O salto do primeiro início para o outro início do pensamento em Martin Heidegger

September 2, 2017 | Autor: Laura Meirelles | Categoria: Hermeneutics, Martin Heidegger
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O salto do primeiro início para o outro início do pensamento em Martin
Heidegger.[1]
Laura Meirelles[2]

A presente comunicação tem como tema chave a referência entre
tradição filosófica entendida como metafísica e um outro pensamento
possível nomeado pelo filósofo alemão Martin Heidegger de "outro início".
Para adentrar nesse jogo buscando os pontos de contato assim como as
diferenças entre os inícios partir-se-á aqui da Conferência Was ist
Metaphysik? (O que é Metafísica?) de 1929. O caminho que conduz a questão
já explícita no título leva ao Nada. Aparentemente controverso para alguns
ouvintes mas, já sabido por outros, esse Nada vislumbrado no discurso de
Heidegger pouco ou, já sendo redundante, nada tem a ver com o nada no
sentido de vazio. Isso ocorre, pois, esse Nada não é só uma simples negação
de tudo o que é atualizado, de tudo o que é ente, de tudo o que já foi
objetivado. De fato, o que está em jogo aqui é um "passo atrás" que
possibilita o ressoar do próprio "acontecimento essencial" (Wesung) do Ser
na sua referência ao Dasein, ao ser-aí. Um outro ponto é importante
ressaltar: o que se pode também desdobrar aqui é o modo próprio como os
diferentes discursos do homem dão conta dessa referência mais originária.
As atualizações dessa referência são devedoras desse jogo oscilatório entre
Ser e Nada no próprio nadificar desse Nada. Dessa maneira, os discursos do
homem têm sua condição de possibilidade nesse evento do "acontecimento
essencial" do Ser enquanto nadificação do Nada. Igualmente necessário é
também compreender que o próprio dar-se do Dasein homem é um discurso
possível a partir dessa dinâmica.
Como então ela se dá? Ela se revela ao Dasein a partir de uma
tonalidade afetiva fundamental (disposição de humor fundamental), uma
Grundstimmung: a angústia. Ela "manifesta o nada"[3]. Através dela, os
entes, o ente na sua totalidade, as referências relacionais do mundo, no
mundo e através do Dasein estão em suspensos. Nessa suspensão na angústia,
o Dasein vislumbra o próprio jogo do Ser, o seu "acontecimento essencial"
com o Nada e, assim, um novo desdobramento atualizado pode se dar. A
originariedade do discurso se deve não só porque parte dessa referência
originária mas, também, porque é um novo discurso desdobrado a partir da
referência entre Ser e Nada. Segundo Heidegger: "Sem a originária revelação
do nada não há ser-si-mesmo, nem liberdade"[4]. Ainda citando o filósofo:
"No ser do ente acontece o nadificar do nada"[5]. A ambiência do nadificar
do Nada através da angústia enquanto o próprio "ocorrer essencialmente"
(wesen) do Ser é o lugar do qual fala a Metafísica. É o lugar do qual parte
a sua questão. É o lugar que tonaliza e modela sua questão.
Partido desse jogo, ausculta-se uma dinâmica própria presente na
Metafísica. Através desse movimento, ela se diferencia da própria busca
das ciências positivas. Enquanto a Metafísica se questiona sobre essa
dinâmica, faz dela o tema que guia os seus caminhos, as ciências já partem
desse jogo, já o pressupõe no momento em que se desdobram discursivamente.
Citando Heidegger: "A ciência nada quer saber do nada. Mas não é menos
certo também que, justamente, ali, onde ela procura expressar sua própria
essência, ela recorre ao nada. Aquilo que ela rejeita, ela leva em
consideração"[6]. Dizer aqui que as ciências não se questionam sobre o
Nada e sua revelação na angústia não é um juízo valorativo. Isso quer
dizer: não se está aqui dizendo que as ciências são menos importantes ou
piores do que o discurso da Metafísica. O intento é apenas delimitador, ou
seja, um índice possível para compreender o lugar do qual cada discurso
parte, como cada discurso se dá naquilo que lhe é próprio. A ambiência
delimitada pela questão é esse índice. Enquanto as ciências se preocupam
com os entes, se voltam para eles e buscam um denominador comum
totalizante, a metafísica se questiona sobre a própria condição de
possibilidade desse movimento das ciências. Ela dá um "passo atrás" no
próprio fazer científico e torna esse "passo atrás" sua questão. Sendo
assim, a Conferência de 1929 dá uma base possível para guiar a compreensão
do fazer metafísico. Somente dando conta daquilo que é próprio da
Metafísica, pode-se então entrever como isso é desdobrado durante toda a
tradição desde os gregos até o mundo moderno indo de encontro e ao encontro
do fazer originário de Heidegger. Sendo próprio da Metafísica a busca pelo
"acontecimento essencial" do Ser na nadificação do Nada, então fica em
aguardo agora discursar sobre como isso se deu ao longo de sua história.
