não deve ser interpretado como uma espécie de impedimento arbitrário que Deus estabeleceu. Trata-se antes de um limite “necessário”, ligado à própria ordem das coisas. O ponto é que uma criatura jamais poderá exceder sua criaturidade. Negar isso é por em dúvida a própria doutrina bíblica da criação. [...] Um cosmovisão plenamente teísta precisa reconhecer a 75 diferença qualitativa infinita criador-criatura.

Dooyeweerd sugere que uma filosofia cristã não eleva ao status de divino nenhuma parte do cosmos. Antes, confessa a diferença fundamental Criador-criatura e a total dependência da realidade criada para sua subsistência.76 A teologia aristotélica, na qual a razão natural, a faísca divina no homem pode supostamente transcender o tempo e contemplar o divino é, portanto, a partir de uma confissão cristã reformacional, uma teologia pagã, pois supõem que o divino e o ser humano partilham do mesmo status ontológico através da razão, apagando a distinção Criador-criador.

2.2.2. Coerência última da diversidade e da unidade cósmica As escrituras também confessam que Deus é uma unidade na diversidade, havendo coerência entre as pessoas da trindade que participam

mais ampla. Cf. Albert Wolters. Criação Restaurada: Base Bíblica para a Cosmovisão Reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 74 CARVALHO, G.V. R. Introdução a Filosofia Cristã. Apostila não publicada, 2002. p. 58. 75 Ibid. p. 58. 76 DOOYEWEERD, 2012, p. 128.

29 ativamente tanto na criação como na redenção do cosmos.77 A criação, enquanto reveladora da glória e do poder de Deus, reflete em si essa coerência da diversidade e unidade cósmica. Portanto, o cosmos não pode ser tratado como “fosse inteiramente composto de uma substância específica, ou como se a diversidade cósmica fosse insuperável e impossível de ser elaborada”.78 Esse impasse foi visto, por exemplo, nos pré-socráticos. Estes afirmavam, ora a unidade (Parmênides), ora a multiplicidade (Anaximandro) à custas uma da outra. Na cosmovisão bíblica, ”não podemos negar a unidade em favor da diversidade, e vice versa”79, pois Deus é quem ordena e sustenta o cosmo dessa forma, que por sua vez espelha seu poder.

2.2.3. O caráter significante de toda a realidade criada As escrituras também confessam que a realidade criada é totalmente dependente de Deus.80 Guilherme de Carvalho comenta, entretanto, que “tem sido uma tendência do pensamento ocidental, tratar a realidade como sendo composta de uma “substância” básica, uma espécie de material “metafísico””81, isto é, como se a realidade fosse autossuficiente. A metafísica aristotélico-tomista, elaborando Deus como o “ser-em-si”, “que se faz presente na criação aperfeiçoando aquilo que é meramente “potencial””82 é um exemplo dessa tendência. Optando por uma direção alternativa, negando que o ser de Deus seja o mesmo que o das criaturas83 e buscando enfatizar o caráter relativo e dependente de toda a criação em relação a Deus84, Dooyeweerd propôs uma solução original. Ele sugeriu que “significado é o “ser” de tudo o que é criado”.85 Com isso Dooyeweerd quis dizer que a criação é, em sua essência, expressão, não tendo o mesmo status ontológico que Deus; ela existe sempre como revelação da vontade divina, carregada com a glória de 77

CARVALHO, 2002, p. 58. CARVALHO, 2002, p. 59. 79 Ibidem. 80 Cf. Hebreus 1.3. 81 CARVALHO, 2002, pp. 58-59. 82 Ibidem. 83 Ibid. p. 60. 84 CARVALHO, 2002, p. 60. 85 DOOYEWEERD, Herman. A New Critique of Theoretical Thought. Volume III: The Structures of Individuality of Temporal Reality. Grand Rapids: Paideia Press, 1984, p. 69. 78

30 Deus. Como resultado disso, nenhuma das dimensões do cosmo tem significado por si mesma. Isto é; quando tentamos “capturar” uma das dimensões da experiência, percebemos que essa dimensão sempre se refere a todas as outras, sem que haja qualquer “descanso metafísico”, sem que encontremos aquela substância básica da qual 86 o cosmo recebe ordem e concretude.

Um exemplo deve ajudar na compreensão desta ideia. Pense num conceito físico como a massa. Agora, retire deste conceito as propriedades linguísticas, ou seja, você não pode dar nome ao conceito. Agora, retire as propriedades lógicas, ou seja, você não pode distinguir a massa de outros conceitos físicos como a velocidade, por exemplo. Por fim, subtraia as propriedades numéricas, isto é, você não pode dizer se é uma, duas ou três quantidades de massa. O que sobra? Nada! Toda vez que alguém tenta apreender a realidade a partir de um aspecto somente, qualquer conceito se evapora.87 Por isso, não existe algo que seja puramente racional, puramente físico, pois a realidade está sempre fazendo referência à coerência e a diversidade dos aspectos pelas quais ela é experimentada. Não há nenhum descanso metafísico nela. A própria realidade busca por uma origem absoluta de sentido, que em si mesma não seja sentido.

2.2.4. Cosmonomia Por fim, as escrituras também confessam que Deus é totalmente soberano sobre a sua criação. Dooyeweerd elaborou este tema através do conceito de cosmonomia. Para o autor a cosmonomia é “uma estrutura a priori [...] estabelecida por Deus, que tornaria possível toda experiência humana neste mundo”.88 Esta estrutura seria a ordem divina para criação, isto é, uma nomia (lei) para o cosmos. Ao cunhar este termo, Dooyeweerd [...] buscou expressar o fato de que toda a criação está sujeita à vontade soberana de Deus, que se expressa numa multiplicidade de

86

CARVALHO, 2002, p. 60. CLOUSER, 2005, p. 88 OLIVEIRA, Fabiano. Philosophando Coram Deo: uma apresentação panorâmica da vida, pensamento e antecedentes intelectuais de Herman Dooyeweerd. FIDES REFORMATA XI, Nº2, 2006. p. 83. 87

31 ordenamentos e leis divinas. Essa multiplicidade é a cosmonomia, o 89 limite entre Deus e a criação.

