O reino de Klingsor e os Cavaleiros do Graal – Memórias de Berlim, uma cidade dividida

July 6, 2017 | Autor: M. Vieira de Carv... | Categoria: Political Theory, Cold War and Culture, Cold War, Politics, Berlin Wall, Opera Studies, GDR, Opera Studies, GDR
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O reino de Klingsor e os Cavaleiros do Graal – Memórias de Berlim, uma cidade dividida Mário Vieira de Carvalho* (Intervenção no Goethe-Institut, Lisboa, 6 de Outubro de 2010, nos 20 anos da reunificação da Alemanha)

A maneira como vivi Berlim entre 1980 e 1984 não é separável das motivações que então me empurraram para lá. Nasci em Coimbra, a 7 de Outubro de 1943, de uma família burguesa católica – pai comerciante e proprietário de vários prédios urbanos; mãe, pianista, obrigada a desistir das perspectivas de exercício profissional quando se casou aos 19 anos, em 1930. Uma irmã mais velha, que se licenciou em Germânicas, morreu prematuramente, tinha eu 19 anos. Na sequência de um colapso financeiro inesperado, mudámo-nos para Lisboa e, pouco depois, o meu pai adoeceu gravemente e morreu. Enquanto o meu pai era formado numa tradição monárquica e conservadora, a minha mãe era filha de um republicano anarquista e anti-clerical, expulso da função pública pelo Estado Novo. Do lado paterno falava-se com respeito de Salazar, do lado materno, antes pelo contrário... Com catorze anos feitos, já a residir em Lisboa, a frequentar o quinto ano do Liceu Gil Vicente, eu ainda não tinha despertado para a política. Mas a topografia fez a diferença. Na tarde de 16 de Maio de 1958 fui encontrar-me com a minha mãe perto da estação de Santa Apolónia, no seu local de trabalho. E é então que me vejo mergulhado, como espectador, no meio de uma multidão que dava vivas ao General Humberto Delgado, gritava palavras de ordem antifascistas e corria em todas as direcções, perseguida pela polícia. Nunca mais me esqueci da imagem de um dos manifestantes: um estudante universitário de capa e batina, de punho erguido. Qual cliché fotográfico, essa imagem ficou-me gravada para sempre na memória. Não vi o general, mas vi os manifestantes e sobretudo aquele manifestante. Agora que recomecei a estudar as teses sobre história de Walter Benjamin, na recente edição crítica (2010), julgo ter compreendido o porquê do efeito avassalador que aquela experiência teve para mim. Opferbereitschaft – essa capacidade de entrega 1

sacrificial a uma causa e o pathos e a autenticidade dessa entrega: foi isso que me contagiou nesse momento e me fez tomar posição. No dia seguinte, já fazia campanha no liceu pelo General Delgado. Depois tudo se precipitou. Entrei na Faculdade de Direito de Lisboa, a mais conservadora do País, onde todos ou quase todos os catedráticos tinham sido ou iam ser membros do governo de Salazar. Mas essa Faculdade era também aquela que albergava uma das associações de estudantes mais aguerridas na resistência ao regime (o presidente da associação, na altura, era Jorge Sampaio). Envolvi-me no movimento estudantil e vim a pertencer eu próprio à Direcção da Associação. O ano lectivo da minha admissão à Faculdade, 1961-1962, foi o ano da grande greve académica e de uma das maiores manifestações de sempre contra o regime, no primeiro de Maio. Não foi para mim um ano de iniciação jurídica, mas sim de iniciação política. Alinhei então com os mais radicais, que levaram a greve académica até ao fim, não comparecendo a exames. A convivência com alguns colegas de Faculdade, dos quais destaco o meu homónimo, o escritor Mário de Carvalho, levou-me a uma aproximação gradual ao marxismo. Quando ele me propôs a adesão ao Partido Comunista Português, em Maio de 1966, esse processo já estava consolidado e eu disse logo que sim. Entretanto, porém, não abandonava a minha paixão pela música, que começara a praticar em família. Muitas das actividades culturais que organizei na Faculdade eram actividades musicais e o meu envolvimento com a vida musical portuguesa tão intenso que, mal acabei o curso de Direito, comecei a colaborar como crítico musical em vários jornais. Acabei no Diário de Lisboa, a convite de José Saramago (1972). A oportunidade de aprofundar a minha formação musicológica surgiu só depois da Revolução de 25 de Abril de 1974 e foi naturalmente influenciada pelo meu percurso político-ideológico e pela rede de relações em Lisboa. Sobretudo, neste caso, a proximidade ao musicólogo João de Freitas Branco, que tinha uma grande ligação à cultura alemã e foi o primeiro presidente da Associação de Amizade Portugal-RDA. (Lembro que João de Freitas Branco pertenceu ao primeiro Governo Provisório como Secretário de Estado da Cultura.) Mas o factor mais determinante foi a viagem que fiz à RDA, na qualidade de jornalista, em 1977. Já era grande a expectativa que levava de Lisboa, pois, em meados de 1975, descobrira uma nova maneira de abordar a ópera, quando João Pais trouxe ao São

