O que está além do erotismo: Georges Bataille em perspectiva

July 7, 2017 | Autor: André Quirino | Categoria: Georges Bataille, René Girard, Roger Scruton, Eric Weil, Violência, Morte, Erotismo, Sagrado, Morte, Erotismo, Sagrado
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Revista  Aproximação  —  Primeiro  semestre  de  2015  —  Nº  9    

O QUE ESTÁ ALÉM DO EROTISMO: GEORGES BATAILLE EM PERSPECTIVA

André Gomes Quirino Graduando de filosofia na USP

Resumo: Neste artigo, analisamos criticamente as noções de violência, sagrado e morte presentes em O erotismo, de Georges Bataille, assumindo o desafio de fazer dialogar uma filosofia que se pretende ao silêncio. Para tanto, as confrontamos com as mesmas noções conforme expostas por, respectivamente, Eric Weil (cuja oposição violênciarazão consiste em ponto de partida para a abordagem de Bataille), René Girard (cuja obra procura atualizar a antropologia de Mauss e a psicanálise de Freud, as quais fornecem a base para a visão bataillana do sagrado primitivo) e Roger Scruton (cuja análise da ópera romântica Tristão e Isolda situa Wagner numa discussão filosófica que serve de pano de fundo para a problemática de O erotismo) – autores que, segundo sustentamos, levam a uma apreensão mais plena das noções de que Bataille lança mão. A partir da perspectiva alcançada por esses três confrontos, também procuramos revisitar a crítica de Bataille ao mundo do trabalho. Palavras-chave:Morte e erotismo. Mundo do trabalho. Sagrado primitivo. Violência e razão.

Abstract: In this paper, we discuss critically the notions of violence, sacred and death contained in Georges Bataille’s Eroticism, taking on the challenge of putting in dialogue a philosophy that aims to silence. For that, we confront those notions with the same ones as exposed by, respectively, Eric Weil (whose opposition violence-reason consists in starting point for Bataille’s approach), René Girard (whose work seeks to update Mauss’ anthropology and Freud’s psychoanalysis, which provide the basis for Bataillean vision of primitive sacred), and Roger Scruton (whose analysis of romantic opera “Tristan and Isolde” locates Wagner on a philosophical discussion that serves as background for Eroticism’s issue) – authors who lead, as we hold, to a fuller grasp of the notions that

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Bataille makes use. From the perspective achieved by these three confrontations, we also seek to revisit Bataille’s critique of the world of work. Keywords: Death and eroticism. Primitive sacred. Violence and reason. World of work.

1. Introdução Georges Bataille (1897 – 1962), escritor francês, publicou L’érotismeem 1957. O livro divide-se em duas partes: “O interdito e a transgressão” e “Estudos diversos sobre o erotismo”. Na primeira, o autor analisa os tabus mais correntes na história das culturas humanas (relativos à morte, aos excrementos, à nudez, ao sangue menstrual etc.), bem como as formas como eles comumente foram transgredidos, com especial ênfase naqueles que tangem à atividade sexual. O autor também analisa o trato das religiões arcaicas com o erotismo, comparando-o ao trato do cristianismo com o mesmo. Na segunda parte, há estudos de Bataille sobre o famoso relatório Kinsey, as obras do Marquês de Sade, o tabu do incesto, uma série de ensaios sobre sexualidade publicados na revista católica ÉtudesCarmélitaines e as relações entre santidade, erotismo e solidão. Em passagens-chave do livro, Bataille também aplica sua proposta à política, desenvolvendo críticas, nem sempre nominais, à sociedade moderna, ao capitalismo e aos regimes totalitários. Contudo, a estrutura de O erotismo não é linear e sua argumentação não pretende seguir passos lógicos claros. Com isso se coaduna a forma estética adotada pelo autor, sobremaneira influenciado pelo movimento surrealista francês. Isso impõe uma dificuldade de interpretação, e nos impele a respeitar, em cada texto de Bataille que for aludido, o seu contexto imediato e a função que o autor lhe atribuiu perante a obra como um todo. É o que faremos. Outras referências incontornáveis no pensamento de Bataille são as filosofias de Nietzsche e Hegel, a antropologia de Marcel Mauss e a psicanálise de Sigmund Freud. A partir desse arcabouço, ele discorre acercada atividade erótica. Para tanto, lança mão de variadas noções, que não se preocupa em definir cientificamente, conquanto as caracterize com imagens ricas. Bataille critica as abordagens científicas que tomam o erotismo como um objeto puramente exterior. Sua intenção é analisá-lo enquanto experiência interior.Para ele, os interditos relativos ao sexo e aos excrementos

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constituem, junto à história do trabalho e à consciência da morte, “a especificidade humana”(BATAILLE, 2013, p. 241). A princípio, Bataille faz uma distinção entre o erotismo dos corpos, o erotismo sagrado e o erotismo dos corações, mas na maior parte do tempo se refere a um erotismo singular. Também nos referiremos a um erotismo unívoco, que pode ser entendido como qualquer uma das três formas inicialmente distintas, desde que se note que estamos a tratar do erotismo enquanto aspecto da vida interior do homem.1 Lê-se, no primeiro capítulo do livro: “Não falo nem de ritos, nem de dogmas, nem de uma comunidade determinados, mas somente do problema que toda religião se colocou: faço meu esse problema como o teólogo faz da teologia o seu”(BATAILLE, 2013, p. 56). Três caracterizações do erotismo figuram como cruciais para o entendimento da proposta bataillana. Em primeiro lugar, “o erotismo se define pela independência entre o gozo erótico e a reprodução como fim” (BATAILLE, 2013, p. 36), ou seja, ele não tem como intento a procriação, mas apenas a violação do ser do parceiro (BATAILLE, 2013, p. 41): o erotismo é um ato de violência transgressora. Além disso, “o erotismo é, na consciência do homem,o que nele coloca o ser em questão” (BATAILLE, 2013, p. 53); portanto, não pode ser considerado independentemente da história das religiões (BATAILLE, 2013, p. 30), independentemente do sagrado. E o erotismo é “a aprovação da vida até na morte” (BATAILLE, 2013, p. 35), porque, se vemos nos interditos essenciais “a recusa que o ser opõe à natureza encarada como uma dissipação de energia viva e como uma orgia de aniquilamento, não podemos mais diferenciar a morte da sexualidade” (BATAILLE, 2013, p. 86, grifo nosso). Assim, temos as três noções que guiarão o nosso estudo: violência, sagrado e morte. E, como pano de fundo para elas, estão as noções de experiência interior e continuidade,a oposição interdito e transgressão e a história do trabalho, às quais inevitavelmente também nos referiremos. Assumindo o desafio de fazer dialogar uma filosofia que, como veremos, se pretende ao silêncio, confrontaremos a visão de Bataille com as de: Eric Weil, principalmente a partir do livro Logique de laphilosophie2 (cuja oposição violênciarazão consiste em ponto de partida para a abordagem da violência em O erotismo); René Girard (cuja obra procura atualizar, inclusive, a antropologia de Marcel Mauss e a psicanálise de Sigmund Freud, as quais fornecem a base para a visão bataillana do                                                                                                                         1 2

Cf. MORAES, 2013, p. 311. Lógica da filosofia.

