O RECONHECIMENTO E A TUTELA DOS DIREITOS INDÍGENAS NA SEARA INTERNACIONAL SOB A PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS

Share Embed


Descrição do Produto

SUGESTÃO DE REFERÊNCIA: JONGH, L. P. P.; MELLO NETO, J. B. O Reconhecimento e a Tutela dos Direitos Indígenas na Seara Internacional sob a Perspectiva Dos Direitos Humanos. In: Wagner Menezes; Clodoaldo Silva da Anunciação; Gustavo Menezes Vieira. (Org.). Direito Internacional em Expansão. 1. ed. Belo Horizonte. Arraes Editores, vol. 4, 2014.

O RECONHECIMENTO E A TUTELA DOS DIREITOS INDÍGENAS NA SEARA INTERNACIONAL SOB A PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS

José Baptista de Mello Neto1 Louis Philippe Patrick De Jongh Filho2

RESUMO O artigo tem como escopo principal demonstrar o avanço na tutela jurídica dos direitos indígenas através da seara internacional. De antemão, far-se-á necessário analisar a cultura dos povos indígenas e a sua identidade, para que possamos compreender as necessidades e as demandas desses sujeitos. Posteriormente, apontaremos como se deu o reconhecimento de seus direitos e a sua (falta de) proteção, durante os séculos XX e XXI, na perspectiva dos Direitos Humanos. Palavras-Chave: Direitos Humanos. Povos Indígenas. Tutela Jurídica.

1. Considerações iniciais

Ao longo do curso histórico, os povos indígenas foram oprimidos por um processo de colonização que os dizimou aos milhares e que aculturou tantos outros. Os colonizadores não consideraram o direito dos indígenas a sua cultura ou a sua terra tradicional, forçando-os à assimilação de um modo de vida alheio e tomando para si os locais que eles habitavam. 1 Doutorando em Educação PPGE/UFPB; Doutorando em Direito PPGDIR/DINTER/UERJ/UEPB; Professor das Universidades Estadual e Federal da Paraíba; Coordenador-Geral do Comitê Paraibano de Educação em Direitos Humanos; Presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo da OAB/PB; membro do Núcleo de Cidadania de Direitos Humanos da UFPB. [email protected] 2 Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Monitor Bolsista da Disciplina de Direito dos Grupos Socialmente Vulneráveis e Monitor Voluntário do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba. [email protected]

Nesse sentido, o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas ocorreu apenas tardiamente. Durante o século XX, os Estados latino-americanos e as organizações não governamentais tiveram papel fundamental de alertar a comunidade global para a situação de exclusão social e de marginalização a que tais grupos estavam submetidos, em face da colonização e da tomada de suas terras e de seus recursos, os quais obstaram o seu direito ao desenvolvimento, consoante suas necessidades e sua cultura. Nesse diapasão, buscou-se inserir os povos indígenas nas estruturas de proteção de Direitos Humanos. Para tanto, foram criados importantes instrumentos internacionais voltados à tutela de tais povos, bem como também órgãos específicos no âmbito das Nações Unidas. Todavia, o reconhecimento de seus direitos sempre encontrou muita resistência no cenário internacional, sobretudo, devido à preocupação dos Estados em defender sua soberania e seus interesses, bem como a não compreensão da cultura e da identidade dos povos indígenas.

2. Modo de vida de uma sociedade ou de um povo

A cultura é um termo para o qual há diferentes definições. Pode-se compreendê-la em sua dimensão de arte e, portanto, é sumamente avaliativa. É-nos facultada também a possibilidade de enxergar a cultura em sua dimensão de diferença E cabe também o seu sentido como “modo de vida de uma sociedade ou de um povo”, sendo assim puramente descritiva e marcada pela pluralidade - em face dos diferentes valores, comportamentos e regras de cada grupo; além do mais, deve ser enxergada nesta definição como algo mutável, modificado pelas experiências e idéias, e não necessariamente consensual e igualitária. Senão vejamos: Esse é o sentido da cultura como modo de vida de uma particular sociedade ou de um povo. Aqui a cultura é plural, de modo que sociedades ou um conjunto de sociedades correspondam a diferentes ‘culturas’, cada qual com seus próprios valores, comportamentos e regras [...].3

Destarte, interessa-nos aqui destacar o sentido de cultura como “modo de vida de uma sociedade ou de um povo” e compreender que esta acepção foi basilar para o reconhecimento internacional dos direitos dos povos indígenas. Para tanto, infere-se que 3 MARKS, Susan; CLAPHAM, Andrew. International Human Rights Lexicon. Tradução nossa. New York: Oxford University Press, 2005, p. 34.

apenas uma agenda voltada para os Direitos Humanos poderia resguardar, efetivamente, a cultura de cada povo.

