O Sacrifício pelo Imperador. Uma Tradição Inventada

October 3, 2017 | Autor: E. Gonçalves | Categoria: Military History, History of Japan, Contemporary History
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ANAIS DO VIII ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ANPUH - Espírito Santo. História Política em debate: linguagens, conceitos, ideologias. VITÓRIA – 2010. ISBN: 978-85-99510-93-3

O SACRIFÍCIO PELO IMPERADOR. UMA TRADIÇÃO INVENTADA

Edelson Geraldo Gonçalves Mestrando em História- UFES

RESUMO Este trabalho pretende refletir sobre a prática do sacrifício (esforço suicida) em nome do Imperador por parte dos japoneses durante o período entre a guerra sino-japonesa (18941895) e o final da segunda guerra mundial (1945), observando o amplo uso da invenção de tradições por parte dos governantes japoneses para dispor não apenas os soldados, mas o povo como um todo à chegarem a tais extremos. Palavras-Chave: sacrifício, tradição inventada, Imperador, Bushido, Yasukuni.

ABSTRACT This paper intends to discuss the practice of sacrifice (suicide efforts) on behalf of the Emperor by the Japanese during the period between the Sino-Japanese War (1894-1895) and the end of World War II (1945), noting the wide use of invented traditions by Japanese leaders to provide not only the soldiers but the people as a whole to reach such extremes. Keywords: sacrifice, invented tradition, Emperor, Bushido, Yasukuni.

É de amplo conhecimento a participação japonesa na segunda guerra mundial, e tornaram-se marcantes detalhes como a disposição dos soldados ao sacrifício de suas vidas pela defesa do Império japonês, disposição esta que ficou emblematicamente marcada pela atuação dos pilotos kamikaze, que utilizando aviões e outros veículos cheios de explosivos, sacrificavam suas vidas na tentativa de deter o avanço inimigo. Contudo neste conflito tal disposição para a morte não era difundida apenas entre os soldados, mas fazia parte de uma ampla doutrinação que buscava englobar toda a população civil, o que levou o Japão a se mostrar preparado, após a queda de Okinawa em 22 de junho de 1945, para um verdadeiro suicídio nacional utilizando toda população civil em combate contra os exércitos norte- americanos1, que iniciariam a invasão às quatro principais ilhas do Japão (Kyushu, Shikoku, Honshu e

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COOX, Alvin D. Japão: A agonia final. São Paulo: Renes, 1977. p. 86-87.

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Hokkaido) tendo a cidade de Tóquio como alvo principal, como estava previsto no plano que teria início com a “operação Olympic”, ou seja a invasão da ilha de Kyushu2 operação esta que acabou não ocorrendo, em virtude das bombas atômicas atiradas em Hiroshima e Nagazaki, que levaram o Japão à capitulação. Contudo esta disposição ao sacrifício não é um produto exclusivo da conjuntura do final da segunda guerra, ou seja não é algo gerado meramente pelas circunstâncias desesperadoras do momento(embora tais circunstâncias tenham de fato potencializado esta tendência) e sim uma construção ideológica desenvolvida desde o século XIX após a restauração Meiji, baseada em ampla propaganda estatal apoiada na manipulação das tradições japonesas, ou colocando nos termos de Eric Hobsbawn e Terence Ranger, na “invenção das traições”. Antes de discutirmos o aspecto do uso das tradições inventadas no Japão dos períodos Meiji (1868-1912) Taisho (1912-1926) e meados do período Showa (1926-1989) devemos definir de forma exata o que é invenção de tradições, e para isso usaremos as palavras do próprio Hobsbawn: Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com o passado histórico apropriado3.

Pode-se dizer que o processo de invenção de tradições no Japão deu-se nestes exatos termos, pois o passado japonês foi sempre usado como guia nestas construções, sendo manipulado de maneira que favorecesse os interesses estatais. Uma vez que isto tenha sido esclarecido destacaremos aqui alguns pontos essenciais escolhidos pelos governantes japoneses para construir não apenas o nacionalismo japonês, mas também a ideologia4 pro rege et patria mori que impulsionou os soldados japoneses ao longo da estrada do imperialismo japonês, que aqui consideramos ter se iniciado na primeira guerra sino-japonesa (1894-1895) que rendeu ao Japão o território de Taiwan como colônia, e terminado em 1945 com o fim da segunda guerra mundial.