Para tal busca, então, começar-se-á pelo dito final de Heidegger na
Conferência: "Por que existe afinal ente e não antes Nada?"[7]. Trazendo à
tona uma perspectiva já antes vislumbrada por Leibniz e Schelling,
Heidegger a desdobra de um modo próprio. Ele abre, assim, a perspectiva
para compreender aquilo que é próprio da Metafísica e, por assim dizer,
aquilo que marca toda sua longa história: a tentativa de dizer o Nada, ou
seja, o próprio jogo no qual a questão do Ser entreluz. Como essa questão
de desdobrou discursivamente, aí sim estão os meandros que levam Heidegger
a propor um "outro início" para o pensamento. Esse jogo é modulado de
diversas maneiras ao logo de toda tradição, ou seja, ele ganha diferentes
roupagens. No entanto, se desliza sobre o mesmo modo de encará-la. Esse
desenrolar, a principio taxado pejorativamente aqui de "mais do mesmo", é
agora o ponto através do qual se trabalhará. Para tal, é necessário a
companhia de um outro texto de Heidegger intitulado Zur Seinsfrage (Sobre a
questão do Ser) de 1955. A relevância desse chamado está justamente na
ampliação do discurso sobre a Metafísica e o modo como ela se deu na
tradição. É claro que para isso é necessário tomar um fio condutor,
tentando vislumbrar entre os diferentes modos de metafísica um pano de
fundo em comum. À primeira vista, isso soa um tanto reducionista. No
entanto, todo o discurso já não o é? Afinal, ele é um em detrimento de
vários independentemente daquilo que se coloca como pauta discursiva. O que
se deve evitar, no final das contas, não é a busca por um fio condutor para
a compreensão mas, sim, a não totalização desse elemento guia. Sendo assim,
toma-se aqui a dinâmica entre Ser e Nada detalhada por Heidegger na
Conferência de 1929. No entanto, ver-se-á que a própria busca pelo "outro
início" do pensamento será o freio mais que necessário a toda pretensão
totalizante.
Enquanto questiona a própria dinâmica do "acontecimento essencial" do
Ser na sua referência ao Nada, a tradição metafísica apontou para uma
resposta na qual esse Nada originário se desdobra em um nada niilista. Essa
transformação não só coloca nas bases da Metafísica a própria essência do
Niilismo como, também, deixa ressoar o modo próprio de lidar com a questão
do Ser. No texto de 1955 que, de fato, é uma correspondência entre
Heidegger e Ernst Jünger (1895-1998), a busca se pauta por uma tentativa de
desvelar a essência do niilismo. Em contraponto à tentativa de Jünger,
Heidegger procura fazer ver que essa busca não pode se dar nos moldes da
Metafísica, valendo-se de seus próprios recursos e dinâmicas.
Diferentemente de Jünger, Heidegger não quer promover um discurso que
diagnostique o fenômeno niilista dentro de padrões de causa e efeito. Não é
o lugar no qual ele quer chegar ainda que seja o lugar do qual ele parte.
Na verdade, o que se busca é um aprofundamento nos próprios terrenos da
Metafísica para que nessa escavação a própria essência do niilismo ressoe.
Buscar a essência de algo é sempre buscar aquilo que não é esse próprio
algo[8]. Então, partindo desse pressuposto, a essência do niilismo está
alojada em algo que não é ele mesmo e do qual ele apenas é o índice de uma
dinâmica maior, do qual ele apenas é uma possibilidade ressoante. Sendo
assim, toda essa roupagem de esvaziamento de valores, é só uma
possibilidade de acontecimento do fenômeno niilista a partir de uma
essência que não é ele mesmo. A sua essência, algo diverso e, também,
fomentador está escondido.