3. Quem são os povos?

Antes de falarmos propriamente dos “povos indígenas”, devemos de modo prévio aclarar o conceito de “povos”, para que possamos compreender a totalidade daquele termo. Internacionalmente, ao falar de “povos”, podemos identificar a marca colonial desse conceito. Este, portanto, relacionar-se-ia às categorias de territórios tutelados ou não autônomos estabelecidas pela Carta das Nações Unidas. Assinale-se que tal documento também define o significado da expressão “territórios não autônomos” (locais em que as pessoas ainda não foram plenamente capazes de se autogovernar). Dessa forma, a grande dúvida no direito internacional é saber se há um significado de “povos”, que transcenda a mera relação com as categorias supracitadas. Para um lado, isso não ocorre, pois os positivistas argumentam que o anseio pela autodeterminação surgiu no período de descolonização e que, portanto, não faria sentido definir os “povos” além de sua dimensão colonial. Em oposição a isto, alguns autores buscaram expandir o conceito de povos, ainda que por vieses distintos: houve aqueles que buscaram definir “povos” de modo a relacioná-los a sua acepção colonial (abordagem coerente), e houve também aqueles que defenderam a existência de outras categorias de “povos” no direito internacional (abordagem categórica).4 Na concepção de Chaumont, por exemplo, as populações coloniais passariam a ser povos, na medida em que afrontassem a situação de dominação a qual estão submetidas pelas potências imperialistas. Dessa sorte, haveria, para esse autor, uma relação dialética entre a realidade social e o direito internacional 5.

4KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p.59-62. 5 CHAUMONT apud KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p.59-62.

Segundo o referido autor: O Direito Internacional [...] não é destinado a pairar sobre as realidades, e da mesma forma camuflá-las, e ao final permitir os Estados a agirem livremente sobre o abrigo de uma fachada de generalidades. É uma contínua tentativa de transformar contradições reais, e realiza a dupla função de traduzir essas contradições a ao mesmo tempo de superá-las. 6

Já para Daniel Turp, com base na garantia à autodeterminação conferida pelos Pactos Internacionais de Direitos Humanos de 1966 e na situação enfrentada no período de Guerra Fria, o conceito de “povos” teria sido elaborado como uma comunidade construída democraticamente, que decidiria os rumos de sua existência de forma autônoma. Desse modo, as leis e as declarações públicas de um governo eleito democraticamente pela maioria são suficientes para provar a autoafirmação de um povo. 7 Com efeito, diversas definições restritas também existiram por parte de outros autores, tentando combinar os elementos culturais com a vontade desses “povos” de viver coletivamente. Contrariamente a isto, autores como Karl Doehring rejeitaram a existência de uma definição única de povos e levantaram a possibilidade de coexistência entre diferentes acepções de “povos”; entre elas, a de populações coloniais, a de estados soberanos e a de minorias étnicas8. Finalmente, ainda houve autores que reconheceram o direito a autodeterminação dos povos sujeitos à dominação alheia ou a ocupação estrangeira. Rosalyn Giggins e Anna Michalska se limitaram a documentar a existência de uma categoria separada de povos submetidos à referida condição. W. Ofuatey-Kodjoe, por sua vez, preocupou-se em aclarar esse conceito à luz da situação de subjugação dos “povos”, criando assim uma valiosa definição para tal categoria no direito internacional 9. Nesse sentido, Knop nos fala que:

6 CHAUMONT, Charles. Cours general de Droit International. Vol. 1. Haia: Académie de Droit internacional, 1970, p. 333-363. 7 TURP apud KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p.57-59. 8 DOEHRING apud KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p.62-63.