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BALDWIN, Hanson W. Batalhas ganhas e perdidas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1978. p. 440. HOBSBAWN, Eric. Introdução: A Invenção das Tradições. In.________________ & RANGER, Terence (orgs). A Invenção das Tradições, p. 9-23. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 9. 4 Termo aqui entendido como visão social de mundo. 3

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Os pontos aqui destacados como aspectos principais que geraram o encorajamento dos japoneses ao sacrifício são: A imagem do Imperador, o Bushido, e o santuário de Yasukuni. Cada um destes itens será explicado e discutido ao longo do texto. Pois bem, começaremos falando sobre a imagem do Imperador do Japão (Tenno), um cargo que teve suas funções modificadas ao longo da história japonesa, tendo este sido afastado da direção efetiva do Império com o estabelecimento do primeiro Xogunato em 1192, período a partir do qual o imperador passou a ter meramente a função de sacralizar e por conseqüência legitimar o poder dos Xoguns, os governantes efetivos do Japão5. Antes do estabelecimento do Xogunato o Imperador tinha um papel que Emiko Ohnuki-Tierney define como o de um rei xamã, que fazia ligação entre os homens e as divindades (Kami) e garantia a sobrevivência da população do arquipélago6. Após ter passado séculos em relativa apatia, tendo poucos momentos de relevância7, com a derrubada do Xogunato da dinastia Tokugawa (1600-1868), em um processo revolucionário que ficou conhecido como “Restauração Meiji” liderada pelos Han8 de Choshu e Satsuma, o cargo Imperial voltou a ser o centro das atenções, ocupado pelo jovem Mutsuhito (1852-1912), que assumiu o cargo dando início ao período (nengo) Meiji. De volta ao controle “efetivo” do governo, a maneira como o Imperador deveria ser encarado, no entanto, mudou drasticamente, este já não seria meramente o rei xamã de descendência divina como era visto outrora, dentro do contexto do esforço de modernização levado à frente pelo governo Meiji, liderado por uma oligarquia9 formada por antigos líderes de Choshu e Satsuma, com a principal intenção de se salvaguardar do imperialismo ocidental10, e espelhada no modelo prussiano sob o qual se organizava o governo alemão naquele 5

Dois governantes no entanto recusaram-se a receber o título de Xogum e com ele a benção do Imperador, para com isso não deverem a este a legitimidade do poder, muito pelo contrário, ambos declararam-se divinos e de legitimidade independente do Imperador. Estes governantes foram Oda Nobunaga (1534-1582) e Toyotomi Hideyoshi (1536-1598). GORDON, Andrew. A Modern History of Japan: From Tokugawa Times to The Present. Oxford: Oxford University Press, 2003. p.34-35. 6 OHNUKI-TIERNEY, Emiko. Kamikaze, Cherry Blossoms, and Nationalisms: The Militarization of Aesthetics in Japanese History. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. p. 86. 7 Dentre estes momentos podemos destacar a tentativa do Imperador Go-Daigo (1287-1339) de restaurar o poder imperial em um processo de intrigas e guerras que se estendeu de 1324 a 1392 (sob direção de seus sucessores), e a “Questão do Manto púrpura” de 1629 na qual o Xogunato retirou do Imperador e de sua corte o direito de investir os detentores dos altos cargos do clero budista (investidura esta representada por um manto púrpura [shie] recebido pelo beneficiário. WILSON, William Scott. Introdução. In. ____________ (org). A Mente Liberta, p.13-18. São Paulo: Cultivix, s/d. p. 14, & FRÉDERIC, Louis. Shie. In. ____________. O Japão: Dicionário e Civilização, p. 1040. São Paulo: Globo, 2008. p. 1040. 8 Domínios territoriais governados pelos Daimyo. Comumente denominados feudos nos textos que falam sobre o passado japonês. 9 Estes oligarcas eram denominados Genro (estadistas anciãos), dentre os quais quem mais se destacou foi Yamagata Aritomo (1838-1922), também conhecido como o “pai” do exército japonês. LARGE, Stephen S. Oligarchy, Democracy, and Fascism. In. TSUTSUI, William M (Edit). A Companion to Japanese History, p. 156-171. Malden: Blackwell Publishing, 2007. p. 157. 10 HENSHALL, Kenneth. História do Japão. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 109.

