O Rottweiler de Darwin. Filosofia Ciência & Vida, São Paulo, nº 111, pp 16-23. Out. 2015

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O ROTTWEILER de Darwin O neoateísmo vai além da não crença em Deus, é não acreditar em absolutamente nada sobrenatural. É naturalista e visa entender que alegações extraordinárias precisam de provas extraordinárias

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ichard Dawkins (1941) é o nome de maior destaque entre todos do movimento neoateísta. Com vários livros publicados sobre Biologia Evolutiva e divulgação científica, sua influência no ateísmo contemporâneo vai além do livro Deus, um delírio. O cerne deste livro, um dos mais criticados e polêmicos de Dawkins, é defender que os ateus devem “sair do armário” e passar a se posicionar publicamente, fazendo uma referência ao início da luta pelos direitos dos homossexuais, em que este era tolerado, desde que mantido privadamente e que não acontecesse na própria família. A base do ateísmo de Dawkins é o Darwinismo Evolutivo e sua resposta ao argumento de William Paley (1743-1805), que defendia que a complexidade da estrutura viva só pode ser explicada pela presença de um Deus criador. Para os defensores deste argumento, acreditar que a vida surgiu por acaso seria como acreditar que um furacão passou por um ferro-velho e, por acaso, montou um avião. Mas Dawkins responde que não é assim que a seleção

natural atua. Ela se dá por pequenas mudanças em uma estrutura já funcional que aumentam a capacidade reprodutiva de um indivíduo (ou gene), fazendo que seus descendentes se tornem mais comuns. Se tivéssemos, por exemplo, um cofre trancado, a evolução não seria descobrir o código de abertura totalmente ao acaso, mas, sim, por meio de pequenas tentativas e erros que toda vez que acertássemos um número o cofre abriria um pouco a sua porta e isso se daria, em pequenos passos, até ela estar completamente aberta.1 Assim, acreditar que todo projeto precisa de um projetista seria um erro, mas algo natural da mente humana. Michael Shermer (1954) em Cérebro & Crença, por exemplo, sugere que nosso cérebro é especialista em procurar e inventar padrões e explicá-los por meio da “acionalização”, ou seja, inventando que um sujeito racional produziu tal padrão. Deste modo, a crença em Deus seria apenas algo natural da criação do nosso cérebro, explicada cientificamente, como queria o filósofo Daniel 1

O relojoeiro cego, 2001

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Gustavo Leal Toledo é graduado em Filosofia na UERJ e mestre pela PUC-Rio, onde também se doutorou em Filosofia. Atualmente é professor do Departamento de Tecnologia em Engenharia Civil, Computação e Humanidades, na Universidade Federal de São João Del-Rei. Pesquisa nas áreas de Filosofia da Mente, Filosofia da Biologia, Epistemologia e Memética. ciência&vida • 17

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A DEFESA QUE RICHARD DAWKINS APRESENTA DO SEU ATEÍSMO É QUE UM SER QUE CRIOU O MUNDO DEVERIA SER TÃO COMPLEXO QUE PRECISARIA ELE MESMO SER EXPLICADO Dennett (1942).2 Por isso, Dawkins pode dizer que “detectamos de forma hiperativa agentes onde eles não existem”. A defesa que Dawkins apresenta do seu ateísmo é que um ser que criou o mundo deveria ser tão complexo que precisaria ele mesmo ser explicado. Ou seja, se Deus criou o mundo, quem criou Deus? A posição mais simples é, então, aquela que não precisa de um Deus para explicar o mundo. Deste modo, o ateísmo não seria “negar Deus”, mas apenas não precisar dele na explicação do mundo. Há uma diferença entre “negar Deus” e aceitar a não existência de evidências sobre sua existência. Não é culpa do ateu que Deus não exista. Sam Harris (1967) chega a criticar a própria existência do termo “ateu”. Não temos termos para a não crença em praticamente todos os outros Deuses do passado (Zeus, Apolo, Amon-Rá, Mithra, Baal, Thor, Wotan, Tupã, etc.). Todos são ateus em Veja mais sobre o posicionamento de Dennett na matéria de capa da edição 112