Diferentemente de Higgins e Michalska, Z. Ofuatey-Kodjoe desenvolve uma definição unificada de povos com direito à autodeterminação, como subjugados, com isso ele quer dizer ‘aqueles que não se autogovernam, aqueles ocupados, aqueles sob dominação estrangeira e aqueles privados de uma condição de independência prévia.’10

4. Povos indígenas: um termo impreciso

De antemão, sabe-se que o primeiro conceito de “povos indígenas”, pelo menos no Direito Internacional, surgiu ainda no período de existência da Liga das Nações, definindo-os como habitantes de territórios não autônomos que, apesar de viverem numa região localizada geograficamente dentro da circunscrição de Estados pré-determinados, afirmavam a diferença territorial de suas culturas.11 O Pacto da Sociedade das Nações de 1919, por sua vez, referiu-se, em seus artigos 22 e 23, de diferentes formas aos povos indígenas (“colonos”, “habitantes nativos”, “população indígena”, “povos que ainda não podem se defender sozinhos”), conferindo-lhes o direito a um “tratamento justo”, sem levar em conta a pluralidade cultural desses “povos”. Outrossim, os povos indígenas são definidos na Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais (de 1989) e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (de 2007), como os habitantes originais de uma terra (por via de sua ascendência), invadida posteriormente por outros grupos (através de um processo de ocupação, colonização ou dominação), os quais estabeleceram sua cultura de forma a sobrepujar a cultura daqueles.12

9 OFUATEY-KODJOE apud KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p.64-65. 10 KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. Tradução nossa. New York: Cambridge University Press, 2002, p.65. 11 BODANSKY, Daniel; BRUNNÉE, Jutta; HEY, Ellen. The Oxford Handbook of International Environmental Law. New York: Oxford University Press, 2007, p.830-851.

12 KÄLIN, Walter; KÜNZLI, Jörg. The Law of International Human Rights Protection. New York: Oxford University Press, 2009, p. 344-380.

Porém, quanto a isto devemos ilustrar que há quem diferencie os conceitos de “autóctones” ou “aborígenes” (descendentes dos povos originários de uma terra) e de “povos indígenas” (não necessariamente descendentes dos primeiros ocupantes de uma terra). Assim, Gray nos fala que todo aborígene é indígena, mas nem todo indígena é aborígene. 13 Voltando à questão da definição de “povos indígenas”, faz-se imprescindível notarmos que, até então, esta nunca foi elaborada de forma incontroversa e precisa. Dessa sorte, há tão somente características que são consideradas comuns a esses grupos. Nada obstante, apontaremos algumas delas, a fim de construirmos uma moldura que nos aproxime de uma acepção apropriada para o termo em questão. Em geral, os denominados povos indígenas estão ligados por um forte sentimento de coletividade, isto, por exemplo, faz com que suas demandas por direitos envolvam um ganho para o grupo como um todo. Com efeito, cada um desses povos constrói uma tradição e desenvolve um modo de vida particular; no entanto, são partilhados por eles aspectos como a ligação com as terras tradicionais, a preservação do meio-ambiente, a identidade própria (em relação à cultura dominante da sociedade em que estão inclusos), a autoidentificação dos membros como indígenas (e a aceitação pelo grupo), o objetivo de perpetuar sua cultura e de se autodeterminar. Também urge notarmos que todos esses grupos sofreram com a sujeição à colonização e, portanto, é comum a eles a continuidade histórica.14 Por fim, reputa-se a José Martinez Cobo, Relator Especial da Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias, a mais citada definição sobre povos indígenas, da qual se podem extrair os elementos de sujeição colonial, continuidade histórica, identidade distante da sociedade dominante e preocupação com a preservação e a perpetuação de sua cultura: Comunidades, povos e nações indígenas são aquelas que, tendo uma continuidade histórica com sociedades anteriores à invasão ou à colonização que desenvolveram em seus territórios, que se consideram distintos de outros setores da sociedade agora predominantes nestes territórios ou em partes deles. Eles formam no presente setores não dominantes da sociedade e são determinados para preservar, desenvolver e transmitir para as futuras gerações de seus

13 GRAY apud KEAL, Paul. European Conquest and the Rights of Indigenous Peoples: the moral backwardness of international society. New York: Cambridge University Press, 2003, p.24-56.