É importante notar que a ideia de lei aqui não é utilizada num sentido jurídico, mas de maneira ampla, como expressão da soberania Deus sobre toda criação.90 Estar sujeito à cosmonomia é caráter distintivo das criaturas, isto é, estar debaixo das leis que Deus cria para os diversos aspectos da criação. Uma pedra, por exemplo, está sujeita no aspecto físico a lei da gravidade, enquanto uma palavra é sujeita no aspecto semiótico a normas gramaticais, por exemplo.91 A diferença entre leis e as normas é que a primeira não pode ser transgredida pela humanidade, enquanto as normas podem ser transgredidas o que sugere a responsabilidade humana de dar uma forma específica a estas normas e responder por elas. Esta ordem divina ou cosmonomia é composta por uma diversidade de modalidades ou aspectos modais nos quais todos os eventos e entidades concretas (um carro, uma bola, um casamento) são experimentas no horizonte temporal. Segundo Dooyeweerd, os aspectos modais são antes de tudo, aspectos do próprio tempo92, de maneira que a cosmonomia é uma cosmocronologia. Assim como um prisma refrata a luz em uma multiplicidade de cores, que por sua vez estão profundamente conectadas entre si, o sentido total da criação ao entrar no prisma do tempo se refrata em modalidades de sentidos (aspectos modais), nas quais o tempo se expressa de maneira singular. Por exemplo, no aspecto numérico, o tempo se expressa na ordem numérica: 1,2,3.93 No aspecto espacial, o tempo se manifesta como uma ordem de simultaneidade no espaço. “Dois círculos que se tocam são simultâneos”.94 No aspecto econômico numa ordem de valores e assim por diante. Essas ideias serão exploradas mais a frente.

89

CARVALHO, 2002, p. 60. CARVALHO, 2002, p. 60-61. 91 Ibid. p. 61. 92 DOOYEWEERD, 2010, p. 54. 93 CARVALHO, 2002, p. 67. 94 Ibidem. 90

32 De fato, a ideia de lei, isto é, de uma cosmonomia ou ordem da criação, é tão central no projeto de Dooyeweerd que posteriormente a sua filosofia seria conhecida como Filosofia da Ideia de Lei ou Filosofia da Ideia Cosmonômica.95 A luz destes princípios elaborados a partir da confissão cristã na perspectiva reformacional pode-se avançar para a teoria ontológica de Dooyeweerd propriamente dita.

2.2.5 Os aspectos modais e a estrutura da realidade Uma maneira de apresentar a ontologia de Dooyeweerd96 é através de um exemplo. Imagine que você acaba de comprar um carro e alguns amigos vêm lhe visitar para ver a nova aquisição. Um, pergunta sobre a velocidade máxima que ele alcança. Outro o valor, enquanto outra nota o símbolo da marca e por fim, outro diz que o carro é muito bonito. Esse breve exemplo serve parar mostrar que uma determinada entidade concreta é experimentada intuitivamente de diversos modos. No exemplo acima, o físico, o econômico, o semiótico e o estético. Estes modos de sentido nos quais as entidades e eventos concretos funcionam e podem ser experimentadas97, Dooyeweerd chamou de modalidades ou aspectos modais, já brevemente citados acima. Estes aspectos seriam justamente a estrutura ontológica a priori (cosmonomia) na qual os diversos fenômenos concretos ocorrem. Dooyeweerd

identificou

quinze

aspectos

modais,

admitindo

a

possiblidade de outros. O numérico, o espacial, o cinemático, o físico-químico, o biótico, o psíquico-sensório, o lógico ou analítico, o histórico, o linguístico ou semiótico, o social, o econômico, o estético, o jurídico, o ético e o pístico.98 Dooyeweerd comenta que esses aspectos como tais, não se referem a um “concreto quê, isto é, a coisas ou eventos concretos, mas apenas a um como,

95

CARVALHO, G. V. R. Introdução Editorial. In.: DOOYEWEERD, Herman. No Crepúsculo do Pensamento: estudos sobre a pretensa autonomia da razão. São Paulo: Hagnos, 2010. p. 10. 96 A teoria de Dooyeweerd é conhecida como teoria das esferas modais ou teoria modal. 97 DOOYEWEERD, 2010, p. 54. 98 Ibidem.

33 isto é, o modo particular e fundamental, ou maneira pela qual os experimentamos”.99 Ressalta-se também que existe uma ordem de sentido nestes aspectos. Esta ordem não é hierárquica, como se um aspecto tivesse status ontológico maior que o outro, mas sim uma ordem funcional. Por exemplo, é possível pensar em números sem espaço, mas é impossível pensar em dimensão espacial sem que números estejam implícitos. Entretanto, o aspecto numérico não causa100 o aspecto espacial, antes é condição para o espacial, de maneira que o aspecto espacial não pode ser reduzido ao aspecto numérico.

2.2.6 Núcleo Modal e Analogias Modais Para indicar essa irredutibilidade das modalidades Dooyeweerd introduziu o conceito de núcleo modal ou núcleo de sentido.101 O núcleo de sentido garante a singularidade e irredutibilidade de um aspecto em relação aos outros102. Estes núcleos são acessíveis à intuição, porém estão para além da possibilidade de uma definição teórica.103

99

Esfera de Lei

Núcleo Modal

Pístico

Certeza (estar certo)

Ético

Amor

Jurídico

Retribuição

Estético

Harmonia/alusividade

Econômico

Conservação de valor

Social

Sociação

Semiótico

Significação Simbólica

Histórico-Cultural

Poder Formativo/Controle

Lógico

Análise

Psíquico/sensório

Sensação

DOOYEWEERD, 2010, p. 54. Visto que Deus é o criador e o sustentador de toda a realidade, nenhum aspecto pode causar, num sentido filosófico, o outro. Cada aspecto deve a sua existência direta a palavra de Deus, que o sustenta. 101 DOOYEWEERD, 2010, pp. 55-58. 102 Ibid. p. 58. 103 Ibid. p. 286. É importante notar que isso não quer dizer que a coisa “em-si-mesmo” não pode ser acessado. Ao dizer que um núcleo de sentido não pode ser definido teoricamente, não significa que ele não haja um entendimento intuitivo dele. 100