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Carlos a Companhia de Ópera de Leipzig que ali apresentou uma versão em língua alemã de Xerxes, de Haendel, na encenação de Joachim Herz. E logo depois, nesse mesmo ano, ficara entusiasmado com o filme A Flauta Mágica, cantada em sueco, numa realização de Ingmar Bergman, que tinha visto em Paris. Essas encenações não eram a ópera como negação do teatro que eu conhecia do São Carlos: aquela feira de vaidades e convenções, onde, salvo raríssimas excepções, não havia personagens nem situações dramáticas para levar a sério, mas sim tão somente o despique entre sopranos, tenores e barítonos, comentado futilmente nos intervalos e replicado na imprensa. Um despique monotóno, sempre o mesmo; só mudava a música e a cenografia, consoante a ópera representada. Foi então que comecei a interessar-me pela teoria da encenação de ópera como teatro e pelo conceito de Musiktheater do austríaco Walter Felsenstein – de quem me chegara alguma informação através da revista francesa L’Arc (1966) que trazia na capa a cena das vénias na corte do Rei Bobèche. Era uma cena do Cavaleiro BarbaAzul (Ritter Blaubart; título original: Barbe-Bleu) de Offenbach, na encenação de Felsenstein para a Ópera Cómica (Komische Oper) de Berlim-Leste de que ele era director desde 1947 (ainda cheguei a vê-la, por três ou quatro vezes, nos anos 80...). Após a morte de Felsenstein, em 1975, sucedera-lhe o seu discípulo Joachim Herz como intendente (1976). Não admira, por isso, que uma das minhas prioridades, na viagem à RDA, fosse encontrar-me com Herz e visitar a Komische Oper. Aliás, durante essa viagem, numa passagem por Leipzig, tive a sorte de poder assistir à Valquíria e ao Siegfried do ciclo completo do Anel do Nibelungo que Herz tinha encenado entre 1973 e 1976 e que, precedendo a produção de Chéreau, em Bayreuth, iniciara a mudança de paradigma que ambos por essa altura introduziram no teatro de Wagner: à abstracção mítica e estática que até então fizera época em Bayreuth com Wieland e Wolfgang Wagner – de que nos chegavam ecos em Lisboa através dos epígonos apresentados no São Carlos – sucediam agora as relações de dominação e os conflitos concretos (sociais, económicos, políticos e de género), personagens de carne e osso, que colocavam o espectador perante as grandes questões do mundo actual. Essas duas récitas em Leipzig foram, para mim, uma revelação. Nunca tinha visto, nem em Lisboa, nem em Londres ou Paris, Wagner representado daquela maneira: com uma tal profundidade na construção das personagens, um tal grau de detalhe em cada um dos seus gestos, uma tal dialéctica na interacção texto-música-cena.