14 BODANSKY, Daniel; BRUNNÉE, Jutta; HEY, Ellen. The Oxford Handbook of International Environmental Law. New York: Oxford University Press, 2007, p.830-851.

territórios ancestrais, e sua identidade étnica, a base de sua continuidade existencial como povos, em conformidade com seus padrões culturais , instituições sociais e sistemas legais. 15

5. O avanço dos direitos indígenas no cenário internacional

Não bastasse a situação de marginalização em que comumente se encontram os povos indígenas, estes constantemente precisam lutar pela preservação de sua cultura e de seus direitos. Principalmente, em matéria de ocupação de suas terras tradicionais. 16 Conforme Moeckli, Shah e Sivakumaran denunciam: Os povos indígenas do mundo estão geralmente entre os mais empobrecidos. Muitos deles estão lutando para manter e preservar sua própria cultura, mas muitas de suas terras foram retiradas deles, e o que pouco restou não tem a capacidade de fornecer-lhes o suficiente em termos de comida e moradia.17

O Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais repetidas vezes vem expondo a situação de vulnerabilidade enfrentada por esses povos, cujas causas variam desde a ocupação ilegal de suas terras tradicionais, as quais não raro são retiradas de sua posse (por empresas, pelo Estado e por outros grupos), à falta de condições médico-hospitalares em suas comunidades. Conforme vimos antes, o termo “povos indígenas” nunca foi definido de forma autoritária (leia-se incontroversa) pelos organismos internacionais e pelos seus tratados, em face disso abriu-se uma brecha para que os Estados contestassem a identidade desses grupos e dificultassem a conquista de seus direitos.18

15 COBO, José Martinez. Study of the Problem against Indigenous Populations. Tradução nossa. Vol. v, Conclusions, Proposals ans Recommendations, UN Doc E/CN4/Sub 21986/7, Add 4, par. 379-381. 16 MOECKLI, Daniel; SHAH, Sangeeta; SIVAKUMARAN, Sandesh. International Human Rights Law. New York: Oxford University Press, 2010, p. 248-387.

17 Ibidem, 48. 18 ONU. Report of the Special Rappourter on the Situation of Human Rights and Findamental Fredooms of Indigenous Peoples, Mr. Rodolfo Stavenhagem. UM Doc. E/CN.4/2002/97, 2002, par. 107.

Inobstante, paulatinamente os povos indígenas vêm obtendo o reconhecimento e a proteção de seus direitos na seara internacional. Isto se deu através de muito esforço por parte desse grupo, sobretudo, no sentido de convencer à comunidade global de que a existência de sua cultura encontra-se hipotecada ao exercício de direitos que lhe são inerentes. Nesse ínterim, diversos empecilhos foram apresentados a esses povos, como a desconfiança em relação a sua identidade (como definir um povo indígena?), a confusão entre eles e demais categorias (falar em povos indígenas seria o mesmo que falar em minorias?) e o conflito de seus interesses com os interesses dos Estados (até que ponto possuem soberania frente aos Estados?). Fato é que, ao longo do curso histórico (pelo menos até a década de 1950), a existência dos povos indígenas, como atores no cenário internacional de direitos, foi esquecida (ou ignorada); e pouco (ou nada) se fez pela melhora de suas condições de vida.19 A Carta das Nações Unidas, por exemplo, não considerou o direito desses povos à autodeterminação - visto que em momento algum os mencionou -, apesar de reconhecê-la como um direito de todo os “povos”. Do mesmo modo, apresentou os territórios não autônomos como objeto de proteção internacional, sem mais uma vez aludir aos povos indígenas. Além disso, a Assembleia Geral das Nações Unidas definiu os territórios não autônomos como sendo terras administradas por um Estado distinto, separado cultural e geograficamente, deixando novamente de lado os indígenas. No entanto, na década de 1950, devido aos constantes apelos por parte dos Estados latino-americanos, a Assembleia Geral das Nações Unidas tomou consciência da situação de exclusão social e de marginalização em que eles haviam sido expostos por tanto tempo. Por conta disso, a fim de dar atenção merecida a esses povos, foram criadas pela OIT: a Convenção n° 107 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais (1959), sendo esta a primeira a separar a problemática dos povos indígenas da questão dos territórios não autônomos e das minorias; e a Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais (1989), sendo este um instrumento mais rígido de tutela jurídica que o primeiro. Valer notar 19 BODANSKY, Daniel; BRUNNÉE, Jutta; HEY, Ellen. The Oxford Handbook of International Environmental Law. New York: Oxford University Press, 2007, p.830-851.