34 Biótico

Vida

Físico

Matéria/Energia

Cinemático

Movimento Uniforme/Constância

Espacial

Extensão Continua

Numérico

Quantidade Discreta

Tabela

104

O núcleo de sentido de um aspecto só pode se expressar através de uma série de momentos analógicos105 caracterizando assim uma relação intermodal. Como dito anteriormente, não há um descanso metafísico na realidade criada, pois ela é dependente de Deus, de maneira que, para que um aspecto seja percebido necessariamente os outros estarão presentes. Isso foi visto no pequeno teste intuitivo a respeito do conceito de massa. Esses momentos analógicos podem ser distinguidos entre momentos retrospectivos e momentos antecipatórios.106 O retrospectivo é quando o núcleo de sentido de um aspecto faz referência a um aspecto modal anterior a ele na ordem de sentido. Por exemplo, no termo vida da fé, onde o núcleo de sentido do aspecto biótico (vida orgânica) é referido dentro do aspecto pístico.107 O antecipatório é quando o núcleo modal de um aspecto faz referência a um aspecto posterior a ele, abrindo e aprofundando o seu significando na ordem de sentido modal.108 Por exemplo, no termo, sentimento estético, quando há uma antecipação do aspecto estético dentro do aspecto sensório. Segundo Dooyeweerd, “a estrutura modal [de cada aspecto] reflete a coerência dos diferentes aspectos de nossa experiência em um sentido modal especial”, o que ele denomina de “universalidade de cada aspecto da 104

DOOYEWEERD, 2012, p. 233. DOOYEWEERD, 2010, p. 58. 106 Ibidem. 107 Dentro da tradição reformacional, pelo menos quatro significados são atribuídos à fé. Para evitar equívocos, eles serão apresentados aqui. (1) a fé enquanto dom de Deus. Entretanto, não com um adendo a razão, como no sentido tomista, mas como o redirecionamento da fé do coração para o seu verdadeiro amor, isto é, Deus. (2) a fé enquanto função humana, isto é, o ato concreto de crer. (3) a fé enquanto conteúdo confessional. No caso a Bíblia, por exemplo, seria o conteúdo da fé cristã. (4) o aspecto modal da fé ou fiduciário. Este sentido é ontológico, isto é, a fé é um dos modos como algo pode ser experimentado. A água, por exemplo, é experimentada no aspecto físico como H2O, no sensório como gelada e no fiduciário ou da fé como serva de Deus. cf. Jó 37.10. Salmos 77.16. Lucas 8.25. 108 DOOYEWEERD, 2010, p. 58. 105

35 experiência em sua própria esfera modal”, isto é, cada aspecto reflete em seu núcleo de sentido a unidade e diversidade de sentido cósmico da criação. Assim, as analogias podem tomar dimensões cada vez mais complexas, de maneira que o significado de um evento ou entidade concreta vai aumentado em complexidade e riqueza na medida em que se caminha na ordem de sentido dos aspectos modais.109 Um exemplo seria a ideia de unidade da fé. Uma analogia retrospectiva do núcleo de sentido do aspecto pístico ao aspecto numérico.

2.3. Na direção de uma redefinição da teologia A partir da articulação da cosmovisão cristã reformacional, a filosofia de Dooyeweerd “produziu uma ontologia em que todos os aspectos da criação são igualmente reais110, porque mutuamente irredutíveis, inextricavelmente ligados e de escopo universal”.111 Cada um dos aspectos tem sua dependência e sustentação em Cristo como arché da realidade e fundamento transcendente dos cosmos. Segundo Clouser, [...] uma abordagem cristã tanto para a filosofia quanto para a ciência deve começar com a rejeição de todo reducionismo, alegando que toda a criação é depende diretamente de Deus. E esse é o "onde" a 112 filosofia de Dooyeweerd faz diferença para as ciências.

A

partir

desta

articulação

teórica

de

uma

cosmovisão

cristã

reformacional, avança-se no próximo capítulo para uma redefinição da teologia com base nos fundamentos lançados.

109

OLIVEIRA, 2006. p. 85. Note que a ontologia de Dooyeweerd, por exemplo, desfaz falsos problemas como o subjetivismo e objetivismo epistemológicos. Na sua proposta, a realidade não é construída pelas categorias da razão impostas sobre as impressões sensórias caóticas (Kant) e nem os objetos impõem sob a mente passiva do ser humano a sua ordem (empirismo). Através das leis dos aspectos modais, enquanto estrutura a priori transcendental de toda experiência temporal, tanto o sujeito quanto o objeto são ordenados e relacionados. Note também que nesta perspectiva não há apenas relações sujeito-objeto, mas também sujeito-sujeito e objeto-objeto. Além dessas vantagens, esta monografia espera apresentar os resultados da proposta de Dooyeweerd para uma teologia cristã. 111 CLOUSER, 1995, pp. 2-3. 112 Ibid. p. 30. 110

36 3. REDEFININDO A TEOLOGIA No capítulo anterior esboçou-se uma ontologia a partir de uma confissão de fé cristã sugerindo um olhar não-reducionista para a realidade criada. Este capítulo se debruça sobre a última pergunta proposta nesta pesquisa: que definição de teologia resulta da perspectiva filosófica assumida? Para responder tal pergunta: primeiro, apresenta-se brevemente uma distinção epistemológica feita por Dooyeweerd e segundo, baseado nesta distinção, faz-se uma análise das definições clássicas da teologia com o intuito de sugerir o porquê elas falham em definir a teologia satisfatoriamente.

