O que significa aproximar a ciência da vida? Considerações críticas ao projeto heideggeriano de filosofia como ciência originária (1919-1922)

July 24, 2017 | Autor: J. Mezzomo Flores | Categoria: Ontology, Philosophy of Science, Martin Heidegger, Philosophy of Life
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Juliana Mezzomo Flores

O que significa aproximar a ciência da vida? Considerações críticas ao projeto heideggeriano de filosofia como ciência originária (1919-1922)

Rio de Janeiro 2015

Juliana Mezzomo Flores

O que significa aproximar a ciência da vida? Considerações críticas ao projeto heideggeriano de filosofia como ciência originária (1919-1922)

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora, ao Programa de Pós-Graduação de Filosofia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Filosofia Moderna e Contemporânea.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Augusto Passos Videira Co-orientador: Prof.Dr. Fernando Antônio Soares Fragozo

Rio de Janeiro 2015

Juliana Mezzomo Flores

O que significa aproximar a ciência da vida? Considerações críticas ao projeto heideggeriano de filosofia como ciência originária (1919-1922) Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora, ao Programa de Pós-Graduação de Filosofia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Filosofia Moderna e Contemporânea. Aprovada em 26 de março de 2015. Orientadores

Prof. Dr. Antonio Augusto Passos Videira (Orientador) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ

Prof. Dr. Fernando Antônio Soares Fragozo (Co-orientador) Universidade Federal do Rio de Janeiro

Banca Examinadora: _____________________________________________ Prof. Dr. André Luís de Oliveira Mendonça Instituto de Medicina Social – UERJ _____________________________________________ Prof. Dr. Paulo Mendes Taddei Colégio Pedro II _____________________________________________ Prof. Dr. Róbson Ramos dos Reis Universidade Federal de Santa Maria _____________________________________________ Prof. Dr. Francisco de Lara López Pontificia Universidad Católica de Chile Rio de Janeiro 2015

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CCSA

H465

Flores, Juliana Mezzomo. O que significa aproximar a ciência da vida? Considerações críticas ao projeto heideggeriano de filosofia como ciência originaria (1919-1922) / Juliana Mezzomo Flores. – 2015. 123 f.

Orientador: Antonio Augusto Passos Videira. Coorientador: Fernando Antônio Soares Fragozo. Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Bibliografia. 1. Heidegger, Martin, 1889-1976. 2. Filosofia alemã – Teses. I. Videira, Antonio Augusto Passos. II. Fragozo, Fernando Antonio Soares. III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. IV. Título.

CDU 1(430)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte.

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Assinatura

Data

DEDICATÓRIA

Para Anderson e Cleusa, in memoriam, sempre presentes. Para Maria Helena, o grande exemplo. Para Kito, o lar.

AGRADECIMENTOS Aos meus orientadores, Antonio Augusto e Fernando, pelo aprendizado, trabalho em conjunto, confiança e respeito. Aos membros da banca, pelo debate e a leitura atenta deste trabalho Ao professor Róbson Ramos dos Reis, pela base fundamental. Ao professor Francisco de Lara, pela oportunidade de trabalhar e pensar sobre e a partir de Heidegger. A Fábio Antônio da Costa, pela inspiração à excelência e a uma primeira abordagem ao tema desta tese. Aos colegas, das diversas formações desde 2010, do Grupo de Estudos Sociais e Conceituais de Ciência, Tecnologia e Sociedade da UERJ/CNPQ, por me exigirem e me ajudarem a ver mais longe. À CAPES, pelo financiamento desta pesquisa. Aos funcionários e professores do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ao Instituto de Filosofía da Pontificia Universidad Católica de Chile, na pessoa do decano da Facultad de Filosofía, o professor Mariano de La Maza, pela recepção e os meses de pesquisa e livre acesso aos cursos, materiais e palestras no Instituto e na Universidade. Aos colegas, professores e amigos que conheci no Chile, pelo aprendizado e apoio: Andrea Potestá, Mariana Gerias Inostroza, Mauricio Sepulveda Iturra, Vanessa Kaiser e Verónica Guajardo Ulloa. Aos amigos próximos e aos colegas que conheci por meio do doutorado: Daniel Siqueira Pereira, Davi San Gil, Isabelle Villafán, Leonardo Miguel, Marcelly Brandão, Priscila Araújo, Rommel Barbosa. Aos amigos de sempre e do cotidiano. Aos meus familiares e às famílias Pensabem Ribeiro e Borges Cabeço, pela acolhida. Às cidades do Rio de Janeiro, Santiago do Chile, Santa Maria, Resende e o distrito de Penedo, cenários e ambientes onde as inquietações se tornaram questões.

Considerar toda a obra anterior a 1927 como simples gestação de Ser e tempo, como simples passos dirigidos por um processo que só se cristaliza de forma madura e definitiva na obra clássica de Heidegger, é uma visão que se justifica a partir do efeito histórico de Ser e tempo, que marcou de forma decisiva e inamovível o conjunto do pensamento heideggeriano. Por isso é praticamente impossível ler toda a produção, que apenas nos últimos anos se tornou conhecida, desde 1916, data de seu escrito de habilitação sobre Duns Scoto, até 1927, senão no prisma da ontologia fundamental de sua grande obra. A tendência em ver nela um registro de como se elabora progressivamente o projeto e a conceitualização de Ser e tempo é inevitável; uma tendência reforçada pelo atrativo de descobrir a história de um livro sem história, que surgiu como que do nada, sob um silêncio de doze anos de um professor conhecido apenas por seu ensinamento oral. E, no entanto, se se passa a ler procurando vê-la desde seus próprios problemas e pretensões, é inegável que formula possibilidades de pensamento e um projeto próprio de hermenêutica fenomenológica que não se deixam subsumir sem mais no programa ontológico de Ser e tempo. Ramón Rodríguez (..) a juventude atual, faz ou – quase sempre – imagina fazer do intelectualismo o pior dos demônios. De fato, para ela vale a frase: „Lembra-te de que o diabo é velho; por isso, faz-te velho, para o compreenderes‟. Não se diz isto, naturalmente, a propósito da idade física, mas no sentido de que, perante tal demônio, o meio de acabar com ele não é a fuga, como hoje com tanto gosto se faz, mas importa, primeiro, inspecionar até ao fim os seus caminhos, para averiguar qual o seu poder e quais os seus limites. Max Weber

Consoada Quando a Indesejada das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável), Talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: - Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios.) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar. Manuel Bandeira

RESUMO

FLORES, Juliana Mezzomo. O que significa aproximar a ciência da vida? Considerações críticas ao projeto heideggeriano de filosofia como ciência originária (1919-1922). 2015. 123f.Tese (Doutorado em Filosofia)– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

O principal objetivo deste trabalho é estabelecer uma proposta interpretativa sobre a noção de ciência originária desenvolvida nas preleções iniciais de Martin Heidegger em Freiburg (1919-1922). A noção de ciência originária qualifica a concepção heideggeriana de filosofia e faz parte de seus primeiros esforços conceituais para articular um projeto filosófico próprio a partir das questões em torno da determinação de uma fenomenologia da vida. Insistirei que o alcance e implicações da filosofia pretendida somente podem ser vistos com o exame das indicações de Heidegger de que a filosofia é uma ciência originária pois realiza de modo mais genuíno e radical uma possibilidade que está presente em todas as ciências. A interpretação sobre a caracterização heideggeriana da ciência como investigação será o ponto de chegada que permitirá visualizar a radicalidade da relação entre ciência e vida na ciência originária, na qual se conjugam a pretensão de conceitualização fenomenológica (originária) da vida e uma exortação para a apropriação originária de si daquele que investiga. Num segundo momento, passarei a indagar sobre como Heidegger concebe o espaço institucional onde tal ciência seria desdobrada e como se concebe o perfil do cientista, ou qual se espera que seja a postura intelectual do investigador desta ciência. O questionamento destes tópicos propiciará transitar para a compreensão dos limites e tensões presentes neste projeto filosófico. Palavras-chave: Heidegger. Ciência originária.Ciência.Filosofia.Universidade.Cientista.

ABSTRACT

FLORES, Juliana Mezzomo. What means approach science to life? Critical remarks regarding Heidegger's philosophy as originary science (1919-1922). 2015. 123f. Tese (Doutorado em Filosofia)– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

The main objective of this work is to establish an interpretative proposal on the notion of originary science developed in the Martin Heidegger‟s early lectures in Freiburg (1919-1922).The notion of originary science qualifies the heideggerian conception of philosophy and is part of his first conceptual efforts to articulate its own philosophical project from the issues regarding the determination of a phenomenology of life. I‟ll insist that the scope and implications of the intended philosophy can only be seen with the examination of Heidegger‟s indication that philosophy is an originary science because performs most genuine and radically a possibility that is present in all sciences. The interpretation of Heidegger's characterization of science as research is the point of arrival which enables to see the radicality of the relationship between science and life in the originary science, which combines the intention of phenomenological (originary) conceptualization of life and an exhortation to the originary appropriation of itself that investigates. Secondly, I shall inquire about how Heidegger conceives the institutional space where this science would be deployed and how it conceives the scientist's profile, or which is expected to be the intellectual stance of the researcher of this science. The questioning of these topics will provide transit to understand the limits and tensions in this philosophical project. Keywords: Heidegger.Originary science.Science.Philosophy.University.Scientist.

RESUMEN

FLORES, Juliana Mezzomo. ¿Qué significa acercar la ciencia a la vida? Consideraciones críticas sobre el proyecto heideggeriano de filosofía como ciencia originaria (1919-1922). 2015. 123f.Tese (Doutorado em Filosofia)– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

El objetivo principal de este trabajo es establecer una propuesta interpretativa sobre la noción de ciencia originaria desarrollada en las conferencias de Martin Heidegger en Friburgo (1919-1922). La noción de ciencia originaria califica la concepción de filosofía de Heidegger y forma parte de sus primeros esfuerzos conceptuales para articular un proyecto filosófico propio desde las cuestiones relacionadas con la determinación de una fenomenología de la vida. Insistiré en que El alcance y las implicaciones de la filosofía propuesta sólo se pueden ver con el examen de la indicación de Heidegger de que la filosofía es una ciencia originaria porque realiza más genuina y radicalmente una posibilidad que está presente en todas las ciencias. La interpretación de la caracterización de Heidegger de la ciencia como investigación es el punto de llegada que permite visualizar el carácter radical de la relación entre la ciencia y la vida en la ciencia originaria, que combina la intención de conceptualización fenomenológica (originaria) de la vida y una exhortación a la apropiación originaria del sí mismo que investiga. En segundo lugar, voy a preguntar sobre cómo Heidegger concibe el espacio institucional donde se desplegaría esta ciencia y cómo se concibe el perfil del científico, o que se espera que sea la postura intelectual del investigador de esta ciencia. El cuestionamiento de estos temas proporcionará tránsito para entender los límites y tensiones presentes en este proyecto filosófico. Palabras clave: Heidegger.Ciencia originaria.Ciencia.Filosofía.Universidad. Científico.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................

10

1

A FILOSOFIA FENOMENOLÓGICA DA VIDA: CIÊNCIA E ORIGEM

31

1.1

A gestação de uma filosofia própria: a filosofia como ciência originária e como a ciência da origem.................................................................................... 31

1.1.2

Ciência..................................................................................................................

38

1.1.3

Origem da vida: o si-mesmo em situações...........................................................

41

1.2

A ciência fenomenológica...................................................................................

47

2

A FENOMENOLOGIA E A CIÊNCIA: AS CIÊNCIAS E A CIÊNCIA DA ORIGEM......................................................................................................

51

2.1

A Ciência: das disponibilidades à Lógica Concreta......................................... 51

2.1.1

A filosofia é uma lógica concreta?.......................................................................

2.2

Ciência como investigação: a radicalidade da relação entre ciência e vida.......................................................................................................................

61

64

3

CIÊNCIA DA ORIGEM NA UNIVERSIDADE? ........................................... 69

3.1

A situação de acesso: A universidade................................................................

73

3.2

A ideia de universidade e a ciência como investigação...................................

79

3.3

A reforma universitária: do ruído ao silêncio decidido................................... 84

3.4

A ciência da origem e a universidade...............................................................

87

4

O FILÓSOFOCIENTISTA.............................................................................

90

4.1

A ciência como paixão........................................................................................

92

4.2

Ciência originária e atitude científica...............................................................

99

4.3

Questionabilidade e inseguridade da vida........................................................

104

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................

111

REFERÊNCIAS.................................................................................................

117

10 INTRODUÇÃO

Não são menores os desafios para aquele que resolve investigar autores do passado. Mais do que os que propõem trilhar um caminho novo ou pensar novas questões, e que assim necessitam realizar o esforço (não menos tortuoso ou relevante) de comprovar a pretensão de novidade do caminho ou de originalidade das mesmas, aquele que envereda por uma pesquisa no interior da que chamamos comumente de história da filosofia possui uma complexa tarefa justificacional pela frente. Sobretudo porque a avaliação da importância ou êxito do empreendimento não raro é vinculada ao caráter de esta ser um meio para, um passo com vistas a um objetivo que não a pesquisa “historiográfica” mesma, além da tácita assunção de que nos voltamos para o passado não apenas por curiosidade ou mirando o futuro, mas com o olhar do presente, com as questões que para nós são e chegaram a ser candentes hoje. Ou seja, para além do propósito de rigorosa clarificação e de confronto de leituras e versões, se exige idealmente que uma investigação deste tipo deva poder exibir e executar-se com referência precisa ao para que que lhe confere seu caráter e motivação. Dependendo do tipo de propósito envolvido, o procedimento envolverá mais do que elencar uma lista de objetivos gerais e específicos a serem alcançados. Se o que se busca é pensar em que medida certo filósofo é indispensável ou não para discutir uma questão, sente-se o peso de uma execução crítico-comparativa de tal tarefa. Caso o propósito seja defender a tese de que o pensador refletiu e viu-se refletido em questões que nos foram mais ou menos expressamente legadas e com as quais estamos envolvidos até hoje, não se trata apenas de revisitar o que foi legado, mas também de produzir uma narrativa consistente sobre o que permaneceu e porque permaneceu um problema para nós e avançar para além da rememoração. Logo, uma investigação nos moldes de história da filosofia, embora pareça o modo mais acessível de inserção na pesquisa em filosofia em nosso ambiente acadêmico especializado de hoje, exige uma considerável maturidade intelectual e uma autotransparência sobre os propósitos, pretensões e limites daquele que investiga. A tentativa de destacar, ainda que de modo breve e geral, as tarefas e compromissos a serem assumidos pela pesquisa em um autor tem como intuito apontar para questões que, longe de caracterizarem um passo introdutório para o tema mesmo a ser desenvolvido ou o desencargo de uma imposição metodológica, se configuram como temas de importância a cada vez renovada no percurso da investigação. Ademais, expressa o propósito de trazer à tona e ter em vista a complexidade da discussão sobre tais temas. A situação se agudiza quando o autor em questão é um filósofo cuja publicação da Obra Completa atingirá o

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montante de 102 volumes. Uma produção acadêmica e bibliográfica intensa, que registra polêmicas, mudanças de percurso, o comprometimento com uma multiplicidade de temas e autores e, sobretudo, que se insere explicitamente entre as mais altas (e radicais) pretensões filosófico-conceituais e políticas do século XX. Martin Heidegger foi um filósofo tão peculiar que se pode ouvir mesmo dos pouco iniciados em filosofia a classificação de seus escritos em dois subconjuntos: há o primeiro Heidegger e o segundo Heidegger. Muitas vezes a referência não parece dizer respeito apenas ao corpus bibliográfico do autor, mas também à mudanças de motivação e mesmo de conduta pessoal durante e após o concreto envolvimento com o nacional-socialismo alemão. O curioso é que não se trata aqui de distinguir os escritos de juventude dos escritos tardios, de modo que os primeiros apresentem uma versão esboçada das tarefas levadas a cabo na maturidade1. Está em jogo uma mudança e uma visível ruptura com certas aspirações, com um projeto filosófico, de arcabouços conceituais. Os que desconfiam das palavras “mudança” e “ruptura”, se apóiam na ideia do próprio Heidegger de uma viragem (Kehre) 2 ou argumentam em favor de um impulso latente no próprio Ser e Tempo (SZ) para uma reorientação da problemática (por exemplo, CROWELL, 2001). Tendo em vista conciliar os “dois Heideggers”, busca-se apaziguar os ânimos colocando a questão do ser como fator onipresente e unificador na obra do filósofo. Há um único Heidegger e este é o pensador do ser. A meu ver, a intensificação da publicação e das traduções das Obras Completas de Heidegger nos últimos 20 anos visivelmente nos colocou em um novo patamar de recepção da obra do filósofo e de discussões e apropriações possíveis desta. Trabalhos de discussão detalhada sobre os diversos momentos da carreira de Heidegger tem sido publicados, seja em uma tendência de tomar os primeiros escritos em função de SZ (como KISIEL, 1993), seja em busca de uma avaliação sistemática e própria destes cursos via a noção de um projeto que se articula metodologicamente e tematicamente a partir da fenomenologia (RODRIGUEZ, 1997), seja em trabalhos que seguem uma linha evolutiva dos conceitos ao longo de toda a obra (ROUBACH, 2008), entre muitos outros.

1

Vale relembrar que o professor Heidegger já aos 30 anos pronunciava preleções de impacto no círculo acadêmico alemão e em alunos como H.G Gadamer e Karl Löwith – para tanto, ver o capítulo 6 do livro de Safranski (SAFRANSKI, 2000, p. 123-141) – e que Ser e Tempo veio a público quando o filósofo contava com a idade de 37 anos. 2

Mencionada diretamente por Heidegger em Carta ao Humanismo, por exemplo

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O ponto de destaque é que, além de cada vez mais se registrar o interesse por uma tarefa exegética e crítica de todo este material, se publiciza a notável quantidade de temas abordados por Heidegger e as nuances presentes em cada um destes. Em certos campos onde, caso não fosse sumariamente execrada, a leitura de Heidegger era considerada desimportante ou pouco frutífera para as questões a serem pensadas, verifica-se uma atenção crescente. Heidegger adquiriu o status de um filósofo cuja interlocução sobre determinados temas, mesmo que não sumamente necessária, faz-se ao menos possível3. Após quase 40 anos de sua morte, e à despeito da polêmica renovada em torno do lançamento de seus cadernos de anotação pessoais4, Heidegger é um pensador de relevância atual, considerado e estudado na grande maioria dos departamentos de filosofia do mundo. Um dos casos mais notáveis está no campo dos temas ligados aos estudos sobre a ciência. Como bem ressalta Schwendtner (2005, p.11), Heidegger não é estranho a este campo, visto que figura em um dos textos dos fundadores da Filosofia da Ciência contemporânea, Rudolph Carnap, em que este analisa as sentenças da conferência proferida por Heidegger para a comunidade acadêmica de Freiburg, denominada Que é metafísica?5. Entretanto, como sabemos, o resultado da análise não é favorável ao caráter significativo das frases ditas convictamente por Heidegger e a imagem deste como filósofo que tem algo “relevante” a dizer foi colocada em questão. Ademais, o filósofo reservou afirmações públicas tanto surpreendentes quanto lacônicas para a ciência, como em 1953 quando asseverou que “a ciência não pensa” em O que significa pensar?. Logo, durante anos a ontologia heideggeriana não foi seriamente considerada nas discussões sobre a ciência, a não ser pelo front crítico a esta e aos seus impactos na sociedade. Porém, novamente, a disponibilidade de material e o surgimento de estudos sistemáticos sobre este tema estão aos poucos transformando o panorama.

3

Aqui tenho o intuito apenas de caracterizar um aspecto na situação interpretativa onde estou inserida, na qual a discussão de certos temas em vinculação com Heidegger não configura mais um fator de escárnio na academia. Não é possível e tampouco desejável neste momento, embora tal trabalho possua sua relevância, fazer uma avaliação geral sobre de que modo esta “popularização” dos escritos de Heidegger (e de traduções, artigos, teses, dissertações, revistas, congressos, grupos de estudo) – que facilmente pode ser percebida em uma rápida pesquisa online – tem sido levada a cabo, ou demarcar “escolas” ou tendências de interpretação que se formam a partir disso. 4

Refiro-me ao lançamento, em março de 2015, do volume 94 das Obras Completas, que torna públicas as cadernetas de anotação pessoal de Heidegger no período de 1931 a 1938, os denominados “Cadernos Negros” (Schwarze Hefte) e no qual se constatam conceitos polêmicos como o de "judaísmo internacional". 5

No texto denominado A Superação da metafísica através da análise lógica da linguagem (CARNAP, 1959).

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Um dos exemplos está no livro de Glazebrook de 2001, aguerridamente denominado Heidegger‟s Philosophy of Science6. Com o recurso ao estudo detalhado das obras de Heidegger, a autora não apenas registra a existência de uma diversidade de temas sobre este universo e sua relevância para o filósofo, mas vai mais além, buscando demonstrar que as considerações heideggerianas se inserem em discussões importantes para a filosofia da ciência, como os debates sobre os experimentos científicos e a observação em ciência, vinculadas aos insights de teóricos como Ian Hacking, por exemplo. Outras apropriações dos escritos de Heidegger tem sido feitas para lidar com problemas epistemológicos ou de filosofia da ciência clássicos, como no que diz respeito à distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação (GINEV, 2002) ou problemas em torno do realismo científico (p.ex. DREYFUS; SPINOSA, 1999). Por outro lado, as contribuições heideggerianas ao estudo das ciências inspiram desde as propostas de uma hermenêutica das ciências naturais (HEELAN, 1998; KOCKELMANS, 1993), passando por uma ontologia para as ciências que incorpora criticamente uma discussão com a filosofia heideggeriana (MACGUIRE; TUCHANSKA, 2000), até a requisição de um marco filosófico de inspiração heideggeriana para os fundamentos das ciências cognitivas, a partir de um confronto com o cartesianismo (WHEELER, 2005), apenas para destacar alguns dentre muitos outros trabalhos e abordagens7. Pois bem, a diversidade documental, de apropriações e perspectivas de análise propiciada pela publicação das Obras Completas nos fornecem bons elementos para sustentar não apenas que Heidegger nutriu um genuíno interesse pelos temas ligados à ciência, mas também para alegar de que estes temas tem um lugar não apenas periférico ou críticorestritivo em sua ontologia. Estão presentes na literatura os temas mais conhecidos sobre a técnica ou a ciência como um modo derivado de estar no mundo, mas também fazem parte destas questões relativas a diversos períodos da impressionante atividade acadêmica heideggeriana. Um destes períodos, que é o que nos interessará aqui, se refere justamente ao início da carreira docente de Heidegger na Universidade de Freiburg, de 1915 a 1923, mais especificamente, de 1919 a 1922. Heidegger defendeu a tese que o habilitou para a docência

6

Trata-se de uma referência em oposição direta às primeiras frases do texto de 1968 de W. Richardson denominado Heidegger‟s critique of science, no qual este pronuncia taxativamente: “On the longest day he ever lived, Heidegger could never be called a philosopher of science” (RICHARDSON, 1968). 7

Isso sem mencionar a incontável bibliografia produzida sobre a interpretação heideggeriana dos filósofos da tradição, como Aristóteles, Kant, Nietzsche, entre outros.

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em 1915, dirigida por Heinrich Rickert. Seu primeiro curso como docente foi de 2 horas durante o semestre de inverno de 1915-1916, denominado Die Grundlinien der antiken und scholastischen Philosophie8, em Freiburg, onde trabalhou como Privatdozent9 até o semestre de verão de 1923. Neste ano aceitou o convite para assumir a cátedra que fora de Nicolai Hartmann em Marburg, desenvolvendo suas atividades na universidade até 1928. Heidegger retorna a Freiburg em 1928 para assumir a cátedra de Edmund Husserl, razão pela qual se considera o anterior (de 1915 a 1923) como período dos cursos iniciais de Heidegger em Freiburg10. Sempre é bom lembrar que a obra marco da filosofia heideggeriana, Ser e Tempo, é publicada em 1927. Logo, nos situamos na fase considerada como primieva de seu pensamento. Os primeiros cursos de Heidegger como docente universitário, sobretudo a partir de 1919, registram a combatividade, urgência e radicalidade próprias de um (jovem) iniciante. Mas não apenas isso: tratam-se de incursões que tem em vista articular um projeto filosófico com pretensões de grande alcance. O brilhantismo e o vigor demonstrados neste período levaram Heidegger a ser conhecido nos círculos acadêmicos alemães, atraindo estudantes11 e

8

Sem publicação prevista nas Obras Completas.

9

No sistema de ensino alemão da época, o Privatdozent era o professor que concluiu a tese de habilitação para o ensino na Universidade, sendo que esta função era o primeiro degrau da profissionalização docente universitária. Os professores neste nível não eram remunerados e, em média, segundo Ringer (2000, p.65), demoravam até 10 anos para conseguir um cargo assalariado no ensino, caso não desistissem no caminho. Inicialmente representando, seja em número e em mérito acadêmico, uma parte periférica no ensino e pesquisa nas Universidades, ao início do século XX estes docentes já estavam em maioria (em 1910 eram 1236 catedráticos para 1401 Privatdozenten, segundo RINGER, 2000, op.cit) e apresentavam contribuições importantes para a Universidade, na medida em que, além de serem um elemento de renovação geracional (a média de idade era de 32 anos) e terem um contato mais próximo com os alunos, “Davam cursos gerais para não especialistas e eram eles, muitas vezes, que se aventuravam em áreas novas, menos populares e mais especializadas” (RINGER, 2000, p.66). Se não eram remunerados pelo seu trabalho e não possuíam o status legal e social de funcionários públicos, por outro lado, tinham a vantagem de possuir uma independência em relação às obrigações estatais e acadêmicas pertinentes aos professores associados e aos catedráticos. Tal situação se modifica em 1898, quando um decreto do governo prussiano aplicou a estes professores uma parte da legislação disciplinar que regia os funcionários públicos, porém, não modificando sua falta de remuneração nem lhes outorgando maior participação nos órgãos de gestão acadêmica. Sobre a situação do Privatdozent e a hierarquização na academia alemã, ver, por exemplo, Ringer (ibid., p.64-67), bem como a análise de Weber (2004, p. 18ss). No caso de Heidegger, embora tenha enfrentado as incertezas da situação financeira de um Privatdozent, sua situação se modifica um pouco depois da Primeira Guerra, quando ele passa a atuar como assistente remunerado de Edmund Husserl em Freiburg até 1923. Porém, neste período Heidegger ainda vive tempos de instabilidade financeira, sendo que sua esposa, Elfride Petri, tem que trabalhar como professora para formar a renda familiar. Tal situação é retratada também nas cartas com Jaspers, onde sabemos, por exemplo, que Jaspers e a esposa Gertrude emprestaram dinheiro para viabilizar mudança de Heidegger e a família de Freiburg para Marburg. 10

Para uma cronologia tanto das atividades docentes como estudantis, epistolares e artísticas de Heidegger, ver Kisiel; Sheehan (2007, p. xxxiii-Ixxiii) 11

Na importante compilação de Xolocotzi (2009, p.25ss), pode-se verificar bem a atenção crescente que as preleções de Heidegger receberam neste período. Por exemplo, o curso do semestre de emergência do pósguerra, “A ideia de filosofia e o problema da Visão de mundo”, teve como ouvintes 19 alunos inscritos. No curso do semestre seguinte, “Fenomenologia e Filosofia Transcendental do Valor”, foram 51 alunos inscritos. No

15

comentários sobre sua forma peculiar de fazer filosofia. Longe da imagem do filósofo totalmente desconhecido que lança uma obra de repercussão mundial, Heidegger já experimentava um retorno concreto de seu trabalho como professor e pensador 12. O impacto do projeto heideggeriano delineado nestes anos foi sentido de modo rápido e apontou, seja a partir da continuidade de seu pensamento, seja pelos que por ele foram (positiva ou negativamente) afetados, para novos horizontes e possibilidades para a filosofia no século XX. Não que fosse o caso de que o frêmito provocado por Heidegger tenha se dado como uma ocorrência singular em um período imune ou alheio a toda e qualquer agitação. Nascido em 1889, Heidegger é tanto fruto do século da primeira guerra de proporções planetárias quanto filho da transição de um século para outro. A situação do findar de um século e o início de outro carrega em si a inquietude e a incerteza pelo futuro, a propensão à revisão sobre o que passou, aos grandes diagnósticos e às projeções e predições sobre o que virá. Com efeito, a filosofia sanguínea destes primeiros anos é gestada em um contexto de grandes transformações e rupturas, tanto no modo de vida alemão quanto na própria vida de Heidegger13.

semestre de inverno de 1919-1920, a preleção “Problemas Fundamentais da Fenomenologia”, foi assistida por 80 alunos. No semestre de inverno de 1920-1921, o curso de Heidegger de “Introdução à fenomenologia da religião”, teve 89 assistentes, com algumas oscilações até o seu último curso em Freiburg, “Ontologia; Hermenêutica da Facticidade, que conta oficialmente com cerca de 78 alunos inscritos, embora Heidegger tenha registrado, em carta a Karl Löwith, tratar-se do número de 90 alunos. Quando Heidegger sai de Freiburg para a cátedra em Marburg, lhe acompanham 16 alunos. Em menos de 10 anos após proferir uma preleção para menos de 20 alunos, de volta como docente titular e sob o impacto da publicação de Ser e tempo, a preleção do retorno à Freiburg (“Introdução à Filosofia”) em 1928 é assistida por 226 inscritos, mantendo a média de 200 alunos – chegando a 327 inscritos em 1930, na preleção do semestre de verão de 1930 “A essência da liberdade humana” – por preleção nos anos 30. Dentre os alunos dos primeiros cursos, como já referido na nota 1, se encontram pensadores que ganharão projeção nas décadas seguintes, como Hans-Georg Gadamer, Herbert Marcuse, Karl Löwith, Emmanuel Levinas, Max Horkheimer, entre outros. 12

Tanto que em Safranski (2000, p.164), lemos sobre o interesse de algumas Universidades, além de Marburg, em contar com Heidegger em seu corpo docente como, por exemplo, a Universidade de Göttingen (com o apoio de Georg Misch). Mais tarde, em 1930, Heidegger faz a primeira recusa (seriam duas, a segunda recusa em 1933), para assumir uma cátedra na Universidade de Berlim. 13

Aqui apenas poderei fazer uma breve referência aos acontecimentos sócio-político-biográficos deste período, dando atenção para os pontos que virão a ser relevantes para as discussões propostas. Não apenas não há a pretensão de completude ou detalhamento do panorama histórico aqui registrado, como, dando munição à imputação de insuficiente ao tipo de consideração histórica aqui esboçada, não será também o caso de exibir em que medida a filosofia de Heidegger é uma filha de seu tempo em um sentido mais profundo, no sentido em que sem uma investigação histórica autônoma e aprofundada do contexto alemão social-político e científico da época é impossível determinar satisfatoriamente a própria filosofia desenvolvida por Heidegger e seus problemas, ou mesmo definir propriamente a posição de Heidegger como interlocutor em certos temas. A explicitação e incorporação consciente desta insuficiência como problema e como tarefa futura, a meu ver, permite prosseguir arrazoadamente com a exposição, deixando de lado justificativas que atribuam tal insuficiência unicamente à delimitação do tema proposto. Com efeito, um dos resultados indiretos da interpretação proposta a seguir é justamente reforçar a necessidade deste tipo de investigação para determinar de modo mais apropriado a filosofia heideggeriana. Se a exegese clara e rigorosa não pode ser apenas uma opção dentre demais tipos de

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Para Heidegger, sobretudo os anos que encerraram a segunda década do novo século foram de intensas mudanças nos planos para sua vida adulta. Isso se reflete, já de início, na circunstância deste tornar-se um docente em filosofia na Universidade de Freiburg. Heidegger nasceu em uma família católica14, filho de um toneleiro, sacristão e zelador de objetos sacros na Igreja de S. Martin, em Messkirch, na Alemanha meridional. Desde os 14 anos, frequentou como interno o pensionato católico no Instituto de Estudos S. Konrad, em Konstanz, e se preparou para exercer o sacerdócio, completando sua educação e estudos (inclusive os universitários) mediante os constantes auxílios e bolsas conferidas por fundações ligadas à igreja15. Em 1906, Heidegger muda-se para Freiburg para completar os estudos no Berthold Gymmnasium. Ao final do curso, é indicado para juntar-se aos jesuítas em Tísis, na Àustria.

interpretações, também a consideração histórica (com todos os problemas que daí advém) faz-se um procedimento central e não-auxiliar. 14

Qualificar o “berço católico” de origem social humilde, além de apontar para o fato de que Heidegger, assim como muitos jovens que apresentavam indícios promissores de talento intelectual na virada do século XIX para o XX, tiveram a possibilidade de realizar seus estudos vinculados ao financiamento da igreja e, assim, viram na carreira teológica as portas para a ascensão social, também é importante para assinalar um decisivo contexto de formação da persona de Heidegger. Os católicos do sul no Império Alemão do chanceler Bismarck enfrentaram diversos tipos de sanções e regulamentações (como restrição à autonomia na nomeação de bispos até o fechamento de escolas) no que ficou conhecido como a Kulturkampf (que foi oficialmente de 1872 a 1875). Por meio desta, o estado alemão buscou afastar o que considerava como uma influência perigosa da igreja nos assuntos de condução política e de obediência civil, sobretudo após as encíclicas papais de Pio IX (Syllabus Errorum, de 1864 e Pastor Aeternus, de 1890), que pregavam a infalibilidade do Papa e o anti-modernismo. Além de viverem em tempos de restrição, a orientação ultramontana dos pais de Heidegger os chocou também com a maioria católica liberal (que defendia uma maior autonomia perante Roma quando se tratava da condução dos assuntos locais) de Messkirch, ocasionando a perda do emprego de sacristão do pai e da casa na paróquia onde viviam. Até o final do século, quando houve a reabilitação do ultramontanismo (a igreja de Messkirch foi “devolvida” aos católicos romanos e o pai de Heidegger voltou a ser sacristão, o internato de Konstanz, que permaneceu fechado, foi reaberto e revistas católicas, como a Heuberger Volksblatt, na qual Heidegger publicou um dos seus primeiros artigos, foram fundadas), o tipo de orientação católica da família acarretou tanto perdas materiais quanto discriminações sociais de diversos tipos – os católicos romanos eram considerados atrasados, limitados e inferiores, e eram fustigados por seus costumes, suas roupas e maneiras. O ambiente hostil marcou os primeiros anos da formação de Heidegger também em um nível intelectual apologético e combativo. Como bem destaca Wolfe (2014, p.10), o aspecto cultural e intelectual predominante do milieu católico de Heidegger foi o anti-modernismo, posição assumida pela igreja (e sumarizada na encíclica de 1907, Pascendi dominici gregis, pelo Papa Pio X) que visava identificar como inaceitáveis algumas tentativas de revisão de concepções sobre a fé e os dogmas, algumas de inspiração nas novas teorias científicas. A orientação Papal foi tomada também pelos crentes como um estímulo à desconfiança sobre os modos de vida liberal e os gestados nos grandes centros industrializados. Resumidamente, de acordo com Wolfe (ibid.), o modernismo a ser combatido inclui ao menos 4 teses: o agnosticismo metodológico (o uso de métodos seculares na teologia); o imanentismo vital (a compreensão da religião como sendo de caráter primariamente sentimental e subjetivamente experiencial); o simbolismo (a tese de que as doutrinas são apenas símbolos de crenças pessoais) e o evolucionismo (a defesa de que a autoridade da igreja e os dogmas são mutáveis, assim como o homem). Para uma discussão sobre a influência deste contexto na vida e formação intelectual de Heidegger, ver Wolfe (cap. 1, 2013 e 2014), bem como o capítulo inicial da biografia de Safranski. Para uma análise mais aprofundada sobre o significado da Kulturkampf na Alemanha, ver Gross (2004). 15

Ott (1986), citado também por Xolocotzi (2009), não apenas mapeia as diversas bolsas concedidas à Heidegger ao longo de sua carreira estudantil como aponta que as mudanças de cidade, tanto de Messkirch para o pensionato em Konstanz, quanto para Freiburg, se devem a fatores econômicos. Com base no epistolário de Heidegger e depoimentos de seu círculo familiar, Xolocotzi propõe uma relativização deste tipo de explicação,

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Em 1909, segundo Safranski (2000, p.41), o noviciado com os jesuítas é interrompido pela confirmação de que o jovem possuía limitações físicas de ordem cardíaca. Aos 20 anos, Heidegger ingressa em Freiburg no ensino superior para estudar Teologia. No semestre de verão de 1911, pede afastamento para recuperar-se de transtornos cardíacos16. Heidegger não retornou às aulas da Faculdade de Teologia e esteve inscrito na Faculdade de Ciências Naturais e Matemáticas do semestre de inverno de 1911-12 ao semestre de verão de 1913. Lá estudou matemática (tendo lições de cálculo diferencial, e análise algébrica), lógica e ciências naturais (zoologia, química inorgânica experimental, física experimental I e II, fundamentos da botânica, entre outras)17. Ainda na Faculdade de Ciências, Heidegger tem aulas com Heinrich Rickert, que virá a orientar sua tese de livre-docência em filosofia, e de filosofia do conhecimento com Arthur Schneider, além de seminários sobre a Ética de Spinoza e a filosofia de Bergson, entre outras lições introdutórias de filosofia e história. Com a interrupção dos estudos em Teologia para dedicar-se ao estudo das ciências e, aos poucos, da filosofia, Heidegger acaba por decidir fazer sua tese de doutoramento summa cum laude em filosofia, denominada “A doutrina do juízo no Psicologismo” (GA1, p.59-188), em 1913, sob a orientação de Schneider. A mudança de seu orientador de Freiburg para Strassburg abre a possibilidade de ingressar no ensino universitário (XOLOCOTZI, 2009, p.75). Heidegger conhece e torna-se aluno e amigo do substituto de Schneider, o padre Engelbert Krebs. Inicialmente inclinado (e por sugestão de um de seus professores, o historiador Heinrich Finke) a prestar o exame para exercer a docência em nível médio universitário, Heidegger, apoiado por Schneider e Krebs (que foi preterido para a vaga regular), encaminha-se para realizar uma tese de livre-docência que o habilitará ao ensino superior. De início tendo escolhido um tema ainda no âmbito do conhecimento matemático, Heidegger decide em 1914 por uma tese em filosofia, defendida já indicando que fontes que atestariam que a escolha de Heidegger por sair de Konstanz não se deveu nem a fatores econômicos, nem a uma espécie de crise, mas sim ao afastamento de um relacionamento amoroso. 16

Xolocotzi (2009, p.38), a partir da referência às cartas de Heidegger com sua mulher, Elfriede, determina esta como a primeira crise nervosa de Heidegger, que seria seguida de outras em 1938 e em 1945. 17

A explicação para este câmbio na trajetória acadêmica de Heidegger passa tanto pela insistência, testificada pelo próprio Heidegger na narrativa sobre estes anos na biografia “Meu caminho para a fenomenologia”, em indicar que o contato com as obras de Husserl, que já datava, segundo Heidegger, desde o início de sua trajetória acadêmica, o levou a ver a matemática sob outra luz. Além da possível influência husserliana, também há a hipótese (em XOLOCOTZI, 2009, p. 39-40) de um pendor apologético, manifesto em seus primeiros escritos católicos (ver também nota 14), o que o teria levado a buscar um maior contato com o cenário científico da época como meio de fortalecer a defesa dos dogmas da igreja. Seja qual for o caminho que se tome para pensar este ponto, com base nos documentos de seu período de estudante em Freiburg, é impossível sustentar ainda que Heidegger não tivesse, ao menos, conhecimento dos debates científicos do período, ou do que se passava no contexto universitário fora da Faculdade de Teologia, ou mesmo que execrava os estudos das ciências, por exemplo.