que ambos os tratados encontraram ampla adesão por países latino-americanos e até hoje permanecem válidos. Houve, também, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980, a criação de organizações não governamentais voltadas à defesa dos direitos dos indígenas. Paralelamente a este fato, em 1982, ocorreu a instalação de um grupo de trabalho sobre populações indígenas na Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias. Dessa forma, fica claro que, desde a década de 1980, os povos indígenas vêm participando das estruturas de proteção de Direitos Humanos das Nações Unidas e pleiteando exitosamente seus direitos perante a comunidade internacional (por meio de Organizações não governamentais, líderes da comunidade e instituições criadas pelo seu costume), mormente, os direitos coletivos, a posse da terra, a importância do envolvimento das organizações populares com o processo político internacional. Por oportuno, os direitos coletivos dos indígenas, foram inclusive alvos de desconfiança por parte de muitos governos, porquanto se assemelhavam com a definição de propriedade socialista dos soviéticos. Mas, posteriormente, foi compreendida sua relação com a cultura do povo indígena. Já no tocante ao direito à posse da terra, após seu reconhecimento pelas conferências internacionais durante os anos 1990, foi relacionado à valiosa capacidade dos povos indígenas em preservar o ecossistema, através de seu saber prático, inclusive criando um vínculo espiritual com a terra. Além disso, em 2002, estabeleceu-se o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Assuntos Indígenas, como órgão aconselhativo do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Todavia, apenas em 13 de setembro de 2007 a principal conquista dos povos indígenas foi efetivada, sendo um grande avanço em direção à tutela jurídica desse grupo. Criou-se neste ano a Declaração de Direitos dos Povos Indígenas, que garantiu uma série de direitos a esses povos, entre eles podemos citar: o direito à autodeterminação, facultando-lhes a possibilidade de buscar livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural; o direito à terra, permitindo-lhes usar e gozar de seus territórios tradicionais; o direito à autonomia para se autogovernarem e determinarem seu status político; e o direito a usufruir de todos os direitos humanos e das liberdades fundamentais (reconhecidos pela Carta

das Nações Unidas, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelo Direito Internacional em geral). 20 O Direito Internacional Público contemporâneo, por sua vez, reconhece que os indígenas têm o direito de participar de quaisquer decisões que afetem o seu bem-estar: os Estados e organismos internacionais devem, pois, buscar consultá-los. E compete somente a tais sujeitos denominarem-se ou não de indígenas. 21 Ainda quanto ao Direito Internacional, os povos indígenas são contemplados em uma das três frentes de regras para a proteção dos direitos das minorias. Há, portanto, o direito dos povos à autodeterminação, direito este que surge no contexto de descolonização, a fim de permitir aos povos que viviam em outros Estados a possibilidade de se emanciparem do Estado no qual viviam, criando assim seu próprio Estado; o conceito de proteção de minorias, nascido nos tratados adotados pela Liga das Nações, fundamentando sua existência na necessidade, em face da presença de um grupo majoritário; e a proteção dos direitos indígenas, implicando procedimentos legais de salvaguarda dos direitos desses povos. 22 Vale observar que o conceito de minoria difere do termo “indígena”, apesar de o termo indígena poder, em certas situações, ser incluído no conceito de minoria. Enquanto aquele busca a igualdade de direitos das minorias em relação aos demais cidadãos, este objetiva certa autonomia territorial para que seu povo possa viver em plenitude com sua cultura. Outrossim, os direitos das minorias são essencialmente individuais e os direitos dos indígenas são coletivos.23

20 KÄLIN, Walter; KÜNZLI, Jörg. The Law of International Human Rights Protection. New York: Oxford University Press, 2009, p. 344-380.

21 BODANSKY, Daniel; BRUNNÉE, Jutta; HEY, Ellen. The Oxford Handbook of International Environmental Law. New York: Oxford University Press, 2007, p.830-851. 22 KÄLIN, Walter; KÜNZLI, Jörg. The Law of International Human Rights Protection. New York: Oxford University Press, 2009, p. 344-380. 23 BODANSKY, Daniel; BRUNNÉE, Jutta; HEY, Ellen. The Oxford Handbook of International Environmental Law. New York: Oxford University Press, 2007, p.830-851.

