O queer na criminologia: criminalização da homotransfobia e proteção das dissidências de gênero no Brasil

June 7, 2017 | Autor: Victor Serra | Categoria: Queer Theory, Teoría Queer, Criminologia, Criminologia Crítica
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

VICTOR SIQUEIRA SERRA

O QUEER NA CRIMINOLOGIA: CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA E PROTEÇÃO DAS DISSIDÊNCIAS DE GÊNERO NO BRASIL

FRANCA 2015

Serra, Victor Siqueira O queer na criminologia : criminalização da homotransfobia e proteção das dissidências de gênero no brasil / Victor Siqueira Serra. - Franca : [s.n], 2015 87 f. Trabalho de conclusão (bacharelado - Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Ana Gabriela Mendes Braga 1. criminologia. 2. queer. 3. criminalização. I. Título. CDD - 364 Elaborado utilizando o sistema de fichamento automático da BFr.

VICTOR SIQUEIRA SERRA

O QUEER NA CRIMINOLOGIA: CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA E PROTEÇÃO DAS DISSIDÊNCIAS DE GÊNERO NO BRASIL

Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientação: Profa. Dra. Ana Gabriela Mendes Braga

FRANCA 2015

VICTOR SIQUEIRA SERRA

O QUEER NA CRIMINOLOGIA: CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA E PROTEÇÃO DAS DISSIDÊNCIAS DE GÊNERO NO BRASIL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito.

BANCA EXAMINADORA

Presidente: _________________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Gabriela Mendes Braga

1º Examinador:______________________________________________________________

2º Examinador: _____________________________________________________________

Franca, _____ de _____________ de 2015.

Dedico a todas as pessoas LGBT, que, apesar dos pesares todos, resistem. Nosso amor e nossa liberdade vencerão o ódio.

AGRADECIMENTOS

Antes mesmo de escrever o texto, eu já pensava nos agradecimentos. É que, felizmente, sempre tive muito que agradecer. À minha família, que sempre me apoiou da forma como pôde. A meu pai, que abriu mão de muitas tradições pra me amar. À minha mãe, pessoa mais fascinante que conheço, por estar sempre ao meu lado incondicionalmente. De vocês aprendi a construir coragem, questionar e amar. À minha irmã, que sempre garantiu um espaço pra mim na vida e no coração. Você é meu grande orgulho. A meu irmão, por ser meu desafio mais bonito. Nossos desentendimentos são parte do nosso laço – afinal, não se ama só nos consensos. A minhas avós e uma tia-avó em especial: vocês foram meu exemplo de que o feminismo existe em toda mulher dona de si. Obrigado por ensinar a beleza da subversão e a força do amor. A meus irmãos por (acertada) escolha, os Salviano Gomes, obrigado pelo lar que me proporcionam com sua companhia. A meus primos Siqueira, por tudo que passamos juntos e por tudo que ainda está por vir. À minha orientadora, Ana Gabriela, por me mostrar a Academia também enquanto espaço político. E também pela paciência com meus tantos defeitos. Que eu possa um dia equilibrar tão bem firmeza e poesia. A Eduardo Saad, que nunca duvidou do meu potencial e me ajudou a reconhecer minha capacidade. Você é prova de que ensinar não é só transmitir conteúdo e que existem bons professores sim. Aos amigos e amigas de Sertãozinho, que tão importantes foram no meu percurso. Nossos encontros esporádicos – mas sempre profundos – provam que amor transcende tempo e geografia. Com vocês vivi 40 anos em 8 e espero que nossos caminhos se encontrem sempre. Às pessoas com quem morei nesses cinco anos, por dividir mais que um teto, uma vida. Nagô, você me ensinou o samba, o socialismo e os rolês. Se eu deixei de aceitar injustiças e hoje defendo até mesmo o fim do sistema penal, é porque você me ajudou a expandir horizontes que eu nem enxergava. A Virgínia e Garapa, com quem discuti pós-modernidade, padrões de beleza, budismo e amor. Ao Dolo, meu exemplo de que homem cis, hetero, branco e de classe média pode ser maravilhoso e libertário. Você me mantém esperançoso de um mundo melhor. Ao Cola, pela alegria e pelo carinho. Você é irmã, mona! Ao Mussolini, cujo apelido hoje é puro contra censo, pelo excelente gosto musical e por sempre tornar a vida mais leve. Ao Lhama, que me mostrou o veganismo, a astrologia, o amor livre e a ayahuasca. Obrigado pelas risadas, pelos abraços, pelos desabafos e pelas viagens. À Paulinha, com quem aprendo

tanta coisa. Você nunca foi (só) uma referência teórica. Você é uma das minhas referências de vida. A Nelma e Metralha, pelo carinho (imenso), por já há algum tempo estarem do meu lado desejando e fazendo um ano melhor e pelas loucuras. À Feijão, que transformou meus rabiscos num desenho muito bonito. À Céu, por todo o carinho e compreensão. Pra minha felicidade, ainda estaremos pertinho. À Paula Pedroso, mesmo sem nunca ter me trazido quitutes mineiros, por seu carinho e sua paciência. Ao Abusado, que tirou as travestis do meu repertório de memes e colocou na minha pesquisa e na minha subjetividade. Ao Cequini, pelo CADir, pela Elis, pelas madrugadas e pelos fados. À Yliah, pelo estilo, pela intensidade e pelo carinho. À Zíper, com quem sei que sempre posso me embriagar – de vinho ou de poesia. À Boing, parceira de Mestrado e festas. Obrigado por sempre ter visto além das superfícies. Ao Caio, que é Beyoncé, ama Lady Gaga e me revelou tantos privilégios. Ao Menine, parte tão importante da minha estrada. Ao Hike, pelos livros, pelas músicas, conversas e pelo afeto. Sei que sou ventania, mas de vez em quando todo mundo precisa voar. Às Cocotas, pelas risadas, pelas ajudas e pelo carinho. Esses cinco anos seriam menos especiais sem vocês. À esquerda festiva (Jurema, Nanis, Bebel e Paulinho), meu paradoxo mais bonito: unidos pela polarização das eleições 2014. Obrigado pelas conversas e pela eterna promessa de um encontro. À Terceira Via, que me permitiu os primeiros passos na militância e foi apoio num delicado momento de descoberta pessoal. Vocês são minha primeira família unespiana e uma saudade muito feliz. À Pagu, meu grande orgulho, um capítulo importantíssimo da minha história e lenha para meus sonhos de justiça, igualdade e coletividade. Ao Glitterize, coletivo LGBT que orgulhosamente ajudei a fundar. A revolução será pintosa e livre – e nós também. Ao Natra, onde aprendi a Extensão e o amor à terra e à luta. Ao C.E.L., por me aproximar da realidade de mulheres presas, por me fazer questionar meu papel como universitário e militante de esquerda e pelo acolhimento. Ao Centro Jurídico Social, que me proporcionou verdadeiros amigos e recobrou minha esperança no Direito enquanto instrumento de transformação. A todas as travestis, mulheres e homens trans, pessoas não-binárias, lésbicas, gays (afeminadas ou não) e toda a infinidade de vivências de sexo e gênero possíveis que passaram por mim. É porque vocês existem, resistem e se organizam – a trancos a barrancos – que este trabalho existe. Quando eu morrer, mais uma vítima da homotransfobia ou de velhice, quero ser lembrado por ter amado. Obrigado a todas as pessoas que cruzaram meus descaminhos: todas vocês, cada uma com sua intensidade e do seu jeito, me ensinaram a amar livremente.

[...] eles povoam os conselhos de disciplina, as casas de correção, as colônias penitenciárias, os tribunais e asilos; levam aos médicos suas infâmias e aos juízes suas doenças. Incontável família dos perversos que se avizinha dos delinqüentes e se aparenta com os loucos. No decorrer

do

século

eles

carregaram

sucessivamente o estigma da “loucura moral”, da “neurose genital”, da “aberração do sentido genésico”, da “degenerescência” ou do “desequilíbrio psíquico”. O que significa o surgimento de todas essas sexualidades periféricas? O fato de poderem aparecer à luz do dia será o sinal de que a regra perde em vigor? Ou será que o fato de atraírem tanta atenção prova a existência de um regime mais severo e a preocupação de exercer-se sobre elas um controle direto?

Michel Foucault

SERRA, Victor Siqueira. O queer na criminologia: criminalização da homotransfobia e proteção das dissidências de gênero no Brasil. 2015. 108 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2015.

RESUMO O presente trabalho tem por objetivo analisar as formas com que se constituem as relações de gênero, as subversões aos papeis masculinos e femininos, os saberes que ao descrever também produzem, analisar enfim como todos esses processos se entrelaçam nos fenômenos homotransfóbicos. O Brasil é o país com maior índice de assassinatos de pessoas trans do planeta e a resposta que mais tem conquistado espaço na arena política para responder a essa alarmante violência é a criminalização da homotransfobia. A partir de uma pesquisa bibliográfica cuidadosa, buscou-se traçar um histórico das teorias de gênero e das teorias criminológicas, na tentativa de criar pontes possíveis entre esses saberes. Por meio da inserção do queer na criminologia, tentou-se demonstrar as graves consequências de se legitimar o sistema penal, tão seletivo e violento, que por suas práticas e pelas narrativas que as sustentam, constituem e reproduzem o mesmo poder a que se pretende reagir. Analisando alguns casos exemplificativos da função do sistema penal como tecnologia de gênero e, ao final, um estudo comparado de duas propostas legislativas brasileiras e a experiência da lei de gênero argentina, para traçar novos rumos para a política criminal no Brasil – em especial no que tange às dissidências de gênero e sexuais. Palavras-chave: Queer. Gênero. Criminologia. Homotransfobia. Criminalização.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 CAPÍTULO 1 DO FEMINISMO AOS ESTUDOS QUEER ............................................ 11 1.1 Sexo, gênero e sexualidade ............................................................................................... 12 1.2 Dissidências de gênero e matriz (cis)heterossexual ....................................................... 22

CAPÍTULO 2 O QUEER NA CRIMINOLOGIA .............................................................. 34 2.1 Criminologia e sistema penal ........................................................................................... 34 2.2 Possibilidades de uma criminologia queer ...................................................................... 42 2.3 Controle social das dissidências de gênero: medicina e Direito como tecnologias do biopoder ................................................................................................................................... 48

CAPÍTULO 3 CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA .................................... 61 3.1 Processos de criminalização: gênero e sistema penal .................................................... 61 3.2 Propostas e experiências legislativas: um estudo comparado entre o PL 122/2006, o PL 5002/2013 e a Lei de Gênero Argentina .......................................................................... 73

CONCLUSÃO......................................................................................................................... 78 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 82

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INTRODUÇÃO A criminalização da homotransfobia é uma das pautas do movimento LGBT com maior visibilidade hoje no Brasil. Partindo principalmente de argumentos sobre as diferentes formas de violência sofrida e extrema vulnerabilidade social em que se encontram as dissidências de gênero representadas nesse movimento, em especial as travestis e pessoas transexuais, mobilizam-se esforços da militância política e da academia em busca de frear os alarmantes índices de suicídio e homicídio dessas pessoas. O presente estudo, a partir das construções teóricas das teorias feministas e de gênero, em especial a teoria queer, e da criminologia crítica, principalmente o abolicionismo penal, analisou as possibilidades de um campo de diálogo entre esses diferentes saberes. Em seguida, discutiu as formas com que o sistema penal se entrelaça aos saberes médicos que patologizam as dissidências de gênero, num processo biopolítico que cria controles sociais diretos – por meio do sistema de justiça criminal – e indiretos – por meio de outros dispositivos, como a família e a saúde. Nesse sentido, buscou-se estudar alguns casos exemplificativos de como se dão esses processos e estatísticas sobre suicídios e assassinatos das dissidências de gênero – que tiveram de ser obtidos de fontes não oficiais, devido à inexistência de pesquisas oficias. Ao entender o direito e os saberes médicos como tecnologias de gênero, passou-se à discussão sobre a criminalização da homotransfobia e seus possíveis efeitos. Analisou-se teorias criminológicas sobre a função da pena, especialmente a pena de prisão, e o papel do sistema penal na gestão da pobreza e, num sentido mais amplo, da vida – uma aproximação do poder disciplinar ao biopoder. Por fim, fez-se um breve estudo comparado entre propostas legislativas brasileiras, que atuam negativa e positivamente em relação à política criminal, e a Lei de Gênero da Argentina, conclui-se que a criminalização da homotransfobia não é o instrumento adequado para lidar com a violência que recai sobre dissidências de gênero e que é preciso buscar ferramentas que operem na desconstrução do biopoder e da hierarquização do gênero, sendo que o sistema penal, nesse sentido, resultaria em mais vitimização do que proteção.

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1 DO FEMINISMO AOS ESTUDOS QUEER

Em seu relato sobre o desenvolvimento de estudos de gênero a partir (e conjuntamente, em muitos momentos) do feminismo, Mariza Corrêa aponta que se criou discursivamente uma divisão entre teoria e fazer político a partir da clivagem entre pesquisadoras e militantes. Segundo a autora, nenhum campo intelectual pode prescindir de sua própria história – o que fica demonstrado pela “[...] clara articulação entre o feminismo dos anos setenta e a emergência dos estudos de gênero nos anos noventa”.1 Dessa forma, fazse necessário contextualizar conceitos – utilizados na “academia” e na “militância” –em qualquer pesquisa que interrogue as relações de gênero. Existe uma infinidade de interpretações e disputas teórico-políticas que não se pretende esgotar neste trabalho. No entanto, é importante ressaltar ao menos algumas das contraposições e entrelaçamentos que permearam e permeiam o feminismo e os estudos de gênero antes de qualquer proposição de interdisciplinaridade. De acordo com Adriana Piscitelli, o termo gênero foi utilizado pela primeira vez por Robert Stoller, em 1963, numa tentativa de separar a dimensão biológica (sexo, referente a hormônios, genética, morfologia, anatomia) da dimensão cultural (gênero, referente “ao caráter cultural das distinções entre homens e mulheres, entre ideias sobre feminilidade e masculinidade”).2 Joan Scott afirma que o uso do termo gênero se deu de muitas formas diferentes, criticando seu caráter predominantemente descritivo e propondo que se transformasse numa categoria de análise3. Em um primeiro momento, foi utilizado para amenizar o peso político dos estudos de mulheres – que enfrentaram resistência por parte de muitos teóricos, ora por meio de isolamento, ora por negação completa de sua utilidade e importância; posteriormente, para reforçar um caráter relacional das definições normativas de feminilidade, entendendo que 1

CORRÊA, Mariza. “Do feminismo aos estudos de gênero no Brasil: um exemplo pessoal”. In: Cadernos Pagu. nº 16, 2001, p. 13-30. 2 PISCITELLI, Adriana. “Gênero: a história de um conceito”. In: BUARQUE DE ALMEIDA, H.; SZWAKO, J. (org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009. pp. 116-148. 3 SCOTT, Joan W. “Gender: A Useful Category of Historical Analysis”. The American Historical Review, Vol. 91, No. 5. (Dec., 1986), pp. 1053-1075. Disponível em: .

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masculino e feminino (re)produzem-se a partir de sua contraposição; e finalmente para explicitar o poder fundamentalmente transformador dos estudos de gênero, que ao inscrever as mulheres na história e revelar as especificidades de sua experiência social em relação à dos homens, necessariamente transformaria premissas teóricas. Para a autora, quando se busca como o conceito de gênero pode legitimar e constituir relações sociais, desvelam-se as formas em que a política constrói o gênero e o gênero constrói a política.

1.1 Sexo, gênero e sexualidade

Muitos foram os dispositivos analíticos propostos pelas feministas para se discutir as diferenças sexuais e suas conseqüências no arranjo social. Destacam-se aqui as mulheres como sujeito político coletivo e as diversas categorias e conceitos cunhados para tentar explicar sua subordinação. Nesse ímpeto, articularam-se teorizações sobre diversas chaves de controle, organização e gestão sociais, como parentesco, família, reprodução e modo de produção. De acordo com Gayle Rubin, análises feministas marxistas desenvolveram-se a partir da noção de que o capitalismo, enquanto modo de produção, exige reprodução de riquezas, mas que para isso precisa garantir a reprodução da força de trabalho explorada, ou seja, das pessoas, da espécie humana: O que é necessário para a reprodução do trabalhador é determinado em parte pelas necessidades biológicas do organismo humano, em parte pelas condições físicas do lugar onde vive e em parte pela tradição cultural. Marx observou que cerveja é necessário para a reprodução da classe trabalhadora inglesa e vinho necessária para a francesa. (tradução nossa).4

Nesse sentido, a autora defende que isso a que Marx chama de “elemento histórico e moral” é o que organiza, dentre as necessidades do trabalhador, ter uma esposa – que preferencialmente realize os serviços domésticos, e portanto contribui para a reprodução do capital. O domínio do sexo, sexualidade e opressão sexual se insere nesse elemento histórico e moral e foi por meio dele que o capitalismo herdou formas de masculinidade e feminilidade. Entretanto, segundo a autora, as análises marxistas de gênero pautavam a opressão contra mulheres somente em termos econômicos. Em certos períodos históricos, reduzia-se a mulher a reserva de força de trabalho; noutros, garantia-se ampliação da mais valia a partir das 4

RUBIN, Gayle. “The traffic in women: notes on the 'political economy' of sex” inHENSEN, Karen, and PHILIPSON, Ilene, eds. Women, Class and the Feminist Imagination (Philadelphia: Temple, 1990), 74-113

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diferenças salariais e do trabalho doméstico não-remunerado; mas principalmente pela divisão sexual do trabalho e o trabalho reprodutivo a opressão de gênero se constituía. O problema, ainda de acordo com Rubin, é que explicar a utilidade da mulher e da opressão de gênero para o capitalismo é bem diferente de explicar a gênese da opressão de gênero. Existem diversos relatos de sociedades não capitalistas que possuem hierarquização de gênero e divisão sexual do trabalho. Joan Scott afirma que “sistemas econômicos não determinam diretamente relações de gênero, a subordinação de mulheres pré-data o capitalismo e continua sob o socialismo”.5 Percebe-se, então, que uma análise profunda de gênero deve considerar as relações com o modo de produção, mas não esgotar-se nisso. Buscava, assim, distinguir sistemas econômicos de sistemas “sexuais”. Surgiu a proposta de se pensar um “modo de reprodução”, em contraponto ao familiar “modo de produção”. No entanto, como demonstra Rubin: Mas essa terminologia associa “economia” a produção e o sistema sexual a “reprodução”. Isso reduz a riqueza de ambos sistemas, vez que “produções” e “reproduções” acontecem nos dois. Todo modo de produção envolve reprodução – de ferramentas, trabalho e relações sociais. Não podemos relegar todos os aspectos multifacetados da reprodução social no sistema sexual. (tradução nossa).6

Dessa forma, a formação de identidades (sexuais e de gênero) são um exemplo de produção no que tentaram chamar de modo de reprodução e a substituição de máquinas nas fábricas é um exemplo de reprodução na economia. As relações de gênero, portanto, não podem ser resumidas em “relações de procriação”. Como tentativa de nomear a hierarquia de gênero para além do modo de produção, propôs-se também “patriarcado”, termo que tem reconhecida importância no desenvolvimento do feminismo e dos estudos de gênero – embora seu uso não seja consensual e não será utilizado na presente análise. Segundo Adriana Piscitelli, “Patriarcado” é um sistema social no qual a diferença sexual serve como base da opressão e da subordinação da mulher pelo homem. O poder patriarcal pode ser entendido em função do âmbito familiar, como poder do pai sobre a esposa e sobre os filhos. (...) Em termos mais amplos, o poder patriarcal diz respeito à capacidade masculina de controlar o corpo da mulher, para fins reprodutivos ou sexuais. (...) A denúncia do patriarcado e 5

SCOTT, Joan W. “Gender: A Useful Category of Historical Analysis”. The American Historical Review, Vol. 91, No. 5. (Dec., 1986), pp. 1053-1075. Disponível em: . 6 RUBIN, Gayle. “The traffic in women: notes on the 'political economy' of sex” in HENSEN, Karen, and PHILIPSON, Ilene, eds. Women, Class and the Feminist Imagination (Philadelphia: Temple, 1990), 74-113.

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do poder patriarcal serviu como instrumento político fundamental na luta feminista a partir dos anos 1960 em diferentes regiões do mundo. No entanto, o termo foi criticado por ser usado de modo muito genérico, como se definisse qualquer tipo de dominação masculina.7

Gayle Rubin afirma que o termo patriarcado foi introduzido para distinguir as relações de gênero de outras forças sociais, mas que seu uso acabou por apagar outras distinções – como se o termo “capitalismo” fosse utilizado para descrever todos os modos de produção:

Similarmente, qualquer sociedade terá formas sistemáticas de lidar com sexo, gênero e bebês (reprodução). Tal sistema pode ser sexualmente igualitário, ao menos em teoria, ou pode ser “estratificado por gênero”, como parece ser o caso da maioria ou todos os exemplos conhecidos. Mas é importante – mesmo em face de uma história deprimente – manter uma distinção entre a capacidade e necessidade humana de criar um mundo sexual e os modos empiricamente opressivos em que mundos sexuados se organizaram. Patriarcado subsume os dois significados num mesmo termo. (tradução nossa).8

Joan Scott também reconhece a importância de teorias do patriarcado, em especial para organização política e conquista de espaços, inclusive acadêmicos, mas aponta problemas históricos:

Primeiro, ao passo que oferecem uma análise interna ao sistema de gênero, também afirmam uma supremacia desse sistema sobre toda a organização social. Mas teorias do patriarcado não demonstram como desigualdades de gênero estruturam todas as outras desigualdades ou até mesmo como gênero afeta outras áreas da vida que não parecem se conectar com ele. Segundo, se a dominação vem na forma de apropriação masculina do trabalho reprodutivo da mulher ou pela objetificação de mulheres por homens, a análise se embasa em diferenças corporais. (...) Uma teoria que se apoia na variável única de diferença física coloca um problema para historiadores: presume uma consistência ou significado inerente ao corpo humano – fora de construções sociais ou culturais – e, portanto, uma ahistoricidade do gênero. (tradução nossa).9

As limitações que encontrou nessas análises levaram Gayle Rubin a elaborar o que chamou de sistema sexo/gênero, no qual é preciso pensar “mulher” enquanto sujeito constrito

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PISCITELLI, Adriana. “Gênero: a história de um conceito”. In: BUARQUE DE ALMEIDA, H.; SZWAKO, J. (org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009. pp. 116-148. 8 RUBIN, Gayle. “The traffic in women: notes on the 'political economy' of sex” inHENSEN, Karen, and PHILIPSON, Ilene, eds. Women, Class and the Feminist Imagination (Philadelphia: Temple, 1990), 74-113. 9 SCOTT, Joan W. “Gender: A Useful Category of Historical Analysis”. The American Historical Review, Vol. 91, No. 5. (Dec., 1986), pp. 1053-1075. Disponível em: . Acesso em 01 dez. 2015.