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no decorrer da Primeira Guerra, em 1915, com o título A doutrina das categorias e do significado em Duns Scoto (GA1, p.189-411), onde investiga temas da escolástica medieval18. Com a irrupção da Primeira Guerra, Heidegger é convocado em 1914, mas dispensado por sua condição física. Novamente convocado em 1915, sua deficiência cardíaca volta a se manifestar e é mandado para o hospital militar de Müllheim. Após 4 semanas é transferido e assume uma função no centro de censura postal de Freiburg, cargo que exerceu até o início de 1918, e depois é transferido para a região de Ardennes, para trabalhar no centro meteorológico. As esperanças de conseguir a cátedra vacante de Schneider são desapontadas não apenas pelo início da guerra, mas também, quando em 1916, seu nome é preterido pelo de Joseph Geyser e acaba por nem constar na lista de possíveis nomeações. Heidegger passa então a atuar como um modesto Privatdozent, e, posteriormente, como o assistente de Edmund Husserl19. Também durante a guerra, em 1917, casa-se, em uma cerimônia simples e sem convidados, realizada por E. Krebs, na capela de Freiburg20 com a estudante de economia da Universidade, Elfriede Petri, filha de um oficial do exército e de confissão luterana. Assim, em 1919 Heidegger atua como professor de filosofia e é considerado como o discípulo mais brilhante de Husserl. Em 7 de fevereiro de 1919, no semestre de emergência por motivos de guerra e duas semanas após o nascimento de seu primeiro filho, oferece um curso de 2 horas semanais no qual dá início, entre a avaliação crítica das filosofias de seu tempo e a afirmação da fenomenologia como método, a um projeto filosófico. Este ano também marca um outro câmbio fundamental nos planos da vida adulta: em 9 de janeiro, antes de iniciar o semestre, Heidegger envia uma carta ao padre e amigo Engelbert Krebs afirmando que a busca de um esclarecimento sobre sua posição filosófica tornou patente que sua investigação e ensino não podem estar comprometidos com posições que vem de fora de seu próprio trabalho. Por fim, Heidegger revela ao padre que o sistema do catolicismo se tornou problemático e inaceitável para ele – embora não o cristianismo e a metafísica, mas, segundo Heidegger, em um novo sentido (KISIEL; SHEEHAN, 2007, p.96)21. Heidegger finaliza sua carta afirmando que acredita que possui uma vocação para a filosofia. Logo, os

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Como requisito para completar a obtenção da venia legendi, a autorização para ensinar na Universidade, Heidegger, em 15 de julho de 1917, faz uma preleção denominada “O conceito de tempo na Ciência Histórica”. 19

Ver nota 9. Heidegger é nomeado como assistente de Husserl em janeiro de 1919. Sobre a relação entre Husserl e Heidegger desde antes mesmo de Husserl assumir sua cátedra em Freiburg, ver Xolocotzi (2009, p.53ss). 20

Uma semana depois Heidegger se casou em uma cerimônia protestante com a presença da família de Elfriede, em Mannhein. 21

Para uma análise da importância desta carta, cf.Van Buren, (1994, p. 134) e Kisiel, (1993, pp. 15; 69; 76).

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anos iniciais da atuação docente de Heidegger em Freiburg estão marcados por grandes mudanças pessoais: a firme decisão pela pesquisa filosófica e o rompimento com o catolicismo22. Grandes mudanças também afetaram a Alemanha. Com efeito, os anos do pós-guerra marcam uma cisão drástica com a situação econômica e social do final do século XIX. Se até meados do século XIX a Alemanha não seguiu o ritmo de crescimento de outros países europeus, como a Inglaterra, a partir de 1860 o ritmo de industrialização, o crescimento populacional e a urbanização aceleraram-se. É também neste período que a Alemanha surge como um país. Após a guerra Franco-prussiana, a unificação de 27 territórios (incluindo a Prússia e excluindo a Áustria) deu origem ao I Império Alemão, governado pelo rei prussiano Whillhem I, tendo Otto Von Bismarck como primeiro ministro. De economia primordialmente agrária, com a população reduzida e vivendo em pequenas comunidades rurais, a Alemanha experimentou um crescimento sem precedentes até a primeira década do século XX, além de mudanças drásticas no padrão de vida e de emprego de seus habitantes23. Nos dados compilados por Ringer (2000, p.55), a população alemã foi de 42,5 milhões em 1875, para aproximadamente 68 milhões em 1915, crescendo mais de 20 milhões em menos de 50 anos. A população nas pequenas comunidades também decresceu, indo de 64% de pessoas vivendo em comunidades de menos de 2 mil habitantes24, para 40% em 1907. A proporção de alemães empregados na agricultura ou no serviço florestal decresceu 8% apenas no período entre 1882 e 1907. Mas os números mais impressionantes estão na indústria: em 1882 a indústria pesada alemã empregava 356 mil operários; em 1907 já eram cerca de 1,12 milhão. Em 1910 os alemães produziam mais ferro e aço do que a Inglaterra e a França juntas. Tal crescimento impressionante é descrito com precisão por Ringer “No espaço de algumas décadas, a Alemanha tranformou-se de país relativamente atrasado e predominantemente agrícola numa das maiores potências industriais do mundo” (p.55). 22

Como veremos mais adiante, a indicação de que o cristianismo continua em seus interesses também marcará um dos temas explorados em suas preleções nestes anos e um não afastamento total de suas leituras da época de formação teológica. Heidegger se voltará para as Escrituras e grandes filósofos da Igreja (como Santo Agostinho) - mas também incluirá Lutero – a fim de realizar uma interpretação do modo de vida do cristianismo primitivo. Além disso, Heidegger conservou a amizade pessoal com alguns de seus mentores na adolescência, como Conrad Gröber, que o auxiliou em períodos difíceis durante e após a Segunda Guerra. 23

Para uma interpretação sobre os impactos dos mudanças políticas e sociais na formação de um novo modo de vida alemão nos séculos XIX e XX, ver Elias (1997). 24

Segundo Safranski (2000, p.29), ao final do século XIX, na época de nascimento de Heidegger, Messkirch tinha por volta de 2.000 habitantes, cujos moradores eram predominantemente camponeses ou artesãos, ou seja, a cidade se encaixava nesta descrição das comunidades alemãs que predominavam na Alemanha no século XIX. Atualmente, tal situação pouco se modificou. Em dados de 2010, a cidade conta com perto de 9 mil habitantes, distribuídos em um território de 76 km (Fonte: http://www.messkirch.de).

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Diante deste quadro, torna-se claro o quanto a situação da Alemanha se torna drástica e conturbada no pós-guerra. Derrotado, o país sofreu perdas e imposições de diferentes tipos. A começar pela perda humana, dado que a Alemanha perdeu quase 15% de sua população masculina adulta. As perdas materiais e territoriais se potencializaram com a anuência ao Tratado de Versailles, em 7 de maio de 1919. Neste, a Alemanha reconhecia ter infligido danos e perdas aos países vencedores, assumia uma dívida de indenizações financeiras, bem como aceitava perder alguns de seus territórios, além de concordar com limitações drásticas em seu contingente militar e o fim do serviço militar obrigatório. O Império Alemão nos moldes de 1871 chegava ao fim. O período republicano de Weimar (1918-1933) não designará somente o modo de condução dos assuntos políticos ou período entre guerras alemão, mas uma realidade muito concreta de instabilidade financeira, política, social e cultural para os alemães25. Se antes apenas pressentida, a palavra “crise” foi a base para a compreensão do sombrio pós-guerra, ganhando ampla difusão na sociedade sobretudo em decorrência do êxito popular de um livro, A decadência do Ocidente, de Oswald Spengler26, lançado em 1918. No âmbito científico, tais sinais de uma crise foram sentidos já na virada do século (também fora da Alemanha). Em grande parte, as preocupações decorreram das rápidas grandes mudanças pelas quais as ciências passaram desde o primeiro terço de século XIX. Schnädelbach (1991, p.88ss) ressalta as mudanças na função econômica e social da ciência, apontando uma via de mão dupla no caráter adquirido pela ciência após a industrialização. Se, por um lado, a ciência se converteu ela mesma em uma força produtiva, na medida em que a pesquisa e tecnologia se tornam bens aplicáveis, desejáveis e, por isso, comerciáveis na sociedade, por outro lado, as próprias condições de produção da ciência assumiram feições industriais. Destacam-se a crescente profissionalização e a especialização, consequência da divisão do trabalho com vistas à otimização dos resultados, e a organização desta em institutos com visões, objetivos e interesses próprios, estruturados primordialmente sob uma

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Para ver como a ruína do Marco alemão neste período (que se inicia ainda ao final da guerra mas se acentua na inflação recorde em 1923) afeta diretamente os professores e estudantes universitários e a classe intelectual alemã da burocracia estatal, ver Ringer (2000, p.72-77). 26

O livro de Spengler deu início a diversos debates e marcou o ambiente cultural da época. Também Heidegger faz menção em vários cursos sobre este (por exemplo, em GA58, p.4), na maioria das vezes de modo desfavorável. O curioso é que Heidegger chegou a dar uma palestra na semana de ciências de Wiesbaden, em 1920 sobre o livro. O conteúdo da fala não foi conservado, mas a palestra é referida por Heidegger em carta a Karl Löwith em 23 de março de 1920, onde este comenta que talvez a repita em Freiburg e informa sobre os nomes e os temas dos participantes convidados a falar: Max Born (de Berlim) sobre as leis de Einstein, Hermann Oncken (de Heidelberg) sobre a história atual e Wolzendorf (de Halle) sobre temas jurídicos (KISIEL; SHEEHAN, 2007, p. 450)

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orientação empresarial. Sobretudo, entra em jogo a despersonalização do homem de ciência, como uma consequência da necessidade de um recrutamento massivo de profissionais para este tipo de atividade. A organização do trabalho científico passa a se dar de modo tal que permite a uma ampla maioria, atendidos certos requisitos cognitivos básicos, tomar parte em seu processo. As progressivas ampliações deste acesso, contudo, podem alimentar a ameaça de alienação27 aos profissionais da ciência, na medida em que: “oferecem a qualquer indivíduo a possibilidade de adquirir conhecimento, mas não permitem o desenvolvimento de uma „grande personalidade investigadora‟” (SCHNÄDELBACH, 1991, p.92). Tais modificações são significativas sobretudo em comparação com o ideal de formação pela ciência que alicerçou a estruturação das Universidades alemãs como âmbito de investigação científica no início do século XIX. A criação da Universidade de Berlim em 1808 deu início ao que se chamou de “Universidade moderna” e foi pautada por diretrizes que dizem respeito não somente ao modo de organização das ciências em um espaço institucional, mas que refletem as preocupações sobre os destinos morais e políticos da nação. A comunicação interna para o governo Prussiano encaminhada por Wilhelm von Humbolt e denominada “Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores em Berlim” (HUMBOLDT, 1997) contém a afirmação dos princípios e tarefas deste modelo de Universidade. A Universidade é concebida como atrelada a duas tarefas principais: “De um lado, promoção do desenvolvimento máximo da ciência, de outro, produção do conteúdo responsável pela formação intelectual e moral da nação” (HUMBOLDT, 1997, p. 79). Podese dizer que uma tarefa complementa a outra e o “conteúdo” produzido não são apenas teorias e pesquisas com aplicabilidade técnica, mas pessoas. A prática das ciências visa não apenas uma educação ou aperfeiçoamento intelectual em benefício estrito daquele que conhece, mas fomenta a formação do ser humano como um todo, auxiliando em seu aperfeiçoamento moral e, consequentemente, em sua atuação política na sociedade. E isso somente é possível na medida em que as individualidades motivam-se autônoma e livremente a conhecer a partir de

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Schnädelbach toma como base principalmente as críticas de Helmut Plessner à despersonalização contidos no ensaio “Para uma sociologia da pesquisa moderna e sua organização na Universidade alemã”. O termo “alienação” é uma qualificação minha, que considero ser adequada para determinar o problema (dentro dos fins gerais desta exposição), mantendo-o num contexto de análise do modo de produção capitalista. Para tanto, tomo a indicação de Marx, no qual a alienação aparece não somente no resultado do que é produzido, mas também no interior da própria atividade produtora, no qual, no próprio ato de produção o trabalhador se torna estranho a si mesmo. Neste sentido, o trabalho é vivenciado como algo alheio a si, o trabalhador só se sente fazendo algo pessoal fora do trabalho “É ele quando não trabalha e, quando trabalha, não é ele” (MARX, 1997, p.250)

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suas prioridades e criatividade, porém conscientemente entendidas em suas implicações sociais mais amplas28. Estruturalmente, Schnädelbach identifica, entre outras transformações, um processo de dinamização, que trouxe os critérios de empiria (experiência como procedimento regrado e compartilhável), de inovação e de funcionalidade em relação às demandas socioeconômicas como determinantes e exemplares para todas as ciências, frente os critérios tradicionais de universalidade, necessidade e verdade (SCHNÄDELBACH, 1991, p. 105). Este processo teve impacto também no interior das ciências, no qual as mudanças foram sentidas desde seus fundamentos. A velocidade e novidade das descobertas nas ciências naturais, como a física, por exemplo, levaram os cientistas a conscientemente buscarem formular respostas tanto em vista da unificação de teorias, quanto a ocuparem-se de assuntos sobre a natureza de seus próprios resultados e procedimentos. O diagnóstico de uma crise foi interpretado como uma necessidade de reação e os cientistas passaram a debater questões que antes poderiam ser vistas não como próprias à atividade significa, mas à filosófica29. Há também uma necessidade dos cientistas de prestarem contas para o grande público de seus avanços e dificuldades. Fato este que dista em muito dos séculos XVIII e XIX, onde os consideráveis progressos alcançados pelas ciências naturais (e sua contraparte nos trabalhos dos enciclopedistas franceses e a epistemologia de Kant e Hume) pareciam ter finalmente terem trazido a libertação da racionalidade humana dos resquícios indesejáveis da teologia e da metafísica (VIDEIRA, 2013b, p.22-23). Se o século XIX foi o século da crença no progresso, sobretudo via ciência, o primeiro quartel do século XX, principalmente após a Primeira Guerra, foi um período de apreciação desconfiada, para não dizer crítica. A ciência teve de lidar com os problemas gerados pelas mudanças em sua estrutura, dinâmica e profissionalização, mas também com os ataques afirmando que o progresso material trazido por seus êxitos não foi suficiente para reduzir conflitos e trazer melhorias na condição humana como um todo30.

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Para uma análise detalhada da ideia de Universidade de Humboldt, bem como de seu contexto histórico de surgimento, cf.Gerhardt (2002). 29

Videira (2013b, p.20), qualifica precisamente tais questões “O que é uma teoria científica? Qual é, ou deve ser, seu objetivo? É ela uma mera explicação ou uma mera descrição dos fatos? De que meios ela dispõe para alcançar a contento seus objetivos? Qual papel deve ser atribuído às hipóteses? E à experimentação? Comprovada a inevitabilidade da necessidade de se definir a teoria física, como traçar uma linha dermacatória entre ciência e metafísica? Estas foram as principais questões que os cientistas filósofos de então se impuseram”. 30

Sobre este ponto, que introduziu no início do século um diagnóstico de “bancarrota”, ou “falência” da ciência, haverá mais indicações no capítulo 3.

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Neste sentido, também a filosofia se encontra nestes anos em uma situação firmemente questionada, sobretudo pelas ciências. Se, por um lado, o desenvolvimento e criação de novas ciências e campos de estudo passam a ignorar qualquer necessidade de referendo de algum sistema filosófico para existirem e se justificarem, também a filosofia sofre radicais tentativas de determinar o seu caráter próprio diante não só das ciências naturais, mas também das ciências do espírito ou humanas. Com a apregoada (e também literal) “morte de Hegel”, que representou o fim de um modelo de explicação totalizante e sistemático sobre a realidade capitaneado pela filosofia31, as reações são muitas e tentam redefinir tanto o método quanto o campo de estudos e as tarefas da filosofia. Schnädelbach (1993, p.120ss) qualifica estas reações em direções diversas: seja de modo a buscar uma adequação ao modelo de cientificidade por meio da pesquisa filosófica, convertendo-se em história da filosofia, em uma disciplina de discussão e interpretação de textos filosóficos, seja demarcando como tarefa não mais construir uma teoria sistemática sobre o mundo, mas uma visão de mundo com base na adoção de uma perspectiva de explicação da realidade, seja de colocar a ciência como parâmetro e condição suficiente para a resolução de problemas filosóficos ou de reinterpretar seus problemas como problemas lógicos ou de ciência empírica, deflacionando a legitimidade dos problemas caros à tradição filosófica. Um dos tipos de reações elencadas por Schnädelbach, na qual claramente se insere o projeto de Heidegger de filosofia no pós-guerra e que também configura seu ambiente filosófico de formação, é a tentativa de atribuir à filosofia um conjunto de problemas, métodos e objetos de estudo não derivados ou dependentes das ciências particulares, de garantir um campo de estudos filosófico por excelência. Especificamente relevante32 neste sentido é o neocriticismo, ou o neokantismo alemão33, surgido nos dois decênios finais do século XIX, das Escolas de Marburg e de Baden (em Heidelberg e Freiburg), representadas por Hermann Cohen e Paul Natorp, por um lado, e por Wilhelm Windelband e Heinrich Rickert, por outro. O retorno a Kant significou uma rejeição da apropriação idealista da filosofia crítica e a retomada da filosofia como tarefa de análise das condições de validade das

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É importante ressaltar que o ataque a Hegel também partiu “de dentro”, da própria filosofia, em críticas, por exemplo, de Johann Friedrich Herbart, Adolf Trendelemburg, Arthur Schopenhauer e Sören Kierkegaard (REALE; ANTISERI, 2005, p.201ss). 32

Aqui farei menção apenas ao Neokantismo e a Fenomenologia, embora, como se poderá ver adiante, é importante também para Heidegger debater e fazer referência a várias outras propostas filosóficas do período. 33

Como bem ressaltam Reale e Antiseri (2006, p.23), o retorno a Kant não foi um movimento estritamente alemão, mas teve suas versões inglesa, italiana e francesa, além ter sido desdobrado em trabalhos de importantes cientistas, como Hermann Helmholtz.

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ciências e de outros âmbitos da experiência humana, como a moral, a estética e a religião. Com Windelband, determina-se o “valor” como o campo propriamente filosófico, representando os princípios a priori que normatizam nossos comportamentos judicativos, práticos e estéticos: filosofia é filosofia do valor34. Outro projeto de fundamentação da filosofia relevante será a fenomenologia desenvolvida por Edmund Husserl no início do Século XX, que visa estabelecer como campo próprio a consciência pura, a partir de uma investigação metódica rigorosa dos atos pelos quais os fenômenos se manifestam na consciência intencional. Além destes intentos filosóficos, são marcantes no século XIX e XX as propostas de estabelecer outras categorias – que dão ensejo a novas investigações, debates e exigências metodológicas, não exclusivamente filosóficas – para dar conta da experiência humana, como história35, compreensão e vida. Aprofunda-se também como questão o estabelecimento de critérios para demarcar os âmbitos das ciências, sejam naturais e das ciências do espírito ou humanas, ou como queria Windelband, as ciências nomeotéticas e as ciências ideográficas. Neste sentido, as investigações de Wilhelm Dilthey legaram as questões decisivas ao início do século36: a vida, como princípio de tudo o que é, não pode ser compreendida a partir do 34

Reale e Antiseri (ibid, p.22) determinam concisamente a posição da filosofia dos valores: “A „volta a Kant‟ significa para Wilhelm Windelband (1848-1915) que a filosofia é a análise dos princípios a priori. Contudo, na sua opinião, tal tipo de análise se estende também à moralidade e à arte, e tais princípios a priori devem ser tipificados como valores universais e necessários, de natureza normativa: é com o valor da verdade que se confrontam os juízos científicos, é o valor do bem aquilo com que se avalia se o agir humano tem validade universal e necessária, é o valor da beleza aquilo com que julgamos se uma obra de arte possui ou não validade universal e necessária”. Para uma exposição sobre a noção de valor como determinando o campo de problemas filosóficos, e também de seus precursores, como Nietzsche e Hermann Lotze, cf. Schnädelbach (ibid., capítulo 6) 35

O chamado “século de ouro” (o século XIX) da História na Alemanha, foi secundado pela ênfase na primazia do elemento histórico como princípio para compreender a totalidade dos fenômenos culturais, o que se convencionou denominar de historicismo. O historicismo foi também responsável por encabeçar, juntamente com as ciências naturais, a batalha contra o idealismo, defendendo a constituição de uma ciência histórica no lugar de quaisquer tipos de filosofia da história ou teorias sistemáticas tendo como culminância uma razão absoluta. As questões em jogo a partir do historicismo são demasiado profundas e complexas; contento-me em ressaltar dois importantes câmbios introduzidos, a partir de duas citações de Schnädelbach (ibid., p.53). Trata-se da referência à uma operação de historicização da história e de historização do homem. No primeiro caso “Com a historicização da história, ficava descartado o modelo supra-histórico, que garantia a priori a racionalidade, ou simplesmente, a inteligibilidade do processo histórico.”. No segundo caso, “Em virtude disso [historização do homem], a natureza humana – antes tratada como ahistórica e anti-cultural – e a razão, que confere ao homem seu caráter enquanto tal, foram também interpretadas na chave histórica, e passaram a formar parte do próprio processo histórico”. Sobre mais direções de implicação do historicismo, a crítica da razão histórica pretendida por Dilthey, bem como de sua avaliação negativa de Nietzsche e os problemas advindos da absolutização da história, ver o cap. 2 de Schnädelbach (ibid.). 36

Casa Nova (2009, p.33-34), faz uma importante menção a dois conceitos-chave de Dilthey que terão grande impacto na filosofia na virada do século XIX para o século XX, a saber, o conceito de vivência e o conceito de visão de mundo, ressaltando os aspectos relevantes das mesmas para os problemas que se colocaram na época “(...) como a vivência se encontra fundamentalmente articulada em Dilthey com a compreensão enquanto uma instância de rearticulação do singular com as expressões do espírito do seu tempo, ela abre simultaneamente uma possibilidade de resolução da dicotomia clássica entre o universal e o particular. Para Dilthey, a vivência é

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quadro trazido pelas ciências naturais; sua característica central é ser histórica, é a historicidade37. Neste contexto, a Filosofia da Vida, de nomes como Dilthey, Bergson, Klages, Simmel, entre outros38, tem um papel central para difundir a noção de vida como um princípio, seja de compreensão da realidade, da teoria do conhecimento, como critério para a crítica da cultura, como base para a articulação política da sociedade (nos movimentos estudantis e no nacional-socialismo, por exemplo), como via para a denominada crise da cultura e como palavra de ordem contra a exacerbação da racionalidade e da intelectualidade. A vida se tornou uma noção de discussão social, um lema de renovação da cultura, a reafirmação do vital, do dinâmico, do ativo, do concreto, do criativo, da juventude, do são frente a tudo o que se considerava morto, estático, inerte, abstrato, prosaico, envelhecido e doentio. O culto e a luta pelo vital seriam capazes de lançar luz sobre a realidade ameaçadora e nebulosa que se apresentava. No limite, a afirmação do lema de subordinação da razão à vida, da razão a serviço da vida, fruto do entendimento no qual se considera que a civilização tornou a vida escrava da razão (ou do espírito), despertou também a consciência do trágico, a valorização do irracional e do caos existencial, diagnóstico em não poucos casos acompanhado de pessimismo e angústia pelo futuro. O início filosófico de Heidegger, como se poderá observar39, será profundamente afetado por este ânimo e este ambiente intelectual do início do século, de modo tanto a eleger a vida tanto como meta da elucidação filosófica, sempre singular. No entanto, ela encerra originariamente em si uma ligação compreensiva com o universal, com o espírito do tempo, ou , o que significa em última análise, o mesmo, com a visão de mundo que é característica de uma época”. 37

Como ficará claro a partir da exposição subseqüente, tais questões serão fundamentais para Heidegger, dívida que vai sendo assumida ao longo dos anos 20, em escritos como o da conferência O trabalho de investigação de Wilhelm Dilthey e a luta atual por uma visão de mundo histórica (Wilhelm Dilthey Forschungsarbeit und der gegenwärtige Kampf um eine historische Weltanschauung), em 1925. Apenas faço menção a esta questão, uma vez que um trabalho comparativo, que certamente iria apontar muitas semelhanças entre Heidegger e Dilthey no período aqui estudado, se encontra fora alcance da presente tese. Para uma investigação que repassa e aprofunda os temas que vem sendo indicados nesta introdução e que discute a apropriação heideggeriana de Dilthey e da tradição do historicismo, ver Bambach (1995). 38

Para um estudo sobre as diferentes filosofias da vida e suas origens em nomes como Shopenhauer, Nietzsche e o Romantismo alemão, ver, por exemplo, Fellmann (1983) e o cap. 5 de Schnändelbach. 39

Aqui, cabe apenas ressaltar que, como veremos, o propósito de fazer uma ciência fenomenológica da vida faz juz às principais tendências filosóficas do século XX, e que muita das exigências, inclusive metodológicas, para a conceitualização da vida, vão ao encontro dos apelos por uma descrição que não a objetive e obstrua seu sentido histórico e dinâmico. No que segue, a apresentação será restrita a um esboço da filosofia heideggeriana do período, sem avançar em determinar quais conceitos e problemas estão vinculados com a filosofia da vida ou são uma resposta ou apropriação concreta desta. Para este fim, há a impressionante e detalhada investigação de Ina Schmidt (2005), na qual se analisam, além dos problemas e autores da Filosofia da Vida, tanto a filosofia heideggeriana no período aqui considerado (a partir da tese de que a filosofia de Heidegger é uma terceira via entre Dilthey e Husserl), a transformação da filosofia fenomenológica da vida em problema ontológico, quanto a função e caracterização que assume o conceito de vida no período de Ser e Tempo e após a Kehre.

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como de empreender uma discussão crítica com a filosofia da vida40, recusando seu pendor ao irracionalismo. Para completar o esboço sobre o contexto social e cultural alemão na virada do século, faz-se necessário enfocar a situação da educação no período. Quiçá nenhum outro tema de debate e ação social tenha refletido mais as mudanças aqui mencionadas do que as reformas educacionais implantadas na Alemanha já desde o século XIX. O acesso e o perfil do ensino alemão modificaram-se, com medidas visando diminuir a segmentação socioeconômica na progressão no sistema educacional, bem como o estímulo à criação, qualificação e ampliação das funções das escolas de ensino técnico e o aumento das possibilidades de formação expandida para os professores do ensino primário e médio. Dentre os resultados, houve a ampliação na quantidade41 e na origem social dos estudantes universitários, bem como a progressiva mudança na valorização do ensino clássico como base para todas as outras carreiras e a participação de professores de diferentes níveis de ensino nos debates sobre políticas para a educação. O incentivo ou recusa de mudanças no sistema de ensino alemão evidenciaram não apenas a importância adquirida pela classe intelectual alemã 42, mas em torno de quais ideias se estruturaram suas pretensões de influência e poder político como guias da nação e os grandes reveses que sofrerão em face aos debates liberais e republicanos no pós-guerra. De modo geral, os intelectuais, sobretudo os professores universitários das disciplinas humanistas, reagiram fortemente a estas mudanças, com denúncias de massificação, tecnicização e mediocrização na formação acadêmica e de declínio na formação espiritual da 40

Na resenha sobre o livro de Jaspers “A psicologia das visões de mundo”, escrita entre 1919 e 1921 (GA9, p.14), destacam-se as principais posições de Heidegger diante à filosofia da vida. Grosso modo, elas se compõem de: a) a defesa de que as questões fundamentais da filosofia da vida devem ser reconduzidas à filosofia de Dilthey; b) a afirmação de que a filosofia da vida de Dilthey deve ser interrogada em suas tendências positivas, para mostrar há uma problemática genuína e radical da filosofia que deve ser vista e desenvolvida, c) a necessidade do esclarecimento dos sentidos do conceito de vida e, por último, d) a afirmação clara de que a filosofia da vida, corretamente compreendida, tende ao fenômeno da existência. Para ver uma análise mais extensa de Heidegger sobre a Filosofia da vida, cf. GA56, sobretudo os §s 4 e 5; sobre o problema do irracionalismo (ibid. p.23ss). 41 42

O número de matrículas passou de 21 mil em 1880, para 72 mil em 1918 (RINGER, 2000, p. 63).

A base da interpretação de Ringer (ibid.) é conceber os intelectuais e instruídos alemães da época como mandarins, como uma classe social destacada na sociedade industrial nascente, que busca exercer influência política, sobretudo nos assuntos da formação educacional do povo, assumindo posturas abertamente elitistas e vendo com desconfiança e contrariedade as discussões sobre o tema na república nascente: “Florecem entre o nível fundamental agrário da organização econômica e a plena industrialização (...). Procurarão constituir uma espécie de nobreza dos instruídos para suplantar a classe „meramente tradicional‟ e procurarão estabelecer um sistema de certificados de grau de instrução que comprove a posição do portador como homem de intelecto. Nas universidades, seus líderes falarão em nome de todos os diplomados quando exigirem que os negócios públicos sejam postos cada vez mais nas mãos da minoria instruída, em vez de serem administrados pelos nobres não instruídos, intelectual e moralmente retrógrados” (ibid., p.23-24)

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nação em função do atendimento de interesses de ordem prática ou estritamente especializada e científica, além de uma questionável retirada das mãos dos intelectuais das tomadas de decisão estatais sobre as reformas pretendidas. A consciência de uma crise foi sentida de modo agudo e pessoal como decadência da influência do mundo acadêmico, cada vez mais voltado apenas para a “pesquisa cega”, na condução dos assuntos públicos e na cultura43. No pós-guerra, entra em pauta um grande apelo por reformas, e a reorganização do ensino superior tornou-se um tema de discussão aberta na sociedade e nos programas políticos de partidos e associações de classe (RINGER, 2000, p.77). Neste contexto, há tanto uma tentativa de acomodar-se aos novos tempos, quanto a reação ortodoxa, que justificava a defesa da desaceleração ou reversão nas reformas com o mote da crise da cultura pela perda de valores na formação educacional completa dos indivíduos. As profundas transformações socioeconômicas, científicas, filosóficas, históricas, educacionais e os anseios pelo que viria ganharam expressão no lema da necessidade de aproximação entre vida e ciência. Este apelo por aproximação serve a objetivos e visões distintas: tratou-se tanto da defesa da retomada de valores da formação pela ciência, quanto da definição de um slogan de disputa política contra as restrições do acesso ao ensino, além de uma cruzada, dos próprios acadêmicos e cientistas, por uma divulgação que mostrasse as implicações de suas pesquisas em problemas mais amplos da sociedade, e também a crítica à ciência como um exagero ficcional abstrato. Entra em questão, sobretudo, quem é o profissional formado pelo sistema de ensino e como este atua ou deve atuar na sociedade. Neste sentido, a conferência de Max Weber de 1919, “A ciência como vocação” constitui-se como um documento que sumariza e tenta responder aos problemas e a situação conturbada de uma época, embora (felizmente para uns, escandalosamente resignado, para outros) de modo a não entronizar nem velhos nem novos ídolos em um mundo onde já não se divisavam os deuses. Também a filosofia do jovem Heidegger se alimentará dos desafios e questões legados por este tempo de transição.

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Ringer assim brilhantemente caracteriza este ambiente de confluência de diversos sentimentos e interesses, descrevendo o ânimo no pós-guerra (talvez não somente entre os mandarins): “A teoria da decadência cultural continuava em voga. As pessoas quase invariavelmente ainda lamentavam a perda da alma e da convicção, o crescimento do relativismo e do determinismo, o isolamento do indivíduo criativo. Falavam da tirania das ciências naturais, do empobrecimento da vontade do homem em virtude da preeminência unilateralmente concedida ao intelecto, de uma sensação generalizada de impotência e pessimismo. Depois de anos de „renovação espiritual‟, ainda consideravam sua época uma terra-de-ninguém entre o declínio e a revitalização. Procuravam descrever as alternativas disponíveis com as imagens contrastantes de aridez e vitalidade, intelecto e emoção, impotência e criatividade. O assunto „crise‟constituía agora um ritual e uma obsessão. As ansiedades sociais e políticas interagiam com as preocupações culturais e intelectuais. Havia uma crise da política, uma crise da política social, uma crise cultural e, evidentemente, uma crise do ensino”. (ibid., p.355)

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O que significa aproximar a ciência da vida? Destarte, com a pergunta que denomina e orienta esta tese buscarei enfocar de que modo Martin Heidegger se insere neste espírito de época com a articulação de um projeto filosófico que tem a vida como tema e se pretende científica. Inscrito neste marco geral, o propósito principal desta tese é o de apresentar uma proposta interpretativa sobre a noção de ciência originária ou ciência da origem, como o mote dos esforços filosóficos de Heidegger no período de 1919 a 1922. Para além da leitura predominante (a meu ver, correta) que destaca que o que está em jogo é a busca de um procedimento metódico para descortinar um campo de problemas filosóficos que seria mais originário (ou seja, que se trata dos problemas de um acesso e expressão originário de um campo de fenômenos originário)44, insistirei que o alcance e implicações da filosofia pretendida somente podem ser vistos caso se explorem as indicações de Heidegger de que a filosofia é uma ciência originária pois realiza de modo mais genuíno e radical uma possibilidade que está presente em todas as ciências. Fazer ciência originária é radicalizar a ciência. De que modo? O que aqui se entende por ciência? Neste sentido, um primeiro movimento será o de questionar qual é a concepção de ciência apontada por Heidegger. Tal questão será levada a cabo nos 2 primeiros capítulos, onde se buscará traçar um panorama tanto das declarações heideggerianas sobre suas pretensões quanto da execução da tarefa de conceitualização da vida. Pelo caminho, se questionará como Heidegger caracteriza as demais ciências e em que medida a filosofia pretendida se aproximaria de tal determinação, porém, sem a pretensão de traçar uma comparação completa entre a filosofia e as demais ciências. A interpretação sobre a qualificação heideggeriana da ciência como investigação será o ponto de chegada que permitirá, a meu ver, visualizar a radicalidade da relação entre ciência e vida na ciência originária, na qual se conjugam a pretensão de conceitualização fenomenológica (originária) da vida e uma exortação para a apropriação originária de si daquele que investiga. Para analisar proficuamente e ter em conta a força e os problemas de tal projeto filosófico é preciso dar igual peso tanto à sua pretensão fenomenológico-transcendental quanto existencial.

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Que pode ser vista, com maiores ou menores variações, em; Benavides (2014, p. 69-70); Bertorello (2005, p.120); Campbell (2012, p.26; 229); Escudero (2007, 2014, p.19); Johnson (2012); Kovacs (1994, p. 102ss); Leyva (2000, p.205); López (2014, p.32ss); Ortíz (2008, p.85); Rabelo (2013); Schuback (2012, p.82-83); Seibt (2012, p.15ss); Valdés (2007, p.109ss); Westerlund (2014, p.44); Xolocotzi (2004, cap.1); Yoshiteru (2006, p.88); Zahavi (2003, p.159), entre outros.

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No segundo momento, nos capítulos 3 e 4, aprofundarei o questionamento em outra direção. Trata-se de questionar quais as implicações da ciência originária, indagando sobre como Heidegger concebe o espaço institucional onde tal ciência seria desdobrada e como se concebe o perfil do cientista, ou qual se espera que seja a postura intelectual do investigador desta ciência. Tais questões serão desdobradas a partir de uma revisão acerca do posicionamento de Heidegger sobre o tema da Universidade e de sua postura sobre as discussões de reforma do ensino e pela caracterização da exigência de radical e intransferível apropriação de si, bem como de uma interpretação sobre o equacionamento da tarefa da filosofia com a promoção de uma inseguridade na existência. O questionamento destes tópicos propiciam, a meu ver, transitar para a compreensão dos limites e tensões presentes neste projeto de filosofia, para além da identificação de erros conceituais ou falhas de interpretação. Neste sentido se qualificam as considerações críticas aqui pretendidas ao projeto heideggeriano de ciência originária: a identificação de limites e insuficiências perante as pretensões levantadas, mas também a detecção de pontos críticos, ou de tensões decisivas e insolúveis nos limites do modo de investigação no âmbito acadêmico. E isso nos levará, nas considerações finais, de volta ao presente: trata-se, retomando as interpretações anteriores, de identificar este tipo de projeto como exemplar, não apenas de uma época, mas de uma conjugação questões que ainda se colocam para nós, sobretudo acerca do trabalho filosófico acadêmico, ou da profissionalização do filosófo. Finalmente, uma nota metodológica: como o ponto de interesse aqui recai sobre a posição pública de Heidegger diante de certas questões públicas, sobretudo acerca de seu posicionamento político-acadêmico, conscientemente desconsiderarei, para a determinação de sua concepção sobre tais temas, passagens do epistolário íntimo de Heidegger (sobretudo, por exemplo, com Karl Kaspers, Elizabeth Blochmann, sua esposa, entre outros), onde tais questões certamente ganham mais desenvolvimento e consideração apurada, e onde Heidegger muitas vezes exprime opiniões mais profundas e não imediatamente congruentes com sua posição pública. Identificar as motivações e pontos onde se dariam tais incongruências seria um tema importante para outra investigação, bem como uma necessária “crítica das fontes”45 tendo em vista a grande quantidade de material publicado e em processo de publicação sobre a vida de Heidegger. Dadas as restrições da presente tese, contento-me

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Há alguns exemplares de discussão crítica da edição das Gesamtausgabe, por exemplo, Kisiel (1995) e a introdução da tese de Sánchez (2001, p.21ss), onde o último se refere à discussão sobre qualificação das Obras completas como “Edição sem interpretação”. Uma discussão sobre a natureza e a defesa dos escritos privados para a compreensão da relação entre vida e obra de Heidegger é feita em Xolocotzi (2009, p.61ss).

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em não buscar a complementação ou o desenvolvimento da posição de Heidegger via seus escritos privados, explorando justamente as insuficiências e ambigüidades de seus pronunciamentos tais como seus coetâneos as experimentaram. Por fim, as traduções apresentadas tomam como parâmetro as traduções já disponíveis, indicadas nas referências bibliográficas.

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1A FILOSOFIA FENOMENOLÓGICA DA VIDA: CIÊNCIA E ORIGEM

O presente capítulo tem como propósito apresentar um esboço geral das pretensões heideggerianas em torno da formulação de uma filosofia entendida como ciência. De modo concomitante, entra em questão a determinação e articulação dos elementos centrais a partir dos quais Heidegger busca desdobrar aquilo que pretende. Ou seja, se trata tanto de identificar como Heidegger caracteriza aquilo ao que tem em vista seu empreendimento filosófico, considerando também, quando oportuno, a execução mesma do que pretende e as questões em torno de como se executa o que se pretende. Esta caracterização tríplice tem como função fornecer um marco conceitual introdutório e geral para as discussões seguintes, sem buscar um confrontamento detalhado com as pretensões apresentadas, ou uma discussão exaustiva sobre os conceitos e procedimentos metódicos mobilizados por Heidegger em suas formulações filosóficas46. Trata-se de bosquejar um quadro geral com vistas a apresentar as noções e as decisões conceituais que estavam em jogo para Heidegger nestes anos de 1919 a 1922.

1.1 A gestação de uma filosofia própria: a filosofia como ciência originária e como a ciência da origem

A primeira decisão conceitual que me interessa destacar está em como se formula a orientação geral da filosofia em questão para Heidegger. Negativamente, há uma recusa inicial do compromisso de que a filosofia deva ter como tarefa a elaboração de um conhecimento que possa servir como guia para nossas ações no mundo, uma visão de mundo (Weltanschauung) (GA 56/57, p. 7-13), bem como de chegar ao âmbito de problemas da filosofia a partir de um termo comum entre as ciências, por exemplo, a partir de uma síntese dos seus resultados – sobretudo no tocante ao procedimento que denomina de dialéticoconstrutivo de uma metafísica indutiva47 (GA 56/57, p.27) – ou mesmo de considerar o

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Para uma investigação que visa considerar rigorosa, detalhada e articuladamente todos os cursos de Heidegger no período, cf. Lara (2008) e Campbell (2012) 47

Heidegger indica que tal concepção possui uma contrapartida epistemológica com o realismo crítico de Külpe, Messer e Driesch. As palavras dirigidas são contundentes e surpreendentes – embora Heidegger afirme que não se trate de uma crítica definitiva – sobretudo porque 7 anos antes, o ainda aluno de teologia Heidegger publica um artigo em defesa do realismo (cf. GA 1, p. 1-16) que toma de empréstimo uma substancial parte dos argumentos de Külpe (para um aprofundamento na relação entre Külpe e Heidegger neste escrito, ver Barash,

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método teleológico-crítico, com sua busca da validez dos axiomas do conhecimento, como o mais adequado para a filosofia48. Por outro lado, Heidegger deu a entender que não basearia parte importante da discussão em alguma concepção de ciência da tradição filosófica49. Em termos afirmativos, Heidegger insiste que a filosofia deve ser uma ciência originária. Fazer filosofia como ciência e tal ciência como uma ciência originária – esta é a pretensão pela qual Heidegger se orienta na gestação de sua filosofia neste momento. Como se concebe tal ciência originária? Quais são suas tarefas, do que trata e como trata aquilo que visa conceitualizar? Inicio a discussão a partir das palavras de Heidegger em 1919, no curso A ideia de Filosofia e o problema da Visão de Mundo, as quais se inserem no contexto específico de uma discussão sobre como a ideia de filosofia enquanto ciência originária deve ser determinada: (...) a ideia de filosofia como ciência originária, na medida em que deve precisamente tornar visível a origem e a ramificação do âmbito de problemas desta ciência, pode e deve ser descoberta e determinada cientificamente. Esta mesma ideia de filosofia deve mostrar-se cientificamente e, enquanto se trate de uma ciência originária, somente pode fazê-lo por um meio de um método que, por sua vez, seja científico e originário. (HEIDEGGER, GA56/57, p. 15).