3.1. Experiência Pré-teórica e Experiência Teórica Dooyeweerd cunhou os termos atitude113 ordinária ou pré-teórica e atitude teórica ou científica para expressar dois modos-de-ser na realidade que são igualmente válidos, apesar de distintos. Segundo o autor, na atitude préteórica ou ordinária “experimentamos coisas e eventos concretos, [...] que em princípio, funcionam em todos os aspectos modais” de maneira integral.114 Nesta atitude de ser-no-mundo, a função lógica do ser humano está mergulhada na experiência concreta cotidiana, de maneira que há uma percepção analítica115 intuitiva dos aspectos modais. (exemplo do carro no capítulo anterior). É por isso que não há necessidade de se criar uma teoria estética para que alguém perceba que uma flor é bela, por exemplo.116 Segundo Strauss, “esta tomada de consciência pré-científica não é algo que deve ser eliminada ou negada pelo pensamento acadêmico, uma vez que constitui a base inevitável e ponto de partida para reflexão científica”.117 Em outras palavras, a experiência pré-teórica fornece o dado primário para a investigação teórica.118

113

As palavras experiência e atitude serão usada como sinônimos se referindo a mesma ideia. DOOYEWEERD, 2010, p. 63. 115 STRAUSS, 2009, p. 49. 116 Ibidem. 117 STRAUSS, 2009, p. 15 114

37 Na experiência teórica, portanto, uma entidade ou evento concreto é explorada teoricamente tendo um ou alguns aspectos modais como porta de entrada para análise, de maneira que a abstração modal119 é característica distintiva da atitude teórica. Strauss comenta, entretanto, que [...] ao chamar a abstração modal de característica exclusivamente distintiva do pensamento científico [teórico], não temos de forma alguma construído uma restrição em relação ao estudo das coisas concretas e eventos de nossa vida cotidiana, pois os diferentes aspectos da realidade ainda servem como porta de entrada para a nossa experiência dessas diversas coisas e processos dentro da realidade. Portanto, nunca se pode dizer que uma ciência especial (ou seja, uma disciplina teórica que é delimitada por um aspecto particular, modalmente abstraído) é restrita a uma "seção" ou "parte" 120 da realidade.

Em outras palavras, reconhecer que a abstração modal é uma porta de entrada para análise de um evento concreto não significa que apenas uma parte do evento é examinado, antes o evento todo, porém, a partir de um ou alguns sentidos modais. Em resumo, na experiência ou atitude pré-teórica o que está em evidência é um concreto que, por exemplo, uma bola, um avião e assim por diante.121 Já na experiência ou atitude teórica, o que está em evidência é um como122, isto é, a abstração modal de um dos modos de sentindo em que um evento ou entendida concreto é experimentado. A água, por exemplo, funciona, em princípio, em todos os aspectos modais. Ainda sim, somente quando o aspecto físico-químico é ressaltado, como uma porta de entrada para análise da água, que pode se abstrair as propriedades químicas da água enquanto uma totalidade.

3.2. Análise de algumas definições clássicas Com esta distinção epistemológica em mente, faz-se necessário olhar para algumas definições clássicas de teologia com intuito de sugerir o porquê 119

STRAUSS, 2009, pp. 48-49. Ibid. p. 52. 121 COLETTO, Renato. Theology? What is it? Looking for a suitable definition of a rather mistreated discipline. School of Philosophy & Centre for Faith and Scholarship, 2008. p. 6. 122 Ibidem. 120

38 elas falham em definir a teologia, de maneira que ora ela se torna uma supraciência, desconectada do mundo e ora é subestimada como um pseudociência.

3.2.1. Estudo de Deus Uma definição clássica é que a teologia é o estudo de Deus. Coletto comenta que este “entendimento tradicional da teologia como “ciência que estuda Deus” [...] não é suficientemente preciso”.123 Primeiro, porque como sugere a ontologia esboçada no capítulo anterior, Deus não está sujeito à análise teórica, simplesmente por ser criador das leis para este modo-de-ser na realidade.124 O que não significa que não haja conhecimento de Deus. Apenas que, [...] o verdadeiro conhecimento de Deus e de nós mesmos ultrapassa os limites do pensamento teórico, que por sua vez é limitado ao horizonte temporal da experiência humana. Esse conhecimento não pode ser objeto teórico nem da teologia, nem da filosofia, só podendo ser adquirido pela operação da palavra de Deus e do Espírito Santo 125 no coração humano.

Nas palavras de Vander Stelt “[...] conhecer a Deus biblicamente difere radicalmente de especular sobre Deus através de um estudo científico (logos) de Deus (theos)”.126 Isso não deve ser confundido com um gnosticismo, pois esse conhecimento é mediado pela fé, pela racionalidade, pela linguagem e outras estruturas dos ser humano. Ele é dado nas Escrituras, afirmado pelos profetas e apóstolos e confessado nos credos. Portanto, a teologia, seja ela cristã ou não, tem o horizonte modal como limite, isto é, ela não pode ultrapassar os limites do pensamento teórico, ou seja, o tempo.127 É importante ressaltar que esta ideia de uma teo (deus) logia (discurso), na qual a razão, enquanto faísca divina no ser humano partilha do mesmo

123

COLETTO, 2008, p. 4. Ibidem. pp. 4-5. 125 DOOYEWEERD, 2010, p. 183. 126 VANDER STELT, John. Theology as Study of Faith-Life. Pro Rege, 1989, p. 16. 127 Ibidem. p. 5. 124

39 status ontológico do ser divino, podendo contemplá-lo é pagã e contrária à distinção fundamental Criador-criatura.128 Quando a teologia é vista como estudo de Deus, ela se torna uma supraciência com ar de atemporal e se torna “um mediador necessário entre a palavra de Deus e o crente”129, o que “constitui-se em uma idolatria e demonstra uma incompreensão fundamental em relação à sua posição e caráter real”.130 Em outras palavras, a teologia cristã, ao invés de aprofundar o conhecimento confessional que alguém tem, se torna o mediador necessário entre Deus e o homem, papel que só pertence a Cristo. Uma teoria soteriológica pode aprofundar a confissão a respeito do que significa ser salvo, ainda sim ela não pode salvar ninguém.