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a um papel social culturalmente construído.10Ao se propor uma análise que diferencia o corpo (“sexo”) do papel social imposto sobre o corpo (“gênero”), torna-se necessário analisar como se produzem e reforçam as normas de gênero e as formas de imposição e absorção dessas normas pelos indivíduos (subjetividade e construção de identidade). Dessa forma, gênero encontrar-se-ia na fronteira entre o biológico e o social: sobre um corpo natural se impõem construções culturais. Esse processo, ainda de acordo com Rubin, se dá, em nossas sociedades modernas ocidentais, pela organização social em parentesco (família heterossexual e monogâmica, controlada pelo tabu do incesto) e pela assimilação do indivíduo a esses arranjos (disciplinada principalmente pela psicanálise). O tabu do incesto, muito embora presente em praticamente todas as sociedades conhecidas, adquire funções e formas muito diferentes. O ponto em comum é que ele delimita com quem um sujeito pode se envolver afetivo-sexualmente, criando laços sociais poderosos e garante que ocorram trocas entre núcleos sociais (famílias). E é a troca – de produtos, influência e mulheres – que garante a organização política e a gestão social. Ainda segundo Rubin, “Sistemas de parentesco não meramente trocam mulheres. Eles trocam acesso sexual, status genealógico, linhagens de nome e ancestrais, direitos e pessoas – homens, mulheres e crianças – em sistemas de relações sociais concretas”.11 No sistema sexo/gênero, portanto, o sexo (“natural”, “biológico”) é domesticado por um processo intra e intersubjetivo. É a partir dessa domesticação que o sujeito se constitui nas relações de gênero. Mas a presunção de que o sexo é um dado natural e, logo, incontestável, também pode ser questionada. O sexo, como o gênero, deve ser submetido a críticas que considerem o aspecto produtivo de teorias, categorias e dispositivos analíticos. Nesse sentido, Teresa de Lauretis afirma que [...] a construção cultural do sexo em gênero e a assimetria que caracteriza todos os sistemas de gênero através das diferentes culturas (embora cada qual do seu modo) são entendidas como sendo “sistematicamente ligadas à organização da desigualdade social”. O sistema sexo/gênero, enfim, é tanto uma construção sociocultural quanto um aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco, status dentro da hierarquia social etc.) a indivíduos dentro da sociedade. [...] A construção do gênero é tanto o produto quanto o processo de sua representação.12 10

RUBIN, Gayle. “The traffic in women: notes on the 'political economy' of sex” inHENSEN, Karen, and PHILIPSON, Ilene, eds. Women, Class and the Feminist Imagination (Philadelphia: Temple, 1990), 74-113. 11 RUBIN, Gayle. “The traffic in women: notes on the 'political economy' of sex” in HENSEN, Karen, and PHILIPSON, Ilene, eds. Women, Class and the Feminist Imagination (Philadelphia: Temple, 1990), 74-113. 12 LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242.

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A partir dessas contribuições, verifica-se a impossibilidade de um corpo fora de uma significação cultural e gestão social e também uma dimensão produtiva nas análises sobre relações de gênero. O sexo, portanto, não deve ser tomado como dado independente dos discursos que o conceituam e, portanto, o produzem. Como bem explica Silvana Aparecida Mariano, “[...] essa compreensão não implica que o corpo seja eliminado da teoria feminista. A questão é então o modo como se entende o corpo, tomando-o mais como uma variável do que como uma constante”.13 Uma cisão radical entre sexo e gênero pode ser questionada por pressupor um binarismo biológico; por tornar o gênero um artifício flutuante, instável e, portanto, de pouco valor analítico; e por ignorar o corpo enquanto parte da construção do sujeito nas e pelas relações de poder de um sistema de gênero. Explica Judith Butler:

Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. [...] Na conjuntura atual, já está claro que colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas. Essa produção do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do aparato de construção cultural que designamos por gênero.14

Parece possível afirmar, portanto, que “assim como a sexualidade, o gênero não é uma propriedade de corpos nem algo existente a priori nos seres humanos”.15Para superar as limitações analíticas dos termos aqui discutidos – afinal, nem modo de reprodução, nem patriarcado e tampouco sistema sexo/gênero esgotaram a análise das relações de gênero em suas configurações atuais – recorre-se a noções desenvolvidas por Foucault, segundo o qual

[...] pode-se compreender a importância assumida pelo sexo como foco de disputa política. É que ele se encontra na articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia política da vida. De um lado, faz parte das disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e 13

MARIANO, Silvana Aparecida. O sujeito do feminismo e o pós-estruturalismo. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 483, jan. 2005. ISSN 0104-026X. Disponível em: . Acesso em: 01 dez. 2015. 14 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 15 LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242.

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distribuição das forças, ajustamento e economia das energias. Do outro, o sexo pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais que induz. Insere-se, simultaneamente, nos dois registros; dá lugar a vigilâncias infinitesimais, a controles constantes, a ordenações espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos ou psicológicos infinitos, a todos um micropoder sobre o corpo; mas, também, dá margem a medidas maciças, a estimativas estatísticas, a intervenções que visam todo o corpo social ou grupos tomados globalmente. O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie.16

A afirmação de Foucault de que “[...] na junção entre o “corpo” e a “população”, o sexo tornou-se o alvo central de um poder que se organiza em torno da gestão da vida”,17 subentende-se que conceitos e formas de análise podem constituir a realidade e estão, desde sempre, sob um regime de poder – que ao mesmo tempo incide sobre o indivíduo de forma disciplinar e microfísica e sobre a sociedade de forma geral e macro. Isso significa que sexo, sexualidade e gênero são categorias discursivamente criadas para explicar dada realidade, mas que passaram a integrar o que chamamos de sistema de gênero.

A análise de Foucault se inicia a partir de um paradoxo: as proibições e regulamentações dos comportamentos sexuais, ditados por autoridades religiosas, legais ou científicas, longe de constranger ou reprimir a sexualidade, produziram-na e continuam a produzi-la, da mesma forma que a máquina industrial produz bens e artigos e, ao fazê-lo, produz relações sociais. Daí o conceito de uma “tecnologia sexual”, que ele define como “um conjunto de técnicas para maximizar a vida”, criadas e desenvolvidas pela burguesia a partir do final do século XVIII para assegurar a sobrevivência da classe e a continuação da hegemonia. Tais técnicas envolviam a elaboração de discursos (classificação, mensuração, avaliação etc.) sobre quatro “figuras” ou objetos privilegiados do conhecimento: a sexualização das crianças e do corpo feminino, o controle da procriação, e a psiquiatrização do comportamento sexual anômalo como perversão. Esses discursos, implementados pela pedagogia, medicina, demografia e economia, se ancoraram ou se apoiaram nas instituições do Estado e se consolidaram especialmente na família [...].18

Para melhor explicar as implicações produtivas de categorias analíticas, que ao mesmo tempo representam e (re)produzem, é preciso delimitar o que se entende como “discurso” e “poder”. Segundo Foucault,

16

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988. p. 32. 17 Ibid. 18 LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242. p 222.

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A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte.19

Entende-se, portanto, que o poder para Foucault é permanente e onipresente – não porque engloba a tudo sob uma pretensa unidade, mas porque se exerce o tempo todo de todos os lugares. O poder é pulverizado, uma constante correlação de forças que cria estados de poder – situações em que se pode exercer, já que o poder tampouco é algo que se adquira, guarde ou abandone – e pode criar hegemonias. O discurso, por sua vez, deve ser entendido como

[...] uma série de segmentos descontínuos, cuja função tática não é uniforme nem estável. Mais precisamente, não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes.20

Importante salientar que, para Foucault, até mesmo os silêncios devem ser analisados como discursivos. Dizer ou não dizer algo, permitir ou impedir que alguém diga algo, reconhecer ou não um discurso como “verdadeiro” têm diferentes consequências em diferentes contextos, afinal “não existe um só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apoiam e atravessam os discursos”.21

Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de estratégia oposta.

Foucault confere ao poder diversas formas, dentre elas uma que produz e, logo, impõe subjetividades. Nessa manifestação, o poder pode ser entendido como uma opressão, mas não se restringe a esses processos positivos (ou proibitivos): a genealogia do poder descreve inclusive os processos sutis pelos quais o poder se exerce. Nesse ponto, algumas 19

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988. p. 36. 20 Ibid. 21 Ibid.

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autoras contrapõem-se ao autor, pois entendem que, descrito dessa forma, o poder não possui carga negativa ou positiva anterior à sua formação nas relações e, assim, permanece sem explicação a forma como sujeitos se constituem a partir de certas verdades discursivas e não de outras. Para Lauretis, “[...] o poder é o que motiva (não necessariamente de modo consciente ou racional) os “investimentos” feitos pelas pessoas nas posições discursivas”.22 Se existem diferentes discursos sobre sexo, sexualidade e gênero se construindo e modificando concomitantemente, o que faz alguém se posicionar em relação a esses discursos é um investimento – que não garante, mas promete um poder relativo (satisfação, vantagem, reconhecimento, pertença, recompensa). Nesse sentido, é importante comentar os entrelaçamentos do sistema econômico com as normas de gênero. Cria-se a norma e responsabiliza-se o indivíduo por sujeitar-se ou não, o que tem diversos reflexos em sua subjetividade. Esse é o processo do gênero que Rubin e Scott atribuem aos saberes da psicanálise – a introjeção da normatividade. A beleza (e, atrelada a ela, a sexualidade), o casamento e a família, a performance: as normas que produzem e hierarquizam os gêneros manifestam-se em uma rede de dispositivos e adequar-se a elas significa não ser o anormal, desviante. Do ponto de vista dos investimentos, diversos processos fazem com que as dissidências de gênero conformem-se, busquem normalizar suas experiências ao invés de questionar a normalidade, numa tentativa de tornar-se o menos desviante que possa. Quanto menor a transgressão à normatividade, maior a possibilidade de aceitação para o sujeito (por exemplo: o gay masculino é aceito, ao contrário do gay feminino e das travestis). Assim, é possível compreender, por exemplo, que as dissidências de gênero desejem uma família heteronormativa (monogâmica, que produz descendentes e reafirma a propriedade privada) e articulem pautas políticas de inclusão ao invés de total transgressão. Pauta-se atingir aceitação e não destituir os dispositivos de poder. E, nesse ponto, incide a força do sistema econômico: o apoio a essas dissidências normalizadas é utilizado como marketing, alimentando o mesmo sistema que, para se manter e multiplicar, produz as dissidências e os discursos de inclusão e exclusão utilizados na gestão social. Dessa forma, hegemonicamente os movimentos LGBT pautam o casamento igualitário e a adoção, mas pouco questionam os modelos de família, seu papel na legitimação da matriz (cis)heterossexual e na reprodução capitalista. Pauta-se a criminalização da homotransfobia, mas não o papel do sistema penal no capitalismo e na gestão do crime e do Estado. Cria-se

22

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242.

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uma ilusão de inclusão – que é seletiva e condicionada – que desarticula os esforços para romper com o desejo de normalidade. Os investimentos que operam na constituição social do sujeito – intra e intersubjetivos – devem ser compreendidos também de forma múltipla. Como afirma Foucault: [...] as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimentos, relações sexuais), mas lhes são imanentes; são os efeitos imediatos das partilhas, desigualdade e desequilíbrios que se produzem nas mesmas e, reciprocamente, são as condições internas destas diferenciações.23

Nesse ponto, parece confluir o pensamento de muitas autoras aqui mencionadas. Para Gayle Rubin, “parentesco e casamento são sempre partes de sistemas sociais totais e estão amarrados a arranjos econômicos e políticos”24 e tais arranjos devem sempre ser considerados simultaneamente. Segundo Joan Scott, o desenvolvimento do gênero como categoria analítica modificou as formas com que se investiga e compreende o sujeito.

Um interesse em classe, raça e gênero demonstra, primeiro, um comprometimento acadêmico com uma história que inclua as histórias dos oprimidos e uma análise do significado e da natureza de suas opressões e, em segundo, um entendimento acadêmico que as desigualdades são organizadas ao longo de pelo menos três chaves. (tradução nossa).25

Para que uma análise leve em consideração as relações de gênero, não é preciso que suprima ou ignore relações econômicas e raciais. O que se propõe é uma compreensão global das diferentes desigualdades na gestão da vida, que se manifestam simultaneamente, mas com diferentes intensidades e de diferentes formas em cada contexto. O funcionamento do biopoder para Foucault e a relação do gênero com outros marcadores sociais no pensamento de muitas feministas possibilitou uma aproximação (muitas vezes conflituosa) entre feminismo e movimento LGBT. Segundo Lauretis, a subjetividade e a experiência femininas residem necessariamente numa relação específica com a sexualidade e “outras importantes dimensões da diferença social, como classe, raça e

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FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988. RUBIN, Gayle. “The traffic in women: notes on the 'political economy' of sex” in HENSEN, Karen, and PHILIPSON, Ilene, eds. Women, Class and the Feminist Imagination (Philadelphia: Temple, 1990), 74-113. 25 SCOTT, Joan W. “Gender: A Useful Category of Historical Analysis”. The American Historical Review, Vol. 91, No. 5. (Dec., 1986), pp. 1053-1075. Disponível em: . Acesso em 01 dez. 2015. 24

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idade, cruzam o gênero para favorecer ou desfavorecer certas posições”. 26 Gayle Rubin diz que as revoltas feministas e gay têm o objetivo comum de “desmantelar o aparato de coação sexual”.27 Ao analisar o desenvolvimento dos estudos de gênero no Brasil a partir do feminismo, Mariza Corrêa diz: Creio que esse diálogo entre feministas e homossexuais, bastante singular na época, tenha sido crucial para a boa receptividade, anos mais tarde, dos estudos de gênero por pesquisadoras dessa universidade: ainda que os estudos feministas tenham sido o campo de estudos de todas as pesquisadoras que hoje participam do Núcleo de Estudos de Gênero/Pagu, certamente pesquisas como as de Peter Fry e Néstor Perlongher foram importantes para tornar mais complexas as distinções polarizadas, e então comuns, do masculino/feminina, já nos anos setenta.28

Esse relato do contexto brasileiro, em que houve um movimento das discussões de gênero movimentos políticos para o ambiente acadêmico, corrobora o entendimento que para explicar a hierarquização do gênero é preciso expandir ferramentas, espaços e conceitos. Cumpre questionar, então, como se desenvolveram as análises de gênero a partir da articulação com outros marcadores sociais e quais os reflexos desse olhar nas teorias feministas e, para o presente trabalho, na criminologia.

1.2 Dissidências de gênero e matriz (cis)heterossexual O esforço que se pode observar nos estudos queer é exatamente o de articulação entre diferentes marcadores na experiência do sujeito na sociedade. Isso fica evidente nos questionamentos levantados por Butler, para quem o sujeito do feminismo já não pode ser subsumido numa universalidade que antecede e une a todas as mulheres igualmente. A própria representação (política e teórica) tem força produtiva (jurídica) e, portanto, deve inserir-se nas análises sobre poder. Se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da ‘pessoa’ transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece intersecções 26

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242. p. 225 27 RUBIN, Gayle. “The traffic in women: notes on the 'political economy' of sex” in HENSEN, Karen, and PHILIPSON, Ilene, eds. Women, Class and the Feminist Imagination (Philadelphia: Temple, 1990), 74-113.. 28 PISCITELLI, Adriana. “Gênero: a história de um conceito”. In: BUARQUE DE ALMEIDA, H.; SZWAKO, J. (org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009. pp. 116-148.

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com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a noção de ‘gênero’ das intersecções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida.29

Ao questionar o gênero enquanto construção social também dentro da política representacional feminista e a (suposta) estabilidade de identidades universais, Butler busca novas ferramentas para análise das relações de gênero. Para a autora, a criação de uma categoria a se representar cria também normas para que se reconheça esse sujeito. Dessa forma, a presunção de uma categoria de “mulheres” igualadas de alguma forma – ontologicamente ou pelas opressões que sofrem – na teoria feminista presume também que existem características que demarquem quem são essas mulheres. Logo, pessoas que possuem algumas – mas não todas – essas características não podem ser representadas. Obviamente, a tarefa política não é recusar a política representacional – como se pudéssemos fazê-lo. As estruturas jurídicas da linguagem e da política constituem o campo contemporâneo do poder; consequentemente, não há posição fora desse campo, mas somente uma genealogia crítica de suas próprias práticas de legitimação. Assim, o ponto de partida crítico é o presente histórico, como definiu Marx. E a tarefa é justamente formular, no interior dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam.30

Faz-se necessário, no entanto, aprofundar as críticas ao conceito de identidade. Manter o sujeito como um conceito sempre em aberto, um “lugar social” (conjunto de relações sociais, experiências) sempre em disputa, não é o mesmo que afirmar não existir sujeito. Se gênero for de fato uma forma de organização social e as conseqüências de sua incorporação pelos sujeitos, é possível afirmar que identidades se reinventam e transformam, não sendo analiticamente útil utilizar-se de categorias rígidas e imutáveis.

Eu diria que qualquer esforço para dar conteúdo universal ou específico à categoria mulheres, supondo-se que essa garantia de solidariedade é exigida de antemão, produzirá necessariamente facções e que a “identidade” como ponto de partida jamais se sustenta como base sólida de um movimento político feminista. As categorias de identidade nunca são meramente descritivas, mas sempre normativas e como tal, exclusivistas. Isso não quer dizer que o termo “mulheres” não deva ser usado, ou que devamos anunciar a morte da categoria. Ao contrário, se o feminismo pressupõe que 29

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 30 Ibid.

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“mulheres” designa um campo de diferenças indesignável, que não pode ser totalizado ou resumido por uma categoria de identidade descritiva, então o próprio termo se torna um lugar de permanente abertura e re-significação. Eu diria que os rachas entre mulheres a respeito do conteúdo do termo devem ser afirmados como o fundamento infundado da teoria feminista. Desconstruir o sujeito do feminismo não é, portanto, censurar sua utilização, mas, ao contrário, liberar o termo num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito e fazer dele um lugar onde significados não antecipados podem emergir.31

Uma análise que parta das formulações de Foucault sobre biopoder, discursos e tecnologias exige transformações nas formas de análise das relações de gênero. Não se trata de negar forças externas ao sujeito que o coagem e transformam, mas de questionar a homogeneidade com que essas forças agem sobre cada indivíduo – e a potência que cada indivíduo tem de relacionar com tais forças, determinando sua subjetividade para além dos saberes e poderes que atuam sobre ele. Para Joan Scott, gênero deve ser compreendido como “[...] elemento constitutivo de relações sociais baseadas em diferenças percebidas entre os sexos, e gênero é uma forma primária de significar relações de poder”.32 Para Lauretis, o sujeito do feminismo – e, consequentemente, também gênero – é “uma forma de conceitualizar, de entender, de explicar certos processos e não as mulheres”.33 É a partir de todos esses elementos que Butler constrói sua análise. Ao observar as formas com que uma drag queen elabora sua personagem feminina, a autora pensa o gênero como uma performance. A drag queen constitui sua feminilidade a partir de um conjunto de signos culturalmente considerados femininos, mas que não precisam materializar-se concomitantemente sobre os corpos para produzirem seus efeitos. Essa personagem é um exagero, uma caricatura artística das expectativas que se tem sobre um modelo ideal de mulher que não existe. Por isso, Butler diz que gênero é uma cópia sem original, porque é a (re)produção de um modelo de mulher e feminilidade e de homem e masculinidade em constante modificação. Esse conceito deve ser entendido em toda sua complexidade. Para o presente trabalho, gênero enquanto performance são os arranjos sociais que gerem a vida por meio de discursos e controles (positivos e negativos) – instituições, tecnologias,

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BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-modernismo. Campinas: Cadernos Pagu, No. 11, 1998, p.11-42. 32 SCOTT, Joan W. “Gender: A Useful Category of Historical Analysis”. The American Historical Review, Vol. 91, No. 5. (Dec., 1986), pp. 1053-1075. Disponível em: . Acesso em 01 dez. 2015. 33 LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242.

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representações; são também prescrições de modelos (idealizados e construídos) a seguir coercitivamente; e é, ainda, a relação dinâmica (intra e intersubjetiva) do indivíduo com a sociedade e as profundas consequências dessa interação. Esses modelos de comportamento – que compõem uma “normalidade” discursivamente criada, normalidade essa que legitima coerções e controles médicos e punitivos – são chamados por Butler de matriz heterossexual.

Uso o termo matriz heterossexual ao longo de todo o texto para designar a grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, gêneros e desejos são naturalizados. Busquei minha referência na noção de Monique Wittig de “contrato heterossexual” e, em menor medida, naquela de Adrienne Rich de “heterossexualidade compulsória” para caracterizar o modelo discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade.34

Essa matriz de inteligibilidade, portanto, se constitui a partir de uma relação entre dicotomias culturalmente (re)produzidas. O corpo não existe fora dessa rede de poder. Adequando-se às normas, o sujeito se torna “pessoa normal” (“macho”, que é “homem”, “masculino” e se relaciona afetivo-sexualmente com sexo/gênero oposto e vice-versa). Escapando às normas, diferentes poderes se articulam e manifestam-se – principalmente por meio da negação e ou afirmação jurídica da identidade reivindicada, pelas tecnologias médicas e terapêuticas e por diferentes formas de violência. Sexo e gênero constituem-se a partir e por meio de significados culturais atribuídos a eles (“masculino” e “feminino”). Para que sejam conceitos estáveis, é preciso também que o desejo seja heterossexual, pois também a sexualidade é constitutiva das relações de gênero.

A heterossexualização do desejo requer e institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “masculino”, em que estes são compreendidos como atributos expressivos de “macho” e “fêmea”. A matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam “existir” – isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não “decorrem” nem do “sexo” nem do “gênero”.35

Qualquer subversão ou incongruência desses fatores é socialmente lida como 34

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 35 Ibid. p. 27-28.

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“anormal”, “desviante”, “doente”. Gênero, portanto, é o conjunto de relações que torna um sujeito socialmente inteligível e o classifica conforme essa inteligibilidade – gerindo “lugares” sociais e criando centros e margens. Gênero é, ao mesmo tempo, categoria analítica e identidade (construída para si e/ou atribuída por outros). Como bem explica Lauretis, “a construção do gênero é o produto e o processo tanto da representação quanto da autorepresentação”.36 Nesta senda, surgem os estudos queer,que buscam evidenciar o caráter compulsório da matriz heterossexual, desconstruir binarismos que sustentam saberes e gestão social e evidenciar interesses e funcionalidades dos discursos hegemônicos que, revestidos de cientificidade, desumanizam determinados sujeitos e torna-os abjetos. Segundo Pedro Paulo Gomes Pereira

A teoria queer surgiu como crítica aos efeitos normalizantes das formações identitárias e como probabilidade de agrupamento de corpos dissidentes. Como tal, delineou invenções transgressoras e possibilidades para além da construção binária dos sexos, repensando ontologias [...].37

Como dito anteriormente, nenhuma teoria pode prescindir de sua história, portanto é preciso contextualizar: queer é uma expressão em inglês sem tradução literal que, em seu contexto cultural, possui sentido extremamente pejorativo, dirigido ao que se deseja(va) nomear como abjeto, sujo, “gay”. Segundo Richard Miskolsi, a epidemia de HIV/Aids reconfigurou a política sexual nos Estados Unidos e devido à recusa estatal de formular respostas adequadas, dissidentes organizaram-se e radicalizaram-se em grupos como o ACTUP e o Queer Nation.38 Foi a partir de movimentos que questionavam os desejos de incorporar-se às normas que os movimentos de gays e lésbicas até então defendiam, que o “queer” se desenvolveu como teoria nos espaços acadêmicos norte-americanos. Devido a processos políticos diferentes em relação à epidemia, que incluíram certa cooperação entre Estado e movimentos sociais (que adiante será analisado), no Brasil houve um caminho inverso.