O que está escondido então na Metafísica que torna sua constituição a
essência do Niilismo? A questão gira em torno de uma outra que é uma
possível base de compreensão da tradição metafísica: a questão do Ser. Na
tentativa de dar conta do "acontecimento essencial" do Ser, a tradição
filosófica chamada por Heidegger de Metafísica incorreu no "esquecimento do
esquecimento do ser". O que isso significa? O Ser "ocorre essencialmente"
(west) na referência ao Dasein em um jogo oscilante de "voltado para"
(Zuwendung) e "desviado de" (Abwendung). Uma das maneiras disso ressoar, ou
seja, de se fazer sentir é o próprio jogo entre ocultação e não ocultação.
Sendo assim, a referência entre Ser e Dasein nunca se esgota em cada
atualização, em cada instante em que ela se dá, pois esse acontecimento
nunca é o todo de possibilidade ressoada dessa referência. Enquanto também
se preserva, se "desvia", o Ser abre para que novas possibilidades de
referência se dêem enquanto ressoa o próprio acontecimento a partir de uma
diferença. Heidegger a nomeia de "diferença ontológica": o ente na sua
atualização não é o Ser e o Ser não é esse ente. No entanto, a tradição
Metafísica com o seu discurso sobre o Ser não parte dessa distinção. A
confusão entre ente e Ser não apenas leva ao esquecimento do "acontecimento
essencial" do Ser mas, também, do papel do ente nesse evento. Assim, a
metafísica se esquece que é próprio do Ser o "desviar-se". Ele não é apenas
um "voltar-se para" no ente atualizado. Esquecendo-se que na dinâmica do
Ser há um esquecimento constitutivo, a Metafísica se esquece duplamente e
abre caminho para abrigar a essência de fenômenos como o niilismo.
Sem esse jogo oscilante entre Zuwendung e Abwendung, o Nada
originário ressoa de um outro modo. O que, com o texto de 1929, seria
próprio da busca metafísica, o Ser, seu "acontecimento essencial", o Nada
através da Angústia, se dá de outra maneira a partir do discurso que se
erigiu ao longo de sua história. A partir do momento em que a Metafísica
estagna o jogo do "ocorrer essencialmente" do Ser, privilegiando a dimensão
do "voltar-se para", privilegiando o ente, o Nada originário se torna o
nada niilista. Enquanto o primeiro é entrevisto a partir do "acontecimento
essencial" do Ser, sustentador da dinâmica do Zuwendung e Abwendung, o
segundo é uma possibilidade ressoante da própria estagnação desse jogo mais
originário. Se há uma tendência para a estagnação do jogo do Ser, se há uma
dicotomia desse jogo e a questão do Ser passa, então, a ser respondida a
partir das opções ou Zuwendung ou Abwendung, o nada niilista ressoa como um
possível se fazer sentir disso. A própria diferença sugerida por Heidegger
para a distinção entre esses dois nadas mostra não só a distância entre
eles mas, também, a proximidade. Heidegger sugere no texto de 1955 que o
nada niilista seja escrito com letra minúscula, enquanto que o Nada
originário com letra maiúscula. Algo se torna mais claro agora: ainda que
abrigue a essência do Niilismo, a Metafísica não é toda ela niilista. Isso
quer dizer: ao deixar o seu discurso ressoar uma possibilidade do
"acontecimento essencial" do Ser como "a" possibilidade e tornar esse único
"a" o seu ocorrer mais próprio, a Metafísica abre espaço para o Niilismo. O
esgotamento próprio desse fenômeno sentindo na falência dos valores é o
índice do próprio esgotamento do discurso metafísico acerca do Ser. A
partir dessa breve recapitulação, o que se busca agora é fazer sentir a
necessidade do próximo passo: a superação (Überwindung) do Niilismo
enquanto uma restauração (Verwindung) da Metafísica.