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sagrado primitivo), especialmente em La violence et lesacré;3 e Roger Scruton (cuja análise da ópera romântica Tristão e Isolda, Death-devotedheart: sex andthesacred in Wagner’s ‘Tristan andIsolde’,4situa Wagner numa discussão filosófica que serve de pano de fundo para a problemática bataillana) – autores que, segundo sustentamos, levam a uma apreensão mais plena das noções de que Bataille lança mão.

2. Violência e razão: a dualidade Weiliana e a escolha de Bataille Bataille (2013, p. 79) alude à violência no quarto capítulo de O erotismo alegando não poder e não necessitar defini-la precisamente. Então esclarece, numa nota de rodapé, que parte de uma noção originada da “obra magistral de Eric Weil, Logique de laphilosophie”. Em capítulos posteriores, Bataille explicitará uma “antinomia da violência e da consciência”. De acordo com ele,

a vida humana é feita de duas partes heterogêneas que nunca se unem. Uma, sensata, cujo sentido é dado pelos fins úteis, consequentemente subordinados: essa é a parte que aparece à consciência. A outra é soberana: quando a ocasião se apresenta, ela se forma graças a um desregramento da primeira, é obscura, ou antes, se é clara, cega; furta-se, assim, de toda maneira, à consciência (BATAILLE, 2013, p. 220).

Podemos com precisão dizer que esta última parte é a que aparece à violência. Não subordinar-se aos fins úteis, mas agir soberanamente, num ato de transgressão, alcançando assim o instante sagrado, a continuidade, é precisamente a caracterização que Bataille faz do erotismo. Não se trata em primeiro lugar, como poder-se-ia precipitadamente depreender, de desafiar imposições vindas de autoridades exteriores ou acordos sociais. Antes de tudo, o erotismo é uma experiência interior, “dada no instante em que, quebrando a crisálida, ele [o homem] tem a consciência de dilacerar a si mesmo, não a resistência oposta de fora” (BATAILLE, 2013, p. 62). Trata-se de um drama interno a cada ser humano. Assim também a violência é caracterizada por Weil (1967), que concebe a vida humana como sendo constituída fundamentalmente pela dualidade violência e logos                                                                                                                         3 4

A violência e o sagrado. Coração devotado à morte: sexo e sagrado em ‘Tristão e Isolda’, de Wagner.

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(razão, linguagem, discurso). Essa dualidade seria insuperável, estando presente em toda a história humana – e da filosofia –, como uma realidade permanente. Para Weil, violência e razão são antônimas, as duas possibilidades extremas do ser humano. Naturalmente tendemos à violência, mas é-nos dada a possibilidade de escolher5 a razão. A violência é estranha a quem escolhe a razão; a razão é estranha a quem permanece na violência. Enquanto se está na violência, não se tem conhecimento da existência da dualidade, nem se sabe com clareza que se está opondo à razão. Mas o estado ou escolha inicial não é irreversível. Mesmo quem permaneceu na violência pode, em algum momento, voltar-se à razão, e então tomará conhecimento de que a dualidade existe. Por outro lado, quem escolheu a razão sabe necessariamente da existência da dualidade, e vê a si mesmo, enquanto ser racional, ameaçado pela possibilidade da violência. O filósofo é o protótipo desse ser racional: ele sabe que a violência é capaz de destruir a linguagem, o discurso, a filosofia, e portanto a teme, mais do que a qualquer outra ameaça. Mas quem escolhe a razão também pode a qualquer momento aderir novamente à violência, se conscientemente – conquanto incontrolavelmente – o desejar. A tensão entre violência e razão é perene. Ambas são possibilidades constantes para o ser humano. Em Bataille, esse drama é a princípio o pano de fundo para a contemplação do erotismo. Servindo como uma espécie de metonímia da razão, os interditos que se opõem à ação erótica não devem ser considerados erros de que a humanidade é vítima; eles são uma escolha sempre possível, legítima, frequentemente inevitável, para as comunidades humanas, “efeitos do sentimento fundamental de que a humanidade dependeu” (BATAILLE, 2013, p. 61). Por isso mesmo, a violência, impulso oposto, nãoé uma vontade refletida, racionalizada, de violência; a razão sempre a nega, por considerá-la inútil e perigosa, e somente não a suprime porque disso não é capaz. Em Weil (1967), por um lado, o homem pode compreender a si mesmo e, por este mesmo fato, não é pura violência,6 mas, por outro, o homem não é, nem jamais será, ele mesmo, discurso, nem é “essencialmente razão, mas apenas razoável” (PERINE, 2006, p. 325). Verdadeiramente, em seu estado natural, o homem é um ser violento. “A violência não é somente a outra possibilidade, mas a possibilidade realizada em primeiro lugar: o discurso se forma, o homem forma o seu discurso na violência contra a                                                                                                                         5

Embora não se trate de uma escolha razoável, mas, sim, livre – “o que significa, do ponto de vista do discurso absolutamente coerente, uma escolha absurda” (WEIL, 2012, p. 86). 6 Cf. PERINE, 1987, p. 136.