3.2.2. Estudo da Revelação Bíblica Uma segunda visão tradicional é que a teologia é o estudo da revelação bíblica.131 Reconhecendo que Deus não é objeto de investigação teórica, “teólogos

protestantes,

particularmente

nas

tradições

reformadas

e

presbiterianas, geralmente tem optado por uma visão da teologia na qual a ênfase está na Bíblia e suas doutrinas”.132 Esta abordagem também apresenta alguns problemas. Primeiro, ela sugere que “todo cristão no Deus triuno é um teólogo e que todo teólogo é um cristão no Deus triuno”.133 Não havendo uma distinção clara entre a atitude préteórica e teórica entendimento da realidade e entre direções teológicas.134

128

Segundo Vander Stelt, “originalmente, a teologia implica a noção pagã de que para os seres humanos obterem conhecimento divino, eles devem ir para além do conhecimento humano [de criaturas]. Platão e Aristóteles criam que a teologia fazia exatamente isso provendo os princípios básicos e primeiros da filosofia”. Em John Vander Stelt. Theology of Study of FaithLife. Pro Rege, 1989. 129 DOOYEWEERD, 2010, p. 198 130 Ibidem. 131 Apenas para citar um exemplo. “No contexto da fé cristã, a teologia não é o estudo de Deus como algo abstrato, mas é o estudo do Deus pessoal revelado na Bíblia". Franklyn Ferreira e Allan Myatt. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007. 132 VANDER STELT, John. “Theology or Pistology?”. James A. DeJong and Louis Y. Van Dyke, Building the House: Essay on Christian Education, Sioux Center, 1981. pp. 115-135. 133 VANDER STELT, 1989, p. 16. 134 Uma teologia budista ou islâmica, por exemplo.

40 Segundo, está implícito também que a teologia é uma tarefa necessariamente cristã, ou seja, que não-cristãos não podem ser teólogos e que não há teologias que partem de compromissos de fé não-cristãos.135 Isto implica que a vida da fé é algo particularmente cristão. Em outras palavras, esta posição fomenta o secularismo, além de ser restrita, falhando em mapear a “existência de teologias não-cristãs, pagãs, anti-cristãs ou sectárias”.136 Terceiro, mesmo que a teologia fosse uma tarefa necessariamente cristã, ela claramente não se ocupa apenas com o estudo da bíblia e das suas doutrinas. Ela estuda a linguagem (grego e hebraico), a história (da igreja e do pensamento cristão), documentos confessionais como os credos, instituições confessionais como a Igreja e assim por diante.137 Além do mais, um historiador, por exemplo, também poderia fazer da bíblia um objeto de estudo, de maneira que, não pode ser o estudo da bíblia que faz a teologia ser distintamente uma modo de conhecimento. Por fim, Vander Stelt nota outro problema importante: Afirmar isto [que a teologia é o estudo da bíblia] implica que, em distinção das outras ciências, a teologia tem o monopólio no conhecimento e estudo da auto-revelação de Deus. Tal visão atribui, num estilo medieval, um papel de realeza a teologia em relação às outras ciências, encoraja ainda mais a secularização radical das disciplinas não-teológicas, atribui um papel mediador a teologia na expectativa de que ela cristianize todas as disciplinas não-teológicas relacionando-as de alguma forma com Deus como criador e 138 redentor.

Esta é uma questão séria, pois para que uma ciência seja feita a partir de um pressuposto cristão, ela deveria recorrer à teologia. As confissões mais básicas da fé cristã, que são pré-teóricas e não teóricas, isto é, confessionais e não teológicas, só poderia ser acessadas por outras áreas da ciência para guiar as suas construções via teologia. Diante do exposto, sugere-se então uma redefinição da teologia que leve em conta a distinção epistemológica e a ontologia elaborada dentro da tradição reformacional.

135

A teologia natural aristotélica é um exemplo de teologia pagã. VANDER STELT, 1989, p. 16. 137 COLETTO, 2008, p. 5. 138 VANDER STELT, 1989, p 16. 136

41 3.3. Confissão, Teologia e o Aspecto Pístico Desde que o conhecimento pré-teórico é o dado primário, isto é, condição para o conhecimento teórico, sugere-se então que a vida da fé seja fundacional para que haja conhecimento teológico. Enquanto o conhecimento da fé é confessional139, isto é, pré-teórico e integral, o conhecimento teológico é essencialmente analítico e teórico, tendo como porta de entrada o aspecto pístico da realidade criada. Perceba que esta distinção não significa que esses dois modos-de-ser no mundo são separados ou não relacionados, apenas destaca que eles são distintos. Na verdade, eles estão intimamente ligados. A atitude teórica é distinta não pelo o que se estuda, primariamente, mas pelo como se estuda determinado evento ou entidade concreta. Nas palavras de Vander Stelt: “a teologia é uma disciplina concreta qualificada pela análise teórica e deve ser distinguida da fé como atividade concreta caracterizada pela confissão ou crença prática”.140 Esta é a distinção básica entre missão e missiologia, igreja e eclesiologia, entre o sermão e a homilética e assim por diante.141 O exemplo a seguir deve ajudar nessa distinção. A paixão de Cristo foi um evento integral. Este funcionou, em princípio, em todos os aspectos modais. Jesus morreu no primeiro século (aspecto histórico), foi traído por Judas (aspecto ético) pelo valor de 30 moedas (aspecto econômico), julgado culpado pelas autoridades judaicas (aspecto jurídico), pregado na cruz no topo do Gólgota (aspecto espacial), sentiu dor (aspecto sensório) e assim por diante. Entretanto, o teólogo cristão ressalta o aspecto pístico, usando ele como porta de entrada quando estuda esse evento concreto. O intuito é aprofundar o sentido pístico de cada um dos aspectos nos quais este evento concreto funciona. Assim, a traição de Judas não é simplesmente uma ação antiética concreta, mas o cumprimento de uma profecia a respeito do Messias que iria ser entregue as autoridades judaicas. A dor de Jesus não é simplesmente uma questão sensória, mas aponta para a dor de quem carrega os pecados do mundo sobre si e assim por diante. 139

Confessional é usada aqui justamente para distinguir da teologia enquanto uma construção posterior. Em outras palavras, a confessionalidade seria integral e pré-teórica. 140 VANDER STELT, 1981, p. 127. 141 Nota que essa perspectiva não está separando, apenas distinguindo. A mão e o braço funcionam em conjunto, entretanto, eles são distintos.