Foi assim que os estudos queer foram percebidos no Brasil no início dos 36

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 217. 37 PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer decolonial: quando as teorias viajam. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. Sao Carlos, v. 5, n. 2, jul.-dez. 2015, pp. 412. 38 MISKOLCI, Richard. Não ao Sexo Rei: da estética da existência foucaultiana à política queer. In: SOUZA, Luiz Antônio Francisco de; SABATINE, Thiago Teixeira; MAGALHÃES, Boris Ribeiro de (Org.). Michel Foucault: sexualidade, corpo e direito. Marília: Cultura Acadêmica, 2011. p. 49.

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anos 2000: como uma teoria de ação/reflexão, capaz de se valer dos aportes de Foucault, Derrida, do feminismo da diferença, dos estudos pós-coloniais e culturais para desafiar não somente a sexualidade binária e heterossexual, mas a matriz de pensamento que a conforma e sustenta. Certamente, não foi recebida assim de forma unânime. Algumas pessoas viram nos aportes teóricos e conceituais das/dos teóricas/os queer uma possibilidade de atualizar os estudos gays e lésbicos que já se fazia no Brasil desde a década de 1980. [...] Os estudos queer começaram a ser referenciados no Brasil no mesmo momento no qual experimentávamos o fortalecimento de políticas identitárias, entre estas estavam aquelas articuladas pelo então movimento GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais). De maneira que uma teoria que se proclamava como não-identitária parecia potencialmente despolitizante.39

Esse contraponto continua referenciando debates, tanto em ambientes acadêmicos quanto de militância. De um lado, defende-se a afirmação de identidades auto-narradas para, assim, adquirir direitos por meio das estruturas formais ao mesmo tempo em que se desestabiliza os binarismos que as sustentam. De outro, a teoria queer e outros movimentos que se colocam como críticos à identidade apostam no esvaziamento das categorias colocadas, buscando, ao invés de se incluir na norma, questionar sua existência. A escolha do presente trabalho de referir-se a “dissidências de gênero” ao invés de nomear a todas elas é, portanto, também uma escolha política. Ressaltem-se aqui os inúmeros debates epistemológicos acerca do status de “ciência” e “teoria”, principalmente no tocante ao que se convencionou chamar ciências sociais. Por conta das disputas ocorridas no e por meio do saber-poder, as análises de gênero por vezes são colocadas como “teorias” e por vezes como “estudos”. Tais questões não poderiam ser esgotadas aqui – e talvez em lugar ou momento nenhum – e, por isso, adotou-se no presente trabalho o termo “estudos” de gênero e, consequentemente, estudos queer. No entanto, explica Pedro Paulo Pereira Gomes A teoria queer é um repto à Teoria – assim, no singular e com maiúscula. O efeito de colocar um xingamento ao lado do termo teoria, adjetivando-o, é o de questionar a existência de algo que possa ser uma Teoria. [...] reivindica uma indagação crítica sobre a própria posição da teoria, sobre seu caráter pretensamente imaculado, como se alertasse contra aspirações por uma Teoria universal (euro-cêntrica, branca, hétero) que tudo abarcaria.40

Nos estudos queer, existe certa compreensão de que todos transitam, em algum nível, 39

PELÚCIO, Larissa. Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer noBrasil? Revista Acadêmica Periódicus, v. 1, n. 1, 2014a, p. 76. 40 PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer decolonial: quando as teorias viajam. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. Sao Carlos, v. 5, n. 2, jul.-dez. 2015, pp. 412. pp. 413.

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entre os gêneros, uma vez que os gêneros são performativos, gerados por um contexto social que regula as diferenças e as hierarquiza coercitivamente; e que todos os corpos estão submetidos aos mesmos “processos de produção tecno-biopolítica”.41 É possível dizer que os estudos queer moveram-se da análise das relações de poder desiguais (e que produziam desigualdades) entre categorias sociais fixas (homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais) “[...] para o questionamento das próprias categorias – sua fixidez, separação ou limites – e para ver o jogo do poder ao redor delas como menos binário e menos unidirecional”.42 Esses processos do biopoder devem ser cuidadosamente analisados, pois envolvem diversas relações sociais que operam concomitantemente, mas em intensidades e formas diferentes. É preciso saber relacionar suas dimensões sem, ao menos analiticamente, confundi-las. Pode ser, muito bem, que a intervenção da Igreja na sexualidade conjugal e sua repulsa às “fraudes” contra a procriação tenham perdido, nos últimos 200 anos, muito de sua insistência. Entretanto, a medicina penetrou com grande aparato nos prazeres do casal: inventou toda uma patologia orgânica, funcional ou mental, originada nas práticas sexuais “incompletas”; classificou com desvelo todas as formas de prazeres anexos; integrou-os ao “desenvolvimento” e às “perturbações” do instinto; empreendeu a gestão de todos eles.43

A estigmatização de pessoas que fogem aos moldes da matriz heterossexual, em qualquer de seus tentáculos, opera de formas diferentes, mas não se desvincula totalmente. Os processos de intervenção se modificaram historicamente e nunca foram homogêneos. Mas é possível afirmar que, desde o surgimento do discurso médico, seu papel foi decisivo na manutenção – por vezes transformada – das normas de gênero. Desse modo, é premente pensar as formas com que a matriz heterossexual e o biopoder gerem corpos, sexos e sexualidades. A sodomia – a dos antigos direitos civil ou canônico – era um tipo de ato interdito e o autor não passava de seu sujeito jurídico. O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o princípio insidioso e 41

COLLING, Leandro. O que a política trans do Equador tem a nos ensinar? Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Fazendo Gênero 9. 2010. 42 CARVALHO, Salo. Sobre as possibilidades de uma criminologia queer. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 152-168, jul./dez. 2012. p. 155. 43 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988. p. 43.

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infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual porém como natureza singular. É necessário não esquecer que a categoria psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade constituiu-se no em que foi caracterizada [...] menos como um tipo de relações sexuais do que como uma certa qualidade da sensibilidade sexual, uma certa maneira de inverter, em si mesmo, o masculino e o feminino.44

A centralidade que ganham sexo e sexualidade (e as identidades reivindicadas a partir deles) na vida social é manifestação direta dos processos difusos do biopoder e seus discursos. Eve Sedgwick explora certa epistemologia do armário, por meio da qual o “armário” se tornou dispositivo de controle sobre as vidas de gays e lésbicas.45 O assumir ou esconder identidades dissidentes da matriz heterossexual ganha significado político e imiscui-se nas relações de poder. Não obstante Sedgwick referir-se a gays e lésbicas, diversas identidades disputam políticas públicas, inclusive criminais, principalmente através de movimentos sociais – mais especificamente o movimento LGBT – e têm suas vidas permeadas pelo dispositivo do armário. Sem esquecer que cada desvio das normas de gênero tem reflexos específicos, observa-se que qualquer inadequação deve ser declarada e “assumida”. Pessoas gays ou lésbicas, trans (travestis e transexuais), intersexuais, bi/pansexuais ou assexuais, para citar alguns exemplos: todas devem anunciar as categorias que lhes foram impostas – mas que muitas vezes tentam resignificar – sob o risco de “enganar” os “normais”. Reforçamos que cada desvio tem seu reflexo específico porque, em geral, a transgeneridade é mais visível e, portanto, mais difícil de esconder. Nesse sentido, o armário talvez não marque sua vivência do mesmo modo. Mas a partir do acesso cada vez maior ao que Preciado chama de biotecnologia de gênero – cirurgias, hormônios, cosméticos – o armário se torna um dispositivo constitutivo, embora ainda de maneira diferente, das transgeneridades. De todo modo, não importa se o sujeito de fato tenta esconder tais identidades ou se as vive publicamente: em cada nova situação social (ao conhecer novas pessoas ou novos espaços) é preciso cruzar as fronteiras do “armário”, assumindo-se (ou sendo exposto), ou permanecer em seu silêncio, escondendo-se ou omitindo-se. Como já foi visto, homens e mulheres não são grupos (e categorias) homogêneos: os conjuntos considerados masculinos e femininos são atravessados por outros marcadores e 44

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988. p. 44. 45 SEDGWICK, Eve Kosofsky. A Epistemologia do Armário. In: Cadernos Pagu. Tradução de Plinio Dentzien. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, 2007. p. 4.

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relações sociais. Dessa forma, são diversos os processos que funcionarão sobre o indivíduo, fazendo com que sexo, gênero e sexualidade sejam experiências diversas. Foucault, por exemplo, relata como as tecnologias operam diferencialmente sobre a burguesia e sobre as classes dominadas.

Identidade de gênero, nesse contexto, pode ser entendida como a atitude individual frente aos construtos sociais de gênero, ante aos quais as pessoas se identificam como homens ou mulheres, percebem-se e são percebidas como integrantes de um grupo social determinado pelas concepções correntes sobre gênero [...].46

Jaqueline de Jesus define transgênero47 como “[...] um conceito guarda-chuva que abrange o grupo de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado socialmente”.48Dentre as múltiplas vivências trans, define-se mulher transexual como aquela que reivindica reconhecimento jurídico e social como mulher e homem transexual como aquele que reivindica os mesmos reconhecimentos como homem. Neste ponto é necessário se referir às diferentes experiências trans possíveis no contexto brasileiro – sem qualquer intenção de esgotá-las. Atualmente, verifica-se no Brasil a visibilidade cada vez maior das travestis e pessoas trans em geral, atingida pela articulação de produções acadêmicas e, principalmente, por ações de políticas de militantes do movimento LGBT e do movimento de mulheres trans (travestis e transexuais). A esse respeito, é importante ressaltar as diferenças que existem entre elas. De acordo com Fermim Roland Schramm, Heloisa Helena Gomes Barboza e Anibal Ribeiro Guimarães Junior,

Transexual não é apenas o indivíduo que deseja alterar (ou altera) cirurgicamente o sexo morfológico, nem o que desempenha papel de gênero não correspondente ao seu sexo biológico, mas sobretudo a pessoa que assim vive, porque sente pertencer ao outro sexo, que não é o que está em seu corpo. Esta crença o move, nenhum outro motivo. A transexualidade, tanto quanto a travestilidade, são expressões da identidade pessoal, que é multifacetada e dinâmica, na medida em que pode ser alterada ao longo da vida, em função das vivências individuais. Desse 46

JESUS, J. G. (2014). Gênero sem essencialismo: feminismo transgênero como crítica do sexo. Universitas Humanística, 78, pp. 241-258. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11144/Javeriana.UH78.gsef. Acesso em: 30 nov. 2015. p. 246. 47 Não há consenso em relação a esse termo. Por ter sido cunhado em ambientes acadêmicos, muitas pessoas dissidentes (principalmente travestis) o consideram elitista e higienista e recusam identificar-se e organizar-se politicamente a partir dele. No presente trabalho, será usado o termo “trans” para abarcar todas as pessoas que fogem às normas de gênero e que reivindicam tal identidade para si. 48 JESUS, J. G. Op. cit. p. 243.

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modo, é possível tentar conceituar o transexual como o indivíduo que, de modo contínuo, sente e afirma ser do sexo contrário ao que lhe foi atribuído, vive o gênero correspondente a esse sexo, e deseja obter o reconhecimento dessa identidade, independentemente de modificação de sua genitália e da orientação sexual que adota. [...] as travestis se mantêm, a seu modo, no sistema binário sexo-gênero; mas esse “modo” é radicalmente diferente da concepção existente, que vincula o gênero, o desejo e a prática sexual ao sexo biológico, ditado pelas gônadas e pela aparência da genitália. [...] para construir uma aparência feminina, injetam grandes quantidades de silicone no corpo e tomam hormônios; vivem como esposas de seus homens, mas se prostituem nas ruas vestidas de mulher, para seduzir homens que, não raro, desejam ser penetrados por elas; portam-se como mulher vinte e quatro horas por dia, mas não desejam ser mulher e nem se sentem como tal. Constituem, afinal, subjetividades complexas, cunhadas na contradição à norma sexo-gênero.49

O conceito de cisgeneridade– inserido neste trabalho na proposta de Butler, tornando-se matriz (cis)heterossexual – surge porque, até então, presumia-se uma veracidade ou naturalidade na identificação entre corpo, sexo e gênero. Por isso, quem desviava dessa norma devia ser identificado enquanto desviante. Cisgênero é definido como a pessoa que se identifica com o gênero atribuído socialmente.50A pessoa trans, portanto, é a que desvia das normas de gênero que regem nossa sociedade. Ser trans é ser a negação à norma. Como bem aponta Leila Dumaresq:

Como podemos falar a um outro que nos vê como uma imitação, ou pior, uma falsificação? De fato, quando se é “a norma”, nós só podemos ser os desvios. E ainda que se reconheça nossa natureza humana ela ainda é essencialmente desviante. De tal modo que nunca nos cabe falar de nós, de nosso gênero ou de nossa vivência. Não existe modo de expressarmos algo autêntico. [...] Não vamos mais nos enganar: o que nos resta quando se apaga o cisgênero é não sermos normais.51

Becker ressalta a importância da elucidação de termos analíticos que escondem relações de poder ao dizer que “quando autoridades – políticas e outras – exercem poder em parte por meio de ocultamento e mistificação, uma ciência que torna as coisas mais claras ataca inevitavelmente as bases desse poder”.52 O processo de nomeação desse tipo de relação de poder que afeta profundamente a

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GUIMARÃES JUNIOR, Anibal Ribeiro; BARBOZA, Heloisa Helena Gomes; SCHRAMM, Fermin Roland. O protocolo clínico saúde integral para travestis vis à vis o processo transexualizador no atendimento de necessidades e especificidades dessas populações: reflexões à luz da bioética. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2015. 50 JESUS, J. G. Op. cit. p. 244. 51 http://transliteracao.com.br/leiladumaresq/2014/12/o-cisgenero-existe/ 52 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 207.

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experiência social do sujeito – a cisgeneridade – pode ser entendido como um paralelo a outras torções epistemológicas feitas anteriormente, inclusive e especialmente nos estudos de gênero e sexualidade: As incoerências internas à heterossexualidade são mantidas sem problematização e ela não costuma ser vista como objeto do conhecimento,antes como uma perspectiva neutra sobre a qual podem ser estudas, por exemplo, as homossexualidades. Ao constituir a homossexualidade como um objeto de pesquisa, a heterossexualidade se constitui também como instância privilegiada do conhecimento – como a própria condição para conhecer – assim, evitando tornar-se um objeto do conhecimento ou um alvo de crítica. Trocando em miúdos, a heterossexualidade, assim como a masculinidade, se entroniza como a suposta perspectiva neutra que funda nossa epistemologia hegemônica.53

No entanto, o desenvolvimento do termo cis como categoria identitária e analítica enfrenta resistências. Muitos teóricos apontam que a criação de nova categoria em nada modifica as relações de gênero porque, ao invés de desnaturalizar binarismos em uso, produziria ainda outro. Como contraponto a tais críticas, Hailey Alves afirma que:

Não queremos criar uma dicotomia entre pessoas cis e pessoas trans* e sim evidenciar o caráter ilusório da naturalidade da categoria cis. Nomear cis é o mesmo processo político de nomear trans*: aponta e especifica uma experiência e possibilita sua análise crítica. Nas produções acadêmicas contemporâneas, tanto das ciências médicas quanto das sociais, a identidade trans* é colocada sempre sob análise, tornando-se, compulsoriamente, objeto de crítica. Ao nomearmos xs “normais” possibilitamos o mesmo, e colocamos a categoria cis sob análise, problematizando-a. Buscamos o efeito político de elevar o status de pessoas cis ao mesmo das pessoas trans*: se pessoas trans* são anormais e doentes mentais, pessoas cis também o são, suas identidades também não são “reais”; se pessoas cis são normais e suas identidades naturais, pessoas trans* também são normais e suas identidades tão reais quanto.54

Devido à constante transformação e re-nominação das identidades abarcadas pelo movimento LGBT (e que o disputam politicamente), as demandas jurídicas consolidaram-se – não sem críticas – nos termos homofobia e transfobia55. Emerge, assim, uma aparente contradição para o queer enquanto movimento político e teórico: 53

MISKOLCI, Richard. Não ao Sexo Rei: da estética da existência foucaultiana à política queer. In: SOUZA, Luiz Antônio Francisco de; SABATINE, Thiago Teixeira; MAGALHÃES, Boris Ribeiro de (Org.). Michel Foucault: sexualidade, corpo e direito. Marília: Cultura Acadêmica, 2011. p. 56-57. 54 http://transfeminismo.com/o-que-e-cissexismo/ 55 JESUS, Jaqueline Gomes de. Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero como genocídio. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2015.

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Ao contrário de outras experiências históricas e nacionais, no Brasil, o movimento tem encontrado seu denominador comum em uma agenda antihomofobia, não apenas na obtenção de direitos a partir de modelos oferecidos pelo Estado. A luta anti-homofobia poderia se sofisticar e voltarse contra o heterossexismo institucional que ainda permite que a experiência de ser chamado, leia-se, ser xingado de bicha, gay, sapatão, travesti, anormal ou degenerad@ seja a experiência fundadora da descoberta da homossexualidade ou do que nossa sociedade ainda atribui a ela, o espaço da humilhação e do sofrimento. Ao invés de transformar esta experiência em força política de resistência e questionamento da heteronormatividade, parece mais forte, no contexto brasileiro, a manutenção de uma perspectiva que busca conciliar a armadilha identitária da qual o movimento parece não saber sair. Daí a estratégia vitimizadora que subdivide a homofobia nas chamadas transfobia, homofobia, lesbofobia apelando para a proteção e a tolerância de identidades ao invés de problematizar as normas sexuais como um todo.56

Tal contradição é, neste trabalho, apenas aparente. Independente da aceitação de um “essencialismo estratégico” – que separa uma crítica teórica às identidades e suas codificações sociais das práticas políticas que reivindicam identidades para inserirem-se em espaços de poder –, o movimento LGBT brasileiro se organiza, majoritariamente, a partir de identidades. E as demandas de política criminal que serão analisadas no presente estudo operam a partir de tais termos: como veremos, fala-se em homofobia e transfobia. A partir da noção de performance de Butler, é possível compreender os processos de controle a que são submetidas as pessoas que desafiam e contrariam as normas de gênero. Masculinidade e feminilidade tornam-se instrumentos e campos de disputa. Sexo, gênero e sexualidade explicam apenas parcialmente os sujeitos, mas os marcam como desviantes e os inserem em complexas teias de poder. Ana Maria Brandão apresentou pesquisa na qual

A compreensão das vivências da sexualidade está intimamente ligada às representações do género, que tem como parâmetro central de definição a atracção erótica pelo “outro” sexo. Neste quadro, a experiência homo-erótica feminina – que englobaremos na noção lata de “dissidência sexual” – surge como transgressão das fronteiras do feminino e as mulheres que são os seus sujeitos vistas como não-mulheres – algo especialmente evidente na figura problemática e fantasmagórica da “lésbica máscula”. Porém, como o género não é um “feito”, mas um “a fazer”[...] mostramos como a experiência homo-erótica, porque contraria noções convencionais do feminino, revela um processo de reconstrução – nalguns casos, de redefinição – identitária

56

MISKOLCI, Richard. Não ao Sexo Rei: da estética da existência foucaultiana à política queer. In: SOUZA, Luiz Antônio Francisco de; SABATINE, Thiago Teixeira; MAGALHÃES, Boris Ribeiro de (Org.). Michel Foucault: sexualidade, corpo e direito. Marília: Cultura Acadêmica, 2011. p. 65.

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que ilustra diferentes modos de (re)fazer o género [...].57

Da mesma forma, a masculinidade posta em cheque pela figura do “homem afeminado” é explicada por Fábio Henrique Lopes, que a relaciona também ao biopoder e seu controle social sobre essas pessoas:

Policiais, médicos, juristas e criminologistas participaram de verdadeiras cruzadas para controlar o “desvio” homossexual. Desde então, homossexuais afeminados foram atrelados à prostituição, à condição de passivos, de penetrados e, por isso, inferiorizados. Dessa maneira, a norma heterossexual foi reforçada pela constituição do sujeito “homossexual afeminado”, assumindo o papel e a performance da mulher e do feminino, o outro do considerado “homem verdadeiro”, ou seja, do penetrador. Uma mesma lógica binário, portanto, definia – e talvez ainda defina –, os gêneros masculino e feminino e que funcionava para forjar a distinção entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Estratégias históricas de poder, de manutenção e de repetição da norma tradicional naturalizada como heterossexual. Várias das associações e dos sentidos negativos historicamente atrelados às mulheres também foram agenciados na constituição do “homossexual afeminado” e, posteriormente, das pessoas trans.58

Na presente investigação, escolheu-se, portanto, falar em dissidências de gênero, que são conjuntos de relações (algumas vezes reivindicadas como identidades) que revelam as rachaduras e contradições da matriz (cis)heterossexual – ou seja, uma tentativa de abarcar todas as vivências que fogem às normas de gênero. Afinal, mesmo antes da articulação de movimentos e teorias organizados sob categorias identitárias, sempre houve pessoas consideradas subversivas, abjetas, anormais que desafiaram as normas vigentes das mais variadas formas. Como já se problematizou, sexo, gênero e sexualidade articulam-se em processos que, das mais variadas formas, regulam e violentam – seletivamente – vidas humanas. A questão que se coloca a partir de todas essas reflexões é se a criminalização de condutas homotransfóbicas resultaria numa efetiva proteção dessas pessoas dissidentes – e se a proteção seria para todas elas. É preciso analisar como funcionam a lei penal e o sistema de justiça criminal e quais as relações de saber-poder que perpassam os discursos (e tecnologias) da punição como proteção. 57

Brandão, A. (2008). Dissidência sexual, género e identidade. Comunicação apresentada ao VI Congresso Português de Sociologia, Lisboa, 25 a 28 de Junho de 2008. 58 LOPES, Fabio Henrique. Corpos trans! Visibilidade das violências e das mortes. Revista Transversos. “Dossiê: O Corpo na História e a História do Corpo”. Rio de Janeiro, Vol. 05, nº. 05, pp. 08-22, Ano 02. dez. 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 dez. 2015.

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2 O QUEER NA CRIMINOLOGIA

Neste capítulo, opera-se uma tentativa de diálogo entre as construções teóricas desenvolvidas pelos estudos de gênero e os estudos da criminologia. Para tal, é preciso compreender em que consiste a criminologia, quais seus pressupostos teóricos e ferramentas metodológicas, como se articulam os diferentes discursos, instituições e atores e atrizes do sistema penal e como tudo isso pode ser atravessado pelos estudos de gênero – mais especificamente os estudos queer –, especialmente depois do aparecimento da proposta de uma queering criminology ou de uma criminologia queer.