Heidegger identifica uma aparente circularidade na determinação da ideia de filosofia como ciência originária. A exposição da ideia de ciência, aquilo que exibiria a “determinação da indeterminação de seu objeto” (GA56/57, p.15)50, tem como compromisso mostrar a origem e ramificação do âmbito de problemas desta ciência. A ideia caracterizaria aquilo que deve ser precisamente o âmbito a ser investigado pela ciência, a partir de onde se

2003). Nas palavras de Heidegger: “Esta tendência filosófica, que se exprime de modo epistemológico no realismo crítico (Külpe, Messer, Driesch) foi recentemente vivamente saudada na teologia de ambas as confissões. Uma nova demonstração do radical desconhecimento que se tem dos verdadeiros problemas da teologia, a ciência que mais do que nenhuma outra caiu vítima do naturalismo e do historicismo infundado do século XIX, porque esperava das ciências da natureza e das ciências do espírito algo que, se houvesse compreendido corretamente a si mesma, nunca deveria ter esperado” (GA56/57, p. 27). Mais passagens da crítica de Heidegger à Külpe em GA 58, p.7, por exemplo. 48

Cf. a complexa crítica da Filosofia dos Valores tanto em GA 56/57, p. 31ss, quanto no curso neste mesmo volume, Fenomenologia e Filosofia transcendental dos valores, p.121ss. 49

Neste tópico ele parece estar mais voltado para a discussão com as filosofias do presente, como a filosofia da vida, os neokantianos, e assim por diante e não como, por exemplo, no curso Introdução à Filosofia de 1928, onde parte da discussão com Kant (GA27, p.45) e do conceito de bios teoretikos da filosofia grega (p.178). 50

Heidegger aborda a noção de ideia a partir de uma breve menção a Kant, mas procurando enfatizar a possibilidade de determinação contida na mesma. Destaca-se que, embora não propicie a determinação última e definitiva de seu objeto, a ideia em si mesma é determinável por completo, o que permitiria qualificar a indeterminação do objeto (o esquema que Heidegger indica como Determinação determinável da ideia – indeterminação determinada do objeto da ideia, em GA 56/57, p.14). A indeterminação do objeto da ideia indicaria um limite, uma impossibilidade de realizar plenamente a determinação deste, o que, por sua vez, não impediria todo e qualquer tipo de determinação. Para uma problematização das consequências da noção de ideia neste curso, ver Van Buren (1994, p. 335-336).

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devem tomar seus problemas e em que direções possíveis. Tal caracterização deve ser ela mesma científica, o que poderia indicar como alternativa então recorrer a um procedimento metodológico para descobrir e demonstrar tal ideia. A circularidade se apresentaria na medida em que não apenas se exigiria a presença de um método que possua o mesmo caráter da ciência em questão (um método originário de uma ciência originária), mas também em que o método, o modo como se investiga o âmbito de problemas desta ciência teria seu sentido a partir da ideia de filosofia como ciência - a qual estaria a cargo do método mesmo caracterizar. Heidegger segue adiante e indica que este problema é próprio do âmbito de problemas filosófico, e que o desafio é buscar um método que ajude a superar a natureza aparentemente insolúvel desta circularidade e permita compreendê-la como necessária e inerente à essência da filosofia (GA56/57, p.16). O curso prossegue deixando a discussão sobre a circularidade em segundo plano51, mas sem perder de vista a necessidade apontada de delimitar o âmbito de investigação da ciência em questão. Busca-se conquistar uma orientação para concretizar tal aspiração a partir do exame da experiência de relação com o mundo em contextos cotidianos onde manuseamos utensílios, agimos com determinados propósitos práticos, onde pode ocorrer um estranhamento ao ambiente em que se está e assim por diante (GA56/57, segunda parte). Neste contexto, a discussão sobre como conceber corretamente este âmbito e em que medida partir inexaminadamente de certas posições epistemológicas, científicas e filosóficas sobre o caráter daquilo com que nos relacionamentos na cotidianidade apenas falseia, reduz e mal compreende tal experiência se dá conjuntamente com a busca de um exercício metodológico que aponte para uma direção oposta – método que Heidegger qualifica como fenomenológico. O que se mostra então como origem do âmbito de problemas da filosofia é o campo desta relação primordial com mundo circundante e a originariedade do método é perseguida pela recusa em guiar-se pela incorporação automática de outros métodos, sejam ou não tomados de empréstimo das ciências ou da história da filosofia, e pela insistência em não lançar mão de suposições arraigadas (sobretudo em uma explicação teórica) sobre o acontecer cotidiano do mundo52. Neste percurso, a ideia de filosofia ganha uma determinação importante em suas pretensões e alcance: a ciência originária é concebida como ciência pré-teórica originária

51

A discussão sobre a circularidade retorna para ser qualificada por Heidegger como um problema produzido por uma postura teórica. 52

Há ainda no curso outro sentido de originário na ciência originária pretendida, o qual aprofundarei no próximo capítulo.

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(GA56/57, p.96ss), o que indica tanto que a filosofia deve voltar-se para conceitualizar a experiência cotidiana do mundo (para o âmbito do pré-teórico), quanto visa insistir nas diferenças entre o caráter e o nível de teorização nas ciências. Aqui, é importante ressaltar que Heidegger, ao evocar conceitos como teórico, teorização, se refere a um sentido delimitado, definido em termos de uma operação fundamental (e necessária53), a privação de vida54. Através desta privação é possível descrever a experiência cotidiana como conjuntos de coisas dadas de modo fragmentado, das quais podem ser suprimidas as circunstancialidades e que estão em relação com um sujeito que as questiona e visa determiná-las. Despe-se a relação cotidiana com o mundo de seu caráter significativo, do qual um eu, que não é um observador frente a um conjunto de coisas, mas está sempre em situações, mobilizado por afazeres e propósitos, pela relação com os outros, etc., se apropria. Trata-se de um processo de objetificação (Objektivierung) do vivido (GA56/57, p.84, §17). No exemplo de Heidegger, a relação primordial que se estabelece entre a cátedra da universidade, o professor que a utiliza e os alunos que estão presentes no curso ministrado não pode ser descrita adequadamente como uma percepção de dados sensíveis (uma cor marrom, ângulos retos etc.), mas a cátedra é vista como algo a partir do qual o professor dá suas aulas, sobre a qual ele coloca seus livros, para onde se deve olhar, e assim por diante. Não é necessário conhecer nenhuma teoria sobre a constituição elementar da cátedra para dispor desta, seja como apoio para livros e papéis, seja como um componente da sala de aula. Esta se manifesta a partir de um entorno imediato que apresenta um contexto, um mundo que já sempre se mostra como inteligível, significativo, “sem nenhum rodeio intelectual que passe pela captação de uma coisa” (GA56/57, p.73). Em linhas gerais, a demanda por uma ciência pré-teórica se apóia na defesa de que o processo de objetificação ou de privação de vida não é um movimento pertencente a todas as ciências enquanto tais55. Tal defesa se manifesta discernindo-se entre modos de teorização, tendo como parâmetro o modo de generalização conceitual que, mesclada a elementos de explicação causal, culmina na caracterização formal, objetiva e sem referência ao conteúdo mundano de algo. Para aprofundar tal caracterização, examino o exemplo de Heidegger:

53

Este movimento faz parte do modus operandi das ciências não-filosóficas. Voltaremos a este tema no próximo capítulo. 54

Para ver como esta noção se desdobra no pensamento de Heidegger, em termos de uma desmundanização, cf. Fragozo (2012). 55

Também é um elemento importante a discussão proposta de um método de descrição reflexiva das vivências de Natorp e suas objeções ao método fenomenológico (§s 19 e 20).

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Voltemos a recordar a vivência do mundo circundante da cátedra. Eu começo a teorizar progressivamente a partir do vivido no mundo circundante: a cátedra é marrom; marrom é uma cor; a cor é um dado sensorial genuíno; o dado sensorial é o resultado de processos físicos ou fisiológicos; os processos físicos são a causa primária; esta causa, o objetivo, corresponde a um determinado número de oscilações de éter; os núcleos de éter se decompõem em elementos simples que estão conectados por elementos igualmente simples; os elementos são o último; os elementos são algo em geral. (HEIDEGGER, GA56/57, p. 113).

Heidegger discute este exemplo de uma descrição objetificadora do vivido apontando para uma peculiaridade: a qualificação de algo em geral pode ser dita de quaisquer estágios mencionados. Por outro lado, por exemplo, qualquer um dos estágios não pode automaticamente qualificar os outros. De uma cor posso dizer que ela é algo, mas não posso dizer sem mais de um processo fisiológico que ele é marrom. Há uma hierarquia de generalização denominada de constrangimento específico dos níveis de privação de vida (GA56/57, p. 114). Central é que este tipo de operação estaria em contraste com a possibilidade “livre” (p.114) de atribuir a qualificação de algo a todos os estágios. Heidegger denomina este tipo livre de teorização de uma teorização formal, insistindo que, por não pertencer necessariamente a nenhum dos níveis de privação de vida ou de objetificação, esta não pode ser considerada como o ponto mais elevado deste processo. Ou seja, a formalização (ou objetivação formal, como quer Heidegger) nestes termos pode ser aplicada a cada estágio, cada um destes pode ser considerado de um ponto de vista formal, sem que isso represente imediatamente executar o tipo de teorização objetificadora utilizada nas ciências56.

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No semestre de inverno de 1920-21, nos cursos sobre Fenomenologia da vida religiosa (GA60, parágrafos 12 e 13) podemos encontrar outro desdobramento desta posição na discussão acerca da noção de indicação formal como qualificadora dos conceitos mobilizados pela interpretação fenomenológica. Ao discutir a noção de formal implicada nas indicações formais, Heidegger então explicitamente se refere à distinção feita por Edmund Husserl em suas Investigações Lógicas sobre os tipos de universalização: generalização (ou generificação, como quer a tradução espanhola de Uscatescu para o termo Verallgemeinerung, em HEIDEGGER, 2007) e formalização, retomando a caracterização que aponta para a necessária atinência da generificação a um setor temático específico e à noção de ordenação de notas que qualificam o objeto de acordo com seu conteúdo quididativo: “A generificação pode ser designada como forma do ordenar. Se produz uma inserção de concreções individuais determinadas em um complexo temático global. Este tem a possibilidade de ser inserido em um complexo mais geral e abarcante. Por isso, a generificação se exerce sempre dentro de uma esfera temática” (GA60, p.60). Já a formalização não está ligada à quididade de um objeto (posso dizer tanto da cátedra quanto de uma cor que elas são um objeto) e sim diz respeito ao seu estar dado, ao seu ser captado pela referência cognitiva “O sentido de „objeto em geral‟ significa somente o „ao que‟ da referência teórica da atitude” (GA60, p.61). A formalização determina algo como objeto, lhe designa uma categoria objetiva formal e não é constrangida pelos estágios da generificação. Heidegger aprofunda a discussão indicando que a formalização e a generalização tem em comum a noção de geral – o que no caso da formalização apontaria para distinções na própria noção de formal – “Algo é um objeto” é uma formalização que se pode dizer de todo e quaisquer objetos, mas “A vivência em geral ou a coisa em geral são essências” não se pode dizer de toda e quaisquer coisas. Neste sentido, grosso modo, estão em jogo três noções de geral: a) na generificação, há um processo de ordenação gradativa entre notas de um conceito na pertinência entre espécies/gêneros de generalidade cada vez mais ampla; b) no caso da formalização do tipo “a vivência em geral é uma essência”, a vivência está qualificada no caráter do que é comum a todas as vivências, não se tratando de uma vivência partícular e c) no caso da frase “algo é um objeto”, há um caráter geral na medida em que se pode falar da totalidade dos objetos, e não apenas das vivências enquanto tais, por

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Neste sentido, poder-se-ia concluir que se trata de dois tipos de teorização, uma objetivação formal ou formalizadora e outra objetificadora. Não obstante, Heidegger aponta para outra direção, insistindo que a conduta formalizante não precisa arrancar necessariamente de um solo de perguntas e procedimentos teóricos. Grosso modo, trata-se de enfatizar que o algo da formalização é uma estrutura formal obtida a partir de um procedimento lógico-generalizante, mas que pode ser vivenciado mesmo em contextos cotidianos (mundo) e que se motiva justamente daí. Este algo seria vivenciado por nós em situações qualificadas como momentos em que passamos de “um mundo de vivências a outro mundo genuíno ou nos momentos de especial intensidade vital” (GA56/57, p. 115). Heidegger não analisa exemplos de fenômenos deste tipo, mas aponta com esta caracterização para situações com as quais não estamos familiarizados ou de veemência incontornável 57. O que se apresentaria nestes momentos não seria uma total incompreensão, uma interrupção das relações vitais, a relação com algo vazio, privado de vida, sem significado, mas sim algo vivenciado como um ainda-não, o que ainda não irrompeu em um mundo, mas que aponta para ele – o que neste sentido de algo que ainda não é, mas será mundano, se chama de prémundano. Heidegger interpreta este algo como um indicador no qual “Seu sentido descansa na plenitude da vida mesma e implica que esta ainda não tem nenhuma caracterização mundana própria, mas que abriga provavelmente no interior da vida mesma a motivação para tal caracterização.” (GA56/57, p. 115). Mesmo aquilo que podemos experimentar como incompreensível em nosso mundo circundante não é algo que está privado de vida, mas sim algo a ser vivenciado de um modo ou outro. Tal interpretação torna possível afirmar que a diferença entre o teórico objetificante e o formalmente objetivo não é o de duas espécies que pertencem ao mesmo gênero: trata-se de que uma se motiva58em um procedimento teórico e a outra na própria vivência do mundo. Bem entendido, também a interpretação da ancoragem da estrutura conceitual “algo” em uma

exemplo. A partir de tal caracterização Heidegger discute em que medida a generalização e a formalização podem qualificar ou não as indicações formais, se esta seria ligada a algum dos sentidos de geral apresentados. Temos uma resposta negativa neste ponto, e Heidegger vai mais além, recusando o procedimento de generalização e retendo na noção de formal a característica primordial de designar uma referência a algo, porém prevenindo-se de considerar o sentido referencial como apenas originalmente teórico. Ademais, por se tratar de formal não entra em questão primordialmente a referência ao conteúdo quididativo de algo, mas não de modo a assinalar uma indiferença aos conteúdos dos fenômenos descritos e sim que a referência e o sentido de execução do fenômeno (noções que veremos mais adiante no capítulo) não estejam determinados de antemão mas ficam em “suspenso”, à espera de sua concreção em contextos específicos. Por fim, é importante ressaltar que Heidegger assinala como tarefa uma consideração mais originaria da noção de formal, o que explicitamente chama de uma “fenomenologia do formal” (GA60, p.62). 57

Em 1920, Heidegger ensaiará mais considerações a este respeito (GA58, p.106-107)

58

O conceito de motivo é central para Heidegger nestes anos e a ele voltaremos ainda neste capítulo.

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experiência vital eleva as apostas em uma ciência pré-teórica a outro patamar: a alegação de que a expressão conceitual (ou a linguagem) é vivenciada em um sentido primordial em um mundo: “Portanto, não é necessário que se pense sem mais o significativo, a expressão verbal, em termos teóricos ou objetivos, mas que esta é originariamente vivida e experimentada em um sentido pré-mundano ou em um sentido mundano” (GA56/57, p. 116-117). Concomitantemente, há a defesa de que as funções significativas pré-mundanas e mundanas expressam caracteres estruturantes da vida. A ciência filosófica neste sentido deve, portanto, perseguir um tipo de conceito e descrição que mais se mostre em conformidade com os significados mobilizados neste âmbito, com respeito ao qual o discurso não precisa apresentar o tipo de privação de vida objetificadora59. Em 1919 Heidegger desdobra considerações mais programáticas a este respeito – sobretudo ao apontar, sem desenvolvê-los, os conceitos de motivo e tendência como centrais, ao esboçar a afirmação de que a vivência que se apropria do vivido, e logo, a base de seu método, seria o que denomina de intuição hermenêutica60 e ao aludir que a objeção de que a descrição das vivências seria objetivante tem como base uma crença de que a linguagem é por si objetivante61. Retomando: as pretensões de Heidegger neste momento giram em torno da possibilidade de execução de uma filosofia entendida em termos de uma ciência pré-teórica originária. Embora Heidegger não remonte ao seu exercício de modo a sistematicamente responder em que medida fez jus a sua pretensão, tanto na primeira citação transcrita quanto nos resultados que ligeiramente esbocei se destaca a requisição de que a ciência originária mostre a origem de seu âmbito de problemas de um modo originário. A aproximação entre método e “objeto” se expressa claramente em 1920, quando Heidegger passa a qualificar a filosofia como ciência da origem (Ursprungswissenschaft).

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Não obstante o possível (ou não) sucesso deste empreendimento, Heidegger insiste que a formalização nestes termos não tem a mesma natureza do algo pré-mundano. Há certo nível de privação também na formalização: tanto esta como a objetificação são relativas, estão condicionadas pelo pré-mundano, “Existem “por graça de um „se‟ – se está privado de vida, o vivenciado aparece assim ou assim (..)” (GA56/57, p. 116). 60

Aqui me interessa trazer a tona o tipo de aposta envolvida na requisição de que a filosofia seja uma ciência pré-teórica, como se entende o procedimento teórico, e com o que (conscientemente) se compromete Heidegger ao insistir nesta caracterização, sem avançar para as várias direções e temas que aqui são acenados, como o tema dos conceitos filosóficos enquanto indicações formais, do significado ou traçar continuidades e descontinuidades entre a noção de intuição hermenêutica e de compreensão, por exemplo (para uma discussão detalhada sobre este tema, cf., por exemplo, KISIEL, 1995). 61

A observação se encontra no contexto do exame de algumas objeções de Natorp sobre o método fenomenológico, onde Heidegger investe contra suas bases a partir do ataque ao que chama de uma concepção teórica do que é significado (p. 111), mas deixando em aberto uma discussão mais aprofundada sobre o significado – não obstante atribua o caráter de significativo a tudo o que se manifesta para nós no mundo circundante (p.72-73).

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A compreensão heideggeriana de sua filosofia como ciência ganha formulação mais incisiva no curso de 1920, denominado Problemas Fundamentais da Fenomenologia (GA58). Tanto na delimitação indicativa do que visa conceitualizar, a origem da vida em si e para si, quanto na insistência em renovar a discussão em torno da própria fenomenologia. A filosofia como ciência é a fenomenologia, e é levada a cabo fenomenologicamente (GA58, p.1)62. Contudo, tais afirmações não se mostram para Heidegger como cabais ou assentadas sob um terreno inabalável, sobretudo se se considera que o filósofo ressalta já de início o que considera ser uma atitude propriamente científica: a da crítica. Isso resulta que não apenas as filosofias coetâneas devem ser examinadas (GA58, p. 6-11), mas que a própria fenomenologia deve entrar em questão. O movimento de revisão propiciado pela crítica possibilita tanto interpretar e indicar seus impasses (§4) quanto dá ensejo a uma nova tentativa de levá-la a cabo63. Portanto, não é de estranhar que Heidegger defina a fenomenologia como a ciência da origem da vida em si e para si e não como uma psicologia descritiva das vivências ou variações desta formulação. Por outro lado, tal definição não quita o comprometimento em aprofundar e problematizar tanto as noções de ciência quanto de origem e de vida, bem como sobre a própria possibilidade de realizar o tipo de investigação visada. Com efeito, a investigação mesma se desdobrará adotando tais temas ora como guias (como no caso da ideia de ciência), ora como o próprio conteúdo sobre o qual visa discorrer. Em outras palavras, será o caso tanto de definir sobre o que trata (e como trata) a fenomenologia, mas, e sobretudo, de pôr-se a tratar dos problemas em torno da origem da vida.

1.1.2Ciência

Bem entendida, a pretensão de que a filosofia seja uma ciência é a pretensão de levar a cabo uma ciência (fenomenologia) da origem da vida em si e para si. Entretanto, discorrer sobre uma ciência da origem antes de começar a investigação mesma não equivale para Heidegger a uma enunciação clara e sistemática de uma metodologia ou de tarefas e critérios

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Heidegger insiste que, bem entendida, há uma identidade entre filosofia e fenomenologia, de modo que não se poderia entender a fenomenologia como, por exemplo, um exercício prévio e preparatório para a investigação filosófica (GA58, p.139). 63

Grosso modo, tal exame crítico consiste na avaliação de quais seriam as orientações, as tendências, aquilo ao que tais filosofias almejam, quais são as noções fundamentais que mobilizam e se estas conseguem realizar o que pretendem. No caso da fenomenologia, a discussão incorpora um exame de desfigurações da ideia de fenomenologia - tanto uma visão encurtadora quanto uma exacerbada sobre seus motivos.

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que atestariam a cientificidade desta ciência64. Com efeito, o filósofo aponta no início do curso duas direções abrangidas pela ideia de ciência da origem. A primeira diz respeito ao modo como tal ciência pode chegar a uma compreensão originária65sobre si mesma (GA58, p.2). Não se trata primordialmente de remontar os passos da análise já efetuada para ganhar claridade sobre esta, ou mesmo de uma concepção sistemática prévia ao seu exercício. Antes, compreender se refere à elaboração concreta das tarefas desta ciência e de como esta se mantém orientada na direção do que visa buscar. Heidegger assinala que tal compreensão somente se desdobra no âmbito da investigação mesma. Ou seja, a transparência acerca do modo como se faz e se este fazer mantém-se na direção que o aproxima (ou não) do que pretende buscar é algo que se decide no plano do próprio fazer mesmo e não pode ser dado por uma consideração prévia ou posterior, apartada da própria investigação. Além disso, não apenas se indica o âmbito onde se desdobra tal compreensão (a investigação, o exercício investigativo), quanto que se insiste que esta se dá mediante “(...) a autêntica incidência de seus motivos mais próprios no esclarecimento e na execução investigativa de tal „tarefa‟” (GA58, p.2). A ciência da origem somente se compreende originariamente se estiver em observância do que a mobiliza, do que visa buscar – a origem da vida. Disto, por exemplo, resulta para Heidegger um preceito fundamental: o de rechaçar concepções que idealizem a vida ou como esta transcorre a partir de construções conceituais abstratas, bem como de paralisá-la com conceitos que objetifiquem seus resultados (GA58, p.2). Se este direcionamento for observado, tal ciência poderia credenciar-se como capaz de conceitualizar a apresentar a vida em sua origem. E aqui Heidegger, mesmo reconhecendo a presença de um paradoxo66, insiste em que a origem da vida só se mostra se for conceitualizada a partir do cumprimento das tendências mais próprias da fenomenologia. Assim, a fenomenologia ganha claridade sobre seus passos na medida em que se atém a certos

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Aqui o propósito é apenas de esboçar uma descrição do procedimento de Heidegger. Ao longo da investigação teremos uma definição mais precisa de Heidegger sobre a ciência (a qual aprofundarei no próximo capítulo). Ademais, será no contexto do segundo capítulo que reunirei, a meu ver, elementos para compreender o alcance e radicalidade da exigência por uma ciência originária. 65

Heidegger utiliza o termo originário como qualificação de outros conceitos (como o conceito de compreensão, por exemplo), atribuindo-lhes não apenas um caráter de propriedade ou genuinidade, mas também para designar o que é relativo à origem. Neste caso, se trata de qualificar como esta ciência chega a compreender seu exercício e de onde nasce e para onde remontam seus problemas. 66

Cuja caracterização não é desenvolvida, apenas Heidegger o denomina de “paradoxo da origem da vida em si e para si” (p.2)

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preceitos sobre o que visa conceitualizar67, e o que visa conceitualizar apenas se mostra caso isso ocorra. Uma segunda direção apontada no início do curso diz respeito ao modo como a ciência da origem se realiza: enquanto uma ciência. Para Heidegger (e para nós), tal caracterização diz pouco e muito. Vejamos isso com mais detalhe, seguindo suas palavras: A ideia de ciência de origem (II) delineia o modo como deve realizar-se concreta e vivamente: tal está assumido na ideia de “ciência”. Conhecimento: há nela, e nela originariamente, algo assim como problemas, método. O que isto quer dizer, ela mesma deve esclarecer enquanto ciência originária. Enquanto tal, não lhe é permitido deixar-se impor sua problemática e metodologia externamente, a partir de algo alheio a ela, a partir das ciências particulares, mas sim devem surgir a partir da origem mesma, surgir a partir da origem, de uma gestação originária, uma confirmação que deve ser constantemente renovada e uma execução evidente da tendência. Isto afeta inclusive a ideia de ciência – conhecimento – expressão do mesmo – evidência – prova e modo de fundamentar. Tampouco é o caso, por assim dizer, de que se adote alguma ciência em particular como tipo ideal, mas sim uma universalização, formalizada, ou o que for, da ideia de ciência (HEIDEGGER, GA58, p.3).

No espírito fenomenológico68, as negações tem um papel importante na determinação sobre o que vem ao caso quando se qualifica um projeto filosófico como ciência. Para Heidegger, tal qualificação não deve implicar em assumir um método ou modo de tratar os problemas que seja tomado de empréstimo das demais ciências69, bem como eleger alguma ciência como um tipo ideal que pautaria a investigação. Afirmativamente, as indicações são mais complexas. Temos que a qualificação de ciência indica que a investigação se desdobra de modo a possuir algo como problemas, um método. Porém, Heidegger aponta que o que quer que isso signifique – e neste sentido, também o conceito mesmo de ciência que aqui está em jogo – deve ser esclarecido pela própria ciência originária. Sugere-se que a ciência originária seria capaz não apenas de dar conta de seus problemas, mas também prestar

67

Neste sentido a fenomenologia, além de ter clareza sobre a tarefa a que se propõe, indiscutivelmente lançaria mão de algumas teorias ou preceitos acerca do que visa conceitualizar, sobretudo a fim de justificar uma defesa sobre o modo mais adequado de tratar seu tema, ou a crítica de tentativas já feitas ou mesmo para prevenir-se de realizar certas opções objetivadoras. Em 1923, Heidegger, avançando em sua compreensão da filosofia como Hermenêutica da Facticidade (GA63), insiste que a vida em seu transcurso fático e antes de quaisquer teorias científicas já de dá a conhecer, que lega interpretações sobre si, que apresenta uma familiaridade e compreensibilidade disponíveis em nossa experiência mais cotidiana do mundo, que ela fala sobre si mesma (também em 1920 a análise do fenômeno do tomar conhecimento aponta para esta direção). A tarefa da filosofia é interpretar tais interpretações, radicalizar uma tendência que já é própria da vida fática, o que não exclui uma possível objeção sobre “pressupostos” na investigação fenomenológica, mas aponta para a necessidade de aclarálos e torná-los patentes a partir da interpretação proposta. 68

No contexto deste curso mesmo, Heidegger comenta a importância da negação para a fenomenologia (GA58, p. 240), indicando que “(...) nas descrições fenomenológicas constantemente se diz não”. Sobre este tema, cf, ainda GA58, p.109-110. 69

Sobre este tema ver, por exemplo, GA 60, p.3; GA63, p.71, entre outros.

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esclarecimentos sobre as noções de método, problemas, etc. na ciência enquanto tal. Se não quisermos estender demasiadamente as ilações, podemos ficar com a indicação de que estas noções (assim como de expressão, evidência, prova, fundamentação, etc.) ganhariam uma reconfiguração no interior da ciência filosófica. Quaisquer que sejam as conclusões, é importante ressaltar que, mesmo que Heidegger contemple elementos tradicionalmente vinculados ao conhecimento – que não tem em vista uma ou outra ciência em específico, mas sim, como se indica, os aspectos gerais da ideia de ciência – a aposta é que tais elementos só ganharão determinação decisiva no decorrer do desenvolvimento mesmo da investigação. De início só se sabe que se trata de um conhecimento, uma ciência, cuja caracterização é feita de modo a elencar elementos tradicionalmente vinculados a esta, sem, contudo, avançar em uma definição cabal do que se entende por ciência e de que modo a filosofia faz jus ou não a estas características ou se enquadra na descrição sobre o que é uma ciência70. Sobretudo porque Heidegger afirma que a elaboração própria da problemática desta ciência e a gestação de suas tarefas de modo a cumprir e manter-se no caminho daquilo que investiga impacta centralmente na caracterização aludida de ciência. E tanto na reconfiguração das noções atreladas à ciência, quanto nos passos da investigação, um elemento é posto em destaque: a origem. A origem, como aquilo que deve ser investigado, aparece como fator determinante para as próprias tarefas da ciência filosófica71. Em que medida isso se dá ou o que se entende por origem não são questões contempladas pelo filósofo neste momento - o que confere à caracterização uma nebulosidade particular – mas sim dependem do desdobramento da investigação.

1.1.3Origem da vida: o si-mesmo em situações Investigar a vida72 em si e para si não indica apenas a tarefa de descrever a vida tal como esta transcorre faticamente, ou mesmo de seu auto-esclarecimento enquanto uma teoria

70

Mais adiante veremos como Heidegger entende a “raiz comum” das ciências em termos do questionar sobre a vida. 71

As dificuldades advindas desta ampliação do papel do “campo temático” (origem) no modus operandi da ciência filosófica (ou das demais ciências) ficarão apenas indicadas aqui, uma vez que mesmo Heidegger não se dedica a responder em que medida sua interpretação sobre a origem da vida impactaria nestas questões. 72

Neste período a vida fática se apresentava para Heidegger como o campo temático da filosofia ou como uma direção dos problemas filosóficos, ainda não referente ao termo Dasein ou existência (que aparecerá mais fortemente na resenha ao livro Psicologia das visões de mundo de Jaspers, publicada em 1921) e da tarefa de uma analítica do Dasein formulada explicitamente em SZ. Em SZ, vida passa a ser concebida como uma categoria peculiar aos organismos vivos, a ser estudada pela biologia.

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geral dos elementos que estruturam nossa experiência no mundo 73. Tal via negativa se depreende da caracterização complementar de que a fenomenologia é uma ciência que toma a vida em uma orientação determinada: a de investigar e apresentar sua origem 74. Filosofia como a ciência da origem75 da vida em si e para si compreende, portanto, a busca pela origem da vida não como um ponto espaço-temporalmente determinado, mas como aquilo a partir do qual se estabelecem todos os comportamentos nos quais algo comparece para nós, seja em contextos práticos, científicos, da nossa relação com outros, e assim por diante. Ou seja, não se trata apenas de encontrar e apresentar os caracteres que estruturam nossa experiência vital, mas, sobretudo, de buscar descrever o âmbito a partir do qual se geram estes caracteres 76. Neste sentido, no tocante à pretensão desta ciência, temos uma primeira delimitação de sua especificidade diante das demais ciências: a filosofia é a ciência tal que busca apresentar o âmbito do qual dependem todos os nossos modos de relação com algo no mundo, inclusive o da investigação científica. Ademais, Heidegger, assim como em 1919, também insiste que o modo como a fenomenologia busca e trata o que pretende conceitualizar deve ser ele também originário. Tal pretensão é levada a cabo a partir de uma argumentação formal que seja científica, que vise determinar algo sobre aquilo de que trata e, no intuito fenomenológico, diminuir ao mínimo a separação entre as perspectivas do vivido e de sua conceitualização. Tal se faz a partir de uma descrição, onde se salienta a noção de repetição, de intensificação da vivência originária.

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“A ideia da fenomenologia é: ciência da origem da vida. Não se deve investigar a vida fática mesma e a plenitude infinita dos mundos vividos nela, mas a vida enquanto emergente, enquanto resultando de uma origem. (...) a ciência de origem não tem como finalidade captar a vida fática e seus mundos e conteúdos mundanos em suas determinações quididativas e suas conexões” (GA58, p.81). 74

Heidegger reconhece que a pretensão da filosofia de ser uma ciência das origens não é ela original. Mesmo antes de se voltar para uma interpretação de Aristóteles da filosofia como conhecimento principial (em GA61), ele tem como tema seus próprios contemporâneos, analisando a consecução desta pretensão pela Filosofia dos Valores, a partir da definição da desta como a ciência dos primeiros princípios, dos axiomas das ciências (GA56/57, p.29ss). 75

Tal busca pelo originário como tarefa da filosofia se traduz nas qualificações do projeto filosófico de Heidegger: no curso de 1919 (GA56/57, p.15ss), se trata de uma Urwissenschaft, de uma ciência originária que deve originariamente se aproximar de seu campo de problemas, e o faz sobretudo pela crítica às concepções e pretensões filosóficas estabelecidas e pela tentativa de conceitualizar nossa vivência cotidiana do mundo. Em 1920, Heideger é mais específico ao denominar sua ciência de Ursprungswissenschaft, destacando e procedendo à investigação da vida orientada pela noção de origem (mesmo que coloque em questão a própria possibilidade de encontrar algo como origem da vida, GA58, p.80 ss). Considero que, embora sejam denominações diferentes, os dois momentos estão reunidos em 1920, já que Heidegger também discute como a filosofia deve se aproximar de modo originário do que visa conceitualizar (tema que veremos nas páginas seguintes). 76

Assim definido, é uma tarefa interessante em termos de continuidade analisar em que medida, mesmo ganhando outras formulações (e o tema da origem ficando mais a margem a partir de 1921), o problema para Heidegger não permanece o mesmo, ao menos até a publicação de SZ – movimento que, evidentemente, excederia em muito o âmbito do presente trabalho.

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Colocado de um modo esquemático77, o vivido, a intuição da vivência, enquanto o que comparece para nós em situações78, é captado (repetido) via um processo compreensivo em cujas fases se destacam tanto um momento crítico, de afastamento de pré-concepções (sobretudo filosóficas) deformadoras do fenômeno; a execução de tal vivência 79, a articulação do captado na execução da intuição; a transposição da intuição executada para os horizontes expressivos indicados por ela em suas tendências e motivos; a articulação do visto, destacando os momentos particulares do fenômeno; a interpretação dos fenômenos e a configuração que recompõe o que foi desmembrado na articulação dos fenômenos (na transcrição de O. Becker, GA58, p.254-255)80. Mas, o que se entende então como origem da vida? Para fazer frente a esta questão, é preciso adentrar reconstrutivamente na ontologia heideggeriana da vida81. Grosso modo, tratase de investigar a vida como aquilo com o qual estamos mais familiarizados, mas com algo que poucas vezes nos ocupamos expressamente, absorvidos que somos por sua fluência. Do mesmo modo, entra em questão o interesse por conceitualizar a vida não apenas como a multiplicidade de vidas, de cotidianos e de viveres fragmentados. Heidegger tem em vista a origem da vida em si e para si, o âmbito a partir de onde se geram os caracteres que estruturam nossa experiência. Para tanto, utiliza-se de uma série de descrições a partir das quais se destaca que a vida não se mostra como um pano de fundo caótico e sem sentido, mas

77

Com esta esquematização meu intuito é o de apenas mostrar que Heidegger possui uma concepção metodológica sobre como se descrevem os fenômenos em filosofia para alicerçar suas pretensões (apesar do mesmo insistir de que não se trata em filosofia de desenvolver uma técnica). De fato, este modo de apresentar certas fases de seu método de análise é provavelmente a mais equivocada, uma vez que se separa da própria análise concreta, (na qual tais marcos aparecem antes como indicações de como proceder do que considerações metodológicas a parte) o que propicia uma incômoda sensação de abstração e intangibilidade nestes procedimentos – a qual certamente diminuiria se estes fossem apresentados juntamente ao exercício mesmo de análise. 78

Sobre os conceitos de situação, motivo, tendência, cf. páginas seguintes.

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Sobretudo pela narração, pela rememoração do vivido de modo mais cotidianamente possível.

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Heidegger tem outras variações sobre este tema: “A estrutura da compreensão pura mesma enquanto forma de captação das vivências em destaque fenomenológico, sua genuína figura explicitativa: interpretações de nexo de sentido e, com isso, construção interpretativa das possíveis situações tendenciais dominantes segundo o sentido como figuras expressivas últimas de possíveis dominantes puras da vida originária” (GA58, p.138). Ou, na retomada da análise do fenômeno da cátedra: “Portanto, devemos executar a vivência do mundo circundante em toda sua vitalidade, logo observá-la detidamente, em continuação observar esta observação e examinar o modo como realizamos a primeira observação. O caráter absoluto do ver não se obtém num golpe, de uma maneira artificial ou prática, senão que imediatamente se deve suprimir pela raiz todas as relatividades (que são essencialmente pré-concepções teóricas)” (GA56/57, p.98). 81

Dada a circunscrição do tema, apenas enunciarei algumas das afirmações de Heidegger em suas análises, sem acompanhar de perto o desenvolvimento destas a partir das profícuas descrições trazidas pelo filósofo. Este procedimento, além de separar a descrição de suas conclusões, certamente obscurece o caminho da investigação, ao qual, quando pertinente, farei referência, visando assim mitigar os problemas trazidos por este tipo de delimitação.