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violência” (WEIL, 1996, p. 69apud VALE, 2011, p. 157). Mas que é a violência? Na perspectiva weiliana, violência é não se justificar racionalmente. Quando o homem pretere a violência em favor da razão e se transporta para o mundo do discurso coeso, cada ato violento é em si negatividade, enquanto ameaça à razão, mas a possibilidade mesma da violência é positividade, enquanto constatação racional de liberdade. Nesse estado, o homem de algum modo vence a dualidade violência e razão, porque a compreende racionalmente e, não obstante tenha liberdade para escolher a violência, prefere o discurso. Mas, pelo mesmo motivo, num sentido mais profundo, a dualidade continua sendo necessária, e a violência é, nas palavras de Weil (1967, p. 55apud PERINE, 2006, p. 322), o “motor sem o qual não haveria movimento”, sem o qual, vale dizer, a razão não seria razão. O erotismo causa escândalo porque a violência é sua alma. Toda a sua atividade “tem por fim atingir o ser mais íntimo, no ponto onde ficamos sem forças, onde nos enfraquecemos e nos aniquilamos” (STROZZI, 2007, p. 16). O desejo erótico é movido por, em e para a violência, isto é, a “violência daqueles que negam todo interdito, toda vergonha, e só podem manter essa negação na violência” (BATAILLE, 2013, p. 163). Como notará Girard (1998, p. 183), “a violência é ao mesmo tempo o instrumento, o objeto e o sujeito universal de todos os desejos”, e para Bataille – como também para Weil (cf. 1967, p. 57) – o homem codifica linguisticamente suas experiências empíricas a fim de conferir inteligibilidade à vida, de modo que o erotismo, na medida em que é violento, “existe para nós como se não existisse” (BATAILLE, 2013, pp. 278-9). Se o mundo do trabalho o recusa por razões práticas evidentes, a linguagem o faz com a mesma intensidade, porque “a violência é contrária a essa lealdade para com o outro que é a lógica, que é a lei, que é o princípio da linguagem” (BATAILLE, 2013, p. 217). Nos termos bataillanos, “a violência que apavora, mas fascina” é visada pela sexualidade tanto quanto pela morte. Ao passo que o mundo dos interditos, da consciência, da razão, tem por objetivo conservar a vida, a consequência da irregularidade, da transgressão, da violência, é a destruição. Erotismo é necessariamente violência, e violência é necessariamente barbarismo, mas Bataille enfatiza que barbarismo não é necessariamente involução: [...] os civilizados falam, os bárbaros se calam, e aquele que fala é sempre civilizado. Ou, mais exatamente, a violência é silenciosa, já que a linguagem é, por definição, a expressão do homem civilizado. [...] civilização e

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Bataille insiste que esse discurso fundado na mentira é um erro grave, uma vez que nega aquilo mesmo que define o humano. É neste ponto que a exposição weilianada dualidade violência-razão se mostra melhor realizada: é verdade que o homem não seja a mesma coisa que a linguagem, que a violência seja própria a toda a humanidade e que seja possível ao homem racional escolher a violência conscientemente. Mas um primeiro esclarecimento necessário é que um homem não é cínico quando trata a violência com estranheza, uma vez que, tendo se voltado à razão, a violência torna-se-lhe de fato estranha. Outrossim, na medida em que a intenção de Bataille é exaltar (e não apenas voltar-se a) a possibilidade da violência, requer-se de sua proposta a máxima independência do discurso. O autor toma o cuidado de se contrapor a toda forma de “apologia verbosa do erotismo” (BATAILLE, 2013, p. 291), mas lhe escapa que não apenas a apologia, mas o próprio elogio à violência é já um raciocínio. Mesmo a estética influenciada pelo movimento surrealista e o desenvolvimento de uma filosofia que pretensamente sacrifica a linguagem7 dependem de um esclarecimento, dependem do logos.8 Do ponto compartilhado de que o estado natural do homem é a violência, porém, se seguirão outras reflexões profícuas. Quando fizer uma aproximação entre o assassinato e o sacrifício, atos comuns ao homem primitivo, Bataille concluirá que a semelhança entre ambos é a presença da violência. Como observa Strozzi (2007, p. 112), daí a se afirmar que a violência é inata ao homem tem-se apenas um passo. E esse passo é definitivamente impulsionado pela constatação girardiana de que todos os métodos                                                                                                                         7

Weil não necessita operar emendas semelhantes porque a sua Lógica da filosofia, que revela e reconhece a permanente dualidade violência e discurso, procura precisar “o logos do discurso eterno na sua historicidade” (PERINE, 2006, p. 320), através de uma filosofia das atitudes (ver PERINE, 2006, p. 318). 8 Na conclusão de O erotismo, o autor menciona uma objeção feita por Jean Wahl que tem o mesmo sentido da que desenvolvemos acima. Bataille (2013, p. 301) reconhece então que “no limite, por vezes, a continuidade e a consciência se aproximam”. Fatalmente, essa concessão implica problema a trechos (constantes durante o livro) como: “só a violência, uma violência insensata, que quebra os limites de um mundo redutível à razão, nos abre à continuidade!” (BATAILLE, 2013, p. 164).

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com vistas à moderação da violência – entre eles, o sacrifício para apaziguar a ira de um deus e a punição social imposta a assassinos – envolvem a violência. A violência é desejada, desejada violentamente, e “se o desejo segue a violência como sua sombra, é porque ela significa o ser e a divindade” (GIRARD, 1998, p. 190). Em última análise, todas as formas de violência têm uma origem e uma finalidade em comum, como mostrará René Girard. O pensamento moderno, como todos os pensamentos anteriores, busca explicar o exercício da violência e da cultura em termos de diferenças. É este o mais enraizado de todos os preconceitos, o próprio fundamento de qualquer pensamento mítico: apenas uma leitura correta do religioso primitivo pode dissipá-lo [...] (GIRARD, 1990, p. 380).

3. Da violência ao sagrado: Bataille, Girard e as narrativas do sacrifício Ainda no prólogo de O erotismo, Bataille (2013, p. 30) revela que sua maior atenção, enquanto escrevia o livro, dirigia-se à possibilidade de encontrar numa perspectiva geral a imagem de Deus, pela qual sua adolescência fora obsedada. Assim, o erotismo é considerado por ele enquanto aspecto da vida religiosa do homem. Uma vez que os interditos mais comuns à sociedade humana são os que restringem o contato com a morte e com a atividade sexual, ele conclui que ambas formam o domínio sagrado. Bataille o caracteriza como o mundo da festa, dos soberanos e dos deuses, em complementaridade ao mundo profano. Então se lança a investigar a experiência interior, crendo que a busca iniciada pela religião permite aos homens modernos alcançar o êxtase desejado sem para tanto necessitar fundamentar-se em dogmas. Para alcançá-lo, o erotismo é apresentado como um meio comparável ao sacrifício, este último mui frequente nos primórdios das sociedades humanas.