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Esta e outras experiências proporcionadas pela viagem foram determinantes para a minha decisão de me candidatar à admissão em estudos avançados no campo músicoteatral na RDA. Uma das primeiras pessoas com quem falei a esse respeito foi precisamente Herz, que logo me convidou para estagiar como assistente de encenação numa das suas produções: o que se concretizou com o Wozzeck de Alban Berg, na Ópera de Dresden, em 1984. Em Janeiro e Fevereiro colaborei na pesquisa dramatúrgica e, já em Dresden, entre 1 de Março e 4 de Junho, trabalhei oito horas por dia na equipa de Herz, participando na construção do espectáculo como quem monta pacientemente um puzzle de inúmeras peças. Na noite da ante-estreia tivemos a visita de uma delegação de 30 estudantes da Universidade de Munique e do seu professor Dieter Borchmeyer. No colóquio que se seguiu, Herz delegou nos assistentes a tarefa de responder às perguntas sobre a encenação. Falou-se sobretudo do “efeito de realidade” obtido através duma apurada oficina teatral assente na análise à lupa da partitura. Mas assente sobretudo no princípio fundamental do Musiktheater de Felsenstein à volta do qual giravam os ensaios: Voraussein – antecipar-se. Por outras palavras: a interacção no palco era entre os actores enquanto personagens, e o maestro seguia-os. Ao contrário do habitual em palcos de ópera, em que cada cantor interage com o maestro esperando que este lhe dê a entrada. O estágio com Herz foi o momento da ligação entre teoria e prática que coroou a investigação que eu tinha entretanto iniciado em 1980 na Universidade Humboldt de Berlim, como doutorando em musicologia, graças à bolsa de estudos que me fora concedida pela Fundação Gulbenkian. Através do etnomusicólogo Axel Hesse, que eu conhecera em Lisboa, estabeleci contacto com Gerd Rienäcker, também da Universidade Humboldt, grande especialista em teoria e história da dramaturgia musical. Como, porém, o meu tema de dissertação era um estudo sociológico sobre a ópera em Portugal – uma história social do Teatro de São Carlos – quem acabou por assumir principalmente a orientação da tese, a meu pedido, já depois de eu ter iniciado a formação avançada em Berlim, foi Christian Kaden, hoje titular da cátedra de Sociologia da Música (Musiksoziologie) na Universidade Humboldt, então ainda um jovem doutor que só por aquela mesma altura prestou provas para a Habilitation. Na altura da minha partida para Berlim, em 1980, era eu jornalista do Diário de Lisboa, com carteira profissional. Por isso, vali-me desse estatuto, para me acreditar oficialmente em Berlim como jornalista. Tencionava manter uma ligação ao jornal

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através de crónicas mais ou menos regulares. Além disso, estava ciente de uma enorme vantagem que resultava da acreditação oficial: poder circular entre os dois lados de Berlim. Essa possibilidade de circulação facilitava, desde logo, o meu trabalho de investigação: do lado ocidental situava-se o Instituto Ibero-Americano, que dispunha de uma excelente biblioteca, inclusive sobre Portugal e Brasil. Frequentá-lo permitiame complementar a pesquisa de fontes que fazia nas vindas a Lisboa, e tinha até uma enorme vantagem sobre a nossa Biblioteca Nacional: os artigos das publicações periódicas portuguesas estavam catalogados por autor, título e assunto, coisa que não acontecia aqui. Contudo, só depois de mergulhar na vida quotidiana de Berlim é que me apercebi de quão importante se tornara para mim a preciosa Grenzempfehlung de jornalista acreditado, associada ao mehrmaliges Visum no passaporte. Comecei a descobrir facilidades de que não dispunha em Berlim-Leste. A Staatsbibliothek de Berlim-Leste tinha uma excelente sala de leitura no Departamento de Música, incluindo o acesso imediato a partituras e gravações (permitindo, por exemplo, confrontar interpretações com a partitura à frente), mas se eu precisasse de fotocópias de textos, só podia requisitar 25 de cada vez e tinha de esperar duas a três semanas pela entrega! Em contrapartida, na biblioteca de Berlim Ocidental, as fotocópias eram em self-service: a qualquer momento, o leitor podia pegar no livro e tirá-las. Na área da música e da musicologia havia uma notável actividade editorial na RDA. O custo de partituras, livros e discos era muito baixo e grande a procura. Por isso, mal saía um título, era preciso estar atento para não o deixar escapar. Esgotados rapidamente em Berlim-Leste, muitas dessas publicações apareciam, porém, disponíveis em Berlim-Ocidental. Já o inverso não era verdadeiro. A produção editorial da Alemanha Ocidental só muito raramente chegava às livrarias ou lojas de discos de Berlim-Leste. Por isso, foram muitas as ocasiões em que eu trazia livros, não só para mim, mas também para colegas e professores da Humboldt. Era um privilégio inerente à acreditação como jornalista. Um dia mostrei a Rienäcker, antes do seminário, um exemplar dum jornal de Berlim-Ocidental, Tageszeitung, um jornal de esquerda em que se criticava a RDA por estar tão empenhada nas comemorações wagnerianas (1983). Para surpresa minha, ele levou o jornal para o seminário, leu a crónica e pô-la à discussão.