2.1 Criminologia e sistema penal Muitas foram as tentativas de se conceituar, analisar e elaborar propostas para controlar o que se convencionou chamar de criminalidade. O ponto de partida do presente trabalho é a demanda do movimento LGBT pela criminalização da homotransfobia – ou seja, pela resposta punitiva (penal) do Estado às violências físicas cometidas diariamente contra as pessoas dissidentes de gênero. Ao se perguntar sobre o fenômeno criminal, Zaffaroni reforça que diferentes condutas acarretam significados sociais também diferentes e que, entre alguém que ataca e estupra uma mulher e alguém que emite um cheque sem fundo nada há em comum a não ser a resposta punitiva estatal:

O único traço em comum entre essas duas condutas é que ambas estão previstas na lei penal, ameaçadas legalmente com uma pena, submetidas a um processo de verificação prévio, institucionalizado através de funcionários públicos, pelo qual seus autores podem ser privados de liberdade em uma prisão. Isto basta para demonstrarmos que “o delito” não existe sociologicamente se prescindimos da solução institucional comum. Na realidade social existem condutas, ações, comportamentos que significam conflitos que se resolvem de um modo comum institucionalizado, mas que isoladamente considerados possuem significados sociais completamente diferentes.59

59

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 57.

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Considerando que o delito é criado a partir da organização de uma resposta social punitiva institucionalizada – posicionamento este que não é consensual, o que será discutido adiante –, é necessário inquirir de que formas opera essa reação e quais são seus efeitos para a vítima, para o delinquente e para a sociedade (ou seja, para as relações de poder que permeiam a conduta que se decidiu criminalizar). Os saberes que se articularam entorno do crime e da criminalidade se desloca(ra)m historicamente e, por isso, “qualquer observação conceitual sobre a criminologia esbarra nas diferentes perspectivas existentes nas ciências humanas”.60 Existiram diversas tentativas de se conceber um bloco único de conhecimento composto por diversas disciplinas e saberes sobre o crime – as ciências criminais.

Segundo Figueiredo Dias, foi mérito de Franz Von Lizst ter criado entre os vários pensamentos do crime uma relação que poderia ser denominada de modelo tripartido da “ciência conjunta” do direito penal. “Uma ciência conjunta, esta que compreenderia como ciências autônomas: a ciência estrita do direito penal, ou dogmática jurídico-penal, concebida, ao sabor do tempo como o conjunto dos princípios que subjazem ao ordenamento jurídico-penal e devem ser explicitados dogmática e sistematicamente; a criminologia, como ciência das causas do crime e da criminalidade; e apolítica criminal, como ‘conjunto sistemático dos princípios fundados na investigação científica das causas do crime e dos efeitos da pena, segundo os quais o Estado deve levar a cabo a luta contra o crime por meio da pena e das instituições com esta relacionada’”.61

Conforme se verá ao longo deste trabalho, vários dos conceitos e definições empregados na elaboração desse saber conjunto do direito penal são contestáveis: o estatuto de “ciência autônoma” para cada uma dessas três áreas de saber; a definição de criminologia como a busca por causas do crime; e a afirmação de que é necessária uma ação estatal punitiva que lute contra o crime. Tal acepção também provocou falta de diálogo entre essas áreas e, em alguns contextos, certa instrumentalização. Zaffaroni considera aceitável a proposta do mexicano Quiróz Cuarón de se pensar, no lugar de uma política criminal, uma política criminológica, pois a própria criminologia atualmente “[...] tem revelado até que ponto seu conhecimento – que deveria servir de base à política – não está condicionado, ou às vezes não passa de uma racionalização ou discurso de justificação desta”.62

60

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 32. Ibid. p. 35. 62 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 132. 61

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A demanda analisada no presente estudo – a criminalização da homotransfobia – perpassa essas três dimensões: estudo das relações que circundam o conflito considerado criminoso; elaboração de legislação penal sistematizada como resposta estatal; e avaliação dos efeitos dessa legislação e da punição que a acompanha no contexto sociocultural do delito. Entretanto, buscou-se trabalhar a partir da criminologia, tanto pela proposta já existente de um saber que se denomine “queering criminology” ou “criminologia queer” quanto pela perspectiva teórica que se adotou. Segundo Shecaira, “definir criminologia sob a perspectiva crítica é algo totalmente diferente do que fazê-lo sob a ótica do positivismo italiano”.63 Apesar de reconhecer a relevância dos apontamentos de que as ciências humanas não são neutras – por terem como objeto relações sociais, que são mutáveis, e cuja observação é frequentemente fragmentada –, afirma o autor que há produção de informações válidas e confiáveis na criminologia, especialmente a partir dos métodos empíricos de análise e observação da realidade e, portanto, considera a criminologia uma ciência.64 Para Ana Gabriela Mendes Braga, a criminologia pode ser conceituada de tantas formas quantos são os saberes que a compõem: um jurista terá uma visão distinta da de um sociólogo, que por sua vez será distinta da de um antropólogo, psicólogo, cientista político e assim sucessivamente, pois cada campo possui conceitos e métodos próprios. Acrescenta ainda que “[...] a criminologia, como uma ciência humana e social, está ancorada nas possibilidades epistemológicas da sociedade na qual é produzida e, portanto, em constante modificação”.65 Faz-se necessário, então, contextualizar historicamente a criminologia para analisar seus efeitos teóricos e políticos. Segundo Cândido Agra, o positivismo supõe que A ciência consiste nesse empreendimento que é a descrição das leis que regem os fenómenos observáveis na natureza e na sociedade. E só o que é observável na experiência sensível constitui objecto de conhecimento científico. O critério de cientificidade reside, pois, na adesão a um real cuja verdade se apresenta na evidenciação legal. A tarefa do conhecimento científico consiste precisamente em reduzir a diversidade das coisas e dos acontecimentos aos planos do seu natural ordenamento. A origem ou as causas desses planos mecânico-determinísticos que constituem o real já não são objecto da ciência mas sim do pensamento filosófico, inútil e mesmo patológico, próprio da adolescência da humanidade, ultrapassada pelo seu

63

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 32. Ibid. p. 36-37. 65 BRAGA, Ana Gabriela Mendes. Criminologia e prisão: caminhos e desafios da pesquisa empírica no campo prisional. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, p. 46-62, 2014. p. 49. 64

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estado de pensamento adulto e maduro, o espírito positivo, ensina A. Comte.66

É a partir deste paradigma que a criminologia que posteriormente se denominou etiológica (ou positivista) buscou a causa da criminalidade nos considerados criminosos – embora se entenda que etiologia é a busca pela causa do crime, que existiu além da escola positivista. Considerava-se que o crime tinha fatores biológicos, naturais, que deveriam ser sistematicamente estudados para se curar ou neutralizar.

Este saber causal gerou, pois, um saber tecnológico: não apenas o diagnóstico da patologia criminal, mas acompanhada do remédio que cura. Instaura-se, desta forma, o discurso do combate contra a criminalidade (o “mal”) em defesa da sociedade (o “bem”) respaldado pela ciência. A possibilidade de uma explicação “cientificamente” fundamentada das causas enseja, por extensão, uma luta científica contra a criminalidade erigindo o criminoso em destinatário de uma política criminal de base científica. A um passado de periculosidade confere-se um futuro: a recuperação. Obviamente, é um modelo consensual de sociedade que opera por detrás deste paradigma, segundo o qual não se problematiza o Direito Penal - visto como expressão do interesse geral - mas os indivíduos, diferenciados, que o violam.67

Conforme explica Vera Regina Andrade, a perspectiva sociológica do positivismo italiano defendia que o crime era o resultado previsível determinado por “[...] uma tríplice série de causas ligadas à etiologia do crime: individuais (orgânicas e psíquicas), físicas (ambiente telúrico) e sociais (ambiente social)”, por meio da qual seria possível determinar antecipadamente quem eram os indivíduos propensos à criminalidade e, portanto, socialmente perigosos. Essas tentativas de explicações ontológicas do crime, ou seja, de aspectos do criminoso que o levam a delinquir, são incapazes de compreender o fenômeno criminal em sua totalidade, porque ao delimitar como objeto de estudo “os criminosos”, necessariamente essa criminologia estará, metodologicamente, restrita aos criminosos que foram selecionados pelos processos de criminalização. A busca por causas do crime em características individuais dos criminosos delimitam nos manicômios e prisões os sujeitos estudados, ignorando as relações de poder que fazem com que não só certas condutas sejam selecionadas pelo sistema penal como também só certos desviantes. Dessa forma, investigando somente quem a lei

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AGRA, Cândido. Elementos para uma epistemologia da criminologia. Estudos em comemoração dos cinco anos (1995-2000) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. 2000, Coimbra: Coimbra. p 67. 67 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 24-36, jan. 1995. ISSN 2177-7055. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015. p. 26.

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penal determina como criminoso e o sistema de justiça criminal seleciona para punir, a criminologia positivista não observará o tráfico de drogas, a prostituição e a violência homotransfóbica como fenômenos; conhecerá apenas alguns traficantes, prostitutas e homotransfóbicos, sendo, portanto, insuficiente para explicar os processos de criminalização e oferecer propostas de solução. Na realidade, a criminologia positivista – e todo o eco que lhe fazem os discursos punitivistas – funciona como uma ciência do controle social.68 A legitimação do controle social pela criminologia positivista é explicada por Lola Anyiar de Castro, ao afirmar que

Como se pode ver, para esta criminologia a ordem legal é uma construção incontestável, um ponto de partida necessário que separa, de entrada, o gênero humano em duas espécies bem definidas: a dos delinqüentes e a dos não delinqüentes. Esta separação impregnará de conteúdo valorativo, portanto, subjetivo, todos os estudos referentes ao homem delinqüente, esquecendo-se de incluí-lo dentro da totalidade do sistema, assim como esquecendo-se de incluir a si mesmos, como teorias, nesse mesmo sistema, o que teria permitido determinar a que razões obedecia a sua postura epistemológica. Esta carência faz parte de toda a criminologia positivista.69

Não só a criminologia positivista mostrou-se insuficiente para explicar o fenômeno criminal, como incorporou os pressupostos normativos da matriz heterossexual e utilizou-os como base para interpretação e categorização do desvio. Para Salo de Carvalho, apesar de questões relativas a gênero e sexualidade não constituírem questões centrais nas investigações positivistas – em especial a lombrosiana – houve incorporação da heteronormatividade, pois o ideal de masculinidade heterossexual foi assumido como um dos principais critérios para interpretação do desvio e catalogação das patologias, perpassado por referências moralizadoras e normalizadoras; a imagem lombrosiana construída para o delinquente é nitidamente marcada por estereótipos baseados em características atribuídas aos corpos: nos considerados masculinos, musculosidade e hipergenitália, por exemplo.70 Em relação às mulheres, construiu-se uma categorização das mulheres a partir de um duplo “vítima-vilã”, que tem como fundamento naturezas masculina e feminina: a mulher vítima, a ser tutelada e protegida, era entendida por Lombroso e Ferreiro como obediente e civilizada, enquanto “à

68

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 24-36, jan. 1995. ISSN 2177-7055. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015. p. 32-33. 69 CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 97. 70 CARVALHO, Salo. Sobre as possibilidades de uma criminologia queer. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 152-168, jul./dez. 2012. p.157.

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criminosa, excessivamente erótica, lhe são atribuídos traços masculinos: a dominação e a virilidade [...]”.71 Segundo Ana Gabriela Mendes Braga, o declínio do positivismo criminológico fez com que a dogmática penal se desenvolvesse independente da produção empírica – o que reforçou ainda mais os discursos que legitimavam e ainda legitimam o sistema penal seletivo; somente a partir da segunda metade do século passado a criminologia “[...] passa a questionar as práticas do sistema de justiça criminal e denunciar seu caráter violento e seletivo e a inconsistência das finalidades declaradas da pena”.72 Para a autora,

[...] cabe à Criminologia refletir acerca da aplicação do direito penal e do funcionamento do sistema de justiça, aferindo o alcance das leis penais e o impacto delas sobre autores de crimes, vítimas e sociedade, de forma a enriquecer a discussão acerca da produção normativa e das escolhas políticas em termos de gestão da criminalidade.73

Tais questionamentos surgem com a passagem de um paradigma baseado na busca pelas causas da criminalidade a outro, preocupado com as condições de criminalização – que hoje se ocupa da análise dos sistemas penais vigentes (natureza, estrutura e funções). Portanto, especialmente pela criminologia crítica, passou-se de uma teoria da criminalidade a uma teoria crítica e sociológica do sistema penal.74 Esse deslocamento epistemológico deu abertura para que muitas novas abordagens criminológicas emergissem, passando a olhar o fenômeno criminal enquanto uma confluência de fatores sociais e individuais, materiais e subjetivos – e não apenas sujeitos que voluntariamente contrariavam as normas devido a tendências naturais ao crime. Ou seja, da ação social, o foco passou a ser a reação social. A criminalidade passa a ser vista, portanto, além de uma atitude individual, mas como um processo de criação de normas penais (e médicas), inserido nas inter-relações e produzido pelas reações sociais a condutas desviantes. Tal modificação de paradigma é atribuída ao interacionismo simbólico e à etnometodologia, mais especificamente a Howard Becker, que diz que

71

BRAGA, Ana Gabriela Mendes. A vítima-vilã: a construção da prostituta e seus reflexos na política criminal. p. 223. 72 Idem. Criminologia e prisão: caminhos e desafios da pesquisa empírica no campo prisional. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, p. 46-62, 2014. p. 50. 73 Ibid. p. 51. 74 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 24-36, jan. 1995. ISSN 2177-7055. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015. p. 31.

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As teorias interacionistas do desvio, como as teorias interacionistas em geral, prestam atenção à forma como os atores sociais se definem uns aos outros e a seus ambientes. Prestam particular atenção a diferenciais no poder de definir; no modo como um grupo conquista e usa o poder de definir a maneira como outros grupos serão considerados, compreendidos e tratados. Elites, classes dominantes, patrões, adultos, homens, brancos – grupos de status superior em geral – mantêm seu poder tanto controlando o modo como as pessoas definem o mundo, seus componentes e suas possibilidades, e também pelo uso de formas mais primitivas de controle. Podem usar meios mais primitivos para estabelecer hegemonia. Mas o controle baseado na manipulação de definições e rótulos funciona mais suavemente e custa menos, e os grupos de status superior o preferem. O ataque à hierarquia começa com uma ofensiva a definições, rótulos e concepções convencionais de quem é quem e o que é o quê.75

Foi preciso, portanto, desenvolver novos conceitos e métodos de investigação para explicar esses complexos processos de criminalização. Segundo Zaffaroni, as estruturas de uma sociedade configuram-se com grupos mais próximos do poder e grupos mais marginalizados, o que tem como consequência “[...] um emaranhado de múltiplas e protéicas formas de “controle social” (influência da sociedade delimitadora do âmbito de conduta do indivíduo)”.76 Segundo Sérgio Salomão Shecaira,

[...] podemos definir o controle social como o conjunto de mecanismos e sanções sociais que pretendem submeter o indivíduo aos modelos e normas comunitários. Para alcançar tais metas, as organizações sociais lançam mão de dois sistemas articulados entre si. De um lado tem-se o controle social informal, que passa pela instância da sociedade civil: família, escola, profissão, opinião pública, grupos de pressão, clubes de serviço etc. Outra instância é a do controle social formal, identificada com a atuação do aparelho político do Estado. São controles realizados por intermédio da Polícia, da Justiça, do Exército, do Ministério Público, da Administração Penitenciária e de todos os consectários de tais agências, como controle legal, penal etc.77

A dinâmica entre o controle social formal e o informal, nas relações de poder da sociedade, modifica as formas e intensidade com que são aplicados. Isso faz com que, em 75

BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 204. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p 77 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 56. 76

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pequenas comunidades, seja menos necessária a aplicação do controle formal – o contrário dos grandes centros urbanos, em que o acionamento de controles formais para resolução de conflitos são muito mais frequentes.78 A noção de controle social utilizada na criminologia é de extrema importância para o presente estudo, pois coloca em outros termos parte do processo que nos estudos de gênero anteriormente discutidos se definiu como de conformação do indivíduo às normas da matriz heterossexual – e variadas reações à não-conformação. Dentre as formas de controle social formal, pode-se entender o sistema penal de forma mais ampla ou mais restrita. Para Zaffaroni, o entendimento mais limitado define sistema penal como [...] controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. [...] Em um sentido mais amplo, entendido o sistema penal – tal como o temos afirmado – como “controle social punitivo institucionalizado”, nele se incluem ações controladoras e repressoras que aparentemente nada têm a ver com o sistema penal.

Também compõem o sistema formal algumas condutas ilegais, como corrupção e violência policial. Ao que Zaffaroni chama de “sistema penal subterrâneo”, pode-se atribuir importante formas de controle não-declarado que, no tocante à população trans, são marcas profundas na experiência com o sistema penal. A afirmação trazida pelas teorias interacionistas de que a criminalidade não tem natureza ontológica e que o controle social é constitutivo de sua construção seletiva, o interesse pelas “causas” do crime deslocaram-se para a reação à conduta desviada, especialmente o sistema penal. Segundo Vera Regina de Andrade,

Como objeto desta abordagem o sistema penal não se reduz ao complexo estático das normas penais mas é concebido como um processo articulado e dinâmico de criminalização ao qual concorrem todas as agências do controle social formal, desde o Legislador (criminalização primária), passando pela Polícia e a Justiça(criminalização secundária) até o sistema penitenciário e os mecanismos do controle social informal. Em decorrência, pois, de sua rejeição ao determinismo e aos modelos estáticos de comportamento, o labelling conduziu ao reconhecimento de que, do ponto de vista do processo de criminalização seletiva, a investigação das agências formais de controle não pode considerá-las como agências isoladas umas das outras, autosuficientes e auto-reguladas mas requer, no mais alto grau,um approach 78

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.52.

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integrado que permita apreender o funcionamento do sistema como um todo.79

Entretanto, o paradigma etiológico, que localiza no criminoso as causas da criminalidade e atribui ao sistema penal a função de “correção” (ressocialização e “reabilitação”; e na prevenção por meio do exemplo, como se ao punir um criminoso outras pessoas temessem a mesma reação social e evitassem praticar a mesma conduta) tem reflexos e defensores até hoje. A demanda por criminalização primária da violência homotransfóbica, por exemplo, é mais um reforço desta (ir)racionalidade que desvincula as estruturas sociais da violência e da criminalidade. Por isso, segundo Ana Gabriela Mendes Braga, Para repensarmos os atuais rumos da Política Criminal e Penitenciária no Brasil, é necessário que tenhamos um grande número de estudos empíricos que nos guie na formulação de novas propostas para a execução penal. A principal contribuição da criminologia para o desenvolvimento das ciências criminais e da sociedade como um todo está na possibilidade de apontar o tipo de racionalidade produzida pelos discursos e pelas práticas do sistema de justiça criminal, assumindo assim uma perspectiva crítica em relação às instituições de controle e em relação aos saberes que as sustentam.80

Para o presente estudo, tais concepções têm dupla consequência. Primeiramente, é preciso relacionar os estudos de gênero aos controles sociais de que passou a falar a criminologia, buscando compreender os processos de criminalização e estigmatização sofridos pelas dissidências de gênero. Em seguida, é preciso (tentar) compreender como se relacionam os processos de reação social ao desvio das dissidências de gênero e aos criminosos que as lesionam e matam, como funciona o sistema penal e investigar a efetividade de seu acionamento no controle e superação da violência de gênero.

2.2 Possibilidades de uma criminologia queer

Como já visto, existem muitos pontos possíveis de intersecção entre os estudos de 79

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 24-36, jan. 1995. ISSN 2177-7055. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015. 80 BRAGA, Ana Gabriela Mendes. Criminologia e prisão: caminhos e desafios da pesquisa empírica no campo prisional. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, p. 46-62, 2014. p. 51.

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gênero e a criminologia. As diversas formas de controle social que sustentam a matriz heterossexual e sua absorção pelas sujeitas (mulheres e ou dissidências de gênero) devem ser constantemente analisadas e submetidas a críticas. Segundo Débora Diniz, em toda pesquisa que se pretenda feminista é preciso compreender gênero como um jogo conceitual entre regime político, moral e governança:

Uma pesquisa feminista parte do acaso da matéria, reconhece a sexagem como um gesto inaugural do regime político do gênero, investiga a moral patriarcal na vida e sobrevida das mulheres, desconfia das instituições que movem a governança das mulheres no asilo, na esquina, no convento ou na prisão.81

Essa desconfiança é desenvolvida no saber que se convencionou chamar criminologia feminista, que insere a mulher como sujeito específico nas análises da criminalidade – no caso deste estudo, mais especificamente a violência. A partir dela, é possível analisar leis penais que afetam diretamente as mulheres, como o aborto, e também as diversas formas de controle – não necessariamente por leis positivadas – sobre os corpos e subjetividades. Infere Olga Espinoza82:

No caso das mulheres, o sistema de controle por excelência tem sido o controle informal. Através de instâncias informais, como a família, a escola, a igreja, a vizinhança, todas as esferas da vida das mulheres são constantemente observadas e limitadas, dando pouca margem ao controle formal limite do sistema punitivo (materializado no cárcere). Essa situação gera uma menor visibilidade da mulher nos índices de criminalidade.

Dessa forma, a criminologia feminista questiona a relação entre os processos de criminalização conjuntamente às constrições das normas de gênero. Ademais, como apontam Ana Gabriela Mendes Braga e Bruna Angotti, é preciso analisar a seletividade do sistema de justiça criminal concomitante ao despreparo para suprir demandas específicas83. No sistema carcerário esse despreparo – ou desinteresse – fica evidente. O perfil da mulher encarcerada é jovem, de baixa renda, em geral mãe, presa por crime relacionado ao tráfico de drogas ou 81

DINIZ, Debora. Perspectivas e articulações de uma pesquisa feminista. In: Estudos feministas e de gênero: articulações e perspectivas. Cristina Stevens, Susane Rodrigues de Oliveira e Valeska Zanello (org.). p. 11-21. Florianópolis: Mulheres, 2014. p. 19. 82 ESPINOZA, Olga. A Prisão feminina desde um olhar da criminologia feminista. Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciárias, 1 (1), jan-dez/2002. 83 BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Assuntos Legislativos. Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Brasília: Ministério da Justiça; Ipea, 2015. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2015..

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contra o patrimônio. Essas mulheres têm de lidar com abandono familiar, dependência econômica e afetiva, filhos que deixaram extramuros, gravidez, amamentação e cuidados no cárcere, perda da guarda dos filhos sem qualquer notificação ou acompanhamento psicológico. E as especificidades de gênero, tão latentes no âmbito da execução penal, (re)produzem-se também nos processos de criminalização em todo o sistema penal. Segundo Carmen Hein de Campos, é preciso considerar uma perspectiva de posicionalidade no sujeito da teoria feminista – inclusive a criminológica –, incluindo-se “[...] a noção de lugar/localização. O lugar não está apenas ancorado na ontologia ou na biologia (ser mulher não nos torna “irmãs”), mas o lugar de enunciação que permite questionar categorias analíticas homogêneas”.84 Nesse sentido, defende a autora que deve-se pensar “mulher” como um mapa de semelhanças e diferenças sobrepostas, de forma não a fazer desaparecer o corpo, mas tornando-o uma variável com sentido e importância diferentes em contextos históricos variáveis. Sustenta, ainda, que um dos desafios da criminologia feminista é superar o essencialismo de gênero, pois “[...] nem a categoria lei nem a categoria mulheres são entidades homogêneas capazes de manter uma relação singular entre si”.85 A multiplicidade de fatores que devem ser incorporados a uma análise criminológica feminista fica evidente nas formas específicas em que o controle social informal atua sobre mulheres negras: O campo da violência doméstica tem sido uma arena de debates sobre o sujeito do feminismo criminológico, já que muitas feministas vêem nas propostas legias de proteção das mulheres, a fixação de um sujeito vitimário. Analisando a relação das mulheres afro-americanas com o sistema de justiça criminal nos casos de violência doméstica Hillary Potter (2006) explora as situações em que essas mulheres permanecem em uma relação abusiva com seus parceiros íntimos. [...] Segundo a autora, as mulheres negras relutam em procurar os serviços de saúde e não confiam no sistema de justiça criminal. Além disso, a comunidade é também um fator importante na manutenção de uma relação abusiva. Ficar sem um companheiro ou ser estigmatizada como mãe solteira pela comunidade é um aspecto mais relevante que o medo de se manter em uma relação abusiva ou de futuras agressões.86

O que se faz a partir de uma perspectiva de sujeito perpassado por múltiplas características – no caso mulheres afro-americanas – não é fixar um lugar de vítimas ou incapazes de sair de relações abusivas, mas de compreender como diversos fatores sociais se 84

CAMPOS, Carmen Hein de. CAMPOS, Carmen Hein. Violência de gênero e o novo sujeito do feminismo criminológico. Seminário Internacional Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010. p. 3. 85 Ibid. p. 3-4. 86 Ibid. p. 4.

