O Regime Internacional de Cooperação Sul-Sul: Invisibilização Institucional e Teórica

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5º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais 29 a 31 de julho de 2015

O REGIME INTERNACIONAL DE COOPERAÇÃO SUL-SUL: INVISIBILIZAÇÃO INSTITUCIONAL E TEÓRICA

Área Temática: Instituições e Regimes Internacionais

Xaman Korai Pinheiro Minillo Universidade Federal da Paraíba – UFPB

Bárbara Denise Carneiro Adad Universidade Federal da Paraíba – UFPB Programa Institucional de Iniciação Científica - PIVIC/UFPB

Belo Horizonte 2015 1

Resumo

Entendendo regimes internacionais de acordo com a definição de Stephen Krasner, como “princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões de determinada área das relações internacionais em torno dos quais convergem as expectativas dos atores” (KRASNER, 2012: 93) e compreendendo a cooperação Sul-Sul (CSS) como parcerias estabelecidas

entre

países

em

desenvolvimento,

nas

quais

não

se

impõem

condicionalidades para sua realização, este artigo busca demonstrar a existência de um regime internacional de CSS. Os opositores à ideia da existência do regime afirmam que a CSS não apresenta um modelo consistente (institucionalizado), o que seria fundamental para o seu aprimoramento e refinamento conceitual. Apontam ainda que a CSS é mais fragmentada, menos transparente e eficiente institucionalmente e é deficiente na coordenação e monitoramento por parte das agências de cooperação (SOUZA, 2010). A falta de coerência entre as concepções e práticas dos países participantes da CSS e a multiplicidade de regras e atores dificultam a definição da existência de um regime internacional de CSS, mas esta não pode ser de descartada. Propõe-se evidenciar a existência de um regime a partir de exemplos empíricos, demonstrando que ocorre convergência de expectativas sobre princípios e características das relações entre os atores praticantes de acordos de CSS. A recusa em se reconhecer a existência de um regime de CSS se deve a insistência em ter como modelo o regime de cooperação internacional para o desenvolvimento (CID) do Comitê de Assistência ao Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (CAD/OCDE) e a cooperação internacional feita pelos países desenvolvidos. Finalmente, procuramos oferecer uma visão crítica acerca das categorias de análise tradicionalmente utilizadas para a pesquisa de CID, tradicionalmente estruturadas em torno da cooperação praticada pelos países desenvolvidos e tendenciosas a privilegiar o modelo do CAD/OCDE como padrão que deve ser aplicado à CSS.

Palavras-chave: Regimes internacionais, CSS, CID

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Introdução Os Estudos de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID) já vem sendo desenvolvidos há mais de meio século (AYLLÓN, 2011), sendo a cooperação desenvolvida por estados desenvolvidos em prol de países em desenvolvimento, conhecida ou Cooperação Norte-Sul (CNS) ou – de acordo com a definição do Comitê de Assistência ao Desenvolvimento (CAD) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (AOD), reconhecida como o modelo tradicional de CID. É notável, nos últimos anos, além do crescimento da produção acadêmica sobre CID nos estudos de Relações Internacionais, o aumento no interesse sobre modalidades de cooperação desenvolvidas entre estados membros do sul global, reconhecida como Cooperação Sul-Sul (CSS). Este crescente espaço pode ser relacionado ao aumento da presença, impacto e visibilidade de atividades de cooperação para o desenvolvimento realizadas entre países em desenvolvimento que ocorre paralelamente ao destaque de estados (re-)emergentes, potências regionais e países de industrialização rápida como parceiros e doadores na arquitetura internacional de desenvolvimento e nas agendas globais (MAWDSLEY, 2012) e a multiplicação de instituições internacionais voltadas à CSS. Os discursos institucionais acerca da CSS, que muitas vezes ecoam nas narrativas acadêmicas, reconhecem a CSS como uma forma inovadora de CID, que se apresenta como opção complementar à formas tradicionais de CID, como a CNS ou AOD (TASK TEAM ON SOUTH-SOUTH COOPERATION, 2011; GENERAL ASSEMBLY, 2010; UNDP, 2007; OECD, 2005). Reconhecendo que os discursos de algumas instituições internacionais e pesquisas sobre CID têm garantindo espaço privilegiado à CNS sobre outras formas de CID, o presente artigo procura questionar o tratamento da CSS como um tipo de CID recente ou incipiente, que deve ser mensurada em comparação à CNS, entendida como o padrão de CID. Isso será feito a partir da identificação de uma genealogia de CSS enraizada na solidariedade dos países do sul global, demonstrando, também a relevância deste tipo de mobilização para o sistema internacional de cooperação para o desenvolvimento. Para levar adiante este objetivo, primeiramente serão trabalhados os conceitos de sul global e Cooperação Sul-Sul (CSS), e em seguida apontadas as evidências para a existência de um Regime de CSS. Para concluir, identificaremos os fatores marginalizam a agência do sul global nos estudos de CID e continuam dificultando o seu reconhecimento nas agendas de pesquisa de cooperação para o desenvolvimento. O Sul Global e a Cooperação Sul-Sul 3