42 3.4. Teologia como Estudo da Vida de Fé Sugere-se então uma redefinição da teologia como “a ciência que explora a criação através da perspectiva do aspecto pístico”142, de maneira que, “de um ponto de vista estrutural, a teologia é como as outras ciências: ela estuda a realidade criada através (de um número limitado) de aspectos modais da realidade”.143 Vander Stelt explora um pouco mais esta definição. [...] tudo relacionado à dimensão pística da realidade criada, é considerado como o objeto de investigação teológica. Tal teologia, mais propriamente chamada "fideologia" ou "pistologia", pode ser definida como [...] uma análise sistemática da natureza, das normas, do desenvolvimento, do papel e função da dimensão pística humana 144 e não-humana da realidade criada.

Em resumo, a tarefa da teologia é explicar teoricamente o significado de um fenômeno em estudo, tendo o aspecto pístico como porta de entrada de análise. Note que esta definição distingue com mais clareza o confessional (pré-teórico) e o teológico (teórico) e a possibilidade de investigar como esses modos se relacionam. Perceba também que esta definição abre espaço para mapear teologias não-cristãs, isto é, que partem de compromissos de fé divergentes da religião cristã. Pode-se objetar que está abordagem tira a centralidade de Deus no estudo teológico cristão, sendo nada mais do que uma posição liberal disfarçado por um apelo a cosmovisão cristã. Segundo Vander Stelt, entretanto, [...] este foco na teologia de Deus para o homem, do espiritual para o existencial, do sobrenatural para o natural e do objetivo para o subjetivo de maneira alguma deve ser entendida como uma redução teológica Feuerbachiana à antropologia. Pelo contrário, é uma tentativa na tarefa teórica de honrar a Deus alojando a teologia no lugar que ela pertence sem criar uma imagem escultural e sem 145 obstruir a vida pactual.

142

COLETTO, 2008, p. 6. Ibidem. 144 VANDER STELT, 1989, p. 19. 145 VANDER STELT, 1981, p. 127 143

43 Em outras palavras, é reconhecer que a teologia não é absoluta no seu conhecimento, mas relativa. Ela simplesmente não pretende ir para além dos seus limites, numa espécie de contemplação platônica acima da fé prática cristã. Com esta objeção, em princípio esclarecida, faz-se necessário ressaltar que a redefinição da teologia sugerida aqui não é uma mera questão de nomenclatura

e

aponta

para

implicações

práticas

para

o

dia-a-dia,

especialmente para uma Universidade ou Faculdade Cristã e para o estudo da disciplina teológica cristã.

3.5. Vantagens A primeira vantagem dessa perspectiva diz respeito aos estudos acadêmicos, especialmente, se pensado dentro de uma universidade ou faculdade cristã. Nesta perspectiva, as teologias cristãs não são mais encaradas como uma supra-ciência, cristianizadora das disciplinas não teológicas146, muito menos como um subciência, descartada para um plano ahistórico ou atemporal. Ao contrário, “a teologia toca a vida como um todo, ela vê [a vida] através de seu prisma específico”147 e contribui para um conhecimento multidisciplinar dentro da academia cristã. “Curricularmente, a teologia [cristã] agora pode achar o seu local natural dentro da faculdade ou programa de pesquisa e educação universitária”.148 Segundo Spykman, Nesta perspectiva, reconhecemos a teologia como uma disciplina entre outras. Cada qual com objeto de estudo singular. Cada qual foca em seu aspecto peculiar da realidade. Ainda sim, todas elas estão coerentemente inter-relacionadas. Dentro desta panóplia de ciências, a teologia não é mais reverenciada como rainhas das ciências. Onde Cristo é Rei, não há necessidade de uma rainha. A teologia [cristã] é, antes, a disciplina que foca na vida de fé (em distinção, da vida política, estética, econômica, ética) de uma dada 149 comunidade cristã (ou não-cristã).

146

VANDER STELT, 1981, p. 132 SPYKMAN, 1995, p. 103 148 VANDER STELT, 1981, p. 132 149 SPYKMAN, 1995, p. 103 147

44 Por implicação, não há necessidade de se opor as teologias cristãs a filosofia, a psicologia, a antropologia ou as outras ciências, como se aquela fosse sagrada e as outras seculares, como se aquela dependesse de um entendimento de fé sobre o mundo e as outras fossem neutras e racionalmente objetivas. Uma segunda vantagem é que as teologias cristãs, dentro desta perspectiva, em princípio, não contribuem para a secularização da ciência. Segundo Coletto, É de fato típico de muitas tradições cristãs colocar a teologia em uma espécie de limbo, onde ela é simultaneamente científica, nãocientífica, supra-científico e "prática", uma espécie de filosofia e um tipo de visão de mundo, igualmente, indistinguíveis da fé e da 150 religião.