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Encontrar códigos morais e referenciais éticos, para Dawkins (foto), são tarefas de toda a sociedade, e não privilégio das autoridades religiosas 18 •

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relação a esses deuses. Por isso os ateus não se preocupam de estarem errados em seu ateísmo, como queria Blaise Pascal (16231662), pois com a mesma probabilidade, religiosos podem estar errados na sua escolha de um Deus no meio de tantos. Este é o motivo pelo qual a fé, para Dawkins, não é apenas acreditar sem provas, mas, sim, acreditar até mesmo quando temos provas contrárias! Como disse João “Bem-aventurados os que não viram e creram”.3 Ou “creio porque é absurdo”, já dizia Tertuliano. Por isso Sam Harris diz que “a religião, por ser apenas a manutenção de dogmas, é uma área do discurso que não admite progresso”. Já Dawkins, seguindo o mesmo argumento, defende que não existem especialistas em religião ou em Deus. Não devemos, assim, tratar a Teologia como uma forma de conhecimento. Pode haver especialista em História da Religião, em Antropologia da Religião, em Sociologia da Religião, mas não em Religião em si ou em Deus. Do mesmo modo que não há especialista em fadas, especialistas em unicórnios, etc. Por isso não devemos consultar um quando estamos discutindo questões públicas. Por esta sua defesa apaixonada da Ciência contra a Religião, Richard Dawkins acabou sendo chamado de “o Rottweiler de Darwin”, uma referência a Thomas Huxley (1825-1895), que era chamado “o Buldogue de Darwin”. Assim, Dawkins foi considerado por muitos como um radical fundamentalista ateu, tão radical quanto qualquer fundamentalista religioso. Mas Dawkins 3

João 20:29

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faz uma diferença entre fazer uma defesa apaixonada de um assunto baseado em evidências e fazer uma defesa baseado em um livro antigo, pois se surgem novas evidências que refutem a anterior, o primeiro muda de ideia, o segundo não. Deste modo, a Religião seria anticientífica e a defesa de convivência pacífica entre elas, como feita por Stephen Jay Gould (1941-2002), seria ingênua. Mesmo ateus moderados, como Alain de Botton (1969), em Religião para ateus, veem imagens de santos como substitutos psicológicos de ursinhos de pelúcia e imagens de Maria como necessidade adulta de mães protetoras. Curiosamente, mesmo após tantas discussões entre Dawkins e Gould, ambos concordavam que não deveriam ir a debates com criacionistas, pois isso seria dar respeitabilidade ao criacionismo, considerando-o de igual para igual em um debate. Não há especialistas em Religião e não devemos agir como se houvesse. Tal atitude foi considerada arrogante por alguns. No entanto, o que seria, então, mais egoísta: acreditar que o Senhor do Universo (que é minha imagem e semelhança) criou-o para mim ou acreditar que não se é mais nada do que uma poeira em um gigantesco universo regido por leis que não dão a mínima para você e que você poderia muito bem não ter existido que o universo continuaria igual? O que seria mais egoísta, acreditar que sua vida é irrelevante na passagem do tempo do Universo ou acreditar que você é especial e escolhido de Deus, que o Senhor de todo o Universo fala diretamente com você, quer o seu bem e que vai retornar para salvá-lo?

DE ONDE TIRAMOS NOSSOS VALORES?