O sul global se refere ao agrupamento de estados em desenvolvimento de diversas regiões do globo que partilham história de desigualdades políticas, sociais e econômicas devido a um passado de colonização ou imperialismo e se organizam em um bloco ideologicamente motivado (ALDEN, MORPHET, VIEIRA, 2010. Pp. 4). O conceito é similar ao que Frenchman Alfred Sauvy definiu, em 1952, como "terceiro mundo", o bloco de nações africanas, asiáticas e latino-americanas que, partilhando um passado de colonialismo e subdesenvolvimento, declararam não alinhamento ou não envolvimento no antagonismo da bipolaridade do período pós-II Guerra (BRAVEBOY-WAGNER, 2009). Afastando-se do conflito Leste-Oeste, estes estados salientavam outra clivagem – nomeadamente o conflito Norte-Sul – baseada nas diferenças de desenvolvimento e, com base nela se agruparam questionando a ordem internacional desigual, especialmente em suas dimensões econômicas. Os termos “sul global” e “países em desenvolvimento” passaram a ser utilizados em documentos das Nações Unidas desde os anos 1970s, e seu uso se consolidou conforme perderam sentido as categorias de primeiro e segundo mundo, com o final do antagonismo da Guerra Fria nos anos 1990s, quando também perdeu validade como conceito analítico o terceiro mundo (BRAVEBOY-WAGNER, 2009). Na nova conjuntura internacional também se enfraqueceram os princípios anti-imperialistas e de não alinhamento, equanto as disparidades políticas e econômicas entre os estados em desenvolvimento tornaram-se mais claras.1 Neste contexto, muitos declararam inadequado o agrupamento de estados tão díspares em um só bloco e emergiram novas categorias para diferenciar os países em desenvolvimento, como “países de renda média”, “estados em transição”, “países menos desenvolvidos”. No entanto, persistem problemas de desigualdade na ordem internacional – como demonstram as recentes reivindicações por reformas de instituições internacionais como as Nações Unidas (LEAL, 2011) – que garantem a manutenção da relevância do conceito amplo de sul global para mobilizações críticas ao sistema internacional em questões de desenvolvimento econômico por um grupo de países que – não obstante as forças da globalização e as aspirações do liberalismo e formas de cosmopolitismo – continuam a ver seus problemas, e a construir suas narrativas, de forma bastante diferente daquelas dos países desenvolvidos da Europa, América do 2 Norte e Ásia (BRAVEBOY-WAGNER, 2009. Pp. 3).

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A China, por exemplo, uma potência com recursos de poder como armamentos nucleares e poder de veto no Conselho de Segurança das Nações unidas, impede a caracterização do sul global como estados fracos, mas pode ser incluída na categoria como um dos estados em desenvolvimento que foram colonizados pelo mundo ocidental (BRAVEBOY-WAGNER, 2009). 2 Tradução própria.

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Se reconhece, assim, que o uso dessa categoria continua relevante estados em desenvolvimento se posicionarem frente aos países industrializados e mais poderosos do norte em suas políticas externas, grupos de pressão e em parcerias de CSS. Ainda que a conjuntura internacional se altere – e o desempenho político das coalizões varie – se mantém

as

condições

de

desigualdade

no

sistema

internacional

assimétrico

e

interdependente, mantendo assim a relevância das coalizões do sul e a meta de busca pelo desenvolvimento e um sistema internacional mais igualitário (RODRIGUES, 2010). A CSS abrange diversos tipos de relações e processos de troca entre países do sul de forma ampla, desde coordenação de políticas, formação de coalizões temporárias no âmbito de negociações multilaterais, fluxos de investimentos privados e trocas que, no longo prazo, podem levar ao estabelecimento de instituições (LEITE, 2010). Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), CSS é “um quadro amplo para a colaboração entre os países do Sul nos domínios político, econômico, social, cultural, ambiental e técnico” (PNUD, s.d.) que envolve o compartilhamento de conhecimentos, experiências, habilidades, competências, treinamentos, tecnologia (GENERAL ASSEMBLY, 2010), além de comércio, fluxos de investimento direto estrangeiro sul-sul3 e integração regional, entre outras formas de intercâmbio. Estas atividades são planejadas e geridas por países do sul para atingirem, concertadamente, seus objetivos de desenvolvimento e podem envolver instituições dos setores público e privado, ONGs e indivíduos, em parcerias bilaterais, multilaterais, sub-regionais, regionais ou inter-regionais (PNUD, s.d.). A CNS tem caráter assistencialista e baseia-se na transferência vertical de conhecimentos e técnicas dos países avançados aos países menos desenvolvidos, gerando uma relação ativo-passivo entre o país doador e o país receptor da cooperação fundamentada em concepções morais de assistência em contextos de disigualdades entre as partes envolvidas e no dever paternalista dos que têm ajudarem aqueles que não têm. A CSS, por sua vez, praticada entre países em desenvolvimento e entendida como uma parceria, gera a expectativa da fuga do jogo de soma-zero, dos papeis de doadores e receptores e da imposição condicionalidades para sua realização. Nesse caso, os países em

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Diferentemente das empresas multinacionais de estados do norte, que tendem a não investir em pequenos mercados, aquelas de estados do sul tendem a investir em países em desenvolvimento vizinhos, sendo os seus investimentos externos diretos significativos para países pequenos, podendo chegar a metade do investimento externo direto de alguns (AYKUT, GOLDSTEIN, 2007). O caso chinês é um exemplo especialmente relevante de CSS, que declaradamente baseia-se nos princípios de respeito mutuo das integridades territoriais e soberanias, mutua não agressão, não interferência em assuntos internos, igualdade e benefícios mútuos e coexistência pacífica, ao mesmo tempo em que considera comércio e ajuda econômica como CSS, fugindo assim da visão do CAD/OCDE acerca do que seria CID. A China também realiza CSS financeira através de fóruns multilaterais como o G77, onde oferece ajuda financeira aos países em desenvolvimento sem nenhuma ou com mínimas condicionalidades. (RONGLIN, 2014).