Superar o Niilismo enquanto fenômeno é buscar a restauração da
própria Metafísica. Esse jogo entre superação e restauração não se volta
para um abandono ou até mesmo uma simples negação. Não se trata de um
abandono nem ao mesmo parcial como se poderia supor a essa altura da
comunicação. Não há como colocar no lixo uma parte da Metafísica enquanto
se salvam outras. Igualmente, não se busca um caminho solitário no qual a
tradição metafísica na sua totalidade seria abandonada e nunca mais os
homens teriam que se a ver com ela, nunca mais teriam que ser o sustentador
de tal discurso metafísico. A superação e restauração enquanto abandono
total é tão impossível quanto o parcial e um tal querer chega a ser
ingênuo. A própria constituição do abandonar já mostra o porquê disso:
abandonar algo já é pressupor esse algo, sendo assim, ele nunca é
abandonado seja de maneira total ou parcial.
Voltar-se para o que diz o próprio verbo "abandonar" é deixar entrar
aqui nessa contenda a espinha dorsal da superação e restauração da
metafísica: a linguagem. No texto de 1955, Heidegger aponta para o papel da
dimensão da Linguagem enquanto central na busca por esse jogo. Em um
sentido, a busca pela própria essência da Linguagem conduz ao
"acontecimento essencial" do Ser no seu jogo referencial oscilatório de
Zuwendung e Abwendung. Isso abre a possibilidade para compreender o
discurso metafísico como uma possibilidade acerca da questão do Ser já que
na base desse discurso se dá uma dinâmica mais originária. Assim como na
busca pela essência do niilismo, a busca pela essência da Linguagem leva a
própria questão do Ser. Em um outro sentido, tem-se a perspectiva da
própria Linguagem enquanto língua. Sendo assim, o que se pode dizer aqui
então? A Linguagem enquanto língua ressoa da própria constituição
metafísica, está fundamentada aí, coaduna sua própria estrutura com a da
metafísica. Em outras palavras: a língua que se fala, que se escreve, ou
seja, que se comunica cotidianamente é a mesma com a qual se discursa sobre
a questão do Ser. Essa mesma linguagem enquanto língua está marcada pela
entificação do "acontecimento essencial" do Ser e por todas as
conseqüências que emergem daí. Sendo assim, um discurso que se propõe a
falar do jogo superação e restauração tem como veículo para tal a própria
linguagem que já é e ressoa o próprio fazer metafísico, de modo metafísico.
Com isso, percebe-se o quão paradoxal é a dimensão da superação do Niilismo
e restauração da Metafísica. Sendo assim, já de partida, esse jogo nunca
pode se configurar como um "abandonar" seja parcial ou total. Se ele não é
um abandonar ou um simples negar, como ele se dá?
Esse paradoxo se torna menos enigmático quando se traz para cá três
dimensões trabalhados por Heidegger na sua obra de 1936/38 intitulada
Beiträge zur Philosophie: vom Ereignis. Eles são: primeiro início (erste
Anfang), outro início (andere Anfang) e salto (Sprung).
O primeiro início para Heidegger trata-se da própria Metafísica e seu
acontecimento histórico enquanto tradição. Nesse movimento, a diferença
ontológica ficou esquecida em prol de uma primazia do domínio dos Entes.