O maior perigo da Religião, segundo Dawkins, estaria quando ela se mistura com a educação das nossas crianças. É comum ouvir falar de crianças católicas, espíritas, umbandistas, etc., mas, segundo Dawkins, isso não existe. O que existe

são filhos de pais de uma determinada Religião. Do mesmo modo, não existem crianças de direita ou de esquerda, comunistas ou capitalistas, cubistas ou modernistas, mas filhos de pais assim. Mas nosso dever, como sociedade, seria proteger as crianças de tal doutrinação ensinando-as como pensar e não o que pensar. No entanto, um dos motivos mais comuns pelo qual até mesmo pais seculares envolvem a Religião na Educação dos seus filhos é por entender que esta está mais ligada aos valores éticos e morais. Mas Dawkins refuta tal ponto e esta talvez seja a contribuição mais importante dele para o neoateísmo. Nas disputas contra os ateus é comum ouvir a máxima de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) de que “se Deus não existe não há moral”. Ou seja, sem Deus, tudo vale. No entanto, Dawkins nos mostra que não tiramos nossa ética e moral dos textos religiosos, mas, sim, que estas lhes são anteriores e lemos tais textos baseados nelas, e não ao contrário. Com ou sem textos religiosos, ainda seríamos tão morais e éticos como somos hoje. Na verdade, basear nossa moral em uma determinada Religião nos leva a www.portalcienciaevida.com.br •

Uma crítica comum feita aos ateus, principalmente aos mais radicais, é que eles seriam egoístas porque não seriam capazes de acreditar em algo superior a eles mesmos

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É COMUM

os religiosos acharem que homossexualidade é uma “abominação”, mas homossexualidade já foi considerada sagrada em outras religiões, como pode ser visto no livro Sexo & Religião de Dag Oistein Endsjo

Alvin Plantinga, um dos teístas mais importantes da contemporaneidade, afirma que da perspectiva dos teístas clássicos – teístas judaicos, islâmicos e cristãos –, os seres humanos são especiais

Ateísmo e egoísmo Um artigo publicado na PNAS em dezembro de 20091 com o título de A estimativa de crentes nas crenças de Deus é mais egocêntrica do que a estimativa das crenças de outras pessoas (Believers’ estimates of God’s beliefs are more egocentric than estimates of other people’s beliefs) traz sete experimentos muito interessantes sobre a relação entre egoísmo e Religião. No mais interessante deles, o participante tem que dizer o que ele acha sobre certo assunto, o que ele acredita que a média dos americanos acha sobre este mesmo assunto, o que ele acredita que certas pessoas famosas acham e o que ele acredita que Deus acha. Depois disso ele é submetido a uma leitura que faz que ele mude, mesmo que ligeiramente, de opinião. Quando o teste é repetido, ele agora acha algo um pouco diferente, mas acredita que a média dos americanos e as pessoas famosas ainda acham a mesma coisa que achavam antes. Só que agora ele assume que Deus também acha um pouco diferente do que achava antes. Curiosamente, segundo o participante, Deus continua concordando com ele. Ou seja, quando o participante muda de opinião pessoal, ele também muda sua opinião sobre o que ele acha que Deus acredita. Em outras palavras, o que nós acreditamos que Deus acredita é calibrado a partir das nossas próprias crenças. A tendência, então, é que achemos sempre que Deus concorda conosco! Já no último dos sete experimentos, trabalhando com ressonância magnética, observa-se que a crença que as pessoas têm do que Deus acredita é trabalhada em um lugar diferente do cérebro do que a crença que as pessoas têm sobre a crença de outras pessoas. Mas para a surpresa de 1