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sim apresenta elementos que dão o tom ao nosso vivenciar. Seja como for o modo como vivemos – o que esperamos, com quem nos relacionamos, as convicções e idéias que sustentamos, nossa profissão – viver, destaca Heidegger, é sempre viver em mundo, em contextos que nos circundam e a partir dos quais as coisas comparecem para nós. Vivemos nossa vida em um mundo circundante de paisagens, cidades, desertos, em um mundo compartilhado com familiares, conhecidos, amigos, chefes, desconhecidos, e em nosso mundo do si-mesmo (GA58, p.33). Vivendo em um mundo, salienta Heidegger, temos um círculo de coisas que compreendemos, as quais temos acesso: “Há fragmentos de mundo que são acessíveis do mesmo modo para um determinado grupo de pessoas: os objetos de uso da vida cotidiana, os meios de transporte, os órgãos „públicos‟ (...), determinados contextos com uma finalidade acessível para todos: escola, parlamento, etc.” (GA58, p.34). A vida em um mundo não apenas nos lega um fundo de compreensibilidades e acessibilidades como também se determina a partir de uma inter-relação entre os mundos circundantes, compartilhado e do simesmo, de modo que tais relações se estabelecem não como um amontoado ou soma ou como fruto de uma consideração teórica, mas sim são de índole emocional (emotionaler): “Eu não sou um espectador e muito menos alguém que, teorizando, sei de mim mesmo e minha vida no mundo” (GA58, p.39). Ademais, a vida possui um caráter de estabilidade (Zuständlichkeit), de mantenimento em certas direções, de lida rotineira com coisas, pessoas, instituições, e assim por diante. Tais caracteres pautam nossa cotidianidade, embora possuam a peculiaridade de não destacarem-se expressamente do fluxo corrente de nossa vida. Heidegger enfatiza não apenas o caráter mundano, mas também a multiplicidade de tendências da vida. Vivemos sempre em alguma direção (seja esta expressamente colocada ou não), a qual nos requer uma série de ações, ajustes, planos, ou mesmo um deixar-se levar pelas coisas82. Para tanto, há algo que nos estimula, que nos motiva, que dá ensejo a, que nos propicia a tomar tal ou qual direção, o que temos em vista, um motivo. Ir de motivos a tendências é para Heidegger “a relação que impulsiona e sustenta a experiência da vida” 82

Heidegger descreve exemplos do que entende por tendências da vida a partir de uma longa passagem, onde se destaca a extensão desta noção. Grosso modo, estar em uma tendência é desempenhar uma função, levar a cabo um afazer, ter uma posição a respeito de algo, tudo o que corresponde ao que fazemos em nossa vida com vistas a algo: “Tu, ele, ela, nós vivemos sempre em uma direção. (...) Agora os senhores estão nesta: „escutar‟ a aula; eu mesmo: dar aula. Vou à faculdade pelas manhãs, às tardes trabalho em casa, por exemplo. Um se dedica a esta ciência, outro àquela. Este trabalha intensa e autonomamente, aquele como um principiante (...). Sento-me à mesa; noto cansaço, necessito de algo que me anime; vou a um concerto, escuto Bach; outro dia contemplo quadros, leio poemas, pertenço a uma comunidade religiosa (...) formo parte de uma associação acadêmica, faço esporte; sou politicamente ativo...(...) Meu trato com outras pessoas experimenta uma determinada seleção, determinada pelo uso e por outras tendências”. (GA58, p.32)

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(GA58, p. 156). O modo como em princípio se motivam novas tendências e como as tendências se desdobram e se cumprem corresponde ao que Heidegger denomina como o fenômeno da autossuficiência. Nas palavras do filósofo: A motivação de tendências e de novas tendências procede sempre da própria vida vivida, e estas tendências, por sua vez, se cumprem dentro da vida em e mediante as formas de desdobramento típicas desta vida. O sentido de „autossufiência‟ não indica que religiosidade e que forma de religião concreta, que determinada visão de mundo ou que vivenciar artístico realizam a tal ou qual sentido motivado histórica e morfologicamente mediante tal ou qual figura (Gestalt) motivada também histórica (e aleatoriamente), mas sim que o cumprimento é em geral algo que tem lugar na vida a partir das próprias formas desta, isto é, que a vida dirige-se a si mesma e se responde sempre em seu próprio idioma; que a vida, estruturalmente, não necessita sair de si mesma para manter-se a si mesma segundo seu sentido (...). (HEIDEGGER, GA58, p.41-42)

À autossuficiência se une outra determinação fundamental da vida, na qual esta é caracterizada por nexos de manifestação. Trata-se do “(...) aspecto da vida segundo o qual tudo nesta se manifesta, se expressa, se patentiza de algum modo” (GA 58, p.55). Em nossa vida tudo com o que lidamos, seja conosco mesmos, com instituições, nossa família, com as outras pessoas, com a natureza, tudo o que nos vem ao encontro ao vivermos, tem o caráter de ser algo que se manifesta de algum modo.. Não apenas de algum modo, mas também em um nexo de acontecimentos, ou de outras manifestações. Na vida fática tudo que se manifesta para nós, se manifesta em contextos, em nexos, em “estratos de manifestação que se atravessam mutuamente e onde dita „manifestação‟ pode ser enormemente multiforme” (GA 58, p. 53). Ademais, Heidegger assinala que o caráter do que se manifesta no mundo é o da significatividade (GA58, §21, seção b). A partir do destaque às formas nas quais se apresenta uma acentuação possível no mundo do si mesmo (a autobiografia, a investigação biográfica, o Cristianismo primitivo), Heidegger aponta para uma agudização para o mundo do si-mesmo, na qual entra em relevo o caráter situacional da vida. Aqui são importantes os passos interpretativos propiciados pela discussão da possibilidade de uma ciência de origem da vida em si e para si83, de modo a que na vida fática mesma se encontre o motivo para uma ciência de origem, já que seu transcurso fático autossuficiente em princípio não a requer e nem necessitaria. Grosso modo, o problema se constrói em torno da busca por um fenômeno que, mantendo-se ao estilo não destacado da vida mesma, possa apontar para a origem, mas não como outro conteúdo da experiência fática. Não apenas um ir com a vida, mas algo que motive uma ciência da vida.

83

Aos quais voltaremos no segundo capítulo.

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Heidegger faz uma distinção entre conteúdos quididativos (o que experienciamos) e os conteúdos modais, que não estão ligados a um ou outro conteúdo quididativo determinado, mas designam o modo como todo o conteúdo quididativo é experimentado. Neste caso, a agudização para o mundo do si mesmo é vista como um conteúdo modal e indicador, o que enceta a questão sobre o âmbito para o qual ele indica. O âmbito é o âmbito do si-mesmo, e Heidegger discute com as tentativas cognoscitivas de apreender o mundo do si-mesmo (principalmente a Psicologia), voltando-se posteriormente para o fenômeno do tomar em conhecimento. Trata-se do ato cotidiano de narrar, conversar, informar, presentificar o que fazemos, quais são nossos objetivos, nossas expectativas, algo que nos aconteceu estando com outros, como foi nosso dia, etc. Em tudo isso “sabemos” de nossa vida, temos uma visão de conjunto de nossas experiências, a vida fática se explicita, mas é um saber que é característico da vida fática, que se mantém no próprio estilo fluente e não destacado desta, ele "vai com a vida". O tomar em conhecimento (assim como a recordação) mostra um “eu” familiarizado com a experiência mundana da vida e, deste modo, consigo mesmo. Através da pergunta pelo que é tido e como é tido o si-mesmo na experiência, pelo eu da vida fática, Heidegger chega ao fenômeno da situação: “Eu sou consciente de mim de modo concreto em uma determinada experiência vital, sou em uma situação” (GA58, p.259). Neste sentido, tanto o caráter manifestativo quanto o de autossuficiência e de significatividade da vida são vistos à luz da noção de situação. O que se manifesta para nós significativamente em nosso mundo circundante, compartilhado e do si-mesmo, o faz em uma situação do si-mesmo. A autossuficiência em conexão com a agudização para o mundo do simesmo indica que as tendências emergem a partir do mundo do si-mesmo, que se motivam a partir dele e o cumprimento das tendências regressa sempre ao mundo do si-mesmo (GA58, p.63). Viver em um mundo significativo é ter experiência de mim mesmo, de tal forma que o si-mesmo que aí “aparece” é a minha situação. Na afirmação direta de Heidegger: Na experiência fática da vida vivemos dentro de um mundo. A vida está „mundanamente entrelaçada‟ em sentido literal. Vivo em nexos de significatividade com uma dimensão autossuficiente; aquilo do que temos experiência nos dirige a palavra, mas de tal maneira que sempre nos resulta familiar de algum modo. Isso mesmo do que temos experiência é tal que sempre de algum modo nos diz respeito, de modo que eu estou nisso. Tenho a mim mesmo nisso de algum modo. (HEIDEGGER, GA58, p.157)

Assim, a noção de situação aponta para a dimensão originária buscada. O que comparece para nós na vida fática o faz sempre em situações do si-mesmo. Tal definição expressa a estrutura tríplice da situação: o sentido de conteúdo, o sentido de relação e o sentido de execução. Ou seja, aquilo que se manifesta na vida fática, se manifesta de acordo

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com certa relação ou contexto em um modo de ser executada por alguém (de acordo com certos motivos e tendências). Estes elementos podem experimentar certo predomínio de uns sobre outros – no qual o predomínio de sentido de execução se pensa como a espontaneidade do si-mesmo. Para o filósofo, a origem pode ser descrita a partir da articulação reconstrutiva84 do nexo expressivo entre a experiência fática do mundo circundante, a espontaneidade do mundo do si-mesmo e a história presente (GA58, p.262)85. No curso do semestre de inverno de 1921/22, denominado Interpretações fenomenológicas de Aristóteles: Introdução à pesquisa fenomenológica (GA61), ganha força a orientação por uma fenomenologia da vida fática86, na qual se destaca a introdução da temática ontológica equacionando a concepção de filosofia como um conhecimento que visa o sentido do ser dos entes. Tal concepção se complexifica em 1923, no curso Ontologia – Hermenêutica da Facticidade (GA63), onde Heidegger passa a considerar como caráter fundamental da vida fática é ser hermenêutica – logo, que a filosofia deve ser uma hermenêutica de feições fenomenológicas87.

1.2A ciência fenomenológica

Vimos que Heidegger estrutura suas investigações nos anos iniciais de sua atividade docente em torno da ideia da filosofia como uma ciência. Neste caso, o desdobramento desta ciência em termos de uma fenomenologia da origem da vida em si e para si é um ponto central para as pretensões heideggerianas. Este período inicial, ademais de representar as tentativas de levar a cabo a pretensão de um projeto filosófico nos moldes fenomenológicos (e, ao longo dos anos, fenomenológico-hermenêutico) nos propicia um quadro de diversas observações sobre as ciências e o conhecimento (por exemplo, ver GA 56-57, parágrafos 16 e

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Neste sentido remetemos às páginas iniciais desta seção, onde apresentamos esquematicamente a compreensão heideggeriana sobre o método de investigação a ser utilizado. A noção de situação não só articula a dimensão de origem buscada, mas também diz respeito ao que devem tender as descrições fenomenológicas. 85

Em 1921, Heidegger realça o sentido temporal indicado ao incorporar mais uma estrutura, o sentido de temporalização (GA61, p. 54). A compreensão da vida em situação, enquanto a articulação destes elementos, é um dos pontos conceituais-chave nestes anos para Heidegger e contempla o fenômeno que após 1920 e antes de SZ se chamará de correlação intencional ou intencionalidade. Também uma das tarefas da investigação filosófica passa ser o apropriar-se de sua situação (já em GA61, mas sobretudo em GA63, de sua situação hermenêutica), na qual Heidegger identifica uma estrutura tríplice de pressupostos que orientam a investigação: o ver-prévio, o ter-prévio e a conceitualidade prévia. 86

Mais uma vez, meu intuito é o de apenas apontar para o desdobramento da problemática, sem buscar comparações entre os procedimentos realizados nos cursos, menos ainda entre as (muitas) categorias da vida apresentadas por Heidegger em 1921 e as apresentadas anos antes. 87

Para uma interpretação da “passagem” da fenomenologia à hermenêutica, cf. Rodriguez, 1997.

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17; GA 58, segunda seção, p. 65-128; GA 59, capítulos 1 e 6, ss.; GA 60, p. 3-18; GA 61, p 42-77, entre outros88). Ainda, e de modo mais relevante, o período retrata a pretensão e esforços heideggerianos de efetivar o projeto de uma filosofia (ou fenomenologia) como ciência. Ou seja, não apenas está em gestação a apropriação heideggeriana da fenomenologia do mestre Husserl ou a consideração da ciência como um tema a ser tratado por esta fenomenologia, mas a exigência de princípio de que a fenomenologia mesma se constitua como uma ciência. Em que pese um tom muitas vezes abertamente não favorável à ciência 89, Heidegger manifestou, como vimos, a aspiração de que a filosofia fosse uma ciência. Tal aspiração incorporou mais tensões neste caso, uma vez que Heidegger assumiu como um dos problemas centrais deste período estabelecer uma cientificidade que seria própria da filosofia e insistir nisso como tarefa, sem tê-la como suposto nem como uma reflexão propedêutica ao próprio filosofar. Logo, é importante ressaltar que Heidegger concebeu claramente seu projeto filosófico nestes anos como científico. Mesmo que se tenha em mente a vocação científica da filosofia na narrativa que remonta aos gregos, ou uma mais recente que aponta a fenomenologia husserliana como a matriz de tais preocupações90, acredito ser válido ainda, questionar pela motivação de tal concepção. Ou seja, de que modo Heidegger concebe a ciência neste momento para que explicitamente oriente sua filosofia pela ideia de ciência? O que, por assim dizer, Heidegger concebia de positivo na ciência para insistir no caráter de cientificidade da filosofia? Formulando de modo mais simples, por que Heidegger, embora 88

Para um estudo minucioso da concepção de ciência em Heidegger, tanto deste período quanto dos anos até 1929, ver Schwendtner (2005). 89

Sobretudo quando descreve a necessária e preponderante (mesmo em filosofia) tendência teórica de coisificação da experiência vivida (por exemplo, GA 56-57, p. 84ss; GA58, p.126-128). Vale lembrar que Heidegger também se posiciona muitas vezes contra ao conceito de “filosofia científica” corrente na época, sobretudo tomado de Rickert e Husserl, criticando tanto a concepção que toma como evidente que a filosofia seja uma ciência, tanto quanto a que coloca como tarefa última da filosofia formular uma visão de mundo científica ou mesmo na confrontação da filosofia científica com a visão de mundo (por exemplo, GA 60, p.8; GA61, p. 4445). Heidegger é taxativo: “Há que se observar que, em geral, a expressão „filosofia científica‟ encobre precisamente o problema” (GA61, p.45). 90

A relação entre o mestre Husserl e seu discípulo Heidegger é um tema delicado na literatura, visto que ainda há muita discussão sobre as transformações heideggerianas no projeto fenomenológico husserliano e na apropriação de conceitos como intuição categorial, epoché, intencionalidade, entre outros (CARMAN, 2003; CROWELL, 2006; DREYFUS, 1991; KISIEL, 2002, 1993; MORAN,2000; ØVERENGET, 1998; STAPLETON, 1983, STEIN, 1988, apenas para citar alguns exemplos). Especificamente sobre este período, Rodriguez debita a tentativa de levar a cabo a ideia de filosofia como ciência a Edmund Husserl,sobretudo em três insights principais: 1) independência da filosofia das ciências naturais, 2) a negativa da filosofia como Visão de mundo e 3) a filosofia como ciência originária (RODRÍGUEZ, 1997). Todos estes são pontos transformadores para Heidegger, mas não são aceitos sem um “exame de direito” na elaboração da fenomenologia pretendida. Uma indicação forte disto se dá pelas frases inaugurais do curso de 1920: “„Problemas fundamentais da fenomenologia‟ – o mais candente e nunca cancelável, o mais originário e definitivo problema fundamental da fenomenologia é ela mesma para si mesma” (GA58, p.1).

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com todas as advertências que veremos a seguir, vê como imperativo que a filosofia seja uma ciência. Em 1921, Heidegger comenta a expressão “filosofia científica” não apenas indicando que ela oculta o problema, mas avança caracterizando tal problema. Trata-se de uma tarefa, um problema cuja resolução não pode ser dada como suposta. Heidegger explicita: “Na expressão encontra-se uma tarefa, um problema (indicação!): determinar a ideia de conhecimento, pesquisa e método, delineada previamente para o sentido da filosofia mesma e como tal, a partir dela mesma e de sua experiência fundamental” (GA61, p. 46). A caracterização da filosofia como ciência, ou como científica, não traz consigo tarefas secundárias ou de menor importância. Ela é indissociável das questões sobre o caráter e execução da filosofia mesma em jogo. Mais adiante, Heidegger é enfático ao afirmar: Para compreender a tarefa indicada na expressão é importante ver que, por causa da cientificidade da filosofia, é preciso desfazer-se de uma orientação através das ciências, para assim descobrir a “cientificidade” de uma forma ainda mais originária (HEIDEGGER, GA61, p.46-47).

Atribuir cientificidade para a filosofia, como vimos, portanto, nos conduz ao centro da filosofia, ao seu sentido, ao que lhe dá seu caráter próprio. Que caráter é esse? Ao indicar que a cientificidade da filosofia não pode ser buscada em uma orientação através das ciências, Heidegger estaria nos dizendo que abrirá mão de quaisquer ideia de conhecimento ou mesmo de ciência? Claramente, ademais, Heidegger sugere outra noção de cientificidade, estritamente vinculada à cientificidade da filosofia, a qual qualifica, aos moldes das sutilezas estilísticas heideggerianas, de ainda mais originária – logo, que não predica que a obtida através da orientação pelas ciências seja não-originária. Por último, é importante ressaltar que, na citação anterior, Heidegger menciona a noção de experiência fundamental, a qual já pertence ao contexto de sua descrição fenomenológica sobre a ciência. Fica claro que conferir cientificidade à filosofia não é para Heidegger uma aposta inconsequente ou mesmo a mera repetição de princípios herdados. Ela coloca em jogo e depende fortemente da filosofia gestada nestes anos. Neste sentido, e repassando e reunindo as questões suscitadas, sigo adiante na discussão em torno do tema da cientificidade da filosofia para Heidegger nos anos iniciais em Freiburg a partir de dois pontos: em um primeiro momento, discutirei a partir de qual ideia de conhecimento e ciência, se alguma houver, Heidegger discute o status da filosofia como ciência. Em um segundo momento, avançarei na elucidação do que se poderia compreender como a cientificidade ainda mais

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originária referida pelo filósofo, buscando ver nesta direção elementos para justificar a decisão heideggeriana pela filosofia como ciência.

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2A FENOMENOLOGIA E A CIÊNCIA: AS CIÊNCIAS E A CIÊNCIA DA ORIGEM

Neste capítulo, meu interesse se concentra em avançar na caracterização dos elementos conceituais que apóiam as pretensões heideggerianas em torno da filosofia como ciência. Como mencionado ao final do capítulo anterior, tal movimento será articulado em torno de duas questões principais: como se determina o conceito de ciência para Heidegger? Ao que Heidegger visa com a qualificação de seu projeto filosófico como uma ciência originária? Em um primeiro momento, recuperarei a descrição e as questões heideggerianas sobre a ciência, o que me levará, por conseguinte, a interpretar, para além da afirmação sobre a originariedade do método e tema da filosofia no primeiro capítulo, que a originariedade buscada diz respeito a uma concepção sobre o amplo alcance da relação entre ciência, vida e filosofia e que nesta consideração reside um pilar fundamental sobre o qual repousa a decisão de Heidegger pela filosofia enquanto ciência.

2.1A Ciência: das disponibilidades à Lógica Concreta

Anteriormente (na seção 1.1.2) se ressaltou que Heidegger não se compromete ao início de sua investigação com alguma concepção pronta e abalizada91 de ciência. Não obstante, o projeto filosófico heideggeriano incorporou de forma fundamental a descrição sobre as ciências. Conjuntamente com a articulação dos problemas, das tarefas e da tentativa mesma de conceitualizar o deveria ser o campo próprio da filosofia, Heidegger descreveu a ciência em 1920, no curso Problemas Fundamentais da Fenomenologia, a partir de duas formulações complementares: trata-se da ciência como um nexo de manifestação de um âmbito da vida e a ciência como lógica concreta de um campo temático a partir de um solo de experiência. A descrição de como um âmbito da vida entra no contexto de manifestação “ciência”a partir da elaboração de um solo de experiência, da conformação de um campo temático e da geração de uma lógica concreta, contempla o intuito de Heidegger de expor o que denomina de fases e momentos de uma gênese a priori do nexo expressivo ciência (GA58, p.65).

91

Cf. também nota 49 do capítulo 1.

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Pois bem, as considerações heideggerianas sobre ciência e sua gênese a priori supõem e aprofundam a descrição da vida fática92 como caracterizada por nexos de manifestação. Enunciada a partir do ponto de chegada da interpretação93, tal noção empalidece a básica caracterização em jogo: se trata do “(..) aspecto da vida segundo o qual tudo nesta se manifesta, se expressa, se patentiza de algum modo” (GA 58, p.55). Em nossa vida tudo com o que lidamos, seja conosco mesmos, com instituições, nossa família, com as outras pessoas, com a natureza, tudo o que nos vem ao encontro ao vivermos, tem o caráter de ser algo que se manifesta de algum modo94. Não apenas de algum modo, mas também em um nexo de acontecimentos, ou de outras manifestações. Na vida fática tudo que se manifesta para nós, se manifesta em contextos, em nexos, em “estratos de manifestação que se atravessam mutuamente e onde dita „manifestação‟ pode ser enormemente multiforme” (GA 58, p. 53)95·. Considero ser válido reproduzir o exemplo de Heidegger: O curso de Max Weber: foram um bom número de lições; um dia veio com tal terno, outro com um distinto; um dia falou muito vivamente, outros dias, menos; às vezes foi incompreensível, outras mais fácil; um dia os senhores estavam sentados aqui, outro ali; um dia chegaram tarde, outro tiveram de ir antes do tempo; às vezes a aula estava superlotada, outras frequentada moderadamente. “O curso de Max Weber do semestre de verão de 1919 em Munique” – os mais diversos acontecimentos em que se expressa o “curso”. (HEIDEGGER, GA58, p.44).

A ciência também é concebida como um nexo de manifestação, mas de um caráter distinto. Ele é visto, por assim dizer, como um nexo de manifestação de ordem diversa, pois supõe os nexos de manifestação que já comparecem para nós na vida fática. Ou seja, não apenas manifesta algo, mas algo que já estava de algum modo manifesto.A tese de Heidegger é a de que aquilo que vivemos e experienciamos cotidianamente pode ser indagado e

92

Cf. capítulo 1. É importante realçar que a descrição sobre a ciência é feita no interior da investigação já em exercício, mas que, embora suponha alguns de seus resultados, ela também auxilia Heidegger a avançar. Ou seja, não se trata de um excurso ou de uma parte introdutória ou propedêutica do curso. 93

O ponto de partida é uma extensa descrição de acontecimentos cotidianos da vida em que esta, nas palavras de Heidegger “se dá imediatamente em sua obviedade”, (GA 58, p. 43), buscando a partir daí elementos estruturantes que para a vida cotidiana mesma não entram primeiramente em questão. Heidegger se utiliza de temas possivelmente bem familiares aos ouvintes e descreve a situação de um comentário entre alunos sobre o semestre, bem como sobre um curso de Max Weber e da compra e da leitura da Crítica da Razão Pura (p.44-45). 94

Para Heidegger este algo que se manifesta para nós o faz em uma compenetração entre as “coisas” com as quais lidamos, o nosso mundo circundante, o mundo compartilhado com outros e mundo do si-mesmo (cf. cap. 1, seção 1.1.3). 95

Heidegger por fim qualificará o caráter de manifestação do que vivenciamos como algo que “aparece”, que é “fenômeno” a partir da noção de situação, buscando afinar tal concepção com uma discussão do significado para as ciências naturais de tal conceito, sobretudo na interpretação sobre o significado deste conceito na física. Heidegger parte da caracterização: “Fenômeno significa: conteúdo de intuição sensível que manifesta autêntica realidade efetiva natural”. (GA 58, p.50-53) e discute também o conceito de “mero fenômeno”.

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apresentado de um modo outro em que na vida fática comumente nos indagamos e experienciamos as coisas. O exemplo de Heidegger é elucidativo: Um prado cheio de flores pelo qual andamos em um passeio primaveril – e este fragmento do que comparece imediatamente na vida no nexo expressivo dos tratados botânicos sobre estas plantas. Ou bem a sala Rembrandt no Museu Kaiser Friedrich de Berlin, vindo ao encontro em sua riqueza em uma hora de pura fruição artística – e o mesmo fragmento do que comparece na vida em uma monografia de História da Arte sobre Rembrandt. Ou bem uma singela missa coral segundo a liturgia Beneditina no monastério de Beuron – e um tratado teológico sobre a Eucaristia (HEIDEGGER, GA58, p.65).

O “modo outro” em questão, o científico, articula o que ainda não foi expresso cientificamente em um processo que para Heidegger consta de três passos fundamentais: a elaboração de um solo de experiência, a configuração de um campo temático e a conformação de uma lógica concreta. Com efeito, Heidegger define a ciência textualmente como a lógica concreta de um campo temático (GA58, p.66). A interpretação desta definição avança em caracterizar que o campo temático de cada ciência é produto de outro passo, passo que já apresenta modificações com relação ao que comparece cotidianamente para nós na vida fática: a elaboração do solo de experiência. Neste sentido, solo de experiência não se confunde com a experiência enquanto a) aquilo que pode ser experienciado na vida fática, enquanto tudo o que está disponível para nós, o que nos arrebata, com o que nos relacionamos, o que comparece, nem com b) experiência como algo experimentado, aquilo de que sei, de que posso me apropriar e utilizar quando preciso (GA58, p.68) – e Heidegger busca conservar intencionalmente o duplo sentido da palavra e aproximar o significado do termo aos seus usos mais costumeiros. O solo de experiência das ciências, embora suponha as experiências na e da vida fática, não são se confunde com as mesmas. Heidegger retrata de maneira geral como se dá a modificação descrevendo um movimento de desconexão, mas ao mesmo tempo, de ampliação das experiências, qualificadas como disponibilidades, como algo que posso ter à disposição, da qual posso dispor de acordo com certos propósitos: As disponibilidades deixam de estar na tendência mais viva do hábito do mundo do si-mesmo. Interrompem-se minhas relações pessoais com elas. Meu mundo do simesmo e suas ricas possibilidades de relação se apartam delas, de maneira que seu sentido de disponível se empobrece, ao mesmo tempo em que se amplia em outra direção; ao estar em uma relação interrompida, se encontra na possibilidade de uma nova disponibilidade (HEIDEGGER, GA58, p.69-70)

Com efeito, o filósofo vai mais além e afirma diretamente: “Solo de experiência significa: as disponibilidades, uma vez desprovidas de suas relações com o mundo do simesmo, em sua prontidão para serem concernidas por novas tendências” (GA58, p.70). O que

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está disponível na experiência mais familiar no mundo pode ser disposto de outro modo, de acordo com os propósitos de cada investigação. Antes disso, mencionou-se que o experienciado se mostra em uma disponibilidade nova, como algo que pode ser tomado de acordo com o propósito, com a orientação de cada investigação. Que nova disponibilidade é essa? Como ela é apropriada em novas tendências? Heidegger não avança em tais questões, buscando neste momento apenas identificar certos parâmetros gerais a partir dos quais a ciência procede para elaborar seu solo de experiência. Ademais, temos a afirmação de que: “Com a ativação destas inicia a conformação do experienciado como campo temático propriamente dito” (GA58, p.70). “Destas”, faz referência às tendências96. Ou seja, a concepção heideggeriana diria que aquilo que será tema nas ciências e partir de onde ela investiga está em função do propósito ao qual estas tendem. Um exemplo concreto da relação entre estas noções nos fornece o próprio Heidegger quando fala de sua investigação: “Assim, pois, a tendência diretriz é compreender a vida a partir de sua origem e dita tendência determina o modo de elaborar o solo de experiência e a confirmação do campo temático objetivo evidente” (GA58, p.81). Entretanto, sobre este ponto as coisas são mais complicadas do que parecem 97, pois, embora Heidegger conceba que a tendência de cada ciência determine seu solo de experiência e o campo temático, também entra em jogo outro conceito importante neste quadro, que é o conceito de motivo. Motivo é aquilo que dá ensejo, que move algo em alguma direção. O objetivo ou propósito de uma ciência tem um motivo, ele mesmo é determinado por algo. Algo o impulsiona, e Heidegger acrescenta mais um termo ao problema ao caracterizar o motivo fundamental da ciência como os fenômenos da vida fática mesma. Porém, o que o filósofo denomina de experiência motivante fundamental, ou experiência fundamental, não 96

Tendência é um conceito central para Heidegger no período e diz respeito às diversas direções, orientações, propósitos que assumimos enquanto vivemos, ao que tendemos quando fazemos algo (GA5, p. 32-33 e cf. capítulo 1). No contexto científico, se refere aos objetivos, ao que visa cada investigação em seus diversos momentos, pelo que ela se orienta. 97

Não somente pela tese da motivação via experiência fundamental do mundo, mas também porque Heidegger afirma que o campo temático é determinante para a tendência da ciência (p. 74). Heidegger aparentemente aprofunda este tema apenas nos registros que os editores da Gesamtausgabe denominaram de complementos ao curso redigido, extraídos das anotações de Oskar Becker (p.203-223). No complemento 6, lê-se: “A elaboração do solo de experiência acontece já a partir da tendência da ciência em questão. Por outra parte, esta tendência deve estar motivada justamente a partir do correspondente campo temático. De modo que em toda a ciência, segundo seu sentido fundamental, tem lugar uma reflexividade. (Pense-se no descobrimento por parte de Galileu das leis da queda livre, o qual originou de repente toda a problemática da ciência matemática da natureza. - Ou bem as ciências históricas: Herder, Winkelmann, Niebuhr, Wolff, Schleiermacher. Antes deles surgiu a ideia de história, da que resultou então sua lógica concreta) Assim, pois, a ideia de uma ciência surge de seu campo temático e, apesar disso, o campo temático se conforma pela primeira vez sob a tendência desta ideia” (GA58, p.210).

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chega ser esclarecido via exemplos em cada ciência, apenas no caso do exame das tentativas da Psicologia98 e no próprio caso da fenomenologia heideggeriana. Não obstante, Heidegger busca explicitar a partir de qual experiência fundamental do mundo do si-mesmo se motivariam as tendências teóricas em geral. Para tanto, distingue algumas questões e tarefas que podem surgir a partir desta relação entre motivos e tendências, curiosamente os classificando como pertencente ao círculo de problemas concretos da elaboração do solo de experiência. Heidegger menciona cinco grupos de tarefas: 1. ganhar a experiência motivante fundamental, e justamente a experiência préteórica. Isto conduz ao processo de destaque da constituição pré-teórica do mundo em geral segundo a gênese de sentido; 2. decidir se as tendências expressivas teórico-científicas que surgem dela são as únicas possíveis ou bem se outras, enquanto teóricas, não reclamam o mesmo direito; 3. isso nos leva a perguntar se um mundo de experiência permite como tal várias experiências fundamentais típicas ou bem somente uma que se ramifica em várias direções motivacionais, das que surgiriam, então, os distintos nexos expressivos teóricos; 4. se estes surgem da experiência fundamental co-originariamente ou bem estão em uma relação necessária de fundamentação, de modo que um nexo de expressão teórico-científico deve, por assim dizer, estar atravessado completamente por outro para ter um sentido compreensível; 5. perguntar se o interrogado vale para todo o mundo de experiência ou bem se em mundos distintos se dão distintos grupos de problemas, e por que justamente estes nestes e aqueles naqueles. (HEIDEGGER, GA58, p.94-95).

Curiosamente, pois as afirmações de Heidegger nos colocam diante da pergunta de se estas tarefas seriam cabíveis, mesmo que com uma mudança na terminologia, para outras ciências, ou se dizem respeito ao trabalho concreto da elaboração de um solo de experiência para a filosofia. O certo é que Heidegger efetivamente se envolve com muitas das tarefas indicadas no seguimento do curso, sobretudo na tentativa de descrever a experiência fundamental motivadora das tendências expressivas teóricas. Tal experiência fundamental, Heidegger descreve como o que denomina do tomar em conhecimento99·. É um tipo de

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Uma palavra mais direta sobre isso está nas notas sobre o manuscrito redigido do curso, onde Heidegger afirma: “Considerado puramente segundo a gênese de sentido, o processo de conformação de campos de objetos teórico-científicos a partir de experiências acientíficas do mundo é composto de muitas fases e pode ser especialmente complicado dependendo da esfera temática. Para sua realização fática e histórica, dito processo apresenta muitos possíveis obstáculos, recaídas, erros e equívocos de princípio que podem afiançar-se durante séculos e determinar a vida. Investigado sistematicamente sobre este aspecto, nenhum outro âmbito da história da ciência seria mais instrutivo do que a história da psicologia, pois precisamente nela (por razões já evidentes: a confluência dos conteúdos vitais no mundo do si-mesmo) é especialmente grande a possibilidade de que se imiscuam os motivos mais heterogêneos” (GA58, p.179). Em outro contexto, um exemplo da economia, cf. nota 100. 99

Cf. capítulo 1, página 46.

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tematização, pois torna nossa vida um tema para nós, mas sem ser teórica. Heidegger avança nesta análise do tomar em conhecimento buscando mostrar em que medida ela motiva a própria ideia de coisidade, de um nexo objetual puro, destacado, na qual se retira o caráter primordial de significatividade do que é experienciado na vida. Uma resposta à questão que mencionei ao início (e, no mínimo, à questão do grupo de problemas número 3) pode ser encontrada aí, uma vez que Heidegger atribui a ideia de coisidade ao conhecimento teórico e à ciência, indicando que, em decorrência disto, nesta tendência de um conhecimento de coisas é em geral impossível uma experiência fundamental específica100 (GA58, p.127). Se não temos um exemplo mais concreto em uma ciência particular da elaboração do solo de experiência, o tema acerca da desvinculação das disponibilidades do mundo do simesmo é levado mais a fundo e em uma direção possivelmente questionável. Heidegger retoma o exemplo inicial sobre a experiência de um passeio em um prado florido, a apreciação dos quadros de Rembrandt e a liturgia de uma missa coral, afirmando que, quando estas entram no nexo expressivo da ciência, a riqueza das relações com o mundo do si-mesmo que se apresenta no mundo da vida não-científico encontra-se interrompida. “As experiências se liberaram de 'mim' e podem apresentar-se em 'sua' conexão” (GA58, p.209, nas anotações de O.Becker). Esta interrupção, como já vimos, é para o filósofo um passo necessário na ciência e tem como consequência que os mundos da vida são tomados em uma tendência desvivificadora, onde o caráter fluido da vida se vê imobilizado, não se efetua como cotidianamente o faz (GA58, p.77, ver também GA56/57, p.86ss na crítica sobre como este processo não pode dar conta dos fenômenos da vida fática mesma). Se tal operação se dá, o simesmo daquele que investiga não deve ter nenhum papel (o que já foi indicado na definição sobre o solo de experiência). O retrato do investigador é traçado via indicação da compreensão corrente sobre a objetividade do pesquisador, complementada pelo exemplo de uma curiosa “duplicidade” decorrente desta: Pois está no sentido faticamente compreendido de um nexo de manifestação científico que este “tenha validade objetiva”, isto é, visto situacionalmente, que não exista nem possa existir relação alguma com o mundo do si-mesmo próprio. Dizemos que um homem científico deve cultivar objetividade incondicionada; o que por certo não exclui a mais aguda posição combativa e crítica, não obstante que toda a nivelação e disseminação de oposições coloca as ciências aos pés dos cavalos. O mais enérgico antagonismo e o mais autêntico apreço pessoal podem estar vivos unitariamente na vida do si-mesmo científica. (Algo profundamente misterioso) (HEIDEGGER, GA58, p.77).

100

Por outro lado, Heidegger afirma nas Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles "Cada ciência possui seu possível contexto de experiência fundamental; por exemplo, na economia nacional: a vida econômica” (GA61, p.137)

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Se se trata ou não de um rechaço, ou apenas da expressão de espanto diante da possibilidade do comportamento descrito, o ponto é que, ao mencionar o (necessário)101 desligamento do trato pessoal com as coisas no procedimento científico, Heidegger aponta mais uma vez para aquilo diante do qual o comportamento se delimita, a saber, a familiaridade experienciada na vida fática. A ciência, por meio da elaboração de um solo de experiência e pela conformação de um campo temático, gesta seus próprios meios para a consecução de seus objetivos de investigar seus fenômenos. Contudo, a tese central é que tal processo supõe uma dependência diante da vida fática, mesmo que em um movimento “contra” ela mesma (de transformação das disponibilidades, da dissociação do trato pessoal, desvivificação). Heidegger expressa que os procedimentos científicos indicados mostram então outra faceta, sendo bastante explícito neste longo trecho sobre esta dependência102: A elaboração do solo de experiência para uma ciência deve ser vista agora por outro lado. Se alguém se dispõe na tendência de uma ciência e de sua metodologia para fazer entrar um determinado âmbito da vida em seu próprio nexo expressivo e indagá-lo, é preciso que este mundo da vida esteja dado previamente de algum modo para dita ciência. Pois bem, o solo de experiência se destaca tão somente mediante a posta em marcha da expressão científica e a configuração conceitual, e a geração de um autêntico campo temático somente se elabora por meio da mesma ciência, e, de fato, em períodos frequentemente longos e difíceis do desenvolvimento das ciências. Neste sentido ela se dá a si mesma o solo de experiência e o campo temático, mas, em última instância, tudo isto lhe está dado previamente. Pois, a ciência tão somente se dá a caracterização como solo de experiência, como campo temático, caracterização que diz respeito a um mundo da vida. A ciência como tal não pode dar-se nunca tal mundo mesmo. Que significa isso? Que deve estar dado previamente (HEIDEGGER, GA58, p.70-71).

O modo como Heidegger expõe o problema nos leva perguntar: que concepção acerca do realismo (ou idealismo) científico, está aqui em jogo? Esta é uma questão complexa, sobretudo porque necessariamente se deve levar em conta a ontologia heideggeriana sobre o

101

E não se trata apenas de um privilégio do cientista natural. No curso Fenomenologia da intuição e da expressão, por exemplo, podemos ver que Heidegger atribui este comportamento também ao historiador. 102

Acredito ser relevante, embora ainda não tenha condições de fazê-lo aqui, questionar mais a fundo que função ou que força pode (ou não) ter este insight, o que ele aporta para além de propiciar uma restrição do domínio da ciência, ou uma crítica aos próprios filósofos, ou como um importante princípio para o próprio projeto de Heidegger. Sobre este último ponto, Ramón Rodríguez é preciso: “Que toda a teoria e toda a reflexão supõem o terreno originário da experiência imediata do mundo, que são algo derivado dela, tal é o descobrimento básico que domina todo o pensar inicial de Heidegger” (RODRÍGUEZ, 1997, p.31). Por outro lado, em 1921-22 Heidegger ressalta a importância de inserir a interpretação da ciência como lógica concreta em uma discussão da facticidade e da história: “O olhar que lançamos sobre as ciências não deve ter em vista sua estrutura lógica e seu respectivo modo de ser na totalidade do sistema das ciências e disciplinas. Essas atribuições típicas poderiam se sustentar e, na falta de um problema poderiam prestar um auxílio que não fosse estéril; contra isso, a interpretação de uma ciência, sendo a cada vez uma lógica própria e concreta, própria de um âmbito de coisas que em seu modo de ser se destaca de um modo de vida, só alcança fecundidade filosófica se, de antemão, estabelecer-se na problemática da facticidade e na discussão da situação histórico-factual (historisch) viva. De outro modo, toda a teoria da ciência se transforma numa perenização ingênua das causalidades históricas dos métodos e técnicas científicas” (GA61,p.136).

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mundo da vida – para a qual o caráter de significatividade do mundo, que está em função de nosso empenho no mundo, é experimentado sempre como real (GA58, p. 104; sobre a significatividade, p.104-110). Ademais, o que Heidegger parece conceder é que a ciência tem um modo autônomo (que engendra a partir de seus próprios meios) de expressar o que comparece no mundo da vida, mas que, por sua vez, exibe uma referência constante ao seu campo temático, o qual, por sua vez, já parte da conformação de um solo de experiência (ou seja, que já parte de um nexo de fenômenos apropriados para o específico labor científico). Logo, considero que, se não se pode falar aqui em um realismo “clássico” ou mesmo um antirealismo, também deve se ter cuidado ao pensar em uma posição idealista, visto que as ciências se estruturam tendo sempre em vista dar conta dos fenômenos de seu campo temático103. Ainda, destaca-se na passagem a afirmação de que o processo indicado pelos dois momentos “solo de experiência” e “campo temático” se dá através de longos períodos na história da ciência. Tal não parece ser tanto o caso no que diz respeito ao passo da elaboração de uma lógica concreta, visto que ela é responsável pelos marcos formais a partir dos quais cada ciência se executa. Lógica aqui não é restrita apenas às leis do pensamento ou aos passos para fazer uma inferência válida, mas se pauta pelo estudo das determinações do objeto em geral: “Lógica – ciência das determinações do objeto em geral e enquanto tais, somente em 103

Aqui apenas ensaio um questionamento, visto que há muito mais pontos importantes a serem considerados no lado heideggeriano, sem contar nos demais, da discussão. Um deles é que posições Heidegger tinha em mente quando debatia com uma posição realista ou idealista: trata-se sobretudo do realismo crítico de Külpe e o que denomina de idealismo crítico-transcendental (sobretudo da escola de Marburg) (em GA56/57, capítulo segundo, Heidegger dedica-se a discutir as duas posições, no tocante ao questionamento se as duas são suficientes para dar conta da experiência do mundo circundante o problema da pressuposição do real nesta experiência). Além disso, em exame mais detalhado (em 1920, ao discutir a significatividade, parte-se da fala cotidiana de que o temos experiência é real, existe, e se discute o sentido desta realidade ou existência), a categoria do real para Heidegger já faz parte de uma experiência modificada do mundo circundante e tem seu sentido no interior dos questionamentos teóricos. Em 1919, Heidegger destaca: “Assim, pois, a pergunta: „É real esta cátedra (tal como a vivo circundantemente)?‟ é uma pergunta sem sentido. Uma pergunta teórica sobre a existência de meu mundo circundante – uma pergunta que penetra, por assim dizer, no coração do mundo – distorce o sentido deste mundo. O que não „mundeia‟, bem pode ser real e existir, e sê-lo precisamente por este motivo. Desta maneira, podemos estabelecer a seguinte proposição: tudo o que é real pode „mundear‟, mas nem tudo o que „mundeia‟ necessita ser real”. (GA56/57, p.91). Por outro Heidegger cita diretamente e comenta o texto de Weber A “objetividade” cognitiva da ciência social e da política social, de 1904, na seção de folhas soltas organizada pelos editores, como podemos ver nas linhas seguintes: “„Não são as conexões „objetivas‟ entre „coisas‟, mas sim as conexões conceituais entre problemas as que estão na base dos campos em que trabalham a ciência. Quando se aborda um novo problema como métodos novos e se descobrem verdades que inauguram novos pontos de vista significativos, então surge uma nova „ciência‟. Assim, pois, os „campos temáticos‟ não são esferas de coisas (que estejam aí simplesmente), mas uma conexão „conceitual‟ de problemas. O campo temático mesmo [é] um problema: objeção pelo e para o processo de teorização ao que se tende de tal ou qual maneira!”(GA58, p.190). Weber é o único teórico mencionado nominalmente neste contexto da discussão sobre campos temáticos das ciências.