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cruzam criando diversas posições diferentes nas relações sociais. Nesse sentido, o que propõe a autora é repensar a heterogeneidade do sujeito criminológico, que fica diluída quando a lei penal que busca proteger determinadas mulheres em situações específicas – singulares umas às outras – com uma mesma solução. Para ela, é preciso “[...] re-configurar o sujeito criminológico, não mais a vítima unificada, mas um sujeito político que possa dizer do lugar que deseja ocupar”.87 Pretende-se, portanto, pensar uma criminologia que consiga articular diferentes respostas que atendam às especificidades de cada relação. No presente trabalho, propõe-se a inserção do queer, das dissidências de gênero, nas análises criminológicas. Segundo Salo de Carvalho: A convergência ou a identidade entre as teorias feminista e queer radica, portanto, na crítica e na desconstrução do falocentrismo ou ideal do macho, paradigma que institui como regra a masculinidade heterossexual e que provoca, como consequência direta, a opressão da mulher (misoginia) e a anulação da diversidade sexual (homofobia). Nesta perspectiva, Sedgwick (apud Miskolci, 2009) sustenta a existência de uma relação de interdependência entre misoginia e homofobia, pois a dominação das mulheres e a rejeição das relações amorosas entre homens (e entre mulheres, acrescento) se constituíram histórica e socialmente desde esta mesma lógica falocêntrica. Maya (2008) irá aproximar o conceito de homofobia ao de ginecofobia, indagando se efetivamente foi a homossexualidade ou o feminino que teria sido negativado repetidamente através dos tempos.88

A convergência possível entre criminologia feminista e estudos queer se encontra na tentativa de desconstrução da hierarquização dos gêneros e dos controles sociais que as (re)produzem e gerem. Uma perspectiva criminológica queer, portanto, deve incorporar o saber feminista criticando a naturalização e a hierarquização entre masculino e feminino, transcendendo a dicotomia produzida culturalmente. Assim, busca-se “[...] não apenas como desconstruir o padrão sexista e misógino que inferioriza o feminino, mas como romper com um ideal de masculinidade hegemônico para além das diferenças de gênero”.89 No entanto, pensar o queer na criminologia é também uma questão epistemológica e metodológica. Segundo Ana Gabriela Mendes Braga,

A interdisciplinaridade intrínseca ao saber criminológico desloca este para fora do âmbito jurídico. Não há como se fazer criminologia sem o auxílio de 87

CAMPOS, Carmen Hein de. CAMPOS, Carmen Hein. Violência de gênero e o novo sujeito do feminismo criminológico. Seminário Internacional Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010. p. 5-6. 88 CARVALHO, Salo. Sobre as Possibilidades de uma Criminologia Queer. Sistema Penal & Violência (Online), v. 4, p. 152-168, 2012. p. 158. 89 Ibid. p. 160.

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conceitos ‒ e principalmente ‒ de metodologias de outras áreas das ciências humanas. O desafio do fazer criminológico é construir, a partir dessas metodologias, ferramentas metodológicas próprias que alcancem seu objeto de estudo, objeto este que se oculta. De tal sorte, que a produção do saber criminológico depende do acesso às instituições e atores do sistema criminal, de estatísticas criminais fiáveis, assim como, de construção de relações de intimidade, confiança e colaboração, a partir das quais se pode aproximar dos fenômenos em torno do crime e da reação social.90

Especificamente em relação às estatísticas criminais fiáveis, uma criminologia queer encontra um grande obstáculo. Conforme dispõe Jaqueline Gomes de Jesus, “[...] no Brasil, em particular, inexiste um sistema de informações oficial que contabilize as mortes de pessoas trans, exceto iniciativas isoladas de ONGs como o Grupo Gay da Bahia – GGB”.91 Isso gera muitos problemas metodológicos, principalmente porque, segundo a autora, “críticas ao uso de fontes não oficiais são comuns, tanto quanto o reconhecimento de que é possível estudar violência com base em dados decorrentes de notícias”.92 Por esta razão, apesar de reconhecer as limitações de uma análise com base em fontes indiretas, não há alternativas que possibilitem o uso de dados oficiais para o presente trabalho. Nesse sentido, entende-se a invisibilidade da violência homotransfóbica como mais uma manifestação de poder sobre as dissidências de gênero. Como proposta futura, portanto, deve o campo multidisciplinar do queer na criminologia analisar o fenômeno da violência e do controle social sobre as dissidências por meio de diferentes abordagens. É justamente a combinação de métodos de outras ciências humanas direcionada a um objeto específico que dá unidade ao saber criminológico. [...] O fato de que grande parte da produção criminológica do Brasil não está nomeada como criminologia, mas como produções de direito penal, direitos humanos, sociologia da violência, sociologia das instituições, antropologia jurídica, antropologia social, psicologia clínica, psicologia social, etc., não facilita o encontro e a troca entre esses pesquisadores, que seria fundamental para o desenvolvimento e propagação de uma área de conhecimento. Ainda com os riscos e perigos de estar em um “não-lugar”, é essa mesma posição que permite uma análise multifacetada de um objeto tão complexo e que possibilita a junção de óticas diversas e complementares – razão de ser da criminologia.

90

BRAGA, Ana Gabriela Mendes. Criminologia e prisão: caminhos e desafios da pesquisa empírica no campo prisional. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, p. 46-62, 2014. p. 51. 91 JESUS, Jaqueline Gomes de. Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero como genocídio. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2015. p.108. 92 Ibid.

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Não fechar a pesquisa dentro de um domínio disciplinar é uma resistência contra a “compartimentalização” dos saberes e uma luta contra a disciplina de um modo geral.93

A partir de tais reflexões, propõe-se aqui não uma construção epistemológica própria nem a condição de ciência autônoma, mas um campo múltiplo e em constante diálogo com outros saberes. Se o queer, como diz Guacira Lopes Louro, deve ser visto “[...] como uma espécie de disposição existencial e política, uma tendência e também como um conjunto de saberes que poderiam ser qualificados como “subalternos””94, seu potencial de articulação com a criminologia reside tanto na busca por compreender os processos de criminalização exercidos sobre dissidências de gênero quanto no questionamento do sistema penal como superação da violência de gênero. Para Salo de Carvalho, há uma constante naturalização da norma heterossexual e [...] este complexo processo de legitimação da violência heterossexista poderia ser decomposto em três níveis fundacionais que configuram as culturas heteromoralizadoras e heteronormalizadoras: o primeiro, da violência simbólica (cultura homofóbica), a partir da construção social de discursos de inferiorização da diversidade sexual e de orientação de gênero; o segundo, da violência das instituições (homofobia de Estado), com a criminalização e a patologização das identidades não-heterossexuais; o terceiro, da violência interpessoal (homofobia individual), no qual a tentativa de anulação da diversidade ocorre através de atos brutos de violência (violência real).95

A homotransfobia, dessa forma, embora possa, em um primeiro momento, parecer referir-se a um medo patológico da homossexualidade e da transgeneridade, deve ser entendida como a construção social cujas consequências sobre os corpos considerados desviantes consubstanciam-se em “[...] todas as formas de desqualificação e violência dirigidas a todos que não correspondem ao ideal normativo de sexualidade[...]” e “[...] para referir as situações de preconceito, discriminação e violência contra pessoas (homossexuais ou não) cujas performances e ou expressões de gênero (gostos, estilos, comportamentos, etc.) não se enquadram nos modelos hegemônicos postos”.96 Entretanto, mais uma dificuldade se evidencia: os sujeitos que compõem as dissidências de gênero, como discutido anteriormente, ocupam diferentes lugares nas relações de poder e de forma alguma constituem um grupo homogêneo. Isto significa que “[...] o grau 93

BRAGA, Ana Gabriela Mendes. Criminologia e prisão: caminhos e desafios da pesquisa empírica no campo prisional. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, p. 46-62, 2014. p. 51-52. 94 http://revistacult.uol.com.br/home/2014/10/o-potencial-politico-da-teoria-queer/ 95 CARVALHO, Salo. Sobre as possibilidades de uma criminologia queer. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 152-168, jul./dez. 2012. p. 154. 96 Ibid. p. 156.

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de exposição a atos violentos separa muito nitidamente diferentes categorias – gays, lésbicas e travestis – frequentemente agrupados sob a genérica rubrica de homossexuais [...]”.97 O desenvolvimento de ferramentas metodológicas para o queer na criminologia, portanto, deve reconhecer especificidades, pois [...] dados e pesquisam revelam que o tipo de violência letal que incide sobre travestis é bem diferente da que tende a atingir outros homens nãoheterossexuais. Mesmo entre as travestis vitimadas há predominância de negras e pardas, enquanto entre gays, ou seja, homossexuais que não exibem tão claramente as marcas de sua “diferença”, predominam indivíduos classificados como brancos, com alta escolaridade e oriundos das camadas médias urbanas.98

Os diferentes marcadores sociais que constituem o fenômeno da violência homotransfóbica articulam-se diferentemente em cada caso e isso exige que toda pesquisa criminológica e toda formulação de políticas públicas e política criminal consiga responder adequadamente a essa confluência de fatores. O desafio reside no fato de que toda tutela jurídica, principalmente a tutela penal, tende a generalizações que apagam a multiplicidade que caracteriza o tecido social. Nesse sentido, deve-se investigar de que formas a matriz heterossexual é naturalizada e (re)produzida no e pelo controle social, inclusive – e, neste trabalho, especialmente – o sistema de justiça criminal. Propõe-se que sejam objetos do queer na criminologia, portanto, tanto a violência de gênero e as respostas dadas a ela pelo sistema penal – direta ou indiretamente – quanto os discursos e dispositivos que permeiam e sustentam a matriz (cis)heterossexual e seus violentos reflexos.

2.3 Controle social das dissidências de gênero: medicina e Direito como tecnologias do biopoder “Eu não estou presa em um corpo de homem, estou presa nas concepções da sociedade sobre o que é ser um homem e uma mulher” Indianara Alves Siqueira

97

LOPES, Fabio Henrique. Corpos trans! Visibilidade das violências e das mortes. Revista Transversos. “Dossiê: O Corpo na História e a História do Corpo”. Rio de Janeiro, Vol. 05, nº. 05, pp. 08-22, Ano 02. dez. 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 dez. 2015. p. 10-11. 98 Ibid. p. 11.

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As formas com que o biopoder se imiscui nos discursos e práticas cotidianos devem ser cuidadosamente analisadas. Antes de demandar uma tutela do sistema penal, é necessário indagar qual o papel que ele próprio exerce nas relações que pretende mediar. Para Foucault, não se deve analisar a manifestação do poder somente em sua dimensão proibitiva, ao que chama lei de interdição. É preciso reconhecer os numerosos aparelhos de poder, articulados em mecanismos sutis e delicados, pois “[...] é somente mascarando uma parte importante de si mesmo que o poder é tolerável. Seu sucesso está na proporção daquilo que consegue ocultar dentre seus mecanismos”.99 Sendo assim, como ensina Zaffaroni, O controle social se vale, pois, desde meios mais ou menos “difusos” e encobertos até meios específicos e explícitos, como é o sistema penal (polícia, juízes, agentes penitenciários, etc.). A enorme extensão e complexidade do fenômeno do controle social demonstra que uma sociedade é mais ou menos autoritária ou mais ou menos democrática, segundo se oriente em um ou outro sentido a totalidade do fenômeno e não unicamente a parte do controle social institucionalizado ou explícito. Assim, para avaliar o controle social em um determinado contexto, o observador não deve deter-se no sistema penal, e menos ainda na mera letra da lei penal, mas é mister analisar a estrutura familiar (autoritária ou não), a educação (a escola, os métodos pedagógicos, o controle ideológico dos textos, a universidade, a liberdade de cátedra etc.), a medicina [...] e muitos outros aspectos que tornam complicadíssimo o tecido social. Quem quiser formar uma ideia do modelo de sociedade com que depara, esquecendo esta pluridimensionalidade do fenômeno de controle, cairá em um simplismo ilusório.100

Portanto, ao se pensar a violência de gênero, mais especificamente a violência homotransfóbica,

é

indispensável

refletir

acerca

dos

diferentes

processos

que,

concomitantemente, estabelecem padrões de normalidade, desumanizam os sujeitos que desviam da norma e legitimam as violências por eles sofridas. Para Jock Young, vivemos em “[...] uma sociedade que não abomina “o outro”, nem o vê como inimigo externo, mas muito mais como alguém que deve ser socializado, reabilitado, curado até ficar como “nós””.101 Pode-se afirmar, assim, que a homotransfobia de que dissidências de gênero são vítimas “[...]

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FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988. p. 83. 100 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 62. 101 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro. Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p. 32.

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se constitui não só pelos crimes letais, mas também pelos crimes não espetaculares e nãoletais, gerados e vividos em escala microssocietária, na esfera da família e de conhecidos”102. Os diferentes dispositivos que gerem sexo, gênero e sexualidade são inúmeros. Por isso, o presente estudo tem como recorte a “[...] repressão histórica da diversidade sexual através dos dois mais significativos sistemas formais de controle social punitivo: o direito penal e a psiquiatria”103, para investigar se a demanda por criminalização das condutas compreendidas como sendo de natureza homotransfóbica de fato protege as dissidências de gênero ou se, ao contrário, reforça e legitima as tecnologias que (re)produzem tal violência. Segundo Foucault, verifica-se um entrelaçamento histórico dos saberes médicos e do sistema penal na rede de controles sociais que operam sobre os corpos dissidentes: Inicialmente, a medicina, por intermédio das “doenças dos nervos”; em seguida, a psiquiatria, quando começa a procurar – do lado da “extravagância”, depois do onanismo, mais tarde da insatisfação e das “fraudes contra a procriação”, a etiologia das doenças mentais e, sobretudo, quando anexa ao seu domínio exclusivo, o conjunto das perversões sexuais; também a justiça penal, que por muito tempo ocupou-se da sexualidade, sobretudo sob a forma de crimes “crapulosos” e antinaturais, [...] enfim, todos esses controles sociais que se desenvolveram no final do século passado e filtram a sexualidade dos casais, dos pais e dos filhos, dos adolescentes perigosos e em perigo – tratando de proteger, separar e prevenir, assinalando perigos em toda parte, despertando atenções, solicitando diagnósticos, acumulando relatórios, organizando terapêuticas [...].104

Esses discursos, para o autor, não se limitaram a proibições, especialmente por meio de leis e diagnósticos. Houve, ao contrário, um processo de identificação, rotulação e estudo de diferentes possibilidades da sexualidade humana – processo que, muito mais do que só proibir, produziu verdades e práticas e todo um conjunto de características constitutivas das categorias que descreviam. A partir das categorias sexuais, a que Foucault chama de sexualidades regionais ou periféricas, construiu-se referências de moralidade e imoralidade, do que é sadio e do que é patológico.105 Mas não se pode dizer que tais discursos sustentaram uma tentativa de extinguir essas sexualidades periféricas. Delimitando-se fronteiras no campo 102

LOPES, Fabio Henrique. Corpos trans! Visibilidade das violências e das mortes. Revista Transversos. “Dossiê: O Corpo na História e a História do Corpo”. Rio de Janeiro, Vol. 05, nº. 05, pp. 08-22, Ano 02. dez. 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 dez. 2015. p. 10-11. p. 10. 103 CARVALHO, Salo. Sobre a Criminalização da Homofobia: perspectivas desde a criminologia queer. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 99, p. 187-211, 2012. p. 194. 104 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988 p. 32. 105 Ibid. p. 32.

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sexual, o “exótico” adquire papel econômico (prostituição, pornografia, tratamentos médicos e estéticos) e político (produz classes subalternas, sobre as quais se exerce um poder disciplinar e a partir das quais esse disciplinamento opera socialmente – por meio dos modelos de anormalidade). As categorias que descrevem processos também os produzem e modificam. Por isso, o desafio não é somente [...] problematizar os tipos de violências e de morte contra as pessoas trans para evidenciar apenas o trágico. Tampouco naturalizar a marginalidade e a criminalidade como referências próprias e indispensáveis constituintes da transgeneridade. O desafio é maior, o de desnaturalizar, problematizar e denunciar a linguagem performativa que institui sentidos. Linguagem historicamente possibilitada que forja processos de subjetivação, normatização e controle.106

As muitas dimensões em que a violência se manifesta dificulta sua análise, mas não a impossibilita. Por mais sutil que seja a relação entre diferentes tecnologias, é possível encontrá-la e desnaturalizá-la. Segundo Larissa Pelúcio e Berenice Bento, faz-se necessário encontrar e dimensionar os “[...]discursos que constituíram certas existências como “anormais”, estabelecendo modelos de suposta coerência entre sexo biológico e gênero cultural como marco de normalidade e saúde”.107 Sexo, gênero e sexualidade são constitutivos da identidade do sujeito, mas somente inteligíveis quando colados uns aos outros. Para as autoras, quando há qualquer descolamento, subversão ao masculino ou feminino, considera-se necessária intervenção médica para restabelecer a “coerência”. É a partir disso que se constrói o diagnóstico de gênero. O diagnóstico é realizado pelos profissionais de saúde – geralmente por especialistas das ciências psi, como explicam as autoras – a partir de três documentos que descrevem as patologias, seus sintomas e tratamentos. São utilizadas categorias como “transtorno de identidade de gênero”, “fetichismo transvéstico”108, “transexualismo” e “transtorno de identidade sexual na infância”, por meio das quais se misturam elementos fisiológicos com práticas sexuais e performances de gênero.

106

LOPES, Fabio Henrique. Corpos trans! Visibilidade das violências e das mortes. Revista Transversos. “Dossiê: O Corpo na História e a História do Corpo”. Rio de Janeiro, Vol. 05, nº. 05, pp. 08-22, Ano 02. dez. 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 dez. 2015. p. 10-11. p. 12. 107 BENTO, Berenice, PELÚCIO, Larissa. Despatologização do gênero: a politização das identidades abjetas. Revista Estudos Feministas, Mayo-Agosto, pp. 569-581. 2012. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2015. p. 570. 108 http://www.psiquiatriageral.com.br/dsm4/sub_index.htm

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Nos três documentos de referência (DSM-IV, CID-10 e SOC), as pessoas transexuais são construídas como portadoras de um conjunto de indicadores comuns que as posicionam como transtornadas, independentemente das variáveis históricas, culturais, sociais e econômicas. Mas há algumas diferenças entre esses documentos. Para o SOC, “o transexual de verdade” tem como única alternativa, para resolver seus “transtornos” ou “disforias”, as cirurgias de transgenitalização. Já no DSM-IV a questão da cirurgia é apenas tangenciada, sua preocupação principal está em apontar as manifestações do “transtorno” na infância, na adolescência e na fase adulta. Neste documento, não há diferenciação entre sexo, sexualidade e gênero. São os deslocamentos do gênero em relação ao sexo biológico os definidores do transtorno, pois o gênero normal só existe quando referenciado a um sexo genital que o estabiliza. O CID-10, por sua vez, não é um manual de orientação ou de indicadores diagnósticos, é, antes, uma convenção médica que estabelece as características das doenças e seus respectivos códigos utilizados e aceitos internacionalmente por médicos/as e outros/as operadores/as da saúde.109

Embora o DSM tenha abandonado o “homossexualismo” como patologia em 1973 e o CID-10 em 1975, houve “uma verdadeira proliferação de novas categorias médicas que seguem patologizando comportamentos a partir do pressuposto heteronormativo, que exige uma linearidade sem fissuras entre genital, gênero, desejo e práticas sexuais”110. Dessa forma,

A patologização da sexualidade continua operando com grande força, não mais como “perversões sexuais” ou “homossexualismo”, mas como “transtornos de gênero”. Se o gênero só consegue sua inteligibilidade quando referido à diferença sexual e à complementaridade dos sexos, quando se produz no menino a masculinidade e na menina a feminilidade, a heterossexualidade está inserida aí como condição para dar vida e sentido aos gêneros. [...] O sociólogo Giancarlo Cornejo, em sua autoetnografia queer, resgata as contínuas e persistentes avaliações às quais era submetido pela psicóloga da escola onde estudava, pois, sendo ele um “menino afeminado”, era visto como uma criança com problemas, pelo menos no entendimento daquela profissional, assim como de alguns/mas professores/as do pequeno Giancarlo. “De fato”, continua ele, “a psicóloga que mencionei me diagnosticou com um transtorno de identidade de gênero”. Ser um menino afeminado patologizou seu corpo e mobilizou alguns adultos à sua volta na busca por uma possível e desejada “cura”.111

A caracterização das transgeneridades como transtornos mentais são apenas um dos muitos aspectos em que os saberes médicos se constroem como tecnologia de gênero. Quando 109

BENTO, Berenice, PELÚCIO, Larissa. Despatologização do gênero: a politização das identidades abjetas. Revista Estudos Feministas, Mayo-Agosto, pp. 569-581. 2012. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2015. p. 572. 110 Ibid. 111 Ibid.

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se passa a analisar a intersexualidade, percebe-se que a ilusão do binarismo se mantém principalmente a partir dos discursos e práticas médicas, legitimantes – e, de certa forma, fundantes – das normas que criam a grade de inteligibilidade na qual se inserem os corpos. Esse processo se deu, historicamente, e se mantém ainda hoje, a partir de diversos entrelaçamentos entre os saberes-poderes médico e jurídico, formando dois dos pilares que sustentam o que Foucault chama de biopolítica. Quanto aos tribunais, podiam condenar tanto a homossexualidade quanto a infidelidade [...]. Na ordem civil como na ordem religiosa o que se levava em conta era um ilegalismo global. Sem dúvida, o “contra-a-natureza” era marcado por uma abominação particular. Mas era percebido apenas como uma forma extrema do “contra-a-lei”; também infringia decretos tão sagrados como os do casamento e estabelecidos para reger a ordem das coisas e dos seres. As proibições relativas ao sexo eram, fundamentalmente, de natureza jurídica. A “natureza”, em que às vezes se apoiavam, era ainda uma espécie de direito. Durante muito tempo os hermafroditas foram considerados criminosos, ou filhos do crime, já que sua disposição anatômica, seu próprio ser, embaraçava a lei que distinguia os sexos e prescrevia sua conjunção.