v. 106, n. 51

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todos, ela é trabalhada no mesmo lugar que a própria crença do participante do experimento. Ou seja, o mesmo local do cérebro que usamos para falar das nossas crenças é usado para falar do que acreditamos que sejam as crenças de Deus. A conclusão mais interessante é, então, que não usamos Deus como uma bússola moral (termo dos autores). Bússolas apontam sempre para a mesma direção, independentemente de para onde você está virado. Mas o estudo mostra que nossas crenças sobre o que Deus quer apontam sempre para a direção que nós queremos! Por exemplo, se você é homofóbico, vai crer que Deus também é. Se você não é homofóbico, vai crer que Deus também não é. Seja qual for sua opinião, vai crer que Deus concorda com você. E é importante ressaltar que não fazemos o mesmo em relação ao que acreditamos serem as crenças de outras pessoas ou as crenças do “americano médio”. Mas a questão é, seja sagrado, seja abominação, acreditamos sempre que Deus vê esta questão do mesmo modo que nós vemos. Como mostrado por Michael Shermer, primeiro formamos arbitrariamente uma crença, depois é que procuramos evidências que a confirmem. Isso nos leva a questionar se devemos realmente respeitar certos preconceitos, como a homofobia, apenas baseados no fato de que são preceitos religiosos. Como mostrado no estudo, a defesa de que Deus concorda com nossas crenças é posterior aos nossos próprios preconceitos. Ou seja, são nossos preconceitos que fundamentam nossas crenças, e não o inverso. Deus é, então, só um modo de justificar publicamente as nossas crenças pessoais.

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labirintos perigosos. Como, por exemplo, perguntou Daniel Dennett, “ações são boas porque Deus gosta delas ou Deus gosta delas porque são boas?”.4 Se o que faz coisas serem boas é o fato de que Deus gosta delas, então tudo que Ele quer é ético. Mas e se Ele te pedir para matar seu filho, como fez a Abraão, pai dos três monoteísmos?5 Seria ético matá-lo só porque Deus pediu? Mesmo que Ele tenha depois dito que isso era apenas uma provação, isso seria ético? É ético matar todos os primogênitos do Egito por crimes que eles não cometeram?6 É ético fazer algo em vista de uma recompensa (céu) ou com medo de punição (inferno)? O fato é que, para Dawkins, já analisamos os textos sagrados a partir de uma ética que é anterior a eles. Na verdade, bebês e alguns macacos já apresentam padrões éticos, como pode ser visto nos livros de Paul Bloom (1963) e de Frans de Waal (1948). Nas palavras de Christopher Hitchens (1949-2011), “a decência humana não deriva da religião. É anterior a ela”. Uma simples passagem de olho pelos livros do Êxodo e do Levítico nos mostra uma miríade de padrões morais que não mais aceitamos como, por exemplo, pena de morte por trabalhar no sábado,7 por amaldiçoar o pai ou a mãe,8 por usar o nome de Deus em vão,9 por adultério10 e por sexo antes do casamento.11 Poderíamos acrescentar que é proibido aparar a barba,12 plantar dois tipos diferentes de semente no mesmo local,13 usar roupas feitas de dois tipos de tecido diferentes,14 comer porco,15 as mulheres não podem usar vestimentas Ver mais sobre este assunto e sobre Dennett na reportagem de capa da edição 112 5 Gn 22 6 Êx 11:5 7 Êx 31:15 8 Êx 21:17 9 Lv 24:16 10 Lv 20:10 11 Dt 22:20 12 Lv 19:27 13 Lv 19:19 14 Lv 19:19 15 Lv 11:07 4

chamativas16 e que comer moluscos é uma abominação,17 mesmo termo usado contra a homossexualidade.18 Curiosamente esta última passagem pode ser interpretada mais como uma passagem machista, pois o problema levantado parece ser o homem se portar como uma mulher. Mas é de se notar ainda que em Samuel 20 a relação de Davi com Jônatas é algumas vezes interpretada como mais do que amizade. Uma contradição natural em um livro com tantos autores, escrito em diversas épocas, traduzido de línguas mortas e reinterpretado de diversos modos.