O amante não desagrega menos a mulher amada do que o sacrificador que sangra o homem ou o animal imolado. A mulher, nas mãos daquele que a assalta, é despossuída de seu ser. Perde, com seu pudor, essa firme barreira que, separando-a de outrem, a tornava impenetrável: bruscamente, ela se abre à violência do jogo sexual desencadeado nos órgãos de reprodução, abre-se à violência impessoal que a transborda de fora (BATAILLE, 2013, pp. 114-5).

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Girard (2008) percebe, na história primitiva e na literatura, um mecanismo universal: trata-se do desejo mimético. Haveria uma triangularidade no desejo humano: conscientemente ou não, um sujeito somente é levado a desejar um objeto se este for desejado por outro sujeito, que é tomado pelo primeiro como modelo. A isto chama-se mimesis de apropriação. Contudo, não raro, o primeiro sujeito é incapaz de realizar o desejo que imitou de seu modelo. Então, o segundo sujeito passa a ser visto como um rival pelo primeiro, e também considera este um rival quando nota que está sendo imitado, uma vez que a rivalidade não extingue o mimetismo, mas simultaneamente o sugere e interdita. Tem-se aqui um doublebind, o qual culminará numa crise mimética, quando objeto, sujeito e desejo tornam-se indiferençáveis. Esse processo gera violência, a qual tende a se alastrar pela comunidade assim como o mimetismo. O desejo de violência precisa ser satisfeito, mas não o pode ser difusamente, pois desse modo dar-seia uma autodestruição coletiva. Ele é, então, canalizado contra um bode expiatório, eleito irracionalmente por todos os demais como o portador da culpa. Tem-se o “assassinato fundador da cultura humana”, a partir do qual pode-se diferenciar os integrantes da sociedade e regulamentar ou racionalizar a violência.9 Como o desejo mimético não se extingue após o homicídio, a vítima do sacrifício, como a etimologia indica, torna-se sagrada: rememorá-la traz paz à comunidade, que em torno dela se reúne, se religa (e novamente há conformidade com a etimologia: daí religare, raiz da palavra religião), procurando sempre renovar ritualisticamente sua morte pacificadora. Embora esclareça que erotismo e santidade não são de mesma natureza, Bataille (2013, p. 330) insiste, no texto inédito “A significação do erotismo” tanto quanto na obra publicada, em apontar o erotismo como fundamentalmente participante do mesmo impulso que o divino. Ele lembra que o vocabulário dos êxtases místicos é semelhante ao do amor sexual, e o explica apontando para o fato de ambas as práticas envolverem arrebatamentos violentos. Girard (1998, p. 49), por seu turno, acusa certa superficialidade nas interpretações do sagrado que se baseiam na sexualidade e                                                                                                                         9

Cumpre notar que Girard é mais preciso que Freud, porque distingue o assassinato fundador como um sacrifício. A partir de Weil, seria difícil conceber um puro e simples assassinato fundador da cultura, haja vista o ato de matar alguém só poder ser chamado assassínio (i.e., tornar-se alvo de um juízo moral) após haver se passado da violência para a razão. A ideia de um sacrifício fundador, porém, parece conciliável com a dualidade weiliana: não há qualquer elemento de racionalidade na violência que reúne a comunidade em torno do bode expiatório para agredir-lhe fatalmente (a comunidade não tem consciência de estar injustamente elegendo um bode expiatório), mas os que ali se reuniram serão repentinamente despertados à razão.

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minimizam o essencial da violência (de que o erotismo é, mesmo para Bataille, uma forma, mas não a única expressão), mencionando o fato de que os modos mais extremos de violência, ao contrário do ato sexual, são coletivos. Essa ressalva é de alta importância: em Bataille, o dado antropológico fundamental são os interditos – é a partir deles que o autor busca compreender o sacrifício. Em Girard, o dado antropológico fundamental é o desejo mimético, e é a partir das consequências deste – notadamente, a crise mimética – que se buscará a compreensão dos interditos. Girard insiste que a teoria mimética não implica uma “iniciação”, pois seus fundamentos são reconhecíveis por qualquer que estude a história humana. Assim, empreende uma análise de variados autores que teriam vislumbrado o mecanismo do desejo mimético, mas não com suficiente distinção para identificá-lo. Entre estes estaria Freud, que necessitou imaginar um “instinto de morte” humano por “não enxergar que o dinamismo do desejo mimético é desde sempre orientado para a loucura e a morte” (GIRARD, 2008, p. 467). Bataille seria outro exemplo? Ele se aproxima da constatação do mimetismo, quando afirma, ao tratar da orgia, que, “na esfera humana, o exemplo é contagioso” (BATAILLE, 2013, p. 139). Girard (1998, p. 273), na única menção que faz a Bataille em A violência e o sagrado, conquanto acuse O erotismo de ser expressão extrema de um esteticismo decadente, reconhece-lhe o mérito de reformular a verdadeira função dos interditos, que fora descoberta e esquecida por Freud. Contudo, um ponto de discrepância é revelador: por subordinar a instituição do sacrifício à existência dos interditos, Bataille se vê na necessidade de distinguir o sacrifício humano do sacrifício animal. Para ele, uma vez que sagrado é o que não é sujeito a interditos, a princípio os homens, percebendo a indiferença dos animais para com as regras humanas, consideraram os animais mais sagrados do que eles próprios e, como os sacrifícios não tinham ainda fins substitutivos,10 imolavam precisamente esses animais. Para Girard, uma vez que o sacrifício é a solução para uma crise mimética, tanto uma vítima humana quanto uma vítima animal podem, e só podem, ser divinizadas após sacrificadas11, quando transformam-se em fonte de paz para a comunidade, o que motiva a observação de interditos que tenham por fim resguardá-la de novas crises miméticas. Girard reitera                                                                                                                         10

Os ritos sacrificiais seriam o modo de o aspecto violento e deletério do divino se manifestar (BATAILLE, 2013, p. 208), ao ponto de o critério de escolha das vítimas ser a possibilidade de expor o mais sensivelmente a brutalidade da morte (BATAILLE, 2013, p. 168). 11 A partir desse ponto de vista, pode-se também explicar com naturalidade o questionamento levantado por Bataille (2013, p. 274) quanto a Cristo não ter sido objeto de meditação mística enquanto vivera.