Assim, todo discurso sobre o Ser é um discurso a partir do domínio dos
Entes. Ainda mais determinante, é a postura diante desse discurso: ele não
é tomado pela Metafísica como uma possibilidade entre outras, mas como a
possibilidade. Sendo assim, a Verdade do Ser, ou seja, o seu "acontecimento
essencial" não entreluz discursivamente, ainda que se parta dele para
erigir um discurso metafísico. Verdade aqui compreendida enquanto a
dimensão do próprio dar-se do Ser. No entanto, a Metafísica a restringiu a
uma única possibilidade que é a da adequação entre mente e coisa, sujeito e
objeto, pois, no fundo, o que está em destaque é a entificação. Um ente é
adequado a outro e assim se descobre a verdade. Citando o próprio pensador:

O primeiro início experiencia e coloca a Verdade do Ente, sem
perguntar pela Verdade enquanto tal, pois na sua não-
ocultação, o Ente enquanto Ente, necessariamente tudo
extrapola/predomina/prepondera (übermächtigt), pois [ele]
também traga/engole/entrelaça o Nada e o abrange ou o elimina
totalmente enquanto "não" e contra.[9]

Já o outro início do pensamento, Heidegger abre uma perspectiva para
um outro discurso sobre o Ser, a partir de um movimento questionador
diferente, mas não totalmente estranho ao primeiro início. Dessa maneira, o
outro início pauta-se por dar voz discursivamente à Verdade do Ser, ou
seja, ao seu dar-se mais original, mais próprio, a partir da sua essência à
luz da Ereignis, a apropriação-expropriação na qual o Ser se dá. Para
diferenciar essa busca da empreendida pelo primeiro início, Heidegger passa
a grafar o Sein com y, ou seja, Seyn. Ele recupera aqui a grafia do verbo
do antigo alemão. Igualmente e seguindo a orientação de Marco Casanova em
seu artigo de 2002 intitulado A linguagem do acontecimento apropriativo,
poderia ser feito no português. Ao invés de escrever Ser com um "e" só,
poder-se-ia recuperar a antiga grafia e escrevê-lo com dois "es", ou seja,
Seer[10]. Assim, não só o Ser, agora grafado com "y" em alemão ou com dois
"es" em português, se deixa entrever em uma nova possibilidade mas, também,
os Entes. Mudando o ressoar do Ser, as referências entre Entes e Dasein,
Dasein e Dasein e, finalmente, Dasein e Ser se fazem sentir em um novo tom.
Trata-se aqui da busca por aquilo que não foi dito, por aquilo que não foi
colocado em questão pela Metafísica. Tratá-se aqui de abrir espaço para que
outros discursos sejam possíveis desmembrando assim um pouco da totalização
vestida pelo discurso metafísico. Todo discurso é autoritário, pois é um em
detrimento de vários outros possíveis. No entanto, com o outro início
aprende-se que se este "um" se tornar o "único" possível, novos discursos
se esvaziam de sua originariedade. Assim, "mais do mesmo" é discursado como
se fosse a origem desse movimento enquanto que a sua própria dinâmica
permanece inquestionável. É claro que todo discurso é rico e deixa ressoar
a questão do Ser. No entanto, igualmente rico é a compreensão do limite de
cada discurso para que assim novos possam se dar. "Mais do mesmo" não quer
dizer "tudo igual". O que se busca apontar aqui é que ele não é nem o único
nem ressoa a origem nos moldes propostos por Heidegger. Citando o pensador
acerca do outro início:

O outro início experiencia a Verdade do Ser e pergunta pelo
Ser da Verdade para, então, primeiramente, fundamentar o
acontecimento essencial do Ser (Wesung des Seyns) e para
deixar nascer o Ente enquanto mantenedor dessa Verdade
original.[11]

Quanto ao salto, aqui se deita o movimento entre os inícios. Se em
outros momentos, Heidegger o nomeia de superação e restauração, nas
Beiträge ele o chama de "salto". Essa mudança clareia o que pode ser
compreendido como superação e restauração. Ao mesmo tempo, não permite que
se caia na errônea idéia de um total ou parcial abandono ou uma simples
negação. Citando o pensador acerca dessa perspectiva de abandono como fim,
como negação:

O discurso sobre o fim da Metafísica não pode induzir ao erro
de que a filosofia esteja terminada com a "Metafísica", ao
contrário: primeiro agora, em sua impossibilidade essencial,
esta [a Metafísica] deve ser passada (zugespielt) daquela e,
dessa maneira, a filosofia, ela mesma, deve ser jogada para o
outro lado (hinübergespielt), no seu outro início.[12]

Com esse trecho, pode-se então penetrar na ambiência do próprio
salto. A imagem figurativa que ajuda na compreensão deve partir não de um
salto na horizontal mas, sim, como um salto na própria vertical. Quando se
salta para cima, parte-se de algum lugar em direção a outro. Isso não quer
dizer que o lugar do qual se parte deixa de existir. Em contrapartida, o
lugar para o qual se salta não existe por si mesmo. Quando se salta, não há
como permanecer suspenso. Igualmente necessários são os dois lugares que
compõe o próprio ato de saltar. Igualmente transformador é o modo como se
salta e como o lugar para o qual se vai altera o lugar no qual se estava.