Em todo o panteão com dezenas de milhares de deuses, ser neoateu é apenas ter um Deus a menos do que a maioria das pessoas

1 Tm 2:09 Lv 11:10 18 Lv 18:22 16 17

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POR QUE O ARGUMENTO DA “EXPERIÊNCIA PESSOAL” É VÁLIDO PARA COMPROVAR A EXISTÊNCIA DE DEUS SE É TIDO COMO CASO DE PSIQUIATRIA SE USADO PARA COMPROVAR A EXISTÊNCIA DE FADAS OU DRAGÕES? Há de se lembrar ainda que no Êxodo 20:5, quando os dez mandamentos estão sendo passados, é dito que os pecados dos pais serão lançados sobre seus filhos “até a terceira ou quarta geração”. Isso sem contar com o pecado original que condena todos nós por algo que não fizemos, mas que foi feito, em teoria, muito antes do nosso nascimento. Consideraríamos isso hoje como algo ético? Os filhos devem pagar pelos erros que seus pais cometeram? Isso sem contar com o genocídio feito por Moisés, em nome de Deus, ao ver o culto ao bezerro de ouro logo após a entrega dos mandamentos.19 19

Êx 32:27-29

Nada disso parece aceitável, moral ou ético para os padrões atuais. E se tiramos nossa moralidade de textos sagrados, onde estão, como nos lembra Hitchens, os mandamentos contra estupro, contra genocídio, contra escravidão, contra a pedofilia, contra tortura? Muito pelo contrário, logo após os dez mandamentos, Deus diz a Moisés sobre quais condições ele pode vender ou comprar escravos. A Igreja só condenou oficialmente a tortura em 1816. Uma resposta bastante comum a estes questionamentos é que nossa ética vem, na verdade, do Novo Testamento e não do antigo, pois Jesus traz a boa-nova. Cabe lembrar aí duas coisas. Primeiro que o princípio de oferecer a outra face já era bem

Ateísmo e outras crenças Se formos nos fixar no sentido do termo, ateu é apenas aquele que não acredita na existência de Deus (a-theos – “sem Deus”). No entanto, o neoateísmo vai muito além desta simples definição. Ser ateu não é mais visto como “negar Deus”, não surge da certeza de que Deus não existe, mas da simples consideração de que para se acreditar em algo são necessários motivos bem fundamentados. É ter critério para se acreditar em algo. Muitos são também os que não acreditam em fadas, mas ninguém se diz um “afadista”. Não acreditamos em fadas não porque temos certeza de que elas não existem, mas apenas porque não nos foram apresentados bons motivos para acreditar nisso. Nas palavras de Hitchens, “o que é possível afirmar sem provas também pode ser descartado sem provas”. Por isso o neoateísmo vai além da não crença em Deus, é não acreditar em nada sobrenatural. O neoateísmo é naturalista. É entender que alegações extraordinárias precisam de provas extraordinárias. O mesmo vale, então, para reencarnação, cura espiritual, poderes paranormais, gnomos, aliens, superstições, bruxas, demônios, chakras e muito mais. Deste modo, o princi-

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pal embate que envolve o neoateísmo, além do embate político, é a discussão sobre os critérios para se acreditar em algo. Dentro deste debate é muito comum ouvir dos religiosos o que ficou conhecido como “argumento da experiência pessoal”. Este argumento diz que embora não se tenha prova justificada de uma determinada crença, ainda assim é possível saber em seu âmago que certa crença é verdadeira de um modo que, para a pessoa que sente isso, esta crença é inquestionável. No entanto, se uma pessoa aparece dizendo que teve uma experiência pessoal inquestionável sobre a existência de dragões (ou fadas, bruxas, unicórnios, aliens, etc.). qualquer pessoa razoável provavelmente a indicaria para uma consulta psiquiátrica em vez de levar esta justificativa como relevante. Mas quando falamos de Deus, parece que nos esquecemos deste fato. Por isso, Sam Harris diz: “Nós temos nomes para definir pessoas que têm muitas convicções para as quais não há justificativa racional. Se essas convicções forem extremamente comuns, chamamos de ‘religiosas’; caso contrário, provavelmente serão chamadas de ‘loucas’, ‘psicóticas’ ou ‘delirantes’”.

