O século XIX foi o século das missões protestantes no Brasil

June 29, 2017 | Autor: Seminário Ibadeja | Categoria: N/A
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A LEGISLAÇÃO DO BRASIL IMPÉRIO E A ESTRATÉGIA MISSIONÁRIA DE ROBERT KALLEY Pedro Henrique Cavalcante de Medeiros * Resumo: O século XIX foi o século das missões protestantes no Brasil. Houve muitos obstáculos para o êxito dessas missões. Entre esses obstáculos, destaca-se a legislação brasileira que protegia o culto católico como religião oficial. Nesse contexto chega ao Rio de Janeiro em 1855 o casal Kalley, com um projeto inovador de evangelização protestante em um país com várias restrições à prática religiosa dos cultos acatólicos. Muito sutilmente eles conseguem propagar a fé protestante sem ferir as leis do país. Entre as estratégias evangelísticas adotadas destacam-se o culto doméstico e a escola dominical. Mesmo agindo de forma sutil os representantes católicos os perseguem. Robert Kalley toma uma decisão, procurar legalmente a legitimidade para a sua missão, alcançando sucesso. Desde então o protestantismo pode se expandir no Brasil. Palavras-chave: Protestantismo de missão, legislação e planos de evangelização. Introdução O século XIX foi o século das missões protestantes no Brasil. Houve muitos obstáculos para a efetivação do protestantismo no povo brasileiro. Dentre os obstáculos que os missionários protestantes tiveram de enfrentar em seus projetos evangelísticos, destacavase a legislação brasileira em vigor. Dentre as investidas protestantes ocorridas durante o reinado de Dom Pedro II, destaca-se a evangelização do Pr. Robert Reid Kalley, no Rio de Janeiro, um escocês que chegou ao Brasil em 1855 após perseguição sofrida na ilha de Madeira, em Portugal (CARDOSO, 2001:86-94). Ele iniciou um projeto evangelístico que iria se tornar o marco da inserção dos protestantes no Brasil. A experiência lhe ensinou a trabalhar em terras onde a liberdade religiosa não existia. Sabendo identificar e utilizar as oportunidades que lhe surgiram, fizeram com que o protestantismo crescesse e se firmasse desde o Império. __________________ * Graduando em História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Instituto Multidisciplinar em Nova Iguaçu (UFRRJ-IM).

A querela Kalley Robert Kalley havia sido expulso de Madeira, esse ocorrido fez com que algumas de suas atitudes fossem muito bem pensadas, como a escolha do local onde ele iria morar: uma mansão que se situava nas proximidades da residência do Imperador Dom Pedro II, em Petrópolis, isso demonstrava o seu desejo de se aproximar da elite imperial e assim facilitar de algum modo o seu empreendimento missionário; além de ter sempre a preocupação de evangelizar dentro dos limites da lei, ou seja, utilizando o culto doméstico e a escola dominical (HAHN, 1989:140,141). O culto doméstico porque a partir da Constituição de 1824 em seu artigo quinto, o culto dos acatólicos torna-se tolerado, mas apenas em cultos domésticos, em casas particulares sem forma exterior de templo. Segundo Cardoso, desde a sua missão em Madeira, o conceito de culto doméstico havia sido renovado, o que antes era entendido apenas como um culto familiar, a partir desse momento se entende como um espaço privilegiado para a prática de evangelização e local para se prestar culto a Deus (CARDOSO, 2001:104, nota 157). O uso do culto doméstico não se restringiu apenas a ele, mas foi passado para os seus ministros também, assim as Igrejas Kalleyanas começaram a se expandir (CARDOSO, 2001:117). Esse cuidado na propagação do evangelho vai gerar atritos com o missionário que o seguiu, Ashbel Green Simonton, esse acreditava que a pregação deveria ser mais expansiva, mais ousada (CARDOSO, 2001:136-140). A escola dominical foi iniciada no mesmo ano em que o casal Kalley chegou ao Brasil, no momento em que eles chegaram à Petrópolis (agosto de 1855). A mansão Gernheim, localizada nessa cidade, alugada pelo o embaixador americado senhor Webb, logo ficaria desocupada (outubro de 1855). O embaixador, mesmo antes de sair daquela mansão, gentilmente a cedeu para Sarah e Robert iniciarem as aulas da escola bíblica dominical (CARDOSO, 2001:112). Quando foi fundada, a escola dominical tinha uma função fortemente social. Iniciada por Raikes na Inglaterra durante a Revolução Industrial, o seu objetivo era dar melhores condições de vida para crianças resgatadas da marginalidade, e não se tinha apenas estudos bíblicos, também havia aulas de higiene, moral e civismo. Sarah era fruto desse fenômeno, e o objetivo de sua escola era “investir no homem como um todo, preparando-o para a sociedade e para e (sic.) o reino de Deus” (CARDOSO, 2001:113). Essa escola começou a ser frequentada por filhos das famílias Webb e Carpenter