A revelação de Deus não está reduzida às teologias, antes clama o seu domínio sobre o todo da vida. Em outras palavras, nada foge do seu escopo, pois o ser humano está Coram Deo, sempre diante da face de Deus, seja em obediência ou desobediência a Ele, em qualquer esfera (política, social e assim por diante). Quando um cientista pesquisa um átomo, por exemplo, ela já está em contato com a revelação de Deus, que por sua vez expressa o Seu poder e glória. Assim, ele está estudando a revelação, mesmo que ele suprima e rejeite a verdade que ela revela devido aos efeitos nouéticos do pecado. Essa perspectiva151 reconhece então que não apenas o teólogo cristão, mas qualquer cientista está diretamente em contato com revelação de Deus. Assim, a teologia cristã, ao invés de contribuir para a secularização das ciências, por ser aquela que “estuda Deus” e a única que estuda a revelação, abre espaço para reconhecer que há uma antítese religiosa no coração de cada cientista e não nas ciências em si. O estadista e teólogo Abraham Kuyper expressou isto muito bem: Portanto, nem a fé nem a ciência, mas dois sistemas científicos ou se vocês preferirem, duas elaborações científicas são opostas uma a 150

COLETTO, 2012, pp. 82-83. Note que esta perspectiva rejeita divisões como sagrado/profano, religioso/secular, por entender que elas são nocivas. Isto é, perdem de vista que Deus é soberano sobre tudo e que o escopo da revelação é todo abrangente. 151

45 outra, cada uma tendo sua própria fé. Nem pode ser dito que é aqui que a ciência que se opõe a Teologia, pois temos de tratar com duas formas absolutas de ciência, ambas as quais reivindicam o domínio completo do conhecimento humano e ambas as quais têm uma sugestão acerca de seu próprio ser supremo como o ponto de partida 152 para sua cosmovisão.

Enfim, esta perspectiva teológica contribui tanto para o avanço das comunidades científicas cristãs quanto para um dialogo sincero, devido à graça comum, com aqueles que sustentam um pressuposto religioso e um ponto de partida filosófico diferente. Uma terceira contribuição diz respeito às teologias sistemáticas cristãs. Se seu objetivo é articular uma visão teórica total da fé cristã, ela não pode ao mesmo tempo ser capaz de explicar-se a si mesma e fornecer seus fundamentos. Nesta perspectiva, então, uma teologia sistemática cristã tem uma

cosmovisão

cristã

(criação-queda-redenção-consumação)

como

pressuposto e a articulação desta cosmovisão religiosa por uma filosofia distintivamente cristã como ponto de partida filosófico. Conforme Stuart Fowler: “o teólogo não pode permanecer fiel à fé que ele professa se a estrutura filosófica que ele adota não é consistente com esta fé”.153 Sugere-se também uma alteração na organização das teologias sistemáticas. Ao invés do loci tradicional, Deus, Jesus, homem e assim por diante, uma teologia sistemática cristã poderia ser organizada a partir da cosmovisão cristã, rearranjando as explicações teológicas da fé cristã a partir da narrativa criação, queda e redenção. Esta proposta visa trazer uma organicidade a exposição sistemática da teologia e honrar a Escrituras enquanto uma narrativa completa e não como simples proposições racionais.154 Por fim, esta perspectiva abre espaço para o erro e para a correção. Nas palavras de Spykman: “já é passada a hora de descansar sobre tais pretensões triunfalistas”, como se a teologia sistemática tivesse um ar de infalível e detentora da verdade atemporal. Antes é hora de reconhecer que a teologia 152

KUYPER, 2002, p. 107. Stuart Fowler, What is Theology? In: SPYKMAN, 1995, p. 101. Note que a filosofia cristã não é, então, uma articulação neutra e autônoma, desprovida de uma crença religiosa no seu fundamento, o que levou a sua rejeição por Barth. Antes, uma filosofia cristã propõe uma visão teoria total da realidade para teologia sistemática cristã a partir “de dentro”, isto é, as duas compartilhando das Escrituras como fundamentado nouético, tendo na revelação as crenças básicas que irão orientar tanto a filosofia quanto a teologia cristã. 154 Em sua obra Reformational Dogmatics: A New Paradigm for Doing Dogmatics, o teólogo Gordon Spykman arranjou a sistemática desta maneira. 153

46 cristã não tem pretensão de conhecimento absoluto, mas sim de ser o mais fiel possível ao seu pressuposto religioso na tentativa de aprofundar e explicar a vida de fé cristã e junto com as outras ciências que assumem um ponto de partida cristão, aproximar o púlpito da sala de aula, o culto de domingo ao cultivo cultural de segunda, a Igreja e a academia e assim por diante.

47 CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta monografia se debruçou sobre o problema “o que é a teologia”. Devido a divergência de significados da teologia ao longo da história e os limites do próprio pensamento teológico fez-se necessário problematizar e repensar o significado da teologia. Ao buscar identificar a natureza do problema “o que é a teologia”. sugeriu-se que ele só pode ser de ordem filosófica. Primeiro, porque a teologia precisa ir para além do seu universo de discurso para definir sua tarefa e segundo, porque que a história das teologias indica que pontos de partidas filosóficos distintos sustentam construções teológicas distintas. Assim, restaria ao teólogo apenas duas opções: articular o seu ponto de partida filosófico ou partir acriticamente de uma ou outra construção filosófica da realidade, de maneira que, a questão não seria se teologia cristã pressupõe uma filosofia, mais sim, a partir de qual ela deva proceder. Sugeriu-se que a perspectiva filosófica (ponto de partida) para responder o problema deveria ser distintivamente cristã, pois para uma definição da teologia que refletisse a confissão cristã era necessário partir de uma filosofia que começasse do mesmo compromisso religioso. Entretanto, reconhecendo que a ideia de uma filosofia cristã não é geralmente aceita, o projeto apresentou uma breve crítica da autonomia do pensamento teórico pelo viés da filosofia da religião. Ao explicar a realidade, invariavelmente, algo terá que ocupar o papel de explicar último da realidade (status de divino), isto é, a realidade independente de qual todo o resto depende. Viu-se que as diversas construções filosóficas da realidade estão em pé de igualdade, pois necessariamente terão de assumir um compromisso existencial de caráter religioso, mesmo que isso não seja articulado ou reconhecido. Assim, o pensamento filosófico, longe de ser autônomo, reflete o seu fundamento religioso. Com o terreno nivelado, abriu-se espaço para uma articulação filosófica distintivamente cristã da realidade, isto é, que confesse a Cristo como o o Archê transcendente da criação. A ontologia elaborada pelo filósofo holandês Herman Dooyeweerd foi esboçada como uma tentativa de articular a confissão de fé cristã e apresentar um olhar não-reducionista para a realidade criada,