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virtude das quais tem sentido falar de pensamento de objetos e leis de pensamento de objetos, regido por estas” (GA58, p.74). Lógica científica é concreta pois trata das determinações gerais dos objetos investigados em cada campo temático, a busca pelas determinações do objeto ganha uma referência concreta ao campo de objetos a ser investigado. Heidegger conjuga os termos “lógica” e “concreta” justamente para acentuar de que se trata dos aspectos de generalidade, do que é comum entre os objetos, mas dos objetos circunscritos ao âmbito de investigação de cada ciência. Não apenas dos objetos, mas das relações entre objetos e de estados de coisas (GA58, p74). Na definição104 de Heidegger, se destacam como momentos da lógica concreta o processo a partir dos qual as estruturas formais ganham concreção, mediante a operação de adequação destas ao seu campo temático: Lógica concreta – não ciência das formas estruturais, mas ciência na qual, pela qual, as formas estruturais, mediante determinados modos de adequação ao campo temático, se concretizam, se plasmam, sem que sua plasmação concreta deva ser considerada por ela mesma (HEIDEGGER, GA58, p. 74-75).

A ancoragem (ou necessária adequação) da lógica concreta em seu campo temático pode conferir uma maior dinâmica a este momento do procedimento científico. Heidegger deixa claro por onde considera que se estendam os domínios nos quais o campo temático é determinante (mesmo que em um sentido de delineamento prévio, de esboço) para a estrutura das ciências: Alógica concreta de um campo temático é a expressão científica de um solo de experiência e, enquanto tal, está ligada ao seu assunto. O modo e a estrutura da formação de conceitos estão predelineados pelo sentido do campo temático. Este delineia também a maneira de fundamentar e de provar, as formas em que se credenciam e se tornam experienciáveis em geral os estados de coisas de referido campo – predelineia o estilo e tipo da experienciabilidade concreta como tal (HEIDEGGER, GA58, p.74)

Com efeito, Heidegger considera que a lógica concreta é capaz de gerar novas formas estruturais, predicando, por conseguinte, certo tipo de produtividade para a ciência assim compreendida: “Ciência, lógica concreta, logra a concreção de seu campo temático no que diz respeito a sua estrutura teórica – uma peculiar produtividade; não somente no sentido de uma abertura de novos conteúdos, mas de que se originam formas estruturais (...)”. (GA58, p. 75). As formas estruturais105 podem versar sobre diversos grupos de problemas no interior das

104

Heidegger define na citação e em outras passagens a lógica concreta como uma ciência, o que pode ser confuso, visto que visa definir o sentido da própria ciência através da noção de lógica concreta. 105

Aqui seria interessante questionar, caso se considere uma correspondência entre os termos, em que medida o termo “formas estruturais” não busca ter um maior grau de generalidade (que quiçá pode incluir não apenas

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ciências. Heidegger destaca exemplarmente 5 formas estruturais que podem ser geradas pela lógica concreta: 1. Formas estruturais de estados de coisas (Sachverhalte); 2. Formas estruturais de conceitos; 3. Formas estruturais do nexo de fundamentação; 4. Formas estruturais de certificação da validez e 5. Formas estruturais da apreensão típica e última do destacado deste modo produtivo (GA58, p. 75). O exemplo no caso de uma lógica concreta de uma ciência particular, saber, o da história, torna mais tangível a descrição acima. De modo respectivo a cada item, Heidegger assim exemplifica as formas estruturais históricas: “„Fonte‟, „data‟, „datação histórica‟ „autenticidade‟, „possibilidade de explicar o nexo tradicional‟ são formas estruturais da compreensão histórica” (GA58, p. 75). Deste modo, tratam-se de caracteres conceituais que estruturam a investigação dos fenômenos históricos, tanto no que tange ao âmbito da própria pesquisa positiva quanto aos seus procedimentos justificacionais. Como já vimos, a natureza da (s) ciência (s) como lógica produtiva de um campo temático aponta para os processos a partir dos quais, devidamente adequadas e motivadas pelo campo temático investigado, são gestadas as formas estruturais através das quais a investigação mesma é levada a cabo. Diante desta descrição (e da insistência em destacar o papel do campo temático neste processo), algumas questões podem ser levantadas: a lógica concreta corresponderia apenas aos questionamentos sobre o “fundamento” das ciências? Ou seja, lógica concreta significa a parte teórica das ciências? O retrato oferecido diria respeito apenas indiretamente, negligenciaria o aspecto experimental das ciências? Ou, a partir da descrição heideggeriana do peso dos fenômenos do campo temático e da necessária concretude das estruturas, as pesquisas experimentais sairiam do papel de coadjuvante na estruturação da lógica concreta?A lógica concreta se coaduna com a ideia de revisão nas ciências? Sejam quais forem as questões, preliminarmente há um ponto de destaque na descrição de Heidegger: se tratam de estruturas gestadas, questionadas e desdobradas dentro das próprias ciências, fazem parte das tarefas de cada lógica concreta específica. O papel da filosofia não é o de primeiramente elucidá-las – mas, sobretudo, o de mostrar a conexão necessária da ciência com a vida fática, como ela se comporta diante desta e, seguindo adiante nas direções indicadas, quiçá mostrar a gênese dos campos teóricos a partir das experiências não científicas do mundo, o que também coloca questões sobre o que tal procedimento poderia aportar aos conceitos científicos. Ou seja, embora se demarque dependência do

conceitos, mas outro tipo de formalismo) do que a noção que Heidegger usará mais adiante (por exemplo, no parágrafo 3 de SZ), a de conceitos fundamentais.

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campo temático das ciências da vida fática, ao cientista é conferida uma autonomia na elaboração e execução da lógica concreta da ciência em questão106. E, com relação à filosofia enquanto ciência? Diante da concepção apresentada, o que ocorre com uma ciência que caracteriza como sua tendência fundamental investigar a vida fática mesma? Quais desafios se colocam? Como figuram os três momentos indicados do procedimento científico?

2.1.1A filosofia é uma lógica concreta?

Com a tese de que a vida fática é a base a partir da qual se erigem as ciências, em que situação fica a filosofia, visto que busca fazer ciência daquilo sobre o qual ela mesma dependeria?Enquanto investigação que é ela também científica, a fenomenologia seria então capaz de dar conta daquilo mesmo que a torna possível107·. Pode ela, ao contrário do afirmado para as demais ciências, dar-se a si mesma o mundo da vida?Além disso, a filosofia pretende conceitualizar a origem da vida em si, e não de um fragmento desta. O problema se agudiza ainda mais se é colocado nos termos da elaboração de um solo de experiência para a filosofia: A fenomenologia é a ciência da origem da vida em si e para si, não de tal ou qual fragmento de um mundo da vida, mas da vida em si. Como deveria elaborar-se o solo de experiência para ela se tão somente se pode ter experiência de certos fragmentos da vida fática e tudo isso, ademais, somente em determinados aspectos fáticos? (HEIDEGGER, GA58, p. 79).

Além do desafio para a elaboração de um solo de experiência, se reconhece mais um problema: mesmo que se pudesse descrever a vida em toda a riqueza de seus aspectos, se argumenta em relação a uma superfluidade da mesma. Ou seja, no momento em que se completaria uma descrição deste tipo, a vida já teria seguido adiante, a descrição estaria sempre atrás do experienciar mesmo (GA58, p.79). Sendo assim, em que medida estes 106

Schwendtner correlaciona o conceito de lógica concreta ao conceito de lógica produtiva de SZ e, por sua vez, afirma que este termo tem o mesmo significado do conceito de uma ontologia fundante das ciências. Ele vai além, indicando que tal conceito teria seu correlato no conceito husserliano de ontologia regional (Schwendtner, p. 75). Que Heidegger conceba a lógica com traços ontológicos, parece evidente, mas é uma boa questão pensar novamente sobre em que medida a lógica concreta pode ser concebida como uma ontologia regional, sobretudo pela necessária relação de dependência das ontologias regionais da ontologia fundamental e pelo ao que visa o conceito de ontologia fundamental. 107

Heidegger assim se pronuncia sobre esta coincidência: “Ela [a fenomenologia] é a ciência originária, a ciência da origem absoluta do espírito em e para si – „vida em e para si‟. Palavras de momento vazias, que tão somente aspiram a significar algo totalmente concreto, autêntica e absolutamente credenciável – o nome mesmo é secundário. De modo que ela mesma recai, como uma manifestação deste, em seu objeto, em si mesma. Este não é um defeito aderido a ela, uma trava que a impeça, mas o caráter específico de sua vitalidade, da „conjunção‟ de suas perguntas e seus modos de solução, o mérito da forma como desdobra sua problemática”. (GA58, p.10, inserção minha).

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problemas não cancelariam por princípio a ciência pretendida por Heidegger? Ou se trata então de rever a descrição das ciências? Ou, mesmo, de uma revisão das pretensões de uma ciência da origem da vida em si? Isso sem contar os problemas mencionados explicitamente acerca da possibilidade de acesso ao âmbito de origem a partir da vida em si108. Neste sentido, pode-se perceber que dificilmente o quadro esboçado de uma ciência não-objetivante, pré-teórica109 corresponderia ao tratamento das ciências como lógica concreta de um campo temático. Mesmo que o âmbito originário buscado pela filosofia não seja dado com a descrição da vida fática110, ou seja, requeira elaboração conceitual para clarificar suas estruturas, em um sentido estrito não se poderia classificar este trabalho como a elaboração de um solo de experiência, visto que não deveria tratar-se de um movimento de desprendimento das disponiblidades com relação ao mundo do si-mesmo111. Visa-se muito mais a expressão de situações em seus contextos de significatividade do que o destaque de um solo de experiência em sua desconexão com as “circunstancialidades” da vida fática112. Neste sentido, também as fases da lógica concreta e a elaboração do campo temático não se aproximam das descritas no caso da ciência113Por outro lado, a importância conferida ao campo temático (cf. seção anterior) parece continuar em vigor também para a filosofia: toda a busca de conceitualizar a vida em termos não-objetificantes é motivada por seu próprio “campo temático”, pela própria 108

Tais problemas, embora aqui apresentados esquematicamente, perpassam toda a descrição fenomenológica e se avivam a cada apresentação de novas estruturas conceituais ao longo do curso e, certamente, se intensificam ao longo e após a descrição das ciências (cf. sobretudo o §6 e§19 de GA58). Heidegger se expressa diretamente sobre o problema da origem em seu acesso, apontando, a meu ver, para uma dificuldade de aproximar os resultados de uma fenomenologia da origem de suas pretensões na conceitualização da vida: “A „origem‟ não é um princípio último e simples, um axioma de que se deveria derivar tudo, senão algo totalmente distinto; nada místico ou mítico, mas sim algo a que tentamos nos aproximar por distintos acessos mediante uma consideração que se torna cada vez mais rigorosa e que, deste modo, se mantém sempre ela mesma – mas nos aproximarmos mediante um método científico, originariamente científico, e somente mediante ele. Não se trata de algo que se possa vivenciar de outra forma, insertar vivencialmente na vida e lhe outorgar uma função. A origem e o âmbito da origem tem como correlato um modo totalmente originário de captação vivencial” (GA58, p.26). 109

Cf. seção 1.1

110

Heidegger coloca o problema nos seguintes termos: o âmbito de origem não está na vida fática em si, mas ela deve poder apresentar certas estruturas que apontem para este âmbito. 111

Neste sentido, Heidegger aponta para um dos problemas desta não desconexão na interlocução com Weber: “Separar a objetividade científica da valoração pessoal (a partir de posições últimas) é em filosofia particularmente difícil e impõe as mais altas exigências (porque os „fatos‟ e sua captação são de uma índole total e radicalmente distinta)” (GA58, p.191). 112

“A esta não interessa conseguir um sistema de conexões entre estados de coisas, ela não pretende tecer uma rede de conceitos universalíssimos que possa estender sobre tudo, mas sim que busca a donação de situações concretas da vida, situações fundamentais nas quais se expressa a totalidade da vida” (GA58, p.231). 113

Considero que Heidegger não afastaria de todo uma relativa analogia entre os procedimentos da ciência como lógica concreta e da ciência da origem, inclusive porque pensa efetivamente nos problemas da formação filosófica de conceitos, por exemplo (em GA59). O ponto central da recusa estaria, a meu ver, em que tais procedimentos, do modo em que são descritos, resultariam na objetificação da vida, o que seria o erro fundamental para Heidegger.

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vida mesma, que, na descrição heideggeriana, se compreende e se expressa, que sabe de si primordialmente de um modo em que não é objeto para si (formulado mais extensamente em GA63: a vida é ela mesma hermenêutica)114. Sendo assim, em que medida, dada a descrição de Heidegger, pode-se justificar a qualificação de filosofia como ciência? A ciência filosófica é também um nexo expressivo de algo já manifesto na vida fática, mas que possui uma especificidade diante das outras: se volta para a própria vida fática para tomá-la como tema. Mas, como as outras ciências, o faz em uma direção determinada, com um aparato conceitual que deve ser o mais adequado para se aproximar de seu tema, e com uma preocupação de como executar e manter-se na direção que pretende. Não obstante, o resultado das providências científicas lógico-concretas não permite que se conceitualize a vida tal como esta se apresenta. Logo, parece plausível não ser o caso de uma desqualificação da filosofia como ciência por não enquadrar-se na descrição da ciência como lógica concreta, mas de uma distinção entre as ciências objetivantes e a ciência não-objetivante, a filosofia.Que para Heidegger a fenomenologia tornaria possível um empreendimento de tal tipo é inegável. A aposta na possibilidade de uma descrição sobre os fenômenos que os determine como são, que articule conceitualmente elementos que não se mostram cotidianamente, que seja passível de certificação intuitiva115, é um risco que

114

Este saber de si é a base da filosofia, mas esta não seria apenas uma nova formulação das certezas cotidianas, visto que, na tese da compreensão há também a da possibilidade estrutural da má compreensão (inclusive em filosofia). 115

O tema da possível repetibilidade, comunidade, do ensino do método ou mesmo de um parâmetro para o confronto de interpretações é muito mais delicado, já que Heidegger insiste no privilégio da execução em primeira pessoa em filosofia (é preciso fazer o exercício por si mesmo e não apenas acompanhar alguém fazendo-o, e quiçá neste exercício mesmo se apresentem outros caminhos), na recusa de que fenomenologia seria uma técnica, e assim por diante. O compartilhamento de intuições parece ser possível para Heidegger, ao contrário do que Tugendhat critica (1999), pois parece dizer muito mais respeito a um fundo de comprensibilidades em comum ao qual se deve retroagir do que um ato ou um sentido íntimo, mas este é um tema que necessitaria um desenvolvimento muito mais detalhado. Apresento apenas algumas indicações textuais de Heidegger no período: “Santo Agostinho disse em seus escritos dogmáticos: „somente veem os milagres aqueles para quem os milagres significam algo‟. Tomada com suficiente radicalidade, esta ideia é válida para toda a compreensão. Há condições necessárias para compreender que não tem nada a ver com axiomas e proposições, mas com que o sujeito tenha vivência das situações vivas concretas. Por isso é especialmente difícil conduzir o método filosófico. Se deve trabalhar com sugestões para que se abandonem os caminhos errôneos e se tome parte nos corretos. Com isso está dada a pressuposição de certa intuição. Uma pressuposição deste tipo se encontra em toda a forma de vida. Esta pode ser apreendida em certas figuras expressivas” (GA58, p.238239). Em outro lugar, Heidegger é mais enfático: “Em filosofia a questão não é se os princípios podem ser demonstrados com validade universal, se é possível exigir a anuência do maior número possível ou de todos, como se isso assegurasse algo sobre o sentido ou a tendência de sentido de uma explicitação filosófica. O que está em questão não é a possibilidade de comprovação universal, mas se a vinculatividade intencionada da interpretação ganha vida ou se a execução filosófica do conhecimento no seu ponto de partida, na sua concepção prévia e em seu método é tão rigorosa a ponto de temporalizar em si mesma a vivificação da vinculatividade genuína em seu objeto (...)” (GA61, p.194).

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certamente o filósofo se apressa em correr. A aposta na exequibilidade116 de uma ciência que dê conta da vida fática em sua origem é, portanto, um dos pontos fortes que pesam nas pretensões e na decisão pela ciência. Mas, se trata estritamente disso?No que segue, buscaremos mais indícios para pensar as pretensões científicas de Heidegger.

2.2Ciência como investigação: a radicalidade da relação entre ciência e vida

No contexto das primeiras frases do curso do semestre do pós-guerra em 1919, antes mesmo de iniciar o desdobramento da temática, Heidegger faz as seguintes afirmações: Não obstante, esta irrupção da ideia de ciência no contexto da consciência natural da vida somente se dá em um sentido primordial e radical no marco de uma filosofia entendida em termos de uma ciência originária. Mas também se dá até certo ponto e em um sentido derivado, em cada ciência genuína em função de sua particular finalidade cognitiva e de sua constituição metodológica (HEIDEGGER, GA56/57, p.3-4).

Nas palavras de Heidegger, destaco 4 pontos importantes: a) que há algo assim como uma ideia de ciência; b) que esta irrompe, toma o contexto da consciência natural da vida; c) que esta irrupção apenas se dá de modo primordial e radical na filosofia como ciência originária e que d) esta é uma possibilidade também das demais ciências, mesmo que de modo não-primordial. Os dois primeiros pontos se referem diretamente a considerações que lhes são antecedentes. Nestas, ideia de ciência corresponde a uma descrição muito geral na qual se enfatiza o tipo de atividade que constitui fundamentalmente a ciência – a investigação – bem como o tipo de trato com as coisas e em que relação com a consciência natural está aquele que se põe a investigar sobre algo. Ciência é investigação, e investigar implica em lidar com as coisas de outro modo; aquele que considera algo cientificamente já está em uma posição modificada junto ao modo cotidiano de lidar com as coisas, uma vez que os indaga e visa determiná-los em seu caráter próprio e não primordialmente dispor destes em contextos de práticos, de manuseio (ou de fruição estética ou religiosa). Mas Heidegger vai além e afirma que a ciência, ao irromper na consciência imediata da vida, provoca nela mesma “de algum modo uma intervenção transformadora” (GA56/57, p.3). Este “de algum modo” permanece indefinido, apenas temos a indicação de que esta é uma possibilidade de cada ciência enquanto tal. Por outro lado, é neste contexto que temos a afirmação de que apenas a filosofia como ciência originária é capaz de promover este tipo de

116

A qual pretendi tornar palpável tanto neste capítulo, mas sobretudo, no capítulo anterior.

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tomada do contexto vital em um sentido primordial e radical. Ao mesmo tempo, reafirma-se que esta é uma possibilidade de cada ciência, de acordo com aquilo que busca conhecer e do modo como busca conhecer. Contudo, vimos que Heidegger pronuncia-se sobre o caráter dessa possibilidade para as ciências não-filosóficas: trata-se apenas de uma possibilidade derivada. Neste sentido, Heidegger nos oferece de início outra perspectiva de orientação a partir de onde se devem considerar tanto o problema da relação entre a filosofia e as demais ciências quanto o caráter pretendido da ciência originária. Não se trata apenas de que a filosofia seria uma ciência primordial pois a ela estaria reservada a tarefa de elucidar ou aclarar os conceitos fundamentais das demais ciências, ou as determinações que constituem seus campos de estudo e permanecem (necessariamente) pouco transparentes ao fazer científico. A filosofia como ciência originária é primordial pois é mais radical do que qualquer outra ciência. Somente ela pode levar a cabo de modo mais genuíno e radical uma possibilidade que está presente em todas as ciências: a de transformação e tomada da consciência imediata da vida. Na ciência originária, vida e ciência estão em uma relação primordial e radical. De que modo? Porque a filosofia tem esse privilégio e/ou esta radicalidade? Porque isso é reservado ao filósofo e não (ou apenas privativamente) ao cientista das demais ciências? A exposição das concepções heideggerianas sobre as ciências e a ciência de origem certamente nos oferece bons elementos para fazer frente a estas questões. Em primeiro lugar, vida e ciência estão em uma conexão primordial na filosofia pois esta é uma ciência que tem como tema a vida. Não apenas parte da vida e necessariamente se desprende desta como as outras ciências, mas busca uma aproximação e uma intensificação do vivido. Para tanto, deve ser executada radicalmente, de um modo que seja científico e contra-científico ao mesmo tempo. Científico, pois visa determinar aquilo que toma como tema e problema, elucidá-lo, com o auxílio de estruturas conceituais e colocando em questão como fazê-lo. Contracientífico, pois considera que, para fazer juz ao seu próprio tema, deve opor-se ao movimento comum das ciências de considerar o experienciado como um objeto para além da conexão com a experiência vital. A ciência originária seria aquela que, por rigorosamente ater-se ao caráter de seu tema, erige-se como uma ciência que busca desdobrar um método e uma conceitualidade próprias, não apenas recusando os métodos de outras ciências como modelo, mas recusando o próprio modo de operação tradicional no qual as ciências partem da vida para apresentar os fenômenos em suas teorias científicas. Está em jogo uma reconciliação entre “teoria” e vida no âmbito da própria elaboração conceitual, não apenas em seus possíveis usos e aplicações.

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Assim, pois, a ideia de investigação irrompe mais radicalmente no contexto vital, uma vez que se volta para o contexto vital mesmo. A possibilidade científica de intervenção na vida que Heidegger vê poder ser radicalizada na filosofia é justamente a possibilidade investigativa (de todas as ciências)de “saída” da vida como a cotidianamente a experienciamos. Quando investigamos não estamos em um viver sem mais, não estamos mais em um fluxo vital cotidiano, mas o fazemos com certo propósito, com meios, com uma “perspectiva”. Na filosofia como ciência, a investigação seria uma interrupção, um sair da vida em si, mas de modo a nos conduzir de volta a essa em uma clarificação do que já é “sabido”. A investigação como possibilidade das ciências de colocar a vida em questão possui ainda mais nuances. Para Heidegger a filosofia realizaria esta possibilidade de modo mais radical no que tange também ao modo como concebe o que significa perguntar e responder neste contexto de clarificação do vivido. As ciências, mesmo com a revisão constante de seus resultados, levam a cabo suas investigações como um meio para a consecução de certos objetivos e resultados. A investigação filosófica, embora se comprometa com a descrição de estruturas vitais, vê na investigação outra finalidade. Em 1921, Heidegger responde a pergunta sobre o que é filosofia (e as demais ciências) não a partir da concepção sobre procedimentos lógico-concretos, mas como um comportamento. Descreve-se a filosofia, ou o filosofar, como um comportamento que, em seu sentido de relação117 é um comportamento cognitivo118 (assim como as demais ciências) (GA61, p.69). Seu sentido de execução, o modo como em geral se executa, é a clarificação. O modo específico que a clarificação adquire em filosofia aponta para outra finalidade da investigação filosófica. Nas palavras de Heidegger: O verdadeiro e próprio fundamento da filosofia é a radical apreensão existenciária e a temporalização da problematicidade; colocar-se na problematicidade, colocar a vida e as realizações decisivas na problematicidade é o conceito fundamental de toda clarificação e da mais radical das clarificações (HEIDEGGER, GA61, p.50).

Retomando: Heidegger vê na ciência uma possibilidade de relação radical com a vida, a partir do sentido fundamental desta como uma investigação, na qual há a introdução de um câmbio no vivenciar cotidiano do mundo. Tal possibilidade seria radicalizada no caso da filosofia, uma vez que este câmbio, “corretamente” encaminhado pela fenomenologia, seria 117 118

cf. a nota 85.

Heidegger descreve o comportamento cognitivo nesta formulação, que começa falando em objeto e termina com a noção mais ampla de ente: “Conhecer é um apreender o objeto „como‟ objeto e, assim apreendendo-o determiná-lo. O determinar que apreende „diz‟ que, o que e como é o objeto. O comportar-se, portanto, enquanto determinar que apreende, dizendo e abordando-o se atém ao objeto, na medida em que este de algum modo „é‟ algo. Mantém-se a relação de algo como um ente enquanto ente e sendo tal ente” (GA61, p. 69).

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capaz de engendrar um conhecimento da própria vida de modo a clarificar seus elementos estruturantes mais gerais e identificar a dinâmica a partir da qual estes se manifestam. Ademais, vemos que o sentido específico no qual este tipo de investigação se executa é o de a cada vez colocar-se na problematicidade. A radicalidade primordialmente consiste em que o modo de questionar e investigar tem como finalidade fundamental a questionabilidade constante, não apenas como um meio para, mas como o modo em que esta investigação se executa. A filosofia introduziria radicalmente a investigação na vida pois não apenas seria um conhecimento radicalmente pretendido da mesma, mas porque a coloca continuadamente em questão119. Entretanto, este manter-se na problematicidade, na medida em que é comportamento cognitivo, não corresponde a uma repetição inócua de questionamentos diante da vida. O filósofo assim se pronuncia sobre o tema: (..) o manter-se em uma problematicidade autêntica não consiste em reagir de certo modo mecânico a uma máxima vazia do questionar sempre de novo, mas questionar a partir de razões, das quais a cada vez se clarificou sua situação fática, razões direcionadas à vida fática, e vivendo igualmente no responder, pesquisando pessoalmente, ou seja, de tal modo que as formulações das respostas estão sempre referidas à questão, isto é, que esta mesma se faz presente aí, viva. Isso significa: que as experiências fundamentais persistem na vida fática e em seu sentido de ser em uma vitalidade faticamente histórica (HEIDEGGER, GA61, p.177).

Colocar a vida continuamente como tema significa tê-la como máxima medida de referência e como mira constante, respeitando sua dinâmica própria e não a congelando em interpretações últimas (ou encerradas). Tal colocar-se na problematicidade de modo radical,como se indica nesta citação e na anterior – nos termos de uma “radical apreensão existenciária” – também aponta para uma tarefa pessoal daquele que investiga. Se a investigação por si já leva a cabo outro modo de relação com as coisas, da investigação filosófica, na qual se busca um método originário, onde se dá um modo não-cancelável120 de colocar a vida como problema, resulta uma figura científica particular. Ao final do curso de 1920, Heidegger, indica que um dos sentidos da correlação situacional121 pode predominar sobre os outros, mas ressalta que a predominância do sentido de execução (espontaneidade do si-mesmo) é o que possibilita que se chegue a uma configuração criadora do mundo. O

119

Mesmo com relação aos seus próprios “resultados”. Neste sentido se pode ver a importância da crítica e do problema de por onde se começa e o modo como se principia uma investigação filosófica, que assume diversas figuras nestes anos iniciais para Heidegger 120

Aqui se apresenta também o problema da temporalização; manter-se na problematicidade significa que é preciso a cada vez executar a investigação voltando-se para a „coisa‟, visto que a vida propicia más interpretações de si e incluo a filosofia luta contra sua própria decadência em pseudo-problemas, esquemas conceituais inadequados, e assim por diante. 121

Cf. capítulo 1.

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sentido de execução não é pensado apenas em termos do modo como algo se efetua, mas também aponta para uma maior ou menor transparência para si mesmo (dos motivos e tendências que pautam sua vida) daquele que se comporta. Isso significa, grosso modo, que no predomínio do sentido de execução não se trata de viver como sempre se viveu, mas de uma vida que se apropria de si mesma, e que neste sentido reconfigura todas as relações com aquilo que lhe foi legado. Curiosamente, é no contexto desta descrição notadamente “existencial” onde se afirma que deste sentido fundamental de execução de si mesmo se deve tomar origem última do comportamento teórico. Se entendermos teórico num sentido mais amplo de científico (e não de teorizante), então se sugere aqui que o comportamento científico demanda um tipo de apropriação de si, uma transparência sobre o que o motiva a investigar e a direção para que se orienta122. Este não ir sem mais no fluxo da vida que está na base do querer conhecer e investigar também motiva um estar problematizante nas relações vitais. Se essa é uma possibilidade para a existência pessoal do cientista enquanto tal, para o cientista-filósofo se abre em uma dimensão dramaticamente radical.

122

Com efeito, Heidegger parece considerar que certas “ocupações” (ou vocações) ditam e traduzem uma figura mais expressiva para a vida, na qual o vivenciar tem um direcionamento mais marcado – também esse não é um viver “sem mais”, mas se organiza de modo em que o levar a cabo motivos de acordo com certas tendências é executado de modo mais transparente (e, para a fenomenologia, estes tipos interessam na medida em que põem a descoberto que a vida não é apenas um vivenciar caótico ou desorganizado, ou mesmo indiferente, e sim possuem esta estrutura). De fato, Heidegger fala em mesmo em certa tirania, de um domínio total da ocupação nas relações vitais, em contraste com caracteres que se destacam na vida cotidiana (um mundo compartilhado mais imediato e cotidiano, com colegas, família, instituição de trabalho, de estudo, etc., um conjunto de coisas que tem sua compreensibilidade imediata, uma determinada estabilização de algumas tendências, de orientações e objetivos, a assim por diante), mas que não passam ao primeiro plano: “Em contraste com a estas formas de destacar, quase sempre discretas e indistintas em tal fluxo, existem outras que mostram certa tenacidade e veemência, um impulso para a tirania e a para a conformação radical: a vida científica, artística, religiosa, político-econômica. Instam a ser plasmadas de uma maneira pura e a rechaçar o que é alheio ao seu mundo, mas também, ao mesmo tempo, a expandir seu âmbito de domínio pela vida toda – tanto mediante experiências atuais como mediante considerações cosmovisionais” (GA58, p.39-40).

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3CIÊNCIA DA ORIGEM NA UNIVERSIDADE?

Os capítulos precedentes foram dedicados a uma exposição dos elementos principais da compreensão heideggeriana da filosofia como uma ciência. O destaque incidiu em três frentes que caracterizaram as pretensões e tarefas desdobradas por Heidegger no intuito de levar a cabo a filosofia enquanto uma ciência da origem. Em primeiro lugar, esteve em questão sobre o que discorre tal ciência, o que visa enquanto tarefa de aclaração – a origem da vida. Ressaltou-se tanto uma tarefa de avaliação crítica das convicções ou pressuposições que estão na base de teorias, explicações e discursos que visam conceitualizar a vida, quanto uma investigação que busca não apenas argumentar criticamente, mas trazer à tona a perspectiva a partir da qual se está autorizado a fazê-lo, ou seja, que visa discorrer sobre a origem da vida tal como Heidegger a concebe. Em segundo lugar, está o como se procede para tratar da origem da vida, a partir de uma concepção (a que apenas aludimos) de método (o método fenomenológico) e de conceitualização próprias para tal empreendimento e de uma descrição formal que não apresente o vivido de modo objetificado. Em terceiro lugar, o enfoque esteve em quem efetua tal investigação, a partir da indicação da necessidade de auto-aclaração e apreensão radical de si-mesmo como uma tarefa determinante para a investigação123. Neste sentido, se conclui que a ciência da origem visa por em jogo tanto um empreendimento que pretende dar conta discursivamente da dinâmica que impulsiona nosso acontecer no mundo, quanto uma exortação para uma modificação na compreensão cotidiana de si mesmo124. Tais tarefas se articulariam na compreensão de Heidegger da ciência como investigação e não a partir do enquadramento da filosofia nos procedimentos das demais ciências, que procedem como Lógicas concretas de seus campos de investigação. Ciência é vista como uma possibilidade de saída da atitude cotidiana de vivenciar continuamente aquilo que se nos apresenta e perguntar, questionar sobre o mundo para dar conta do vivido. Esta atitude está na base tanto das ciências quanto da filosofia. A ciência caracteriza um modo de vida, e a filosofia é uma ciência originária não apenas porque pergunta pela origem da vida, 123 124

Aprofundaremos este tema no próximo capítulo.

Aqui, para melhor salientar o que está em jogo no projeto heideggeriano, aludo ao termo e ao destaque dado por Sena (2013) à dimensão exortativa presente na filosofia de Heidegger neste período (também dado por Schwendtner, nos termos de uma “apropriação de si”, cap.1, 2005), porém, pelo exposto até agora, discordando de sua conclusão que restringe o empreendimento heideggeriano a esta dimensão exortativa (e a uma tarefa negativa crítica), como uma terapêutica da facticidade que não possui intuito de ser um discurso acerca da vida e sim de funcionar como um modo de agudização para nossa situação existencial. Como se mostrará, considero que a presença desta dupla motivação (engendrar uma concepção filosófica da vida e exortar para uma apropriação compreensiva de si mesmo) está na base de muitas tensões que permeiam o projeto heideggeriano da ciência originária.

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mas porque é um modo de vida que visa ganhar uma aclaração radical sobre si mesma, que pergunta por seus motivos últimos. Deste modo, vida e ciência imbricam-se de maneira fundamental na fenomenologia enquanto ciência da origem da vida. Não apenas porque toma a vida como tema ou porque busca um modo de discorrer sobre seu tema que não o tome pelo que não é, mas também porque requer que a vida daquele que investiga esteja colocada de modo radical no questionar. Assim concebida, a ciência concretiza a possibilidade de interpelar sobre a minha vida e sobre a vida em um mundo. Tal aproximação entre vida e ciência teria implicações que iriam mais além de uma nova fundação da filosofia, impactando também nas demais ciências. Sobre isso, e repercutindo, sem mencioná-la, a posição de Ferdinand Brunetiére125 Heidegger afirma sobre as ciências: 126

Não se pode ajudá-las a sair de sua bancarrota falando de modo profético, colocando-se na posição de seu “inimigo” e substituindo-as pela religião, mas sim

125

Ferdinand Brunetière (1849- 1906) foi crítico e professor de história da literatura na École Normale (EN) de Paris, diretor da Revista La Revue des Deux Mondes. Reprovado em sua primeira tentativa de ingressar na EN, foi soldado na guerra Franco-Prussiana de 1870-71, voltando a Paris após o final da guerra para viver modestamente como professor do ensino privado. Em 1874 começou a contribuir na Revue, polemizando inicialmente contra o Romance Naturalista. Conhecido pelos seus artigos e qualidades de bom orador exercitadas em suas conferências sobre crítica literária, teatro, poesia e literatura contemporânea, em 1886 é convidado a ser professor da EN, na qual permaneceu até a reforma da instituição em 1905. A partir de 1889, buscou introduzir princípios darwinistas para explicar o nascimento e decadência de gêneros literários. Atingindo um status de conferencista renomado, palestra com grande êxito de audiência sobre literatura clássica e contemporânea nos Estados Unidos em 1897 (em Nova York, mais de 3 mil pessoas foram ouvi-lo falar criticamente sobre a literatura de Émile Zola), no Théâtre Odéon, na Sorbonne, tornando-se conferencista regular na Société des Conférences após seu desligamento da EN. A partir de 1895 converte-se ao catolicismo, acusando a ciência, a despeito de suas promessas, de falhar em assegurar a felicidade e progresso moral, papel que poderia ser cumprido com êxito pela religião. Os temas da bancarrota da ciência (cf. próxima nota) e a apologia à religião dominaram suas aparições públicas a partir de então (fonte: DELAMARRE, 1908). 126

O tema da bancarrota ou da falência da ciência foi um dos pontos em discussão que refletiu o diagnóstico ou a percepção (de muitos cientistas, inclusive) do que se denominou de crise da ciência na virada do século XIX para o século XX. Como bem caracteriza Videira: “A ciência, contudo, encontrava-se sob o crivo da crítica daqueles que não estavam preocupados com as modificações internas ocorridas. Muitos a analisaram, atacando-a mesmo, a partir de considerações externas, sem se preocuparem com sua prática. A ciência, para esse segundo grupo de pessoas, entre as quais podemos mencionar os nomes de Le Roy e Ferdinand Brunetiére, ou não possuía fundamentos racionais (epistemológicos) sólidos ou não era capaz de garantir a realização de todas as suas promessas e aspirações, ou ainda ambas as coisas. O final do século 19 assistiu, pois, à ciência tendo que se defender de assaltantes internos, aqueles que, como Mach, Duhem e Ostwalt, criticaram, por exemplo, a ideia de que a mecânica newtoniana constituiria o fundamento científico-epistemológico, natural e evidente, de toda e qualquer teoria, física em particular; e de assaltantes externos, como Le Roy e Brunetiére, que procuraram acabar com a ideia de que a ciência é poderosa, autofundante, „condenada‟ ao progresso material, além de capaz de fornecer os fundamentos, sólidos e verdadeiros, para a ética, para a moral e para a política”. (VIDEIRA, 2013b, p.26). Thuillier (1991), tendo como foco as reações provocadas pelo artigo de Brunetiére de 1895 (Faillites de La science), discute como as críticas à ciência ressoaram mais além, sendo tomadas pela elite progressista da época como uma ameaça aos valores nacionais (progresso, liberdade, laicidade, modernidade, prosperidade) da Terceira República. Neste sentido, uma das consequências foi a celebração pública de seus cientistas renomados (sobretudo o químico Marcelin Berthelot, criticado por Brunetiére e a quem foi oferecido um jantar com honras de Estado em 1895), além do abalo à carreira de Brunetiére como professor.

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somente trazendo à luz novamente sua ideia sepultada e voltando a fazer da ciência uma forma de vida e não um ofício ou um negócio (HEIDEGGER, GA 58, p.20).

A menção de Heidegger a Brunetiére mostra não apenas a difusão que as idéias do último ganham para além do âmbito acadêmico e popular francês ou uma referência vaga a este debate. Heidegger era leitor de Brunetiére, o que se mostra já em 1912, quando o então estudante de teologia publica um de seus primeiros artigos em uma revista católica de renome na Alemanha, o Philosophisches Jahrbuch der Görresgesellschaft. Sob o título de O problema da realidade na filosofia moderna (GA 1, p 1-16), Heidegger toma como ponto de partida de sua discussão uma citação do livro do pensador francês de 1910 Sur le chemins de la croyance, na qual o pensador qualifica a questão sobre o mundo exterior como produto de uma dúvida extravagante. Para Brunetière, trata-se, antes de tudo, de perguntar se a questão mesma possui sentido do ponto de vista da vida prática, na qual o real adquire um estatuto de densa auto-evidência – e da qual apenas um louco, no veredicto do pensador francês, suspeitaria. O problema assim considerado nem se apresentaria, na medida em que a realidade não se constitui como motivo de dúvida para o senso comum. Heidegger opõe-se a Brunetiére, afirmando que o decreto deste não é suficiente para resolver a questão, e que o esforço para emancipar-se do peso das auto-evidências é pré-condição para uma compreensão mais profunda de uma tarefa (a defesa do realismo) que necessita de consecução (GA1, s.1). No caso da citação, Heidegger toma posição sobre a crítica externa à ciência representada por Brunetiére; embora parecendo anuir com a proclamada crise da ciência, a saída vista por Heidegger não é a luta pela diminuição do papel da ciência ou a crítica de suas falhas ou limites, mas uma aposta na ciência, em um trabalho investigativo que recuperasse seu sentido mais genuíno. Aqui se insinua que a qualificação de sua investigação como ciência não é apenas um modo de conferir uma aparência respeitável ao próprio empreendimento filosófico ou reforçar a falta de autonomia das ciências para pensarem seus fundamentos. Heidegger quer com isso apontar (e exemplificar) um tipo de postura (ou ideia) que está na base das ciências e que deveria orientar suas práticas. A possibilidade de questionar, de provocar uma transformação e tomada da consciência imediata da vida é a ideia de ciência que a ciência da origem deve exumar, reabilitar e trazer à vista de todos.Entra em questão não apenas um esboço programático do que a investigação deve alcançar, mas se trata de um fazer. A ciência da origem, a fenomenologia, desdobra-se balizada pela ideia de ciência, cujo obscurecimento traz consequências nefastas e nubla a visão do alcance da ciência para além das demandas

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imediatas da vida (não apenas a de seus detratores, mas da visão que as próprias ciências tem de si). Não apenas a ideia de ciência deve ser trazida à luz exemplarmente pelo questionamento radical da vida levado a cabo pela fenomenologia, como também se menciona a necessidade de fazer ciência como uma forma de vida. Novamente, ecoa o motivo exortativo para uma apropriação de si, para uma modificação no modo como se vive cotidianamente (e como se vive cotidianamente da ciência e não a ciência), para tornar o questionar possibilitado pela ciência um modo de vida. Aqui podemos compreender este apelo para voltar a fazer da ciência uma forma de vida a partir do tema da necessidade da constante renovação do questionamento, da manutenção de problematicidade autêntica127, como uma tarefa individual de manter-se vigilante às implicações do que já foi questionado e o surgimento de novos questionamentos nas teorias. Entretanto, Heidegger nos previne que: O homem científico, porém, não se encontra isolado. Pertence a uma comunidade de esforçados investigadores que, por sua vez, estabelece uma ampla rede de relações com seus estudantes. O contexto vital da consciência científica se plasma objetivamente na formação e organização das academias científicas e das universidades (HEIDEGGER, GA 56/57, p. 4)

Heidegger claramente reconhece o caráter público da ciência, sobretudo do contexto institucional onde ela se desdobra. Sendo assim, em princípio, caberia questionar como se determina onde a ciência da origem, enquanto pretendida ciência, tem lugar. Além disso, ao comentar o tema da reforma universitária (ao qual voltaremos mais adiante), Heidegger afirma: “Renovação da universidade significa um renascimento da autêntica consciência científica e de suas conexões vitais” (GA 56/57, p. 4-5). Se compreendermos o renascimento aludido está no centro das preocupações (ou das implicações) da ciência da origem, então a universidade não apenas se configura como o contexto institucional onde o homem científico radicalmente motivado pode fazer da ciência uma forma de vida, mas também se sugere uma relação mais profunda entre a ciência da origem e a universidade. Dado o aprofundamento na caracterização da ciência da origem trazido pelos capítulos e considerações anteriores, proponho neste capítulo e no que segue problematizar o projeto investigativo heideggeriano. Neste sentido, a pergunta que intitula este capítulo sumariza uma série de outras questões: como se relacionam Filosofia e universidade? Qual é o papel da universidade na filosofia assim entendida? O conhecimento produzido nesta ciência afetaria a universidade? A filosofia poderia contribuir para uma mudança na universidade? A exigência

127

Cf. capítulo 2, última seção.