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mais antigo. Platão (séc. IV a.C.) já defendia que é melhor sofrer uma injustiça do que ser injusto. Além disso, segundo Dawkins e outros intérpretes, esta boa-nova é apenas para um povo escolhido, e não para todos. Em Mateus 15:21-28 Jesus despreza a ajuda a uma mulher Cananeia dizendo que não vai ajudar uma pessoa que não seja “ovelha perdida da casa de Israel”, apenas depois é convencido pela insistência desta e pelos seus apóstolos a ajudá-la. Outras passagens de Jesus nos surpreenderiam hoje em dia, como Mateus 10:35-36, em que ele diz: “Não pensem que vim trazer paz à Terra; não vim trazer paz, mas a espada. Pois eu vim para fazer que o homem fique contra seu pai, a filha contra sua mãe, a nora contra sua sogra; os inimigos do homem serão os da sua própria família.” Em vários momentos do Novo Testamento pode ser visto um desprezo de seus familiares não só pelos apóstolos, mas pelo próprio Jesus. Até onde consideraríamos moral isso hoje? Onde estariam os princípios e valores da família tradicional tanto defendida hoje em dia? Faz sentido hoje em dia proibir o divórcio?20 Faz sentido punir a homossexualidade com morte?21 Tudo isso está no Novo Testamento, por isso Dawkins diz que “nós não retiramos nossos princípios morais das escrituras”. O fato é que existem pesquisas que mostram que nossa ética tem mais relação com o lugar em que se vive e nossa cultura do que nossa Religião. Poucos no mundo ocidental, por exemplo, ainda são contra o divórcio, o uso de preservativos e o 20 21

Mc 10:09 Rm 1:32

Ao analisar os dogmas e crenças dos fiéis, é possível perceber que em muitos pontos eles não concordam com os preceitos religiosos, mas não deixam de ser religiosos por isso

sexo antes do casamento. Não importa o que os clérigos falem nem o que está escrito nos livros sagrados. É neste sentido que Friedrich Nietzsche (1844-1900) disse que “Deus está morto”. Não é que ele não exista, mas, sim, que nem os religiosos seguem mais seus princípios. Mas como não sabemos de onde surgiram nossos valores, assumimos, então, que sejam de Deus. Este tipo de argumento ficou conhecido como “argumento da incredulidade pessoal” ou, de um modo mais simples, como “Deus das lacunas”. Ele basicamente diz algo como “eu não sei como isso foi feito, logo, foi feito por Deus”. Ele é muito usado para explicar, por exemplo, a origem do Universo, a origem da vida, uma pessoa que se salva de um grande acidente de avião, uma cura improvável, uma grande coincidência na vida, uma estrutura celular ainda não explicada e muitas outras coisas. Mas a falha deste argumento pode ser vista rapidamente por qualquer um quando percebemos que também existe o “alien das lacunas” usado por ufólogos que explicam tudo, desde a origem do ho-

mem até a construção das pirâmides do Egito, por meio da interferência alienígena. Quando há uma lacuna podemos colocar o que quisermos nela. Não temos motivos para achar que Deus a preenche melhor do que aliens ou o que quer que seja. Esse é o tipo de raciocínio mais anticientífico que se pode relatar, pois ele não dá resposta, apenas impede a pergunta. Ele assume que sabemos a resposta baseado justamente no fato de que não sabemos a resposta! Mas o pressuposto fundamental do fazer científico é a ignorância. Se assumirmos que sabemos de algo, não há motivo para buscar resposta, para investigar, para se aprofundar. A Ciência se faz com perguntas, e não com respostas prontas. A falta de respostas não é um problema para as ciências, é o seu combustível. Mesmo quando há resposta científica para algo, ainda assim esta resposta é conjectural e pode ser modificada no futuro. A certeza é a arqui-inimiga da Ciência. Por isso Dawkins não é só o Rottweiler de Darwin, mas sim do próprio pensamento científico.

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