Sendo assim, a própria metafísica enquanto um discurso possível do Ser é
transformado nesse salto. Parte-se dela, ou seja, do primeiro início para
um salto em direção ao outro início do pensamento. Isso fica mais claro
quando se traz para cá a dimensão da Linguagem. Ela é o índice do salto. É
nela que o "como" do salto se faz sentir. O modo como ela é torcida, tanto
semântica quanto estruturalmente, permitirá vislumbrar o como do salto. Por
que torção? O jogo de superação e restauração enquanto um salto que vai e
vem ressoa na linguagem através desse enigma irresoluto que se desvela na
torção: dizer um novo e outro movimento do Ser através de uma linguagem que
o entificou. Assim, percebe-se que o mote aqui não é um abandono nem uma
negação, mas muito mais um ressoar que depende de uma nova postura, uma
nova tonalização diante do já acontecido. Essa postura seria uma certa
Verhaltenheit. Na reserva, a linguagem pode abrir-se para o "acontecimento
essencial" do Ser tomando como questão esse dar-se na sua dinamicidade. Na
abertura propriamente da reserva, a linguagem, mesmo cunhada pela
metafísica, pode abrir novas possibilidades de sentido, de jogo, de
movimento. Não é à toa que Heidegger flerta com os poetas. Na linguagem
poética, esse jogo se deixa entrever mais, pois ele é justamente colocado
como questão. É o jogo do próprio acontecimento humano, jogo esse que só é
experienciado na sua essencialidade através da linguagem.
Com isso, nada aqui termina, mas tudo encontra seu fim enquanto
limite. A Metafísica, o primeiro início, não acaba, mas seus contornos se
delineiam. A partir deles, um outro início para o pensamento pode se dar. A
própria fronteira do primeiro início é o apoio para o salto em direção a um
outro início possível. Saltando, a própria metafísica se remodela. Isso
acontece, pois, quando se vê a necessidade de um outro discurso possível,
aquilo que encontra abrigo na metafísica, a totalização do discurso, não
mais é seu hóspede. Assim, buscar o "acontecimento essencial" do Ser,
tornar seu jogo constitutivo uma questão e fazê-la ressoar enquanto tal já
é um índice do próprio atentar para a necessidade do salto. Não se
visualizaria isso se a morada fosse apenas dentro da Metafísica e seus
contornos não fossem definidos. Os limites apenas são vistos quando se
tonaliza de uma dimensão totalitária para uma autoritária[13]. O primeiro
início é "um" e não "o" discurso sobre o Ser. O outro início é um outro
possível cujos caminhos o próprio Heidegger tratou de apontar. Como não
totalizar esse outro início? Ouvindo ao chamado deste pensador: fazendo uma
experiência, se colocando a desdobrar os limites tanto do primeiro quanto
do outro início para o pensamento. As delimitações não são o fim, mas o
início para um novo salto. Estar aberto, na reserva para que essa
experiência assalte aquele que a experiencia é a chave para possíveis novos
discursos.
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[1] Texto apresentado no III Colóquio Internacional de Metafísica em
Natal/RN no período de 20 a 24 de abril de 2009.
[2] Mestre em Ciência da Religião pela UFJF na área de concentração em
Filosofia da Religião. Atualmente é doutoranda pelo mesmo departamento.
[3] HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. 3. ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1999. Os Pensadores, p. 57.
[4] HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. 3. ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1999. Os Pensadores, p. 58.
[5] Martin Heidegger, Conferências e Escritos Filosóficos, p. 59.
[6] Martin Heidegger, Conferências e Escritos Filosóficos, p. 53.
[7] Martin Heidegger, Conferências e Escritos Filosóficos, p. 63.
[8] HEIDEGGER, Martin. Serenidade. 1. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2001,
p. 32.
[9] HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie: Vom Ereignis. 3. ed.
Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2003, p. 179.
[10] CASANOVA, Marco. A linguagem do acontecimento apropriativo. Nat. hum.,
dez. 2002, vol.4, no.2, p.315-339. ISSN 1517-2430.
[11] HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie: Vom Ereignis. 3. ed.
Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2003, p. 179.
[12] HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie: Vom Ereignis. 3. ed.
Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2003, p. 173.
[13] RICOEUR, Paul. História e Verdade. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1968, p. 167-224.
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