48 abrindo caminho para a redefinição da teologia a partir da confissão cristã reformacional e sua visão teórica total da realidade. Por fim, buscou-se apresentar qual a definição de teologia que resulta da perspectiva filosófica assumida. Para apresentar tal definição, distinguiu-se a atitude pré-teórica da atitude teórica de ser-no-mundo com intuito de apontar a distinção entre a confissão e a teologia como dois modos igualmente válidos, integrados, entretanto, distintos de conhecimento da realidade. Aquele integral e pré-teórico e este teórico e analítico, ressaltando o aspecto pístico como porta de entrada para análise dos eventos e entidades concretas. Esta distinção também serviu de base para sugerir o porquê às definições clássicas falham na sua proposta a respeito do que seja a teologia. Assim, sugeriu-se uma redefinição da teologia como a ciência que estuda a realidade criada a partir do aspecto pístico. A teologia é uma atitude de conhecimento teórico e secundário, que depende da vida de fé como dado primário, sendo distinguida primariamente, não pelo o quê ela estuda, mas pelo como ela estuda. Assim, apontou-se para algumas vantagens dessa redefinição da teologia. Primeiro, uma reorganização curricular dentro do contexto de uma academia cristã, onde a teologia cristã não é vista como supra-ciência, atemporal e nem como subciência, mas um estudo de um dos modos de sentido da realidade. Segundo, apontou-se que esta perspectiva, em princípio, não contribui para a secularização das ciências, bem como as dicotomias que surgem dessa secularização como fé versus razão, Cristo versus cultura e assim por diante. Terceiro, uma reorganização das teologias sistemáticas, de maneira a fazer jus à narrativa cristã (criação-queda-redenção-consumação), buscando dar organicidade ao sistema e reconhecer a integralidade da comunidade e da vida de fé cristãs. Por fim, esta perspectiva, em princípio, abriu espaço para reconhecer a teologia cristã como uma área do saber em construção que não busca apresentar um conhecimento absoluto de Deus ou da vida de fé, mas sim honrar a integralidade das experiências cristãs, buscando ser o mais fiel possível ao seu pressuposto religioso em sua articulação teórica.

49 REFERÊNCIAS AULETE, C. Minidicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 2a Edição ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2009. BARTH, Karl. Church Dogmatics: Volume I. Edinburg: T & T Clark, 1936. BÍBLIA. Língua Portuguesa. Bíblia Sagrada: Nova Versão Internacional. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional, 2002. CALVIN, John. The Institutes of the Christian Religion. Grand Rapids: Christian Classics Ethereal Library, 2002. CARVALHO, G. V. R. Introdução à Filosofia Filosofia Cristã: uma Introdução à Filosofia na Tradição Reformacional. Apostila Não Publicada, 2002. CLOUSER, Roy. The Uniqueness of Dooyeweerd´s Program for Philosophy and Science: Whence the Difference? Christian Philosophy at the Close of the 20th Century, 1995. p. 113–125 CLOUSER, Roy. Is there a christian view of everything from soup to nuts? Pro Rege 31 (June), 2003. p. 1–17 CLOUSER, Roy. The Myth of Religious Neutrality: An Essay on the Hidden Role of Religious Belief in Theories. Notre Dame: University of Notre Dame, 2005. COLETTO, Renato. Encyclopaedic models in the Kuyperian tradition (part 1 : the “fathers”). Journal for Christian Scholarship, Vol 48, 2012. pp. 69-88. COLETTO, Renato. Theology? What is it? Looking for a suitable definition of a rather mistreated discipline. School of Philosophy & Centre for Faith and Scholarship, 2008. p. 4–8. DOOYEWEERD, Herman. A New Critique of Theoretical Thought. Volume III: The Structures of Individuality of Temporal Reality. Ontario: Paideia Press, 1984. DOOYEWEERD, Herman. No Crepúsculo do Pensamento: Estudos sobre a Pretensa Autonomia do Pensamento Filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010. DOOYEWEERD, Herman. In the Twlight of Western Thought: Studies in the Pretended Autonomy of Philosophical Thought. Grand Rapids: Paideia Press, 2012. DOOYEWEERD, Herman. Roots of Western Cuture: Pagan, Secular and Christian Options. Grand Rapids: Paideia Press, 2012.

50 FERREIRA, F.; MYATT, A. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007. KUYPER, Abraão. Calvinismo: o canal em que se moveu a Reforma do Século 16, enriquecendo a vida cultural e espiritual dos povos que o adotaram. O sistema que hoje a Igreja Cristã deve reconhecer como Bíblico. São Paulo: Cultura Cristã, 2002. MILBANK, John. Theology and Social Theory: Beyond Secular Reason. Oxford: Blackwell Publishing, 2006. MILBANK, John; PICKSTOCK, Catherine; WARD, Gran. Radical Ortodoxy: A New Theology. London: Routledge, 1999. OLIVEIRA, Fabiano. Philosophando Coram Deo: Uma Apresentação Panorâmica da Vida, Pensamento e Antecedentes Intelectuais De Herman Dooyeweerd. Fides Reformata XI, v. 2, 2006. p. 73–100. PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta: Libertando o Cristianismo de seu Cativeiro Cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. SMITH, James K. A. Introducing Radical Orthodoxy: Mapping a PostSecularTheology. Grand Rapids: Baker Academic, 2004. SPYKMAN, Gordon. Reformational Theology: A New Paradigm for Doing Dogmatics. Grand Rapids: B. Eerdmans Publishing, 1995. STRAUSS, D. F. M. Philosophy: Discipline of the Disciplines. Grand Rapids: Paideia Press, 2009. VANDER STELT, John. Theology or Pistology? Building the House: Essays on Christian Education. Ed. James A. de Jong and Louis Y. Van Dike. Sioux Center: Dordt College Press, 1981. pp. 115-135. VANDER STELT, John. Theology as Study of Faith-Life. Pro Rege, 1989. p. 15–23. VANHOOZER, Kevin (Editor). The Cambridge Companion to Postmodern Theology. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. WOLTERS, Albert. Criação Restaurada: Base Bíblica para a Cosmovisão Reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.