No que diz respeito aos direitos individuais, os indígenas podem acionar o Artigo 27 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o qual defende os grupos minoritários, muito embora não se considerem perfeitamente incluídos em tal categoria. Já no que se refere aos direitos coletivos, a Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, garante-lhes o direito sobre seu território e sobre seu modo de viver, sua cultura e sua língua, cabendo a eles e somente a eles, estabelecer os parâmetros de seu desenvolvimento. Nessa incessante busca pelo reconhecimento de direitos, os povos indígenas vêm pleiteando, principalmente, seu direito à autodeterminação. Entende-se este como um conceito, ao qual diferentes significados foram atribuídos e cuja interpretação, por conseguinte, modificou a imagem da comunidade internacional em relação à identidade desses grupos.24 Dessa forma, o problema da conceituação dos povos indígenas envolve inevitavelmente outros conceitos como “autoidentificação” e“autodeterminação” Quanto à autoidentificação, esbarra nas dificuldades práticas, como a disputa de terras e a má-fé de alguns em se autodenominar indígenas apenas para usufruir dos benefícios desse ato. Nesse sentido, há autores que sugerem a adoção de critérios de identificação, para ao menos dar parâmetros objetivos a tal processo de reconhecimento. No que se refere à autodeterminação, nem sempre ela se faz presente, pois, muitas vezes, no interior dos Estados, os indígenas não são identificados em seu status diferenciado e sofrem com a ingerência dos Estados em suas terras tradicionais. No entanto, eles persistem buscando o direito de controlar os diversos aspectos de seu desenvolvimento de forma autônoma, sobretudo, a política, a economia e a cultura. 25 Os governos, por sua vez, apesar de frequentemente concederem o direito à autodeterminação interna, ou seja, dentro das fronteiras dos Estados, resistem em garantir o direito à autodeterminação externa desses povos, temendo pela integridade de seus territórios. 24 KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p.50-90.

25 BODANSKY, Daniel; BRUNNÉE, Jutta; HEY, Ellen. The Oxford Handbook of International Environmental Law. New York: Oxford University Press, 2007, p.830-851.

Acontece que a Carta das Nações Unidas não menciona a questão da autodeterminação, limitando seu enfoque ao aspecto da autogovernança, entretanto é aceito que os documentos posteriores conferiram aos territórios tutelados e aos não autônomos tal direito, e por tabela aos “povos” neles presentes, com exceção de alguns territórios não autônomos.26 Por oportuno, o aspecto da autogovernança suscita mais uma importante reflexão, no sentido de desvendar qual a sua importância e quem figura como liderança do grupo indígena: Líderes tradicionais e instituições costumeiras da autogovernança da comunidade podem ser mais democraticamente representativos e responsáveis do que instituições que são oficialmente reconhecidas pelo Estado e que dependem do Estado para ter legitimidade ou suporte financeiro. Políticas tradicionais operando sob leis costumeiras locais comumente sobreviveram, e continuam a evoluir, das organizações pre-coloniais de povos indígenas, e, em muitos casos, elas têm mais apoio na ausência de eleições ou outras formas de legitimação promovidas pela comunidade internacional. Todavia, não se pode simplesmente assumir que líderes tradicionais são apenas, responsáveis, ou amplamente representativos. A voz mais autoritária num particular povo indígena é uma questão ou fato não menos relevante do que a identidade indígena de um grupo ou a identificação de seus membros individuais.27

No período pós-Segunda Guerra, houve a criação de muitos Estados como parte do processo de descolonização e de fim do imperialismo; com isso, muitos povos alcançaram o seu direito à autodeterminação. Inobstante, grupos minoritários e indígenas, nesse contexto, foram deixados de lado.28 No entanto, ao término do grave conflito entre os Estados Unidos da América e a exUnião das Repúblicas Socialistas Soviéticas no período de Guerra Fria, buscou-se dar mais atenção às problemáticas de resolução global e aos anseios de grupos que antes não tinham vez ou voz perante a comunidade internacional.29 26 KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p. 50-90.

27 BODANSKY, Daniel; BRUNNÉE, Jutta; HEY, Ellen. The Oxford Handbook of International Environmental Law. Tradução nossa. New York: Oxford University Press, 2007, p.837. 28 KEAL, Paul. European Conquest and the Rights of Indigenous Peoples: the moral backwardness of international society. New York: Cambridge University Press, 2003, p. 24-56. 29 YASUAKI, Onuma. Toward an Intercivilizational Approach to Human Rights. In: BAUER, Joanne; BELL, Daniel. The East Asian Challenge for Human Rights. United States of America: Cambridge University Press,

Destarte, ainda que aos poucos, o processo de conquista de direitos pelos povos indígenas vem sendo realizado. Para tanto, fica cada vez mais clara a obrigação de conferir a eles a possibilidade de se autodeterminarem e a necessidade de que sejam elaborarem normas direcionadas à tutela jurídica de seus direitos. Os campos de conquista são os mais diversos, abrangendo, por exemplo, a criação de normas voltadas à não-discriminação, à defesa da integridade cultural, ao direito às terras tradicionais e aos recursos naturais, ao direito a um meio-ambiente saudável, ao bem-estar e ao desenvolvimento dos povos indígenas e à autonomia para se autogovernarem.30