Segundo a AICLEGAL112, em um passado muito próximo as pessoas intersexuais, chamadas hermafroditas pelos discursos patologizantes, eram submetidas a cirurgias interventivas ainda enquanto bebês, com a justificativa de que era necessário escolher um sexo para evitar transtornos de identidade sexual/de gênero. Novamente, operam mecanismos de “cura” que, de fato, servem à manutenção da matriz (cis)heterossexual. Recentemente, o Conselho da Europa emitiu relatório defendendo que as pessoas intersexuais não devem ser submetidas a nenhuma cirurgia até atingirem idade para que possam decidir seu sexo e seu gênero e, só então, optar pela cirurgia ou não. Se o controle social das dissidências de gênero se deu, historicamente, por meio dos saberes médicos e do poder jurídico, é possível pensar no Direito como tecnologia de gênero. Não só pelo poder exercido a partir das definições e categorizações, mas também pelos discursos que fundamentam decisões dos tribunais. Não obstante a criação do termo “transexual” por Harry Benjamin em 1966 e da caracterização do transtorno – como já demonstrado anteriormente – a partir de um ideal heterossexual de conformidade entre sexo, gênero e desejo, e a prescrição de procedimentos cirúrgicos como “cura”, em 1971 o médico Roberto Farina realizou a primeira cirurgia de redesignação sexual no Brasil. No entanto, “apesar de o procedimento não ser uma novidade 112

Associação radicada nos EUA, chamada “Militantes pela escolha informada” (tradução nossa). Ver: http://aiclegal.org/

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[...], em 1978 Farina foi processado pelo Conselho Federal de Medicina – CFM, sob acusação de lesões corporais graves”113. Segundo Jaqueline Gomes de Jesus,

Algumas afirmações do juiz que condenou Roberto Farina são significativas da visão do sexo biológico como destino e, surpreendentemente, até hoje são utilizados como argumentos na sociedade sexista e transfóbica para dificultar ou impedir a integração completa das pessoas transgênero, mesmo que não se justifiquem: (1) a “vítima” de Farina não poderia jamais ser uma mulher, porque não tinha os órgãos genitais internos femininos; (2) a cirurgia poderia criar condições para uniões matrimoniais espúrias; e que (3) o tratamento da transexual, uma doente mental, deveria ser psicanalítico, e não cirúrgico, pois a cirurgia impediria a sua recuperação.114

A condenação só foi revista – em segunda instância – porque um grupo de médicos que dirigia o hospital em que o procedimento foi realizado emitiu parecer, com base nas proposições patologizantes de Harry Benjamin, afirmando ser a cirurgia um tipo de tratamento. Tal situação demonstra os efeitos perversos da normalização: ao mesmo tempo em que se “aceita” a transgeneridade, é necessário que “o corpo errado” seja “recuperado”, pois assim mantém-se a estabilidade da matriz (cis)heterossexual. São os múltiplos processos sociais que condicionam as experiências e, por isso, entende-se que A dor, o mal-estar ou a discordância nas experiências trans* não estão localizados no corpo subalterno trans*, mas sim no confronto entre a experiência desse corpo em sua atomicidade e uma estrutura cultural, social, política, econômica e jurídica que impõe obstáculos que possibilitam o exercício dessa experiência.115

Não se pretende, com isso, deslegitimar as disforias que experimentam pessoas trans. O exercício de analisar criticamente os discursos e práticas do biopoder não deve servir para deslegitimar demandas políticas como a cirurgia de transgenitalização ou tratamentos estéticos e hormonais. Mas é sempre necessário analisar de que formas as estruturas de poder violentam sujeitos por processos subjetivos e os perigos dos discursos de inclusão que não questionam as normas.

113

JESUS, Jaqueline Gomes de. Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero como genocídio. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2015. p. 106. 114 Ibid. p. 107. 115 LITARDO, E. Os corpos desse outro lado: a lei de identidade de gênero na Argentina. Méritun. Belo Horizonte, v. 8, n. 2, p. 193-226, jul./dez. 2013. Disponível em: . Acesso em: 26 out.2015.

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Os discursos que (re)produzem a subalternidade das dissidências de gênero nem sempre são sutis: Indianara Alves Siqueira, travesti prostituta do Rio de Janeiro, relata em entrevista116 sua corajosa resistência ao poder punitivo estatal. Durante um protesto da Marcha das Vadias, Indianara removeu sua blusa, como ato político de contestação, ao notar que muitos homens estavam sem camisa no mesmo momento. Foi abordada pela polícia e levada à delegacia, acusada de atentado ao pudor. Ao encontrar o delegado, Indianara levantou questionamentos poderosos. O Direito brasileiro se recusa a reconhecer sua identidade feminina, mantendo compulsoriamente em seus documentos o nome e o sexo atribuídos ao nascimento. Constando legalmente como homem, ela afirma que se fosse presa por esta conduta, todos os homens que se encontravam na marcha sem camisa também deveriam ser presos. Por outro lado, se fosse condenada por atentado ao pudor, estaria sendo reconhecida como mulher, o que abriria um precedente histórico. Percebendo a relutância da polícia em liberar Indianara, seu companheiro – um homem trans –, que a havia acompanhado até a delegacia, retirou sua camisa, dizendo se tratar, legalmente, de uma mulher, também pela recusa do sistema jurídico brasileiro em reconhecer as dissidências de gênero a partir de narrativas próprias. A polícia recusou-se a prendê-lo, alegando que sua aparência era masculina e, portanto, não havia fundamentos jurídicos para prisão. Desde então, Indianara organiza uma campanha contra a criminalização dos corpos femininos, alegando que o caso explicitou a forma com que o poder punitivo estatal trata desigualmente homens e mulheres e sexualiza corpos femininos e corpos trans. A partir do breve estudo destes casos, fica evidente o processo dinâmico que entrelaça os discursos médicos e jurídicos na gestão da vida, do sexo, do gênero e da sexualidade, impondo proibições e recuperações. Esses controles sociais agem como “[...] tecnologias políticas que são diferencialmente distribuídas para salvar algumas vidas e para condenar outras à morte”, constituindo as dissidências de gênero como abjetas e, portanto, para elas a morte é entendida culturalmente como “[...] preço e castigo a ser pago pelo desejo diferente”.117 Entretanto, o controle social opera de inúmeras formas, de modo que Direito e os saberes médicos constituem apenas parte dos fundamentos da biopolítica. Tais processos que

116

Direito, Prostituição e Ética. Produção: Canal das bee. Duração: 12’15”. Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2015. 117 LOPES, Fabio Henrique. Corpos trans! Visibilidade das violências e das mortes. Revista Transversos. “Dossiê: O Corpo na História e a História do Corpo”. Rio de Janeiro, Vol. 05, nº. 05, pp. 08-22, Ano 02. dez. 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 dez. 2015. p. 10-11. p. 12.

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marginalizam as dissidências de gênero, que mesmo quando se pretendem inclusivos exercem um poder produtivo, São legitimados por padrões culturais que cultivam simbólica e explicitamente hierarquias e moralismos em nome da virilidade, da masculinidade e da rigidez que codifica uma determinada vivência da sexualidade como a normal, a consentida. Muitas expressões de preconceitos e discriminações em torno do sexual tendem a ser naturalizadas, até prestigiadas e não entendidas necessariamente como violências.118

Fica evidente, portanto, o papel fundamental dos diferentes controles sociais informais na construção subjetiva e na vitimização das dissidências de gênero. Considerando as diferentes interações que constituem a violência homotransfóbica, passamos agora à análise dos poucos dados estatísticos existentes em relação à precarização da vida das dissidências de gênero. Nesse sentido, a morte como destino do abjeto, referida anteriormente, consubstanciase nas agressões – que em sua maioria resultam em morte – e no suicídio. Frisa-se, novamente, que a insuficiência de fontes oficiais com levantamentos e pesquisas que contribuam na compreensão do fenômeno é mais um aspecto da própria violência a que são submetidas as dissidências de gênero, e que o silêncio oficial é uma omissão que legitima tais violências. São alarmantes os dados trazidos por Livia Gonsalves Toledo, segundo os quais “[...] jovens LGBT estão três vezes mais propensos a tentar o suicídio que os jovens não dissidentes, e até 30% de todos os suicídios que ocorrem na adolescência podem estar relacionados com questões de identidade sexual e de gênero”.119 Complementarmente, em pesquisa realizada em escolas brasileiras, “[...] quando se pergunta aos alunos sobre quais pessoas ele não gostaria de ter como seu colega de classe, aproximadamente ¼ dos alunos indicam que não gostariam de ter um colega homossexual”.120 Em relação à violência direta, “de carne e osso” ou interpessoal, é preciso manter extrema cautela na utilização de estatísticas quando se fala em violência de gênero, em especial em relação às dissidências, vez que o contexto cultural influencia se a vítima faz a denúncia e se as autoridades reconhecem a violência em sua particularidade. No contexto brasileiro, é muito provável que a subnotificação desses crimes seja bem grande. De acordo 118

ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M. G.; SILVA, L. B. Juventudes e Sexualidade. Brasília: UNESCO – Brasil, 2004. 428 p. p.278. 119 TOLEDO, Livia Gonsalves. “Atendimentos aos dissedentes da heteronormatividade: o sentido da afetação no tratamento universal, equânime e integral em saúde”. Enfrentamento da violência pela Saúde II. Boletim do Instituto de Saúde – vol. 15 – número 1 – fevereiro de 2014. Disponível em: . Acesso em: 09 out 2015. 120 Ibid.

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com o relatório anual do Grupo Gay da Bahia (GGB): [...] tais números representam apenas a ponta de um iceberg de violência e sangue, já que nosso banco de dados é construído a partir de notícias de jornal, internet e informações enviadas pelas Ongs LGBT. A realidade deve certamente ultrapassar em muito tais estimativas, sobretudo nos últimos anos, quando policiais e delegados cada vez mais, sem provas, descartam a presença de homofobia em muitos desses “homocídios”. Os autores somente foram identificados em 103 (33%) destes crimes letais, sendo que em 67% não há informação sobre a captura dos criminosos. 121

Ainda assim, é possível visualizar o quanto é perigoso fugir às normas de gênero e sexualidade no Brasil. Os relatórios do GGB informam que foram assassinadas 338 pessoas LGBT em 2012 e 312 em 2013. De acordo com o relatório de Violência Homofóbica, “o número de homicídios no Brasil aumentou 11,51% de 2011 para 2012, o número de lesões corporais aumentou de 55,7% para 59,3% em 2012”122. A ONG internacional Human Rights Watch afirma que recebeu mais de 1500 denúncias de violência contra LGBTs no Brasil, sendo 500 delas nos primeiros seis meses e houve um pico de crescimento após um candidato à presidência dizer que essa população precisa de tratamento psicológico123. Em relação às pessoas trans especificamente, a ONG Transgender Europe contabilizou 95 assassinatos no Brasil em 2013 e 113 em 2014, posicionando o país como o mais homotransfóbico do planeta, chegando a quatro vezes mais homicídios contra travestis e transexuais que o segundo colocado124. O referido relatório indica peculiaridades nos assassinatos de pessoas trans no Brasil que se destacam: a maioria das vítimas tem como ocupação a prostituição ou trabalhos em salões de beleza; as mortes são violentas, com requintes de crueldade, sendo as formas mais comuns apedrejamentos, espancamentos, esfaqueamentos e tiros com armas de fogo, muitas vezes tendo como alvo rosto e genitais; seus corpos são abandonados em lugares isolados ou culturalmente ligados à abjeção, como lixões ou sarjetas. Além dos números preocupantes, que certamente ensejam movimentações e demandas 121 BRASIL. Grupo Gay da Bahia (GGB). Relatório de mortes LGBT. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. 122 BRASIL. Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Relatório Violência Homofóbica. Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2015. 123HUMAN RIGHTS WATCH. Human Rights worldwide. Disponível em: Acesso em: 22 out. 2015. 124 TRANSGENDER EUROPE. Transrespect versus transphobia worldwide research Project. Trans murder monitoring results: TMM TDOR 2013 Update . Reported deaths of 1,374 murdered trans and gender variant persons from January 2008 until October 2013. 6 p. Disponível em: Acesso em: 15 nov. 2014.

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políticas em torno da tutela e proteção das dissidências de gênero, observa-se também aqui as formas com que os crimes ocorrem: Destaco, inicialmente, a agressividade, o ódio e a abjeção direcionados às pessoas trans, a seus corpos que foram agredidos, mutilados e marcados. Nos e pelos corpos, moldados a partir de uma determinada referência de feminilidade, seguindo padrões também históricos de beleza e comportamento, o ódio e a abjeção são materializados.125 [...] diversos estudiosxs que se apropriam das teorias queer denunciam a estilização da violência transfóbica registrada, marcada e comprovada no corpo trans encontrado em latas de lixo, em fossas e em lixões. Vidas encurtadas pelo ódio e pela abjeção, corpos mortos historicamente oferecidos e naturalizados como prova da hegemonia e do poder heterossexual! Atos repetidos de violência, assassinatos e extermínio que buscam justificativas e querem ser justificados em uma histórica pressuposição, a da heterossexualidade compulsória, que molda e define modos de viver, de morrer e de exterminar o outro.126

Mais do que isso, não só o número e as circunstâncias das mortes demonstram a natureza de ódio que constituem a violência homotransfóbica: a espetacularização muito particular desses crimes também aponta certa crueldade com que se tratam as dissidências de gênero no Brasil.127 Expõem-se nomes de registro, em clara discordância de como a vítima se narrava e vivia; expõem-se fotos e histórias de vida que, se fossem referentes a pessoas cisgêneras, provavelmente não seriam veiculados e, se fossem, causariam muito mais comoção. Os estereótipos de gênero, especialmente os que desumanizam transexuais e travestis, são recorrentes na mídia brasileira e tal reflexão se faz importante porque “as notícias veiculadas pelos meios de comunicação não são responsáveis pela naturalização da violência, mas oferecem pistas para essa naturalização”.128 Segundo Jaqueline Gomes de Jesus, [...] em virtude de sua expressividade numérica com relação a outros países; do seu enquadramento como crime de ódio, dada sua natureza de cunho discriminatório; da sua identificação com a maioria dos atos relacionados a genocídios; e com base em uma perspectiva teórica útil, o assassinato de pessoas transgênero no Brasil pode ser designado como um genocídio.129 125

LOPES, Fabio Henrique. Corpos trans! Visibilidade das violências e das mortes. Revista Transversos. “Dossiê: O Corpo na História e a História do Corpo”. Rio de Janeiro, Vol. 05, nº. 05, pp. 08-22, Ano 02. dez. 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 dez. 2015. p. 10-11. p. 13. 126 Ibid. p. 16. 127 Ibid. 128 JESUS, Jaqueline Gomes de. Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero como genocídio. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2015. p.108. 129 Ibid. p.118.

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Para a autora, o enquadramento da violência exercida sobre dissidências de gênero como genocídio busca compreender o fenômeno não mais como uma série de assassinatos isolados, mas como um “[...] mecanismo de intolerância generalizada, que encerra a ideia de impossibilidade de conviver com esse “outro”, porque sua vivência de gênero é diferente da “nossa”.130 Nesse sentido, afirma Fabio Henrique Lopes que se deve denunciar, portanto, [...] a historicidade das recorrentes e cotidianas violências praticadas contra a população trans para dar visibilidade à desqualificação e ao ódio direcionados aos modos de vida, aos desejos, às identidades e às subjetividades que ameaçam a coerência do sistema sexo/gênero, que desmascaram os binarismos que sexualizam os corpos. Processos históricos de desqualificação e de hierarquização que são cotidianamente repetidos e reiterados pela “maquinaria heterossexual” que estigmatiza modos de vida e invenção de si como antinaturais, anormais e abjetos em benefício da estabilidade das práticas de produção do natural.131

Não restam dúvidas sobre a alarmante realidade de violência, institucional e física, sofrida pelas pessoas dissidentes de gênero. Entretanto, buscar proteção por meio do direito penal é atribuir a ele um papel que historicamente nunca desempenhou, especialmente em relação à violência de gênero. O sistema penal é uma das tecnologias que sustenta a matriz (cis)heterossexual e, junto aos discursos médicos, constitui os dispositivos de sexualidade e, portanto, o biopoder. Ademais, é preciso também inquirir de que formas o sistema de justiça criminal age sobre os agressores. Nesse sentido, Claramente é importante relacionar a violência com o grau de monopolização dos meios de violência pelo Estado, a desigualdade social, a estrutura populacional, as taxas de desemprego, as formas de disciplina dos pobres e dos trabalhadores, os discursos criminológicos, as definições culturais de honra, o grau de autocontrole internalizado na população em geral. Mas nada disso nos informa sobre os processos pelos quais indivíduos específicos viram criminosos violentos, ou a natureza de sua experiência de violência. Atentar para esses aspectos micros e subjetivos nos ajuda a entender como as estruturas sociais e simbólicas se traduzem na ação violenta de indivíduos.

Considerando o objeto proposto para o queer na criminologia, antes de demandar expansão do direito penal para proteger as dissidências de gênero, é preciso compreender os 130

LOPES, Fabio Henrique. Corpos trans! Visibilidade das violências e das mortes. Revista Transversos. “Dossiê: O Corpo na História e a História do Corpo”. Rio de Janeiro, Vol. 05, nº. 05, pp. 08-22, Ano 02. dez. 2015. Disponível em: . Acesso em: 03 dez. 2015. p. 131 Ibid. p. 20.

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processos de criminalização por que passam essas pessoas, o papel do sistema de justiça criminal na sociedade, bem como as formas com que os discursos do biopoder se legitimam no e pelo sistema penal.

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3 CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA Chegamos, finalmente, ao cerne do presente estudo: a criminalização da homotransfobia. Tal demanda se apoia em alguns pressupostos que serão problematizados a seguir: a pena como pedagogia e o suposto fracasso do sistema penal; representação de autores e vítimas em conflitos de gênero; especificidades do sujeito criminológico e o lugar da vítima no conflito criminal. Indaga o presente estudo, portanto, quais os processos de criminalização que permeiam a violência homotransfóbica e que tipo de proteção se almeja para as dissidências de gênero.

3.1. Processos de criminalização: gênero e sistema penal Compreender o direito – em especial o sistema penal – como uma tecnologia de gênero tem consequências analíticas que se deve ponderar. A gênese do sistema punitivo e sua organização por meio dos aparatos estatais do sistema de justiça criminal, em conjunto com os controles sociais informais, deve ser observada para compreensão de seu funcionamento e seu papel na biopolítica. A partir desse emaranhado de elementos, pensamos que “a construção de uma política criminal se dá a partir da multiplicidade de interesses e disputas acerca de categorias e estratégias no enfrentamento do crime”.132 Para se enfrentar a violência contra as dissidências de gênero, portanto, é preciso investigar como opera o sistema de justiça criminal em relação ao sexo, ao gênero e à sexualidade – além de todos os marcadores sociais que compõem o “lugar social” da vítima. Segundo Zaffaroni,

[...] de um lado, não é possível compreender bem nenhum exercício de poder prescindindo de sua gestação, porque todos são resultado de um processo longo e complexo; de outro lado, no caso específico da mulher, sua relação com o poder punitivo se coloca explicitamente desde sua gestação com particular claridade, porque sob sua luz não se pode menos que admitir seu caráter de poder de gênero. [...] o poder punitivo não é suscetível de se utilizar indistintamente pelo homem ou pela mulher, segundo sua situação social particular, vez que está estruturalmente vinculado à dominação e subordinação da mulher, e somente

132

BRAGA, Ana Gabriela Mendes. A vítima-vilã: a construção da prostituta e seus reflexos na política criminal. In BORGES, Paulo (Org.). Tráfico de pessoas para exploração sexual: prostituição e trabalho sexual escravo. São Paulo: NETPDH; Cultura Acadêmica, 2013. (Série “Tutela penal dos direitos humanos”), n. 3. pp.217-230.

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com sua redução e contenção a mulher superará sua posição de subordinada do poder. (tradução nossa).133

Para ele, o sistema penal não funciona da mesma forma para homens e mulheres. Nesse sentido, são muitos os mecanismos pelos quais o sistema penal articula-se na e com a matriz heterossexual e produz subjetividades. Desde a elaboração de leis até sua aplicação pelos atores e atrizes do sistema de justiça criminal (em especial juízes e policiais, que, cada um a seu modo, atuam como perpetuadores de estereótipos de gênero), é possível verificar as nuances em que gênero é (re)produzido. A política criminal em relação ao gênero, no âmbito legislativo – ou seja, de criminalização primária de condutas –, tem muito a nos dizer sobre o papel que desempenha o Estado no e para o biopoder e sobre as sutilezas com as quais o poder sempre se mascara, como estratégia de manter-se. Segundo Débora Diniz, A astúcia do poder é expressar-se sem anunciar cotidianamente sua potência repressora. Isso não quer dizer que o patriarcado abdique da repressão. O uso da mão punitiva ou da política social focalizada são duas das várias faces da governança do gênero. A mesma mão punitiva que ameaça as mulheres de prisão pelo aborto é a que garante protegê-las com a mão punitiva contra os agressores de mulheres. Ficamos confusas – são as mulheres que essa ordem protege ou o quê? A mesma mão das políticas sociais que garante centralidade à maternagem pelas lógicas de focalização é a que anuncia a bolsa-estupro. Novamente: são as mulheres mesmo? A mesma mão que anuncia guerra às drogas é a que inflaciona as cadeias femininas. De que estão falando: de propriedades ou mulheres? De famílias ou mulheres?134

As escolhas legislativas, portanto, constituem uma das faces da governança de gênero. Mas existem outras questões além da letra da lei. O acionamento do sistema penal desencadeia diversos processos de normalização, moralização e criminalização que, sobre as mulheres e dissidências de gênero, tomam como referência o feminino, o masculino e suas hierarquizações. Como bem aponta Carol Smart, Não podemos prever o resultado de qualquer reforma legal individual. Na verdade, o principal dilema para qualquer engajamento feminista com a lei é a certeza de que, uma vez aprovada, a legislação está nas mãos de indivíduos

133

ZAFFARONI, Eugenio Raul. La mujer y el poder punitivo. Disponível em: . Acesso em 6 jul. 2015. p. 4-5. 134 DINIZ, Debora. Perspectivas e articulações de uma pesquisa feminista. In: Estudos feministas e de gênero: articulações e perspectivas. Cristina Stevens, Susane Rodrigues de Oliveira e Valeska Zanello (org.). p. 11-21. Florianópolis: Mulheres, 2014. p. 17.