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momento11, o Imperador foi alçado à principal detentor da soberania japonesa “[...] numa combinação de Kaiser, Generalíssimo, Papa Xintoísta e mais alta divindade viva12” sendo assim colocado como centro da vida espiritual japonesa, e como centro do Xintoísmo, pregado pelo estado como sendo a ancestral e legítima religião japonesa13, embora colocado nominalmente como rito não religioso14 dentro do cenário cívico do Japão15. Neste cenário a propaganda estatal que buscava construir o nacionalismo, pregava que o sacrifício pelo Imperador (que por conseqüência era o sacrifício pelo Japão, já que nele se depositava a soberania) era a maior glória que poderia ser almejada e um dever filial dos japoneses16. Para que este ideal de sacrifício se espalhasse pela sociedade a propaganda estatal se valeu desde cedo da apropriação do Bushido, o idealizado código de conduta dos samurais pregado no período Tokugawa, colocando-o como o ethos atemporal da nação17, com o discurso (propagado desde as escolas primárias até os quartéis militares) de que este cabe a todos os japoneses, pois mesmo que não sejam samurais de nascimento, o são de espírito18. Logo o tradicional dever dos samurais de seguirem lealmente os desígnios de seu senhor chegando ao sacrifício por ele se exigido ou necessário, foi imposto a todos os japoneses que passaram a ter o Imperador como seu grande senhor. Cabe ressaltar que mais do que apropriado, o Bushido foi modificado para a conveniência do Estado, apesar do conceito ser antigo, ou seja, de ter uma base histórica ele ganhou uma roupagem nova, revelando assim que o Bushido do século XIX ou “Meiji Bushido” é uma típica tradição inventada, que

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GORDON, Andrew. A Modern History of Japan: From Tokugawa Times to The Present. Oxford: Oxford University Press, 2003. p. 85. 12 BURUMA,Ian & MARGALIT, Avishai. Ocidentalismo: o ocidente aos olhos de seus inimigos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. p. 67. 13 Esta versão do Xintoísmo também foi uma tradição inventada, pois este esteve por séculos dissolvido dentro do Budismo de uma maneira sincrética, em um sistema no qual funcionavam como uma única religião. ABE, Yoshiya. O que foi que criou a cultura japonesa atual do Japão? O significado histórico-cultural dos mitos, fechamento e abertura dos portos. In. YANAGIYA, Kensuke (org). Palestras sobre a cultura japonesa, p. 133146. Tóquio: Kaigai Nikkeijin Kyokai, 1999. p. 138 & HARDACRE, Helen. Shinto and the State, 1868-1988. Princeton: Princeton University Press, 1989. p. 5. 14 Toda a ritualística do Xintoísmo de Estado (veneração ao Imperador e aos símbolos nacionais) era considerada pelos governantes japoneses como não religiosa, mas meramente cívica, tal qual o rito de saudação à bandeira praticado nos EUA. BENEDICT, Ruth. O Crisântemo e a Espada. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 78. 15 ibid. p. 78. 16 Neste ponto faz-se referência à “piedade filial”, uma das virtudes do confucionismo, segundo a qual a reverência dos indivíduos deve ser dirigida para aqueles que lhes são hierarquicamente superiores, como os pais, os chefes, o Imperador, entre outros. ELIADE, Mircea & COULIANO, Ian P . Confucionismo. In. __________& ____________. Dicionário das Religiões, p. 95-99. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 97. 17 OGUMA, Eiji. Genealogy of Japanese Self-Images. Melbourne: Trans Pacific Press, 2002. p. xxxiii. 18

PINGUET, Maurice. A Morte Voluntária no Japão. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 272.