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que não se pode isolar qualquer tipo de sacrifício de sua instituição mesma. Nesta perspectiva, a menção que Bataille (2013, p. 207) precisa fazer a um miasma de morte, causado em todos os homens que acolheram o princípio de divindade, exibe-se flagrantemente ad hoc, tanto quanto o instinto de morte freudiano. Nos termos de Mayné (1993, p. 171), a divergência fundamental entre a proposta “a teológica” de Bataille e a proposta “teológica” de Girard se dá precisamente no problema da escolha da vítima sacrificial, que, para Bataille, deveria ser algo ou alguém precioso para a comunidade (MAYNÉ, 1993, p. 11), enquanto, para Girard, poderia ser praticamente “qualquer um”. Essa não é uma descrição precisa de como Girard enxerga a instituição do sacrifício. Embora ele afirme que a escolha da espécie a ser imolada é uma questão de sorte mais do que de talento (GIRARD, 2008, p. 461) – e a razão para essa posição está dada no que expúnhamos anteriormente, a saber, que a existência dos interditos é que subordina-se à instituição do sacrifício (que, por sua vez, é engendrado por um mecanismo de desejo mimético), em vez de o contrário –, quanto à escolha do indivíduo a ser submetido ao ato sacrificial afirma-se que, quanto mais aguda é a crise mimética, mais a vítima deve ser “preciosa” aos olhos da comunidade (GIRARD, 1998, p. 31). Mayné (1993, p. 106) aproxima a visão girardiana à de Henry Miller, que aspira a um mundo completamente esvaziado de sua violência, o que equivaleria à sociedade criticada por Bataille, que é “homogênea, autocentrada, sobrecarregada pelo trabalho, receosa e hostil ao estrangeiro e ao desconhecido, que tem todas as respostas e é tão amorfa e incapaz de questionar a si mesma que pode gerar o fascismo”. A bem da verdade, para Girard é nas crises miméticas, em que a violência é eminente, que as sociedades se mostram homogêneas, porque então não há diferenciação. De todo modo, ele é categórico ao dizer que a morte do bode expiatório não extingue a violência, e por isso mesmo o sacrifício precisa ser rememorado sazonalmente em forma de ritos, o que abre para a possibilidade de se alcançar sempre e novamente o sagrado. Assim, a ausência do sagrado corretamente denunciada por Bataille não poderá ser superada retornando-se à violência pré ou meso-sacrificial, confiando-se que aí haverá um “miasma de morte” capaz de guiar-nos ao divino. O sagrado está no cântico de “felix culpa!” que a comunidade religiosa entoa, e que Bataille mais de uma vez precisou mencionar, mas em nenhuma delas reconhecendo que ali se encontrava uma problematização decisiva à sua proposta.

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A experiência mística interessa à crítica de Bataille ao mundo do trabalho na medida em que ele enxerga nela, ou mais especificamente em seus “estados teopáticos”, a possibilidade de uma soberania completa. Na visão bataillana, os transes e arrebatamentos constituem um desprendimento em relação à manutenção da vida. O homem, diz Bataille (2013, p. 300) na conclusão de seu livro, é “essa abertura a todo o possível, essa expectativa que nenhuma satisfação material poderá apaziguar e que o jogo da linguagem não poderia enganar”. A esse ser, o sagrado é indispensável, é mesmo inevitável; “num mundo inteiramente profano, não haveria mais que a mecânica animal” (BATAILLE, 2013, p. 152). Portanto, é preciso que a noção que se tem do sagrado incorpore toda a complexidade que sua vivência exige para que a crítica e toda a proposta bataillana possam se desenvolver. Na visão de Girard, Bataille é o principal de uma leva de pensadores cujo erro básico é inverter os significados de arcaico e de cristianismo, propondo em seguida, para que se retorne ao primeiro, um desvencilhamento do último.12 De fato, conforme indica Hussey (2000, p. 5), interessava a Bataille as experiências místicas que se mostrassem independentes de tradições religiosas. Bataillanamente, a soberania só pode ter lugar no homem enquanto não houver qualquer ente soberano, ausência que permite mesmo ao mais miserável dos homens ser Deus, desde que blasfeme (BATAILLE, 2013, p. 296). Esse fetiche do pecado acompanha todo o livro de Bataille, e o cerne de sua crítica ao cristianismo é que esta religião haveria encoberto o que a transgressão revelaria: “que o sagrado e o interdito se confundem, e o acesso ao sagrado é dado na violência de uma infração” (BATAILLE, 2013, p. 150). Em Girard (GIRARD; GOUNELLE; HOUZIAUX, 2011), é o inverso que se dá. A vingança (rivalidade mimética) é apresentada como a primeira invenção humana, invenção que possui algo de religioso, pois transcende os indivíduos que a desejam e dá-lhes a impressão de que transcende também o tempo e o espaço. Em seguida, exibe-se a peculiaridade do cristianismo: ao contrário dos mitos arcaicos, em que os bodes expiatórios são sempre culpados, os Evangelhos narram o drama do sacrifício sob a ótica da vítima, que é inocente. Em termos girardianos, enquanto os mitos arcaicos encobriam a vocação humana de perseguir seus semelhantes, fazendo-nos crer que os bodes expiatórios eram de fato culpados, o cristianismo a revela, mostrando que a vítima é inocente, que culpados são                                                                                                                         12

CHANTRE, Benoît. Entretien René Girard. Extratos. [S.l.]: [s.n.]. Disponível em: Acesso em: 24out. 2014, 02:07:43.

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os que a mataram e, o que é ainda mais profundo, que foi a culpa destes que sacrificou a vítima inocente, e esta não se vingou.13 Assim lemos no prefácio de Madame Edwarda, incluído por Bataille como último capítulo de O erotismo:

É o sentido, é a enormidade desse livrinho insensato: esse relato coloca em jogo, na plenitude de seus atributos, o próprio Deus; e esse Deus, não obstante, é uma prostituta, em tudo semelhante às outras. Mas aquilo que o misticismo não pôde dizer (no momento de dizê-lo, ele desfalecia), o erotismo o diz: Deus não é nada se não for superação de Deus em todos os sentidos; no sentido do ser vulgar, naquele do horror e da impureza; finalmente, no sentido de nada... (BATAILLE, 2013, p. 296).