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desenvolvimento deixam de ser receptores passivos e passam a ser agentes do processo cooperativo, que se desenrola em relações horizontais entre os atores envolvidos. (OLIVEIRA & LUVIZOTTO, 2011). Além da lógica da parceria, a CSS envolve princípios diferentes daqueles da CNS e da AOD. Enquanto estas últimas se reportam ao dever dos que têm ajudarem aqueles que não têm, as parcerias sul-sul são estabelecidas com base nos princípios de solidariedade entre os povos e países do sul, existência de objetivos comuns e benefícios mútuos e igualdade entre os parceiros, respeito à soberania, auto-determinação, diversidade cultural e identidade, não condicionalidade e não interferência nos assuntos domésticos (CORRÊA, 2010; OECD, 2005). Percebe-se, assim, que os princípios das articulações terceiro-mundistas iniciadas em meados do século XX em movimentos descoloniais, dos países não alinhados e nas instituições do sul global ecoam nas práticas de CSS desenvolvidas por países em desenvolvimento, que ainda lutam para afirmar-se enquanto países independentes (CORRÊA, 2010). Os interesses mútuos nas parcerias sul-sul se alinham em uma lógica de solidariedade, tendo em vista que todos os envolvidos estão buscando o desenvolvimento. Assim, se reconhece que a CSS está conectada a realização de interesses como a abertura de mercados para produtos, serviços e investimentos e garantia de prestígio e apoio, que são legitimados ao serem buscados como parceria, sem caráter assistencialista ou intervencionista (AYLLON, LEITE, 2009). Um Regime Internacional de Cooperação Sul-Sul Regimes são parte do sistema internacional, que interagem co-constitutivamente com o comportamento dos atores internacionais sendo utilizados por estes em prol de seus interesses e moldando suas ações ao prescrever comportamentos aceitáveis e inaceitáveis (MEARSHEIMER, 2000 apud CEPALUNI, 2005) de forma não vinculante, oferecendo parâmetros para a agência estatal. Regimes internacionais podem ser compreendidos como “princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões de determinada área das relações internacionais em torno dos quais convergem as expectativas dos atores” (KRASNER, 2012. Pp. 93). Salienta-se que o autor propõe entender os princípios que compõem um regime como crenças sobre fatos, causalidades e questões morais, as normas como padrões de comportamento definidos em termos de direitos e obrigações, as regras como prescrições ou proscrições especificas para a ação, e os procedimentos para tomada de decisões como práticas predominantes para tomar e fazer valer decisões coletivas. Autores reconhecidos apontam a existência de um regime de CID, composto por atores estatais e não estatais, que incentiva ações coletivas em prol do desenvolvimento internacional por meio de um amplo leque de atividades (AYLLÓN, 2006; MILANI, 2008). As 6

organizações e agências de CID contribuem na formulação de objetivos e estratégias de desenvolvimento, na implantação, financiamento e definição de programas, na promoção de discursos relativos à cooperação promovendo uma visão compartilhada de desenvolvimento internacional, que “integra a defesa dos direitos humanos, a noção de progresso, a cultura de pacifismo e da negociação, assim como o ideal de intercâmbio na construção de consensos plurais” (MILANI, 2008. Pp. 164), o multilateralismo liberal e, de forma mais ampla, a modernidade ocidental. O atual regime internacional de CID pode ser entendido como um regime único, envolvendo CNS e CSS, porém fragmentado e pouco vinculante. Walz e Ramachandran (2010 apud KLEMIG, 2014) afirmam que os doadores de CNS procuram incentivar os 'novos' doadores de CSS a utilizar os padrões e as normas do CAD/OCDE através de grupos de trabalhos (WALZ; RAMACHANDRAN apud KLEMIG, 2014). Kim e Lightfoot (2011 apud KLEMIG, 2014) vislumbram três possíveis cenários para o regime da CID: convergência, coexistência pacífica ou desmembramento e choque. (KIM; LIGHTFOOT apud KLEMIG, 2014). Entretanto, a partir dos elementos diferenciadores entre as duas modalidades de CID, salientanto os princípios e normas que guiam o planejamento e a execução de parcerias sul-sul, assim como os atores que dela participam e suas atribuições, propõe-se a identificação de um regime específico de CSS, que influencia as espectativas e comportamentos dos atores e diferencia estas parcerias das atividades de CNS e AOD. Um panorama Histórico da Cooperação Sul-Sul Entendendo a CSS de forma ampla, é possível identificar uma genealogia de articulações do sul global como expressão de solidariedade desde o pós Segunda Guerra Mundial em uma série de eventos e processos políticos globais e regionais que se estendem até os dias atuais determinando os parâmetros do que pode (e o que não pode) ser entendido como parcerias sul-sul. Na seção abaixo é identificado um histórico de ações em 4 momentos, que inclui a realização de encontros, emissão de documentos e a criação de organizações internacionais multilaterais ou regionais do sul global e de CSS. Espera-se, assim, evidêenciar a estruturação de um regime de CSS de acordo com seus próprios princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões, em torno dos quais convergem as expectativas dos estados do sul global na formulação de parcerias para o desenvolvimento. 1) Estabelecimento de princípios de interação, instituições e parcerias entre países do sul:

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A primeira fase de articulação do sul global se desenvolve paralalamente aos processos de descolonização, entre 1945 e 1978, quando ocorrem 46 eventos significantes por estabelecer os termos gerais em torno dos quais se desenvolveriam as interações entre os países em desenvolvimento (CABANA, 2014) e lançarem as bases que fundamentariam consensos políticos para as relações sul-sul se desenvolverem, conferir mais peso aos países do sul e reduzir as assimetrias do sistema internacional (AYLLÓN, 2015). Destaca-se eventos como o estabelecimento da Liga Árabe, em 1945, que incluiu entre seus objetivos a intenção de coordenar as políticas de seus membros cooperando em questões econômicas, financeiras, culturais, sociais e de saúde. Cinco anos depois, foi concebido o Plano Colombo para desenvolvimento social, econômico e cooperativo na Ásia e no Pacífico, com o objetivo de promover o desenvolvimeno econômico e social da região, cooperação técnica e o compartilhamento de tecnologia; monitorar informação relevante sobre cooperação técnica e facilitar a transferência e compartilhamento de experiências de desenvolvimento entre os membros (COLOMBO PLAN, s. d.). Em 1954, China e Índia acordaram 5 princípios de coexistência pacífica. Eram eles a) respeito mútuo pela sua integridade territorial e a soberania; b) não agressão; c) não intervenção em assuntos internos; d) igualdade cooperação em prol de benefícios mútuos; e) coexistência pacífica (NAÇÔES UNIDAS, 1958). No ano seguinte ocorreu o evento mais importante do período para o estabelecimento do regime de CSS: a Conferência de Bandung. Reconhecendo a urgência de promover o desenvolvimento econômico da região, vinte e nove países asiáticos e africanos se reuniram para discutir problemas comuns e formas pelas quais poderiam atingir cooperação econômica, cultural e política com base em interesses mútuos.” (REPUBLIC OF INDONESIA. THE MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS, 1955. Pp. 2). A Declaração da Promoção da Paz e Cooperação, produzida no encontro, estabeleceu 10 princípios básicos da cooperação, que incluíam a promoção dos interesses mútuos e da cooperação; o respeito pela soberania e integridade territorial de todas as nações; o reconhecimento da igualdade de todas as raças e da todas as nações; a abstenção de intervenção ou interferência nos assuntos internos de outro país, de exercer pressões sobre outros países e de realizar atos ou ameaças de agressão ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer país – princípios presentes até os dias de hoje nas parcerias de CSS. Bandung foi um sucesso não por obter vitórias imediatas, mas por abrir espaços políticos para o desenvolvimento de coalizões e parcerias entre os países em desenvolvimento em busca de uma voz unificada para inserir na agenda global questões de descolonização, justiça, redução das desigualdades entre os estados, desenvolvimento e efeitos da Guerra Fria. 8

Em 1961 ocorreu, em Belgrado, a 1ª Cúpula do Movimento Não-Alinhado (MNA). Dois anos depois, seu plano de ação seria emitido prevendo o desenvolvimento de Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento (CTPD) (GENERAL ASSEMBLY, 1973). O MNA demandava uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI) que, apresentada e endossada com seu plano de ação na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1974, continha um capítulo dedicado à promoção da cooperação entre países em desenvolvimento e previa, entre seus principios, “o reforço – por meio de esforços individuais e coletivos – de cooperação econômica, comercial, financeira e técnica mútua entre países em desenvolvimento de forma preferencial” (GENERAL ASSEMBLY, 1974). Em 1964, foi estabelecida a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e, em seu âmbito, o Grupo dos 77 (G77). Este bloco passou a atuar coletivamente em prol do estabelecimento de padrões comerciais internacionais mais justos e da cooperação entre países em desenvolvimento, promovendo, em 1976, a Conferência sobre Cooperação Econômica entre Países em Desenvolvimento (CEPD). Assim como o MNA, o G77 continua se reunir até os dias de hoje – sendo o maior bloco de estados em desenvolvimento no âmbito do sistema ONU com seus 133 membros – atuando como uma plataforma de formação de posições comuns entre países em desenvolvimento em questões de seu interesse e incentivando a CTPD e a CEPD (CABANA, 2014). A UNCTAD, por sua vez, voltada à integração entre comércio e desenvolvimento, encorajava a CEPD, especialmente nas áreas de comércio, finanças e tecnologia (CABANA, 2014). É importante salientar que, mais ampla que a AOD e a CNS, a CSS reconhece a importância do comércio internacional para a promoção do desenvolvimento, sendo a associação de estados do sul em um fórum como o G77 para exercer pressão sobre o regime multilateral de comércio em prol de melhores condições para os países em desenvolvimento uma forma de CSS, contribuindo para a promoção do desenvolvimento por meio do comércio internacional. No âmbito das Nações Unidas, em 1972, foi criado um grupo de trabalho – como parte do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – para análise e avanço da CTPD. Dois anos depois, a resolução A/3251 da Assembleia Geral criou a Unidade Especial de CTPD, que iria promover a CSS e mecanismos para que os membros do PNUD participassem de iniciativas sul-sul e trilaterais dentro do sistema ONU (CABANA, 2014). A 32ª Sessão da Assembleia Geral aprovou, em 1977, os objetivos de CTPD de encorajar e desenvolver as habilidades nacionais e coletivas dos países do sul para solucionarem seus problemas de desenvolvimento (GENERAL ASSEMBLY, 1977).