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de radicalidade da ciência da origem é compatível com a universidade? Como se dá a atuação do filósofo na universidade? A universidade pode ajudar no projeto de aproximação entre ciência e vida? Reabilitar a ideia de ciência requer uma renovação da universidade? Todas as perguntas anteriores supõem em princípio o desenvolvimento da seguinte questão: o que Heidegger tem a dizer sobre a universidade?No que segue, examinarei passagens onde Heidegger efetivamente se dedicou a pensar a relação entre filosofia e universidade. Como o propósito é problematizar a noção de ciência pretendida, tal procedimento (expor o que disse Heidegger sobre o assunto) conduzirá ao destaque também para o que fica de fora de suas discussões (indo além da justificativa para tal situação de uma necessária restrição na temática) e para as dificuldades e tensões criadas por este silêncio em face ao que é afirmado. Ademais, buscarei mostrar em que sentido a pergunta por onde128se situa tal ciência filosófica aponta para um tema não extrínseco, anacrônico ou artificialmente introduzido por uma preocupação extemporânea, constituindo-se como um dos pontos nevrálgicos do projeto filosófico heideggeriano.

3.1A situação de acesso: A universidade

No semestre de inverno de 1921/1922, nas preleções que tem como tema a interpretação da filosofia de Aristóteles, Heidegger explicitamente coloca em jogo o problema ontológico. Em sua definição, que se pretende ser indicativa-formal, temos que: A filosofia é principialmente um comportamento cognitivo para com o ente enquanto ser (sentido do ser), de tal modo que no comportamento e para ele o que importa decisivamente é também o respectivo ser (sentido de ser) do ter do comportar-se. Filosofia é “ontologia” e quiçá radical, e quiçá enquanto tal, fenomenológica (existenciária-hitórico-factual, da história do espírito), ou fenomenologia ontológica (...). (HEIDEGGER, GA61, p. 60)

128

Certamente esta não era uma questão estranha para a época. É possível notar antes do final do século XIX que as questões sobre a ciência, enquanto um empreendimento coletivo organizado institucionalmente (primordialmente na Universidade), se apresentaram como decisivas para alguns cientistas, tanto quanto suas pesquisas ou investigações. Um bom exemplo é o de um dos criadores da primeira lei da Termodinâmica, Hermann vom Helmholtz. Para Helmholtz, segundo Videira (2013), a Universidade, enquanto um organismo coletivo, promoveria um vínculo do indivíduo ao todo (função que o sistema da ciência não pode mais cumprir), um sentimento de pertencimento a uma coletividade, no qual a motivação do cientista (desde que lhe garantidas suficientemente as condições materiais), já não seria determinada por um comportamento auto-interessado, mas poderia envolver questões relativas à humanidade (e à nação). Esta atitude, (juntamente com as descobertas de leis naturais, de algo seguramente determinável sobre a natureza), estaria na base de uma visão de mundo científica, uma explicação sobre o mundo e sobre o lugar que ocupamos nele que contribuiria para reforçar o vínculo dos homens entre si e entre os cidadãos e o estado nacional.

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Na definição heideggeriana, compreende-se a filosofia como um comportamento cognitivo para com o ser dos entes. Enquanto comportamento, há nele um sentido de conteúdo, para com o que ele se comporta – o ser dos entes, um sentido de relação – trata-se de uma relação cognitiva e um sentido de execução, o modo como ele se executa, o modo de ter o comportamento, de apreender o ente em seu ser. Neste sentido, a definição nos diz que no comportamento cognitivo para com o ser dos entes é determinante o modo como se executa tal comportamento. O “ter do comportar-se” é um como da execução, que Heidegger designa como a temporalização (sentido de temporalização). Ou seja, o comportamento cognitivo é tal que, juntamente com o que visa conhecer, entra decisivamente em questão a cada vez no modo de sua execução, como ele se temporaliza. Heidegger busca aclarar sua concepção a partir das seguintes indicações: Na interpretação prévia do sentido formal de filosofia, como lhe é dado previamente pela definição, pode-se afirmar: para a problemática concreta da filosofia – ali está implicada a problemática do acesso à mesma (não acesso a objeto e coisa, mas acesso ao fenômeno existenciário fundamental) – é codeterminante a cada vez o nexo conjuntural da facticidade da situação de vida em que estão os problemas, a partir da qual e para a qual esses problemas urgem por uma solução. (GA 61, p.64).

Na tarefa de definir o que é a filosofia, se caracterizou que esta visa conhecer o ser dos entes. Ademais, há a insistência de que se trata de um comportamento: filosofia é filosofar. Na citação, indica-se que o filosofar é tal que sua realização deve manter seu foco não apenas naquilo que visa conceitualizar, como também na situação a partir da qual se filosofa. O filosofar se realiza a partir de uma situação, sendo que o acesso a esta situação determina o acesso a sobre o que se visa filosofar. Heidegger vai adiante e procura ver no contexto mais próximo seu e de sua audiência uma primeira via de acesso à situação a partir da qual se pode filosofar. Nas palavras do filósofo: Se o filosofar deve ser aqui e agora, então só pode determinar-se na direção do nexo conjuntural da vida fática que designamos com o título universidade. E a primeira tarefa de acesso, na perseguição da compreensão da definição, isto é, na perseguição da apropriação verdadeiramente concreta do filosofar, é determinar essa situação de vida indicada em seu e que e seu como (HEIDEGGER, GA 61, p. 64).

Logo, determinar a situação a partir de qual se filosofa seria discutir a universidade, como esta se caracteriza, e (de acordo com a citação anterior), pensá-la como o contexto que se apresenta como problemático para aquele que investiga. O a partir de onde se fala se colocaria como um problema também decisivo para a investigação filosófica. Grosso modo, se quisermos discutir o que é filosofia e começar a filosofar temos que discutir também o que é a universidade, quais são suas metas, projetos, tarefas, o seu ideal, como isso se relaciona

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com o que busco, e assim por diante. Entretanto, neste ponto, Heidegger interrompe-se para examinar duas objeções que poderiam surgir ao que se colocou como primeira tarefa para a compreensão da definição de filosofia. A primeira objeção é que tal concepção traria um estreitamento da visão que se tem de filosofia.

Ou

seja,

se

proclamaria

uma

identidade

entre

filosofia

e

filosofia

universitária/acadêmica. O contexto da filosofia por excelência seria a universidade, esta seria a única situação que daria ensejo ao filosofar, filosofia “de verdade” é a investigação que se produz na universidade. Com relação a esta objeção, Heidegger afirma que, em primeiro lugar, o próprio caráter da definição encetada é tal que ela não permite que se fale da filosofia num sentido genérico, indeterminado e atemporal, dispensado de sua circunstacialidade histórica. Ademais, a definição, enquanto indicativa-formal, justamente trataria de deixar em aberto outras situações possíveis para a realização do comportamento filosófico129. A segunda objeção versaria justamente sobre o caráter de atrelamento da filosofia a uma conjuntura histórica. A filosofia deveria circunscrever sua situação fundamental não apenas a um fórum, mas também a uma instituição em particular? Não apenas a uma instituição que se guia ao sabor dos ventos, mas que, ao mesmo tempo, também possui uma estrutura engessada, ligada a ideais ultrapassados (GA61, p. 68). Em conexão com a primeira objeção, assim Heidegger delineia o problema: Mas se é possível a instauração de outras filosofias fora da universidade, em princípio, a situação própria e positiva na universidade é frágil, exposta a uma casualidade historicamente mutável. Forçando o contexto de execução de apropriação da filosofia a retornar a tal instituição, a ideia de filosofia e sua concreção se veem ameaçadas por um atrofiamento relativístico e um nivelamento enclausurado ao histórico-temporal e imobilizado. (HEIDEGGER, GA 61, p.68)

O ponto da discussão pareceria estar justamente sobre se se concebe o caráter histórico da universidade como favorável ou não ao filosofar. Heidegger o formula a partir da seguinte indagação: Levando em consideração a objeção e na perspectiva da continuação objetiva do problema, a tarefa pode ser assim formulada adequadamente do seguinte modo: o caráter “histórico” de nossas universidades não admite que essas como tais possam se tornar determinantes ao modo de uma situação de experiência fundamental concreta, na qual, a partir da qual e para a qual deva se efetivar acesso, aplicação e apropriação da filosofia, ou será precisamente o caráter “histórico” e somente esse

129

Em que medida a filosofia na Universidade leva em conta ou não as elaborações filosóficas advindas de outras fontes situacionais, é uma questão a que Heidegger apenas alude e não discute detalhadamente, indicando apenas que também o modo como a filosofia se concretiza é o de uma destruição, ou seja, que nela deve haver uma apropriação crítica de si mesma e de outras “filosofias”.

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que dá fundamento a um determinado nexo conjuntural de vida, exigindo que a filosofia seja codecisiva no sentido mais radical?(HEIDEGGER, GA61, p.69)

A resposta a esta questão parece estar, portanto, em uma consideração acerca do que se entende como histórico na universidade. A situação atual da universidade não seria fruto de uma mera circunstancialidade, mas sim traz como tarefa o exame de sua história, que se prestaria a uma determinação objetiva e como um parâmetro de julgamento comparativo de épocas distintas. A universidade seria vista como uma instituição que possui uma configuração histórica atual, que por sua vez, é produto de configurações históricas passadas. A pergunta sobre se a universidade, como esta se apresenta (temporaliza) em 1921, torna possível ou impede que se investigue em filosofia, tal como formalmente indica Heidegger, poderia ser respondida a partir de uma narrativa que dê conta sobre seu surgimento, suas metas e finalidades, sobre o que lhe pertence de essencial em meio aos câmbios sofridos, etc. Heidegger descreve tal procedimento como se segue: A questão de saber se a universidade em sua atual configuração – é dessa configuração que se trata, portanto [“hoje” – à época do Idealismo alemão, do Humanismo, da Reforma, da Alta Escolástica (Paris, Colônia, Bolonha, Nápoles, geração Alexandrina de pesquisadores, Liceu de Aristóteles, Academia de Platão] – está capacitada para “formar” (ambíguo) experiências fundamentais para a explicação indicativa do sentido de filosofia, para “formar” o acesso a ele e à sua execução, ou se esta capacidade lhe é negada, poderá ser levada a uma solução pelo fato de que, de imediato, o caráter da universidade é hoje visado como objetivo, sendo determinado igualmente em uma comparação objetiva; como ela se relaciona com o passado, o que e como ela é, é apreciado a partir de sua origem histórica. Isso pode ser exposto para uma constatação objetiva, a partir de cujo parâmetro de início, desenvolvimento, avanço, reformulação, pode-se haurir hoje para nós a mais premente instrução e dedução de teorias (HEIDEGGER, GA61, p.72-73).

Retomando: a discussão sobre o que é filosofia e sobre o que ela trata ganha contornos de uma discussão sobre a situação, sobre o contexto a partir do qual esta se apresenta. Indubitavelmente, o contexto imediato, onde inclusive a questão da situação a partir da qual se filosofa é enunciada, é a universidade. Assim sendo, compreender a situação da universidade seria condição e daria ensejo ao próprio filosofar. Uma das vias que se apresentaria para a execução desta tarefa é a de considerar a universidade no tocante a sua história, perguntando sobre seu sentido e incumbências, sobre o que tem como meta, desde seu surgimento, passando por suas configurações históricas até a interpretação sobre sua forma atual. Do exposto, cabe agora questionar: qual é a opção de Heidegger para caracterizar a situação de acesso ao filosofar? Como a universidade está caracterizada para o filósofo? Em primeiro lugar, Heidegger procede a um exame crítico sobre o modo sugerido de considerar a universidade a partir de uma perspectiva histórica. A crítica não se dá a partir de uma

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confrontação com outra perspectiva, ou o desenvolvimento da temática para evidenciar concretamente seus limites e insuficiências. Trata-se de apontar que este caminho possui uma suposição indiscutida em sua base: a de que “a história, enquanto decurso objetivo, o passado efetivo como tal tem uma possibilidade e um direito a fornecer meta e norma” (GA61, p.73). A discussão se desloca sobre a história como tradição, e sobre se a tradição deve se constituir em um modelo ou um padrão de medida para a determinação das tarefas atuais da universidade (e da filosofia). Entretanto, identificar o que está pressuposto neste tipo de debate por si só não auxiliaria na compreensão do que está em questão. Heidegger sugere que no discurso que se posiciona a favor ou contra a tradição como normativa para a universidade já se acolhe um sentido não esclarecido de tradição. Examinando esta possibilidade de considerar o problema, Heidegger então conclui que: As questões pelo sentido e direito da tradição, pelo caráter histórico da universidade se deslocam e mostram não serem as mais imediatas do ponto de vista da ordem temporal dos problemas enquanto o caráter de ser da própria universidade em seu hoje continuar encoberto para nós segundo sua estrutura ontológica. (HEIDEGGER, GA61, p.76)

Deste modo, o retrato da universidade não deve ser feito com base em seu passado ou tomando-o como um guia para as tarefas presentes e porvindouras ou em concepções não examinadas sobre seu caráter histórico. A situação a partir de onde se tem acesso ao filosofar deve ser considerada em sua estrutura ontológica. Efetivamente, isso significa também conceber de outro modo o acesso ao filosofar. O acesso ao filosofar por meio da orientação para a situação onde ele se desdobra requere ele mesmo um acesso. Dito de outro modo, a situação de acesso ao filosofar deve ser ela mesma acessada, não está disponível de imediato para nós. Torná-la disponível é fruto de um exercício, que consiste, por um lado, em considerar criticamente as caracterizações e os problemas que parecem ser os mais iminentes e os caminhos que se apresentam como os mais viáveis para resolvê-los (que, no entanto, apontam para suposições ontológicas inexaminadas). Por outro lado, o que se manifesta como mais imediato deve ser mostrado no tocante ao que é estruturante para seu aparecer. No caso da universidade, significa clarificar a compreensão desta enquanto um contexto, um nexo conjuntural vital que está ele mesmo na vida fática histórica do ser-aí. A pergunta pelo ser da universidade dá ensejo à pergunta pelo ser da vida fática mesma e o modo como ela acontece historicamente. A compreensão do contexto em que se vive cientificamente deve passar pelo questionamento daquilo que lhe é estruturante. Fazer o exercício de tomar esta direção é colocar-se no caminho do filosofar.

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Assim, a discussão sobre a universidade ganha outra função: levar o contexto de vida do investigador a um questionamento por seus elementos estruturantes fundamentais. A questão da determinação da universidade supõe e requer uma ontologia. E é por isso que Heidegger pode afirmar que: O que está em questão primariamente, portanto, não é descrever um estado objetivo, casual e hodierno da universidade, mas destacar compreensivamente seu sentido de ser-aí específico, que quiçá sobreviva e atue de maneira totalmente encoberta, inibida e oculta. E esse mesmo sentido não é algo supratemporal, mas temporal e histórico num sentido radical, como ainda veremos e justo por isso é um sentido passível de apreensão e que deve ser apreendido. (HEIDEGGER, GA61, p. 78)

Neste percurso, portanto, uma consideração mais detalhada da universidade, sua estrutura, ou como se caracteriza sua situação vital própria, não é alvo dos esforços de Heidegger. Há a declaração explícita de que tais questões restam como tarefas (p.78), mas estas não entram em questão novamente. A discussão da universidade transmuta-se em discurso ontológico sobre a vida fática, mas o caminho de retorno da ontologia para a caracterização da universidade deixa de ser percorrido. Neste sentido, fica em aberta também a questão sobre em que medida a compreensão da vida fática propiciada pela investigação ontológica pode desencobrir a compreensão do caráter histórico da universidade. À primeira vista, a relação entre a filosofia e a universidade se dá na medida em que a primeira se pergunta pelos elementos estruturantes últimos da vida, e que esta se mostra como um dos contextos em que a vida se manifesta. De algum modo, que não é tornado tema central de uma consideração retrospectiva, a ontologia da vida poderia servir para esclarecer ou dirimir certas discussões sobre a natureza da universidade. Além disso, a discussão sobre a universidade exemplifica e concretiza o movimento interpretativo de ir do que se apresenta como mais imediato para o questionamento propriamente ontológico. A universidade entra em questão como o que primordialmente aparece como a situação para o filosofar, a organização institucional que determinaria o modo como (e o que) se investiga a partir de suas demandas, disputas, organização, de sua tradição, e assim por diante. Mas vimos que Heidegger não considera que a apropriação da situação para o filosofar passe fundamentalmente pela discussão da configuração hodierna da universidade. Se tal é o caso, isso se dá no exercício de desvinculação de uma concepção na qual estar na universidade já significa ter acesso ao fazer filosófico, bem como na problematização de concepções que visam definir a universidade ou as possibilidades das ciências em seu interior a partir de uma consideração histórica.

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Destarte, a universidade está para a filosofia como um contexto de vida que clama por uma problematização. Tal problematização não mergulha em seus problemas ou questões localizadas, mas põe em marcha uma investigação ontológica concreta sobre o ser da vida em geral. Nem mesmo usa esta problematização como base para produzir outro discurso sobre a universidade, que se faça a partir de suas bases ontológicas já remexidas. Muito menos se garante um privilégio para a universidade como o fórum por excelência de investigação e transmissão da filosofia. A filosofia que se faz na universidade toma-a em consideração na medida em que esta se insere em seu horizonte de investigação – e em um sentido específico de afastar-se das discussões sobre a determinação de sua natureza.

3.2A ideia de universidade e a ciência como investigação

Assim sendo, as perguntas sobre o onde se desdobra a ciência da origem apontariam sempre para a necessidade de aclaração do pano de fundo ontológico que a determina em seus aspectos últimos. A discussão sobre a universidade é tornada dependente da investigação ontológica visada pela filosofia. Em que sentido a universidade seria determinante para a investigação filosófica, para a organização desta ciência, se é que isso é o caso, não parece ser uma questão quede fato tenha direito de ser desenvolvida como tema principal. Tanto que na formulação das tarefas da investigação de 1920 a ideia guia de ciência não é apresentada em conjunção com a universidade ou com algum contexto institucional em que esta possa ter lugar. Esta parece ser uma discussão mais afim às ciências que procedem como lógicas concretas. Para a ciência como um modo de existir que buscar dar conta do vivido, a universidade não teria uma função mais fundamental do que se apresentar como o contexto que pode ser propício (ou não) ao investigar. Isso se depreende da leitura do texto heideggeriano em 1921, até o momento em que o filósofo faz a seguinte afirmação: Ora, poderia ser também que a situação indicada com o título universidade fosse tal que, na medida em que lhe for concedida a possibilidade de tornar-se radicalmente relevante e livre, não apenas admitisse, mas até precisamente exigisse, a possibilidade de execução da filosofia da forma mais incondicionalmente radical. (HEIDEGGER, GA61, p.67).

Claramente, Heidegger sugere que a filosofia, como questionamento radical, e a universidade, conformada a partir de certas condições, poderiam estar fundamentalmente vinculadas. A universidade não apenas possibilitaria, mas requereria a filosofia concebida de modo radical. Neste sentido, não seria um exagero dizer que a ciência da origem é uma investigação que alcança suas maiores potencialidades na universidade. E que para tanto exige

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que as potencialidades da universidade também sejam radicalmente realizadas. De que modo isso seria assim? Que potencialidades Heidegger vê na universidade que se coadunam com o modo de execução da investigação filosófica proposta? Em que medida a universidade é mais do que o contexto que possibilita alguma integração entre pesquisadores e entre estes e seus alunos, ou um tema que propicia por em marcha a questão ontológica? Que ideal de universidade está aqui em jogo? A possibilidade de execução da filosofia de maneira radical pode ser compreendida a partir do já exposto sobre a ideia de filosofia como ciência da origem. A investigação filosófica realizar-se-ia mais radicalmente na medida em que coloca a vida em questão de modo mais radical, seja por aquilo que visa, sua origem, seja pela necessidade de refundar seu próprio aparato expresivo-conceitual-metodológico, seja porque exige daquele que questiona uma modificação em seu modo de vida. Estas tarefas dependem e requerem uma atitude científica fundamental: colocar a vida e o mundo em questão (radicalmente). Como a universidade pode exigir e dar espaço a uma investigação que leve adiante tarefas como as mencionadas? No semestre de inverno de 1919, Heidegger profere o curso de 1 hora semanal denominado de A essência da universidade e do estudo acadêmico (GA56-57, p. 205-214)130. Similarmente ao curso sobre Aristóteles131, o tema acerca da natureza da universidade é discutido a partir da noção de situação132. A situação caracteriza o contexto em que vivo, o

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A versão publicada no apêndice da Obra Completa de Heidegger é a constante das anotações de Oskar Becker, já que o manuscrito original foi perdido. 131

Embora seja uma tarefa importante, meu intuito aqui não é traçar comparações entre os dois procedimentos (de 1919 e de 1921), mas sim o de salientar para o fato de que a discussão sobre a universidade aponta, em ambos os casos, não para a problematização de seu desenho institucional ou algo do tipo, mas para uma discussão de caráter mais geral sobre o comportamento teórico (no primeiro caso) e para a vida fática considerada sob o ponto de vista ontológico (no segundo caso). 132

A presente tese atesta a importância e os diversos usos do conceito de situação por Heidegger nos anos 20. A situação tanto caracteriza a dimensão originária buscada quanto aquilo que é alvo dos esforços de expressão conceitual em filosofia. Ademais, é colocada como ponto de partida para o filosofar e na apropriação da tradição filosófica e também como pertencente, embora de modo modificado, à ciência, em contraposição ao estado natural em que vivemos. Ou seja, a situação não apenas é aquilo o que constitui basicamente a vida, ao que a filosofia deve voltar-se em uma tarefa de clarificação, mas também o que pertence à própria filosofia, enquanto questionamento ele mesmo ancorado em um mundo, que se faz a partir de um presente e em confrontação com sua tradição. A filosofia não apenas daria conta de esclarecer a estrutura situacional vivenciada, mas também tem como tarefa clarificar a própria situação a partir da qual compreende algo. Neste espaço não tenho como especificar e analisar comparativamente o desenvolvimento desta noção no pensamento heideggeriano do período; contento-me apenas em indicar pontualmente quais nuances ela adquire ou com que finalidade expositiva é utilizada nos escritos aqui citados. Um bom exemplo de investigação que visa não apenas mapear seus usos, mas também de apresentá-la articuladamente no interior da filosofia de Heidegger até 1921 é o texto de Sánchez (SÁNCHEZ, 1998). Para o desenvolvimento da questão sobre a apropriação da filosofia de sua situação no debate com filósofos da tradição (no caso, com Aristóteles), a partir da noção de situação hermenêutica, cf. Lara( 2010).

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qual vivencio enquanto uma unidade histórico-significativa que não equivale apenas a uma sucessão temporal de processos ou acontecimentos. Pois bem, a discussão sobre a universidade se dá em termos da caracterização do cambio da situação apresentado (e requerido pelo) comportamento teórico. É através da discussão da modificação na situação cotidiana do mundo introduzida pela atividade cognoscente que Heidegger visa indicar o que caracteriza mais fundamentalmente a universidade e o estudo acadêmico. A gênese do comportamento teórico (GA56/57, p.214) supõe uma desvinculação da situação natural em que cotidianamente se vive. Não apenas um abandono da situacionalidade da experiência do mundo, mas se trata da configuração de uma nova situação “A modificação para a atitude teórica é uma modificação para uma nova situação” (GA56/57, p. 210). Da situação natural ao comportamento teórico, a vida motiva um saber de si que a cada vez se distancia da relação imediata com as coisas. Se a situação natural engendra um saber de si que não se movimenta para além desta situação, que permanece incontestamente entregue à coisa, o comportamento teórico representa não apenas uma saída desta entrega, mas ao mesmo tempo, uma dedicação à coisa em termos de sua verdade (p.213). A liberação do comportamento cotidiano imediato com a coisa dá lugar a assunção de um vínculo mais fundamental: “Sou completamente livre de qualquer contexto vital e, no entanto, inteiramente vinculado à verdade” (GA 56/57, p.213). Logo, o comportamento teórico é descrito como a atitude de assumir uma nova postura diante da situação em que cotidianamente se vive, de desobrigar-se de um vínculo no qual primeiramente se está e de encontrar uma nova obrigação: a da busca pela verdade. Mas, em que medida tal definição do comportamento teórico – que, ademais, não é nada anti-tradicional ou controversa – vincula-o inequivocamente à universidade? Heidegger nos dá pistas quando afirma que “O mundo teórico não está sempre aí, mas apenas se dá num soltar-se do mundo natural, que constantemente se renova” (GA 56/57, p. 211). Ou seja, o movimento de saída da situação natural (e de seu saber enquanto um “tomar em conhecimento”) requer um esforço que deve ser constantemente renovado. A situação natural é natural pois é a que primeiramente se apresenta para nós, “contra” a qual o comportamento teórico instaura uma nova situação133. O estudo acadêmico requer, portanto, um exercício, um

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Alexandre Franco de Sá atenta que esta definição sobre o comportamento teórico pode ter maiores implicações a partir da concepção de Heidegger sobre a relação em que estamos com nossa situação natural. Sá destaca, retomando as leituras de Heidegger sobre Santo Agostinho (no curso de 1921, Agostinho e o Neoplatonismo, GA60, p.157ss), a qualificação do filósofo alemão de vita como tentatio: a vida caracteriza-se pela tentação de fugir de si mesma, de não confrontação, de tranquilização: “O „eu‟ perde-se de si mesmo, liberta-se do peso da sua própria existência, tranquiliza-se na lida quotidiana com um mundo habitual. Por outras

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esforço de manter-se na tendência deste comportamento. A questão que Heidegger coloca, evocando a conferência de Max Weber sobre a Ciência como vocação134, é, portanto, central: Com a entrada nesta esfera do puro estado de coisas, ganho a possibilidade do conhecimento ilimitado. Mas, quando abandono a condição deste contexto vital, assumo o risco de ter de me separar do contexto vital científico. Daí que a “questão da vocação” esteja na entrada para o contexto vital teórico: posso conservar em mim o hábito da veracidade absoluta? (HEIDEGGER, GA56/57, p. 213)

Em que sentido a saída da situação natural e o vínculo com a verdade pode ser cultivado? Trata-se não apenas de definir que avocação é necessária, mas de perguntar-se o que pode garanti-la e torná-la um hábito enquanto um modo de vida, o que significa ir contra suas tendências mais imediatas. A resposta de Heidegger aponta para a necessidade do método e de certas labilidades daquele que investiga (e das quais o método não pode abrir mão) que exigem adaptar-se em transitar pela experiência do mundo circundante e a atitude teórica – como na demanda do questionamento constante, da volta sempre renovada às fontes originárias (“exigência da „juventude eterna‟ para o homem teórico” p.214), de afastar-se de outros mundos vivenciais, como a arte, a política, a religião e da atitude crítica frente ao que é herdado (GA56/57, p.213-214). Por outro lado, o título da preleção autoriza a pensar para além deste contexto e ver a universidade também como parte da resposta. A universidade, em seu contexto de intercâmbio entre pesquisadores e alunos, da normatização de comportamentos, da possibilidade de discussão e questionamento, seria, portanto, a organização institucional que permitiria e requereria o cultivo do modo de vida teórico. A atitude teórica requer um esforço de saída da situação natural. Neste sentido, a formulação de Sá permite ver claramente a questão: “E, diante da exigência deste esforço, dir-se-ia que a universidade, na sua essência, consiste na instituição que permite cultivar justamente a sua constância, enraizando-o através palavras, a vida deste mesmo „eu‟ tende a manter a tranquilidade da sua „situação natural‟. Esta assume o carácter de um refúgio no qual o „eu‟ se abriga de um confronto inquietante consigo mesmo. Neste sentido, a vida do „eu‟ é marcada, na sua essência, pela tentação da tranquilização” (Sá, 2003, p.13). Se a vida se apresenta primordialmente a partir da tentação de sua situação natural, então a atitude teórica, enquanto o exercício de desvinculação desta situação, como uma situação alternativa a esta, poderia ser vista como possibilitadora de uma existência autêntica (op.cit., p.14). 134

Como bem aponta Iaim Thomson (2003, p. 521), não é coincidência a escolha de Heidegger em 1919 de discorrer sobre a Universidade e os estudos acadêmicos. Tal escolha estaria sim vinculada ao impacto do retrato feito por Weber da ciência e do cientista no âmbito acadêmico alemão (referido também por Gadamer, 1992). A referência à Berufsfrage atesta tal conclusão e autoriza, a meu ver, visualizar uma influência maior de Weber sobre Heidegger do que as poucas referências diretas deste último sobre Weber, ou mesmo a que a circunscreve mais fortemente à conferência de 1938 A época das imagens de mundo (GA5), como, por exemplo, Sharp (SHARP, 2011). Como uma exceção está o artigo de Crowell (1997), que desenvolve uma linha argumentativa de aproximação entre Weber e Heidegger e uma caracterização da posição heideggeriana sobre a reforma na universidade nos anos do pós-guerra, porém com um intuito de contrastá-la com a posição assumida no Discurso o Reitorado em 1933.

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de uma prática, tornando-o num hábito virtuoso e, nessa medida, permitindo a sua manutenção” (SÁ, 2003, p.17). Destarte, a caracterização de comportamento científico a que se aludiu nos parágrafos precedentes guarda profundos vínculos com a noção de ciência enquanto investigação 135 que é fundamental para a determinação da ideia da ciência da origem. Trata-se do câmbio introduzido em nosso vivenciar do mundo pela investigação científica, a possibilidade de questionar o vivido. Tal possibilidade não é algo imediato ou uma conquista permanente, mas é fruto de um trabalho e de um esforço constante. Se a universidade é o contexto institucional que define pela tarefa da manutenção da investigação, onde a possibilidade de questionar com vistas à verdade é o que anima sua persistência e confere sentido último a sua organização, então é possível perceber que, quanto maior for sua fidelidade a este ideal, maior será a necessidade de dar lugar a uma ciência que assuma e incorpore esta tarefa como sua motivação fundamental. A ciência da origem reconduziria a universidade ao que fundamentalmente lhe motiva. A filosofia não apenas exemplificaria o ideal de ciência, mas também o ideal de vida científica que requer o sentido último da ideia de universidade. Em outras palavras, quanto maior a radicalidade no investigar e no questionar, mais se concretiza a função e o ideal da universidade. Deste modo, pode-se compreender outro sentido em que a filosofia heideggeriana é profundamente marcada pelo contexto vital da universidade. Não apenas como um tema da investigação filosófica, mas como o contexto institucional que teria sua razão de ser genuinamente justificada por investigações tais como a que se pretende a fenomenologia da origem da vida (e das demais ciências que mantenham a mesma motivação do comportamento teórico). A possibilidade do questionamento radical da filosofia, no entanto, como Heidegger sugere na citação, somente é aberta e requerida pela universidade sob certas condições: “na medida em que lhe for concedida a possibilidade de tornar-se radicalmente relevante e livre”. Heidegger parece apontar para o fato de que a universidade ponha em marcha e resguarde o comportamento teórico, pautado pela busca da verdade e pelo câmbio na situação natural, não é uma condição intrínseca; ela pode lhe ser concedida ou não. Ademais, a bancarrota da ciência sinalizaria que esta se aproxima mais de um negócio ou de um ofício do que da ideia balizadora do comportamento teórico. Neste sentido, parece claro que Heidegger vê uma discrepância entre a prática científica nas universidades e institutos de pesquisa e o ideal de

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Cf. capítulo 2, seção 2.2.

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investigação vinculado essencialmente à busca da verdade (tanto que pode falar em “ideia sepultada”). Sendo assim, reavivar a ideia de ciência e torná-la um modo de vida requer também mudar a universidade?Em que medida o apelo ao ideal de comportamento teórico e a concepção de ciência como investigação no interior da universidade significa a luta por uma renovação ou resgate da mesma?A radicalidade da filosofia incide também sobre uma possível reforma da universidade? Para encaminhar estas questões, é importante analisar como Heidegger se posiciona sobre o tema da reforma da universidade no pós-guerra. 3.3A reforma Universitária: do ruído ao silêncio decidido136 Antes de iniciar “propriamente” o tema de sua preleção em 1919, Heidegger faz algumas observações sobre a reforma universitária. Ao clamor do pós-guerra por mudanças na universidade, o filósofo responde afirmando a necessidade da renovação da consciência científica e do seu contexto vital. Entretanto, nos anos de 1919 e 1921, a renovação da ciência e de suas relações com a vida não implicaram para Heidegger em uma defesa sobre a necessidade de uma reforma na universidade. O que não significa que não haja uma tomada de posição sobre as condições exigidas para sua realização. Porém, tal posicionamento se afasta da elaboração explícita de um programa ou de tomar parte em discussões já ocorridas em torno desta questão. Nas primeiras considerações de sua preleção em 1919, Heidegger afirma: A muito discutida reforma universitária está inteiramente mal conduzida e desconhece por completo a autêntica revolução do espírito, quando agora se dissemina em manifestos, assembléias de protesto, programas, ordens e alianças: meios adversos ao espírito e a serviço de fins efêmeros. (GA56/57, p. 4)

A oposição, referida em termos idealistas, é claramente colocada por Heidegger: a reforma universitária que se propõe em termos de associações políticas, discussões, 136

Aqui meu interesse será o de indicar as conexões entre a ciência originária e a posição de Heidegger sobre a reforma universitária, sem avançar em qualificá-la dentre as posições no período. Para tanto, cf. o artigo de Crowell (1997), que busca estabelecer a postura de Heidegger de acordo com o quadro conceitual trazido pela leitura de Fritz Ringer sobre a comunidade acadêmica alemã da época (2000). Crowell defende uma posição “mista”, na qual Heidegger seria visto como tanto como um ortodoxo (o intelectual firmemente contrário aos clamores por modificações), mas também defenderia posições modernistas, sobretudo em seus pontos de contato com Weber, um modernista por excelência. Para tal análise, Crowell leva em consideração também as concepções de Heidegger sobre as tarefas de sua filosofia. Um ponto que, a meu ver, deveria ser observado para a discussão é a qualificação de Ringer de um aspecto relevante nas condutas dos acadêmicos alemães antimodernos: a recusa destes intelectuais de qualquer forma de discussão sobre mudanças institucionais. Neste sentido, como se indicará, veremos que Heidegger representa claramente este tipo posição.

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manifestações, ou ações concretas que visam articular sua consecução, somente produzirá uma modificação superficial atrelada a fins transitórios. A autêntica revolução, uma mudança profunda na universidade e na sociedade não se dará a partir dos altos brados de um desalentado presente ou da tentativa de remediar um mal-estar diante do futuro. Em 1921, ao discutir as questões sobre a universidade como o contexto mais próximo do filosofar, expressamente se ressalta que, onde se fala de universidade, as considerações estão “fora de discussões sobre tempo e caminhos, necessidade ou superfluidade da assim chamada reforma universitária” (GA61, p.69)137. Nesta preleção, Heidegger é ainda mais incisivo contra o modo de conduzir uma renovação da universidade: A questão é se a universidade deve continuar a ser talhada de acordo com necessidades, moldada para um nível que decresce ano a ano de uma preparação psíquico-espiritual apenas medianamente satisfatória. Há que se perguntar se se podem fazer exigências como tal a partir daí, se humores degenerados, mesmo quando se amotinam em grupos e contam com a aprovação da maioria, podem estabelecer padrões para a determinação de algo que, por si, exige ser apropriado, mesmo custando o empenho de uma vida, antes que profiram discursos ou que se escrevam brochuras sobre o assunto. (HEIDEGGER, GA 61, p.70)

A recusa em discutir sobre a reforma da universidade revela uma objeção de nível ainda mais profundo: não se trata apenas de discordar do modo como esta é conduzida, mas sim de divergir sobre o ponto de partida mesmo da discussão. Aqui se mostra não apenas uma crítica do desenho institucional que se tem, o qual visão que é mais premente ou imediatamente “aplicável”, ou mesmo do nível da formação entregue. O que se leva em conta criticamente é a tentativa de mudar a universidade tendo como guia tais parâmetros necessidades, formação mediana. Os padrões para a reforma da universidade não podem estar vinculados a estas demandas, nem mesmo entregues nas mãos de humores degenerados. Estas são posições externas aos próprios fins e ideais da universidade, aos quais sim se faz jus quando se coloca a vida a serviço da ciência. A reforma da universidade como se pretende atinge apenas uma parte superficial, ou está a “serviço de fins efêmeros”, caso não se coloque como questão principal o resgate do que motiva a própria existência da universidade: a ideia de ciência. Ou, como formula Heidegger, caso não se promova o “o renascimento da autêntica consciência científica e de suas conexões vitais” (GA56/57, p.4-5). Pois bem, Heidegger identifica como problemático o encaminhamento das questões em torno de uma reforma da universidade no pós-guerra. Aquilo que será capaz de renovar a

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Crowell em parte aponta para o problema que se desdobrou até aqui, afirmando que a apropriação da situação não se dá através de “(...) propostas para a reforma universitária, mas através da Destruktion fenomenológica dos lugares-comuns que dirigem nossa compreensão cotidiana das „circunstâncias‟” (CROWELL, 1997, p. 268).