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Isso leva-me à questão da comunicação social. Dos cinco canais de TV visíveis em Berlim-Leste, três eram da Alemanha Ocidental. Esse pluralismo da informação não tinha, porém, correspondência nos jornais. Em Berlim-Leste só estavam disponíveis jornais da RDA (ou de outros países do bloco socialista), e todos reproduziam monocordicamente as posições oficiais. Não havia debate. A “refeudalização da esfera pública” – para usar um conceito de Habermas – era aqui ditada pelo total controlo da informação pelo poder político. Outro enorme contraste entre os dois lados era o das comunicações telefónicas. Telefonar para Lisboa em Berlim-Leste era de perder a paciência. O serviço era manual, e a ligação, demorada: por vezes esperava-se uma hora e mais. Em BerlimOcidental, pelo contrário, as ligações eram automáticas, através de qualquer cabine telefónica. Com uma ou duas moedas de um marco, já se conseguia falar alguns minutos. Sempre que eu ia a Berlim-Ocidental – e ia, em certos períodos, quase diariamente – aproveitava a ocasião para telefonar. Muitas vezes, porém, chegava a atravessar Check Point Charlie só para ir fazer uma chamada da cabine telefónica que ficava do outro lado da rua. Esse era, de resto, o meu ponto de passagem habitual. Detestava o posto fronteiriço de U-Bahn ou S-Bahn na Friedrichstrasse. Aqui sentia sempre uma sensação de claustrofobia, pelas grandes filas que se formavam, sobretudo de reformados da RDA, os quais tinham permissão de viajar para o Ocidente. A viagem de metro da Friedrichstraße até à primeira estação em direcção ao centro de Berlim-Ocidental – Kochstrasse – tinha algo de fantasmagórico, quando passávamos sem parar pelas estações desertas e obscuras, fechadas ao tráfego, onde se divisava a presença de guardas fronteiriços armados. Mas, em matéria de espectáculos musicais e teatrais o panorama era excelente de ambos os lados. Três teatros de ópera a funcionar diariamente (dois em Berlim-Leste, um terceiro em Berlim-Ocidental), em cada um deles todos os dias uma ópera diferente, no conjunto muitas dezenas de produções em alternância no cartaz; as preferidas do público por vezes com centenas de representações ao longo de décadas, as menos solicitadas dando lugar mais cedo a novas produções. Uma das que teve e tem maior longevidade, continua a ser apresentada ainda hoje na Staatsoper Unter den Linden (actual director Daniel Barenboim), que pertencia à antiga zona de BerlimLeste. É uma encenação genial do Barbeiro de Sevilha de Rossini, assinada por Ruth Berghaus, viúva de Paul Dessau e directora do Berliner Ensemble de Brecht nos anos