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Uma série de organizações de promoção do desenvolvimento sediadas e compostas por países do Sul foram estruturadas nesse período,4 quando também foram criados diversos fóruns e organizações multilaterais e regionais, que se tornaram espaços de debates e possibilitaram o início de parcerias entre estados do sul, fortalecendo suas relações e solidariedade. Processos de integração regional na Ásia, África e América Latina também se desenvolveram dentro do espírito de favorecimento do desenvolvimento e da cooperação entre os estados do sul, (CABANA, 2014). Na África, por exemplo, além da Organização da Unidade Africana (OAU), em 1963, que estabeleceu como um de seus pilares centrais a defesa da soberania e da não-intervenção nos Estados africanos, emergiram processos de integração como a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) em 1972. Em 1967 foi criada a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), em 1969 a Comunidade Andina (CAN) e em 1972 o Mercado Comum do Caribe (CARICOM). Finalmente, neste período também foram iniciadas as primeiras iniciativas de CSS. Em 1949, a Tailândia passou a oferecer cooperação bilateral a países do Sudeste Asiático marcando o primeiro registro de uma ação de CSS. Cuba desenvolveu a primeira CSS na área da saúde e assistência humanitária, colaborando com a Brigada de Saúde Cubana em Valdivia, no Chile, após um terremoto, em 1960. Quatro anos mais tarde, a Índia lançou seu Programa de Cooperação Técnica como assistência bilateral e, em 1970, a China inaugurou sua presença na África desenvolvendo CSS em um aparceria trilateral com Tanzânia e Zambia para a constução de ferrovia entre os dois estados africanos (CABANA, 2014). 2) Institucionalização e intensificação de atividades e fóruns de CSS A segunda fase de desenvolvimento da CSS compreende os anos entre 1978 e 2000, da Conferência de Buenos Aires até a Conferência do Milênio. Marcado pelo surgimento de uma nova ordem mundial e o destaque da cooperação entre países em desenvolvimento na agenda internacional, neste período intensificaram-se as atividades e fóruns de CSS e foram criados diversos órgãos relacionados ao tema, ocorrendo 54 eventos relevantes para a CSS por promoverem sua institucionalização (CABANA, 2014).

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Por exemplo, o Banco Interamericano do Desenvolvimento em 1959, o Banco Central Americano para a Integração Econômica e a Associação de Livre Comércio da América Latina em 1960, o Fundo do Kuwait para o Desenvolvimento Econômica Árabe em 1961, o Banco do Desenvolvimento Africano em 1963, o Banco do Desenvolvimento Asiático em 1965, o Banco de Desenvolvimento do Caribe em 1969, o Fundo Árabe para o Desenvolvimento Econômico e Social e o Fundo Abu Dhabi para o Desenvolvimento em 1971, o Banco Árabe para o Desenvolvimento Africano e o Banco Islâmico do Desenvolvimento em 1973, o Fundo Árabe para Assistência Técnica para Países Africanos e o Fundo Saudita para o Desenvolvimento em 1974, o Fundo da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) para o desenvolvimento internacional em 1976 e, ano seguinte, o Centro de Transferência de Tecnologia Ásia-Pacífico em Nova Delhi. (CABANA, 2014).

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Na Conferência de Buenos Aires foi lançado o Plano de Ação de Buenos Aires (PABA), cujos objetivos podem ser definidos em três pontos centrais: fortalecer a interdependência econômica, social e política; acelerar o desenvolvimento; e corrigir as distorções no sistema internacional provocadas pelas relações assimétricas de poder da época colonial. (REYES, 2014). O PABA (1978) define a CTPD como: (…) um processo multidimensional. Pode ser bilateral ou multilateral no âmbito de aplicação, e sub-regional e inter-regional no caráter. Deve ser organizada para e entre os governos que podem promover, para o efeito, a participação de organizações públicas e no âmbito das políticas estabelecidas pelos governos, a participação de organizações privadas e pessoas físicas. Pode contar com abordagens inovadoras, métodos e técnicas especificamente adaptadas às necessidades locais e, ao mesmo tempo, utilizar as modalidades existentes de cooperação técnica na medida em que estes são úteis. Embora os principais fluxos de cooperação técnica visíveis sejam entre dois ou mais países em desenvolvimento, o apoio dos países desenvolvidos e das instituições regionais e inter5 regionais podem ser necessárias. (UNPD, 1978. Pp. 6.)