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universidade não é a busca pelo novo, ou a adequação desta às demandas de uma sociedade em reconstrução, mas a volta ao ideal de ciência. Como isso se torna possível concretamente? Como Heidegger vê este renascimento? Em primeiro lugar, não se trata de substituir um programa pelo outro, ou seja, de propor outro programa de reforma da universidade. Vimos que Heidegger se posiciona contra este tipo de debate público. Ademais, o contexto de sua discussão sobre a universidade se dá ou em termos de determinar o comportamento teórico que constitui a atividade acadêmica, ou de apontar para a necessidade de uma investigação ontológica sobre a historicidade da vida. Em 1919, nas considerações seguintes sobre a reforma da universidade como o renascimento da consciência científica e de suas conexões vitais, Heidegger assim se pronuncia: (...) as relações com a vida somente se renovam retornando às autênticas origens do espírito. Enquanto fenômenos históricos, estas relações precisam da paz e da segurança de uma vida repleta de valore em processo de construção. Só a vida faz „época‟ e não o ruído de frenéticos programas culturais. (HEIDEGGER, GA 56/57, p.5)

Heidegger não avança mais em sua caracterização sobre este retorno às origens ou sobre a que tipo de fenômenos se refere quando fala sobre paz e segurança, ou sobre as características que possibilitam à vida fazer época, em contraposição ao ruído de programas culturais. Apenas se afirma que levar a cabo as reformas na universidade de modo genuíno é tarefa de toda uma geração. Como isso se daria também não é alvo de maiores considerações, Heidegger somente indica que não se está maduro o suficiente para levar a cabo esta tarefa. Outros elementos para pensar esta questão se encontram nas afirmações subsequentes na preleção: O despertar e a intensificação do contexto vital da consciência científica não são objeto de um exame teórico, mas sim vida prévia e exemplar – não é objeto de uma regulamentação prática, senão o efeito originariamente motivado pelo ser pessoal e impessoal. Somente assim se constroem o tipo de vida e o mundo da vida próprios da ciência. (HEIDEGGER, GA 56/57, p.5)

A renovação da ideia de ciência e de suas conexões com a vida não pode ser fruto de um exame teórico ou se dá a partir de uma normatização. Ela passa pela assunção de uma tarefa individual, pela personificação exemplar da vida dedicada à investigação. Não se trata, portanto, de dizer ou normatizar o que se deve fazer para renovar a universidade, mas de fazêlo, de investigar, de perguntar sobre o mundo tendo como fim determiná-lo verdadeiramente.Neste contexto, a “cega” atividade investigativa – a atividade que se desdobra a partir de seus próprios fins e parâmetros – resulta proveitosa, uma vez que é o exemplo que anima e atualiza a ideia de ciência. Heidegger compara o homem científico ao

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religioso e ao artista, na medida em que estes se expressam propriamente ao viverem em e para aquilo que os motiva: Mas da mesma maneira em que o temor reverencial do homem religioso deixa este em silêncio ante seu mistério último, da mesma maneira que o verdadeiro artista vive somente para sua obra e detesta todo o palavreado artístico, o homem científico somente resulta efetivo através da vitalidade de uma investigação genuína. (HEIDEGGER, GA56/57, p.5)

A renovação da universidade aponta, sobretudo, para a resolução silenciosa e individual de compromissar-se com o esforço do trabalho científico. A universidade, orientada pelos ideais de conhecimento e de ciência, é mais do que uma instituição: é algo do qual se apropria (e só pode se apropriar) aquele que efetivamente investiga. No curso sobre Aristóteles, Heidegger caracteriza claramente qual a decisão, que, ao seu entender, está em jogo: “Por princípio, há que se decidir:Ou: vivemos, atuamos e pesquisamos de maneira relativa a necessidades inexaminadas e humores sugestionados. Ou: estamos em condições de tomar posse concretamente de uma ideia radical e conquistar sua existência” (GA61, p.70). Aqui, evidentemente, sugere-se que esta ideia radical é a ideia de ciência, concretamente efetivada pela filosofia.

3.4A ciência da origem e a universidade

Como tal decisão individual pode efetivamente modificar ou renovar a universidade? Como isso pode ser disseminado? Aqui, as perguntas sobre a ciência proposta por Heidegger atingem um limite. Tratar-se-á muito mais de apontar para a necessidade de uma deliberação de outra natureza, um apelo para que se assuma um comportamento que se vê como basilar e determinante para toda a atividade científica, e atrelado a isso, para o resgate da universidade. À invocação pública por reformas na universidade, por uma reaproximação da ciência com a vida, Heidegger responde citando o polímata Johannes Scheffler, ou Ângelo Silesius: “Homem, sê essencial!” (GA56/57, p. 5). Para o homem científico, como vimos, isso equivale a uma exortação ao investigar, à assunção de uma tarefa de zelo absoluto por aquilo que se pesquisa. Como isso modificaria as relações vitais, parece estar para Heidegger mais atrelado à força do exemplar do que ao impacto direto de discussões em fóruns públicos. Para Heidegger, corresponder ao apelo pelo originário e o essencial de modo mais radical seria investigar aos moldes de uma ciência da origem da vida, fazer filosofia como fenomenologia. Sua contribuição se dá muito mais em investigar “vitalmente” do que na formulação de uma

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política acadêmica ou diretrizes para seu funcionamento. A discussão sobre a mudança na universidade ou sua renovação se torna um tema oportuno, na medida em que dá ensejo ao que realmente deve estar em questão: a reivindicação pelo direito de existência da filosofia na universidade. A filosofia, corretamente compreendida como fenomenologia ou ciência da origem, personifica a ideia de ciência que constitui a universidade e para a qual ela deve se voltar novamente. Se ela tem o direito e a liberdade de ser executada radicalmente, então o ideal de universidade estará exemplificado e salvaguardado. Este é o máximo de impacto que a ciência da origem poderia alcançar ou deveria almejar nas discussões sobre a natureza da universidade. Heidegger se coloca claramente contra o “barulho” de programas ou discussões sobre reformas, e a favor da exortação a uma decisão pela ciência, a qual, mesmo quando se fala em tarefa de uma geração, está claramente vinculada com uma modificação existencial individual. Como se dá esta modificação, como ela pode ser compartilhada em uma atividade que claramente se organiza coletivamente e em especialidades, sobre isso também Heidegger silencia. Este silêncio se torna ainda mais complexo quando se compreende o quão intimamente vinculadas estão a universidade e a filosofia no projeto heideggeriano de uma ciência. Isso se agrava pela tergiversação da discussão sobre a natureza da universidade. Não apenas há uma recusa a avaliar ou pensar a universidade de seu tempo, quanto, de modo mais grave, não há uma discussão sobre o ideal de ciência e universidade que está em jogo. Busquei mostrar que, mesmo que não explicitamente assumido ou desenvolvido por Heidegger, há sim uma concepção da universidade e do trabalho científico em vista. Este ideal não é discutido, nem em que medida o imperativo de Silesius pode ser apropriado em um contexto institucional onde claramente a busca da verdade se imiscui a outros fatores. Heidegger pensa sobre o onde se desdobra a filosofia a partir do estímulo ao reavivamento de um ideal que expressamente admite ter sido sepultado. Está claro para ele que o ideal de ciência que se pretende por em marcha é discrepante da configuração institucional das universidades ou da prática científica, mas este afastamento não entra em questão, uma vez que se evita discutir a feição hodierna da universidade. Bem entendido, se a filosofia se determina fundamentalmente pela universidade tal como Heidegger parece supor, a não discussão de seu caráter deixa em aberto um dos pilares centrais para seu exercício. Mesmo que seja para não cair na armadilha que imputa aos seus oponentes: a de lançar mão de concepções inexaminadas e que são centrais para suas investigações. Por outro lado, se restam indiscutidas as condições institucionais para o exercício desta ciência, também em nenhum momento se indica em que medida a ciência da

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origem pode renovar o contexto vital onde primeiramente se desdobra. Ou seja, a universidade sustenta essa forma de vida que indaga radicalmente, mas o que resulta deste questionar para esta instituição? Heidegger não demonstra uma pretensão de esclarecer algo sobre este tema. De algum modo, seu exercício reverberará na universidade. Para uma filosofia que mostra pretensões tão amplas, esta indeterminação não deixa de ser inquietante. Neste sentido, a Berufsfrage, tal como Heidegger a formula, adquire ainda maior relevância: como se conserva o hábito da veracidade absoluta? Como o homem científico que atende ao apelo pela essencialidade se comporta em um contexto institucionalizado e coletivo como o da ciência? No caso da filosofia, qual é a figura do cientista que daí se depreende? Como se equaciona a descrição sobre o comportamento teórico com a exigência de radicalidade da implicação de si mesmo no questionamento filosófico?Estas são questões que desenvolverei no próximo capítulo.

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4O FILÓSOFOCIENTISTA

Após a argumentação sobre as pretensões, implicações e articulações conceituais pertencentes ao projeto de uma ciência da origem, transitou-se em direção a um exame de ordem distinta: tratou-se de iniciar uma problematização do projeto heideggeriano da fenomenologia da origem a partir da consideração do contexto institucional onde esta seria desdobrada. Grosso modo, as questões giraram em torno das seguintes perguntas: em qual instituição tal ciência tem lugar? Qual é o desenho institucional que a promoveria? Trata-se de uma consideração de ordem distinta, uma vez que a problematização proposta neste trabalho não atingirá diretamente as descrições filosóficas heideggerianas, ou seja, não consistirá nuclearmente em uma avaliação sistemática dos resultados alcançados por sua investigação. O que significa, primeiramente, que a discussão da cientificidade pretendida para a filosofia não se dará a partir do procedimento (por si só já discutível) de estabelecer critérios a partir dos quais se poderá asseverar que se trata sim ou não de uma ciência, ou se, a partir de tal classificação, seus resultados podem ser considerados como científicos. Bem entendido, está em questão pensar as implicações da noção de ciência originária a partir da concepção de ciência que, considero, fundamentalmente está em jogo na decisão pela filosofia como ciência. Ciência é aqui a articulação conceitual e metódica de uma atitude/possibilidade fundamental: a de questionar, perguntar sobre a vida, de dar conta do vivido em um mundo. A filosofia é a ciência originária, pois é a que mais radicalmente executaria esta ideia. Não apenas porque a vida é seu campo temático ou porque deve incorporar em seu método a dificuldade de instaurar-se investigativamente naquilo em que já sempre se está, mas porque a leva em consideração tendo em vista seus elementos estruturantes mais germinais. Na filosofia não apenas se coloca a vida em questão, mas se tratam de perguntas últimas. Perguntas que colocam em questão não somente a vida no mundo, mas a vida daquele que pergunta. Fazer deste questionar, da ciência, uma forma de vida, é uma exigência de ofício para o filósofo. Logo, se trata de problematizar algumas das implicações desta anunciada radicalidade na aproximação entre ciência e vida na filosofia. Para tanto, entram em consideração campos nos quais o tema da aproximação entre ciência e vida se apresenta decisivamente, tanto para os cientistas das demais ciências138, quanto para Heidegger139. No primeiro momento, busquei

138

Cf. nota 128.

139

Cf. seção 3.2, capítulo 3.

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indagar sobre o contexto que sustentaria a vida científica: a universidade. Meu procedimento consistiu em salientar que a limitação do pronunciamento de Heidegger acerca deste tema é incompatível com o alcance e a radicalidade pretendida para a ciência da origem. O discurso heideggeriano ou evitou discorrer sobre a universidade ou apenas sugeriu que a função e meta da universidade seriam a de dar ensejo e salvaguardar a ideia de ciência e de comportamento teórico exemplificada pela filosofia. Em que medida a filosofia reabilitaria tal ideal de ciência em um contexto que (como mostrei, mesmo Heidegger reconhece) lhe é hostil, e como a rendição ao labor investigativo poderia suplantar (ou mesmo ser condição para) as discussões públicas na tentativa de modificar ou renovar a universidade, nada disso entra em questão. A universidade seria o contexto institucional onde este modo de vida científico se desdobra, mas para o qual este mesmo modo não se volta. Seja para pensá-lo em suas transformações e rumos possíveis, seja para mostrar-se em um diálogo com as demais “especialidades”, seja para discutir sua própria prática. Seja para realizar radicalmente a possibilidade “de tomada e transformação da consciência natural da vida”. Tornando mais claro: trata-se de realizar o movimento interpretativo de questionar a que demandas a afirmação de cientificidade para a filosofia se vincula e de perguntar se Heidegger corresponde a certas demandas em particular. Se a filosofia pretende ser uma ciência, então ela deve se comprometer com tais e tais questões. Num primeiro momento, indiquei com quais tipos de questões (pré) teóricas Heidegger se enfrenta – sem avançar na análise de se o mesmo consegue viabilizar suas pretensões de conceitualização da vida. Num segundo momento, busquei estabelecer que o compromisso da ciência da origem com a sua institucionalização é um dos temas que devem ser seriamente levados em conta. Não apenas porque esta era uma das preocupações das ciências já “estabelecidas” da época, mas, sobretudo, porque se pode detectar como um tema relevante inclusive para Heidegger. Em que medida este é um tema fundamental tratado de forma insuficiente, foi a questão que conduziu a exposição crítica do capítulo anterior. Fundamentalmente, perguntar pela natureza da universidade aponta para as questões em torno da organização coletiva do trabalho científico140. Do mesmo modo, também entram jogo as questões sobre o pertencimento do indivíduo a esta coletividade. No caso da filosofia, esta situação se apresenta de um modo crucial. Em primeiro lugar, porque a natureza da organização coletiva do trabalho filosófico é faticamente distinta de muitas ciências. Sua 140

Em que medida também se aponta para a repercussão da investigação filosófica na sociedade, tendo a Universidade como “mediadora”, é uma temática que, dada a restrição dos interesses deste trabalho, não será alvo de uma consideração mais aprofundada.

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institucionalização não impõe a constituição de laboratórios, de um aparato observacional e de uma divisão do trabalho relacionada a estas instâncias, por exemplo. Efetivamente, o cientista que faz filosofia não tem sua atividade normatizada e uma pertinência ao trabalho coletivo do mesmo modo do que um físico ou um bioquímico. Por outro lado, porque, como indiquei, Heidegger assinala que para o filósofo entra em questão certo tipo de motivação individual que o conduz a um questionar radical pela vida. Neste sentido, a Berufsfrage, tal como Heidegger a formula, nos conduz ao cerne da questão: como é possível manter o hábito da veracidade absoluta? Ou, tendo em vista a discussão indicada, como o filósofo conserva em si esta motivação radical?Além disso, como este indivíduo radicalmente motivado é pertinente a uma coletividade? Em que medida a vocação atinente ao(s) filósofo(s) se conjuga (ou não) coletivamente? Como se organiza o trabalho coletivo em filosofia a partir desta concepção da vocação a ser vivida pelo filósofo? Para tanto, pode-se antever como tarefa imperativa caracterizar como Heidegger concebe, ou o que se depreende das descrições heideggerianas, ser a figura do cientista filósofo, ou daquele que investiga em filosofia. De saída, o caminho a ser seguido não será o de buscar evidenciar a estipulação sistemática de regras de conduta para investigar em filosofia ou a formulação de diretivas que caracterizam o ethos filosófico141, visto que este procedimento resultaria inócuo no caso de Heidegger. Tratar-se-á, antes, de retomar as indicações sobre a radicalidade da ciência da origem e buscar compreender como está caracterizado para Heidegger o motivo que impulsiona fundamentalmente o perguntar filosófico. A partir disso, a relação entre filosofia, ciência e vida será tematizada no que diz respeito às questões sobre a vida científica, sobre o vinculo entre o cientista e a ciência enquanto uma atividade coletiva.

4.1A ciência como paixão Ao final do segundo capítulo, concluí que, dadas as indicações de Heidegger sobre a radicalidade da ciência de origem, a possibilidade de saída da situação natural cotidiana representada pela ciência requer outro modo de estar nas relações vitais. Sobretudo, que esta possibilidade se apresentaria de modo mais terminante para aquele que investiga ao modo

141

Para um exemplo de como a constituição de um ethos científico, da tentativa de traçar um perfil do homem da ciência era um tema que pode ser destacado entre as preocupações dos cientistas já na metade do século XIX, no caso na Inglaterra vitoriana de Willian Clifford, cf. Miguel (2009, capítulo 3).

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desta ciência. Gostaria de trazer mais elementos142 para patentear o argumento de que questionar ao modo da ciência originária supõe uma apropriação radical de si mesmo.No curso do semestre de inverno de 1921/22, Heidegger, ao discutir a expressão “filosofia científica”,faz a seguinte afirmação: “„Ciência‟ pode ser tomada em um sentido formal, onde significa uma „paixão‟ – então as ciências não são tão científicas quanto a filosofia” (GA61, p.46). Por sua vez, esta afirmação faz referência a uma outra, na qual Heidegger indica que esta paixão se desvirtua quando tomada em uma direção vivencial nebulosa: “Já de há muito não conhecemos essa paixão (efetiva) como o único caminho para o filosofar. Imaginamos ter feito alguma coisa quando explicitamos e nos representamos o mundo „profundamente‟, estando em uma relação com este ídolo” (GA61, p.36). Esta afirmação é feita no contexto da consideração de Heidegger das dificuldades na tarefa de determinação do conceito de filosofia. O tema é desdobrado a partir da análise de dois tipos de problemas: o de superestimação e o de subestimação da tarefa de definição. Neste caso, se trata de subestimar a tarefa de definir o que é filosofia, uma vez que se a considera como uma vivência. A filosofia, o que ela é, é algo que deve ser “vivenciado”. Heidegger indica diversas confusões subsumidas a este tipo de posição, destacando-se nesta direção uma crítica ao presente. Ou se designaria uma atividade introspectiva, ou uma posição pseudo-profética sobre temas considerados relevantes143 na “atualidade”. Conjugada com a crítica a outro modo de subestimar a questão – a que considera que esta poderia ser resolvida apenas voltando-se para o trabalho concreto, ao modo das demais ciências – está a constatação de que estas posições apontam para a necessidade de compreender o modo de questionar radical em filosofia. Logo, ao definir a ciência como uma paixão, Heidegger tenderia a reforçar que, antes do que um entusiasmo passageiro, silente ou grandiloquente, se trata de uma situação de entrega. As palavras finais do curso de 1920 são incisivas, e Heidegger reforça o sentido de radicalidade da relação entre filosofia e vida a partir de uma interpretação da noção platônica144 de Eros. De acordo com Heidegger:

142

Para além das considerações já encetadas na última seção do capítulo 2

143

Neste sentido, Heidegger afirma criticamente, referindo-se também, a meu ver, à posturas como as assumidas por Brunetiére: “Ali onde se enfatiza assim o „vivenciar‟, tal filosofia deve permanecer em si mesma de maneira privada, e não se faz sentido empreender qualquer discurso ou escrita, ou então ela deve ser da opinião de que o mundo compartilhado deve ser levado a tal vivência através de algum truque; por isso os livros estão bem providos, o estilo do discurso é „admirável‟, totalmente apropriado para as necessidades da época, isto é, hoje, de modo mais religioso e metafísico possível” (GA61, p.36). 144

Para um estudo da relação entre Heidegger e Platão, além de um apanhado sobre as referências de Heidegger a Platão em seus cursos, ver Partenie e Rockmore (Eds.) (2005).

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A atitude verdadeiramente filosófica não é nunca a de um tirano lógico que fixa seus olhos na vida, intimidando-a, mas sim a do Eros platônico. Mas este tem uma função muito mais viva ainda que em Platão. O Eros não é somente um fundamento motivador da filosofia, senão que o exercício filosófico mesmo exige um entregar-se às tendências últimas da vida e um retroceder aos seus motivos últimos. A atitude mais oposta da atitude fenomenológica é um sujeitar-se firmemente a algo. Tal filosofia exige antes um entregar-se à vida, mas não a sua superfície. O que se exige é um aprofundamento do si-mesmo em sua originariedade (HEIDEGGER, GA58, p. 263).

O modo como na filosofia se considera a vida como tema exige um aprofundamento radical no si-mesmo. Curiosamente, à requisição de profundidade desta entrega, está a advertência de que a atitude fenomenológica é contrária a certo tipo de fixidez e de aferramento diante da vida. Em que medida tal apropriação de si e da vida não significa uma propriedade, uma posse estável?Como esse aprofundamento pode ser condição para o exercício filosófico? Em outra passagem do curso, Heidegger aborda este sentido de entrega a partir do comentário acerca da tendência de “absolutização acrítica da ideia de ciência e do modo em que esta repercute em todos os âmbitos da vida” (GA58, p.23). Trata-se de apontar para o perigo de ver toda a problemática filosófica em torno do problema da constituição da ciência (como na teoria do conhecimento de inspiração kantiana), bem como de um domínio inexaminado deste tipo de visão científica em todos os âmbitos da vida. Neste sentido, Heidegger afirma: A fenomenologia choca com isso desde dentro, pois não é um tipo de filosofia como a que Nietzsche, sem possuir claridade nenhuma a respeito, combatia – uma filosofia e uma ciência que não são amor à sabedoria, à vida, mas sim um ódio oculto e invejoso que se demonstra mediante os vínculos fictícios de formas racionais – mas sim que tem uma atitude fundamental de um acompanhar o autêntico sentido da vida, de ajustar-se a ele compreensivamente, de superar a divisão, intensificando-a mediante a humilitas animi. (HEIDEGGER, GA58, p.23)

Mais uma vez, Heidegger insiste em que na fenomenologia vigora certo tipo de atitude, um fundamento mobilizador que a faz buscar compreender a vida a partir de sua dinâmica própria, de ir-com seu genuíno sentido. Uma ciência da vida que resultaria em sua intensificação, e não uma paralisação ou enfraquecimento. Às ciências que se executam a partir de um desvencilhamento da vida145, Heidegger contrapõe o movimento fenomenológico de acompanhamento, de ajuste compreensivo, de reconciliação entre conceito e conceituado. À tirania ou ao ódio oculto, se apresenta a humilitas animi. Indica-se, pois, a humildade como postura tanto existencial quanto intelectual, no qual o desprendimento146do mundo cotidiano,

145 146

Sobre este tema, cf. Capítulo 1, seção 1.1

Em um curso que não chegou a ser ministrado, denominado de Os fundamentos filosóficos da Mística Medieval, Heidegger afirma: “Realização da humilitas por meio do desprendimento” (GA60, p.309). Aqui,

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ou do mundo da vida, antes de uma separação,conduz um radical conhecimento de si e da vida147. A apropriação radical si como base fundamental para o conhecimento é um tema ao qual Heidegger retorna ao interpretar a frase de Santo Agostinho “crede ut intelligas”148. Para Heidegger, a experiência do cristianismo primitivo149e sua retomada por Agostinho em escritos como Confissões e Cidade de Deus permitem ver um crescente papel decisivo que o mundo próprio possui para a vivência cristã (GA 58, p.61-62)150·. Destaca-se que o desejo de

citando o comentário de Ficker, Heidegger faz referência ao pensamento de Lutero, salientando que este desprendimento não é um fruto apenas de algum tipo de inibição à harmonia ou à alegria segura da Fiducia, mas, uma vez que está em conexão com a Tribulatio, pode propiciar uma expressão mais profunda da certeza da salvação. 147

Aqui não posso explorar satisfatoriamente esta temática, que, ademais, se vincula fortemente com os estudos de Heidegger sobre a tradição da mística medieval e de Lutero. Não obstante, a importância da influência da mística e do luteranismo no pensamento de Heidegger não deve ser subestimada, e isso pode ser visto a partir da profusão de trabalhos que discutem minuciosamente esta influência. Contento-me em seguir as indicações de Heidegger e de Kisiel (1994, p.108), MacGrath (2006) e de Camilleri (2008), que ressaltam a humilitas animi como um comportamento na base da atitude fenomenológica, não apenas na vivência religiosa ou objeto de uma fenomenologia da religião. Destaca-se na humildade a atitude de despojamento do mundo cotidiano em busca da simplicidade e essencialidade. Em que medida isso supõe uma entrega e um trabalho ativo, um movimento de atividade e passividade apresenta uma tensão que, como bem ressalta MacGrath (p.138), é central para a vida mística. Para Camilleri, a humildade, além disso, seria o afeto fundamental em que mística e fenomenologia coincidiriam no jovem Heidegger. Ao contrário de, por exemplo, Clifton-Soderstrom (2009), que destaca uma influência que vai de Eckhart a Lutero, Camilleri (2008, p.580) vê na valorização heideggeriana da humildade uma semelhança com a posição de São Bernardo de Claraval, na qual esta é considerada em contraposição do orgulho filosófico, a um saber que nada edifica e se preocupa apenas em mostrar-se soberbo e envaidecido de sua eloquência. Para São Bernardo, a humildade se apresentaria como o primeiro degrau em direção à verdade: ao desvincular-se do inessencial, o homem permite um retorno a si mesmo, abrindo o campo próprio a partir do qual Deus pode agir. Ao movimento contrário da eloqüência vazia, se vincula também o da busca pela simplicidade. Uma questão que poderia ser desenvolvida nesta aproximação entre fenomenologia e mística pelo tema da humilitas animi, seria a de em que medida a humildade poderia estar vinculada à máxima fenomenológica do “ir às coisas mesmas”, por exemplo. 148

A transição do tema da humilitas animi para o crede ut intelligas não é tão esquemática quanto pode parecer. Segundo Kisiel (1995, p.106), uma das bases do comentário heideggeriano sobre Agostinho é a interpretação de Dilthey sobre este ponto no livro A introdução às ciências do espírito “O famoso crede ut intelligas quer dizer, antes de mais nada, que a experiência plena deve preceder à análise para que esta seja criadora. O conteúdo distintivo desta experiência cristã se encontra sobretudo na humildade que se funda na severidade da consciência julgadora” (Dilthey, p.249) 149

Flamarique (2013) é precisa na indicação do que está em jogo na atenção dada por Heidegger ao cristianismo primitivo: “(...) é na religião cristã primitiva, e não na teologia, onde se reconhece a religiosidade como vivência fática. O que vincula a experiência do crente à vida fática, a vida de verdade, é o caráter preocupado da vivência do crente. (...) A preocupação do existente fático se corresponde com a intranquilidade constitutiva pela historicidade” (p.120-121) 150

Sobre o interesse de Heidegger em Santo Agostinho, refiro-me apenas ao contexto que entra em questão nesta discussão. Os temas de interesse e interseção entre os dois pensadores são muitos, e para muitos autores são capitais para o desenvolvimento da analítica existencial. Heidegger inclusive dedica um curso nos anos iniciais de Freiburg ao estudo do pensamento agostiniano – Agostinho e o Neoplatonismo (GA60). Como bem aponta Flamarique (2013, p.117), em um comentário que quiçá também justificaria uma consideração mais detalhada da relação Heidegger-Agostinho para o propósito da discussão deste trabalho, neste curso “Heidegger apresenta o filósofo cristão como um exemplo da dificuldade implicada na articulação da experiência viva do cristianismo com um sistema filosófico, neste caso o neoplatonismo”.

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conhecer a Deus se direciona para a necessidade do conhecimento de si-mesmo. Neste sentido, assim interpreta Heidegger a sentença agostiniana: “Crede ut intelligas”: vive vivamente a ti mesmo – e, somente sobre este fundamento experiencial, tua última e mais plena auto-experiência, se funda o conhecimento. Santo Agostinho viu no “inquieto cor nostrum” a grande e incessante inquietude da vida. Ganhou um aspecto totalmente originário e não somente de forma teórica, mas sim que viveu nele e o levou a expressão. (HEIDEGGER, GA58, p.62)

O tema da crença como base para o conhecimento de Deus e das Escrituras é interpretado por Heidegger como correspondendo a um imperativo, a uma convocação para uma profunda experiência de si. Antes de uma fé desprovida de questionamento, os escritos de Agostinho apontam para a conjugação da vivência religiosa com a dimensão inquietante da vida. Contudo, também não se trata somente de outorgar à vida uma inquietação constitutiva por meio de uma descrição. Agostinho não apenas apontou para o caráter inquietante da vida, como viveu esta inquietação na forma do questionamento. Na citação, se constata que Heidegger vai mais além, e não restringe o motivo do “intelligas” apenas ao contexto religioso. O “inquieto cor nostrum”, na consideração heideggeriana, assumiria como formas tanto a vivência religiosa quanto o exercício investigativo que busca conhecer algo151. E ambas suporiam uma auto-experiência radical. Como se dá esta experiência de si? O que significa este aprofundamento originário em si mesmo? Ele é algo místico, ou a que se pode aceder através de um método? Como se apresenta esta condição para a investigação filosófica? Heidegger não possui uma teoria da humilitas152, mas busca caracterizar a atitude fundamental do “vivo acompanhar o autêntico sentido da vida” de modo compreensivo e expressivo a partir de certas indicações. Na afirmação seguinte ao comentário sobre como a fenomenologia dista de uma filosofia avessa à vida, Heidegger determina, no que tange ao investigador, o que significa a atitude fenomenológica que se dá por intermédio da humilitas animi: Isto se encontra, desde a disposição viva do investigador, na ideia da ciência da origem, do dispor-se nas motivações vivas e nas tendências do espírito – do élan vital, contudo, em um sentido distinto ao místico e confuso de Bergson. Mas o que se decide aqui – sobre o modo e os limites de uma repercussão efetivamente viva – é a convocação interna [innere Berufung] e o auto-exame. Por isso que o dito, quiçá em voz já demasiado alta, deve ser suficiente. O único modo em que está permitido

151

Voltaremos a este tema na seção final do presente capítulo, ao comentar o tema da motivação da filosofia para Heidegger. 152

Ou uma consideração mais sistemática sobre este ponto, a exemplo de Bernardo de Claraval, cujo primeiro escrito se chamou Tratado sobre os graus da humildade e da soberba de 1127.

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romper este silêncio é o trabalho efetivo e imperturbável “nas coisas”. (HEIDEGGER, GA58, p.23-24, acréscimo meu)

Aqui temos uma indicação precisa acerca de como Heidegger conduz a temática da apropriação de si como base para a investigação filosófica. Faz parte do ideal da ciência da origem constituir-se como uma investigação que coloca em questão radicalmente a vida daquele que investiga. Ela supõe uma entrega, um pesquisar que se mantém constantemente vigilante acerca do que lhe motiva, que busca constantemente uma aclaração última e um questionar que sempre se renova. Visa-se um acompanhamento da dinâmica vital que não é apenas contemplação ou ainda captura. Por outro lado, se trata de uma entrega, de um crescente aprofundamento, de uma atitude de desprendimento que busca o simples, o genuíno. Todas as formulações de Heidegger a este respeito esbarrariam não apenas em uma acusação de que se trataria de uma vivência religiosa ou mística, mas em um limite enunciado pelo próprio filósofo: o modo como se efetiva vivamente o que está indicado no ideal de ciência da origem pertence aos domínios de uma chamada interna, ou vocação, e também do autoexame. Como se personifica tal ideal de vida investigativo-filosófico é algo vinculado à existência concreta de cada um que aponta, não obstante, para uma exortação ao conhecimento de si e um exame das inclinações que nos definem. Heidegger inclusive é bastante incisivo ao afirmar que sobre esta questão o pouco que se fala já deve ser considerado muito. Não há e não pode haver diretivas para isso, se deixa ao foro íntimo de cada um. Se a repercussão na vida da universidade é um assunto deixado em aberto por Heidegger, a repercussão da filosofia na vida daquele que investiga não deve por princípio ser alvo de maiores considerações. Bem entendido, o fundamento motivador da filosofia é considerado tão determinante quanto seu próprio aparato conceitual e metódico. À invocação, contida na ideia de ciência da origem, para que se pesquise radicalmente em filosofia, Heidegger conjuga o apelo para a assunção de si. Entretanto, o rogo pela vida vivenciada radicalmente na forma da pesquisa científica não é seguido por nenhum oferecimento de auxílio para concretizá-lo; se trata de uma tarefa que cabe a cada existência individual. Para ser mais precisa, há apenas uma indicação a partir de onde estas questões devem ser consideradas: a partir da relação direta com o trabalho desempenhado, no trato com aquilo que se investiga. A meu ver, o “trabalho imperturbável nas coisas” que dá voz ao que não pode ser alvo de maiores considerações, explicações ou instruções, possui um duplo papel: o de tornar transparente para si e para os outros se a apropriação radical, se o conhecimento de si, dos motivos e pretensões que conduzem a investigação e a vida daquele que investiga, são

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de fato operantes. Na ciência da origem, a apropriação radical de si não se reduz ao mistério, mas deve se expressar através do trabalho investigativo. Sobre o modo como se efetiva tal auto-transparência pouco ou nada se pode falar. Contudo, esta se manifesta na condução e no que é obtido, nos resultados, do labor investigativo. Logo, para Heidegger, o trabalho científico não se executa propriamente se sua motivação se dá somente em resposta às demandas materiais, pressões sociais, a uma arregimentação disciplinada ou traduz certo tipo de vaidade intelectual. Há um componente ineludível na possibilidade de colocar o mundo em questão que se aponta como atinente a cada existência em particular - sob o título que poderíamos aqui qualificar153 de vocação. Ainda, se indica que a vocação em filosofia possui um papel ainda mais fundamental. Trata-se de que a vocação para o conhecimento do mundo manifesta a vocação para o conhecimento de si, para a assunção radical do que se é, para a clareza acerca do que se visa investigar e do que lhe motiva. Heidegger enuncia que tal movimento é fundamentalmente determinante para a filosofia, mas se previne de prescrever como isso deve acontecer para o indivíduo que visa pesquisar em filosofia. Entre as tarefas da ciência da origem não está uma consideração mais aprofundada sobre tal fenômeno; este movimento de transformação existencial deve ser conduzido por cada um. Não obstante, a vocação para questionar fenomenologicamente a vida se mostra a partir do próprio trabalho investigativo, onde a vida surge por fim intensificada e compreendida em sua origem. Em que medida se pode avaliar a partir daí a exigência de radicalidade da apreensão de si? Se a vocação, ou a vida daquele que investiga, é inseparável da investigação e nela se expressa, mas permanece como um fenômeno vivido concretamente por cada um em particular, a partir de que parâmetros se pode afirmar que está em jogo ou não uma apropriação radical na interpretação?Heidegger parece tornar dependente a originariedade da interpretação da radicalidade da apropriação de si. Quais os efeitos disso para esta ciência? De que modo se compartilha – dado que a apropriação de si sugere justamente um movimento de individuação e recusa qualquer prescrição geral – ou se vivencia conjuntamente esta apropriação radical? Se se pensa que a resposta a esta pergunta está no caráter público exposto na investigação, em seus resultados ou no discurso produzido, ainda assim se impõe a questão sobre como comparar ou avaliar, ou mesmo reconhecer que está em jogo uma investigação que se faz sob a demanda da apropriação radical de si. Ainda, uma vocação radicalmente

153

Para continuar conduzindo a questão nestes termos, contando, entretanto, com que o leitor tenha em mente a caracterização, que conjuga mais elementos, desdobrada nesta seção.

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exercida em filosofia garantiria automaticamente o “êxito” da descrição, do trabalho investigativo?154 Se quisermos ir por outro caminho, como se pode incentivar, incitar ou estimular em outros uma auto-transparência sobre aquilo que se visa investigar? Evidentemente, aqui não é satisfatório entregar uma resposta pronta sobre o tema a ser pesquisado. Além disso, na caracterização da ciência da origem se insinuou que a possibilidade de saída da situação natural propicia uma radical apropriação de si em termos de um estar problematizante nas relações vitais, que requer uma reconfiguração constante do que é legado. O moto da humilitas oferece mais nuances a esta caracterização de “saída” ou de interrupção no vivenciar. Assim, há que se perguntar: qual o impacto desta apropriação radical na vivência comum da vida científica? De que modo se constituiria uma comunidade de pesquisadores radicalmente motivados ou vocacionados? A exortação para a apropriação de si, ou o conhecimento de si, contribui para o trabalho coletivo em filosofia?O aprofundamento no si mesmo conduz a que tipo de relação para com os demais investigadores? Em que medida este próprio trabalho se veria reconfigurado? De que modo o radical “trabalho imperturbável nas coisas” reverbera ou atinge o trabalho de outros ou como se trabalha em filosofia? Neste ponto, sugere-se que o que entra em questão seria sobretudo a exemplaridade da vida investigativo-filosófica. A exortação ou o incentivo à vida científica adviria não em forma de preceitos, mas como exemplo, como resultante da execução do trabalho motivado radicalmente. Aqui, para levar em consideração as perguntas anteriores, é central a discussão de Heidegger acerca de em que medida a ideia de uma ciência da origem poderia ser determinada recorrendo-se a uma consideração da personalidade do filósofo. O desenvolvimento deste tema também problematizará a ênfase dada à noção de ciência como investigação enquanto elemento determinante para a ciência da origem.

4.2Ciência originária e atitude científica

No curso sobre a ideia de filosofia de 1919, Heidegger distingue filosofia de visão de mundo, insistindo que não se trata nem de uma identidade, nem de que uma se apresentaria

154

Neste sentido, considerar o tema da crítica em fenomenologia sobre a originariedade das interpretações, a destruição, de análise crítica dos motivos que conduzem as interpretações e como estes se mantém ou não na direção para o qual tendem, responderia apenas em parte a esta questão. Heidegger parece pressupor que a radicalidade da apropriação de si inevitavelmente conduziria à concepção sobre a vida exposta pela fenomenologia, ou que o procedimento genético que aponta para a interpretação mais originária sobre o fenômeno invariavelmente coincide com a interpretação fenomenológica (e heideggeriana) deste.

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como a tarefa final da outra. Filosofia não é a formulação de uma visão de mundo, nem mesmo tem como tarefa elaborar uma visão de mundo como culminância de suas investigações. A filosofia deve ser uma ciência, e uma ciência originária. Isto posto, passa-se a outra questão: qual o procedimento que permite obter os elementos que caracterizam esta ideia? Para onde deve se voltar aquele que busca definir a ideia de filosofia como ciência originária155?Que procedimento permitiria caracterizar uma ciência que pretende ser originária, que se pretende principial? Qual seria seu ponto de partida? Ou, como afirma Heidegger, o problema se assenta “antes de tudo, na busca de um procedimento metodológico que garanta um acesso seguro aos elementos essenciais da ideia de filosofia como ciência originária” (GA56/57, p. 23). Neste percurso, se apresentam alguns candidatos como, por exemplo, a história da filosofia. Em linhas gerais, determinar a ideia de filosofia como ciência originária seria uma tarefa levada a cabo a partir da explicitação do forte vínculo mantido entre filosofia e ciência desde os primórdios da filosofia. Não apenas porque haveria uma identidade entre filosofia e ciência em seu início grego, como também porque se poderia testemunhar diversas tentativas ao longo de sua história de conferir um estatuto científico à filosofia. Logo, nada mais inteligível do que localizar comparativamente tal proposta em relação a outras propostas ao longo da história da filosofia – sobretudo com relação a um ideal de ciência que se consideraria ter sido predominante ao longo dos tempos – e a partir disso procurar compreender o que estaria em jogo na ciência originária. Heidegger não vê nesta uma boa solução por várias razões, entre elas, por exemplo, pois subsistiria certa arbitrariedade na decisão sobre quais tentativas e filosofias devem ser examinadas.Ou,ao indicar que a própria ideia de filosofia visada é necessária para que se compreenda a história,o que permitiria inclusive delimitar o que pertence à história da filosofia ou não. Por outro lado, a tentativa de conquistar a ideia de filosofia a partir da história poderia ser vista como conduzindo fatalmente ao fracasso, dada a dificuldade de conjugar sistemas, doutrinas, teorias e formulações em torno de um conceito comum. Outra solução que assim se apresentaria, seria a de considerar um fator unificante desta diversidade que não pertencesse à análise dos conteúdos de cada filosofia. Assim, por exemplo, poder-se-ia pensar em caracterizar o que faria parte da atitude filosófica enquanto tal, o caráter essencial do filósofo. Na recusa heideggeriana deste tipo de ênfase na personalidade do filósofo para a

155

Este procedimento enceta outros problemas, como o da circularidade de fundamentação de uma ciência originária, aos quais já aludi brevemente. Cf. primeira seção, capítulo 1.