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70 (a cenografia é de Achim Freyer). Foi estreada em 1968, continua a subir à cena em 2010! Berlim era, sem dúvida, a capital mundial da ópera e é-o, por maioria de razão, hoje, numa cidade reunificada. Por isso, ninguém pode admirar-se que, tendo eu ido para Berlim em 1980 para estudar teoria, estética, história e sociologia da ópera, e tendo lá vivido quatro anos com acesso diário a todo esse manancial de produção músicoteatral, tenha regressado a Lisboa com a sensação de que Portugal estagnou há muito num modelo ultrapassado: o do teatro de corte – ópera para um número muito restrito de cortesãos, que saem demasiado caros aos contribuintes... Foi com isso que a burguesia esclarecida alemã (bürgerliche Aufklärung) rompeu no século XVIII, criando um movimento contra-hegemónico que impôs o modelo burguês da produção local de ópera contra o modelo de ópera importada que prevalecia na corte. O que havia de comum nos espectáculos músico-teatrais, era a abertura à inovação e o registo crítico, que fazia dos espectáculos arte viva e “carregada de tempo presente” (Jetztzeit). No Fidelio, encenado por Harry Kupfer (1973, ainda no cartaz nos anos 80), o muro delimitava de alto abaixo as três paredes do palco, e ruía premonitoriamente no final, com a leveza de um frágil pano de cena, para dar lugar ao avanço em paralítico dum grupo de actores e figurantes que reproduzia o quadro de Delacroix, A Liberdade guiando o Povo (“Wir sind das Volk”). O Anel do Nibelungo, a Lulu, a Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, entre outras extraordinárias encenações de Herz, colocavam questões que tinham uma relação profunda, embora não linear ou simplista, com o exercício e as estruturas do Poder. Die Verurteilung des Lukullus, de Dessau, La clemenza di Tito, de Mozart, ou o Parsifal de Wagner, em encenações de Ruth Berghaus, que analisámos e discutimos em detalhe nos seminários da Humboldt, com as partituras debaixo dos olhos, traziam-nos para o plano do registo filosófico sobre as relações de dominação, a política, a ideologia, a razão de Estado que se nega a si própria. A tendência dominante na teoria e prática do Musiktheater a partir dos anos 70 era o cruzamento de Felsenstein e Brecht, que coexistiram com os seus projectos em Berlim-Leste, apenas à distância de escassos quarteirões: um na Behrenstrasse, o outro na Schiffbauerdamm. Um dos mais importantes legados de ambas essas fortes personalidades foi a atitude crítica no trabalho teatral e músico-teatral, o espaço de autonomia em relação ao poder, que, de certo modo, conseguiram impor. Havia,

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decerto, tensões, algumas das quais se tornavam bem visíveis, como, por exemplo, a dissidência de Götz Friedrich, um dos teorizadores originários do Musiktheater – coautor com Felsenstein e Herz de um volume com esse título publicado em 1970 – que acabaria por abandonar Berlim-Leste em 1972, mas para logo assumir a Direcção da Deutsche Oper em Berlim-Ocidental. O seminário semestral orientado por Rienäcker, em 1983, em que analisámos o Parsifal, não podia vir mais a propósito para a minha percepção dessas tensões e a reflexão crítica sobre elas. Rienäcker insistia particularmente na importância decisiva da narrativa de Gurnemanz (1.º acto). A maneira como Wagner tinha transcomposto (durchkomponiert) o texto, certos detalhes das inflexões vocais, da harmonia, do tempo, etc. indiciavam o carácter ideológico da narrativa. Gurnemanz doutrinava os pagens que o ouviam e, nessa doutrinação, havia um elemento de manipulação. Isso mesmo fora mostrado na encenação de Ruth Berghaus no ano anterior, 1982, na Ópera de Frankfurt, com direcção de Michael Gielen (vimos então alguns fragmentos em vídeo, no ano seguinte fui de propósito a Frankfurt assistir ao espectáculo). Quanto mais avançávamos no seminário, mais eu transpunha mentalmente para a situação respectivamente de Berlim-Leste e de Berlim-Ocidental a situação do Parsifal – o reino dos cavaleiros do Graal de um lado, o reino de Klingsor do outro. De um lado, os portadores de um ideal de sociedade igualitária, a que eu próprio tinha aderido, onde a economia estivesse ao serviço das pessoas, onde estas não fossem tratadas como coisas, onde o princípio da solidariedade colectiva prevalecesse sobre os antagonismos de classe. Do outro, a economia de mercado, com a sua tendência imanente para inverter os meios e os fins, reificando as relações entre pessoas e expondo-as, sob a aparência de liberdade, à reprodução incessante dos mecanismos de dominação decorrentes da especulação capitalista. Em Berlim-Leste, a renúncia à sociedade de consumo parecia ser o preço a pagar pelo ideal de uma organização socialmente mais justa. Era a “paragem no tempo” de que falava Heiner Müller e que, como crítica de um certo tipo de progresso, é hoje retomada no artigo da escritora do leste Jana Hensel, intitulado Wir sind anders, publicado no Die Zeit (23/09/2010). Berlim-Ocidental, em contrapartida, era a mais opulenta celebração da economia de mercado. Quando eu transpunha o muro, vendo do outro lado, a pairar, bem visível, o símbolo da Daimler-Benz, e entrava no KaDeWe – a Kaufhaus des Westens,