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e agências muito distantes dos valores e políticas do movimento de mulheres. (tradução nossa). 135

No mesmo sentido, a demanda por criminalização de condutas de natureza homotransfóbica não necessariamente será posta em prática nos termos que teoria e militância política almejam. Segundo Vera Regina Pereira de Andrade, o sistema penal tanto é ineficaz para a proteção contra a violência quanto duplica a vitimização das mulheres ao dividi-las entre categorias a partir das quais podem – ou não – ter acesso à proteção sob a rubrica de vítimas. Isso faz com que o próprio sistema de justiça criminal aja como um controle social, seletivo e desigual, que reforça a violência de gênero, legitimando juridicamente os controles sociais indiretos que se iniciam na família e perpassam toda a estrutura social e todas as relações. Ainda de acordo com a autora, duas violências – principal, mas não unicamente – são exercidas sobre as mulheres que buscam proteção no sistema penal: a seletividade a partir das desigualdades de classe e das desigualdades de gênero.136 A partir de reflexões sobre a construção do gênero em julgados sobre crimes sexuais, a autora destaca três aspectos principais: 1.°) num sentido fraco, o sistema penal é ineficaz para proteger as mulheres contra a violência porque, entre outros argumentos, não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência sexual e a gestão do conflito e, muito menos, para a transformação das relações de gênero. Nesta crise se sintetiza o que venho denominando de “incapacidade preventiva e resolutória do sistema penal”; 2°) num sentido forte, o sistema penal duplica a vitimação feminina porque as mulheres são submetidas a julgamento e divididas. O sistema penal não julga igualitariamente pessoas, ele seleciona diferencialmente autores e vítimas, de acordo com sua reputação pessoal. No caso das mulheres, de acordo com sua reputação sexual, estabelecendo uma grande linha divisória entre as mulheres consideradas "honestas" (do ponto de vista da moral sexual dominante), que podem ser consideradas vítimas pelo sistema, e as mulheres "desonestas" (das quais a prostituta é o modelo radicalizado), que o sistema abandona na medida em que não se adequam aos padrões de moralidade sexual impostas pelo patriarcalismo à mulher; e 3°) Num sentido fortíssimo, o sistema penal expressa e reproduz, do ponto de vista da moral sexual, a grande linha divisória e discriminatória das mulheres tidas por honestas e desonestas e que seriam inclusive capazes de

135

SMART, Carol. Woman, crime and criminology: a feminist critique. London: Routledge and Kegan Paul, 1976. p. 164. 136 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 24-36, jan. 1995. ISSN 2177-7055. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015. p. 46-47.

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falsear um crime horripilante como estupro, para reivindicar direitos que não lhe cabem.137

Nesse sentido, a representação da vítima e sua construção nos discursos judiciais é um dos fatores que vai deslegitimar a capacidade do sistema penal de proteger as dissidências de gênero – assim como é incapaz de proteger as mulheres. Todas as subjetivações que compõem os sujeitos estarão, quando julgados crimes de violência de gênero, operando como fatores moralizantes e criminalizantes. Em casos de estupro, de acordo com essas pesquisas, fica evidente uma tendência a acreditar que quem comete os crimes são pessoas que sofrem de distúrbios mentais ou vivem no “mundo do crime” e, quando essas características não são encontradas, procura-se na vítima algo que justifique a conduta considerada criminosa, via de regra no comportamento ou na reputação social. Segundo Débora de Carvalho Figueiredo, o discurso judicial sobre o estupro é bastante contraditório, pois concomitantemente condena atos de violência contra a mulher e reforça discriminação sexual e de gênero. Há decisões muito rigorosas em relação a estupros cometidos por desconhecidos e decisões muito mais brandas quando o criminoso é um conhecido da vítima. Afirma ela que “os valores que estas decisões judiciais procuram proteger em primeiro lugar ainda são a virgindade, o bom nome das mulheres, a família nuclear, a santidade do lar, e não os direitos e liberdades sociais e sexuais da mulher [...]”.138 Os reflexos da governança de gênero e sexualidade no discurso judicial demonstram a incapacidade do sistema penal de suprimir – de forma negativa, ou seja, proibitiva – as violências. De acordo com Vera Regina, [...] no campo da moral sexual o sistema penal promove, talvez mais do que qualquer outro, uma inversão de papéis e do ônus da prova. A vítima que acessa o sistema requerendo o julgamento de uma conduta definida como crime – a ação, regra geral é de iniciativa privada – acaba por ver-se ela própria “julgada” (pela visão masculina da lei, da polícia e da Justiça) incumbindo-lhe provar que é uma vítima real e não simulada.139

137

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 24-36, jan. 1995. ISSN 2177-7055. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015. p. 47. 138 FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Vítimas e vilãs, “monstros” e “desesperados”. Como o discurso judicial representa os participantes de um crime de estupro. In: Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 3, n. 1, p. 135-155, jul./dez. 2002. p. 151. 139 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. cit. p. 47.

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Butler, ao problematizar o sujeito do feminismo, diz que a categoria “sexo” é uma interpretação dos corpos e, portanto, construída e (re)produzida – marcada necessariamente pelo contexto cultural. No caso de estupros, por exemplo, não só o poder formal (institucionalizado) decide o que é violência e como (e se) deve ser combatida, mas também a construção das categorias sexuais (re)produz o “lugar” da mulher enquanto sempre em busca da própria expropriação – e, portanto, é responsável pela violência que sofre.140 Ainda de acordo com Butler, existem restrições legais que regulam o que é e o que não é estupro – em alguns estados dos EUA, são exigidas doze provas empíricas separadas para caracterizarem o crime –, configurando o que a autora chama de estupro governamentalmente facilitado. Esse tipo de legitimação da violência de gênero por meio do discurso judicial é verificável também em relação às dissidências. Em etnografia realizada em Mato Grosso do Sul, Simone Becker constatou que, além do recorrente uso de pronomes masculinos e da palavra “vulgo” antes dos nomes sociais de travestis – ambos recursos lingüísticos que visam deslegitimar a vivência feminina – e da constante associação dessas dissidentes com o crime e a promiscuidade, constatou-se que a forma com que se narra a travesti nas decisões criminais [...] aproxima de julgamentos que acatavam a alegação de influência ou ‘domínio de violenta emoção’ em casos de homicídios praticados por maridos contra as esposas (BLAY, 2003). Nestes casos, o que se evidenciava era a estratégia na busca em depreciar a imagem da vítima, a fim de (de)mo(n)strar o quanto esta última contribuiu para a ocorrência do crime, chegando a serem os autores absolvidos, pela aceitação das justificantes de ‘domínio’ ou ‘influência’ de violenta emoção.141

Tais reflexões permitem reconhecer a estreita relação que marca os discursos judiciais e a manutenção da matriz (cis)heterossexual. Como nos crimes de estupro em que os estereótipos de gênero atribuem – ou não – a etiqueta de vítima ou vilã à mulher, também as dissidências de gênero enfrentarão manifestações do biopoder que, de variadas formas, deslegitimará a proteção prometida pelo poder punitivo. Os discursos sobre violência, em geral, qualificam e engessam o papel de vítima, transferindo para o Estado a função de julgar o agressor e proteger a ordem pública. Dessa forma, retira qualquer possibilidade de protagonismo ou auto determinação das partes, em especial da vítima, e por meio do processo penal engessa o conflito, desconsiderando

140

BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. BECKER, Simone; LEMES, Hisadora Beatriz G. Vidas vivas inviáveis: etnografia sobre os homicídios de travestis no tribunal de justiça do Mato Grosso do Sul. Revista Ártemis, v. XVIII n 1; jul-dez, 2014. pp. 184198. p. 194. 141

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especificidades dos sujeitos envolvidos e propondo soluções universais que, quase sempre, não envolvem qualquer reparação de dano. Wania Pasinato oferece importantíssima reflexão acerca desse processo a que chama de “vitimização” da mulher nos estudos sobre violência. Explica a autora que, durante os anos 70 e 80, os estudos brasileiros versavam principalmente sobre a violência doméstica contra as mulheres, utilizando para suas análises o conceito de patriarcado e, a partir dele, concebiam a violência como uma forma de dominação masculina sobre as mulheres. Nessa perspectiva, a mulher ficava sempre confinada ao papel de vítima, sobre a qual era necessária intervenção estatal. Essa rigidez de papeis passou a ser contestada e, conforme se desenvolveram pesquisas com perspectivas um pouco diferentes, novos entendimentos do fenômeno da violência surgiram. A primeira mudança ocorreu com o advento da ideia de certa cumplicidade das mulheres com a violência perpetrada – não porque tivessem responsabilidade sobre o que sofriam, mas porque as pesquisas revelaram sujeitas que se utilizavam do processo para negociar a manutenção ou o término de suas relações e também os temos em que se daria. Essa cumplicidade foi explicitada pelas mudanças dos depoimentos das vítimas ao longo do processo, por meio das quais as mulheres negociavam com seus parceiros instrumentalizando as instituições. Posteriormente, com a incorporação da noção de poder de Foucault e de gênero de Joan Scott, diz a autora que as desistências das queixas passaram a ser utilizadas pelas mulheres como ferramenta de negociação e o aspecto relacional do gênero foi incorporado nas pesquisas sobre violência, o que incluiu inclusive investigações sobre o papel da masculinidade e a socialização tanto masculina quanto feminina na violência de gênero.142 Nesse sentido, mostra-se a necessidade de se repensar as formas com que o sistema penal interpreta os conflitos e as soluções que apresenta para solucioná-los, além da importância cada vez maior de se investigar todas as instituições e formas de controle social – formal e informal – que operam nas relações de poder que permeiam a violência de gênero. Esse aspecto da análise da vítima e seu papel no processo penal é importante nos debates criminológicos. Acionar o sistema penal, conforme Hulsman, é praticamente um roubo pelo Estado dos conflitos sociais: A “criminalização” põe vítimas concretas em uma posição em que perdem o controle sobre a situação definida como delitiva, o que agrava consideravelmente os problemas que experimentam. Nils Christie propõe a 142

SANTOS, C. M. & Izumino, W. P. (2005). Violência contra as mulheres e violência de gênero: notas sobre os estudos feministas no Brasil. Estudios Interdisciplinários de America Latina y El Caribe. 16(1), 147-164.

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opinião de que todo os conflitos podem ser entendidos como uma propriedade e que a justiça penal e outros sistemas profissionais podem ser considerados como o “roubo” de conflitos daquelas pessoas a que realmente pertencem.143

No caso específico das dissidências de gênero, tal deslocamento reforça uma espécie de dominação masculina, uma forma de paternalismo, a partir da qual mulheres e LGBTs têm seu lugar previamente delimitado nas correlações de poder e são engessados na categoria vítima. Afinal, uma vez sob tutela estatal, o conflito considerado criminoso não poderá mais ser “negociado” entre as partes, pois discursos sobre proteção da “ordem pública” passam a legitimar essa ação punitiva estatal. O funcionamento do sistema de justiça criminal, a partir da perspectiva da vítima, por si só desestabiliza sua capacidade de oferecer proteção. Mas outras críticas ainda se fazem possíveis. De acordo com Ana Gabriela Mendes Braga, o sistema de justiça criminal dissocia as ilegalidades: investe contra umas um mecanismo punitivo – normalmente o encarceramento – enquanto permite outras, desde que controladas e rentáveis, como o comércio ilegal de drogas.144 A partir de Foucault, entende-se que o sistema penal gerencia ilegalidades e a prisão serve como representação explícita de um regime de poder que não se limita ao cárcere: o poder disciplinar. Esse poder, por sua vez, não se limita à prisão, ele tem múltiplas origens e destinos, e opera a partir das escolas, das fábricas e diversos outros dispositivos disciplinares. Para André Copetti Santos, a pena não apenas reprime os ilegalismos, mas os diferencia. Fala-se em uma justiça de classe não somente porque a lei e a maneira de aplicá-la sirvam aos interesses de uma classe dominante; mas também porque toda a gestão diferencial de ilegalismos faz parte dos mecanismos de dominação e seleção por meio da pena: A gestão moderna e capitalista da desigualdade e da exclusão é um processo político multidimensional, no qual o direito penal tem cumprido a parte mais violenta e incisiva da missão. A complexidade dos sistemas normativos criminais não tem cessado de aumentar contemporaneamente, e aumenta na mesma proporção em que se agravam as desigualdades e as exclusões.145

143

HULSMAN, Louk.“Alternativas a la justicia penal y a la política criminal en Latinoamérica”, Anthropos. Alessandro Baratta. El Pensamiento crítico y la cuestión criminal, núm. 204, 2004. p. 186. 144 BRAGA, Ana Gabriela Mendes. Preso pelo estado e vigiado pelo crime: as leis do cárcere e a construção da identidade na prisão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 24. 145 SANTOS, André Leonardo Copetti. Gestão penal da exclusão e o caráter ideológico do sistema penal. In. BORGES, Paulo César Corrêa (org.). Leituras de um realismo jurídico-penal marginal: homenagem a Alessandro Baratta. São Paulo: NETPDH; Cultura Acadêmica Editora, 2012. pp. 53-78. p. 58.

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Dessa forma, pode-se dizer que a pena não existe abstratamente: o que existem são sistemas de punição que adotam métodos penais específicos em períodos históricos também específicos. Segundo Loic Wacqant, o sistema penal na atualidade opera como dispositivo de gestão social em diferentes dimensões: é uma política de criminalização da pobreza, funcionando como regulador dos segmentos mais baixos do mercado de trabalho; compensa e complementa a falência do gueto como mecanismo de confinamento de uma população considerada divergente; constitui um continuum carcerário-assistencial em parte explorado para fins lucrativo; em outras palavras, reorganiza o trabalho não-regulamentado, a hierarquia etnoracial e a marginalidade urbana.146 Para Maria Lucia Karam, a seleção dos indivíduos que serão etiquetados como criminosos necessariamente se faz de forma preferencial entre os mais vulneráveis – os marginalizados sem qualquer poder político ou econômico.147 Nesse sentido, considerando as discussões anteriores sobre as intersecções de categorias analíticas e a multiplicidade de elementos que compõem os sujeitos, legitimar a expansão do sistema penal significa ignorar questões de classe e raça que permeiam a população selecionada pelo sistema de justiça criminal. A verificação da pena e da prisão como dispositivos de controle disciplinar e também do biopoder permite o entendimento de que “[...] a reintegração social foi concebida não como função da pena, mas como uma possibilidade de minimizar seus efeitos”.148 Sabe-se que as finalidades atribuídas à prisão não se cumprem. Ao contrário dos discursos que a legitimam, ela não intimida o cometimento de crimes, não reabilita os criminosos e, a despeito da expansão cada vez maior do poder punitivo, a criminalidade não diminuiu.149 A insistência na cruel ilusão da pena subsiste apesar do evidente fracasso dos objetivos declarados do sistema penal. Não fosse a enganosa publicidade que o sustenta, seria fácil perceber esse fracasso. Não há como deixar de classificar como fracassado um sistema que promete a proteção dos indivíduos, a evitação de condutas negativas e ameaçadoras, o fornecimento de segurança e que, hoje, depois de séculos de funcionamento, busca a legitimação de um maior rigor e um maior alcance em sua aplicação exatamente no anúncio de um aumento incontrolado do número de crimes, de uma diversificação e de maiores perigos advindos dessa criminalidade apresentada como crescentemente poderosa.

146

WACQUANT, Loic. O lugar da prisão na nova administração da pobreza. Novos Estudos, no. 80, pp.9-19, 2008. 147 KARAM, Maria Lúcia. Expansão do poder punitivo e violação de direitos fundamentais. Disponível em: . Acesso em: 01 dez 2015. p. 4. 148 BRAGA, Ana Gabriela Mendes. Criminologia e prisão: caminhos e desafios da pesquisa empírica no campo prisional. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, p. 46-62, 2014. p. 55. 149 KARAM, Maria Lúcia. Op. cit. p. 352.

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Do ponto de vista da transformação social, é também uma publicidade tão ou mais enganosa que esconde a evidente inviabilidade do objetivo declarado de punir os opressores para assim supostamente emancipar os oprimidos.150

Embora se fale no fracasso da pena de prisão, ela teve êxito em seu papel no poder disciplinar de Foucault, em que instituições pedagógicas, médicas, penais ou industriais moldam comportamentos e transformam a vida e o tempo em utilidade.151 Relacionando-se com um mais vasto pensamento penalógico e criminológico crítico sobre os fins da pena este nível de investigação põe em evidência que a intervenção do sistema penal, em especial as penas privativas de liberdade, ao invés de exercer um efeito reeducativo sobre o delinqüente, determinam, na maior parte dos casos, uma consolidação de uma verdadeira e própria carreira criminal, lançando luz sobre os efeitos criminógenos do tratamento penal e sobre o problema não resolvido da reincidência. De modo que seus resultados sobre o “desvio secundário” e sobre as carreiras criminosas representam a negação da concepção reeducativa da pena e da ideologia do tratamento.152

Mesmo quando se trata de criminosos que cometeram crimes contra a vida de pessoas dissidentes de gênero, a resposta estatal que se deve fornecer não pode ser destituída de análise crítica. A crueldade e a incapacidade – do ponto de vista da ressocialização – do sistema penal, em especial do sistema carcerário, fazem com que esse não seja um caminho aconselhável na persecução de proteção às dissidências de gênero. Conforme explica Guilherme Gomes Ferreira, a experiência de travestis e outras dissidências no sistema prisional denunciam contextos extremamente homotransfóbicos e hostis:

Na prisão, as travestis representam a sujeição do feminino por meio de práticas consideradas subalternas. Elas e os homossexuais têm papel importante na manutenção de um sistema binário que se fundamenta, entre outras coisas, na consideração de que o lugar do masculino é o do mando, e o do feminino, o de ser mandado. São as travestis, por exemplo, as responsáveis por lidas consideradas por eles femininas: cuidam da limpeza geral da galeria e das roupas dos seus companheiros; elas próprias precisam pensar em métodos de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis (DSTs); são elas que, de modo geral, se responsabilizam pela manutenção da fidelidade do relacionamento (enquanto que os homens mostram-se mais desresponsabilizados a esse respeito, como se a “infidelidade” deles fosse, na maioria das vezes, “culpa” de algum comportamento delas); e são elas as 150

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 24-36, jan. 1995. ISSN 2177-7055. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015. p. 30. 151 BRAGA, Ana Gabriela Mendes.Preso pelo estado e vigiado pelo crime: as leis do cárcere e a construção da identidade na prisão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 32. 152 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. cit.

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responsáveis pela organização, distribuição e manutenção do alimento. Os homens, em linhas gerais, são considerados “assistentes”, ajudando na cozinha e no recebimento das refeições.153

Uma pessoa presa por homotransfobia, quando submetida a uma realidade perversa, cruel, também machista e homotransfóbica, dificilmente irá se transformar no sentido de “aceitar” as dissidências de gênero. Mais uma vez, vê-se o sistema penal como reforço das normas de gênero e não o seu contraponto. Zaffaroni diz que “[...] ninguém pode crer seriamente que sua discriminação será resolvida pelo mesmo poder que a sustém, ou que um exercício maior do poder discriminante resolverá os problemas que a discriminação criou”.154 Adverte, ainda, para os perigos desse tipo de evocação: a ocasional instrumentalização do sistema penal sempre deve ser avaliada considerando-se o risco de seu uso tático. O poder, como já vimos, imiscui-se em diferentes relações e tenta se manter oculto. Apesar de concordarem com os riscos da expansão do poder punitivo, Salo de Carvalho e Carmen Hein Campos defendem que A Lei Maria da Penha proibiu expressamente a incidência da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica [...] a não-incidência da Lei dos Juizados Especiais Criminais operou importante mudança nos códigos de interpretação, pois, para além das questões simbólicas, a exclusão da adjetivação da violência doméstica como infração de menor potencial ofensivo permitiu compreender estas formas de agressão como penalmente relevantes.155

No entanto, tal afirmação está calcada na atribuição de certo poder simbólico ao sistema penal. Não se nega aqui a importância que a sociedade dá aos termos que inscrevem uma conduta nas malhas do sistema penal. Mas é preciso avaliar se o poder simbólico da pena não seria meramente retórico, abstrato, sem qualquer materialização de “controle” da violência. Essa diferenciação acerca do caráter simbólico do direito penal é relevante na medida em que realmente expressa essas duas marcas fundamentais dos sistemas de repressão criminal contemporâneos. Por um lado, realmente há 153

FERREIRA, Guilherme Gomes. Violência, intersecionalidades e seletividade penal na experiência de travestis presas. Temporalis, Brasília, v.14, n. 27, jan./jun. 2014. p. 99-117. 154 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 10. 155 CAMPOS, Carmen Hein; CARVALHO, Salo de. Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira. In: CAMPOS, Carmen H. (Org.). Lei Maria da Penha (comentada em uma perspectiva jurídico-feminista). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.Disponível em: Acesso em: 28 out. 2015.

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uma função tranquilizadora em relação à população. Quanto mais direito penal é editado, mais as pessoas ficam embriagadas com este efeito estupefaciente do direito penal. Uma função simbólica, não efetiva.156

É premente que se discuta o suposto efeito simbólico da lei penal, porque é ele que alimenta grande parte dos discursos punitivistas. Deve-se ressaltar, para esta discussão, ao menos dois pontos. 1) que o poder simbólico do direito penal não é real, vez que não é a existência da norma que faz uma conduta ser reiterada ou não. Há inúmeros exemplos na bibliografia criminológica, mas basta observar a realidade dos índices de criminalidade e violência e o aumento exponencial da população carcerária, mesmo durante períodos de recrudescimento do sistema penal; 2) que não é necessária a criação de leis penais para que se reconheça a relevância de determinado tema. É plenamente possível, como se mostrará adiante, a formulação de políticas públicas e leis de outros âmbitos que possivelmente auxiliem mais na diminuição da violência contra LGBTs. Não é possível proteger-se utilizando uma estrutura social que é feita para ferir e desumanizar mais do que proteger. E, além de tudo que já foi discutido, deve ser problematizada também a atuação política do movimento LGBT. Afinal, de acordo com Vera Regina, [...] ao relegitimar-se o sistema penal como uma forma de resolver os problemas de gênero, produz-se um desvio de esforços do feminismo que iria, de outro modo, dirigido a soluções mais criativas, radicais e eficazes, suscitando falsas esperanças de mudança por "dentro" e "através" do sistema.157

Demonstrados todos os inúmeros problemas da legitimação do sistema penal, que é em si uma poderosa e violenta tecnologia de gênero e também um controle social estigmatizante, sem qualquer função que não a neutralização de sujeitos considerados inimigos sociais – selecionados a partir de múltiplos processos de marginalização e criminalização –, deve-se investigar, então, alternativas ao poder punitivo para transformação social. Para a reação social ao delito, explica Zaffaroni

156

SANTOS, André Leonardo Copetti. Gestão penal da exclusão e o caráter ideológico do sistema penal. In. BORGES, Paulo César Corrêa (org.). Leituras de um realismo jurídico-penal marginal: homenagem a Alessandro Baratta. São Paulo: NETPDH; Cultura Acadêmica Editora, 2012 . p. 57. 157 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, [S.l.], p. 42-49, jan. 1997. ISSN 2177-7055. Disponível em: . Acesso em: 10 Jul. 2015. p. 48.