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caracterização da ideia de ciência originária se mostram elementos para pensar tanto sobre a exemplaridade para a filosofia quanto, inclusive, no acento dado até aqui para a ciência da origem como possibilidade investigativa de por a vida em questão. Heidegger conclui sua exposição sobre este tópico com as seguintes afirmações: A ideia de ciência originaria não pode ser extraída de uma atitude científica do espírito. Com isso não se nega que à filosofia como ciência originária também corresponda um certo tipo de relação peculiar e original com a vida, e isto inclusive no sentido apontado, como no caso de uma consitutição espiritual típica. Mas este fenômeno pode ser abordado de modo completamente significativo somente com base na constituição da ideia de filosofia e partindo das motivações que surgem da execução vital desta ideia (HEIDEGGER, GA 56/57, p.23)

A tentativa de caracterizar a ideia de ciência originária a partir do filósofo como personificação de um tipo de atitude diante da vida falha porque precisa da caracterização da ideia de filosofia como ciência da origem. Heidegger é claro ao negar que a ideia de ciência não pode ser extraída de uma atitude científica do espírito. Em que medida esta negação sobre o caminho a ser percorrido para determinar a ideia de filosofia como ciência originária apresenta, portanto, uma recusa da ênfase dada até aqui na atitude investigativa como central para a ideia de ciência originária?Por que se declina do procedimento de buscar na figura do filósofo um campo para definir a cientificidade originária da filosofia? Em que sentido, portanto, se poderia pensar que se trata de apelar para um modelo exemplar de trabalho em filosofia quando entra em questão a radicalidade da ciência filosófica? Em primeiro lugar, é preciso reconstruir em linhas gerais a argumentação desenvolvida por Heidegger até a conclusão exposta na citação. Inicialmente, Heidegger faz uma distinção sobre o que estaria em jogo neste tipo de proposta: “a indagação não se dirige neste caso à individualidade histórica e humana da personalidade do filósofo, mas ao filósofo mesmo, na medida em que expressa um tipo particular de espiritualidade (...)” (GA, p.22). Neste sentido, a vida do filósofo entra em questão na medida em que este personifica uma configuração típica, um tipo de figura e não seus elementos biográficos, por exemplo. A filosofia poderia ser definida a partir de uma atitude e um modo de experiência do mundo comum encarnada pelos filósofos. Heidegger tem em conta sobretudo a definição do sociólogo alemão Georg Simmel156. Simmel, segundo Heidegger, define a filosofia a partir da inversão da caracterização da arte: a arte é a imagem de mundo (Weltbild) vista através do

156

Que Heidegger leve em conta a posição de Simmel ao início de suas considerações sobre a ciência originária não é um fato que deveria causar surpresa, sobretudo se tivermos em mente o comentário de Gadamer em Verdade e Método, no qual este testifica a importância deste para Heidegger em temas-chave de sua filosofia (Cf. GADAMER, 1999, p.369, nota 138).

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temperamento de alguém. A filosofia, por sua vez, é um temperamento visto através de uma imagem de mundo. Heidegger analisa criticamente esta concepção em três direções157. Por um lado, este tipo de procedimento se enquadraria no mesmo tipo de problema na solução via a história da filosofia: a dificuldade em relação ao critério para selecionar as personalidades ou temperamentos considerados filosóficos. Em segundo lugar, se ressalta que “É fácil de ver que o conceito de filosofia coincide aqui com o criador de uma visão de mundo original” (GA, p.23). Com efeito, a recusa de Heidegger a este tipo de compreensão da filosofia se deve em grande parte pelo estreito vínculo estabelecido entre filosofia e visão de mundo. A filosofia seria o veículo de uma visão de mundo personalista, a projeção de crenças, valores e da atitude frente ao mundo do filosófo. Originariedade se confundiria com a originalidade da vivência de mundo do filósofo e com a aptidão para articular esta vivência discursivamente, de modo a servir como guia para a ação própria e dos outros. A terceira direção crítica de Heidegger se dá na insistência de que este tipo de concepção retira todo o caráter de verdade da filosofia – ao qual a ciência originária aspiraria. O valor da filosofia residiria em si mesma, em ser a expressão de um caso de consciência típica. O propósito filosófico não seria o de chegar a uma clarificação sobre o que visa discorrer, mas se alia ao de mobilizar o maior número de pessoas, de impor sua concepção de mundo a algum grupo, por exemplo. Neste sentido, Heidegger observa: Como conseqüência desta concepção de filosofia resulta impossível aferir o logro filosófico total e significativo de acordo com o conceito científico de ciência e perguntar em que medida a doutrina em questão está de acordo com o objeto, com o ser. (HEIDEGGER, GA56-57, p. 23)

Logo, uma filosofia seria avaliada não pela veracidade do conteúdo objetivo de suas proposições, mas por outros critérios, como o da originalidade e utilidade. Heidegger insiste que, mesmo que nesta posição não se identifique o filósofo com o criador de uma visão de mundo original e se queira manter a suposição de que um filósofo científico158 também deve ser levado em conta, o que estaria em jogo seria um conceito não-científico de verdade: “(...) um conceito de verdade que, sem dúvida, possui um sentido em determinadas esferas da vida, mas não em relação com a ideia de ciência como ciência originária” (Ga56/57, p. 23). Ou

157

Heidegger comenta a definição de Simmel, sem citá-la nem referir sua fonte. Trata-se do livro de 1910, Hauptprobleme der Philosophie (in: Georg Simmel Gesamtausgabe, volume 14, pp. 7-157). Aqui me limito em apresentar o comentário e a crítica de Heidegger, sem aprofundar a temática a partir de e no próprio escrito de Simmel. Para uma análise deste escrito mais atenta do que a heideggeriana, ver o artigo de Lehtonem e Pyyhtinen (2008), On Simmel‟s conception of Philosophy. 158

Aqui Heidegger se refere ao conceito de filosofia científica. Cf. capítulo 1, nota 89.

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seja, mesmo que se conceda que a concepção aludida não retira totalmente o caráter de verdade da filosofia, todavia, ao relacioná-la direta ou indiretamente com a formulação de uma visão de mundo, não se estaria em condições de determinar corretamente a noção de verdade científica adequada à ideia de filosofia como ciência originária. Deste modo, Heidegger conclui que a ideia de ciência originária não pode ser extraída de uma atitude científica do espírito. Considero que esta afirmação não exclui a centralidade da atitude investigativa para a filosofia; antes, a crítica a Simmel ressalta o vínculo à “veracidade absoluta” – pertencente ao movimento de saída da vivência cotidiana do mundo – e se identifica muito mais com uma recusa de qualquer traço cosmovisional na determinação da filosofia como ciência. Por outro lado, temos a afirmação de que o fenômeno referido por Simmel somente pode ser considerado a partir da própria ideia de filosofia como ciência requerida. Por sua vez, não se descarta a concepção de que a filosofia mantenha uma relação peculiar e original com a vida, nem que o filósofo possa ser visto como personificando certo tipo de relação com a vida. Mas, novamente, Heidegger torna dependente a compreensão deste fenômeno da ideia de filosofia como ciência originária. Pois bem, com base no exposto até agora, a relação referida entre filosofia e vida se dá de modo a buscar um acompanhamento, uma intensificação dos contextos situacionais vitais (e, com isso, a busca conceitual-metódica adequada ao seu „objeto‟). As indicações de Heidegger sobre a insuficiência da concepção de Simmel destacam a importância dada à tarefa de determinação verdadeira daquilo que filosofia visa explicitar. Neste sentido, a figura que aqui se depreende da vocação do filósofo coincide com o problema indicado na Berufsfrage: trata-se da atitude que busca uma aclaração radical, que visa manter-se em uma relação de veracidade absoluta diante da vida. É este o tipo de conduta personificada pelo filósofo. E a generalidade desta tipificação é restrita, na media em que o radical aprofundamento no si mesmo requerido por esta vocação não é algo que se pode conduzir ou oferecer uma caracterização geral. Trata-se de uma decisão intransferível e, aparentemente, individual. A possibilidade de investigar radicalmente a vida repousa na vocação pela veracidade absoluta. Logo, o que enraizaria fundamentalmente esta paixão como um hábito não seria propriamente o contexto institucional ou a interação entre os investigadores159. Ater-se a este 159

Aqui, para fazer jus às indicações heideggerianas, mesmo que de modo restrito aos limites deste trabalho, é importante referir ao tema do método. A veracidade absoluta como hábito se cultiva através do método. Em que medida o método fenomenológico pode pautar o trabalho coletivo em filosofia, porém, não é uma questão tão facilmente respondível nem mesmo por Heidegger (cf. nota 115). As dificuldades são agravadas, pois aqui o sentido de método não pode ser imediatamente ligado à posse ou exercício de uma técnica ou um sentido de

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ideal de veracidade é uma decisão que constantemente se renova, primordialmente, ao que parece, com a execução do trabalho concreto no qual investigador se vê implicado e não na constituição ou mantenimento da cotidianidade de uma comunidade filosófica. Ainda, Heidegger indica na citação que conclui sua análise da posição de Simmel que a compreensão desta não apenas depende da ideia de ciência da origem, mas também que se deve partir das “motivações que surgem na execução vital desta ideia”. Que motivações seriam estas? O que motiva a ideia da filosofia como ciência? Em que conexão está o motivo da filosofia com a vocação filosófica?

4.3Questionabilidade e inseguridade da vida

Ao final do curso do semestre de verão de 1920, Fenomenologia da intuição e expressão, na conclusão da interpretação das filosofias de Natorp e Dilthey160, Heidegger afirma que a existência fática, o ser-aí, não é viabilizado como problema filosófico nestas duas posições. A razão para tanto é a de que o motivo fundamental da filosofia não teria sido levado em conta como tarefa destas filosofias, gerando não apenas uma incorreção nas análises, mas no modo de conceitualizar161 a vida. Além disso, o esquecimento ou desconhecimento daquilo ao que a filosofia visa produz duas decisões impróprias para a investigação filosófica: ou constituir-se como o conhecimento em sentido teórico ou uma visão de mundo. Evidentemente, Heidegger não se limita às considerações negativas, mas qualifica o que designa como o motivo fundamental da filosofia. Ao comentar que o rigor filosófico é mais primordial do que o das outras ciências, Heidegger vincula o rigor filosófico

compartilhamento imediatamente expresso. Isso não significa que o método seja automaticamente o ponto mais “frágil” da filosofia de Heidegger. Atualmente, por exemplo, há um esforço em desenvolver as indicações heideggerianas e examinar casos de suas análises ontológicas, a fim de mostrar de que forma o método é operativo na filosofia heideggeriana. Por exemplo, se pode referir a investigações que, neste intuito, mostram (a partir da articulação de descrições do período de Ser e Tempo) que não se pode afirmar sem mais que o método fenomenológico-hermenêutico envolve uma recusa ou não desdobramento de vias justificativo-argumentativas de suas interpretações (cf. Reis, 2014). 160

Grosso modo, Heidegger problematiza neste curso a teoria da formação de conceitos em fenomenologia. Uma parte importante é dedicada ao conceito de destruição fenomenológica. Não apenas nas indicações sobre como tal procedimento operaria e de sua importância para o método fenomenológico, mas através do exercício destrutivo mesmo, tomando concretamente dois grupos de problemas que estariam presentes na consideração filosófica do conceito de vida: o problema do a priori e o problema das vivências (em Dilthey e Natorp). 161

O tema sobre a teoria da formação de conceitos, da intuição e expressão em filosofia, colocaria em questão fundamentalmente para Heidegger o como da experiência em filosofia e o modo como a experiência filosófica se explicita, põe em jogo seus motivos e tendências (GA56, p.171). Neste sentido, as perguntas sobre a expressão conceitual em filosofia dependem ultimamente do motivo, do que impulsiona a filosofia.

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com sua tarefa última. Trata-se de que a filosofia possui um tipo de explicação que vai além de qualquer rigor científico para “instaurar o ser-preocupado (Bekümmertsein), em sua constante renovação, na facticidade do ser-aí (Dasein) e tornar o ser-aí atual (das aktuelles Dasein) ultimamente inseguro” (GA59, p.174). Em que sentido a filosofia deve realizar estas duas tarefas? O que significa que a filosofia deve produzir uma inseguridade última na existência?Em que sentido se compreende a noção de preocupação aqui? Em que medida preocupação e inseguridade se conjugam? De que modo se pode interpretar a conexão entre inseguridade e ciência como investigação? Para ensaiar uma resposta a estas questões, considero que é necessário retomar a descrição da interpretação heideggeriana da vida religiosa. Isso porque se trata de um modo de vida em que o vínculo entre preocupação e inseguridade se mostra em um sentido primordial. Heidegger aborda estas noções principalmente a partir das epístolas de São Paulo e do livro X das Confissões de Santo Agostinho, nos cursos sobre a Fenomenologia da Vida Religiosa e em Agostinho e o Neoplatonismo. Na interpretação sobre o tema da espera da parusia, Heidegger destaca a resposta paulina, na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, à pergunta sobre quando esta acontecerá. A resposta não se dá em termos da fixação de uma data ou época futura, mas na forma de uma exigência para que os crentes permaneçam vigilantes e sóbrios. Na advertência aos cristãos de que o Senhor virá como um ladrão na noite se introduziria uma constante inquietude, uma contínua inseguridade na experiência fática cristã. A necessidade desta inseguridade não é lógica nem natural, mas conduz a uma reflexão sobre a vida do crente e seu exercício. O desassossego vigilante pela vinda, anunciada, mas não programada, coloca o crente em uma situação de constante tribulação. De acordo com Heidegger: Não há seguridade alguma para a vida cristã; a contínua inseguridade é também o que caracteriza as significatividades fundamentais da vida fática. O inseguro não é casual, mas sim necessário. Esta necessidade não é lógica nem natural. Para ver com claridade é preciso refletir sobre a própria vida e seu exercício. Os que dizem „paz e seguridade‟(5,3) se entregam ao que a vida lhes dá, se ocupam de qualquer tarefa da vida. Deixam-se absorver pelo que a vida lhes oferta; estão nas trevas no tocante ao saber sobre si mesmos. Ao contrário, os crentes são filhos da luz e do dia. (HEIDEGGER, GA60, p.105)

Esta expectativa insegura só encontra um abrandamento na vida vivida impropriamente, em uma vida que busca remediar o desassossego. Os que se apegam ao mundo pois este lhes oferece paz e seguridade vivenciarão a parusia como uma surpresa calamitosa e não como salvação. Para estes, a expectativa é totalmente absorvida pelo que vem ao encontro na vida. Ao voltarem-se apenas para o que oferece apaziguamento, afastamse de si, estão nas trevas, pois “não tem a si mesmos na claridade do autêntico saber” (GA60,

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p.103). O vivenciar cotidiano, em sua tendência a um asseguramento, não oferece nenhum desassossego ao crente. A vigilância requerida ao cristão não permite que este encontre seguridade no mundo cotidiano, mas o leva a uma constante preocupação por si, por sua conduta: “como a parusia está em minha vida, esta remete à execução de minha vida mesma” (GA60, p.104)162·. A expectativa, vivida propriamente163, não conduz à inação, mas mobiliza toda a vida do crente. O ponto para Heidegger é que a espera da parusia164manifesta uma atitude diante da vida: na vivência do mundo como se não, como se o mundo não pautasse a compreensão sobre si mesmo e seu modo de conduta, se realça que o que está em jogo para o cristão constantemente é o modo de relacionar-se com as coisas, o modo mais ou menos próprio de estar no mundo e nas relações vitais165. Para o cristão primitivo a vida alerta corresponde a um colocar a si e ao modo como se comporta para com o que lhe vem ao encontro em questão. Não se trata de apenas um vivenciar aquilo que se manifesta como se vivencia cotidianamente, mas de uma vigilância constante sobre si mesmo. Ocupar-se e preocupar-se pelos conteúdos mundanos, só se faz de maneira própria na medida em que através do mundo se busca Deus a todo o momento. Manter-se na inseguridade não apenas da salvação, mas da recusa ao que pode ser apaziguador no mundo, seja na forma da tentação ou em outras distrações, leva ao crente a uma existência que constantemente interroga a si mesma. O decisivo é que se está diante de uma existência que só ganha seu sentido a partir de uma questionalidade constitutiva. A atenção sobre como se está no mundo conduz a um questionamento constante sobre como relacionar-se com as coisas. A inseguridade do não saber quando conduz a uma atenção e vigilância em uma tentativa constante de saber de si.

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Aqui ressalto o desdobramento da interpretação que é essencial para o problema, sem explorar a totalidade de seu alcance. Com efeito, interessa a Heidegger abordar a facticidade da vida cristã que vive a parusia com vistas a destacar que nesta se encontra outro sentido de temporalidade, de historicidade que não pode ser apreendido por uma consideração objetual do tempo (GA60, p.104). 163

Heidegger indica nas notas do curso que uma vivência imprópria desta inseguridade seria o desespero ou a aflição (GA60, p.153). Na indicação da situação hermenêutica da interpretação de Aristóteles, Heidegger assinala: “Preocupação não indica um humor de semblante perturbado, mas antes, um ser decidido faticamente, a apreensão da existência” (GA62, p.357). 164

Heidegger interpreta também as Epístolas aos Gálatas e a segunda Epístola aos Tessalonicenses, referindo não só à parusia como ao anúncio do Anticristo. Estas duas experiências são determinantes para a vida cristã. Como assinala Lara (1997, p.33): “Com efeito, esperar o regresso do senhor e o conseguinte fim dos tempos, no qual se decidirá quem está com o Senhor e quem está com seu antagonista, é o característico da vida cristã”. 165

Destaca-se que o primordial para o modo de vida do cristão primitivo que não é o caso que para ele se manifesta um sentido de conteúdo distinto – ou seja, como Heidegger afirma: “Portanto, o cristão não sai do mundo” (p.118) –mas que para ele entra em questão sempre o modo como se relacionar com os conteúdos mundanos, o modo da execução do comportamento.

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A interpretação heideggeriana das Confissões de Santo Agostinho oferece mais elementos para determinar a vida cristã. Como já referido166, Agostinho representa para Heidegger o exemplo máximo da vida cristã que se agudiza através do questionamento. Ademais, entra em questão a interpretação levada a cabo por Agostinho da determinação do ser humano como cura. A preocupação é o aspecto fundamental da vida fática, no qual a vida se mostra em sua dispersão no estar junto às coisas, seja em manuseio, na disponibilização, no refletir sobre, no esquecer, ou seja, no estabelecimento de toda e qualquer relação com algo. Heidegger previne que este conceito de preocupação primordialmente vai de encontro ao sentido cotidiano de cuidado. Justamente no trato com as coisas entra em questão uma falta de cuidado, uma dispersão (defluere) desatenta em diversos assuntos e direções vitais (GA60, p. 207). Se primeiramente a preocupação se apresenta deste modo, não obstante, na vida daquele que visa conhecer a Deus, esta é experienciada em sentido distinto. Na súplica de abertura do livro X, Agostinho invoca: “que eu te conheça, ó conhecedor de mim, que eu te conheça, tal como sou conhecido por ti” (Agostinho, livro X, 1). Não se trata, entretanto, de recorrer ao exame de uma prova ontológica de sua existência, mas sobretudo de confessar-se diante de Deus. A confissão diante daquele que nada desconhece sobre sua alma justifica-se para Agostinho na medida em que reconhece que pouco sabe sobre si.Neste sentido, “Questio mihi factus sum‟ [Me converti em um problema para mim mesmo]” (GA60, na tradução de Heidegger do latim, p. 180). Logo, o desejo de confessar-se diante de Deus na busca por conhecê-lo determina um esforço pelo conhecimento de si, por colocar-se em questão.O conhecimento de Deus pelo conhecimento confessional de si tem como base uma atitude ante aquele que possibilita esta atitude mesma: “Mas tu amaste a verdade, porque aquele que a põe em prática alcança a luz. Também quero por em prática no meu coração (...)”. (Livro X, 1). Praticar a verdade, amar a verdade, é uma necessidade vital para aquele que ama a Deus. O que se busca quando se ama a Deus é a beata vita, é a vida feliz. No esquema de Heidegger, se indica o vínculo de identidade entre a vida feliz que busca a verdade sobre si e a verdade do criador: “Beata vita = vera beata vita = veritas = Deus” (GA60, p. 215). O que se busca quando se ama a Deus é o amor à verdade, do qual Deus é o exemplo maior. Conhecer Deus significa por em prática o amor à verdade no conhecimento de si. A prática da verdade que leva ao questionamento, todavia, mostra uma experiência de si que Heidegger qualifica como a mobilidade da vida fática: a tentação. A tentação é um 166

Cf. página 96.

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modo no qual a preocupação possui o sentido determinado da preocupação por si, é o modo do ter-se a si mesmo da vida fática. A tentação conduz ao crente a uma experiência de perguntar por si e experimentar-se, mesmo que de modo problemático. A preocupação cotidiana em sua tendência à facilitação, ao descuido167, se transforma aqui em um modo de experiência que torna o si mesmo problemático para si e a partir do que ele se experimenta mais propriamente. A tentação agudiza o desconhecimento de si dando ocasião para que o si mesmo se volte problemático e se busque a verdade de Deus168como o exercício de conhecimento de si. A tentação como experiência que conduz ao conhecimento de si, apresenta, não obstante, a vida como frágil, como “podendo ganhar-se ou perder-se” (GA60, p.246). O conhecimento de si, o modo de experimentar-se é sempre insuficiente e não uma posse. As diferentes tentações da vida requerem a preocupação atenta por si, mostram que a vida pode perder-se de si caso não se esteja em uma relação inquieta e preocupada com ela. Por a prática da verdade no coração é manter seu caráter de inquietude, do inquieto cor nostrum.Contudo, a preocupação por si mobilizada pelas tentações não pode conferir a certeza à existência: há sempre o risco de perder-se. O conhecimento de si é sempre inacabado, precário, inseguro: depende da verdade de Deus. Subsiste na vida humana um caráter inseguro, que o conhecimento de si não elimina, mas sim aprofunda e expõe. A análise heideggeriana dos três tipos de tentações ressalta em cada uma a possibilidade de perda de si mesmo, de estar decaído em um mundo. A inseguridade aponta não apenas para o precário conhecimento de si e da pouca certeza estar piorando ou melhorando (Agostinho, X, 32), mas para Heidegger situa a vida preocupada em sua facticidade. O conhecimento de si é o conhecimento da impossibilidade de asseguramento, da vida como movimento fático de perder-se ou ganharse169.

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Heidegger vê na tentatio uma determinação ontológica da vida fática. Não apenas se trata de que a tentação para o crente o conduz a uma preocupação em que o modo de ter-se a si mesmo do cristão se determina, mas que a vida mesma é tentadora, em sua tendência de facilitação, de fuga de si, de busca de asseguramento: “Vida é cuidar e quiçá na propensão do facilitar-as-coisas-para si, na fuga. (...) A vida procurar se assegurar desviando o olhar de si mesma. Tal visão é primordial e fornece a imagem fundamental de como a vida se vê a si mesma” (GA61, p.109) 168

Como bem pontua Flamarique: “O como (Wie) do ter-se não se dá objetivamente como as coisas, mas sim historicamente; acedemos a ele somente através de perguntas nas quais nos experimentamos, como „quem sou?‟, „a quem amo?‟, que Santo Agostinho resume com a expressão questio mihi factus sum. (...) A tentação permite uma experiência de si, de desconhecimento que convida às perguntas existenciais e leva à busca de Deus como requisito para o conhecimento de si mesmo.” (FLAMARIQUE, 2013, p.141-142) 169

Aqui, embora divergindo da interpretação heideggeriana de Agostinho, Flamarique distingue claramente onde Heidegger e Agostinho se separam: “Em Confissões X, a precariedade da existência do homem é o passo necessário para uma forma de abandono em Deus que promete a verdade sobre o próprio ser. (...) Para

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Logo, pode se ver que a experiência de vida religiosa assinalada dá origem a uma existência que constantemente é tema para si mesma, que vive em uma busca por autoaclaração e que a indagação, fruto de sua condição insegura, é um modo de existir que, antes de conduzir a uma resposta segura e uma certeza, converte-se em uma tarefa de reiterada execução170. Heidegger vê na vida religiosa do cristianismo primitivo um exemplo na medida em que nela se encontra uma existência fundamentalmente interrogante que luta expressamente contra a tendência dominante do afastamento de si cotidiano. A existência religiosa reconhece mais do que qualquer outra a necessidade de uma constante vigilância sobre si, sobre seu comportamento no mundo, sobre seu modo de lidar com as coisas. Esta atitude também parecer estar na base do motivo da filosofia para Heidegger, tendo a filosofia, e não a religião, como condutora deste processo. Situar a existência preocupada em sua facticidade corresponderia a conceituar a vida mostrando a finitude e historicidade que lhe é própria. Tornar a vida ultimamente insegura não significaria por-se a realizar profecias mais ou menos catastróficas sobre o presente e o futuro, mas avivar a necessidade de vigilância e auto-claridade para com a facticidade que lhe é constitutiva. Esta tarefa determinaria não somente a atitude filosófica, mas o modo de conceitualização em filosofia, e os limites de um conhecimento teórico em filosofia. Sem dúvida, o duplo movimento indicado, na medida em que deve se realizar-se discursivamente, requer uma descrição da vida fática que possa metodicamente conceitualizar suas estruturas fundamentais. Por outro lado, há a busca por uma descrição da vida que, no limite, deve exortar a uma existência preocupada por si. Em que medida se retira totalmente da filosofia um caráter cosmovisional? Não como uma filosofia que entrega respostas como um guia de orientação, mas como uma exortação a um tipo de existência que, tal como a religiosa, busca dar conta de si mesma. Por outro lado, a figura daquele que busca investigar em filosofia se vê marcada por esta inseguridade. Para o filósofo, assim como para o religioso, estaria em questão um acento no si mesmo em sua vivência do mundo. Em uma versão mais fraca, isso corresponderia a afirmar que, para o filósofo, as questões sobre o que o motiva a investigar tal ou tal assunto, que procedimentos mobilizará para executar o que pretende, e assim por diante, são colocadas em jogo repetidamente e que há um esforço para que estas questões não se vejam soterradas

Heidegger, por sua vez, a experiência da facticidade aprofunda a ferida da existência que se reconhece como histórica, lançada, presa em sua temporalidade.” (FLAMARIQUE, 2013, p.140) 170

Como bem aponta Lara (2007, p.32), isso não significa que, em última instância, não se possa fazer filosofia sem a busca de Deus, por exemplo.

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pela cotidianidade da investigação. Trata-se de uma atenção metodológica que deve estar constantemente vigilante sobre seus passos e que, por isso, tem uma atitude humilde diante daquilo que conquista. Em uma versão mais contundente, ela transfere para o exercício científico o peso de uma incompletude e a questão sobre o alcance de seus resultados. Por um lado, tornar a vida insegura, coloca em questão a posse estável do que “sabemos” cotidianamente e teoricamente sobre ela, mas, por outro, o que se usa para atingir o asseguramento é uma descrição que, se se quer coerente, também não deve estar ela mesma assegurada. A vivência da veracidade absoluta significaria entregar-se às tendências últimas da vida não apenas medida em que esta é problemática, no sentido em que reclamaria por uma clarificação (GA61, p.177). Mas, sobretudo, em renunciar a qualquer pretensão de sistematicidade ou de asseguramento último. Entram em questão sempre perguntas últimas, mas não respostas últimas. O exercício radical de manter-se na verdade absoluta não significa ter a pretensão de chegar a determinar por completo aquilo que se investiga, mas sim o de se apropriar e ser impulsionado por esta impossibilidade de determinação. Não porque não se podem disponibilizar meios conceituais ou metódicos, ou porque a descrição chega “sempre tarde”, ou porque não é possível uma apreensão total do problema, mas por manter-se rigorosamente atrelado ao caráter de seu “objeto”. A transformação existencial requerida conjuga uma aspiração pela verdade absoluta com a vigilância pelo rigor quanto ao seu objeto. Esta vigilância não apenas se dá como um dos passos da exposição metódica assumida, como está na base da própria tentativa. Em que medida a vivência radical da vocação pela verdade nos termos definidos por Heidegger pode fundar um programa de investigação filosófica para além de um exercício de um homem só (e daqueles que visam compreender sua tentativa)? O cientista filósofo experimentaria como nenhum outro os limites da possibilidade de dar conta do vivido discursivamente o que, quiçá, o leva necessariamente a transitar para além dela.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente tese teve como intuito estabelecer uma proposta interpretativa sobre a noção de ciência originária nos escritos de Martin Heidegger de 1919 a 1922, de modo a indicar e explorar criticamente as implicações de suas pretensões no tocante aos desdobramentos desta ciência no âmbito acadêmico.A noção de ciência originária qualifica a concepção heideggeriana de filosofia no período anterior ao projeto de uma hermenêutica da facticidade (culminante em Ser e Tempo), e faz parte dos primeiros esforços conceituais de Heidegger para articular um projeto filosófico próprio a partir das questões em torno da determinação de uma fenomenologia da vida. As pretensões heideggerianas no período foram orientadas pela tentativa de efetivar uma ciência que tivesse como tema a vida – num primeiro momento, uma ciência originária pré-teórica e, num segundo momento, uma ciência da origem da vida. Já na introdução, indicou-se que tal projeto não se apresenta apenas como mera atualização ou continuidade de problemas circunscritos apenas à tradição filosófica, mas também se insere e reflete discussões do âmbito social, político, científico e cultural da Alemanha e da Europa na virada do século XIX para o século XX, cuja situação se agudiza após a Primeira Guerra Mundial. Heidegger pretende não apenas tomar partido por uma ou outra posição, mas sim dar um novo sentido para os problemas, recolocar a discussão em novos termos. E isso através da proposta de uma investigação que toma para si a tarefa de conceitualizar o acontecer histórico da vida, a partir da fundação de um novo modo de fazer filosofia, que se pergunta ao mesmo tempo sobre as determinações originárias da vida e sobre o modo como pode haurir conceitual e discursivamente tais categorias a partir de um campo de experiências no qual de início já nos situamos, com o qual temos uma familiaridade imediata, sobre o qual temos nossas concepções, teorias e conceitos. Todos nós já sabemos “algo” sobre a vida, estamos em posição de fazer conjecturas sobre ela. E, naquele momento, a vida foi o grande tema de discussão cultural, um tópico que estava na maioria dos lugares e conversas. O desafio era levar a cabo uma investigação filosófica sobre a vida, na qual sua dinâmica e fluidez fosse conservada,em cuja descrição científica a vida não aparecesse em uma transfiguração abstrata que em nada lembre, ou mesmo distorça, seu sentido primordial. A tentativa de investigar a vida tomando como problema seu estabelecimento enquanto campo temático originário e o modo de conceitualização deste campo, que deve fazer juz à originariedade de seu tema, é o ponto que a maioria dos intérpretes ressalta na

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proposta heideggeriana de uma ciência originária171. O que não é pouco, pois permite assinalar as pretensões heideggerianas em torno da fundação de um “novo” campo temático e método para a filosofia e também pode mostrar o alcance da apropriação de Heidegger da fenomenologia. O modo como se deve conceber a vida requer que uma “revolução”,inclusive em como se concebe a função expressiva da conceitualidade filosófica, a nossa referência conceitual ao mundo, e na concepção sobre como (e no que) se sustentam as alegações e descrições sobre este âmbito, além de uma revisão profunda e questionadora sobre o que as teorias e elaborações filosóficas tem a nos dizer sobre a vida. O jovem Heidegger claramente propõe aqui levar adiante esta tarefa apoiando-se nos ombros dos gigantes que o precederam, porém, tornando tal apoio também parte do problema. Com o capítulo 1, através de um panorama geral das pretensões e das discussões conceituais e metódicas propostas por Heidegger para tratar o fenômeno da vida, apontou-se para a direção descrita acima. Em primeiro lugar, tratou-se de indicar as opções que estruturam o projeto heideggeriano: trata-se de uma ciência, e, mais ainda, de uma ciência originária. Acima de tudo, está em questão realizar uma ciência pré-teórica originária. Examinei brevemente tais qualificações e quais os requisitos e tarefas se colocam em jogo para a consecução do que Heidegger pretende. Uma das questões centrais na qual Heidegger apóia suas demandas de uma ciência pré-teórica é uma concepção específica do que é uma teoria, e qual sua relação de abstração (ou de privação de vida) com os fenômenos aos quais refere. Neste sentido, Heidegger procura estabelecer distinções a fim de argumentar em favor de uma descrição de aspectos gerais/formais dos fenômenos que não seria teórica. Em um segundo momento, retomei a descrição heideggeriana sobre a noção de vida, no interior da afirmação da filosofia como uma ciência da origem da vida em si e para si. De modo esquemático, a vida aqui é descrita como a experiência de nexos de manifestação significativa de fenômenos de um contexto compartilhado com outros, em uma configuração natural e de nós mesmo sem função de uma direção impulsionada por algo que visamos estabelecer, fazer, planejar, decidir, esperar, alcançar, conquistar, etc. À pergunta sobre o que põe em marcha este movimento, qual é o seu fim maior, Heidegger responde não através da postulação da dependência diante uma realidade inteligível, de um Deus ou de um espírito absoluto, mas ressalta o caráter de autossuficiência da vida. Logo, o que motiva os caminhos e descaminhos da vida e sua finalidade é a vida mesma.Por outro lado, assim descrita, a vida claramente mostra-se em função dos propósitos e expectativas do ser humano. Heidegger 171

Sobre alguns destes intérpretes, cf. nota 44.

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então utiliza a noção de situação como articuladora de sua descrição da vida. O que se manifesta em contextos significativos (em um mundo), o faz em função do “eu”, em uma situação do si-mesmo, em uma relação com as coisas de acordo com um modo de executadas por nós. Grosso modo, a origem aponta para nossa dinâmica relacional com o mundo significativo e histórico. Não obstante o enfoque trazido pelo capítulo 1, que apontou para reconstrução das demandas metódico-conceituais e da descrição propriamente visada pela investigação heideggeriana, o capítulo 2 trouxe o ponto que me interessa destacar na noção de ciência originária. E isso foi feito explorando as perguntas sobre a noção de ciência envolvida neste conceito. Já no capítulo 1, ficou claro que Heidegger não busca definir ou listar critérios que validem ou justifiquem seu empreendimento como científico. Logo, o capítulo 2 foi conduzido em seu início em torno das perguntas sobre se e como a noção de ciência é qualificada por Heidegger. Destacou-se a compreensão heideggeriana de ciência como lógica concreta de um campo temático a partir de um solo de experiência, que enfatiza uma função de estabelecimento e elaboração das tarefas de determinação conceitual dos fenômenos de cada ciência a partir de seu âmbito próprio de questões. Contudo, mesmo sem uma comparação rigorosa entre a ciência originária e as demais ciências, resultou problemático compatibilizar a descrição das tarefas e das pretensões da ciência originária com a ciência enquanto lógica concreta. Logo, na última parte do capítulo 2, desenvolvi, explorando algumas indicações heideggerianas,a interpretação base da presente tese. Tratou-se de, ao pensar a ciência originária, acentuar o tema da pretensão de radicalização da ciência. A filosofia não é uma ciência originária somente porque visa descrever o campo de fenômenos não derivado perante ou outros campos temáticos das ciências, ou mesmo porque é a ciência dos fundamentos ou da elucidação dos conceitos fundamentais das outras ciências, ou porque, em função do que visa descrever, pode dar conta sobre o comportamento científico mesmo. A filosofia é uma ciência originária pois radicaliza uma possibilidade que está presente em todas as ciências: a de investigar, a de tornar a vida questão, a de irromper (e transformar) a consciência imediata e natural da vida.Bem entendido, a noção de comportamento teórico implica que a ciência sempre exibe uma relação intrínseca com a vida, enquanto a possibilidade de mudança no trato cotidiano com as coisas, para uma consideração que tenta dar conta dos fenômenos que se manifestam para nós no mundo. A noção de radicalização aponta não apenas para a busca por exibir as condições mais gerais do comportamento científico, mas indica uma tentativa de explorar de modo extremo as

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possibilidades da ciência. E isso torna exequível, a meu ver, a compreensão dos limites e tensões inerentes a um tal projeto. A filosofia seria a radicalização da ciência pois visa tomar como tema a vida mesma, e, para tanto, buscar um tipo de método e de conceitualidade que a apresente em seu caráter próprio. Se ciência e vida estão em uma relação primordial, tal relação se apresenta para Heidegger, na maioria das vezes, como um distanciamento, no qual a ciência toma a vida como ponto de partida, mas muitas vezes de modo a desfazer-sede seus vínculos com a mesma. Como radicalização da ciência, a filosofia faria o movimento contrário: trata-se de buscar um método e um modo de mostração discursivo que a intensifique, que não a descreva como as demais ciências e inclusive mobilize uma conceitualidade com função e natureza distintas de todos os demais discursos científicos. E o radical questionamento científico requereria uma radical implicação daquele que questiona, reage a um estar problematizante nas relações vitais. Tal tentativa de radicalização aparece como problemática sobretudo quando nos fazemos perguntas sobre onde teria lugar tal ciência ou sobre como se entende o perfil daquele que desempenha este tipo de investigação. Nos capítulos 3 e 4 busquei mostrar que tal exigência de radicalidade se dá para Heidegger em relação à universidade e em relação àquele que visa investigar em filosofia e que, de fato, joga nestas instâncias um papel primordial. No caso da universidade, a radicalização da ideia de ciência, levada a cabo pela ciência originária, seria capaz de conduzir uma reabilitação de seu sentido último. Quanto maior a radicalidade no questionar e investigar a partir de demandas intrínsecas e próprias à investigação, mais se concretizaria o ideal de universidade como contexto institucional que se alimenta pela tarefa de manutenção da investigação. Com relação ao cientista, há uma insistência na necessidade de radical apropriação de si, uma exigência de transformação existencial para a vivência da vocação científica. Contudo, o ponto problemático está em que tais exigências e pretensões não são justificadas ou tomadas como tarefas pela própria investigação da ciência originária. As mudanças ou renovação da universidade são vistas como reflexos do desdobramento da investigação, mas não de modo a serem explicitamente alvos de consideração. Heidegger se pronuncia sobre a discussão das reformas educacionais buscando situar-se “fora” dela: tal discussão está mal encaminhada se não se promove uma renovação dos laços da ciência com a vida. Heidegger toma isso como tarefa não de inserção no debate político, mas como um fazer, como uma diretriz que orienta sua investigação, todavia, não como um objetivo último ou imediato para sua filosofia. De algum modo (fundamental, e não apenas superficial), que não pode estar em discussão, este tipo de fazer impactaria na situação da universidade. Bem

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entendido, isto se torna problemático pois com a radicalização entram em jogo grandes pretensões: se trata de estabelecer um outro discurso sobre a vida, sobre a ciência, sobre a história, sobre a filosofia, mas não sobre a universidade.No caso da modificação existencial exigida, Heidegger também é reticente sobre como ela se processa ou como atinge o trabalho em comum dos filósofos (seja em sua coexistência em um espaço institucional ou em fóruns especializados), embora a coloque como condição fundante de sua ciência. O exame sobre a motivação para tal radicalização da ciência trazem mais aspectos ao problema: trata-se, groso modo, de levar a termos últimos a possibilidade de manter-se vigilante sobre a vida, de tentar escapar ao seu caráter tranquilizador, de não ver na própria ciência e sua busca por resultados como mais uma dentre as narrativas asseguradoras da existência.Ademais, a ciência originária seria a que mais rigorosamente se ateria ao caráter de seu tema, pois renunciaria não apenas a uma tentativa de determinação de seu tema ao modo das outras ciências, mas porque é impulsionada pelos limites na determinação de seu “objeto”. Assim, a ciência originária mostraria a convivência, não assumida de modo próprio ou desenvolvido, de duas direções em sua motivação: a tarefa de dar conta das categorias da vida e de exortação para uma apropriação de si. Em que medida conceber tal radicalização da possibilidade científica não coloca a pretensão de questionamento heideggeriano inevitavelmente para além dos limites da própria ciência? Heidegger estava cônscio de que o modo em que esta possibilidade vital se concretizava na prática científica estava muito mais para o mantenimento e asseguramento do que o contrário. Claramente se trata de uma proposta que visa renovar algo entendido como sepultado ou que deveria ser reabilitado. Heidegger parece ter em vista o ideal de Humboldt de ciência e universidade, mas não se pronuncia diretamente sobre o tema. O ponto é que claramente se visa afirmar (executar) um outro modo de pesquisa e investigação. A proposta de uma ciência originária é uma reação concreta a algo, mas que não nomeia este algo nem quer se constituir abertamente como uma posição política de defesa de um ideal de ciência e universidade. Tal proposta também vai claramente de encontro ao modelo de profissionalização especializada que começava a impor-se nas ciências, exigindo que a filosofia fosse tema para pessoas radicalmente e internamente motivadas aspirando à veracidade absoluta. O destino da ciência originária, assim como o de muitas tentativas radicais, foi o da reformulação. Mas, também como as propostas de radicalização, concentrou muitas e potentes questões em seu interior. Porém, ao ignorar a dimensão das tarefas de sua institucionalização em um período de mudanças, tem sua força reduzida diante das questões que ainda se

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apresentam. Isso não é o caso pois se trata de que em filosofia a extinção de pretensão das grandes narrativas é um caminho dado como inevitável. Sobretudo, está em jogo discutir as questões sobre a filosofia feita no modo altamente especializado e profissionalizado nos dias de hoje, frente aos ideais de vida filosófica como os preconizados por Heidegger. Se Heidegger pode nos lembrar de coisas importantes, como o inexorável arraigamento vital da ciência, todavia, nossa academia e o que se entende por trabalho filosófico são temas que requisitam novamente uma reflexão. Para além de uma especialização em Heidegger.

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