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ganhou aspecto de legitimidade principalmente pelo recurso feito ao Hagakure19 , um manual para a conduta samurai escrito no século XVIII por Yamamoto Tsunetomo (1659-1719), e o livro Bushido: The Soul of Japan, escrito por Nitobe Inazo (1862-1933) em 1899, tendo sido esta a obra que formalizou o “Meiji Bushido”, inclusive incorporando o Imperador em seu discurso20, algo inexistente no Hagakure ou em qualquer escrito sobre o Bushido anterior ao período Meiji. A propaganda estatal por meio do uso da espiritualidade Xintoísta, oferecia aos mártires da pátria o direito de suas almas repousarem no santuário de Yasukuni21, construído em 1869 por ordem imperial originalmente com a função de apaziguar as almas daqueles que morreram lutando pela restauração do poder imperial na guerra Boshin (1868) onde subseqüentemente também foram realizadas cerimônias pelas almas dos mortos que lutaram ao lado do exército imperial nos conflitos militares que se seguiram até o final da segunda guerra mundial. Dessa maneira os mortos divinizados após 1868 puderam compartilhar da mesma honra que aqueles que pereceram pelo Imperador na luta para restaurar seu poder22. Dizia-se que as almas dos soldados (divinizados) caídos se converteriam em flores de cerejeira23 nos jardins de Yasukuni, de onde “[...] supunha-se que o soldado continuava lutando pelo Japão no mundo dos espíritos24” e esta honraria era tida como motivo de júbilo. Como pode-se ver apesar de ter sido fundado no início da era Meiji, o santuário de Yasukuni rapidamente ganhou um sentido tradicional, um sentido forte o bastante para nos permitir apontá-lo como um dos pilares da motivação sacrificial japonesa no período abordado neste texto.

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Este manual de conduta, até o século XIX pouco conhecido fora do Han de Nabeshima onde foi escrito, busca trazer orientações para todos os aspectos da vida do samurai, tendo como máxima mais marcante: “O caminho do samurai é encontrado na morte” . OHNUKI-TIERNEY, Emiko. Kamikaze, Cherry Blossoms, and Nationalisms: The Militarization of Aesthetics in Japanese History. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. p. 117 & TSUNETOMO, Yamamoto. Hagakure: O Livro do Samurai. São Paulo: Conrad, 2004. p. 27. 20 NITOBE, Inazo. Bushido: Alma de Samurai. São Paulo: Tahyu, 2005. p. 17. 21 Em Yasukuni foram divinizadas as almas de cerca de 2.460.000 mortos de guerra, entre militares e civis, dentre os quais cerca de dois milhões foram mortos na guerra do pacífico. 22 BREEN, John. A Yasukuni Genealogy. In. ___________ (Edit) Yasukuni: The war dead, and the struggle for Japan’s past, p. 1-21. Nova York: Columbia University Press, 2008. p. 12-14. 23 Segundo a propaganda estatal do período Meiji ao Showa as flores de cerejeira (sakura), eram relacionadas ao samurai, cuja “vida era tão efêmera quanto a floração das cerejeiras”. Esta colocação também era uma tradição inventada, pois embora estas flores sejam realmente um símbolo antigo do Japão (inclusive citadas em textos antigos), não tinham antes do período Meiji sua imagem relacionada com a morte. FRÉDÉRIC, Louis. Cerejeira. In. __________.O Japão: Dicionário e Sociedade, p. 165. São Paulo: Globo, 2008. p.165 & OHNUKITIERNEY, Emiko. Kamikaze, Cherry Blossoms, and Nationalisms: The Militarization of Aesthetics in Japanese History. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. p. 106. 24 BARKER, A. J. Kamikazes. Rio de Janeiro: Renes, 1975. p. 28.