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(ingleses), entretanto algumas semanas depois, Kalley iniciou uma classe para negros (Ibid.). Qual seria o interesse em dar aulas para negros? Que negros seriam esses, libertos, escravos? Nesse trabalho não pretendemos analisar essas questões, mas uma coisa é certa, segundo Cardoso, todo o trabalho evangelístico nesse momento foi centrado nas pessoas de baixo estrato social (CARDOSO, 2001:123). Além disso, antes mesmo da abolição ele já se mostrava um abolicionista ferrenho (REILY, 1984:102,103). Assim se configou o plano evangelístico de Kalleyano. Ele conseguiu se manter sem muitos problemas com a justiça imperial até o batismo de duas damas da corte, quais sejam: a senhora Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta, irmã e sobrinha do Marquês de Paraná, grande estadista do Império, e do Barão de Santa Maria. Mesmo tendo feito esse batismo em um culto doméstico, ele teria conseguido despertar a ira da liderança católico romana (CARDOSO, 2001:131). O núncio papal, representado pelo senhor Paranhos, denunciou a sua missão a legação britânica, representada pelo senhor William Stuart, basenando-se no décimo segundo artigo do Tratado de Comércio e Navegação de 1810 que proibia aos súditos ingleses de fazer proselitismo, e punia os culpados com a extradição. Diante do exposto, o evangelista consultou três dos maiores juristas da época, o senhor Dr. Nabuco, o Dr. Urbano S. Pessoa de Mello e o Dr. Caetano Alberto Soares, e com o parecer desses, favorável ao seu pleito, ele apresenta a sua defesa à delegação britânica. Pretendemos no presente trabalho fazer uma breve análise dessa querela. O pastor apresenta algumas questões a esses juristas, demonstrando com esse ato, o conhecimento que tinha da legislação brasileira em vigor no Império, e soube usar esse conhecimento a seu favor. Ele questiona quais seriam os limite da tolerância religiosa garantida legalmente, e assevera que não estava fazendo nada que contrariasse a legislação. Muito sutilmente ele consegue realizar a evangelização do povo brasileiro sem ferir as regras (CARDOSO, 2001:122). Havia questões perguntando sobre a liberdade dos brasileiros de seguirem a religião que quisessem. Isso revela que ele estava se baseando no texto do artigo 179, inciso V da Constituição de 1824, no qual ninguém podia ser perseguido por motivo religioso, conquanto que respeitasse a religião oficial. Ora, se os brasileiros eram protegidos constitucionalmente em questão de religião, a que risco o brasileiro estava submetido se quisesse seguir outra religião senão a do Estado. O

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único perigo, pelo que se entende, seria se alguém usasse de sua escolha para ofender a moral pública, ou seja, se pregasse contra os preceitos da Igreja Católica de acordo com o artigo 277 do Código Criminal de 1830, regulamentado o que se devia entender por “ofensa a moral, à religião e aos bons costumes”. Havia questão sobre a condenação de alguém sem culpa formada, ele temia que novamente pudesse ser expulso de um país por motivos religiosos, embora Cardoso diga que os motivos da expulsão foram econômicos e sociais (CARDOSO, 2001:86-94). Mas a lei proibia a punição de alguém sem culpa formada, segundo o inciso oitavo da Constituição: “Ninguem poderá ser preso sem culpa formada”. Outra dúvida era sobre a prática do culto doméstico. Para esse pioneiro na evangelização protestante do país, o seu plano não tinha nada de ilegal. E o que deveria ser entendido por atitudes públicas? Ora, o culto doméstico era garantido aos acatólicos. E, segundo a Constituição, ninguém poderia ser perseguido por publicar suas idéias, e isso incluía os protestantes, conquanto que não atacassem a religião oficial (RIBEIRO, 1973:33). Afinal, o que estava sendo feito era público ou privado? Era privado no sentido de que tudo era realizado dentro de uma casa, e essa era tida como asilo inviolável, segundo o texto do inciso sétimo do artigo 179 da Constituição: “Todo o Cidadão tem em sua casa um asylo inviolavel”; e era público por evangelizar todos os que fossem visitar a casa, a entrada era franqueada a todos os que quisessem frequentá-la. Após ter pedido esclarecimento, ele recebeu um parecer favorável às suas questões, e, portando esse parecer favorável, enviou uma resposta a legação britânica, alegando que não estava cometendo nenhum crime. E por sua vez a legação britânica responde ao núncio papal, questionando qual o motivo de se estar perturbando a legação britânica, pois o cidadão Robert Kalley não havia cometido nenhum crime. Considerações finais A conjuntura em que ocorreu essa querela era favorável à causa protestante (CARDOSO, 2001:109). Uma oportunidade foi aberta, e outros missionários aproveitaram para empreenderem os seus projetos no Brasil. Nas palavras de Hahn, "o precedente estava estabelecido e uma decisão legal obtida. O protestantismo pôde, dentro destes limites, viver e crescer no país já desde os seus primeiros anos” (HAHN, 1989:147,148). O missionário soube usar esse fato como legitimidade para continuar o seu trabalho e incentivou outros

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missionários a expandirem as suas missões (CARDOSO, 2001:139). Bibliografia CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Kalley: médico, missionário e profeta; a história da inserção do protestantismo no Brasil e em Portugal. São Bernardo do Campo: edição do autor, 2001. HAHN, Carl Joseph. História do culto protestante no Brasil. São Paulo: ASTE, 1989. REILY, Duncan Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1984. RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil Monárquico, 1822-1888: aspectos culturais de aceitação do protestantismo no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1973.

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