Efetivamente, como afirma Hussey (2000, p. 166, tradução nossa), “a experiência interior almejada por Bataille tem como objetivo colocar a morte de Deus na forma de um sacrifício”. Girardianamente, é a realização desta proposta o que os Evangelhos narram. Bataille insiste no momento erótico como o mais intenso e significativo da vida humana. Esse estatuto só pode ser posto à prova quando se está perante o limite da vida, quando se está perante a morte. Esta é a terceira noção crucial em O erotismo para a qual nos voltaremos, valendo-nos da obra de Roger ScrutonDeath-devotedheart: sex andthesacred in Wagner’s‘Tristan andIsolde’.

4. A morte que satisfaz: o homem soberano de Bataille perante Tristão e Isolda A ênfase de Bataille ao tratar da morte não é, num primeiro momento, o desfalecimento literal a que os romancistas frequentemente recorrem. Seu método é, prioritariamente, comparar a toda e qualquer forma de morte a prática erótica, que implica “lapetitemort” (“a pequena morte”, eufemismo da língua francesa para o orgasmo), cuja distância até a morte real seria insensível (BATAILLE, 2013, p. 266). Mais do que no clichê do enamorado que se dispõe a morrer na ausência da amada, a noção bataillana de morte insiste, refletindo a visão do Marquês de Sade, que, se o ato sexual é comparável ao sacrifício, então o desejo erótico é, no limite, um desejo de que o                                                                                                                         13

Bataille (2013, p. 208) enxerga na divindade uma necessidade primordial de consumir e de arruinar que, em Girard, não poderia ter outra origem que não o mimetismo humano.

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ser amado pareça tanto quanto possível estar morto, no sentido ativo de negligenciar as prudências que o medo da morte engendra, para que assim possa ser contemplado como algo sagrado e, com a condição de que o amante também se entregue à morte, ser desfrutado num sentimento de continuidade. A morte é o que “abre para a negação da duração individual” (BATAILLE, 2013, p. 47), “é o que arranca-nos da obstinação que temos de ver durar o ser descontínuo que somos” (BATAILLE, 2013, p. 40). Entregar-se a ela tem também um sentido positivo, uma vez que, como dizia Hegel, “a morte é o que há de mais terrível, e manter a obra da morte é o que exige a maior força” (apud BATAILLE, 2013, p. 292). Morrer torna-se, assim, num sentido muito particular, ser liberto da monotonia. Bataille (2013, p. 333) nos diz, numa adição inédita a O erotismo: “A repetição é a sina do homem que não morre”. Na medida em que confunde objetos distintos, recusa o desejo de retrair-se em si mesmo e, por assim dizer, instaura a eternidade, o erotismo é um convite para a morte. Não obstante para os homens racionalizados ela pareça extraordinária, os mecanismos reprodutivos encontrados na natureza, em sua maioria, dependem da morte. Além disso, em muitos casos, um cadáver humano não é considerado impuro exceto enquanto nele borbulha a dinâmica da decomposição, que aparece como uma forma agressiva de vida. De algum modo, a vida implica a morte, sendo verdadeira também a recíproca. Aqui Bataille se encontra com Girard (1998, p. 320), que afirma: “na morte há morte, mas também há vida. Não existe vida, no plano da comunidade, que não fale da morte”. E Girard continua, propondo que, devido ao fato de na morte se reunirem o mais benéfico e o mais maléfico, ela pode aparecer como a verdadeira divindade. Bataille (2013, p. 294) percebe o paradoxo que torna a morte sagrada, e a equipara à alegria; segundo ele, “só chegamos ao êxtase na perspectiva, mesmo que longínqua, da morte, do que nos aniquila”. Como escreve em A experiência interior, a morte significa, num sentido vulgar, inevitável, mas num sentido profundo, inacessível. Uma das teses principais de Scruton (2003) é a de que Tristan undIsolde constitui uma intervenção de Wagner na questão filosófica alemã agravada por Kant e explorada por, entre outros, Schopenhauer: os limites da autonomia humana. Vislumbrava-se então o curioso paradoxo de os homens serem, simultaneamente, sujeitos cognoscentes que agem e objetos do mecanismo natural de causalidade. A tese de Wagner, segundo Scruton, é a de que no amor erótico o ser humano pode ser ao mesmo tempo sujeito que contempla e deseja um objeto e objeto que é contemplado e desejado por um sujeito. De http://www.aproximacao.ifcs.ufrj.br/    

 

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fato, numa carta inacabada e não enviada de Wagner a Schopenhauer, o compositor fala da nossa “predisposição ao amor sexual” como “um caminho para a salvação, o autoconhecimento e a autonegação da vontade” (apud DAUB, 2014, p. 33, tradução nossa).14 Para Bataille (2013, p. 266), algo semelhantemente, o amor é “um movimento de perda rápida, logo escorregando para a tragédia, e só se detendo na morte”. Como escreve Scruton (2003, p. 13, tradução nossa), a morte “está no coração da comunidade moral, e o amor é uma relação entre coisas moribundas. [...] o amor também inclui, em sua forma mais alta, um reconhecimento e uma aceitação da morte”. Para Bataille (2013, p. 257), porém – e nisto se percebe a influência de Nietzsche –, a distinção do homem em relação ao animal reside no movimento da sexualidade em que a sordidez entra em jogo e em que, por conseguinte, a sexualidade benéfica “desejada por Deus” dá lugar à maldição. Bataille (2013, p. 109) supõe que o mundo dos interditos surgiu como uma reação dos primeiros homens à reprodução da vida (alcançada, no caso humano, por vias sexuais) e à morte: “considerada em seu conjunto, a vida é o imenso movimento que a reprodução e a morte compõem”, e isso nos causa vertigem. Mas tal reação haver-se-ia constituído somente após a consciência dos primeiros homens ter se despertado pelo trabalho. Se, por um lado, o falecimento de um trabalhador acarreta empecilhos concretos para o progresso do trabalho, por outro, a morte entrega o falecido ao mundo da continuidade, colocando em evidência aos homens vivos que ainda trabalham (e que, assim, conhecem a própria descontinuidade) quão vão é o seu labor. Desse modo, não apenas a morte física, mas também a morte alcançada no erotismo, na medida em que é um caminho para a continuidade, é um “grave desarranjo”, um “completo transtorno”, um “desastre elementar”, em relação ao mundo do trabalho. Nesse sentido, assassinato, guerra e vida sexual podem ser equiparados, porque todas essas atividades são, em tese, negações do medo de morrer e, como se expressa Strozzi (2007, p. 108), “o trabalho e o medo de morrer são solidários”. Em sua motivação de desafiar o medo da morte e afirmar a naturalidade da mesma, Bataille empreende uma apologia de “tudo o que é mais do que o que é”, isto é, uma apologia da superação dos limites:“jamais me subordino, mas reservo minha soberania, que só minha morte, que provará a impossibilidade em que eu estava de me                                                                                                                         14

Bataille (2013, p. 258) considerava as teses de Schopenhauer acerca da sexualidade “simplificações”.