O PABA também definiu 9 objetivos da CTPD, que se alinham aos princípios de Bandung, destacando-se, entre outros, a promoção da autossuficiência dos países em desenvolvimento através do reforço da sua capacidade criativa para encontrar soluções para seus problemas de desenvolvimento em consonância com as suas próprias aspirações, valores e necessidades; a promoção e fortalecimento da autossuficiência coletiva entre os países em desenvolvimento por meio do intercâmbio de experiências e do uso de seus recursos técnicos; o desenvolvimento de capacidades complementares; o aumento da quantidade e da qualidade da cooperação internacional; bem como a melhora da eficácia dos recursos destinados à cooperação técnica global através da partilha de capacidades (UNPD, 1978). Neste período foram criados fundos6 e fóruns especializados em CTPD e CEPD. Por exemplo, entre maio e junho de 1980, com base na recomendação 37 do PABA, ocorreu a 1ª Sessão do Comitê de Alto Nível da ONU para a revisão da CTPD, a primeira de uma série de reuniões com representantes de todos os países do PNUD para tratar do tema. No ano seguinte se reuniu o Comitê Intergovernamental de Coordenação de CEPD, e em 1995, foi a vez do Centro de CSS Técnica do Movimento não Alinhado (CABANA, 2014). Em 1995, na 9ª sessão do Comitê de Alto Nível das Nações Unidas para a revisão da CTPD, foi promovida maior integração entre CTPD e CEPD e os conceitos de 'países em desenvolvimento' e 'países pivôs', cujas capacidades e experiências na promoção de CSS 5

Tradução própria. Por exemplo, o Fundo Fiduciário Perez Guerrero – inicialmente chamado de 'Fundo Fiduciário do PNUD para a Cooperação Técnica e Econômica entre Países em Desenvolvimento' – iniciado com 05 milhões de dólares em recursos para serem geridos pelo PNUD em nome do G77. (CABANA, 2014). 6

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determina seus papéis na promoção e aplicação de CTPD (CABANA, 2014). Três anos depois, em plena crise financeira asiática, realizou-se a Conferência de Alto Nível sobre Cooperação Econômica Regional e Sub-regional entre países em desenvolvimento em Bali, quando foram firmados a Declaração e o Plano de Ação de Bali para reforçar a CSS técnica e financeira nos níveis regional e sub-regional, impulsionando acordos comerciais preferenciais para fortalecer a cooperação regional (CABANA, 2014). Apesar das crises dos anos 1980s, se fortaleceu a institucionalização do sul global, sendo estabelecidas organizações internacionais multilaterais e regionais que possibilitam e fortalecem as parcerias entre estados do sul, incentivando suas relações e solidariedade como uma forma de se vencer as crises. Os Países de Renda Média, intensificaram suas ações e participações em fóruns de CSS e os processos de integração regional na Ásia, África e América Latina se ampliam e aprofundam, fortalecendo o objetivo de favorecimento do desenvolvimento e da cooperação entre os estados do sul (CABANA, 2014). Salienta-se que foi nos anos 1990 que o uso institucional do conceito de CSS, que antes coexistia com CTPD e CEPD, se consolidou. 3) Reconhecimento e promoção da CSS no sistema internacional de cooperação para o desenvolvimento como complementar à CNS A partir dos anos 2000, o número de eventos relevantes para a CSS aumentou exponencialmente, ocorrendo 80 deles nos anos entre da Cúpula de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas e a Conferência de Nairóbi sobre CSS, em 2009. Neste período, extremamente frutífero, ocorre uma convergência mundial para alcançar as metas de desenvolvimento propostas pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), em sua maioria focadas em promover o desenvolvimento dos países do sul global (CABANA, 2014). A Conferência do Milênio, resultante de mobilizações e conferências dos anos 1990 em busca da promoção do desenvolvimento econômico, social e cultural, lançou 08 ODMs para diminuir as discrepâncias nos níveis de desenvolvimento mundial. (GENERAL ASSEMBLY, 2000). Destacamos o objetivo nº8, que propõe um esforço generalizado para a promoção do desenvolvimento. Em 2001, o papel da CSS na nova estrutura de cooperação internacional foi avaliado na Conferência de Alto Nível sobre Cooperação Sul-Sul em Marrakesh. Nessa ocasião foi reconhecido o valor do G77, do MNA, da UNCTAD e do PNUD para a articulação do sul e seu diálogo com o norte, e a importância de coordenar parcerias frente à manutenção das assimetrias globais. Salienta-se que seu documento final reconhece o caráter complementar entre a CSS e a CNS para o desenvolvimento internacional e a potencialidade da cooperação triangular, que une esforços do sul e do norte em prol do desenvolvimento (NAÇÕES UNIDAS, 2003). 12