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[...] em qualquer situação conflitiva a solução punitiva é apenas uma das soluções possíveis. Um autor contemporâneo exemplifica com o caso de cinco estudantes que moram juntos e um deles, em certo momento, golpeia e quebra o televisor. Cada um dos restantes analisará o acontecimento à sua maneira e adotará uma atitude diferente. Um, furioso, declarará que não quer mais viver com o primeiro; outro reclamará que pague o dano ou compre outro televisor novo; outro afirmará que seguramente não está em seu perfeito juízo; e o último observará que, para que tenha lugar um fato desta natureza, algo deve andar mal na comunidade, o que exige um exame comum de consciência (Hulsman). Estas diferentes reações mostram quatro estilos diversos para resolver um conflito: o punitivo, o reparatório, o terapêutico e o conciliatório.158

Em relação ao controle social, afirma Maria Lucia Karam que o sistema penal nunca atua efetivamente na proteção dos direitos fundamentais. Ao proibir condutas e reprimir coercitivamente quem desobedece, o sistema penal, que atua negativamente, “[...] intervindo somente após o fato acontecido, para impor a pena como conseqüência da conduta criminalizada – é contraditoriamente apresentado como um instrumento de atuação positiva”.159 Para se superar essa contradição do poder punitivo e desenvolver novas possibilidades de proteção, ensina Soraya Gasparetto Lunardi que é preciso

[...] redimensionar o conceito, pensando na segurança não somente em termos de confronto entre defensores da ordem e agressores, mas também em termos de políticas públicas de garantia dos direitos sociais. O desempregado se sente tanto inseguro quanto o rico empresário que teme os ‘bandidos’. Mas quando os políticos e jornalistas lamentam a insegurança e clamam por políticas ‘tolerância zero’ contra quem a ameaça, não se referem à insegurança dos desempregados nem pedem ‘tolerância zero’ para os empresários que os demitiram.160

Entende-se, portanto, que buscar proteção às dissidências de gênero no sistema penal não parece uma escolha acertada. Primeiro porque o poder punitivo estatal é desigual, seletivo, injusto, não reintegra o criminoso, não protege a vítima e nem evita que novos crimes aconteçam. Segundo porque ele próprio funciona como pilar fundante do biopoder e do poder disciplinar, ambos poderes que operam sobre as dissidências de gênero de forma a produzir sua subalternidade, legitimando assim as violências que sofrem. A solução é 158

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 59. 159 KARAM, Maria Lúcia. Expansão do poder punitivo e violação de direitos fundamentais. Disponível em: . Acesso em: 01 dez 2015. p. 5-6. 160 LUNARDI, Soraya Gasparetto. Segurança: privilégio ou direito de todos. In. BORGES, Paulo César Corrêa (org.). Leituras de um realismo jurídico-penal marginal: homenagem a Alessandro Baratta. São Paulo: NETPDH; Cultura Acadêmica Editora, 2012. p. 41.

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construir políticas outras, que não criminais, para efetivação da cidadania e da liberdade de todos os sujeitos dissidentes da norma (cis)heterossexual. Diz Salo de Carvalho que o movimento LGBTs poderia superar esta lógica criminalizadora (vontade de punir), demonstrando aos demais movimentos sociais os riscos que a convocação do direito penal gera. E creio que seria possível abdicar do direito penal sem maiores danos às estratégias do movimento, sobretudo porque as políticas antidiscriminatórias não punitivas de reconhecimento dos direitos civis têm sido eficazes na nominação e na exposição do problema das violências homofóbicas em todas as suas dimensões (violências simbólica, institucional e interpessoal). [...] ao negar explicitamente qualquer vínculo com o sistema penal, o movimento LGBTs estaria afirmando que a própria lógica punitiva é homofóbica, misógina e racista. Talvez esta fosse a estratégia efetivamente revolucionária em termos de ruptura com a cultura homofóbica.161

No entanto, é preciso deixar inconteste: dizer que os processos que constroem e legitimam a violência de gênero – no recorte do presente trabalho, a homotransfóbica – não serão modificados (positivamente) pela incidência do sistema penal não significa isentar agressores de responsabilidade por seus atos. Quer dizer, isto sim, que é preciso (re)pensar estratégias de transformação social que desloquem as estruturas fundantes da hierarquização dos gêneros. Quer dizer, também, que é preciso criar caminhos que retirem as dissidências de gênero do lugar patológico, anormal e desumano, construindo uma cidadania plena que garanta liberdade, igualdade e proteção num sentido amplo.

3.2 Propostas e experiências legislativas: um estudo comparado entre o PL 122/2006, o PL 5002/2013 e a Lei de Gênero Argentina Das discussões em torno da violência homotransfóbica, tanto institucional quanto interpessoal, surgem diversas pautas jurídico-políticas, buscando proteção em diferentes campos do Direito. Como visto ao longo deste trabalho, consideramos o sistema penal injusto, seletivo, ilegítimo, fundante do biopoder e, portanto, responsável pela (re)produção das mesmas hierarquizações de gênero que dão causa à violência que se quer fazer desaparecer. Segundo Salo de Carvalho:

161

CARVALHO, Salo. Sobre a Criminalização da Homofobia: perspectivas desde a criminologia queer. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 99, p. 187-211, 2012. p. 209.

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No plano político-criminal, é possível identificar duas pautas distintas do movimento LGBTs: (a) pauta negativa (limitadora de intervenção penal), nas esferas do direito e da psiquiatria, voltada à descriminalização e à despatologização da homossexualidade; (b) pauta positiva (expansiva da intervenção penal), no âmbuto jurídico, direcionada à criminalização das condutas homofóbicas. Embora a pauta positiva do movimento LGBTs seja preponderantemente direcionada à criminalização da homofobia, é possível identificar outros processos de expansão da intervenção penal a partir do reconhecimento da igualdade de tratamento independente da orientação sexual, como, por exemplo, a possibilidade de a companheira ser processada nos casos de violência doméstica nas relações homoafetivas (art.5, parágrafo único, da Lei 11.340/2006).162

A pauta positiva, que propugna a criminalização da homo(trans)fobia, tomou sua forma mais conhecida na Proposta Legislativa nº 122, de 2006. De acordo com relatório do Senador Paulo Paim163, a proposta inicial previa sanções administrativas às pessoas jurídicas por práticas discriminatórias motivadas por orientação sexual, sob a invocação do princípio da igualdade, inscrito no art. 5º da Constituição Federal. No entanto, venceu a proposta de modificação para natureza criminal. A criminalização se dará, conforme essa PLC, pelo acréscimo de crimes praticados por discriminação de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero à Lei nº 7.716, de 1989, que pune condutas por preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. O substituto que chegou a votação em 2014 no Senado dispunha proibição de preconceito e discriminação fundados na orientação sexual e na identidade de gênero e classificava como qualificação de injúria derivada da manifestação de preconceitos e a extensão da pena de reclusão a quem impedir ou restringir expressão e manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público. Após sete audiências públicas na Câmara dos Deputados e cinco no Senado, votou-se pela incorporação dessa proposta na Comissão responsável pela Reforma do Código Penal. Conforme Salo de Carvalho: Nesse sentido, acredito que a via eleita pelo movimento LGBTs, ao optar pela inclusão da homofobia na Lei 7.716/1989, foi extremamente inadequada. Primeiro porque dilui a ideia de preconceito e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero nas questões de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional. Por mais que a homofobia possa ser enquadrada teoricamente nos crimes de ódio (hate crimes) e guarde uma significativa identificação com a xenofobia, o racismo e o antissemitismo, cada um destes fenômenos guarda uma complexidade própria que merece ser analisada individualmente. Segundo, porque as condutas tipificadas pela Lei 7.716/1989, acrescidas de outras propostas no PL 122/2006, referem, em sua 162

CARVALHO, Salo. Sobre a Criminalização da Homofobia: perspectivas desde a criminologia queer. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 99, p. 187-211, 2012. p. 194. 163 http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/140405.pdf

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maioria, obstaculizações ou impedimentos de acesso a oportunidades, bens, serviços ou locais, situações que, desde uma perspectiva garantista/minimalista, poderiam ser geridas de forma mais adequada fora do âmbito do direito penal, como, por exemplo, nas esferas civil, trabalhista, consumerista ou administrativa. Em terceiro, e de forma mais contundente, porque o PL 122/2006 não nomina, como crime homofóbico, as condutas praticadas contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros motivadas por preconceito ou discriminação. A questão parece ser de fundamental análise porque são exatamente estes dados sobre o volume de delitos violentos, impulsionados pela homofobia, que justificam empiricamente a demanda de criminalização.164

A proposta contém um tipo penal sem conceituação e sujeitos determinados. Dessa maneira, os processos de criminalização das dissidências de gênero operadas pelo sistema de justiça criminal, por meio de seus discursos e instituições de controle formal, teriam ampla margem para articular seus dispositivos de controle. Ao não delimitar especificamente o que é uma conduta homo(trans)fóbica, o projeto legislativo esvazia a norma jurídica, vez que ficará a critério dos atores e atrizes do sistema de justiça criminal (da polícia à magistratura) o que, como se viu quando da análise de gênero nos discursos judiciais criminais, significa poucas possibilidades de transformação. Consideremos que duas pessoas do mesmo gênero – que não tenham um relacionamento afetivo-sexual e/ou não se declarem homossexuais – estejam caminhando juntas, abraçadas ou de mãos dadas, e sejam agredidas.165 Tal crime tem nítida natureza homofóbica, mas não se trata a hipótese de um relacionamento homossexual. Por um lado, a classificação da conduta como crime homotransfóbico implicaria na atribuição de categoria contrária à narrativa das vítimas de sua própria vida e identidade.

Por outro, a

desconsideração de tal crime como homotransfóbico esvaziaria a violência de gênero de presente no contexto cultural que ensejou a conduta. Se a homo(trans)fobia utilizada na tipificação da conduta for de ordem social, a condenação por esse tipo de crime desconsidera a identificação das vítimas e tem como consequência atribuir ao sistema penal ainda mais arbitrariedade no poder de categorização. De outra sorte, buscar a natureza homo(trans)fóbica das condutas consideradas criminosas na identidade das vítimas retira do sistema penal, instado a combater a violência de gênero, a possibilidade de reconhecer a homotransfobia como estrutura social que, na malha de relações de poder, ultrapassa os limites de representação política identitária. 164

CARVALHO, Salo. Sobre a Criminalização da Homofobia: perspectivas desde a criminologia queer. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 99, p. 187-211, 2012. p. 205. 165 http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2011/07/confundidos-com-casal-gay-pai-e-filho-sao-espancadosem-sao-paulo.html

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É de nosso entendimento, portanto, que a PL 122/06 não desenvolve possibilidades de se trabalhar o conceito de homo(trans)fobia e as especificidades de cada ato de violência. No caso de pai e filho agredidos por estarem abraçados, pode ser que vivam em comunidade preconceituosa e prefiram, considerando os investimentos que Lauretis discute a partir da noção de poder de Foucault, não serem denominados vítimas de homotransfobia. Dessa forma, fica evidente o poder produtivo das categorizações do sistema penal e sua incapacidade de intervir nas relações de gênero como ferramenta de transformação do biopoder. Explica-se a escolha pelo estudo comparado da Lei de Gênero aprovada na Argentina. Primeiramente, muitas identidades

historicamente

constituídas

possuem

semelhanças nos dois países – por exemplo, a travesti. Os contextos culturais são, em geral, mais próximos do que de países europeus ou da América do Norte. A desestabilização causada pela categoria travesti é semelhante, o que se reflete nos índices de violência. Segundo a ONG TRANSGENDER EUROPE, embora sejam diferentes, as estatísticas brasileiras podem ser aproximados numa análise menos rigorosa, pois a América Latina figura como a região mundial que mais mata pessoas trans. A isto se aliam as incríveis semelhanças entre o projeto brasileiro e a lei já em vigor na Argentina. Segundo Litardo,

A gestão judicial da transgeneridade no Estado argentino antes da lei em pauta é um exemplo que ilustra e sustenta a tese do autor sobre a covariabilidade e articulação entre retórica, burocracia e violência. Na Argentina, a lei de regulamentação dos nomes (Lei n. 18.24833) e a lei sobre o exercício da Medicina (Lei n. 17.13234) demandavam a “judicialização” do pedido para se conseguir que o Estado reconhecesse o direito de identidade ou de expressão de gênero, e nessas dinâmicas o paradigma da patologização35, bem (p. 211) como o esquema performativo do gênero binário, erguiam-se como marcos favoritos para o entendimento e a possibilidade de. Nas textualidades desses regulamentos normativos, a legislação associava genitalidade com registro do nome: o nome das pessoas dependia de seu sexo genital e era sobre esse paradigma biológico que o Direito empregava sua técnica de registro e identificação. [...] Em todos os processos judiciais as perícias constituem técnicas destinadas a um dizer representativo da verdade no discurso científico que as promove, apoiando-se na autoridade da ciência objetiva.166

A aprovação da referida lei significou o reconhecimento político e jurídico das identidades e corporeidades trans, transformando ao Estado ao invés de exigir uma adaptação

166

LITARDO, E. Os corpos desse outro lado: a lei de identidade de gênero na Argentina. Méritun. Belo Horizonte, v. 8, n. 2, p. 193-226, jul./dez. 2013. Disponível em: Acesso em: 20 out. 2015. p. 211. et seq.

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das dissidências de gênero à normalidade (im)posta. Pode-se dizer que, ao ser aprovada, a lei confere autonomia para intervenções médicas e modificações de registro civil reposicionando e ressignificando o discurso médico-jurídico – que durante muito tempo operou na (re)produção da situação de vulnerabilidade das dissidências. Não há exigência legal de atestados, diagnósticos ou condicionamentos de um direito a outro e, principalmente, a própria lei identifica como ilegal a não obediência a esse dispositivo legal por autoridades, públicas ou particulares. A pauta negativa do movimento LGBT no Brasil, por outro lado, materializou-se na PL 5002/13167, de autoria do Deputado Jean Wyllys e da Deputada Erika Kokay. A proposta ficou conhecida como Lei João W. Nery, em homenagem ao que se considera o primeiro homem trans a realizar a cirurgia de transgenitalização no Brasil. Em seus 14 artigos, o projeto trabalha principalmente a autonomia de identidade e tratamento no âmbito civil, reformando as normas sobre mudança de nome e sexo em documentos oficiais, e tentando pautar a despatologização das dissidências de gênero, ao instituir obrigatoriedade de tratamentos biotecnológicos, desde que livremente consentidos, pelo Sistema Único de Saúde. O modelo é semelhante à lei argentina e, por isso, entendemos que deveria ser o foco principal das políticas criminais das dissidências de gênero brasileiras. A violência de gênero, entende-se aqui, decorre muito mais da articulação entre biopoder e biopolítica, introjetadas em todos os indivíduos, e gerida e (re)produzida pelos discursos médico-jurídicos, do que de especificamente de atos unilaterais de vontade de criminosos, como entendia a criminologia positivista. Também se entende que, apesar das boas intenções do movimento LGBT brasileiro ao pautar a criminalização da homotransfobia, não é possível alterar as estruturas do biopoder que opera (n)a matriz (cis)heterossexual e nas relações de gênero por intervenção do sistema penal. Como já dito, o sistema penal é parte constitutiva desse biopoder do controle, e a consequência de sua legitimação é a perpetuação de inúmeras desigualdades de classe, raça, até mesmo gênero e sexualidade. É o sistema penal o dispositivo que gere a pobreza e torna abjetas e subalternas as existências que lhe oferecem resistência.

167

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=565315

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CONCLUSÃO O poder produtivo das teorias se revelou ao longo de todo este trabalho. Por um lado, foi possível identificar os deslocamentos epistemológicos provocados por convergências e contrapontos entre teorias e militâncias políticas. O feminismo – que se inicia articulado sobre pautas específicas que, apesar de se colocarem como universais, são pouco representativas das mulheres, o que se observa com o surgimento de críticas por parte de feministas negras, lésbicas e trans – irradia também para estudos teóricos institucionalizados, que em um processo dinâmico exercitam a politização do teórico e a teorização sobre o político. Nesse processo, ao mesmo tempo desconstrutivo e propositivo, muitos conceitos e categorias analíticas surgem, se disputam e são disputadas. E é nessas relações que constituem-se os estudos de gênero, que pretendem, mais do que oferecer uma salvação, “explicar processos”, nos termos de Teresa de Lauretis. Processos esses que, na perspectiva de Foucault, provêm de todo lugar e se direcionam também a todo lugar. São relações de poder que, no recorte específico do gênero, operam na (re)produção do que é considerado normal, sadio, legal e, consequentemente, também o anormal, o patológico, o ilegal. É quando se passa a compreender a sexualidade enquanto um dispositivo de saber que produz verdades discursivas sobre o sexo – constituindo um regime político de controle sobre a vida – que o conceito de biopoder se mostra politicamente potente. Nesse sentido, o que Butler denomina grade de inteligibilidade que rege os corpos, ou matriz heterossexual, impõe à materialidade dos corpos uma interpretação cultural que se manifesta nos construtos de masculinidade e feminilidade. Gênero, então, é uma cópia sem original, porque só se estabiliza socialmente a partir do alinhamento sem fissuras entre sexo, gênero e sexualidade/desejo. Os estudos queer surgem a partir dessas reflexões sobre o biopoder: o nome que se deu a um ato (sexo) é o mesmo nome de um dispositivo de poder que hierarquiza socialmente pessoas. O queer é a contestação a esse processo de identificação, regulação e gestão da vida, que tenta a todo custo negar qualquer possibilidade de autonomia e liberdade. Enquanto categoria analítica, sexo/gênero devem ser sempre articulados e posicionados com outros marcadores sociais, como raça, idade, origem. Aliados ao feminismo da diferença e aos estudos pós-coloniais e culturais, os estudos queer pretendem, segundo Larissa Pelúcio, “desafiar não somente a sexualidade binária e heterossexual, mas a matriz de pensamento que a conforma e sustenta”168.

168

PELÚCIO, Larissa. Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil? Revista Acadêmica Periódicus, v. 1, n. 1, 2014a, pp. 68-91.

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Por outro lado, a criminologia também operou deslocamentos epistemológicos durante sua (des)construção. Inicialmente tão essencializante e biologizante quanto o saber da sexualidade, ocupou-se a criminologia positivista de buscar as causas do crime e da criminalidade no criminoso, pressupondo uma sociedade do consenso.169 A mudança vem principalmente a partir do interacionismo simbólico, que passa a investigar – ao invés das “causas” do crime – os processos de criminalização e de controle social que operam e as relações de poder que os perpassam. É a partir da proposição de um saber que dialogue o queer na criminologia que o presente trabalho analisou a demanda do movimento LGBT pela criminalização da homotransfobia. É preciso pontuar, antes de mais nada, que o queer ainda não tem tradução porque seu nome é o que lhe dá potência em inglês – onde surgiu. Queer é a ressignificação de um termo pejorativo, considerado sujo e abjeto, transposto a uma teoria, ao ambiente hermético das produções acadêmicas. Mas seu sentido se perde quando a teoria viaja. O nome antes potente porque subversivo se higieniza. E é por isso que, antes de se desenvolver profundamente uma criminologia queer, é preciso desenvolver melhor o que Pelúcio chama de teoria cu: uma tradução ao português que seja tão transgressora quanto sua inspiração. Porque se gênero – e também a criminalidade – são fenômenos eminentemente culturais, a importação acrítica de teorias se torna um exercício problemático. O movimento LGBT brasileiro organiza-se hegemonicamente a partir de pautas que Miskolci chama de “anti-homofobia” – dentre as quais se encontra a criminalização da homotransfobia. Mas o que uma intersecção dos saberes queer com as criminologias críticas tem a oferecer é exatamente pensar novas formas de articulação para além das estruturas (im)postas. O sistema penal, como demonstrado, é seletivo, violento, não reinsere, não reforma. Ele vitimiza ainda mais quem já é vulnerabilizado e serve de sustentação ao biopoder que patologiza as mesmas dissidências que nele buscam proteção e gere pobreza e as marcas de diferença social. Historicamente, o biopoder operou por entrelaçamentos entre o direito penal e os saberes médicos. A criminalização histórica dos “desvios sexuais”, patologizados nas “perversões” transformaram-se em condicionantes jurídicas para reconhecimento do “anormal” como sujeito de direitos. Ao intersexual se impõe procedimento cirúrgico, quando ainda não pode determinar a si próprio, para que se conforme à ficção discursivamente criada 169

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 24-36, jan. 1995. ISSN 2177-7055. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015.

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do binário sexual. Às pessoas trans se oferecem biotecnologias (hormônios, cirurgias, procedimentos estéticos) – perpassadas pela lógica capitalista – desde que se submetam a diagnósticos e tratamentos psicológicos e psiquiátricos. O biopoder se manifesta pela (re)produção da normalidade e, portanto, não pode ser combatido somente com o acionamento do sistema penal. Como bem disse Miskolci, “a Teoria Queer não seria o que é sem o feminismo, os estudos sobre sexualidade e a sociologia do desvio”170, porque a normalidade é um dispositivo histórico, um regime de poder, utilizado tanto para marginalizar e negar humanidade às dissidências de gênero quanto para os criminosos – embora tenham ocorrido processos bem distintos. A criminalização da homotransfobia, portanto, legitima uma arma que sempre foi – e continuará sendo – apontada para os sujeitos já socialmente fragilizados e, dessa forma, não atingirá as estruturas do poder. Nos termos de Eve Kosofsky Sedgwick (2003), agora vivemos a era das batalhas sobre que tipo de visibilidade queremos. Em sintonia com Foucault, é possível dizer não ao sexo-rei, recusando ser o que a sociedade e o Estado, cada um à sua forma, nos atribui. Em uma perspectiva queer, é possível querer algo diverso do que nos é oferecido como meio único de adquirir a igualdade.171

Porque, como demonstrado, os discursos judiciais criminais, os atores e atrizes do sistema de justiça criminal e as próprias legislações são transpassadas pelo poder e por ele instrumentalizados, propõe-se alternativas ao sistema criminal. A violência que mata dissidências de gênero diariamente não difere da violência com que o sistema penal seleciona e mata – na prisão ou depois dela – os criminosos que captura. Por isso buscou-se na experiência argentina um norte de atuação. A Lei de Gênero naquele país aprovada é uma comprovação de que é possível, contingentemente, superar a lógica punitiva e buscar novas formas de transformação social. É o desmonte do biopoder – e não a repressão a indivíduos regidos por ele – que pode efetivamente proteger as dissidências de gênero. Se, segundo Foucault, o biopoder é mais um dentre muitos que se confrontam e combinam num emaranhado de relações, sob as quais os indivíduos se constroem e moldam, ora repelindo ora incorporando discursos e práticas; e se, segundo Teresa de Lauretis, as 170

MISKOLCI, Richard. Não ao sexo rei: da estética da existência foucaultiana à política queer. In: SOUZA, Luiz Antônio Francisco de; SABATINE, Thiago Teixeira; MAGALHÃES, Boris Ribeiro de. (Orgs.). Michel Foucault : sexualidade, corpo e direito. Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. p. 53. 171 Ibid. p. 67.

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próprias teorias são também tecnologias de gênero; entende-se que o presente estudo, ele próprio, constitui um dispositivo que, intencionalmente ou não, contribui em algum sentido para as forças em disputa na sociedade. Não se pretende, portanto, qualquer neutralidade ou imparcialidade. O “não-lugar” que se atribui aos estudos queer e, de certa forma, à criminologia – portanto também ao queer na criminologia ou à criminologia queer – não é uma tentativa de abster-se dos diversos vetores em que o poder se exerce. Não existe um “não-lugar” na política, pois o próprio indefinido e inominado, voluntariamente ou não, tem relação com o definido e nominado. O que se propõe é uma forma de descrever e articular questionamentos, tentativas de transformação a partir e dentro de uma estrutura múltipla de poder que constantemente se apropria das ações que se pretendem transformadoras e, por isso, (re)produz constantemente contradições. O “não-lugar”, portanto, é um reconhecimento de que toda ação – teórica e política – deve estar sob constante (auto)crítica. Concluimos, então, que os discursos médicos e jurídicos sobre violência de gênero são apenas algumas das tecnologias de um todo complexo e, sozinhos, não garantirão a proteção que se almeja.

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