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limitar ao ser sem excesso, separa de mim” (BATAILLE, 2013, p. 295).15Scruton não é totalmente alheio à visão de que a morte no erotismo, conquanto seja um caminho ao sagrado, envolve a maldição. Ele diz:

Um mundo de coisas sagradas é um mundo de santidade, consagração e sacrifício, e também de sacrilégio e profanação: essas coisas estão conectadas, não meramente na etimologia, mas também nas profundezas de nossas emoções sociais (SCRUTON, 2003, p. 7, tradução nossa).

Entretanto, ele observa que “a humanidade não pode viver de profanação” e, “se não redescobrirmos o momento sagrado, perderemos a perspectiva em que a nossa liberdade reside” (SCRUTON, 2003, p. 198, tradução nossa). A diferença das conclusões que se encontram na filosofia de Bataille se dá pela drástica concepção do autor do que seja a supracitada maldição. Ora, para Bataille, superar limites (morrer) é tão inevitável quanto estabelecê-los, e o Deus cristão é um dos limites estabelecidos pelos homens: é inevitável superar Deus. Bataille (2013, p. 295) afirma que “o ser nos é dado numa superação intolerável do ser, não menos intolerável do que a morte”, e que, haja vista a morte literal retirar o ser de quem a ela sucumbe (uma vez que para além dela não há redenção), devemos buscá-lo no sentimento da morte (que pode ser atingido, por exemplo, no erotismo). Bataille (2013, p. 165) arremata: “O que o amor por Deus atinge no ápice é em verdade a morte de Deus”. A existência desse sentimento (que não está presente apenas em Bataille) é comentada por Scruton:

A sociedade moderna está vivendo à sombra da morte de seus deuses. E isso significa que nós vivemos com uma consciência realçada da nossa contingência – do fato de sermos lançados no mundo sem nenhum objetivo ou explicação (SCRUTON, 2003, p. 10, tradução nossa).

                                                                                                                        15

Nos termos de Girard (1998, p. 319), “a morte é a pior violência que se pode sofrer”. Com efeito, a morte pode, tanto quanto a violência, ser considerada como estando em oposição à razão. Diante desta, diz-nos Strozzi (2007, p. 152) acompanhando o pensamento de Bataille, a morte é uma impostura. Aceitando-se essa oposição – e não vemos como se possa bataillanamente negá-la –, é forçoso asseverar que, assim como o apelo à justificação racional para sustentar a violência, o apelo à manutenção da descontinuidade individual para exaltar a premência da morte exibe-se como uma grave inconsistência.

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Mas, ele continua, o amor erótico não nos permite escapar de nossa culpa; antes, coloca-nos numa posição em que a confrontamos e expiamos. O amor do tipo mais alto é uma peregrinação para um lugar de purificação e sacrifício. E nesse lugar permanece a Morte, guardiã do mistério último. No amor nossa contingência se torna uma necessidade, e nossa mortalidade um tipo de eternidade [...](SCRUTON, 2003, p. 11, tradução nossa).

Não está nos objetivos de Scruton distinguir o erotismo (que, numa das caracterizações de Bataille, não tem a reprodução como fim) do amor romântico; antes, ele se refere abrangentemente a um “amor erótico”. Contudo, perante a insistência de Bataille em associar o erotismo à morte, podemos apreender as disparidades entre a sua concepção do erotismo e a concepção de Scruton do amor erótico a partir das ressalvas que este faz à devoção à morte. Ele enfatiza que a redenção, para os deuses tanto quanto para nós, está no amor e na aceitação exaltada da morte que o amor torna possível, ou seja, que a morte não é ela mesma a redenção, mas adquire esse significado “quando concebida, por assim dizer, sob o aspecto do amor – apenas quando parte de um ato todo abrangente de renúncia, inspirado pelo amor” (SCRUTON, 2003, p. 13, tradução nossa). Em Bataille, em princípio, a renúncia é portadora de um valor inerente. É fundamentalmente à negação de si mesmo implicada pelo erotismo que o autor dirige seu elogio. Entretanto, se o que se afirma em detrimento do “eu” é a continuidade, a negação de si requer necessariamente a presença de outrem.16 Disso decorre que a morte enquanto mera superação de limites, no erotismo, depende de uma segunda personagem cuja ausência poderia causar no amante, em última instância, uma morte literal. Ou seja: a morte que é objeto de devoção na ópera de Wagner é a continuidade bataillana levada às últimas consequências. Bataille (2013, p. 268) o vislumbra, quando afirma que “a privação eventual da posse do outro – ou a perda de seu amor – não é sentida menos duramente do que uma ameaça de morte”, e que dizê-lo não é equiparar a febre sensual ao desejo de morrer ou o amor ao desejo de perder, mas assumir que o amor é o desejo de “viver no medo de sua perda possível, o ser amado mantendo o amante à beira do desfalecimento”.                                                                                                                         16

Evidentemente, utilizando-se “erotismo” como metonímia para outras experiências interiores (e.g., o êxtase místico), a presença física do amado também se tornará metonímica, havendo apenas que se preservar, noutros termos, a noção de necessidade de um Outro sagrado.