Destaca-se a atuação dos países emergentes como provedores essenciais de CSS, ocorrendo, em 2003, Reunião de Chanceleres de Índia, Brasil e África do Sul que fundou o Fórum de Diálogo do Brasil, Índia e África do Sul (IBAS). Quatro anos depois ocorreu a 1ª Cúpula entre Brasil, Rússia, Índia, China (BRIC), cuja declaração final determinou que estes reforçariam a cooperação entre si em áreas sociais, energéticas, e de ciência e educação. (CABANA, 2014). Neste período a CSS se tornou tema presente em todos os âmbitos do sistema internacional de cooperação para o desenvolvimento. Dada a multiplicidade de eventos registrados no período que incentivaram a CSS, salienta-se aqui apenas alguns deles, como a Conferência Internacional sobre Financiamento do Desenvolvimento, em 2002, a Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável no mesmo ano e a Cúpula Mundial de 2005. O Banco Mundial criou o Mecanismo de Facilitação de Intercâmbios Sul-Sul, 19 de dezembro foi estabelecido pela Assembleia Geral como o dia da CSS nas Nações Unidas e a Unidade Especial de CTPD foi transformada na Unidade Especial de CSS. O fortalecimento do regime de CSS fica claro em 2008, na 12º Sessão do Comitê Intergovernamental de Acompanhamento e Coordenação de CEPD em Yamoussoukro (Costa do Marfim), quando foram lançados a Plataforma de Desenvolvimento do Sul, o Fundo do Sul para o Desenvolvimento e Assistência Humanitária, e aprovado o consenso de Yamoussoukro sobre a CSS, que define os componentes básicos de um quadro conceitual de como a CSS e a sua agenda devem ser coordenados a partir do Sul e salienta que as parcerias do sul não são um substituto para a CNS, não podem ser avaliadas com base em normas CNS ou consideradas AOD. (CABANA, 2014). Foi somente em 2008, no 3º Fórum de Alto Nível sobre Efetividade da Assistência Internacionais coordenado pela OCDE, que a CSS foi considerada e incorporada no documento final do encontro, a Agenda para a Ação de Accra. Inaugurava-se o reconhecimento pela OCDE da CSS como mecanismo de provimento de cooperação técnica complementando a CNS (OECD, 2008). A partir disso foi criado o Task-Team on SouthSouth Cooperation para promover atividades de CSS e sua compilação no âmbito da OCDE. Frente a estas iniciativas e ao recorrente discurso de complementariedade entre CSS e CNS para se atingir metas de desenvolvimento globais internacionais, identifica-se a agenda de integrar a CSS ao regime da CID, estruturado em torno do sistema de AOD da OCDE e seus critérios para fornecimento de assistência, restritos por condicionalidades que impedem a ajuda para estados considerados problemáticos pelo norte. 4) Proliferação institucional e aumento na demanda por CSS frente a crise no norte O último período aqui analisado se inicia em 2009, com a Conferência de Alto Nível das Nações Unidas sobre Cooperação Sul-Sul de Nairobi e se estende até 2014, quando 13

por questões práticas, se encerra a análise. Este período foi o mais produtivo em número de eventos e atividades relacionadas à cooperação sul-sul, ocorrendo, segundo Cabana (2014), 115 somente entre 2009 e 2013. Na Conferência sobre CSS em Nairobi, sob o objetivo mais amplo de fortalecer as parcerias sul-sul, reafirmaram-se os compromissos assumidos em 1978 no PABA, foram reconhecidos os papéis do G77 e do MNA, assim como a agência dos países de renda média, na promoção a CSS e a complementariedade da CSS com relação à CNS. O documento final da Conferência também incentiva os países em desenvolvimento a reforçar suas atividades de CSS, melhorarando sua prestação de contas, avaliação e transparência, e os países desenvolvidos a apoiar CSS através de cooperação triangular (GENERAL ASSEMBLY, 2010). Ainda no âmbito das agências da Nações Unidas, a CSS teve sua importância e particularidades reconhecidas no documento final da Rio+20, em 2012, sendo reafirmada como expressão de solidariedade e fruto de experiências e objetivos partilhados. (UNITED NATIONS CONFERENCE ON SUSTAINABLE DEVELOPMENT, 2012). Dando seguimento à inclusão da CSS no sistema da OCDE em Accra, em 2011 foi realizado o 4º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda em Busan. Lá foram reconhecidas a natureza, as modalidades e as responsabilidades da CSS como diferentes daquelas da CNS, e os compromissos do encontro foram adotados voluntariamente pelos participantes da CSS (OECD, 2011). É importante salientar que o documento declara buscar a inclusão e integração do terceiro setor e do setor privado para aumentar a efetividade da cooperação, assim como a CSS no sistema de CID. Sua linguagem privilegia o histórico de CNS, reconhecendo-a como a principal forma de CID e incluindo a CSS como uma nova modalidade no sistema de CID. Além da manutenção de antigas instituições de CSS e, de forma mais ampla, do sul global, este período é marcado pelo aumento na demanda por CSS e pela proliferação de novas instituições nesta área temática a nível regional e multilateral. Percebe-se haver grande demanda por espaços de diálogo para identificação de complementariedades e formação de parcerias, e por mais informação, demonstrando a necessidade de melhorar os registros e de desenvolver indicadores para avaliar a CSS. Em grande medida isto se deve à ocorrência da crise econômica de 2008, que afetou dramaticamente os países desenvolvidos causando a retração da CNS, principalmente aquela direcionada aos países de renda média, aumentando, assim, a necessidade de CSS para suprir as demandas não atendidas pela CNS e a consolidação da CSS no cenário internacional como elemento chave na promoção do desenvolvimento internacional. Exemplo disso foi a discussão na 18ª sessão do Comitê de Alto Nível de CSS – um subcomitê da Assembleia Geral das Nações Unidas, que se reúne a cada dois anos 14