Conclusão

Ao lume do exposto, o ingresso dos direitos indígenas no cenário de Direitos Humanos se deu muito lentamente. Fez-se indispensável nesse trajeto evolutivo a compreensão da cultura dos povos indígenas, que, além de ser marcada por tremenda diversidade, vem se modificando ao longo do tempo, assim como as demais, pois o modo de vida de uma sociedade jamais é algo estático. Nesse sentido, estabeleceu-se uma relação dialética direito-conceito, na qual a alteração de um fator sempre foi acompanhada da modificação do outro. Não se podendo, portanto, vislumbrar o direito apenas pelo lado exegético, de tão somente aplicá-lo sem levar em conta a realidade a que se remete, mas também sendo necessário adequá-lo às mudanças sociais. Some-se a isso o fato de não haver ainda um conceito específico de povos indígenas, deixando assim a critério dos Estados decidirem quanto a sua identidade, tomando por base indícios que apontem ou não pela sua caracterização; constatação esta que se mostra preocupante, diante das investidas de grupos que se mostram interessados, sobretudo, nas terras de tais povos. Ademais, mostrou-se um desafio aplicar os Direitos Humanos, estruturados no pósSegunda Guerra, à realidade dos povos indígenas, haja vista ser preciso adequá-los a uma 1999.

30ANAYA, S. James. Indigenous People in International Law. New York: Oxford University Press, 2000.

dimensão coletiva. Do mesmo modo, os instrumentos internacionais precisaram se adaptar a essa nova concepção de Direitos Humanos. Todavia, é necessário recrudescer a compreensão do modo de vida indígena em seu aspecto de singularidade histórica, no mesmo patamar de importância das demais culturas e não mais por meio de uma visão impositiva ou integracionista, comum nos períodos colonialistas. Desse modo, ter-se-á uma guinada nos direitos de tais povos, sobretudo, em seu direito à autodeterminação (facultando-lhes estabelecer as diretrizes do desenvolvimento de sua comunidade), e em seu direito à terra tradicional (assegurando-lhes o direito de usufruir com plenitude de seus espaços geográfico-cosmológicos), os quais por tanto tempo lhes foram negados.

Referências

ANAYA, S. James. Indigenous People in International Law. New York: Oxford University Press, 2000. BODANSKY, Daniel; BRUNNÉE, Jutta; HEY, Ellen. The Oxford Handbook of International Environmental Law. New York: Oxford University Press, 2007, p.830-851. CHAUMONT, Charles. Cours general de Droit International. Vol. 1. Haia: Académie de Droit internacional, 1970, p. 333-363. CHAUMONT apud KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p.59-62. DOEHRING apud KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p.62-63. GRAY apud KEAL, Paul. European Conquest and the Rights of Indigenous Peoples: the moral backwardness of international society. New York: Cambridge University Press, 2003, p.24-56. KÄLIN, Walter; KÜNZLI, Jörg. The Law of International Human Rights Protection. New York: Oxford University Press, 2009, p. 344-380. KEAL, Paul. European Conquest and the Rights of Indigenous Peoples: the moral backwardness of international society. New York: Cambridge University Press, 2003, p.24-56. KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p.50-90. MARKS, Susan; CLAPHAM, Andrew. International Human Rights Lexicon. New York: Oxford University Press, 2005, p. 34-48. MOECKLI, Daniel; SHAH, Sangeeta; SIVAKUMARAN, Sandesh. International Human Rights Law. New York: Oxford University Press, 2010, p. 248-387. OFUATEY-KODJOE apud KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p.64-65. ONU. Report of the Special Rappourter on the Situation of Human Rights and Findamental Fredooms of Indigenous Peoples, Mr. Rodolfo Stavenhagem. UM Doc. E/CN.4/2002/97, 2002, par. 107. TURP apud KNOP, Karen. Diversity and Self-Determination in International Law. New York: Cambridge University Press, 2002, p.57-59. YASUAKI, Onuma. Toward an Intercivilizational Approach to Human Rights. In: BAUER, Joanne; BELL, Daniel. The East Asian Challenge for Human Rights. United States of America: Cambridge University Press, 1999.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.