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verdadeira embriaguez de oferta comercial, símbolo do consumismo, sem comparação possível com os modestos Kaufhallen de Berlim-Leste – eu lembrava-me sempre da frase de Klingsor: “… todos podem ser comprados, ofereça-lhes eu o preço justo” (feil sind sie Alle, biet ich den rechten Preis). O Parsifal de Wagner surgia-me, pois, cada vez mais, como uma alegoria política (similarmente ao Anel do Nibelungo). E era também nesse sentido que apontavam, tanto a já referida encenação de Berghaus em Frankfurt, como a encenação de Götz Friedrich estreada no próprio ano do centenário da morte de Wagner em Bayreuth (1983), à qual assisti e sobre a qual então escrevi para o Diário de Lisboa. Num ensaio em língua alemã que então redigi (mas só publicado em 1986) defendi a tese de que essa alegoria política se reconduzia a uma questão crucial: a da contradição entre teoria e praxis no exercício do poder.1 Essa contradição valia, não só (na época de Wagner) para o falhanço da revolução burguesa, que não conseguira concretizar os seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, mas também (na nossa época) para a revolução socialista, onde o exercício do poder em nome do povo se voltava contra o povo, onde a narrativa dos governantes sobre o socialismo real era, afinal, tão fantasiosa como a de Gurnemanz sobre o reino dos Cavaleiros do Graal. No entanto, a integridade que testemunhei no trabalho realizado nos seminários da Universidade Humboldt, no trabalho de produção e encenação músico-teatrais, a vitalidade artística e intelectual dos seus protagonistas, o seu inconformismo com o status quo, a lucidez da análise crítica que eles faziam da situação na RDA (a qual análise, porém, como me disseram, embora renovada ao longo dos anos, nunca era levada em consideração por quem detinha efectivamente o poder), tudo isso gerava em mim, tanto a esperança como a dúvida de que fosse possível uma mudança emancipatória, uma reforma democrática do socialismo real. Encontrava-me, enfim, entre a esperança e a dúvida, tal como acontece, a meu ver, no final do Parsifal.

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Cf. M. Vieira de Carvalho, “Parsifal oder der Gegensatz zwischen Theorie und Praxis als Dilemma der herrschenden Klasse”, in: Beiträge zur Musikwissenschaft, XXVIII/4 (1986): 309-319. Vs portuguesa: “Parsifal ou a oposição entre teoria e praxis como dilema da classe dominante”, in: M. Vieira de Carvalho, ‘Por lo impossibe andamos’: A ópera como teatro de Gil Vicente a Stockhausen, Porto: Âmbar, 2005: 91-107. (https://www.academia.edu/2056411/_Parsifal_oder_der_Gegensatz_zwischen_Theorie_und_Praxis_al s_Dilemma_der_herrschenden_Klasse_) (https://www.researchgate.net/publication/280579131_Parsifal_ou_a_oposio_entre_teoria_e_praxis_co mo_dilema_da_classe_dominante)

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Quando Gorbatschow chegou ao poder em 1985, não pude deixar de ver nele um possível redentor (Erlöser) do socialismo. Seria ele, finalmente, o portador do Graal, isto é, da unidade entre teoria e praxis? A esperança prevalecia sobre a dúvida. Mas, como a história veio a demonstrar, já era tarde demais. Wer zu spät kommt, den bestraft das Leben – este aviso que ele fez a Honnecker aplicava-se, afinal, a si próprio. Não chegou a tempo de redimir o socialismo, mas ainda chegou a tempo de acabar com a guerra fria e abrir caminho a que se acabasse com uma das suas expressões, sem dúvida, mais odiosas: a divisão da Alemanha e da sua capital, Berlim.

* Professor Catedrático de Sociologia da Música e Presidente do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM) na Universidade Nova de Lisboa. Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (1998-2002) e Vice-Reitor da UNL (2002-2004). Secretário de Estado da Cultura (2005-2008).

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