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Somadas estas três tradições inventadas (o Imperador como divindade viva, o Bushido como ethos nacional, e a honra dos mártires de renascerem em Yasukuni) podemos ter uma compreensão mais clara dos sacrifícios25 que ocorreram durante os esforços imperialistas do Japão e sobretudo durante os combates da segunda guerra mundial, na qual após começar a sofrer derrota após derrota o exército japonês deu mostras radicais da disposição de seus soldados ao sacrifício26, dentre as quais podemos a emblemática batalha de Tarawa (onde dos 5000 combatentes japoneses, somente oito sobreviveram), além de todas as outras famosas “cargas banzai27” levadas à cabo pelos soldados japoneses. “Nos encontraremos em Yasukuni” era uma expressão normal entre os soldados japoneses nestes momentos28 e os sacrifícios em massa descritos anteriormente incorporam o espírito de shinigurui29, citado no Hagakure, em uma passagem que diz: [...] O caminho do Samurai está no desespero. Nem mesmo dez ou mais adversários podem matar um homem desesperado. A ponderação não realizará grandes feitos. Apenas se deixe levar pela insanidade e pelo desespero. No caminho do samurai, aquele que utilizar o discernimento ficará para trás. Não é preciso lealdade ou devoção, basta se perder a razão no cominho. A própria lealdade e a devoção se encontram no desespero30

Shinigurui, citado como “desespero” na tradução acima, é o estado de espírito no qual o General Nogi Maresuke (1849-1912) afirmou estar durante a batalha de Port Arthur, onde após receber a notícia da morte de seu segundo filho em combate, liderou uma série de avanços inefetivos contra as fortificações russas, em um processo que custou a vida de cerca

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Contudo estas tradições inventadas não devem ser tomadas como os únicos fatores que encorajavam os japoneses ao sacrifício, pois aspectos como o “altruísmo” descrito por Emilé Durkheim, ou a “cultura da vergonha” descrita por Ruth Benedict, também são de grande apoio para entender essa situação, contudo não abordados aqui por não fazerem parte do foco deste estudo. Para mais detalhes sobre estes dois conceitos, consultar “O Suicídio” de Durkheim e “O Crisântemo e a Espada” de Benedict. 26 Contudo deve-se ressaltar que isso não era generalizado; aviam indivíduos que não se deixavam convencer pela propaganda estatal, dentre os quais podemos destacar os estudantes universitários, aos quais era permitido manterem suas convicções, desde que não as divulgassem, pois “não lhes era permitido atentar contra as salutares ilusões que tornam a morte mais leve ao soldado”. PINGUET, Maurice. A Morte Voluntária no Japão. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 276. 27 Momentos (ocorridos em batalhas como as de Saipã, Guam e Iwo-Jima) nos quais os soldados japoneses já em menor número e geralmente sem munições atiravam-se contra os inimigos gritando “banzai” (longa vida ao Imperador) armados de suas baionetas e espadas, sendo invariavelmente massacrados nestas investidas. BARKER, A. J. Kamikazes. Rio de Janeiro: Renes, 1975. p. 37-53. 28 ibid. p. 25. 29 MORRIS, Ivan. La noblesse de l’échec: Héros tragiques de l’histoire du Japon. s/l: Gallimard, 1980. p. 375. 30 TSUNETOMO, Yamamoto. Hagakure: O Livro do Samurai. São Paulo: Conrad, 2004. p. 62.

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de 16.000 de seus homens31, e que precederia vários momentos semelhantes quatro décadas mais tarde. Cabe também ressaltar que o shinigurui não é o único aspecto (retirado do Hagakure ou de qualquer outra fonte) da cultura samurai que marcava presença entre os soldados japoneses, pois para a identificação com os antigos componentes da aristocracia guerreira do Japão outros símbolos também eram vistos, dentre os quais o mais comum era o Katana (espada samurai) cujo porte era muito comum entre os oficiais, e o hachimaki32, comumente visto adornando os pilotos kamikaze. Assim estes soldados, considerando-se guiados pelo bushido, dirigiam-se ao combate prontos para sacrificarem-se pelo seu grande senhor (o Imperador) como esperava-se dos samurais, morrendo aos milhares; e aos milhares suas almas eram recebidas em Yasukuni, conferindolhes a honra máxima almejada por um guerreiro. Ao final da segunda guerra, a manifestação desse ethos mostrou-se entre a população civil, cujos membros neste momento foram convertidos em combatentes, e colocavam-se armados com lanças de bambu para defender um Japão já abatido pela escassez33, prontos para o suicídio nacional em nome do Imperador, cuja voz, em um pronunciamento pelo rádio em 15 de Agosto de 1945, fazendo o apelo pela rendição, impediu que este final cataclísmico se concretizasse.