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Qual será, destarte, a inovação substancial da proposta de Bataille, comparada, por exemplo, à proposta de Wagner?17 Sabemos que o homem só pode alcançar o erotismo, neste mundo da razão, por meio da violência extrema que é a morte. Quanto mais lhe é negado alcançar a continuidade, mais devotado à morte ele se mostra, e essa devoção é em si mesma uma abertura para a continuidade. Esse jogo pode se aprofundar ao ponto de fazer brotar o desejo de soçobrar, que é o desejo de morrer acrescido do desejo de viver “nos limites do possível e do impossível”, que “fustiga intimamente cada ser humano”, e que “talvez só Santa Teresa tenha pintado com suficiente força nestas palavras: ‘Morro de não morrer’!” (BATAILLE, 2013, p. 266). Bataille pensou que o erotismo declarasse a morte de Deus porque depreendeu da vulnerabilidade dos sujeitos que se relacionam a falta de sentido da existência. Wagner fez Tristão e Isolda se entregarem à morte objetivamente, para assim nos mostrar que a vulnerabilidade da vida é a conditio sinequa non do amar. Como descreve Scruton (2003, p. 8, tradução nossa): na ópera wagneriana, aponta-se “o caminho para a redenção, mostrando-se que a mortalidade, a contingência e o Geworfenheit [‘serlançado’] acidental da nossa existência são, na verdade, pré-condições do sacrifício que faz a vida valer a pena”.

5. Considerações finais Assim, acompanhamos neste artigo o tratamento que Georges Bataille dispensa a três noções fundamentais para sua visão do erotismo, insistentemente confrontando-as com o tratamento dispensado às mesmas noções por outros autores: a violência, o sagrado e a morte. Na maior parte do tempo, o expediente bataillano é teológico (ou, antes, “a teológico”), mas a aplicação mais recorrente em O erotismo dessas e de outras noções é como fundamentação para uma crítica ao mundo do trabalho. Bataille (2013, p. 293), sem dúvida, tem o mérito de analisar os interditos estabelecidos pelas sociedades humanas evitando a crítica rasteira de que eles são preconceitos dos quais é tempo de se desfazer. Contudo, sua proposta esbarra em problemas cruciais, que se tornam patentes quando nos esforçamos em colocá-lo em diálogo com outros pensadores.

                                                                                                                        17

Note-se que, para Bataille (2013, p. 329), como se lê no inédito “A significação do erotismo”, os modernos passaram por uma revolução sexual que lhes alterou os costumes e lhes aprofundou a consciência de si, opondo-os de maneira contundente à humanidade anterior.

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Em primeiro lugar, seu elogio à violência coloca em xeque a própria dualidade violência e razão que ele em larga medida, e reconhecidamente, tomara emprestada de Eric Weil e que é fundamental para todo o restante de seu argumento. Em segundo lugar, e em contrapartida, o modo como sobrepõe os interditos ao descobrimento do sagrado, inclusive em instituições como o sacrifício, minimiza a motivação genuinamente violenta do ato sacrificial, e o desloca do âmbito do desejo. Em terceiro lugar, sua idealização da morte impede uma consideração profunda da alteridade, da morte que é desejada como autossacrifício em favor de outro. Embora Bataille diga não ser nem um pouco inclinado a pensar que o essencial neste mundo seja a volúpia, que “o homem não é limitado ao órgão do gozo” e “não há razão para dar ao amor sexual uma eminência que só a vida em sua totalidade tem” (BATAILLE, 2013, p. 297), ele também afirma que “o erotismo é o problema dos problemas”, que, “enquanto animal erótico, o homem é para si mesmo um problema” e “a suprema interrogação filosófica coincide [...] com o ápice do erotismo” (BATAILLE, 2013, p. 299). Mais do que isso: segundo postula Bataille (2013, p. 329) em “A significação do erotismo”, “podemos reencontrar a significação do erotismo no plano em que se colocava outrora a religião”, e “talvez cheguemos assim a uma das descobertas mais importantes de nosso tempo”. Bataille (2013, p. 216) vê com simpatia o homem soberano, de que Sade foi portavoz, que “não tem a mínima consideração por seus semelhantes”, “nunca se explica” e “não presta contas a ninguém”. Segundo ele,a solidariedade em relação a todos os outros “impede um homem de ter uma atitude soberana. O respeito do homem pelo homem engaja num ciclo de servidão em que não temos mais do que momentos subordinados [...]” (BATAILLE, 2013, p. 198). Bataille (2013, p. 85) posiciona-se contrariamente ao desejo de produzir a baixo custo e favoravelmente aos procedimentos dispendiosos e custosos; contrariamente ao capitalismo (BATAILLE, 2013, p. 234), em que se acumula os resultados do trabalho para criar novos produtos, e favoravelmente ao gasto vão, inútil, doentio, ruinoso (BATAILLE, 2013, p. 197). O erotismo seria a traição contra o mundo em que o aumento dos recursos é a regra, o caminho para invertê-lo e torná-lo ao avesso. O excesso está fora da razão, a volúpia zomba do trabalho. “Há, portanto, entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual, uma incompatibilidade cujo rigor não poderia ser negado” (BATAILLE, 2013, p. 188). De fato, não se pode http://www.aproximacao.ifcs.ufrj.br/    

 

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negá-lo. No trabalho, o trabalhador é um meio, uma coisa, e na exuberância sexual, o homem não pode ser reduzido a coisa. Contudo, para além das objeções que se pode erguer a partir das ciências históricas, sociológicas e econômicas contra a proposta de Bataille, há uma solução alternativa que escapou ao nosso autor: a violência define os impulsos humanos primitivos num sentido radical, em que não há espaço para fragmentos de racionalidade, e que assim o é porque descende inexoravelmente do desejo (ao mesmo tempo em que o funda); em contrapartida, é ao sermos simultaneamente sujeitos e objetos do desejo que a possibilidade de um autossacrifício consciente se nos apresenta. Superada a negação meramente retórica da razão, pode-se usar da consciência ligada ao trabalho para, na medida do possível, humanizá-lo. Assim se encerra O erotismo:

É na contestação, fundada na crítica das origens, que a filosofia, transformando-se numa transgressão da filosofia, chega ao ápice do ser. O ápice do ser só se revela em sua totalidade no movimento da transgressão, em que o pensamento fundado, pelo trabalho, no desenvolvimento da consciência, supera por fim o trabalho, sabendo que não pode se subordinar a ele (BATAILLE, 2013, p. 302).

Resta questionar, ao fim deste esforço de debate, se não é hora de transgredir o silêncio que a consciência autodenominada soberana impõe.

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GIRARD, René. A violência e o sagrado.2 ed.São Paulo:Editora da UNESP/Paz e Terra, 1998. (1 ed.: 1990).

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Disponível

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