para fazer uma revisão da CSS no âmbito da ONU – acerca das contribuições que a CSS pode fazer à agenda de desenvolvimento pós-2015 (HIGH-LEVEL COMMITTEE ON SOUTH-SOUTH COOPERATION, 2014). Conclusões Espera-se ter demonstrado a existência de um regime de CSS que se desenvolveu a partir de princípios, normas e regras diferentes daqueles que fundamentam iniciativas de CNS e AOD. Salienta-se que apesar do recente destaque para as parcerias de CSS nos discursos institucionais e acadêmicos denotando o aumento de sua relevância na promoção do desenvolvimento internacional, a concertação entre estados do sul não é fenômeno recente. A aproximação entre estados do sul para desenvolver suas estratégias conjuntamente, de formas que variam de parcerias bilaterais ou regionais a coalizões multilaterais se iniciou paralelamente à onda de descolonização em meados do século XX, e se manteve de forma consistente como recurso estratégico na inserção internacional e promoção de agendas de países em desenvolvimento no ambiente internacional. A tragetória da CSS se confirma desde o pós-II Guerra Mundial, surgindo juntamente com as iniciativas de CNS, embora esta última seja reconhecida como o modelo tradicional frente ao qual a CSS deve ser medida e adequada. O recente destaque da CSS no último período analisado, a partir de 2009, frente à conjuntura internacional e a linguagem utilizada nos documentos institucionais indicam que seu reconhecimento na promoção do desenvolvimento internacional se dá como uma modalidade inovadora de CID, complementar à CNS. Salienta-se, assim, a distorção que marca os discursos institucionais acerca das iniciativas de cooperação internacional, derivada de olhares ocidentalistas que distorcem os papéis de atores do norte e do sul na política internacional privilegiando as experiências do norte na definição do que compõe o sistema de CID. Críticas ao reconhecimento de um regime de CSS se embasam na rejeição da especificidade da CSS como área temárica e da relevância do sul global como categoria de análise para as relações internacionais. Avaliamos a coerência dos princípios e regras das atividades de CSS em todos os períodos analisados com o espírito de Bandung e a proliferação de instituições, fóruns e iniciativas de integração regional

do sul como

evidência tanto a existência de um regime que estrutura as expectativas dos atores envolvidos com a CSS, quanto a resiliência do sul global frente às mudanças que a ordem internacional sofreu desde 1955. Reafirma-se, assim, que a CSS não é parte de um regime único de CID, pois ela não envolve os mesmos princípios, normas, regras e procedimentos que ambasam iniciativas de CNS. Analisando o sistema de CID como um regime único, composto por CNS e CSS, o quadro que se encontrará é de fragmentação, ainda que com tentativas de 15

aproximação e adequação da CSS aos padrões da CNS. Identifica-se um modelo distinto de cooperação nas parcerias do sul, embasadas em solidariedade fruto de experiências compartilhadas de colonização e de busca pelo desenvolvimento em um ambiente internacional desigual, rejeição dos papéis de doador e receptor, condicionalidades, e enfoque em abordagens orientadas por demandas e que incluem atividades como comércio e investimento externo direto como parcerias para o desenvolvimento. Reafirma-se também o sul global como categoria que não perdeu o seu significado ao final da Guerra Fria. Ainda que as instituições do sul não conseguiram reestruturar as normas do sistema internacional de forma mais equitativa, a identidade do sul global, fundada em dimensões materiais da economia política e realizada por meio de seu engajamento no sistema internacional se manteve relevante e, inclusive, vem se fortalecendo com o grande crescimento da CSS, envolvendo parcerias econômicas, financeiras e técnicas, integração regional e sub-regional a despeito de toda a heterogeneidade existente entre os estados do sul. Identifica-se, assim, o regime de CSS como um elemento de grande relevância para as políticas do sul global, pois continua a promover princípios de soberania e não-intervenção frente ao liberalismo do norte, moldando expectativas na arena sistema internacional. Para finalizar, salientamos que apesar de identificarmos a análise da existência de um regime de CSS que gera a convergência de expectativas dos atores nela envolvidos, não existe consenso entre os países em desenvolvimento sobre o que deve se enquadrar como CSS e como contabilizá-la, sendo assim necessários esforços de sistematização das informações acerca de tais atividades, que devem se beneficiar da proliferação de instituições em torno da agenda da CSS que marcou os últimos dois períodos identificados na genealogia do regime de CSS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALDEN, C., MORPHET, S., VIEIRA, M. A. The South in World Politics. Palgrave Macmillan. 2010. AYKUT, D., GOLDSTEIN, A. "Developing country multinationals: South-South investment comes of age." Industrial Development for the 21st Century: Sustainable Development Perspectives, New York. 2007. AYLLÓN, B. P. “La conferencia Afroasiática de Bandung: hito de las relaciones Sur-Sur”. Boletim Mundorama. 2015. Disponível em , acesso em 18/06/2015. __________. “La cooperación internacional para el desarrollo: reflexión y acción para los profesionales de las Relaciones Internacionales”, In MURILLO, C. (ed.) Hacia un nuevo siglo en Relaciones Internacionales, Universidad Nacional de Costa Rica, Heredia. 2011. Pp. 277–299. 16

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