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PINGUET, Maurice. A Morte Voluntária no Japão. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 297. Faixa de algodão amarrada na cabeça, que representava a determinação dos indivíduos para cumprirem seus objetivos. Era comumente utilizada pelos samurais durante as batalhas, não apenas pelo significado simbólico, mas também por conforto, uma vez que servia de proteção para não deixar que o elmo da armadura ferisse a cabeça do usuário ao tocá-la diretamente. Japão de A à Z: Hachimaki. Aliança cultural: Brasil, Japão. São Paulo, 2009. Disponível em: . Acesso em: 30 de Setembro de 2010. 33 No final da guerra do pacífico, isolado das riquezas naturais de suas colônias (petróleo, borracha, e outros) e com grande parte de seu território destruído por bombardeios, o Japão sofreu com a escassez de combustível e munição, além da de alimentos, o que fez o exército precisar armar a população civil com armas arcaicas como lanças de bambu, forcados e mosquetes de um só tiro, na preparação para confrontar a invasão inimiga . COOX, Alvin D. Japão: A agonia final. São Paulo: Renes, 1977. p. 86-98. 32

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BIBLIOGRAFIA: ABE, Yoshiya. O que foi que criou a cultura japonesa atual do Japão? O significado históricocultural dos mitos, fechamento e abertura dos portos. In. YANAGIYA, Kensuke (org). Palestras sobre a cultura japonesa, p. 133-146. Tóquio: Kaigai Nikkeijin Kyokai, 1999. BALDWIN, Hanson W. Batalhas Ganhas e Perdidas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1978. BARKER, A. J. Kamikazes. Rio de Janeiro: Renes, 1975. BENEDICT, Ruth. O Crisântemo e a Espada. São Paulo: Perspectiva, 2006. BURUMA,Ian & MARGALIT, Avishai. Ocidentalismo: o ocidente aos olhos de seus inimigos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. COOX, Alvin D. Japão: A agonia final. Rio de Janeiro: Editora Renes, 1977. ELIADE, Mircea & COULIANO, Ian P . Confucionismo. In. __________& ____________. Dicionário das Religiões, p. 95-99. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FRÉDÉRIC, Louis. Cerejeira. In. ____________. O Japão: Dicionário e Civilização, p. 165. São Paulo: Globo, 2008. _______________. Shie. In. ____________. O Japão: Dicionário e Civilização, p. 1040. São Paulo: Globo, 2008. GORDON, Andrew. A Modern History of Japan: From Tokugawa Times to The Present. Oxford: Oxford University Press, 2003. HARDACRE, Helen. Shinto and the State, 1868-1988. Princeton: Princeton University Press, 1989. HENSHALL, Kenneth. História do Japão. Lisboa: Edições 70, 2008. HOBSBAWM, Eric. Introdução: A Invenção das Tradições. in.________________ & RANGER, Terence (orgs). A Invenção das Tradições, p. 9-23. São Paulo: Paz e Terra, 2002. Japão de A à Z: Hachimaki. Aliança cultural: Brasil, Japão. São Paulo, 2009. Disponível em: . Acesso em: 30 de Setembro de 2010. LARGE, Stephen S. Oligarchy, Democracy, and Fascism. In. TSUTSUI, William M (Edit). A Companion to Japanese History, p. 156-171. Malden: Blackwell Publishing, 2007. MORRIS, Ivan. La noblesse de l’échec: Héros tragiques de l’histoire du Japon. s/l: Gallimard, 1980. NITOBE, Inazo. Bushido: Alma de Samurai. São Paulo: Berkana, 2005. OGUMA, Eiji. Genealogy of Japanese Self-Images. Melbourne: Trans Pacific Press, 2002.

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OHNUKI-TIERNEY, Emiko. Kamikaze, Cherry Blossoms, and Nationalisms: The Militarization of Aesthetics in Japanese History. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. PINGUET, Maurice. A Morte Voluntária no Japão. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. TSUNETOMO, Yamamoto. Hagakure: O Livro do Samurai. São Paulo: Conrad, 2004. WILSON, William Scott. Introdução. In. ____________ (org). A Mente Liberta, p.13-18. São Paulo: Cultivix, s/d.

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